O valor de educar 1 Fernando Savater
1. Para uma Humanidade sem humanidades? No campo da educação, um fantasma é o hipotético desaparecimento das humanidades dos planos de estudo, substituídas por especialidades técnicas que mutilarão as gerações futuras da visão histórica, literária e filosófica, imprescindível para o cabal desenvolvimento da plena humanidade (…). A questão merece ser considerada com alguma detenção, porque a própria reflexão sobre o ensino que queremos ou que recusamos nos obriga também a meditar sobre a qualidade da própria cultura em que hoje nos inserimos. Em certo sentido, o temor parece bem justificado. Os planos de ensino em geral tendem a reforçar os conhecimentos científicos ou técnicos que, supostamente, terão uma utilidade prática imediata, isto é, uma aplicação laboral directa. A inovação permanente, aquilo que é uma descoberta recente ou tudo quanto abre passagem para a tecnologia do futuro gozam do maior prestígio, enquanto a rememoração do passado ou as grandes teorias especulativas
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Savater, F. (1997). O valor de Educar Lisboa. Edições Presença. (A obra foi republicada pelas Edições Dom Quixote em 2006)
soam a pura perda de tempo. Há algum cepticismo sobre tudo o que se apresenta aspirando a uma concepção global do mundo. Essas pretensões totalizantes já, muitas vezes, derivaram para o totalitarismo e em qualquer caso estão sempre sujeitas a controvérsias intermináveis que o afã politicamente correcto do dia-a-dia prefere deixar abertas para que cada qual escolha a seu gosto. Em sociedades multiétnicas — e cada vez serão mais — resultam perigosas ou pelo menos delicadas as excursões até às origens. Quanto aos fins, sejam estes políticos ou estéticos, tão-pouco parecem fáceis de executar. É mais seguro deter-se sobre os meios, zona temperada da instrução, e no sólido território do pragmatismo, em que a grande maioria costuma coincidir. Além disso, nalguns países como a Espanha, onde um clero propenso ao dogmatismo monopolizou até há pouco tempo a oferta pedagógica, a pletora de letrados versados em logomaquias contrasta tristemente com a escassez de investigadores científicos capazes, parece lógico que as autoridades educativas, que se consideram progressistas, decidam que chegou o momento de inverter esta proporção (…). Mas, o que são as humanidades? Suponho que ninguém sustente a sério que estudar matemáticas ou física sejam tarefas menos humanistas, não digamos menos «humanas», que dedicar-se ao grego ou à filosofia. Nicolau de Siracusa, Descartes, Voltaire ou Goethe teriam ficado pasmados ao ouvir hoje tamanho disparate na boca de um literato pedante, daqueles que repetem vacuidades sobre a técnica «desumanizadora» (…). A separação entre cultura científica e cultura literária é um fenómeno que só se inicia nos finais do século passado, para de imediato se consolidar no nosso, dada a impossibilidade de abarcar saberes cada vez mais técnicos e complexos, que desafiam as capacidades de qualquer indivíduo,
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impondo a especialização, que não é mais do que uma forma de renúncia. A seguir assiste-se à necessidade de encontrar a virtude, clamando os literatos contra a quadrícula desumana da ciência, enquanto os cientistas zombam da ineficácia palavrosa dos seus adversários. O certo é que esta hemiplegia cultural é uma novidade contemporânea, não uma constante necessária e que encontraria poucos adeptos — se acaso encontrasse algum — entre as figuras mais ilustres da nossa tradição intelectual. Diz-se que as faculdades que o humanismo pretende desenvolver são a capacidade crítica de análise, a curiosidade que não respeita dogmas nem ministérios, o sentido de raciocínio lógico, a sensibilidade para apreciar as mais altas realizações do espírito humano, a visão de conjunto, face ao panorama do saber, etc. Francamente, não conheço nenhum argumento sério para provar que o estudo do latim e do grego favoreçam mais estas desejáveis qualidades que o estudo da matemática ou da química. Apresento estes exemplos, para poder falar com total imparcialidade, porque sempre fui igualmente incompetente no estudo dessas quatro disciplinas. Sem duvidar do interesse intrínseco de nenhum desses saberes, como estabelecer que é mais humanamente enriquecedora a filologia das palavras que a ciência experimental das coisas? Considero de grande valia estar prevenido de que as doenças «venéreas», por exemplo, nada têm que ver etimologicamente com as veias, assim como conhecer a lenda mitológica da amável deusa a que devem o seu nome, mas tão-pouco me parece ser de desdenhar informarme sobre a desordem fisiológica que tais doenças provocam, assim como a composição activa das substâncias capazes de remediá-las. Duvido que do ponto de vista do interesse estritamente cultural (a força espiritualmente emancipadora) a primeira aprendizagem seja superior à segunda e, de imediato indignar-me-ia ver menosprezar esta sua condição mais «prática»
ou «técnica». Quanto à filosofia, cujo conteúdo me é mais familiar, desconfio também de que tenha per se virtudes especiais para configurar personalidades críticas ou insubmissas face aos poderes deste Mundo. Quando oiço os estudantes ou os professores da minha corporação denunciar como atentados governamentais contra o pensamento livre qualquer redução do horário das disciplinas filosóficas no bacharelato, não posso deixar de sentir uma certa incomodidade (…). Na verdade, algumas das pessoas mais conformistas, supersticiosas e desprezíveis que conheço são catedráticos de filosofia. Se eu tivesse que julgá-la por tais representantes, restar-me-ia uma única solução: solicitar a abolição do seu estudo no bacharelato e até na Universidade. A questão das humanidades não se baseia primordialmente, quanto a mim, no título das matérias que vão ser ensinadas, nem no seu carácter científico ou literário. Todas são úteis, muitas são oportunas e há-as imprescindíveis… sobretudo na opinião dos professores cujo futuro laboral depende delas. Todos os anos se incorporam novas disciplinas na oferta académica, que cresce e se diversifica até à exaustão, pelo menos nos planos ministeriais. É obrigatório incluir música, pintura, escultura, cinema, teatro, informática, segurança rodoviária, noções de primeiros socorros, rudimentos de economia política, expressão corporal, dança, redacção e crítica jornalística, etc. (…). É possível argumentar a favor de todas estas aprendizagens e de muitas outras, que podem completar excelentemente a formação dos alunos. Tanta oferta educativa tropeça apenas em dois obstáculos fundamentais: por um lado os limites da capacidade assimiladora dos alunos e o número de horas lectivas diárias que conseguem suportar sem sofrer transtornos mentais sérios, por outro lado, a disponibilidade docente dos professores, a maioria deles formados numa época em que nem sequer
