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TEORIA GERAL DO DIREITO AGRÁRIO • Origens A propriedade nasce com o homem, que a utiliza como fator de sobrevivência. A gênese do direito agrário ocorre exatamente no momento em que o homem abandona a condição de nômade e passa a ser sedentário. Surge então a necessidade de retirar o sustento da terra, deixando de extrair aquilo que a terra já apresentava. O Código de Hamurábi (1700 a.C.) disciplinava o direito agrário em 65 parágrafos, no total de 280 disposições. A Lei das XII Tábuas (450 a.C.) trazia normas sobre relações de v izinhança, usucapião e penhor, além da responsabilidade civil. Essas normas, entre outros objetivos, procuravam resolver questões fundiárias. A Lei Cássia, em Roma, é considerada para muitos o primeiro diploma agrário, abrindo caminho para legislação reformista e social dos Graccho. O direito agrário brasileiro tem origem na legislação portuguesa das sesmarias, já que as Ordenações do Reino, notadamente as Ordenações Filipinas, vigoraram integralmente no Brasil. Já havia em Portugal e nas colônias a política de repovoar áreas abandonadas desde a Lei de D. Fernando I de 1375. O objetivo era revigorar o abastecimento de produtos agrários em Portugal. As Ordenações Afonsinas continuaram a prestigiar o povoamento de áreas inóspitas, e as Ordenações Manuelinas foram as primeiras a incidir no Brasil, após a vinda de Martim Afonso de Sousa, por volta de 1530. As Ordenações Filipinas, em 1603, revogaram as anteriores, mas mantiveram o sistema sesmarial. Não obstante a concessão de sesmarias, passou a haver uma descontrolada ocupação de terras no Brasil, o que gerou a necessidade de editar uma lei como a n. 601, de 1850. O sistema sesmarial foi extinto no Brasil com a vigência da Resolução de 17 de julho de 1822. No Brasil as terras devolutas foram disciplinadas pela Lei n. 601/1850, que visava regularizar a situação agrária caótica que aqui predominava, na medida em que se verificava a falência do sistema sesmarial. As concessões sesmariais do século XVI não surtiram efeito colonizatório, pois os portugueses que para cá migraram só se preocupavam com a produção da cana-de-açúcar. Tanto é assim que os séculos XVI e XVII ficaram marcados como a “civilização do açúcar”. A economia era totalmente voltada ao cultivo da cana. Os por tugueses lançavam mão do conhecimento que possuíam sobre esse cultivo nas colônias africanas. No século XVIII adveio uma mudança nes sa política, com a ampliação do processo de colonização. Ocorreu uma difusa reivindicação de terras, e as doações por meio de sesmarias tornaram-se insuficientes. Além disso, boa parte dos posseiros não cumpria até então as regras estabelecidas pela concessão. O século XIX apresentou uma situação caótica diante da inexistência de ordenamento jurídico que apontasse efetivamente quem era ou não proprietário de terras no Brasil. Todas as tensões durante a primeira metade do século XIX culminaram com a aprovação da Lei n. 601/1850. Entre os objetivos dessa lei estava a garantia da unidade nacional. Sua primeira providência foi proibir a aquisição de terras devolutas, ou seja, todas as terras não incorporadas ao patrimônio público (próprios) ou aplicadas ao uso público ou no domínio de particulares, a não ser por compra, evitando-se assim a perpetuação de irregularidades. Com essa lei, o eixo do poder migra do imperador, que fazia as concessões gratuitas de terras, para os grandes latifundiários, que passaram a ter poder de alienação sobre essas áreas. • O império da posse De 17 de julho de 1822 a 18 de setembro de 1850 (portanto durante 28 anos), o Brasil não contou com nenhum regulamento sobre a propriedade imobiliária. A posse passou a garantir o título dominial. O regime sesmarial concedia apenas o direito real de uso da terra, que ficava sujeito a uma série de condições resolutivas, todas elas clausuladas no instrumento outorgado aos concessionários de sesmarias. Estes recebiam a área com a obrigação de explorá-la após a medição e demarcação da área em questão. O concessionário não podia ceder ou
