OSCAR CULLMANN
DAS ORIGENS DO
EVANGELHO À FORMAÇÃO FORMAÇÃO DA TE TEOL OLOG OGIA IA CRIS CRISTÃ
OSCAR CULLMAN
DAS ORIGENS DO EVANGELHO À FORMAÇÃO DA TEOLOGIA CRISTÃ Digitalizado por: jolosa
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O s c a r C u l l m a n n
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ÍNDICE GERAL Pág. INTRODUÇÃO ................................................................................ 7 1. A SIGNIFICA SIGNIFICAÇÃO ÇÃO DOS TEXTOS TEXTOS DE QUMRAN QUMR AN PARA O ESTUDO DAS ORIGENS CRISTÃS ................................. 9 A vida vi da ........................................................................................ 12 O pensamento .......................................................................... 13 2. A OPOSIÇÃO AO TEMPLO DE JERUSALÉM, MOTIVO COMUM DA TEOLOGIA JOANINA E DO MEIO AMBIENTE .......................................................... 29 3. SAMARIA E AS ORIGENS DA MISSÃO CRISTÃ............51 4. O CARÁTER ESCATOLÓGICO DO DEVER MISSIONÁRIO E DA CONSCIÊNCIA APOSTÓLICA DE PAULO ....................................................... ....................... 61 1. Crítica Crí tica das duas principais hipóteses hipótese s sobre o obstáculo obstác ulo de 2 Ts 2.6-7 ...................................................................... 63 2. Ponto de de partida e enunciado enunciado da solução solução p ro p o s ta ...........67 3. O “obstáculo” e a escatologia judaica.............................. 71 4. A pregação prega ção aos pagãos considerada como prelúdio da era messiânic mess iânicaa nos escritos do cristianismo cristian ismo primitivo, fora fo ra das epístola epíst olass paulina pau linass ................. ........................ ............ ............ ............. ............ ...... 78 5. O obstáculo e o caráter cará ter escatológic esca tológicoo do apostolado apostol ado de Paulo ..................................................................................... 83 5.
Eiõ E iõ e v K w e v n u 7 z e v a e v . A
VIDA DE JESUS, OBJETO DE “VISÃO” E DE “FÉ” SEGUNDO O QUARTO EVANGELHO .......................................................................... 93
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6. O RESGATE ANTECIPADO DO CORPO HUMANO SEGUNDO O NOVO TESTAMENTO ................................. 105 7. O BATISMO DE CRIANÇAS E A DOUTRINA BÍBLICA DO BATISMO ......................................................................... 117 1. O fundamento do batismo: a morte e ressurreição de Jesus Cristo ......................................................................... 118 2. O batismo, agregação ao corpo de C risto.......................129 3. O batismo e a f é ............................................................... 150 4. O batismo e a circuncisão................................................158 5. Conclusão ......................................................................... 171 6. Apêndice: Os indícios de uma antiga fórmula batismal no Novo Testamento........................................................... 172 8. IMORTALIDADE DA ALMA OU RESSURREIÇÃO DOS MORTOS? ..................................................................... 183 1. O último inimigo: a morte. Sócrates e Jesus........................185 2. O salário do pecado: a morte. Corpo e alma. Carne e espírito ............................................................................. 191 3. O primogênito dentre os mortos. Entre a ressurreição de Cristo e o aniquilamento da m orte........................................197 4. Os que dormem. Espírito Santo e estado intermediário dos mortos ......................................................................... 202 5. Conclusão ........................................................................... 208 9. DUAS MEDITAÇÕES BÍBLICAS........................................... 211 1. Meditação sobre 1 Co 1.10-13 ............................................. 211 2. Meditação sobre 1 Ts 5.19-21 ......................................... 215
ÍNDICE DE NOMES ..................................................................221
INTRODUÇÃO Nossa prim eira grande obra fo i aquela na qual consa gramos, há uns quarenta anos, as relações entre o gnosticismo e o judaismo-cristianismo (Le problème littéraire et historique du roman pseudo-clémentin. Paris, 1930,); a mais recente (Le salut dans 1’histoire. Neuchâtel, 1966) contém uma espécie de síntese da teo logia do Novo Testamento. Entre estes dois trabalhos, à primeira vista tão diferentes dado os seus respectivos objetos, publica mos, a par de outros livros, uma série de estudos especiais cuja aparição se dispõe ao longo de muitos anos e que tratam igual mente destes dois objetos; por um lado, as correntes particula res de certos meios cristãos dos primeiros tempos, se relacionam com um judaísmo mais ou menos esotérico que parece ser o ber ço do cristianismo; por outro, a elaboração de uma teologia cristã na qual encontramos os grandes temas dos escritos neo testamentários. Esta dupla classe de problemas concernentes à origem his tórica do cristianismo, e ao pensamento do Novo Testamento, continua preocupando-nos simultaneamente até hoje, e o p re sente volume é um testemunho claro desta simultaneidade. Porém, não terá esta dupla classe de problemas relação uma com a outra? Nós pensamos que sim. Os trabalhos reunidos nesta nova obra de “estudos bíblicos” p õ e em manifesto precisamen te o laço de união entre as duas: a evolução que vai das fontes do evangelho, desde as suas raízes mais distantes e anteriores à vinda de Jesus Cristo, até a fixação de uma teologia cristã. Temos acoplado, ao final do livro, duas meditações pronun ciadas na ocasião da abertura das reuniões anuais da Socieda de de Estudos do Novo Testamento em Lovaina (1964J e em Heidelberg (1965/ dada a importância que tem para nós a cola boração tão necessária entre os exegetas da Bíblia.