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existiam as matérias em que, anos mais tarde, se virão a converter em mestres (…). François Closet (…) caracterizou este problema muito bem: «Pouco importa afinal o que se ensine, desde que se despertem a curiosidade e o gosto de aprender (…) o importante não é o que se aprende, mas sim o modo como se aprende» (…). Goethe, absolutamente insuspeito de antihumanista, confessa que a forma memorística de ensinar o grego converteu essa aprendizagem na mais estéril e aborrecida da sua formação. O mesmo ocorre também com as matemáticas — talvez a disciplina básica que mais «experiências» pedagógicas desastrosas suportou nos últimos lustres — que na mãos de lúgubres mestres conseguem tornar-se, frequentemente, de uma aridez repelente para muitos, enquanto nas mãos de Lewis Carrol ou de Martin Gardner estimulam a imaginação e o humor. E que dizer da filosofia, cujos manuais de bacharelato oferecem séries de nomes agrupados em equipas opostas (estóicos contra epicuristas, idealistas contra materialistas, etc.) que parecem, muitas vezes, a lista telefónica dos grandes filósofos, com a diferença de que não figura nenhum número para onde lhes falar, para resgatar os jovens do fastio e da confusão? Para não mencionar o deleite académico com uma gíria, o mais obscura e artificiosa possível, porventura própria para iniciados, mas de maneira nenhuma para os que tentam iniciar-se. Tive conhecimento de um livro introdutório, tão simpático que já no segundo tema enchia as páginas de fórmulas algébricas triunfalmente impostas, à primeira vista, para desanimar os indolentes. Nada de concessões demagógicas à curiosidade adolescente cujas perguntas, na sua maioria, são espontaneamente metafísicas. Mais vale que fujam se não estão dispostos a submeter-se ao ascetismo do enigmático ou do árduo… Examinando esses guisados insuportáveis vem-nos à memória a resplandecente lição de Montaigne, exposta,
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precisamente, no ensaio dedicado à instrução das crianças: «Constitui um erro enorme pintar a filosofia como algo de inacessível às crianças, dotada com um rosto taciturno, exigente e terrível. Quem a mascara com esse falso rosto, pálido e repulsivo? Não há nada mais alegre, festivo, regozijante e, atrevo-me mesmo a dizer, mais travesso. Não predica mais que festa e bons momentos. Uma cara triste e crispada demonstra que não tem cabimento aí». Aqueles que tentam romper a máscara triste e seduzir, em vez de intimidar, sofrem o menosprezo dos colegas, ainda que a ampla aceitação popular de humildes esforços divulgadores como O Mundo de Sofia de Jostein Gaarder ou a minha Ética para um jovem provem que há formas de abordar os temas filosóficos que despertam cumplicidade e não enfado nos neófitos, único meio de os estimular para que depois prossigam, por si mesmos, o estudo começado. Os sisudos professores de latim consideram trivial tudo quanto é dito com simplicidade (…) trivialidade é o que fica na cabeça de um imbecil quando ouve algo dito com simplicidade. Porque é que as matérias docentes, sejam elas quais forem, são amiudadas vezes ensinadas de um modo — para falar de maneira suave — ineficaz, que angustia sem ilustrar e que expulsa do conhecimento em vez de atrair para ele? Deixemos de lado a incompetência eventual de um ou outro professor ou a não menos episódica dificuldade de entendimento de alguns alunos, afastemos ou púnhamos entre parêntesis as más influências sociais que tanto se injuriam, como são a sedução hipnótica da televisão que afasta dos livros, a pressa em obter resultados rentáveis a curto prazo que impede a necessária paz escolar, os grandes exames de estado, tipo selectividade, cujo carácter crucial destrói fatalmente toda a aprendizagem (…). Sem rejeitar o apoio de todas as outras, eu creio que a principal causa da ineficácia docente é a pedantaria pedagógica.
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Não se trata de um transtorno psicológico de uns tantos, mas sim da doença laboral da maioria. Finalmente, a palavra «pedante» é uma palavra italiana que quer dizer «mestre», em princípio, sem nenhuma conotação pejorativa, tal como a define Covarrubias no seu Tesoro de la lengua ou tal como Montaigne a utiliza no ensaio Du pédantisme. De modo que a pedantaria Oh! é um vício que nasce da vocação de ensinar, que a acompanha como uma tentação ou um eco maligno e que em casos mais graves pode acabar por esterilizá-la por completo. Tentarei esboçar os sinais da pedantaria, porventura, incorrendo, ocasionalmente, nela (todos nós professores somos pedantes pelo menos em alguns momentos) (…) A pedantaria exalta o conhecimento próprio acima da necessidade docente de comunicá-lo, prefere os ademanes intimidatórios da sabedoria à humildade paciente e gradual que a transmite, centra-se de uma maneira exigente nas formalidades académicas — que, no melhor dos casos, são apenas rotinas úteis para quem já sabe — enquanto menospreza a estimulação cordial das tentativas, por vezes desordenadas, do neófito. É pedantaria confundir, deslumbrar ou inspirar reverente docilidade com a função de ilustrar, de informar ou, inclusive, de animar a aprendizagem. O pedante não abre os olhos a quase ninguém, mas deslumbra uns tantos. Tudo isso, porque não, com boa intenção e sempre com autocomplacente suficiência. François de Closet aponta para uma das possíveis genealogias da pedantaria e assinala também o erro mais frequente que provoca enquanto método pedagógico. Uma origem comum do pedantismo é que grande parte dos professores foram alunos excelentes na disciplina que agora estão a ensinar. Por isso não compreendem que haja estudantes que não partilhem espontaneamente o amor que eles sentem como uma obrigação intelectual evidente
