Florianópolis, 11 de abril de 2011 Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências Jurídicas Curso de Graduação em Direito Teoria Política DIR5116 Professor Arno Dal Ri Júnior Resenha de “Primeira Lição Sobre Direito” (Paolo Grossi)
Paolo Grossi vem auxiliar os iniciantes no âmbito jurídico - e mesmo discutir com os já formados - em seu livro “Primeira Lição Sobre Direito”. Nesse opúsculo, como ele mesmo chama, o autor questiona o que seria o direito e escreve sobre a vida do mesmo, dividindo o livro em dois capítulos. O que é o Direito? “O direito não pertence ao mundo dos sensíveis. [...] O direito confia nos signos sensíveis para uma eficaz comunicação” (página 1). Seria esse fato, essa imaterialidade do direito, que o tornaria tão misterioso, e até desagradável, aos olhos de um cidadão comum. O cidadão comum não é um tolo por o assim julgar o direito; há aspectos do direito que o levam a crer isso. Ele assim pensa por ver o direito como uma forma de poder, que é posto por pessoas superiores a ele – autoridades – autoridades – e e mantém uma distância do restante da sociedade. “Tudo isso transforma o direito para o homem comum numa realidade hostil” (página 2). Toda essa realidade, no entanto, é “de fato a consequência d e escolhas dominantes no cenário da história jurídica da Europa continental durante os últimos duzentos anos e que foram consolidadas em um vínculo muito forte e completamente novo entre poder político e direito” (pág. 2 e 3). O poder político, “transformado “transforma do cada vez mais num Estado”, reconheceu no direito uma enorme fonte de poder para manipular a sociedade, e acabou por liga-lo a si. Teria então o cidadão comum culpa em temer o direito? As leis instituídas por esse Estado foram tidas pela sociedade como máximas a serem seguidas, não pelo seu conteúdo, mas simplesmente por terem sido postas pelo poder político. políti co. Este as decretava segundo sua vontade, mas sob a faixada de serem da
vontade geral. Dessa forma, podia-se controlar a sociedade da maneira que quisesse, já que aqueles que eram pagos para fazer a justiça, não se manifestavam contrariamente ou mesmo não viam nessa apropriação do direito uma forma de manipulação. Como a sociedade poderia mudar a situação, se aqueles que deveriam ser os “sacerdotes do cu lto legislativo” aceitavam apenas fazerem o papel formal de um? “Uma realidade de comandos imperativos está fora da cultura circulante e arrisca ser um corpo estranho não só para o pobre homem comum, mas para a inteira sociedade, porque está fora da história, do penoso, mas incessante devir quotidiano de todos” (pág. 6). Infelizmente essa concepção que perdurou por muito tempo, foi somente parte da estratégia da burguesia, a qual enfim conseguia chegar ao poder. Para essa classe o direito era nada mais que um instrumento de poder e o temor que ele causava aos comuns apenas auxiliava esse mesmo poder. Resta agora resgatarmos a essência do direito, uma tarefa árdua, já que a concepção acima comentada, já está impregnada na mente da sociedade. “O nosso itinerário – nada fácil – será então aquele de acompanhar o não jurista (e, sobretudo, o estudante não iniciado que se prepara para enfrentar os estudos jurídicos) na descoberta dos traços essenciais de uma realidade mal compreendida. Tentar-se-á fazê-lo começando nos traços mais genéricos, necessários para sua compreensão, mas que ainda não a caracterizaram, para depois descer àquele desenho que a fixa com precisão e a distingue inconfundivelmente das realidades próximas e afins” (pág. 7). O primeiro ponto em que se deve insistir é na humanidade do direito. Seria incoerente não fazê-lo, uma vez que o direito se dá pelas relações entre os homens. Não há necessidade de direito em um local onde exista somente um homem ou nenhum, já que não haverá diferentes opiniões ou vontades, nem a necessidade de uma organização para o bem comum. Ou seja, a dimensão do direito é uma “dimensão necessariamente relativa”. Embora seja uma dimensão relativa e humana, não é em toda e qualquer realidade social que haverá direito. A diferença entre uma realidade jurídica e uma realidade simplesmente social, está na presença de uma organização e de uma “observância espontânea das regras organizativas” na primeira. Isso vem a reafirmar que o direito não caracteriza o Estado, mas sim a sociedade. “O ponto de referência necessário do direito é somente a sociedade como realidade complexa, articuladíssima, com a possibilidade de que cada uma das suas
