1
INTRODUÇÃO À LITERATURA SAPIENCIAL Ludovico Garmus Bibliografia: BALLARINI, Teodorico (coord.). Os Livros Poéticos: Salmos, Jó, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Eclesiástico, Sabedoria. In: Introdução à Bíblia, vol. III/2. Petrópolis: Ed. Vozes, 1985; ZENGER, Erich (coord.). Introdução ao Antigo Testamento . Coleção Bíblica Loyola, 36. São Paulo: Ed. Loyola, 2003, p. 283-366; VÍLCHEZ LÍNDEZ, José. Sabedoria e sábios de Israel . São Paulo: Loyola, 1999; LEMOS, Benôni. As raízes da sabedoria . São Paulo: Paulinas, 1983; ASENSIO, Victor Morla. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. (Coleção Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 5); CERESKO, Anthony R. A Sabedoria do Antigo Testamento: espiritualidade libertadora. São Paulo: Paulus, 2004 (Bíblia e Sociologia, v. 20); ZIENER, Georg. A sabedoria do Oriente Antigo como ciência da vida: nova compreensão e crítica de Israel à sabedoria. Em: palavra e mensagem. Introdução teológica e crítica aos problemas do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 363-381; VV.AA. Sabedoria. Estudos Bíblicos, n. 48, 1996 (Petrópolis). – Boa e ampla introdução é a de MURPHY, Roland E. Wisdom in the Old Testament, em: The Anchor Bible Dictionary, vol. 6. New York, Doubleday, 1992, p. 920-931.
1.
Que se entende por livros sapienciais? Entre os judeus, os 39 livros da Bíblia Hebraica subdividem-se em três
categorias: Lei, Profetas (anteriores e posteriores) e Escritos. A Bíblia católica, além dos 39 livros da BH, inclui também os sete deuterocanônicos. Estes 46 livros são dispostos em três classes: históricos (21), didáticos ou poéticos (7) e proféticos (18). Quando se fala de livros didáticos ou sapienciais, em geral se incluem Jó, Sl, Pr, Ecl, Ct, Sb e Eclo, em razão do seu conteúdo relacionado com a “sabedoria”. Nem todos estes livros têm um caráter especificamente sapiencial. Dentre os salmos, apenas os salmos 1, 32, 34, 37, 49, 111-112, 128, 129 e 133 poderiam ser considerados sapienciais. O livro dos Cânticos, embora seja uma coleção de cantigas de amor, foi preservado e incluído na BH graças aos sábios judeus que reconheceram reconheceram sua importância para uma maneira sábia de viver. Possuem um cunho sapiencial também outros textos da Bíblia, como Tb 4,3-21; 12,6-13 (conselhos), bem como o poema sobre a sabedoria em Br 3,9 –4,4 3,9 –4,4 e a “história de José do Egito” (Gn 37– 50). 50). Sobre o cunho didático de toda a Bíblia veja 2Tm 3,15-17. Os autores, porém, divergem sobre que livros incluir na “literatura sapiencial” (Asensio: 1997, 19-20). 19 -20). Neste sentido há várias propostas diferentes sobre os livros que podem ser incluídos sapiencial”: 1) Provérbios, Jó, Eclesiastes, Eclesiástico, Sabedoria, Salmos Cântico dos Cânticos, Lamentações, Rute e Tobias; 2) Da lista anterior se excluem os Salmos; 3) Suprimem-se Salmos e Lamentações; 4)
2
Elimina-se também Rute e Tobias; 5) Elimina-se também Cânticos; 6) Alguns eliminam até Jó da lista! Em geral são aceitos pelos especialistas como “sapienciais”: Provérbios, Jó, Eclesiastes, Eclesiástico e Sabedoria.
2.
Conceito e origem da literatura sapiencial Von Rad define a sabedoria como um conhecimento empírico da ordem
do criado, “um conhecimento prático das leis da vida e do universo, baseado na experiência” (Teologia del Antiguo Testamento, I, p. 580). Sua finalidade seria dar normas para uma vida segundo a ordem do mundo, estabelecida e garantida por Deus. Para Whybray a sabedoria do AT é um mundo de idéias que reflete uma atitude perante a vida. De fato, em cada geração existem pessoas que refletem sobre as eternas perguntas da vida e que fazem com que os demais participem de suas reflexões (Asensio: p. 21). Crenshaw vê na sabedoria ‘uma busca de autocompreensão em relação com as coisas, as pessoas e o Criador” (Asensio, p. 23). R.E. Murphy vê um exagero em definir a sabedoria bíblica como um esforço para descobrir uma ordem na vida do homem; seria exagerar a influência da doutrina egípcia da Maat no pensamento israelita. Para Murphy a “sabedoria bíblica surge do esforço para colocar ordem na vida do homem”. Seus ensinamentos visam con formar com a ordem estabelecida por Deus (cf. Pr 25,1; Jr 31,35). Mas o homem não experimenta Deus no contexto desta ordem estabelecida, e sim, na procura da ordem: “cuidando de estabelecer uma ordem na trama às vezes caótica das relações sociais, por meio do recurso à análise e à classificação de experiências” (Asensio, p. 24). A busca de tal ordem seria a mesma da sabedoria egípcia, expressa no conceito Maat . Segundo Murphy, parece mais conveniente definir o conceito segundo os tipos mais antigos de sabedoria, como os ensinamentos dos reis e ministros egípcios. Estes ensinamentos constam de instruções sobre a maneira de viver e de comportar-se, transmitidas de mestre a discípulo ou de pai a filho. São ensinamentos que brotam do senso de observação e da experiência humanas e visam formar bons governantes e homens de corte. Seu “Sitz im Leben” (ambiente vital de origem), portanto, seria claramente o da corte. Devido à semelhança existente entre a sabedoria egípcia e a mais antiga sabedoria israelita, os autores acham que também esta provém dos ambientes palacianos. E, de fato, o AT reconhece que a sabedoria é uma característica dos vizinhos de Israel, ao comparar a sabedoria de Salomão com a do Egito e da
3
Arábia. Notórios são os paralelos entre Pr 22,17 – 24,22 e os ensinamentos do egípcio Amenemope (1100 aC), ou a citação dos sábios vizinhos Lemuel e Agur (Pr 30 – 31). Também em Israel a sabedoria tem um caráter internacional, pois dela estão ausentes os temas especificamente israelitas: culto, aliança, história da salvação (veja, porém, Sb 10 – 19 e Eclo 44 – 50). Contudo, estudos recentes (cf. A. Barucq, DBS, VIII, 1413s) chamam atenção ao perigo de se exagerar a teoria que considera a sabedoria como privilégio dos ambientes “clericais”, dos escribas e governantes da s cortes reais. Não devemos esquecer que o tão falado “paralelismo de membros” da poesia hebraica é próprio da tradição oral, portanto popular , não só dos povos orientais, mas de todos os povos. Portanto, ao lado da sabedoria palaciana florescia a sabedoria popular , nascida da experiência e do senso de observação (por ex. “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”). Assim Davi, perseguido por Saul, exclama: “O mal vem do malvado” (1Sm 24,14). Jeremias e Ezequiel (Jr 31,29; Ez 18,2) colheram um provérbio corrente na boca do povo, que sintetiza a doutrina da responsabilidade coletiva: “os pais comeram uvas amargas, e os dentes dos filhos ficaram embotados” (cf. Ez 36,13 e Is 10,15). A sabedoria popular poderia ter como seu “Sitz im Leben” a família/clã (cf.