por si mesma, consideram que todas as pessoas deveriam prestar à sua disciplina a mesma primazia que eles próprios lhe conferem e os apáticos acabam por lhes aparecer como adversários pessoais. O professor que quer ensinar uma disciplina tem de começar por suscitar o desejo de a aprender. Como os pedantes consideram tal desejo obrigatório, só conseguem ensinar algo àqueles que efectivamente sentem de antemão esse interesse, que nunca é tão comum como costumam acreditar. Para despertar a curiosidade dos alunos devemos estimulá-los com algum alimento bem suculento, talvez anedótico ou aparentemente trivial, devemos ser capazes de nos colocar no lugar dos que estão apaixonados por tudo, menos pela matéria cujo estudo vão iniciar. E isto leva-nos ao equívoco metodológico da pedantaria que começa a explicar a ciência pelos seus fundamentos teóricos, em vez de esboçar primeiro as inquietações e tentativas que levaram a estabelecê-los. Cada ciência tem a sua própria lógica epistemológica que favorece o avanço da investigação nesse campo, mas essa lógica quase nunca coincide e, em muitos casos, difere radicalmente da lógica pedagógica que deve ser seguida para iniciar os neófitos na sua aprendizagem. Não se pode começar pelo estado actual da questão, tal como parece estar hoje estabelecido pelos sábios especialistas, sem indicar os sucessos e as necessidades práticas que levaram pouco a pouco aos argumentos teóricos actuais. Às vezes é pedagogicamente mais aceitável ensinar uma matéria a partir de teorias que já não estão totalmente em vigor para as autoridades de vanguarda mas que são mais compreensíveis ou mais estimulantes para aqueles que começam. O primordial é abrir o apetite cognoscitivo do aluno, não angustiá-lo, nem impressioná-lo. Se a sua vocação o chamar para aí, logo terá tempo de aprofundar essa
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aprendizagem, inteirar-se das descobertas mais recentes e até descobrir por si mesmo. Adoptar desde o começo os ares enfadados do tecnicismo (talvez vitais para o especialista, mas que têm muito pouco que ver com a vitalidade de quem o não é) não só não o convencerá da importância do estudo que lhe é proposto mas dissuadi-lo-á dele, persuadindo-o de que é algo alheio aos seus interesses ou prazeres. O pedante dirige-se aos seus alunos como se estivesse apresentando uma comunicação perante um congresso em que estivessem presentes os seus mais distintos e exigentes colegas, todos eles dedicados há longos anos à disciplina dos seus desvelos. Mas, como a maioria dos jovens não demonstra o devido entusiasmo nem a compreensão requerida, desespera e amaldiçoa-os. Conheci professores de bacharelato indignados com a ignorância dos seus alunos, como se a obrigação de os tirar dessa ignorância não fosse sua. No fundo, o problema do pedante é que não quer ensinar os neófitos, mas sim ser admirado pelos sábios e provar a si mesmo que vale tanto ou mais do que eles. A humildade do mestre, pelo contrário, consiste em renunciar a demonstrar que está acima dos outros e em esforçar-se por ajudar a subir os outros. O seu dever é estimular para que todos façam descobertas, não pavonear-se pelas que ele próprio realizou. Mas será que uma criança pode fazer descobertas? Naturalmente que sim, quanto menos se sabe, mais se pode descobrir, se alguém lhe ensinar com arte e paciência. Não serão provavelmente descobertas a partir da perspectiva própria da ciência, mas sim do ponto de vista de quem se está iniciando nela. Mas são essas descobertas pessoais de coisas que «já toda a gente sabe» como comentam sarcasticamente os maus professores, que levam os adolescentes a procurar, a inquirir e a prosseguir o seu estudo. O professor de bacharelato não deve
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esquecer nunca que a sua obrigação consiste em mostrar, para cada disciplina, um panorama geral e um método de trabalho a pessoas que, na sua maioria, não voltarão a interessar-se profissionalmente por esses temas. Não deve limitar-se apenas a informar sobre os factos e teorias essenciais, mas deve também tentar apontar os caminhos metodológicos como se chegou a eles e como podem ser prolongados frutuosamente (…). Ambas as tarefas são imprescindíveis, porque não pode haver «criadores» sem notícias do fundamental que os precede — todo o conhecimento é transmissão de uma tradição intelectual — nem serve para nada memorizar fórmulas ou nomes se se carecer de guia para indagação pessoal. A pedagogia contemporânea justificando a sua recusa de um ensino decrépito constituído por litanias memorísticas, tende, em excesso, a minimizar a importância do treino da memória, chegando até a satanizá-la como um resíduo obsoleto de épocas educativamente obscuras. Todavia, não existe inteligência sem memória; não se pode desenvolver a primeira sem treinar e alimentar também a segunda. O exercício de recordar ajuda a entender melhor, ainda que não possa substituir a compreensão quando esta está completamente ausente (…). Mas sobretudo o professor tem de fomentar as paixões intelectuais, porque são o contrário da apatia esterilizadora que se refugia na rotina e que é o mais oposto que existe à cultura. E essas paixões brotam de baixo, não caem do céu dos que crêem já saber tudo. Por isso, não se deve desdenhar a linguagem acessível, nem as referências ao popular, nem o humor, sem o qual a inteligência mais não é do que um guisado de imbecilidades elevadas. No campo das letras isto é particularmente importante (ou talvez me pareça a mim, porque não estou familiarizado de igual modo com os estudos científicos). Não se pode passar do nada para o sublime sem paragens intermédias, não se deve exigir que quem nunca leu comece por
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Shakespeare, que Habermas sirva de introdução à filosofia e que os que nunca puseram um pé num museu se entusiasmem imediatamente por Mondrian (…). Antes de aprender a ter prazer com as melhores conquistas intelectuais, há que aprender a ter prazer intelectualmente (…). Os predicadores que consideram inevitável a nossa desumanização por culpa dos computadores, dos vídeos, da Internet e outras invenções do diabo (…) o mais certo é que nenhum desses instrumentos tenha qualquer razão para perturbar de uma maneira ou de outra a nossa humanidade, nem sequer o nosso humanismo. São ferramentas, não demónios, surgem do afã de melhorar o nosso conhecimento do remoto e do múltiplo, não com o propósito de vigiar, torturar ou exterminar o próximo e se, finalmente, são utilizados para essas acções reprováveis, a culpa não é certamente das máquinas. No século XIX, doutores seriíssimos diagnosticaram que ver passar vacas e árvores a partir de um comboio à louca velocidade de vinte quilómetros à hora ou menos poderia causar transtornos psíquicos irreversíveis aos viajantes. Já outros haviam feito não menos lúgubres profecias a respeito da imprensa, para não mencionar os receios arrepiantes que rodearam a divulgação do telefone. Regra geral, esses instrumentos não desumanizam ninguém, desde que sejam postos ao serviço do mais humano. Na Internet, pôr exemplo, o entusiasmo já patente na pornografia e no "engate" pode tranquilizar os mais desconfiados (…), na sua época o invento que Gutenberg queria por ao serviço da Bíblia e outras obras piedosas serviu seguidamente para converter em best-seller o Gargântua de Rabelais (…).