transferir a área a qualquer título, e, caso não cumprisse as condições estabelecidas, perderia a área para a Coroa, uma vez que todas as condições eram resolutivas. As concessões de sesmarias eram hereditárias, passando os mesmos ônus para os herdeiros dos cessionários. Não havia direito de propriedade sobre a área. Com a suspensão da legislação sesmarial em 17 de julho de 1822, até a entrada em vigor da Lei n. 601, que só seria regulamentada em 1854, o País passou por um período denominado Império da Posse, no qual não havia qualquer legislação ordinária que regulamentasse o acesso à terra. Isso levou os então possuidores a ampliar seus limites de posse. Portanto, da entrada em vigor da Resolução de 17-10-1822 até a efetiva regulamentação da Lei de Terras, transcorreu um período de transição que implicou a ocupação desenfreada das terras públicas. Foi a primeira explosão da massa camponesa, ou seja, lavradores, roceiros e toda sorte de trabalhadores buscaram a propriedade das terras que cultivavam. A Lei n. 601 passou a regular o uso de terras devolutas, conforme acima mencionado. Essa lei visava a brecar o apossamento das terras públicas sem qualquer consulta a órgão público, evitando, ainda, a doação de terras, situação nefasta e que marcava o regime agrário brasileiro desde os seus primórdios. • Conceito de direito agrário O direito agrário nasceu com a Emenda Constitucional n. 10/1946. A União passou a ter competência para legislar sobre esse ramo, competência mantida pelo art. 8º, XVII, , da CF/67. O art. 22 da atual Carta, no inciso I, manteve a competência privativa da União para legislar sobre direito agrário. Entre os conceitos possíveis temos: “É o conjunto de normas de direito público e de direito privado que disciplina a atividade rural, com base na função social da terra, visando disciplinar a exploração agrária e a conservação dos recursos naturais”. “É o sistema normativo, fundamentado em princípios gerais próprios e específicos, que regula as relações estabelecidas entre os sujeitos e os bens agrários em razão da atividade agrária. Como finalidades desse direito indicamos o fomento da produção e a melhor distribuição da terra para a integração da comunidade rural ao processo de desenvolvimento nacional” (Telga (Telga de Araújo).
IMPORTANTE “Agrário” deriva de ager, agri, que decorre de agrarius, campo. “Rural” deriva de rus, ruris, que decorre de rurales, campo. rural é A diferença é que rural é o terreno que se localiza distante da urbs. O agrário é o campo suscetível exploração . de produção e exploração.
• Objeto do direito agrário São todos os fatos jurídicos que emergem do campo: a) atividade agrária; b) estrutura agrária; c) empresa agrária; d) política agrária. Engloba três aspectos: a) atividade imediata – o homem no uso dos recursos naturais; extrativismo, caça, pesca, agricultura agricultura e b) objetivos e instrumentos – extrativismo, pecuária; c) atividades conexas – processos industriais e atividades de transporte de produtos agrícolas. Adota-se, ainda, a seguinte divisão: a) explorações rurais típicas – lavoura, pecuária e extrativismo; b) explorações rurais atípicas – agroindústria; c) atividade complementar de exploração – transporte e comercial.