Pr 4,3s), a roça (vida agrícola e pastoril), a cidade (especialmente o
portão, lugar em que se julgavam as questões). Além disso, é claro, o palácio/corte e
o templo/santuário eram locais em que se cultivava a sabedoria, elaborando-a literariamente, mesmo a sabedoria de origem popular. Segundo Crenshaw, pode-se dizer que o povo da roça tinha maior afinidade com sentenças ou ditados, e os membros da corte preferiam as “instruções”. Embora os paralelos extra-bíblicos da literatura sapiencial sejam valiosos para entendermos o desenvolvimento da literatura sapiencial bíblica, são de pouca importância para a compreensão de sua mensagem religiosa. Com efeito, os livros sapienciais do AT foram em grande parte escritos após o exílio quando já não havia rei, nem corte, e o conceito de sabedoria adquiria um caráter estritamente religioso (cf. Pr 1 – 9, especialmente 1,7; 2,6; 3,5s).
O papel de Salom ão na sabedoria foi tão acentuado que as tradições judaicas e cristãs chegaram a lhe atribuir a maior parte dos livros sapienciais. Na prática apenas Pr 10 – 22 e 25 – 29 podem ser pré-exílicos. Mas nem destes provérbios temos certeza de que tenham sido compostos por Salomão, apesar de algumas vezes lhe serem expressamente atribuídos (Pr 1,1; 10,1; 25,1), pois os sábios gostavam de
4
atribuir suas obras a grandes homens. Uma vez que Salomão foi considerado o tipo do homem sábio, não foi difícil atribuir-lhe a autoria dos livros sapienciais. Em 1Rs 5,914 temos a justificativa para se atribuir a Salomão os livros sapienciais: Deu s “deu-lhe uma sabedoria tão grande que ultrapassava a sabedoria dos orientais e a do Egito”. Reconhece-se assim que a sabedoria era um tema de caráter internacional. No Egito os ensinamentos visavam preparar os oficiais da corte, que deviam adquirir certos conhecimentos, habilidades, moralidade, etc., a fim de bem exercer sua tarefa, integrando-se harmoniosamente no princípio da ordem estabelecida ( Maat ). Israel, que copiou o sistema monárquico dos povos vizinhos (1Sm 8,5.20), especialmente do Egito (cf. 1Rs 4,4-6; 3,1), imitou também os conselhos sapienciais do Egito destinados à corte (Pr 16; 25). Mais tarde, Isaías critica os sábios da corte, cuja “sabedoria perecerá” (Is 29,14), e Jeremias os caracteriza como inimigos da palavra de Deus anunciada pelos profetas (Jr 8,8s; cf. 18,18; 9,22). - Sobre o conceito de sabedoria veja também: ASENSIO, Victor Moral. Livros Sapienciais e outros escritos, p. 20-23.
3. Literatura sapiencial extra-bíblica A literatura sapiencial do AT não pode ser simplesmente nivelada com a dos povos vizinhos. Pois Israel desenvolveu um conceito e um estilo sapienciais próprios, e sua sabedoria tem um cunho acentuadamente religioso. Apesar disso devemos reconhecer que, mais do que no campo do profetismo, é no da sabedoria que o AT encontra paralelos evidentes na literatura didática do antigo Médio Oriente.