Talvez seja conveniente perguntar de onde vem esse qualificativo de «humanidades» que recebem hoje em dia, determinadas
matérias. A denominação é de origem renascentista e não contrapõe alguns estudos muito «humanos» a outros «desumanos» ou desumanizados pelo seu rumo técnico-científico (que não existiam na época) mas denominava-os assim para os distinguir dos estudos teológicos ou dos comentários das escrituras. Os humanistas estudavam humanidades isto é, centravam-se sobre textos cujas origem era declaradamente humana (inclusive, pagão) e não supostamente divino. E como tais obras estavam escritas em grego ou latim clássico, essas línguas ficaram como paradigma de humanidades, não só pela sua elegância literária ou pelas suas virtudes filológicas para analisar os idiomas delas derivados, mas também pelos conteúdos de ciência e conhecimento não revelados pela fé capazes de serem alcançados através da sua utilização. Deste modo, os Elementos de Geometria de Euclides faziam parte das humanidades, tal como o Banquete de Platão. Assim, para Erasmo, por exemplo (…), o que conta principalmente é conseguir adquirir uma capacidade de expressão oral e escrita, fluida, cultivada, rica tanto em ideias como em palavras (…). Mas Rabelais, pelo contrário, ressalta a abundância de conhecimentos, enquanto Montaigne — com a sua mistura habitual de cepticismo e sentido prático — observa que «o grego e o latim são, sem dúvida, uma boa aquisição, mas que se paga demasiado cara» e chega a confessar que «gostaria mais de saber bem a minha língua e a de meus vizinhos com quem tenho habitualmente mais trato». O modelo de formação propugnado por Erasmo só convém a uma elite enriquecida que quer também refinar as suas maneiras e suavizar os seus costumes, mas dificilmente poderia estender-se a toda a população. Como lembra Durkheim, que na sua História da Educação o trata com pouco carinho, «a maioria necessita antes de tudo viver e o que necessita para viver não é saber falar com arte, é
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saber pensar correctamente, de forma a saber actuar. Para lutar eficazmente contra as coisas e contra os homens, são necessárias armas sólidas e não esses brilhantes ornamentos com que pedagogos humanistas estão tão ocupados a enfeitar a mente». Os estudos humanísticos (…), parece-me importante recordar, que nasceram de uma disposição laica e profana (no sentido que se opõe a «sagrado») recuperando e apreciando o magistério intelectual de nossos semelhantes mais ilustres, em lugar de o esperar apenas da divindade através dos seus porta-vozes oficialmente autorizados. É certo que também os ancestrais gregos e romanos acreditavam em deuses, mas em deuses que não pretendiam saber escrever: só os homens escreviam, pelo que os seus textos — até os mais teológicos — foram sempre marcadamente humanos (…). O analfabetismo dos deuses greco-latinos deu origem a um magnífico caldo de cultura para as letras humanistas, que romperam assim com a angústia esterilizadora de escrituras com dogmático o copright celestial. Mas, se os antigos deuses não escreviam nem tinham promulgado ortodoxia alguma que devesse ser respeitada, onde iam buscar aqueles filósofos e sábios de tempos pretéritos a sua autoridade intelectual? Pois, sem dúvida, o respeito racional que inspiravam aqueles que lhes dedicavam as suas horas de estudo. Este respeito racional, que é respeito pela razão à margem da fé e às vezes sub-repticiamente contra ela, configura o verdadeiro ponto de partida das humanidades e do humanismo. Estou-me a referir aqui a uma batalha defendida e ganha pelo racionalismo já lá vai tanto tempo que já não tem sentido voltar a ela nos nossos dias? Não estou tão seguro, porque hoje abundam não só a superstição e os contos milagrosos (nem sempre de cunho religioso) mas também o menosprezo pela razão, convertida
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numa simples perspectiva entre outras, sem direito a um reconhecimento educativo especial e suspeita de dogmatismo quando reclama esse reconhecimento. Aqui sim dá-se uma quebra das humanidades, porque não há humanidades sem respeito sem preferência pelo racional, sem fundamentação racional através da controvérsia do que deve ser respeitado e preferido. É frequente ouvir reprovar este racionalismo por ter uma fé cega na omnipotência da razão, como se semelhante credulidade fosse compartilhada com o uso crítico dessa capacidade ou pudesse desmentir-se sem recorrer a ela. A razão só resulta beatificada pelos que a utilizam pouco, não pelos que a empregam com assiduidade exigente. Não menos comum é a recusa do racional em nome da condenação do etnocentrismo, censurando-o derrogatoriamente de «razão ocidental», como se os conhecimentos empíricos e as reflexões teóricas — não as superstições, que também abundam no Ocidente — que acontecem noutras latitudes não correspondessem a parâmetros racionais (…)
Não há educação se não há verdade a transmitir, se tudo é mais ou menos verdade, se cada um tem a sua verdade, igualmente respeitável, e se não se pode decidir racionalmente entre tanta diversidade. Nada pode ser ensinado se nem sequer o professor acredita na verdade que ensina e no quanto é importante saber verdadeiramente. O pensamento moderno, com Nietzsche à cabeça, sublinhou com razão a parte de construção social que há nas verdades que assumimos e a sua vinculação à perspectiva ditada pelos diversos interesses sociais em conflito. A metodologia científica e, inclusive, a simples prudência indicam que as verdades não são absolutas ainda que assim nos pareçam. São frágeis, passíveis de serem revistas, sujeitas a controvérsia e por fim perecíveis, mas nem por
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isso deixam de ser verdades, isto é, mais sólidas, mais justificadas e mais úteis que outras crenças que se lhes opõem. São também mais dignas de serem estudadas, ainda que o mestre que as explica não deva ocultar a possível dúvida crítica que as acompanha (qualquer mestre recorda as verdades que aprendeu e que não o serão mais para os seus alunos). A verdade esvoaça por entre as dúvidas como a pomba de Kant voa no ar que lhe oferece resistência mas que, ao mesmo tempo, a sustenta. Falando de voar, Richard Dawkins dá o exemplo da aviação como prova intuitiva de que nem todas as verdades são aceites como simples convenções culturais do momento; se não concedêssemos aos seus princípios mais veracidade que a que costumamos atribuir aos discursos dos políticos ou às prédicas dos curas, nenhum de nós subiria jamais a um avião. A busca racional da verdade , melhor dizendo, das verdades sempre fragmentárias (…), tropeça na prática pedagógica com dois grandes obstáculos inter-relacionados, a sacralização das opiniões e a capacidade de abstracção. Em vez de serem consideradas propostas imprecisas, limitadas pela insuficiência de conhecimentos ou pela aceleração, as opiniões convertem-se em expressão irrebatível da personalidade do sujeito («esta é a minha opinião», «essa é a sua opinião ») como se o relevante delas fosse a quem pertencem, e não o que as fundamenta. A velha e deselegante frase que os tipos duros de algumas películas americana, costumam dizer – «as opiniões são como os cus, cada um tem o seu» – ganha força, porque nem sobre as opiniões nem sobre os traseiros, pelos vistos, é possível existir qualquer discussão e ninguém pode desprender-se de umas ou do outro, ainda que o queira. A isso, junta-se uma obrigação beatífica de «respeitar as opiniões alheias», que, se na verdade se pusesse em prática, paralisaria todo e