articulações produza direito” (pág. 11). Sendo assim, o Estado jamais poderia ter se apropriado do direito, pois ele é a organização social, não somente uma organização regida pelo Estado. A essência do direito não está em comandar, como se quis que pensássemos, mas sim no ato de ordenar a sociedade. Um ordenar que respeite a complexidade social, o que impede que a vontade ordenadora se degenere em ações subjetivas. Um ordenar que respeite as diferenças de seus indivíduos, permitindo que eles coexistam sob a mesma coordenação. O direito não é um ordenamento qualquer, porém um ordenamento observado. Observância é quando a sociedade analisa uma ordem e a segue, por julgá-la boa segundo seus valores. E os valores “são sempre realidade radical, isto é, das raízes” (pág. 17). Também, o próprio direito é radical. Deve-se entender que observar não é obedecer. “Não falamos de obediência pela passividade psicológica que ela sempre exprime; obedecer, de fato, significa sempre se curvar passivamente a uma injunção autoritária; ao ato da obediência corresponde sempre um ato de comando. Mas o direito não é um universo de comandos, ainda que – muito frequentemente – nós imprimamos na consciência comum tal identificação” (pág. 19). Por mais que haja um grau de imperatividade no direito, não podemos considerá-lo diretamente um comando, já que ele “nasce antes das regras”. “O direito já está na sociedade que se auto-ordena” (pág. 20). Alguns linguistas e juristas chegam a falar de direito e linguagem como complexos institucionais. Entretanto, não há como assim defini-los sem que se saiba o que é uma instituição. Ela “nasce não das regras do código civil, mas da espontânea auto-organização de antiquíssimas comunidades” (pág.27). “A referência é a uma obra supra-individual que a consciência comum, graças à constante repetição de comportamentos individuais projeta para fora e para acima dos impulsos e vontades singulares, constituindo aquele nó de relações organizativas, funções e valores nos quais consiste a instituição, aquele nó que torna uma realidade autônoma com uma vida estável no interior da experiência social” (pág.26). Essa visão auxilia no regate ao papel original do direito, pois a instituição está no coração da ordem jurídica. “A instituição ao contrário da norma que é naturalmente abstrata e que espera o momento sucessivo e a ela externo da aplicação para tornar-se concreta, é imersa na vida social, é ela mesma experiência” (pág. 29). “Precisada a sociedade como referência do direito, e não a sua cristalização que é o Estado, a consequência mais relevante é resgatar ao direito o pluralismo daquela e
de livrá-lo do monismo deste” (pág. 29). Na modernidade, o poder político e jurídico é totalizado pelo Estado, por meio de uma intolerância, a qual muitas vezes passa despercebida pela sociedade. Ele dita as regras; caso elas não sejam seguidas a ação está sujeita a ilicitude, mas se não causarem grandes danos à ordem política, tornam-se apenas irrelevantes. Toda a experiência jurídica deve dar-se segundo o que é ditado por esse Estado monopolizador. Para que tal ocorra, são necessárias leis rígidas e gerais, claras e certas, escritas para a visualização de todos – assim não existe a desculpa de ignorância destas. Embora a sociedade moderna viva um monismo jurídico, diferentemente de outras sociedades sem Estado – como se via na Idade Média -, ainda é possível perceber dentro do Estado moderno, pequenos universos de ordenamento jurídico. É pretensão excessiva do Estado crer que, mesmo com todo o poder adquirido ao longo da história, poderia “suf ocar uma dinâmica que é ligada às raízes mais profundas da sociedade e que se tornou costume” (pág.31). Dentro dessa globalidade, “existem comunidades que se auto-ordenam em nome de determinados valores, que têm regras, até mesmo códigos, até mesmo cortes judiciárias com pronunciamentos extremamente observados” (pág. 33). Estas não devem ser analisadas segundo os valores estatais, já que muitas vezes possuem valores distintos desses, e poderiam ser consideradas dignas de ignorância ou mesmo ilícitas – diante de um monismo jurídico, o diferente pode não ser bem aceito. “Eles devem ser observados pluralisticamente, o interior dos seus confins, e ressaltará assim o seu caráter de autêntico ordenamento jurídico” (pág.33). “Não há dúvida de que hoje o Estado está em crise, e está em crise o velho legalismo; não há igualmente dúvida de que um terreno eleito é exatamente aquele das fontes do direito, da produção jurídica.” (pág.34). Devido à impotência e ineficiência dos Estados, é possível perceber a formação de outros direitos, que não o oficial estatal. Há a necessidade de uma organização, que o Estado não consegue fornecer, em mundo de novas técnicas e economia. “É a assim chamada globalização jurídica”. A Vida do Direito De fato o direito, por determinar a ordenação humana, não pode ver-se separado da experiência histórica da mesma. Não se pode separar algo que é imprescindível às relações sociais. E assim como a humanidade vive sua história, o próprio direito também vive. “O direito não é nunca uma nuvem que flutua sobre uma paisagem