1 A SIGNIFICAÇÃO DOS TEXTOS DE QUMRAN PARA O ESTUDO DAS ORIGENS CRISTÃS Segundo o historiador Ernest Renan, o cristianismo, no prin cípio, não foi mais que uma forma de essenismo, “um essenismo que havia sobrevivido por longo tempo”. Na mesma linha de pensamento e a título de curiosidade, pode-se também mencionar o fato de que E. Schuré, autor dos Grands Irtitíes, sustentou, sem dar por outro lado prova alguma, a tese de que Jesus havia sido iniciado nas doutrinas secretas dos essênios. Com efeito, nem Renan nem Schuré tiveram conhecimento dos textos do Mar Morto. Certamente, já se sabia, pelas descrições de Josefo e de Filo, que os essênios possuíam doutrinas secretas e os manuscritos de Qumran o confirmam. Porém é cair em especulação desprovida de todo fundamento querer pretender que Jesus tenha sido, como membro da comunidade essênia, iniciado nestas doutrinas secretas. Nem no Novo Testamento nem nos escritos judaicos encontramos alusão alguma a tal coisa. E quanto à questão de saber se é possível - baseando-se nas afinidades que existem entre o pensamento essênio, agora melhor conhecido, e o ensino de Jesus - concluir indiretamente que Jesus tenha conhecido a doutrina da seita, teremos ocasião de voltar sobre isto mais adiante. De imediato, queremos insistir que é importante estabelecer uma distinção entre as duas seguintes questões: Jesus foi um essênio? Existe um laço entre os essênios e os primeiros cristãos? Na realidade, sempre se pensou - prescindindo do problema dos essênios - que o cristianismo primitivo fincava suas raízes, não no judaísmo oficial, mas em um meio judaico mais ou menos esotérico.
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Isto, por outro lado, não implica de nenhuma maneira que o cristianismo primitivo não tenha contribuído com algo essencialmente novo no que diz respeito as suas origens judaicas. Em nosso livro sobre as cartas Pseudo-Clementinas, escritos judaico-cristãos nos quais a parte arcaica (os Kerigmata Petrou) conservou antigos elementos do judaismo-cristianismo primitivo, sustentamos a tese de que elas continham, à margem do judaísmo, uma espécie de gnosticismo judaico que, à primeira vista, deveria ser considerado como o berço do cristianismo dos primeiros tempos1. Com efeito, sendo o fato de que este gnosticismo judaico já acusa uma influência helenistica, devemos considerar toda a questão das relações entre judaísmo e helenismo sob uma perspectiva completa mente diferente da costumeira. Antigamente, tão logo se descobriam influências helenísticas nos escritos do Novo Testamento, se concluia imediatamente que esses escritos deviam ser de redação recente. Este é o caso, em particular, do evangelho de João. Sob o pretexto da descoberta de elementos helenísticos neste Evangelho, deduziu-se que isto era a prova mais contundente de sua origem tardia. Na base desta conclusão inexata se encontra uma concepção, ao menos, demasiadamente esquemática das origens do cristianismo, a saber, a idéia de que em seus cgmeços, o cristianismo era simplesmente judaico e que só mais tarde se tomou helenístico. Este erro funda mental implicou toda uma série de outros erros, como por exemplo a suposição de que a heresia chamada gnóstica não havia aparecido senão mais tarde n®s meios helenísticos situados fora da Palestina. O fato de que o gnosticismo, ali onde nós o encontramos pela primei ra vez no Novo Testamento, se encontre em estreita relação com o judaísmo, prova que esta concepção é errônea. Houve um gnosticismo judaico antes do gnosticismo cristão, da mesma forma que houve um helenismo judaico antes de um helenismo cristão. A evolução geralmente admitida e que vai de um cristianismo judaico a um cristianismo helenístico universal ulterior, é um esquema artificial que não corresponde de modo algum à realidade histórica. Nós veremos, com efeito, que estas duas tendências existiram 1 O. CULLMANN, L e problè m e et histo riq ue du ro m an pseudoclé m enti n. Étude sur le rapport entre le gnosticisme et le judéo-christianisme. Paris, 1930.