qualquer desenvolvimento intelectual ou social da humanidade. Para não falar do « direito a ter a sua própria opinião» que não é o direito de pensar por si mesmo e submeter a uma confrontação racional o pensado, mas sim o de manter a própria crença, sem que ninguém interfira com incómodas objecções. Este subjectivismo irracional convence mais rapidamente as crianças e os adolescentes, que se habituam a supor que todas as opiniões — isto é, não só a do mestre que sabe do que está a falar como também a deles que parte da ignorância — valem o mesmo e que não dar o braço a torcer é sinal de personalidade autónoma e que tentar convencer o outro do seu erro, com argumentos e informação adequada, é exemplo de tirania. A tendência para converter as opiniões em parte simbólica do nosso organismo e para considerar tudo quanto as desmente como uma agressão física («feriu as minhas convicções») não constitui uma dificuldade apenas para a educação humanista como também para a convivência democrática. Viver numa sociedade plural impõe assumir que o que é verdadeiramente importante são as pessoas, não as suas opiniões, e que estas devem ser escutadas e discutidas e que não nos devemos limitar a vê-las passar, sem as tocar, como se fossem vacas sagradas. O que o mestre deve fomentar nos seus alunos é a disposição para conseguirem estabelecer a não irrevogabilidade do que escolheram para pensar (a «voz da sua espontaneidade», a sua «auto-expressão», etc.) e sim, a capacidade de participar frutuosamente numa controvérsia razoável, ainda que isso «fira» os dogmas pessoais ou familiares de alguns dos seus alunos. É aqui que reside a alarmante falta de hábito de abstracção dos neófitos, cuja ausência também os professores de matérias
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essencialmente teóricas lamentam com amargura, mais tarde, nos estudantes universitários. Consiste numa dificuldade quase incurável para deduzir a partir de premissas, para conseguirem desligar-se do imediato ou do anedótico, para não procurar, por detrás de cada argumento, a má vontade ou o interesse mesquinho do argumentador mas sim verem a debilidade do argumentado (…). Aprender a discutir, a refutar e a justificar o que se pensa é o que constitui a parte irrenunciável de qualquer educação que aspire ao título de «humanista». Para isso, não é suficiente saber expressar-se com clareza e precisão (ainda que seja primordial, tanto na escrita como oralmente) e submeter-se às mesmas exigências de inteligibilidade que se pedem aos outros, mas deve também ser desenvolvida a faculdade de escutar o que se propõe na construção discursiva. Não se trata de patentear uma comunidade de autistas, zelosamente enclausurados nas suas «respeitáveis» opiniões próprias, mas sim de propiciar a disposição para participar lealmente em colóquios razoáveis e em procurar, em comum, uma verdade que não tenha senhor e que procure não fazer escravos. É indubitável que tal disposição deve encontrar o seu primeiro exemplo na atitude do próprio mestre, seguro do que sabe, mas disposto a debatê-lo e, inclusive, a modificá-lo no decurso de cada aula com a ajuda dos seus alunos. Deve ser uma das principais tarefas fomentar o espírito crítico sem fazer concessões ao simples afã de levar a melhor (tão característico e estimulantemente lúdico na idade adolescente). Também é saudável que o professor não se antecipe aos adolescentes no zelo subversivo, ensinando-os a refutar coisas que ainda não mostrou sob o seu aspecto positivo, por exemplo (…) expor as doutrinas filosóficas a partir dos seus erros. Há professores tão inconformistas que não
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se conformam com ser apenas professores e querem também ocupar o papel de jovens rebeldes, em vez de deixar aos seus alunos essa iniciativa (…). Deve ser potenciado naqueles que aprendem a capacidade de perguntar e perguntar-se: essa inquietação, sem a qual nunca se consegue saber verdadeiramente alguma coisa, mesmo que se consiga repetir tudo. Uma das constatações mais alarmantes do ensino, na actualidade, é que os mestres das crianças pequenas sentem-se angustiados com as suas perguntas constantes, enquanto na universidade nos queixamos porque nunca perguntam nada. Que ocorreu nesses anos que separam a escola da faculdade para que lhes tenha passado a alegre vontade de inquirir? E não devemos temer que esse espírito crítico leve ao puro niilismo indisciplinado, porque se for autêntico, consegue ser o seu melhor preventivo (…).
Há (…) outro aspecto da educação humanista que convém assinalar e que é a dimensão narrativa (…). Os homens não são problemas ou equações mas sim histórias somos menos parecidos com contas do que com contos. É imprescindível portanto que o ensino saiba narrar cada uma das disciplinas vinculando-a ao seu passado, às mudanças sociais que acompanharam o seu desenvolvimento, etc. As verdadeiras humanidades são as matérias de estudo que conservam vivo o latejo biográfico daqueles que as exploraram assim como a sua dúvida face às nossas necessidades vitais e aos nossos sonhos. A memória dos homens pretéritos e a urgência da vida no presente é o que unifica significativamente a dispersão de temas académicos que conformam o curriculum (…). A sensibilidade narrativa é antes de tudo sensibilidade literária. Basicamente aprende-se lendo, ainda que haja outras importantes formas de narração que a educação tão-pouco deve descuidar, como a cinematográfica. Mas ler é
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sempre uma actividade, em si mesma, intelectual, um esboço de pensamento, algo mais activamente mental que ver imagens. Depois da palavra falada, a palavra escrita é o remédio mais potente que se inventou para o crescimento intelectual (…).
2. Educar é universalizar Sob o mesmo rótulo de «educação», acolhem-se fórmulas muito distintas no tempo e no espaço. Os primeiros grupos humanos de caçadores-recolectores educaram os seus filhos, tal como os gregos da época clássica, os aztecas, as sociedades medievais, o século das luzes ou as nações ultratecnificadas contemporâneas. E esse processo de ensino nunca é uma pura transmissão de conhecimentos objectivos ou de destrezas práticas, mas é sempre acompanhado de um ideal de vida e de um projecto de sociedade (…). Semelhante factor de subjectividade não é, primordialmente, uma característica psicológica do mestre nem do discípulo (…), mas vem determinado pela tradição da sociedade em que ambos estabelecem o seu contacto. A educação tem como objectivo completar a humanidade do neófito, mas essa humanidade não pode realizarse em abstracto nem genericamente, nem sequer consiste no cultivo de um gérmen idiossincrático lactente em cada indivíduo, mas tem como função imprimir melhor uma orientação social precisa, isto é, a que cada comunidade considera preferível. Durkheim, em Pedagogia e Sociologia. insistiu de maneira muito nítida neste ponto: «O homem que a educação deve plasmar dentro de nós não é o homem tal como a Natureza o criou, mas sim tal como a sociedade quer que ele seja: e quere-o tal como o exige a sua economia interna (…). Portanto, dado que a escala de valores muda forçosamente com as sociedades, a hierarquia não permaneceu sempre igual em
dois momentos diferentes da história. Ontem era a valentia que tinha a primazia com todas as faculdades que implicam as virtudes militares, hoje em dia (Durkheim escreve em finais do século passado 2) é o pensamento e a reflexão, porventura amanhã será o refinamento do gosto e a sensibilidade, até mesmo as coisas da arte. Assim, o nosso ideal pedagógico é, até nos seus mais pequenos detalhes, obra da sociedade.» E se é a sociedade instituída, a partir das suas estratégias dominantes e dos preconceitos que equilibram a sua perspectiva, que estabelece os ideais que orientam a tarefa educativa..., como é possível esperar que a passagem pela escola propicie a formação de pessoas capazes de transformar positivamente as velhas estruturas sociais? Como assinalou John Dewey «os que receberam educação são os que a dão; os hábitos já produzidos têm uma profunda influência no seu procedimento. É como se ninguém pudesse ser educado, no verdadeiro sentido, até que todos se tivessem desenvolvido fora do alcance do preconceito, da estupidez e da apatia». Ideal por definição inalcançável. Então o ensino deverá ser obrigatoriamente conservador, instruir para o conservadorismo, de tal modo que o fulgor revolucionário dos educarmos só será estimulado por reacção contra o que lhes é proposto e nunca como uma das formas possíveis de o compreender adequadamente? A resposta para esta complexa questão não pode ser um simples «sim» ou «não» (…). Em primeiro lugar, convém afirmar, sem falsos escrúpulos, a dimensão conservadora da tarefa educativa. A sociedade prepara os seus novos membros do modo que lhe parece mais conveniente para a sua conservação, não para a sua destruição, isto é, quer formar bons sócios, não inimigos nem individualidades anti-sociais (…). Não só busca conformar indivíduos socialmente aceitáveis e úteis, mas também precaver-se do surgimento de possíveis desvios 2
Trata-se do século XIX.