3.1. Egito Os Sebayit , ou “ensinamentos/instruções” egípcios apresentam muita semelhança com Provérbios. Trata-se de instruções da corte que cobrem cerca de três mil anos de história egípcia. São ensinamentos de um oficial a seu filho, sobre regras e conduta. Estas instruções iniciam-se com uma fórmula em que um mestre transmite ao seu discípulo certos ensinamentos ou normas de conduta: “Início das instruções de X ao seu discípulo/filho Y”. O conceito central da sabedoria egípcia é o Maat , que pode ser traduzido por direito, justiça, ordem estabelecida, ordem do mundo, verdade. Por vezes é também identificado com a vontade divina. No dizer de Sellin-Fohrer ( Introdução, II, 89), a finalidade da instrução sapiencial é preparar o caminho para que o Maat possa
5
ser transmitido e vivido. Embora abertos para a experiência pessoal, os sábios egípcios consideravam-se os herdeiros e os transmissores de uma ordem-justiça muito antiga: “Eu sou filho de sábios, filho de antigos reis” (Is 19,11, criticando a sabedoria egípcia). Dado que o Maat possui o mesmo e imutável valor para qualquer pessoa do respectivo grupo social, cabe a cada um orientar-se pelo Maat , submetendo-se ao mesmo. Dependentes do conceito Maat aparecem dois tipos de gêneros literários sapienciais mais importantes: são as listas ‘científicas’ de nomes de plantas e animais, etc. (talvez influenciadas pelas listas suméricas), e os ‘ensinamentos’ ou instruções. Ao lado destes dois tipos, convém mencionar um terceiro, o da literatura das disputas ou discussões, tipo Jó. As instruções mais importantes estão relacionadas com Ptahhotep. Merikaré, Amen-em-het, Ani Amenemope e com os escritos demóticos de Onkhseshonq e o Papiro Insinger. A instrução transmitida ao discípulo visava não apenas a memorização de normas, mas, sobretudo, a sua aplicação por parte do aluno. Um dos ideais mais famosos desta literatura é o do “homem justo e silencioso”, senhor de si, capaz de controlar sua língua e suas emoções, em oposição ao homem impetuoso e iracivo. Mas reconhece-se o valor da palavra falada: “Falar é mais difícil do que qualquer outro trabalho” (Ptha-hotep. ANET, 414a); “sê um artista no falar e serás forte; a língua é uma espada e o discurso é mais poderoso que uma batalha” (Merikaré, ANET, 405a). Eis alguns textos típicos da literatura egípcia que muito se aproximam da sabedoria bíblica:
: É um verdadeiro tratado Testamento do rei Seti (cerca de 2150 aC) a seu filho Merikaré político, cheio de admoestações sobre um sábio governo e a maneira de enfrentar os problemas da administração e da política. O rei faz um elogio da palavra que deve ser persuasiva e bem informada (cf. Pr 10,11; 13,14), acompanhada do bom exemplo. O temor da justiça divina deve assegurar os atos do rei. – O filho de Seti é instruído também sobre como se deve comportar em relação aos grandes, habilidade que deve ser posta a serviço do Estado; como se portar em relação ao povo , etc. Há conselhos sobre como contornar as ambições políticas da cidade rival de Tebas, provocando-lhe gratidão e amizade; enfim, como tratar os invasores asiáticos, diante dos quais se devem temor respeitoso, reforçando a segurança das cidades fronteiriças. M áxi mas de Ptah -hotep (ca. de 2650-2420 aC): É considerado um texto dos mais importantes, uma espécie de manual de formação integral do filho de um magnata, com assuntos relacionados com a corte. Do ponto de vista literário, aproxima- se de Provérbios: “A palavra é mais difícil que qualquer outro trabalho; confere autoridade apenas a quem a domina completamente”; “Não responda em estado de agitação”; Deus ama a quem escuta, e quem não escuta é por Deus detestado”.
6
I nstr ução de Du auf-J eti (ca. 2000 aC): Fala das diversas profissões e exalta a do escriba (cf.
Eclo 38,24-34; 39,1-11): “Não existe ofício sem patrão, exceto o escriba, pois ele é o próprio amo”. I nstr uções de Am en-em-het (cerca de 1900 aC) a seu filho e sucessor. Adverte-se sobre o amargo desgosto que lhe foi causado pelo povo, a quem procurava favorecer e proteger. Diálogo de um desesperado com sua alma (do final do terceiro milênio). O homem, aborrecido com sua vida, deseja morrer. Dialoga, porém, com sua alma e é convencido a desistir do suicídio, dedicando-se aos prazeres da vida. Texto parecido com algumas posições de Coélet. I nstr uções de An ii (séc. XI-VIII aC): A instrução é cheia de conselhos da mais alta moralidade; descreve as virtudes do homem “justo e silencioso”, a discrição, a piedade, o cuidado em fundar um lar sadio, o respeito dos chefes, a fidelidade conjugal, o respeito à mãe, o pensamento da morte, etc. Tudo isso parece demasiado idealista para o filho. Mesmo assim ele é convidado a ouvir: “Não fales demasiadamente. Procura calar -te e serás feliz.. Não reveles teus pensamentos a um estranho, pois ele poderia utilizar tuas palavras contra ti”. “Guarda -te da mulher estranha, que ninguém conhece na cidade”. “A intimidade do homem é mais vasta que um celeiro; está repleta de toda classe de respostas”. “O êxito não pertence aos homens; um é seu plano, outro o do Senhor da vida” (ANET, 420a). I nstr uções de Am enemope (séc. X-VI aC): é o texto mais conhecido por suas semelhanças com Pr 22,17 – 24,22. Demonstra um senso de humildade e resignação, é menos materialista que os documentos precedentes.
Merecem ainda menção os “catálogos de nomes”, a literatura cética e a literatura de amor. As afirmações sobre árvores, animais, pássaros e peixes na literatura se assemelham ao que se afirma de Salomão (1Rs 5,13). Trata-se de uma espécie de enciclopédia de ciências de então, onde se enumeram as obras criadas por Ptah e iluminadas por Ré. Algo parecido, no dizer de G. von Rad, temos em Jó 38 – 39; Eclo 43; Sl 148 e Dn 3,52s, onde os fenômenos da natureza são descritos sucessivamente. No ramo da literatura cética temos uma “disputa sobre o suicídio”, ou também chamado “O homem cansado de viver”. Este texto se assemelha ao tema do justo sofredor, presente na Mesopotâmia e na literatura do AT (Jó, Ecl), sem resolver o problema: “A quem poderei eu hoje falar? Os companheiros da gente são maus. Os amigos de hoje já não amam... A quem poderei eu hoje falar? Os corações são ávidos; cada qual tira os bens de seu próximo... É a morte que hoje paira diante de meus olhos. Como a cura de um homem enfermo, ou a libertação de um prisioneiro..., qual odor de mirra, ou o sentar-se sob a tenda num dia ameno” (ANET, 406 -407a). Trata-se de uma simples resignação diante da morte, que inclui o suicídio ao término da obra, e não tanto de um conflito. Outra obra digna de menção é o “Protesto do camponês eloqüente” séc. 20-18 aC), que trata do tema do direito do pobre injustiçado que insiste em seus direitos. Sua conclusão assemelha-se à do AT: “A justiça permanece eternamente; ela desce à tumba com aquele que a praticou. Quando for sepultado, seu nome não será
7
vilipendiado sobre a terra, mas recordado por causa de sua bondade” (ANET, 410a; cf. Sb 1,15; 8,13).