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simultaneamente na Igreja primitiva e que a história do cristianismo primitivo é a interferência destas duas tendências, ambas presentes desde a origem na Igreja palestina. O fato de que o cristianismo palestino pôde adotar certos elementos helenísticos que ultrapassam os limites das fronteiras nacionais do judaísmo era conhecido antes do descobrimento dos novos textos, e estes últimos não fazem senão confirmá-los. Com eleito, graças ao descobrimento dos textos chamados “mandeos” e a sua publicação por M. Lidzbarski por volta de 1920, ficamos sabendo da existência de um movimento batista judeu pré-cristão, espalhado na Palestina e na Síria2, que deve ter, de uma maneira ou de outra, exercido alguma influência sobre os discípulos de João Batista como também sobre os de Jesus. Ademais, houve sem dúvida um laço entre o cristianismo primitivo e a literatura judaica tardia e um pouco esotérica de Enoque. Pois esta forma de esperança messiânica na qual a espera do filho do homem vindo sobre as nuvens situando-se em lugar da espera de um messias nacional judeu, se encontra somente na periferia do judaísmo e mais particularmente nos livros de Enoque. Pois bem, esta forma de esperança messiânica é a que encontramos nos evangelhos. Todavia, nos faltava até agora o ponto exterior de referência que nos permitisse estabelecer o laço de união entre o cristianismo primitivo e esta forma desviada de judaísmo. A seita dos essênios, agora melhor conhecida, nos oferece este ponto? A primeira vista, parece haver um analogia entre esta seita e o Novo Testamento, pois o “mestre de justiça” dos novos textos é objeto de uma veneração especial que parece conferir-lhe um caráter messiânico. Através do livro de Atos (cap. 5) e Josefo, sabemos que antes de Jesus, haviam homens como Judas e Teudas que arrogavam a si próprios um poder especial. E todavia, veremos que é precisamente neste ponto onde o cristianismo se diferencia das seitas judaicas. Ao nosso ver, não é na analogia entre o mestre de justiça e Jesus, nem na maneira como seus discípulos conceberam sua pessoa e sua obra, onde residem os pontos de contato entre os dois movimentos, mas, antes, nas outras doutrinas, e em primeiro lugar, 2 Cf. J. THO M AS, L e m ouvem en t b a p ü ste en P ale stin e et Syrie , 1935.