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prejudiciais (…). Com a sua habitual coragem intelectual, Hannah Arendt formulou-o sem rodeios: «Parece-me que o conservadorismo, tomado no sentido de conservação, é a própria essência da educação, que tem sempre como tarefa envolver e proteger alguma coisa, seja a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho ou o velho contra o novo». Em resumo, a educação é, antes de tudo, transmissão de alguma coisa, e só se transmite aquilo que quem vai transmitir considera digno de ser conservado (…). Educamos para satisfazer um pedido que corresponde a um estereótipo — social, pessoal — mas nesse processo de formação criamos uma insatisfação que nunca completamente... Constatação conforma estimulante, ainda que, do ponto de vista conservador, isso constitua um certo escândalo. Ora acontece que, em segundo lugar, a sociedade nunca é um todo fixo, acabado em equilíbrio mortal. Em caso algum deixa de incluir tendências diversas que também fazem parte da tradição que as aprendizagens comunicam. Por mais oficialista que seja a pretensão pedagógica, acaba sempre por acontecer o que Huhert Hannoun aponta em Comprendre l'education: «a escola não transmite exclusivamente a cultura dominante, mas sim o conjunto de culturas em conflito no grupo em que nasce». A mensagem da educação abarca sempre, ainda que seja como anátema, o seu reverso ou, pelo menos, algumas das suas alternativas. Isto é particularmente evidente na modernidade, quando a complexidade de saberes e quereres sociais tende a converter os centros de estudo em âmbitos de contestação social ao vigente, se bem que isso sempre tenha ocorrido. Pedagogos como Rousseau, Max Stirner, Marx, Bakunine ou John Dewey marcaram linhas de dissidência colectiva por vezes tão espectaculares como as que confluíram em 1968, mas a história da educação conheceu anteriormente numerosos revolucionários, começando por Sócrates ou
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Platão e seguindo por Abelardo, Erasmo, Luís Vives, Tomás Moro, Rabelais, etc. (…) Quem pretende educar converte-se, de certo modo, em responsável pelo mundo face ao neófito, como muito bem assinalou Hannah Arendt, se lhe repugna esta responsabilidade, mais vale que se dedique a outra coisa e que não estorve. Tornar-se responsável do mundo não é aprová-lo tal como ele é, mas sim, assumi-lo conscientemente porque é e porque, só a partir do que é, pode ser emendado. Para que haja futuro, alguém deve aceitar a tarefa de reconhecer o passado como próprio e oferecê-lo àqueles que vêm depois de nós. Logo à partida, essa transmissão não deve excluir a dúvida crítica sobre determinados conteúdos de conhecimentos e a informação sobre opiniões «heréticas» que se opõem com argumentos racionais à forma de pensar maioritária. Acredito que o professor não pode curto-circuitar o ânimo rebelde do jovem com a exibição desavergonhada de si próprio. Não há pior desgraça para os alunos que o educador empenhado em compensar com os seus comícios as frustrações políticas que não sabe ou não pode expor frente a outro público melhor preparado. Em vez de explicar o passado a que pertence, desliga-se dele como se fosse um recém-chegado e bloqueia a perspectiva crítica que os neófitos deveriam exercer, ensinando-lhes a recusar o que ainda não tiveram oportunidade de entender. Fomenta-se assim o pior conservadorismo docente, o da seita que segue com dócil sublevação, o guru iconoclasta. (…) «Precisamente para preservar o que é novo e revolucionário, em cada criança, a educação deve ser conservadora — sustenta Hannah Arendt» (…).
O que se segue dirige-se àqueles que, como eu, estão convencidos da expectativa social de formar indivíduos autónomos, capazes de participar em comunidades, que saibam transformar-se, sem se renegarem a si próprias,
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que se abram e ampliem sem perecer (…). Gente, enfim, convencida de que o principal bem que temos que produzir e aumentar é a humanidade compartilhada, semelhante no fundamental, apesar das tribos e privilégios com que também muito humanamente nos identificamos. De acordo com este argumento, parece-me que o ideal básico que a educação actualmente deve conservar e promover é a universalidade democrática. (…). Comecemos pela universalidade. Significa pôr a acção humana — linguística, racional, artística… — acima dos seus modismos, valorizá-la no seu conjunto, antes de começar a ressaltar as suas peculiaridades locais e sobretudo não excluir ninguém à priori do processo educativo que a potencia e desenvolve. Durante séculos, o ensino serviu para discriminar uns grupos humanos face a outros, os homens face às mulheres, os poderosos face aos indigentes, os citadinos face aos camponeses, os clérigos face aos guerreiros, os burgueses face aos operários, os «civilizados» face aos «selvagens», os «sensatos» face aos «tontos», as castas superiores face e contra as inferiores. Universalizar a educação consiste em acabar com essas manipulações discriminatórias, ainda que as etapas mais avançadas do ensino possam ser selectivas e favoreçam a especialização de cada um de acordo com a sua peculiar vocação; a aprendizagem básica dos primeiros anos não deve ser regateada a ninguém, nem deverá dar, antecipadamente como certo que alguém «nasceu» para muito, para pouco ou para nada. Esta questão da origem é o principal obstáculo que tenta demolir a educação universal e universalizadora. Cada qual é o que demonstra que sabe ser com o seu empenhamento e habilidade, não o que seu berço — esse berço biológico racial, familiar cultural, nacional, de classe social, etc. — o predestina para ser, segundo a hierarquia de oportunidades estabelecida por outros. Neste
sentido, o esforço educativo é sempre rebelião contra o destino, sublevação contra o fatum, a educação é a antifatalidade não a adaptação programada (…). No passado, o peso da origem baseava-se sobretudo na linhagem socioeconómica de cada um (e, certamente, na separação dos sexos, que é a discriminação básica em quase todas as culturas). Hoje continuam vigentes ambos os critérios antiuniversalistas em demasiados lugares do nosso mundo. Donde, um Estado sem preocupação social não corrige os efeitos das escandalosas diferenças de fortuna: uns nascem para ser educados e os outros devem contentarse com uma domesticação sucinta que os capacite para as tarefas ancestrais que os superiores nunca concordariam em realizar. Deste modo o ensino converte-se numa perpetuação da fatal hierarquia socioeconómica em lugar de oferecer possibilidades de mobilidade social e de um equilíbrio mais justo (…). Mas, nas sociedades democráticas mais desenvolvidas socialmente, a educação básica costuma estar garantida para todos e, em conformidade, as mulheres têm o mesmo direito que os homens ao estudo (obtendo, normalmente, melhores resultados que estes). Então, a exclusão pela origem tenta afirma-se de uma maneira diferente e supostamente mais «científica». Trata-se das disposições genéticas, a herança biológica recebida por cada um, que condiciona os bons resultados escolares de uns, enquanto condena outros ao fracasso. Se existem pessoas ou grupos étnicos geneticamente condenados à ineficiência escolar porquê dar-se ao incómodo de os escolarizar? Um teste de inteligência aplicado atempadamente pouparia ao Estado muitos custos que poderiam ser utilizado mais frutiferamente noutras tarefas de interesse público (novos aviões de combate, por exemplo). Não é por acaso que as deficiências do sistema educativo dos Estados Unidos o tornam