3.2.
Mesopotâmia Na Mesopotâmia desenvolveu-se uma vasta literatura sapiencial, que
chegou até nós em sua forma acádica (2400 aC), embora esta remonte à tradição sumérica. De fato, na Suméria, no 3º milênio aC, temos escolas ( e-dubba = “casa das tabuletas”), onde os escribas copiavam em caracteres cuneiformes vários tipos de literatura, como a sapiencial, que pode ter influenciado a literatura sapiencial de Israel. Conhecem-se coleções de provérbios, fábulas, diálogos satíricos, preceitos que se ocupam com questões éticas, dão conselhos para a vida prática, ou tratam dos enigmas da vida, como o sofrimento, a exemplo de Jó e Eclesiastes. Aos colecionadores de provérbios devemos também a organização de listas ou catálogos de nomes, que procuram sistematizar a experiência cósmica do homem. Aos habitantes da Mesopotâmia (assírios e babilônios) devemos, pois, o início de um novo ramo de ensino sapiencial, o da cultura sapiencial, ou das ciências naturais. Em Ebla (2500 aC) descobriram-se verdadeiras “enciclopédias”. Exemplo de provérbios:
“Prazer na bebida, fadiga no caminho”. – “De
cachorro amarrado não se examina o canil”. – “Quem não conhece a bebida não sabe o que é bom”. – “A bebida torna uma casa agradável” (cf. Pr 31,4 -7; 23,29-35; Ecl 2,24; 8,15; 9,7)
As in struções de Sur uppak : O texto é conhecido por fragmentos acádicos e deve ter existido
em sumério já antes do ano 2.000 aC. Trata-se de um dos mais antigos textos literários da Mesopotâmia até agora conhecidos. Contém os conselhos de Suruppak, que sobreviveu ao dilúvio, ao seu filho Ziusudra: São conselhos que tratam do modo correto de falar e da fuga das más companhias: “Meu filho, quero dar-te um conselho; ouve a minha instrução, ó Ziusudra; quero dizer-te uma palavra, presta atenção à minha voz. Não negligencies minha instrução, nem transgridas a palavra que pronunciei: Não respondas com o mal a teu adversário. Trata com justiça e com educação o teu inimigo... Dá de comer e de beber, presenteia com o que te pedem... Não fales mal (dos outros), fala apenas o bem. Não expresses os teus pensamentos mais íntimos, mesmo quando estás a sós. O que dizes apressadamente poderás lamentar mais tarde. Exercita-te em dominar a tua fala. Adora o teu deus cada dia... Orações, súplicas e prostrações oferece-lhe cada dia, e tua súplica será atendida, e tu estarás em harmonia com o teu deus. Pois aprendeste o que lês das argiletas: ‘A reverência gera favores, os sacrifícios melhoram a vida, a oração afasta o mal’. Quem presta culto a Anunnaki, prolongará a vida” (ANET, 594-596). – cf. Tb 4,5-19. Eu l ouvarei o Senhor da sabedori a (Ludlul bel Nemeqi: ANET, 596-600): Texto parecido com o de Jó, na sua forma literária, ao usar o modelo de um lamento respondido. O sofredor babilônico é restaurado por intervenção de Marduk, mas não se exploram as duras e acerbas profundidades do sofrimento, como no texto hebraico de Jó. Diálogo entr e um amo pessimi sta e seu criado (ca. de 1000 aC). No diálogo o criado parece mais sensato que o amo. O texto ensina que riqueza e sabedoria, pobreza e necessidade nem
8
sempre andam unidas (cf. Pr 17,16). O diálogo termina com a perspectiva da morte e talvez do suicídio. O texto é parecido com Eclesiastes, mas este último não vê a morte como algo bem vindo e, sim, apenas inevitável (Ecl 11,7 – 12,7); não é vista como uma salvação para os problemas humanos. Conselhos sapienciai s (texto do séc. VII ou séc. 13-14 aC): Coleção de exortações morais de um vizir ao seu filho, que lembram o estilo dos sábios egípcios e israelitas: evitar más companhias, conversas impróprias, ser sentencioso para com o necessitado, viver em harmonia com os vizinhos, ser honesto com o rei, etc. Eis o que diz sobre o auto-domínio no falar: “Controla tua boca e sê reservado no falar: Nisto está a riqueza do homem; faze que teus lábios sejam muito preciosos; que a insolência e a blasfêmia sejam para ti uma abominação. Nada digas de profano nem dês informações inveross ímeis. O mentiroso é amaldiçoado” (ANET, 426; Eclo 5,11-18). O di álogo sobre a mi sé ria humana , ou “Teodicéia babilônica” (ANET, 601-604), é um poema acróstico, com 27 estrofes, cada uma com 11 linhas. Os personagens neste diálogo são o sofredor e um simpático ouvinte (diferente dos amigos de Jó). São abordados vários temas que versam sobre a justiça dos deuses. Embora o amigo nunca encontre falta no dialogante principal, sua consolação é frágil. Ele pensa que a crença comum na recompensa da piedade ainda se mantém firme. Há, porém, um final um tanto surpreendente, porque ele admite que os deuses sejam os causadores da desgraça humana. Neste caso, não haveria possibilidade de diálogo (Murphy, op. cit., p. 929). Palavras de Aicar : É uma das mais célebres narrativas do mundo antigo e foi conservada em várias línguas (siríaco, árabe, armeno, grego, eslavônico, turco, etc.) a recensão mais antiga e talvez a original é a aramaica. De fato, encontrou-se no início do séc. XX em Elefantina, no Egito, um papiro palimpsesto (11 folhas), contando a narrativa em 1ª pessoa, junto com os ditos de Aicar. Esta história influenciou as lendas das “mil e uma noites”, as fábulas de Esopo, os Santos Padres, o AT e até algumas passagens do NT (parábolas do filho pródigo e a da figueira estéril, etc.). Aicar é mencionado várias vezes pela recensão grega de Tobias (1,21-22; 14,10) e uma vez no texto da Vulgata (11,19 = Aquior), como primo de Tobit. Os ensinamentos de Aicar dirigem-se à educação da juventude. Aicar é