histórica. É ele mesmo paisagem, ou, se preferirmos, seu componente fundamental e tipificador” (pág.35). Fica claro, então, que o direito não é imutável, variando conforme o tempo e o espaço. Embora possamos pensar que em civilizações mais antigas ao império romano não existiu um direito propriamente dito, estudos revelam que já existiam “um corpo de normas, de práticas e de institutos marcados por alguma organicidade”. Não se podem desprezar essas culturas nesse quesito, mas será no direito romano que encontraremos realmente um aprofundamento do direito. “O mérito indiscutível da experiência cultural romana é de ter lido o mundo socioeconômico-político em termos jurídicos. Se, como já acenamos, no Mediterrâneo oriental e na Grécia começaram-se a traduzir as questões sociais em expressões jurídicas de institutos e normas, foi somente em Roma que o conjunto destas expressões transformou-se numa completa gramática na qual e com a qual foi possível ordenar e estabilizar a indocilidade dos fatos sociais e econômicos” (pág.38). Com a formação de uma gramática do direito, surge também aquele que nela trabalhará: o jurista. São eles, sobretudo, que participaram da formação da atividade doutrinária que era o direito. Os juristas romanos “não desdenharam a construção sistemática”. Enxergavam no sistema estabilidade e perpetuidade. Dessa ideia surgiram características que se propagaram nas sociedades futuras, como “aquela derivada do seu modo de propor -se como análise científica” e o “fato de os juristas romanos não terem sido personagens isolados de seu tempo, mas bem inseridos e envolvidos no tecido político romano e na sua classe dirigente” (pág.40). Mais tarde, a classe burguesa ascendente se utilizará desse suporte jurídico em sua também dominação econômica e política, embora a distância temporal seja grande. Já na Idade Média, o direito nasce e morre com a mesma. Ele “toma forma e se caracteriza em meio ao vazio estatal que se seguiu à queda do edifício político romano e àquele da refinada cultura jurídica estreitamente ligada às estruturas do edifício” (pág.43). São poucos os legisladores que participaram do desenho desse novo direito e, este se baseará principalmente nas experiências, na cultura, variando bastante ao longo do tempo e pelos espaços. Não deixando de lado, que a interpretação dos fatos era extremamente importante neste período. Na Idade Moderna, o Estado entra como sujeito extremamente indispensável. “O Príncipe se torna sempre mais legislador; consequentemente, o direito se torna sem mais legislativo” (pág. 49). È a partir deste momento que o Estado se apropria do direito,
tornando-se o único “sujeito histórico capaz de transforma em jurídica uma vaga regra social”. É surpreendente a maneira como este novo Estado burguês consegue, por meio do direito, fazer com que a sociedade creia no bem público, quando ele na verdade é o bem de poucos. A consciência coletiva é assim subjugada, bem como os próprios juristas. No cenário moderno destacam-se o ingleses. O traço mais peculiar do
civil law
common law
eo
common law,
dois sintagmas
é “que o direito seja coisa de juristas e
que não se pode ser senão a ordem dos juristas a fixa-lo e exprimi-lo, além de garantirlhe o desenvolvimento com relação às necessidades de uma sociedade e m crescimento” (pág. 55 e 56). Já o traço mais destacado do
civil law é
justamente a sua característica
estatalista e legalista. A civilização moderna sofre, no entanto, diversas dificuldades. Numa sociedade tão distinta, a ordem jurídica burguesa já não consegue suportar o choque de tantas lutas sociais. “A simplicidade da paisagem liberal -burguesa se esfumaça, e o Estado perde no direito a sua sombra perfeita e também a sua couraça protetora” (pág.58). Nada é tão perfeito que possa controlar tantas diferenças por meio de leis rígidas, sem particularidades. No mundo jurídico, os próprios juristas passam, de modo autônomo, a lutar por renovados instrumentos jurídicos, mais úteis à nova realidade. Não era possível que a sociedade mudasse, e os instrumentos jurídicos permanecessem iguais, relativos a uma época já ultrapassada. Assim, o direito vem reassumindo uma forma mais ativa e menos estatalista. Seria fácil crer que essa é a única questão enfrentada na modernidade. Ainda entra em discussão o direito natural, o qual possui a seu respeito grande divergência de opiniões. Muitos acham absurdo pensar que exista direito natural, sendo o homem um ser cultural. Segundo eles, haveria apenas um direito positivo, consolidando um monismo jurídico. Quando o direito positivo pode ser considerado até repugnante a uma consciência coletiva, por que não evocar a existência de um direito natural, mesmo que este seja mais vago? Embora muito seja discutido, o fato é que o poder e o direito – quando apropriado pelo Estado - nunca pertenceram a matriz popular. Mesmo o Estado moderno sendo liberal, era extremamente estatalista para esconder sua face elitista. Ou seja, era feito um grande controle social, para que a maior parte da população fosse excluída dos desenhos ordenador es da sociedade. Esse é o chamado “Estado de direito” ,