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na vida e organização das comunidades, ainda quando também aí encontramos diferenças. I
Falaremos antes de tudo, das afinidades e das diferenças que se manifestam na vida e na organização das comunidades. A vida
Em primeiro lugar, convém assinalar o nome que se dava à seita judaica. Ela levava, entre outros, o título de “nova aliança”. Em grego estas palavras eqüivalem a kainê diathêkê que por sua vez podem ser traduzidas por “Novo Testamento”. Encontra-se, também a expressão “os pobres” que, nestes textos, se converteram quase em um nome próprio para designar a este grupo3. Encontra-se, também este nome no Novo Testamento, na Epístola aos Romanos è aos Gálatas, para caracterizar os primeiros cristãos. Mais tarde, deve ter sido atribuído ao resto da comunidade de Jerusalém que toma o nome de ebionitas. Esta palavra “ebionita” significa precisamente “os pobres”. O banquete comunitário da seita de Qumran apresenta muitas analogias com a festa eucarística dos primeiros cristãos4. Tem caráter essencialmente sagrado e só depois de um noviciado, os novos membros tinham o direito de participar. Pronunciava-se uma benção sobre o pão e o vinho. É possível igualmente que os essênios tenham tido banquetes sem vinho5dos quais se encontram vestígios no “partir do pão” da Igreja primitiva. Um fragmento de Qumran, designado pelo nome de “fragmento das colunas”, faz alusão à presença do messias durante o banquete. Os banhos ou batismos, que se encontram no centro da vida cultural da seita judaica, diferem tanto do batismo cristão como do administrado por João, pois são repetidos. Todavia são, em certo 3 K. ELLIGER, Studien zum Habakuk-Kommentar vom Toten Meer, 1953, 222. 4 K. G. KUHN, Über der ursprünglichen Sinn des Abendmabls und sein Verháltnis zu den Gemeinschctftsmablen der Sektenschrift: EvTh (1951) 508 s. 5 Ver as frases alternativas no Manual de disciplina, Vi, 4-6, “pão ou vinho”; “pão e vinho”.
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sentido, paralelos pois servem de rito de iniciação: a primeira admissão a estes banhos era o sinal da entrada na comunidade. Segundo Josefo e os novos textos, a comunhão dos bens, regulamentada até em seus mínimos detalhes, é uma das caracte rísticas da ordem. O paralelismo com o cristianismo primitivo é aqui particularmente surpreendente. A pobreza como ideal religioso, se encontra tanto num como noutro grupo6. E todavia, sobre este ponto também é necessário sublinhar uma diferença importante: na seita essênia a comunhão dos bens é obrigatória e organizada. Os textos nos falam do ofício especial do administrador do bem comum. Pelo contrário, na Igreja primitiva, a comunhão dos bens era livre, tal como se deduz do livro de Atos. E considerada como uma obra do Espírito. Impulsionado pelo Espírito, o cristão deposita seus bens aos pés dos apóstolos. Esta é a razão porque Pedro qualifica de “mentira contra o Espírito” a astúcia de Ananias e Safira. O apóstolo lhes declara expressamente que poderiam guardar seus bens, porém que não deveriam pretender tê-los dado todos, enquanto que, secretamente, tivessem retido uma parte. Outro caso paralelo todavia é: o grupo dos doze apóstolos e dos sete helenistas que na organização da seita7é uma questão de doze mais três. Os três sacerdotes podem ter sua correspondência nas três “colunas” de G1 2.9 s.: Tiago, Cefas e João8. O pensamento
Se se quer comparar o pensamento dos dois grupos, é necessário levar em conta o Evangelho de João. Desde o princípio, se tem comprovado que, mais que os outros textos do Novo Testamento, este evangelho pertence a um ambiente ideológico estreitamente S. E. JOHNSON, The D ead Sea M anual o f Discipline and the jerusalem Church o f Acts: ZAW (1954) 110, reconhece todavia que, no manual de disciplina, a enfase é posta sobre a vid a com unitária e não so bre a pobreza enquanto tal. 7 Sobre a orga nizaç ão, ve r BO R EIC KE , D ie Verfassu ng d e r U rgenein de im L ic h te jiidscher D okum ente : ThZ (1954) 95 s., e J. DAN1ELOU, L a com m unauté de Qunrâm et Vorganization de VEglise ancienne: RHPR (1955) 104 s. Daniélou mostra que há uma semelhança entre as duas organizações na coexistência de instituição e de carismas. KS. E. JOHNSON, o. c., 111.