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temporária (arroz) Lavoura
Pecuária
permanente (café) pequeno porte (coelhos) médio porte (caprinos) grande porte (bovinos)
• Autonomia do direito agrário Legislativa – CF, art. 22, I. Além de a Constituição Federal determinar que compete à União legislar sobre direito agrário, a Lei n. 4.574/64 (Estatuto da Terra) disciplina a atividade agrária em um só conjunto de normas, de forma que garanta unidade e, por via de consequência, autonomia legislativa. Científica – além de haver um sistema normativo próprio, existem princípios e normas próprias, que garantem estudo e investigação com método e técnica que discrepa dos demais ramos do ordenamento. Didática – o direito agrário configura disciplina jurídica própria, ministrada em cursos de graduação e pós-graduação. Autonomia jurisdicional – a Constituição Federal, no art. 126, caput, determina: “Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias”. Estabelece o parágrafo único do mesmo dispositivo: “Sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio”. Portanto, de acordo com o artigo ora transcrito, cada Estado pode ter sua própria justiça agrária de acordo com sua própria Lei de Organização Judiciária para dar efetividade à referida autonomia. • Princípios do direito agrário 1º) Princípio do monopólio legislativo da União – somente a União, sob pena de inconstitucionalidade, pode legislar sobre matéria agrária, a fim de gerar uniformidade em todo o território nacional. 2º) Princípio da sobreposição do uso ao título
- o simples título não legitima nem mantém regular
a situação do titular da terra, na medida em que a política agrícola e fundiária exige produtividade. O uso prepondera sobre o título, conforme estabelecem os arts. 185, II, 186, II, e 191, entre outros, da Constituição Federal. 3º) Princípio da função social da propriedade agrária – “Quando a propriedade rural atende, simul-
taneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (art. 186 da CF/88). O art. 2º do Estatuto da Terra mantém os mesmos paradigmas. Determina, por sua vez, o art. 12 do Estatuto da Terra: “À propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição Federal e caracterizado nesta lei”. 4º) Princípio da dicotomia (reforma agrária X política agrícola) – referido princípio garante a polí-
tica agrícola, ou seja, a concessão de insumos para a manutenção do homem no campo, garantindo não somente às atividades agropastoris e de proteção, mas também aos setores de comercialização, armazenamento e transportes, condições de sustentabilidade
(art. 187 da CF). Uma vez garantida a política agrícola para o desenvolvimento da atividade rural e que visa à manutenção do homem no campo, busca-se, dicotomicamente, uma reforma agrária, ou seja, a retirada da pessoa do campo na hipótese de improdutividade (desapropriação – arts. 184 e 185) ou por meio de concessões de uso e concessões dominiais (arts. 188 e 190) ou, ainda, por meio da usucapião rural (ar t. 191). 5º) Princípio das normas de ordem pública – muito embora o direito agrário tenha grande relação com o direito civil, suas normas são, em boa parte, cogentes, impositivas, objetivando dar efetividade à função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da CF). 6º) Princípio da reformulação da estrutura fundiária – de acordo com o art. 1º, § 1º, da Lei n. 4.504/64,
“Considera-se reforma agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”. De acordo com esse dispositivo, a reformulação da estrutura fundiária é importante para a identificação do latifúndio improdutivo, garantindo pleno acesso a todos os que querem produzir de maneira adequada e racional no solo. 7º) Princípio do comunitarismo – visa a criar mecanismos de apoio entre os proprietários e os exploradores rurais por meio de cooperativismo (art. 187, VI, da CF), bem como a criação de associações e entidades que protejam o bem-estar dos trabalhadores e proprietários rurais (art. 186, IV). 8º) Princípio do combate – tem por objetivo extinguir institutos prejudiciais ao desenvolvimento agrícola e fundiário, como latifúndios, minifúndios, o êxodo rural e a exploração predatória, entre outras. 9º) Princípio da privatização – trata-se de princípio constitucional que visa a garantir a alienação e a concessão de terras públicas para pessoas físicas e jurídicas privadas, a fim de que produzam e desenvolvam atividades agropastoris e empresas agrícolas (arts. 188 e 190). 10º) Princípio da proteção – estabelecido no art. 185, I e II, proíbe-se a desapropriação para fins de reforma agrária, da pequena e média propriedade rural, bem como da propriedade produtiva. Ressalte-se, ainda, que a pequena propriedade rural, desde que trabalhada pela família, é também insuscetível de penhora (art. 5º, XXVI). 11º) Princípio do fortalecimento da empresa agrária – de acordo com o art. 4º, VI, do Estatuto da