um chanceler dos reis assírios, Senaquerib e Asaradon (704-669
aC). É um homem muito sábio, mas não tem filhos. Ao suplicar aos deuses por um herdeiro, recebe a ordem de tomar e educar o seu sobrinho, filho de uma de suas irmãs. Todos os seus conselhos de nada valeram: o sobrinho tramou intrigas contra Aicar, que caiu em desgraça e foi condenado à morte. No caminho do suplício é salvo por um carrasco, que faz morrer secretamente outro prisioneiro em seu lugar, ocultando Aicar. Enquanto isso, o sobrinho de Aicar administra mal os negócios do Estado. Quando, finalmente, o rei vem saber que Aicar está vivo, reabilita-o, fazendoo novamente seu ministro. Este Aicar torna-se a figura central em torno da qual se agruparam fábulas, provérbios, parábolas didáticas, etc. – Se Tobias pode ser considerado uma história do espírito de gratidão, a história de Aicar é uma história da ingratidão humana, justamente punida. Ao instruir o sobrinho, Aicar exorta-o sobre a necessidade de disciplinar as crianças para o próprio bem, de dominar a língua, de ser circunspecto no trato com o rei, de respeitar os segredos, etc. Seu louvor à sabedoria recorda a atitude bíblica: “A sabedoria procede dos deuses; ela é preciosa também aos olhos dos deuses; por
9
isso a ela pertence a realeza; ela está estabelecida nos céus, porque o Senhor santo a exaltou” (cf. Pr 8,15; Eclo 24,4s). Alguns exemplos destes ensinamentos: - “Não afastes teu filho da vara; do contrário, não poderás libertá -lo (da maldade)”. - “Filho meu, não fales com a língua solta [...] Sê cauteloso [...], pois a palavra é como um pássaro: uma vez solto, ninguém pode (capturá-lo)”. - “Um bom jarro guarda a palavra em seu interior, mas um jarro quebrado a deixa escapulir”. - “Não reveles teus (segredos) para teus amigos; não aconteça que venham a depreciar teu nome”. O problema do ‘justo sofredor’ (de Jó) está bem representado na antiga Mesopotâmia. É um hino dirigido ao deus Marduk. Há dois textos de caráter religioso procedentes do séc. XVII aC, que tratam do assunto. O texto publicado é conhecido pela primeira frase do poema: “Eu louvarei o Senhor da sabedoria”, ou também como o Jó babilônico, ou a Viagem do peregrino babilônico. O estilo assemelha-se aos hinos ou cânticos do saltério. O protagonista, da classe nobre, devoto de Marduk, descreve uma série de calamidades que sobre ele caíram. É uma pessoa enferma, abandonada por parentes e amigos. Questiona por que deus permite que um fiel passe por tantos sofrimentos na vida. Expõe seus sofrimentos e se lamenta: “O meu deus esqueceu-se de mim e desapareceu, a minha deusa foi-se embora e permanece distante, o espírito benevolente que sempre estava junto a mim retirou- se”. Depois conta três sonhos que lhe prometiam a salvação e finalmente a intervenção de Marduk, “o senhor da sabedoria”. O texto escrito pelo séc. 14 aC, entre outras coisas diz: “Tornei -me como um homem surdomudo... Antes eu era considerado como um senhor, agora tornei-me um escravo... A fúria de meus companheiros me destrói. O dia está cheio de lamentos e a noite de lágrimas; os meses passam no silêncio e no luto passam o anos. Eu já atingi, já passei dos limites da vida (= isso já não mais vida!). Se olho à minha volta só vejo males. Minha aflição me envolveu o rosto. Supliquei à minha deusa, mas ela nem levantou a cabeça, embora eu tenha sido virtuoso: Como alguém que tivesse deixado de oferecer libações a um deus, ou não tivesse invocado a divindade por ocasião das refeições. Pior do que alguém que se tornou orgulhoso, esquecendose de seu divino senhor, ou que jurou frivolamente em nome de uma honorável divindade, assim tornei-me eu” (ANET, 434-435). Por fim, recupera a saúde e é restaurado, dando graças ao seu benfeitor. No fim, fica claro que a vida e as disposições de Deus são um verdadeiro mistério para o homem: “Quem pode conhec er a vontade dos deuses do céu? Quem pode compreender os planos dos deuses do abismo?”
O poema sapiencial babilônico, porém, não chega a explorar o problema em toda a sua agudeza, pois a questão é “respondida” pela intervenção favorável da divindade. Em Jó a solução não está numa simples volta ao bem-estar inicial (Jó 42), mas em seu confronto com a vontade divina, a cujos desígnios insondáveis Jó se submete.
Diálogo sobre a miséria humana:
O texto que possuímos é do VII séc. aC, mas a composição deve datar do ano 1.000 aC. É conhecido também como “Teodicéia babilônica”, muitas vezes comparado com o Eclesiastes. Trata-se de um diálogo entre o que sofre e o seu amigo, sobre as injustiças de ordem social de que é vítima, ou que existem no mundo: “Por que Deus permite que haja crianças órfãs? Por que os primogênitos devem ter mais direito que os demais filhos? Por que os deuses não defendem criaturas indefesas? Por que o crime compensa”?
Como Jó, o amigo o acusa de pecado, motivo de punição. Mas o sofredor insiste no princípio de que o bem deve ser recompensado. E por fim acaba admitindo que os deuses são responsáveis pela maldade humana (ANET, 440a). Já pelo ano 2.000 aC vários pensadores mesopotâmicos tentaram combater a idéia de que a infelicidade e o bem-estar são um resultado da virtude e os males, resultado de atos
10
criminosos ou pecados dissimulados do homem, admitindo uma espécie de pecado original: “Jamais nasceu uma criança sem o pecado de sua mãe” (cf. Jó 14,1) 1. Diálogo do pessimismo (ANET,
438): Também comparado a Eclesiastes.