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aparentado com aquele dos novos textos9. 0 dualismo joanino da luz e das trevas, da vida e da morte, encontra seu paralelismo nos textos de Qumran. O prólogo do Evangelho tem sua correspondência em uma passagem da Regra (XI, 11) onde o pensamento divino aparece como mediador da criação. K. G. Kuhn, com razão, concluiu que as formas de pensamento da seita de Qumran são, por assim dizer, o terreno no qual o quarto evangelho finca suas raízes10. Evidentemente aí, também, há diferenças capitais em relação ao ensino essencial de Cristo. Devemos sublinhar sem descanso, por sua vez, as afinidades e as diferenças essenciais. Isto se aplica igualmente ao ensino de Jesus tal como nos é oferecido pelos sinópticos e que apresenta também muitos pontos de contato. A concepção de pecado e graça, nos novos textos, não é a dos fariseus, pois se aproxima mais do Novo Testamento. Há na regra semelhanças evidentes com o sermão do monte. O juízo de Jesus sobre o templo nos sinópticos - e referido por João sob uma forma todavia mais dura - corresponde à atitude dos essênios com relação ao ao templo e ao culto sacrificial". As diferenças são mais notáveis sobretudo em relação à atitude face à lei. A independência de Jesus face à lei não tem equivalente nos textos de Qumran. Enquanto que Jesus expressa claramente seu direito com autoridade, nas fortes antíteses do sermão da montanha (“eu porém vos digo...”), olhando acima da lei até em suas intenções, o mestre de justiça não oferece nada similar. Ao contrário, os novos textos são, de fato, a expressão mais característica da piedade legalista do judaísmo. O legalísmo é levado aos seus extremos. Basta comparar as palavras e atitudes de Jesus frente ao sábado com as regras sabáticas do manuscrito de Damasco (XI, 130). Não se poderia imaginar um contraste maior. ’ K. G. KUHN, D ie P alã stin a g efu ndenen hebrãis chen Texte u n d das N eu Testa m ent : ZThlrch (1950) 193 s. 10 Ib id . 11 Segundo FILO , Quod omnis probus liber, parágrafo 75, os essênios recusavam os sacrifícios de animais. Segundo um texto muito pouco claro de Josefo, Ant. XVIII, I, 5, os essênios enviavam presentes ao templo, porém não participavam do culto no templo. Os novos textos publicados até agora não contém passagens que recusem l d di ip li explicitamente o culto do templo. Todavia, cf. M IX, 3 s.
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Jesus recusa igualmente o ascetismo que era tão importan te para os essênios. Ele foi chamado “de comilão e de beberrão”. Ao mesmo tempo não quer saber nada de doutrinas secretas, pois ordena a seus discípulos proclamarem sobre os telhados o que ele os ensina. Isto é exatamente o contrário do que estava imposto aos membros da seita de Qumran. Também se encontram evidentes pontos de contato com o pen samento paulino. E é uma vez mais o lado anti-fariseu da teologia da seita que, até um certo ponto, concorda com a doutrina da justifica ção. No Comentário de Habacuque se encontra uma passagem que refere a justificação ao mestre de justiça sob uma forma quase idên tica a um texto decisivo de Paulo. As palavras bem conhecidas de 1labacuque, “o justo viverá pela fé”, são explicadas assim: “Isto signi fica que ele viverá pela fé no mestre de justiça”. Todavia, esta fé no mestre de justiça não é, como para Paulo, a fé em um ato de expiação pela morte de Cristo para o perdão dos pecados. Na realidade, o conceito de fé em si mesmo é diferente, pois não se encontra nele indício de uma oposição às obras da lei. E quanto às passagens éti cas ou parenéticas das cartas de Paulo e de outros escritos cristãos primitivos, estes oferecem os paralelos mais desconcertantes com os desenvolvimentos análogos em relação aos novos textos.
n E agora, como explicar a estreita afinidade e também as dife renças fundamentais que existem simultaneamente entre estes movi mentos? Antes de tudo, convém assinalar que um movimento pode muito bem relacionar-se com outro ao encontrarem-se ambos, ao mesmo tempo, em oposição evidente com um terceiro. Perguntamo-nos, em primeiro lugar, se é possível descobrir as provas de uma relação exte rior entre estes movimentos. Temos que notar que os essênios não são mencionados em nenhuma parte do Novo Testamento, enquanto que os fariseus e os saduceus figuram freqüentemente como adver sários. Porém, seria falso concluir que não pode existir nenhum con tato entre os essênios e os primeiros discípulos de Jesus. De fato, se tem sustentado totalmente o contrário, a saber, que se os essênios