que usa as leis – e até mesmo a Constituição, a lei suprema -, não como forma de justiça, mas como forma até mesmo de limitação. O “Estado de direito” caracteriza-se por ser soberano; constituído de um Parlamento onisciente, onipotente e incontestável; é legalista e suportado no princípio da divisão dos três poderes; é um estado que protege os direitos individuais de liberdade – embora ele possa usar essa liberdade como limitação da população, como já foi dito acima. Há aí uma “supervalorização da lei, o culto da lei, o ordenamento jurídico reduzido a um conjunto de leis. [...] E o princípio da legalidade enquanto garantia suprema do cidadão, ao lado do princípio da certeza da lei” (pág. 85) . Essas garantias, embora não se percebesse, dependiam, na verdade, do arbítrio do jurista. Para que se possam discutir as manifestações do direito, é preciso falar de suas fontes jurídicas. Quando falamos destas, é necessário incluir, entre as mesmas, o costume. “ Nele a consciência coletiva reconhece um valor a ser conservado e observado” (pág. 91). Foi a partir disso que o direito nasceu. “No seu caráter elementar, o costume é a fonte que mais espelha o direito no seu estado de pureza originário” (pág. 92). Apesar de tudo isso, o costume será rebaixado em relação à lei, quando o direito é apropriado pelo Estado. O costume torna-se fonte do direito pelo fato de as leis serem manifestações à espera que a sociedade as viva, e o costume é justamente um fato que se manifesta no momento em que a sociedade o vive. O costume mostra-se tão importante que o primeiro aplicador do direito o segue antes de uma regra escrita. Esse primeiro aplicador é o chamado usuário. Já o aplicador por excelência, é o juiz ou o doutrinador. E o direito “consiste numa perene dialética entre “manifestante” e intérprete/aplicador, entre norma e experiência jurídica” (pág. 99). Em relação ao texto, atualmente busca-se uma compreensão do texto normativo e não somente seu seguimento, como se ele fosse independente do caso concreto que deveria ter disciplinado. “A atualidade mais substancial não é aquela do texto, mas aquela do intérprete/aplicador” (pág. 99). Não basta que um direito seja posto por uma autoridade, ele deve ser interpretado de forma que se encaixe na realidade da sociedade. A partir dessa nova era jurídica, a tarefa do jurista passa a ser mais trabalhosa, pois enquanto a lei era rígida e reduzida, tudo se tornava mais simples. Interpretar uma lei e saber aplica-la segundo uma determinada realidade é mais trabalhoso.
Para finalizar, destaca-se outro sentido da palavra direito. Não como um ordenamento social, mas de direitos, “como uma indicação plural que se refere às tantas situações jurídicas das quais o sujeito tem necessidade para viver totalmente a sua experiência jurídica e que merecem adequada – ainda que muito variada – proteção” (pág. 104). Uma forma de proteger o indivíduo e sua liberdade. No entanto, deve-se ressaltar que existem inúmeras relações intersubjetivas, e que junto aos inúmeros direitos existem inúmeros deveres competentes a nós.
Conclusão
O direito esteve presente na sociedade humana, desde quase seu surgimento. Mesmo que não estivesse na forma de leis positivadas, ele já participava da construção da história. Foi visto como fonte de poder e utilizado, inescrupulosamente, para o controle da sociedade. Algo que deveria estar em cada relação social ordenada, passou a ser utilizado para o controle excessivo. O autor deixa bem claro a forma como esse direito foi manipulado e apropriado pelo Estado. A população – que nunca participou do desenho do poder jurídico – sequer conseguia fazer algo contra essa usurpação do direito, por temê-lo. Não há como temer algo imprescindível à sociedade. O Estado, entretanto, conseguiu. Utilizando o direito para o seu poder, ele conseguiu amedrontar os homens comuns, impedindo que estes lutassem. E nem mesmo os juristas, que deveriam fazer algo para devolver o direito ao seu lugar de origem o faziam, por diversos motivos. Entre direito e direitos, é revelada boa parte da complexa questão jurídica. Qual o dever do direito? Como ele se manifesta e se manifestou ao longo da história? Como história viva, como ele vem se construindo? Todas essas perguntas são respondidas, de maneira que, se não clara, pelo menos instigava a pensar e buscar mais respostas. Com o livro Primeira Lição Sobre Direito, Paolo Grossi nos mostra parte da realidade jurídica e nos entrega à tarefa de resgatar a essência do direito. Se não formos nós a começarmos essa busca, quem o fará?