Relativiza tudo, chegando à conclusão de que a morte é a única resposta. “Quem é o benfeitor e que é o malfeitor?” – Também para o Coélet (Ecl 1,11; 2,16) a morte é a grande niveladora, mas não recorre à solução do suicídio. Coélet reconhece que ainda há certos valores na vida (Ecl 9,7.10; 2,24s; 3,12s; 9,7-10; cf. Pr 5,18).
3.3.
Sabedoria no resto do antigo Médio Oriente Além de Aicar, temos notícia de que Israel tinha conhecimento da
“sabedoria” de outros povos, como os edomitas ( Jr 49,7), dos povos do oriente (Abd 9), da Transjordânia (1Rs 5,10) e dos cananeus, que devem ter exercido influência sobre Israel, como o deixam entrever os textos de Ras-Shamra (Dahood, Biblica 33, 1952, 30-52, 191-221). Ezequiel menciona a Fenícia (27,8; 28,3.17), especialmente Danel (14,14),
o herói sábio de Ugarit. Provérbios cap. 30 – 31 provêm de Agur e
Lemuel, originários de Massa, tribo do norte da Arábia (Gn 25,14). Sobre os “heróis do passado” e sábios veja Eclo 44,1 -9.
4.
Sabedoria em Israel Depois deste rápido panorama da sabedoria no ambiente extra-bíblico,
vejamos como se apresenta o movimento sapiencial em Israel.
4.1.
Lugar e representantes da tradição sapiencial em Israel Qu em eram os sá bi os ? – Mencionam-se conselheiros da corte (2Sm 15,30-37; 16,23 – 17,23; Pr
20,18; 24,6) que eram tidos em alta estima. A função do conselheiro do rei exigia uma longa preparação, uma prudência no falar, habilidade oratória para exercer funções de embaixador, elementos acentuados repetidas vezes nos livros didáticos (Eclo 34,11s; 39,4). Além dos conselheiros mencionam-se sábios dedicados ao conhecimento do tempo (Est 1,13), ou que interpretavam sonhos (Dn 1,17; 2,28; José do Egito: Gn 41,14s). O livro da Sb 7,18-20 chega a enumerar vários ramos da ciência natural, então ensinados: astronomia, zoologia, demonologia, psicologia, botânica e farmacologia.
Nota-se, porém, que as sentenças relacionadas estritamente aos ambientes da corte são relativamente poucas. Esta simples constatação já nos mostra que a corte não é o único “Sitz im Leben” do cultivo da sabedoria. É provável que os sábios de Ezequias (Pr 25,1), quando colecionam provérbios, reúnem materiais provenientes de outros centros culturais, ou simplesmente reunidos entre o povo. Além da corte 1
Veja TERRIEN, Samuel. Job (AT XIII, 1963, p. 12; Jó. São Paulo: Paulus, 1994. (Grande Comentário Bíblico, v. 9).
11
também as “escolas” eram ambientes onde se cultivava a sabedoria. Embora se fale só tardiamente de escolas (Eclo 51,23.31), existiam certamente instituições que preparavam, por exemplo, os escribas na arte de escrever. Para se exercitarem, os escribas recebiam tarefas práticas e com isso se instruíam também através do conteúdo da doutrina dos escritos que copiavam. Igualmente os levitas eram instruídos na maneira de interpretar e transmitir antigas tradições cultuais e religiosas. Este treino dos escribas e levitas fazia parte da sabedoria. G. von Rad chama atenção à presença de proposições interrogativas em diversas partes do AT, que lembram tais interrogações escolares (Pr 6,27s; 23,29-30; Am 3,3-8). Em resumo, podemos distinguir seis fontes de onde pode ter-se originado a sabedoria (cf. R.B.Y.Scott, Interpr 24, 1970, 20-45):
Do tesouro da sabedoria popular, resultante da contínua observação e avaliação das experiências humanas, expressas em breves ditos; do processo educacional (família, escola), onde a admoestação se une à observação; o aparecimento de conselheiros particularmente dotados nos ambientes da corte; a curiosidade intelectual e moral a respeito do mundo físico e da compreensão da ordem divina, relacionada com a existência humana; A institucionalização da sabedoria através dos escribas profissionais, ligados ao templo e a cortes reais. Posteriormente, a adaptação das formas orais e literárias da sabedoria às finalidades de expressão e instrução religiosa convencional. Numa forma mais resumida o “Sitz im Leben” da sabedoria estaria relacionado: à casa (clã, família), ao portão da cidade (local onde se administra a justiça), à roça/campo, ao templo e ao palácio. Função dos sábios: O adjetivo hakam é traduzido por “sábio”, embora de maneira inexata. Designa pessoas que são “competentes”, “peritos” nos mais variados assuntos (Ex 25,1.3 = artesãos e artistas; Ex 31,3.6; 35,35; 1Rs 7,14 = engenheiros ou técnicos; Jr 9,16 = carpideiras profissionais; Ez 27,8 = hábeis marinheiros; Sl 106,27 = prudência e esperteza humanas (2Sm 20,16). Em textos sapienciais pré-exílicos não se nota que o homem sábio seja o representante de uma função, mas apenas alguém oposto ao inexperto e tolo (Pr 22,17; 24,23, etc.). Somente nos textos pós-exílicos é que se nota a figura do sábio como um mestre erudito.