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não são mencionados é precisamente porque os primeiros cristãos se encontravam em estreito contato com eles. Jesus e os apóstolos não tiveram necessidade de combatê-los pela simples razão de que eram muito próximos uns dos outros. É possível imaginar que, por meio de João Batista, o pensa mento e as práticas essênias tenham penetrado no cristianismo nas cente. Sabemos, com efeito, pelo Evangelho de João, que os primei ros discípulos de Jesus, tinham sido antes discípulos de João Batista. O mesmo Jesus parece ter sido no começo também seu discípulo. Porém, nem todos os discípulos de João seguiram a Jesus. Os Sinóp ticos nos referem que, durante o ministério de Jesus, existiu todavia um grupo de discípulos de João. E a literatura cristã primitiva nos revela ademais que, depois da morte de Cristo, esta seita do batista foi uma espécie de rival da Igreja primitiva12. Os escritos mandeos, sem dúvida posteriores, contém certamente muitos elementos anti gos13que se remontam a esta seita, a qual, depois da morte de Jesus, continuou considerando João Batista como o verdadeiro messias, e, por conseguinte, recusava-se a reconhecer a autoridade de Jesus (de fato, ela o acusou de ser um falso messias). Estas idéias devem ter alcançado uma ampla difusão nos meios onde o Evangelho de João foi redigido, pois este sublinha intencionalmente o fato de que João não era a luz, mas que tinha vindo para dar testemunho da luz que apareceu em Cristo. O prólogo do quarto evangelho combate implicitamente os discípulos do batista14, e se pode seguir esta tendên cia polêmica por todo o evangelho. Aos discípulos de João que afir mam a supremacia de seu mestre sobre Jesus baseando-se no fato de que este último tinha aparecido depois de João, o Evangelista respon de declarando que na realidade Jesus existia antes do Batista, posto que, desde o princípio, Ele existiu como Logos, junto a Deus15. 12 Especialmew nte Ps. Ciem. Rec. I, 54, 60. 13 H. LIETZM AN N, Sitzungsber, d. Berl. Ak. d. Wissensch, 1930, se nega a reconhecer a antiguidade das fontes a partir dos escritos m andeos (sobre tudo contra BU LTMA NN, D ie B edutuhg d e r N eurschlo ssenen M andãis chen Q uellen f ü r das Vers atã ndnis des J o h a n n e s -E v .: Z N W [ 1 9 2 5 ] 1 0 0 s . ? ) P o r é m , o s e s t u d o s m a i s r e c e n t e s t ê m confirmado o fato de que a literatura mandea contém materiais muito antigos. H W. BADENSPERGER, D e r P rolog des vie rte n E vangelium s, 1898. 15 Cf. O. CULLM AN N, H o opis o m ou erchom enos, em Festschrift für A. Fridrichsen. Coniectanea Neotestamentica, 1947, 26 s. As Pseudo-clementinas vâo mais longe
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Apesar desta argumentação, é exato concluir que houve uma comunidade de discípulos de João antes da comunidade de discípulos de Jesus, e que, segundo o Quarto Evangelho, Jesus e seus primeiros discípulos procedem do movimento batista. O discípulo anônimo de João (1.40) é um antigo discípulo do batista, o mesmo que André. E a julgar por Mt 11.11, o próprio Jesus seria considerado como um discípulo de João. Com efeito, nesta passagem que se traduz normalmente de uma maneira inexata, Jesus declara: “Aquele que é o menor (isto é, Jesus enquanto discípulo) é maior que ele (João Batista) no reino dos Céus”.16 Do que foi dito resulta que, se pudéssemos realmente estabe lecer um vínculo entre os essênios e os discípulos de João Batista, haveríamos de encontrar ao mesmo tempo um meio de união entre os essênios e os discípulos de Jesus. Porém, um vínculo tão direto não pode ser provado de maneira peremptória. O batismo de João difere daquele realizado pelos essênios, pois o dele não se adminis trava mais que uma só vez. Não obstante, tal como já mencionamos, a admissão ao batismo eqüivalia para os essênios à admissão em sua comunidade, isto é, assinalava a entrada do batizado na vida da comunidade. Existe então um paralelismo entre João Batista e os essênios; e o batismo de João pode muito bem ter sua origem no movimento batista já existente. Pode-se ver a confirmação disso no fato de que os escritos mandeos apresentam concepções análogas àquelas dos textos de Qumran17. Ademais, o Evangelho de Lucas nos refere que antes de começar a batizar, João vivia no deserto de Judá (3.2). Pois bem, neste deserto se encontra o convento dos essênios com suas cavernas. É praticamente impossível supor que João tenha podido viver ali sem entrar em contato com a seita. Se bem que se possa presumir que sem chegar a ser membro, ele tenha sido influenciado pela seita, ainda quando ele próprio tenha era sua polêm ica contra a seita tem um a atitude de recusa mais cristãos atacam o próp rio João mesma estirpe de Caim, Esaú e
16 Ibid.
de João Batista. Enquanto que o Q uartoEva voltada aos mem bros da seita, estes escritos juda i B atista, con siderand o-o com o um falso profeta da o Anticristo.