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particularmente suspeito de dissipação e onde estão a surgir estudos vagamente neodarwinistas nesta linha. O que, recentemente, despertou mais escândalo foi provavelmente The Bell Curve, de Murray e Herrstein, cujas análises estatísticas, baseadas em testes de inteligência, pretendem demonstrar que o abismo genético entre a «elite cognitiva» que dirige a sociedade americana e os estratos inferiores compostos por marginais e inadaptados aumenta cada vez mais. Em particular, consideram «cientificamente» provado que a média intelectual dos negros é inferior à de outras raças, pelo que as políticas de discriminação positiva que os auxiliam (por exemplo, facilitando o seu acesso à universidade) são um dispêndio inútil de recursos públicos. Diversas variações sobre estes temas insinuam-se, cada vez mais e com maior frequência (…). Assim, nalguns locais, os geneticamente incapazes são os negros, noutros os índios, os ciganos ou os esquimós e, em quase todos, os filhos dos pobres. É difícil imaginar uma doutrina mais desumana e repelente que esta. Para começar, não existe nenhum mecanismo fiável para medir inteligência humana que, na realidade, não é uma disposição única mas sim um conjunto de capacidades relacionadas cuja complexidade não pode estabelecer-se como a estatura ou a cor dos olhos (…). É a educação, precisamente, a responsável por potenciar as disposições próprias de cada um, aproveitando a seu favor e também a favor da sociedade, a diversidade dos dons herdados (…) inclusive, nos casos de alguma menos-valia psíquica não deixam de existir métodos pedagógicos especiais, capazes de compensá-la ao máximo, permitindo um desenvolvimento formativo que não condene o que dela sofre ao ostracismo e à esterilidade irreversível. Mas, no fim de contas, na imensa maioria dos casos é a circunstância social a herança mais determinante que os nossos pais nos legam. E essa circunstância começa pelos próprios pais,
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cuja presença ou ausência, a sua preocupação ou despreocupação, o seu baixo ou alto nível cultural e o seu melhor ou pior exemplo formam um legado educativamente falando muito mais relevante que os próprios genes. Portanto, a pretensão universalizadora da educação democrática está na tentativa de auxiliar cada pessoa nas deficiências do meio familiar e social em que nasce, obrigatoriamente, por força do acaso e não por referendá-las como pretexto de exclusão. Outra via universalizadora da educação consiste em ajudar cada pessoa a voltar às suas raízes. É um propósito muito publicitado na actualidade mas notoriamente mal-entendido ou empreendido no sentido inverso do que seria lógico. Sem dúvida, falar de «raízes» neste caso é pura linguagem figurada porque os homens não têm raízes que os cravem à terra e que os alimentem com a substância fermentada dos mortos, mas sim pés para andar, para viajar ou fugir, para procurar o alimento físico ou intelectual onde melhor lhes conviver. Admitamos contudo, a metáfora que tanto agrada aos nacionalistas («recuperemos as nossas raízes»), aos entusiastas da etnicidade («conservemos a pureza de nossas raízes»), aos integristas religiosos («a raiz da nossa cultura é cristã ou muçulmana ou judaica») e aos integristas políticos («a raiz da democracia está na liberdade de mercado»), etc. Na maioria destes casos, o apelo às raízes significa que devem mondar do nosso jardim nativo quantas ervas nocivas e adventícias turvem a enraizada harmonia do que supostamente foi planeado em primeiro lugar e também que cada qual, dentro de si mesmo, deve procurar aquela raiz própria e intransferível que o identifica e que o torna semelhante aos irmãos do mesmo torrão natal. Segundo esta visão, a educação consistiria em dedicar-se a reforçar as nossas raízes, fazendonos mais nacionais, mais étnicos, mais ideologicamente puros… mais idênticos a nós
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mesmos e portanto inconfundivelmente heterogéneos relativamente aos outros. A única universalidade que esta argumentação admite é a universalidade das raízes isto é, que todos e cada um de nós temos as nossas, universalmente responsáveis por nos ligar ao que é próprio de nós mesmos e evitar que nos enredemos confusamente em frondosidades alheias. Mas esta utilização metafórica das raízes pode ser invertida e isso é precisamente o que deve ser realizado pela educação universalista. Porque se, nos deixarmos levar pela intuição e não tanto pela erudição botânica, aquilo em que mais se parecem todas as plantas, entre si, é precisamente nas suas raízes, enquanto diferem, a olhos vistos, pela estrutura dos seus ramos, tipo de folhagem, flores e frutos. Com os homens passa-se algo muito semelhante, as nossas raízes mais próprias que nos distinguem dos outros animais são o uso da linguagem e dos símbolos a disposição racional, a recordação do passado e a previsão do futuro, a consciência da morte, o sentido do humor etc... em resumo, aquilo que nos torna semelhantes e que nunca falta onde há homens O que nenhum grupo, cultura ou indivíduo pode reclamar como única e exclusivamente próprio, temo-lo em comum. Pelo contrário tudo o resto — as variadíssimas fórmulas e praxes culturais, os mitos e lendas os interesses científicos ou artísticos, as conquistas políticas a diversidade das línguas, das crenças e das leis. etc. – são a folhagem variegada e a colorida multiplicidade de flores e frutos. É o universalista que vai até às raízes profundas que nos tornam comummente humanos, enquanto os diversos nacionalistas, etnicistas e particulares vão sempre de ramo em ramo, fazendo macaquices e buscando restrições. Vamos levar a metáfora até ao fim, antes de a pôr de lado, como deve ser feito com todas as imagens literárias para que não se convertam em estorvo do pensamento. Sem raízes as plantas morrem irremediavelmente, sem folhagem, flores e frutos a paisagem seria de
uma intolerável e estéril monotonia. A diversidade cultural é o modo próprio de a comum raiz humana expressar a sua riqueza e generosidade. Cultivemos a floresta, gozemos as suas fragrâncias e os seus múltiplos sabores, mas não olvidemos a semelhança essencial que une através da raiz o sentido comum de tanta pluralidade de formas e matizes. Isto deverá ser sempre recordado, nos momentos mais cruciais, quando a convivência entre grupos culturalmente distintos se torne impossível e a hostilidade não possa ser resolvida com recurso às regras internas de qualquer dos «ramos» em conflito (…). A nossa humanidade comum é necessária para caracterizar o que é verdadeiramente único e irrepetível da nossa condição, enquanto a nossa diversidade cultural é acidental. Nenhuma cultura é insolúvel para as outras, nenhuma brota de uma essencial tão idiossincrática que não possa ou não deva misturar-se com outras, sofrer o contágio de outras. Esse contágio de umas culturas por outras é precisamente o que pode chamar-se civilização. E é a civilização e não meramente a cultura, que a educação deve aspirar a transmitir (…). Aquilo a que nos referimos ao falar de civilização e também de universalidade é a essa potencialidade, que cada cultura possui, de transmutar-se nas outras todas, de não ser uma verdadeira cultura sem transfusões culturais das outras e sem traduções ou adaptações culturais das outras. Não se trata de homogeneizar universalmente (um dos pânicos retóricos mais reiterados do nosso século, a americanização mundial, etc.), mas sim de romper com a mitologia autista das culturas que exigem ser preservadas, idênticas a si mesmas, como se todas não estivessem a transformar-se continuamente, durante séculos, por influxo civilizador das outras. Etnocentrismo? Sê-lo-ia, se só considerássemos a universalidade como uma característica factual da cultura ocidental, em vez de tê-la