Se examinarmos quais as pessoas que são habitualmente qualificadas como sábias, veremos que se trata em geral do rei ou de seus mais altos conselheiros (Is 19,11; 10,13; Ez 28,3; Gn 41,33; Is 30,4: Jr 50,35; 51,57). Raras vezes o adjetivo “sábio” é substantivado para designar uma profissão (Jr 18,18; 50,35). O Sirácida (38,34 – 39,11) nos descreve a figura do sábio, como era visto pelo ano 200 aC, cujas funções seriam: conhecimento das tradições do passado, capacidade de se ocupar de tradições, estudo da doutrina, interpretação de sentenças e enigmas. Ocasionalmente, tal tipo de sábio podia colocar-se à disposição do rei, inclusive como embaixador. “Mas – como diz G. von Rad – tudo devia estar baseado numa relação pessoal de oração com Deus, pois unicamente Deus podia livremente conceder os carismas que capacitariam o sábio a exercer uma carreira fecunda de
12
ensino e de aconselhamento” ( Israel et la Sagesse, 30s). E como a sabedoria é um dom de Deus, em Daniel o sábio torna-se o mestre dos mistérios do futuro.
4.2.
Conceito de sabedoria no AT A variedade de pessoas às quais é atribuído o adjetivo “sábio” mostra a
amplidão e complexidade do conceito de sabedoria. É um conceito bastante vago, ainda que certos termos usados para exprimir a sabedoria voltem sempre de novo. Veja, por exemplo, a terminologia usada para a sabedoria em Pr 1,1-5. É difícil entender o conceito de sabedoria a partir dos termos usados na Bíblia. Um exame da evolução do conceito e de suas relações com a experiência humana, com a moral, com Deus, etc., nos ajudará a esclarecer melhor o que é sabedoria no AT.
4.3.
Sabedoria e experiência humana Como todas as outras nações, Israel entendia por “sabedoria” um
conhecimento prático das leis da vida e do mundo, baseado na experiência .
O
conhecimento experimental é, aliás, um dado antropológico. Desde os primeiros anos de nossa vida herdamos um vastíssimo cabedal de conhecimentos experimentais. A partir do momento em que começamos a ter consciência de nós mesmos, iniciamos a nossa experiência pessoal, e somos capazes de situá-la dentro da compreensão que temos de nós e do mundo que nos rodeia. A herança de conhecimentos experimentais, vivida e acrescida de novas experiências pessoais, vai formando uma “sabedoria experimental”. Esta sabedoria nasce, portanto, de um prolongado contato do homem com a realidade que o cerca, contato que se dá pela repetição das experiências e em vários níveis: com a natureza, com a sociedade, consigo mesmo, com Deus. As respostas que a pessoa vai dando ao longo deste processo, constituem uma tentativa de compreender e controlar a realidade. Nesta
tentativa ele chega a formular certos
princípios que têm valor de “lei geral”, mas sem conseguir reduzir a variedade desta experiência a um princípio de ordem geral. Às vezes até se encontram provérbios de conteúdo contraditório, expressos em antinomias não solucionadas (Pr 17,27s; 26,45). “A sa bedoria empírica – no dizer de Von Rad – parte da pressuposição irrefutável de que há uma ordem por trás das coisas e dos acontecimentos, mas que essa ordem deve ser descoberta nos próprios acontecimentos, com grande paciência e
13
à custa de toda espécie de experiências dolorosas” ( Israel et la Sagesse, 397). – cf. Pr 25,2! Algumas destas experiências são bastante evidentes, facilmente constatáveis na vida prática: “A mão preguiçosa empobrece, a mão diligente enriquece” (Pr 10,4). “A arrogância precede à ruína, e à altivez de espírito precede a queda” (Pr 16,18). “A dádiva abre caminho ao homem, dá -lhe acesso junto aos grandes” (Pr 18,16). Outras vezes a evidência está num parodoxo: “Há quem reparta e ganhe ainda mais; outro poupa além da medida e ainda empobrece” (11,24). Outras vezes, estabelece-se uma comparação entre atitudes humanas e fenômenos naturais: “Nuvens e vento sem chuva, é o homem que se vangloria de um presente ilusório” (25,14). Ou então: “Se falta lenha, apaga-se o fogo, se não há delator acaba- se a disputa” (26,20). Pode-se dizer que a sabedoria era a reflexão existencial da época, que parte da observação do fenômeno externo, para analisar o homem interior.
4.4. Sabedoria, conduta moral e retribuição A relação entre sabedoria e virtude é muitas vezes sublinhada (cf. Pr 10s), em contraste com a insensatez e a impiedade. Esta relação deve ser bastante antiga, pois já Amenemope (Egito) relaciona certas ações com a vontade divina. Mas é, sobretudo, após o exílio que a sabedoria ganha uma conotação moral ou ética. A sabedoria, contudo, não se identifica com a moral. “Ela está mais preocupada em preparar corações prontos a se conformar com as exigências da aliança com Deus, do que em comentá-las. A sabedoria se propõe a traçar a imagem de um tipo de homem, cuja realização depende da ascese pessoal e das contribuições da experiência de outros: isto é, o tipo do sábio” (E. Beaucamp). Os princípios e normas do comportamento que a sabedoria apresenta devem ser visto menos como convicções morais profundas e absolutas, e mais como paradigmas, ou como escala de valores herdados do passado, que o indivíduo recebe da sociedade. As regras de comportamento se conformam com estes valores préestabelecidos (G. von Rad, 92). Em outras palavras, as normas morais nascem da experiência da sociedade humana e não vice-versa.