17 Falta todav ia uma com paração c om pleta dos escritos de Qum ran com a literatura mandea que nos seria muito útil.
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fundado um movimento messiânico independente. Outra afinidade com a seita aparece igualmente em seu ascetismo. Até mesmo a origem sacerdotal de João deve ser mencionada, se se pensa na importância dos sacerdotes na vida da seita18. Dizer algo mais sobre este fato particular, é muito difícil. De todas as maneiras, seria possível explicar a classe de influência indireta do essenismo sobre as origens do cristianismo. No momento de concluirmos esta exposição, sublinharemos um ponto particular que poderá ter sua importância até falarmos de outros contatos talvez mais diretos entre os essênios e os cristãos: por um lado, o interesse especial que o quarto evangelho mostra por João Batista e sua seita; por outro, o paralelismo entre as concepções deste Evangelho e as dos mandeos19. Este evangelho aparece pois como um elo possível na filiação: Qumran - João Batista - os primeiros cristãos. Sendo muito cautelosos, poderíamos talvez encontrar outro ponto de contato entre a seita e o cristianismo nascente. Sabemos que os essênios tinham uma colônia em Damasço. Sabemos igualmente, pelo próprio Paulo, que este, depois de sua conversão, permaneceu em Damasco. Não seria possível então supor que durante sua estadia nesta cidade, o apóstolo tenha tido contatos com os membros da seita? Não se podfe todavia responder com certeza a esta questão, e isto tanto menos pelo fato de que ignoramos o momento no qual os essênios tenham vindo à Damasco20. Parece-nos mais provável ter que buscar o ponto de encontro entre os essênios e os primeiros cristãos nos helenistas sobre os quais o livro de Atos faz menção. Esta hipótese é a que queremos sustentar neste artigo. Estes helenistas não seriam precisamente o elo que nos falta en tre os dois movimentos? Estes pertencem, desde o início, à primeira igreja palestina, não têm, pois, origem na diáspora. E quanto ao papel que desempenharam no começo do cristianismo, deve ter sido muito mais importante do que faz supor o livro de Atos. De fato, são os verda 18 Pod e-se tamb ém, quiça, citar o texto profético, “p reparai o caminho do senh or” , que se encontra em muitas passagens do M anual de dis cip lina. 19 R. BULT MA NN : ZNW (1 925) 100 s. 20 Cf. F. A. SCHILLING, Why did Paul go to D am ascusl : AnglThRev (1934) 199, e S. E. JOHNSON, o. c., 177.
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deiros fundadores da missão cristã, pois no momento da perseguição na qual Estevão perde a vida - perseguição dirigida contra estes e não contra os doze - começam a pregar o Evangelho em Samaria. E não foi Paulo o primeiro que introduziu o universalismo no cristianismo, mas foram antes dele os helenistas, de cujo grupo só conhecemos bem Estevão, que deve ter sido uma personalidade excepcional. Estes helenistas, o mesmo que os essênios, recusavam o culto do templo, e esta foi a razão pela qual foram muito depressa expulsos de Jerusalém. Os doze não estavam, sem dúvida, de acordo com estes sobre este ponto particular, senão não se compreenderia como puderam permanecer em Jerusalém depois de estalar a perseguição mencionada em At 8.1. Os helenistas foram rapidamente deixados de lado e desapa receram do livro de Atos. São encontrados somente em At 9.29, onde vemos Paulo discutir com estes, e em At 11.2, onde lemos que os helenistas de Chipre e de Cirene se dirigem aos helenistas de Antioquia21. Os outros escritos cristãos não fazem acerca deles men ção alguma, ao menos diretamente, e a razão é provavelmente que, à exceção do grupo joanino, os mais antigos escritos cristãos não se apoiam sobre o testemunho deles, mas sobre o testemunho dos doze. De maneira geral, considera-se os hellenistai de At 6.1 sim plesmente como os judeus que falam o grego; os hebraioi, em troca, judeus que falam aramaico. Porém, não temos nenhum documento que nos proporcione a prova de que esse é o sentido verdadeiro desta palavra. Hellenistai deriva do verbo hellenizein que não signi fica “falar grego”, mas antes “viver à maneira grega”. Por outro lado, estes não são originários da diáspora. Bamabé, que é chipriota, não é chamado helenista, como tão pouco Paulo e outros. Basta ler o livro de Foakes Jackson e Kirsopp Lake, The Beginnings of Chris tianity22 que trata esta questão em um apêndice, para dar-se conta da confusão dos estudiosos que intentaram definir o caráter preciso destes helenistas de At 6.1. Seja o que for, não se pode provar que a palavra hebraioi se refira à língua falada pelas pessoas designadas 21 Nas duas passagens, outros lêem H ellenes. 22 “Additional notes”, VII: The Hellenists, 59 s.