Terra, “Empresa rural é o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural, dentro de condição de rendimento econômico da região em que se situe e que explore área mínima agricultável do imóvel segundo padrões fixados, pública e previamente, pelo Poder Executivo. Para esse fim, equiparam-se às áreas cultivadas, as pastagens, as matas naturais e artificiais e as áreas ocupadas com benfeitoria”. Devem ser garantidos insumos ao amplo desenvolvimento da empresa agrária, tais como mecanização agrícola (art. 78) ; assistência financeira e creditícia (arts. 81 a 83), industrialização e beneficiamento dos produtos agrícolas (arts. 87 e 88), eletrificação rural e obras de infraestrutura (art. 89), entre outras. 12º) Princípio da propriedade indígena – é princípio constitucional a proteção das terras indígenas, conforme preceitua o art. 231, § 1º, nos seguintes termos: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. A remoção dos índios das referidas terras só pode ser feita quando necessária à soberania nacional ou em caso de catástrofe ou epidemia, e desde que autorizado ad referendum pelo Congresso Nacional (art. 231, § 5º, da CF). 13º) Princípio do dimensionamento eficaz das áreas exploráveis – é necessária uma dimensão
mínima de propriedade rural que assegure ao trabalhador e à sua família subsistência e progresso econômico. Observe-se que, para fins de usucapião, houve uma duplicação da área de 25 a 50 hectares, conforme preceitua o art. 191 da CF. 14º) Princípio da proteção do trabalhador rural
– trata-se de princípio constitucional, na medida em que a função social só é cumprida quando a exploração no imóvel rural favoreça o bem-estar dos trabalhadores (art. 186, § 4º). 15º) Princípio da proteção ao meio ambiente – de todos os princípios, talvez o mais importante para a atualidade seja o do meio ambiente ecologicamente equilibrado, conforme preceitua o art. 225 da CF. Só há o cumprimento da função social do imóvel rural quando ocorre “Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente” (art. 186, II, da CF). • Natureza Jurídica As normas de direito agrário são tanto de direito público quanto de direito privado, de forma que há uma dicotomia normativa. O paradigma fundamental para as referidas normas é a função social, constitucionalmente preconizada (art. 186 da CF). Dessa maneira, o direito agrário tem nítido caráter social, cujas normas objetivam sempre a justiça social, integrando o homem ao campo, no processo de desenvolvimento do País. As normas apresentam o seguinte caráter: a) normas publicísticas, na medida em que a propriedade é o centro do direito agrário e tem nítido caráter constitucional (arts. 5º, XXII e XXIII, e 170, II e III, da CF); b) normas tutelares dos sujeitos e dos bens agrários
(arts. 185, I e II, e 186, IV); c) normas de caráter reformista – por meio dos institutos para fins de reforma agrária (art. 184), alienação e concessão de uso (art. 188), usucapião (art. 191), entre outros; d) normas de caráter nitidamente social . • Fontes Fonte principal - direito civil. Fonte subsidiária - direito constitucional, administrativo, trabalho, penal, tributário e ambiental. Fontes materiais - política agrária. Fontes formais - leis e costumes.
IMÓVEIS RURAIS • Definição de imóvel rural O art. 4º, I, do Estatuto da Terra adota o critério da destinação, ou seja, aquele que determina ser rural o imóvel, independentemente de sua localização, desde que a finalidade seja agropastoril ou de indústria agrícola. Apresenta-se como conceito, de acordo com o referido critério: “Imóvel rural é o prédio rústico, de área contínua, em qualquer lugar e que se destina à exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, por iniciativa pública ou privada”. A Constituição Federal adota o critério da localização, também referendado no art. 29 do CTN (Lei n. 9.393/96).