Nos textos sapienciais pós-exílicos, porém, há uma ênfase no aspecto moral: a sabedoria torna-se “temor do Senhor”. O sábio exorta a compreender “a justiça e o direito, a retidão e todo bom caminho” (Pr 2,9). – Ser sábio é fugir do mal:
14
“Temer o Senhor, eis a sabedoria! Afastar -se do mal, eis a inteligência!” (Jó 28,28). Quem procura viver na sabedoria encontra a vida e o que a odeia, a morte: “Pois quem me encontra, encontra a vida e obtém o favor do Senhor; mas quem me perde, prejudica-se a si mesmo, todos os que me odeiam, amam a morte” (Pr 8,35 -36). A sabedoria coloca o homem diante de uma decisão fundamental em sua vida. Neste
particular, assemelha-se à pregação deuteronomista para quem a obediência á Lei significa a vida e a desobediência, a morte (Dt 11,26s; 30,15-20). Mas, diversamente da Torá, que se preocupava com os ideais éticos e litúrgicos do javismo, a sabedoria procura avaliar o comportamento concreto do homem nas várias circunstâncias da vida (3,18;
4,10.13.23; 9,11; 10,17.27; 13,14):
Como comportar-se com os maus amigos? Como considerar as prostitutas? Para onde conduz a inveja? – Condenam-se o lucro injusto, o falso testemunho, o suborno, a mentira e a adulação. Inculcam o amor aos pobres, o temor de Deus, a confiança no Senhor, etc. A prosperidade é vista, portanto, como uma conseqüência,
como fruto da
sabedoria, assim como a observância da Lei para o deuteronomista atrai as bênçãos divinas. A recompensa prometida para os seguidores da sabedoria é expressa pelo
conceito de vida (6,23; 10,11; 11,30; 12,28; 13,12; 15,4.24; 16,22), sobretudo uma vida longa (Pr 10,27; Eclo 1,18s), cheia de riquezas, com família numerosa, sucesso e prestígio. Portanto, uma recompensa situada nos limites do mundo presente. No dizer de H. Koch, a punição/retribuição não dependem de uma intervenção divina; mas do princípio: ações más produzem conseqüências más e ações boas têm bons resultados. Esta seria a natureza da “retribuição” estabelecida por Deus (Gese, 1958; cf. Gn 4,6-7). Os livros de Jó e Eclesiastes mostrariam uma quebra deste fatalismo próprio do Antigo Oriente Médio. Porém, há o princípio básico na Bíblia segundo o qual Deus age em todos os acontecimentos (cf. Am 3,6). Jó e Ecl mostram o conflito entre os dois tipos de retribuição. No entanto, as teses dos sábios sobre a recompensa divina para o sábio e o justo desembocam numa crise, que foi benéfica para o desenvolvimento da própria doutrina da imortalidade. Segundo os sábios, a justiça divina exigia que o bem fosse recompensado, a virtude premiada, e o mal punido, já neste mundo. Mas a vida prática desmente continuamente este princípio (Jó e Ecl). Uma semi-vida que era proposta no Xeol , equivalia praticamente à nãoexistência (Ecl 9,10). Chega-se assim a um conceito de imortalidade que não é uma
15
decorrência da natureza (alma imortal), mas uma conseqüência da justiça que é imortal (Sb 1,15): A união com Deus que se cultivou nesta vida, perdura na outra (cf. Sl 73,23-28). – É o que afirma o texto egípcio do “Protesto do camponês eloqüente”: ‘A justiça permanece eternamente; ela desce à tumba com aquele que a praticou. Quando for sepultado, seu nome não será vilipendiado sobre a terra, mas será recordado por causa de sua bondade’ (séc. 18 aC). Em outras palavras, os sábios têm consciência de seu limite: não podem controlar a Deus (Pr 21,30-31; 16,1-2.9). Confrontam-se com o mistério de Deus (cf. Jó 11,7-8; 36,22-26). “Israel experimentou o mistério de Deus de modo mais radical no âbito da sabedoria do que nas tradições de sua própria história” (Murphy, op. cit., vol. VI, p. 924).
4.4.
Relação entre sabedoria e Deus Nos livros mais recentes a sabedoria passa por uma formulação de
conceito e é mais diretamente relacionada com Deus. Ela torna-se um predicado divino
(Jó 12,13). É compreendida como “um apelo divino ao homem, como um
intermediário divino da revelação, como a grande educadora das nações em geral e de Israel em particular, e até mesmo como o princípio divino por ocasião da criação” (von Rad, Teologia do AT, I, 414). Esta teologização da sabedoria talvez tenha começado a partir das afirmações sobre sua inacessibilidade: “Só Deus conhece o caminho de acesso, só ele sabe de sua morada” (Jó 28,23). Ele a comunicará àquele que a procurar (Pr 8,22-31; Sb 9,9). Citações que sugerem a teoria que leva a considerar a sabedoria como pessoa ou hipóstase, ou ao menos como personificação da sabedoria para mostrar a proximidade do Criador junto a suas criaturas. Esta personificação chegou ao cume na pessoa do Verbo. A sabedoria é neste sentido identificada com o espírito de Deus (Sb 1,5; 9,17s). É mostrada salvando Noé, os patriarcas e o próprio povo de Israel (Sb 9,18 – 10,13; cf. Cl 1,6). Neste sentido, - como diz von Rad, “sabedoria é o modo como Javé quer acompanhar e aproximar-se do homem (salvação)... O mais importante é que a sabedoria não se volta para o homem como algo que ensina, guia para a salvação, mas como uma pessoa que o admoesta, como um ‘Eu’. Assim, a sabedoria, na verdade, seria a forma como Javé se torna presente e o modo como quer ser visto pelo homem” (Murphy, op. cit., vol. VI, p. 927).
16 Segundo alguns autores, como Westermann e Zimmerli, a sabedoria se relaciona muito bem com a teologia da criação, até melhor do que a tradição da aliança; a sabedoria e a criação refletem-se uma na outra. Por outro lado, o Deus da experiência sapiencial é também o criador e go’el (redentor) de Israel e a relação de Jó com Deus é de aliança (cf. Jó 10,2-9) (cf. Murphy, op. cit., p. 924).
4.5.
Sabedoria e Lei Após o exílio constata-se uma aproximação entre os conceitos de
sabedoria e Lei, talvez em conseqüência da importância crescente que ambas adquiriram. Esta tendência nota-se, sobretudo, no Sirácida (Eclo 24,32; 39,1), embora a sabedoria continue sendo misteriosa (Eclo 1,8s): “O princípio da sabedoria é temer o Senhor” (Eclo 19,20). O Eclo procura unir a observância da lei com o ideal da disciplina do sábio. Para ele, quem obedece à Lei é homem disciplinado e sábio. Veja em Dt 4,5-8 a confiança de Israel, que julga ter encontrado a sabedoria na Lei (cf. Br 4,1).