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como um ideal valioso, promovido mas também espezinhado inúmeras vezes pelo ocidente (signifique o que significar este confuso termo). Não. A universalidade não é património exclusivo de nenhuma cultura – o que seria contraditório – mas sim uma tendência que existe em todas mas que também em toda a parte é obrigada a confrontar-se com o provincianismo cultural do idiossincrático insolúvel, igualmente presente nas latitudes aparentemente mais opostas. A tarefa educativa mais apropriada para o nosso mundo hipercomunicacional consiste precisamente em potenciar essa tendência comum e ameaçada para a variedade, mas não para o tribalismo (…). Porventura, o afã histérico de ser inconfundível e impenetrável para os outros seja apenas uma reacção face à evidência, cada vez mais óbvia, de que os homens se parecem demasiado, evidência que antes só era sentida por alguns espíritos mais avisados e que hoje é colocada ao alcance de todos através dos meios de comunicação social. Perderam-se assim muitos matizes? Espreita-nos a homogeneidade universal? Não o creio (…). A diversidade está assegurada, ainda que, provavelmente, seja, cada vez mais, desconcertantemente diversa e se vá parecendo, cada vez menos, com as diversidades purificadas com que estamos familiarizados. Para esse processo inovador é bom que a educação prepare também as gerações que vão vivê-lo. Mas não nos enganemos, o sentido sociológico da nossa actualidade não aponta para o inevitável triunfo «uniformizador» do universalismo. Muito pelo contrário, são angustiantes as demonstrações, aqui e ali, do êxito crescente das atitudes antiuniversalistas, que aliás costumam proclamar-se vítimas da suposta omnipotência universalizante. O que realmente está hoje em perigosa alta é, de novo, o recurso às origens como condicionamento inexorável da forma de pensar, isto é, dividir o mundo em duetos estanques de índole intelectual. Quer dizer, só os nacionais de uma
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nação podem compreender as outras pessoas dessa mesma nação, que só os negros podem entender os negros, os amarelos os amarelos e os brancos os brancos, que só os cristãos compreendem os cristãos e os muçulmanos os muçulmanos, que só as mulheres entendem as mulheres, os homossexuais os homossexuais e os heterossexuais os heterossexuais. Cada tribo deve permanecer fechada em si mesma, idêntica de acordo com a sua «identidade», estabelecida pelos patriarcas ou caciques do grupo, ensimesmada na sua pureza de pacotilha. E que, portanto, deve haver uma educação diferente para cada um destes grupos que os «respeite», isto é, que confirme os seus preconceitos e não lhes permita abrir-se e ser contagiado pelos outros. Em resumo, as nossas circunstâncias condicionam o nosso juízo, de tal modo que nunca é um juízo intelectualmente livre, se é verdade, como Nietzsche acreditava, que o homem livre é «aquele que pensa de modo diferente daquele que seria possível esperar-se tendo em vista a sua origem, o seu meio, o seu estado e a sua função ou as opiniões vigentes no seu tempo». Todos aqueles que pensam desta maneira são considerados pelos colectivizadores do pensamento idêntico não como livres mas sim como «traidores» ao seu grupo de pertença. Pois bem, aqui temos outra tarefa para a educação universalizadora, ensinar a atraiçoar, racionalmente, em nome da nossa única verdadeira pertença essencial — a humana —, tudo o que de exclusivo, fechado e maníaco exista nas nossas filiações acidentais, por muito acolhedoras que estas possam ser para os espíritos comodistas que não querem mudar de rotinas ou procurar conflitos. É compreensível o temor face a um ensino sobrecarregado de conteúdos ideológicos , face a uma escola mais preocupada em suscitar fervores e adesões inquebrantáveis do que em favorecer o pensamento crítico autónomo. A
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formação em valores cívicos pode converter-se, muito facilmente, em doutrinamento para uma docilidade bem pensante, que levaria ao marasmo se chegasse a triunfar; a explicação necessária dos nossos principais valores políticos pode, também facilmente, resvalar para a propaganda, reforçada pelas manias castradoras do «politicamente correcto» (…). Daqui que alguma «neutralidade» escolar seja justificadamente desejável, face às opções eleitorais concretas, oferecidas pelos partidos políticos, face às diversas confissões religiosas, face a propostas estéticas ou existenciais que surjam na sociedade. Terá de ser uma neutralidade relativa, sem dúvida, porque não pode recusar a consideração crítica dos temas do momento (que os próprios alunos, frequentemente, irão solicitar e que o mestre competente terá de fazer, sem pretender situarse fora, mas declarando a sua tomada de posição, enquanto fomenta a exposição razoável das outras) ainda que deva evitar converter a sala de aulas numa fastidiosa e logomaquia sucursal do Parlamento. É importante que na escola se ensine a discutir mas é imprescindível deixar bem claro que a escola não é um foro de debates nem um púlpito. Não obstante, essa mesma neutralidade crítica corresponde, por sua vez, a uma determinada forma política, perante a qual não é possível ser neutral no ensino democrático: refiro-me à própria democracia. Seria suicida que a escola renunciasse a formar cidadãos democratas, inconformistas mas em conformidade com o que o modelo democrático estabelece, inquietos pelo seu destino pessoal mas não desconhecendo as exigências harmonizadoras do público. Na desejável complexidade ideológica e étnica da sociedade moderna (…) fica a escola como o único âmbito geral que pode fomentar o apreço racional por aqueles valores que permitem a convivência conjunta aos que são satisfatoriamente diversos. E essa oportunidade de inculcar o respeito pelo
nosso mínimo denominador comum não deve, de modo algum, ser desperdiçada. Não pode nem deve haver neutralidade, por exemplo, no que corresponde à recusa da tortura, do racismo, do terrorismo, da pena de morte, da prevaricação dos juízes ou da impunidade da corrupção em cargos públicos, nem tão-pouco na defesa das protecções sociais da saúde ou da educação, da velhice ou da infância, nem no ideal de uma sociedade que corrija o mais possível o abismo entre opulência e miséria. Por quê? Porque não se trata de simples opções partidárias mas sim de benefícios da civilização humanizadora que já não é possível renunciar sem se incorrer em concessão à barbárie. O próprio sistema democrático não é algo natural e espontâneo nos seres humanos, mas sim algo conquistado, através de muitos esforços revolucionários no campo intelectual e político: portanto, não pode ser dado como certo, mas deve ser ensinado com a maior persuasão didáctica compatível com o espírito de autonomia crítica. A socialização política demteinerocrática é um esforço complicado e resvaladiço, mas irrenunciável (…). A recomendação racional de tais valores não deve ser uma mera litania edificante que, no melhor dos casos, acabará por aborrecê-los. Será preferível mostrar como conseguiram ser historicamente imprescindíveis, e o que ocorre onde, por exemplo, não há eleições livres, tolerância religiosa ou os juízes são venais. Seria absurdo mostrar às crianças as falhas do mundo em que vivemos (…) [sem lhes inspirar] uma prudente confiança nos mecanismos previstos para emendá-las.