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com este nome. A questão está, então, em saber se estes helenistas não seriam os judeus diferentes do judaísmo oficial, com tendências mais ou menos esotéricas de origem sincrética. Por que os judeus teriam outro termo para designar esta tendência? Em um artigo anterior23 mostramos que o Quarto Evangelho se interessa particularmente pelos helenistas e por sua obra missio nária de pioneiros em Samaria. De fato, este Evangelho se propõe reabilitar os helenistas. Não podemos reproduzir aqui toda a argu mentação e remetemos o leitor a este artigo. Não aduziremos senão às conclusões que nos parecem mais apropriadas à nossa discussão. Em Jo 4.38, Jesus declara que não são os apóstolos, mas os outros • AAoi os que inauguraram a missão em Samaria e que, então, os apóstolos “ entraram” em seu trabalho. Esta situação cor responde exatamente ao relato de At 8 onde se refere que a missão em Samaria foi inaugurada pelos helenistas, especialmente por Filipe que pertencia ao grupo dos sete (estes exercem provavelmente o mesmo papel entre os helenistas que os doze na outra parte da comu nidade). Segundo At 8.14, depois da conversão dos samaritanos, os doze enviaram à Samaria Pedro e João que ratificaram, por assim dizer, esta conversão com a imposição das mãos. Estes “entraram” assim efetivamente no trabalho dos outros. Os outros de Jo 4.38, devem ser, por conseguinte, estes helenistas dos quais a maior parte são anônimos. Estes são os verdadeiros missionários de Samaria. Comprova-se com bastante freqüência que Lucas e o Quarto Evangelho utilizam as mesmas tradições. Assim não é de estranhar que, sobre este ponto, o Evangelho joanino siga a tradição lucana concernente ao laço que une os helenistas à Samaria, se bem que o livro de Atos minimize sua importância24. Porém, não sem razão, o Evangelho de João mostra um interesse especial pelos helenistas. Já temos feito constar que este evangelho parece ter estado em contato com a seita de João Batista à qual intenta combater. Agora podemos acrescentar que ele viu a luz nos círculos que, como minoria, se encontravam muito próximos aos helenistas. 23 An nuaire de l ’école des hautes études (1953-54). 24 Por outro lado, S. E. JOHNSON, o. c., 107, estudou a relação entre o livro de Atos e a seita de Qumran.
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Talvez devêssemos ir um pouco mais longe e nos perguntar se o pró prio autor não pertenceu ao grupo dos helenistas da Igreja primitiva25. Pois tal como já temos visto, de todos os escritos cristãos primi tivos, é justamente o quarto evangelho que apresenta uma afinidade mais estreita com os textos de Qumran. Tal é a conclusão à que tem chegado K. G. Kuhn pouco tempo depois do descobrimento dos rolos do Mar Morto26. Por outro lado, nós já sabíamos há algum tempo que este evangelho parece estar aparentado com outros escritos esotéricos judaicos tais como as Odes de Salomão e os textos rabínicos de caráter místico27. Portanto, é licito concluir que há um laço de afinidade primeira mente entre o quarto evangelho e os helenistas e, em segundo lugar, entre o quarto evangelho e a seita de Qumran. Todavia, nos falta encontrar o ponto capital e típico que seja comum, por sua vez, à seita de Qumran, aos helenistas e ao quarto evangelho. Já fizemos alusão a esse ponto: a oposição ao culto do templo. Esta oposição é o traço característico dos helenistas ao mesmo tempo que a causa do martírio de Estevão. Em seu discurso de Atos 7, Estevão faz um breve resumo da desobediência de Israel através de sua história. Esta desobediência obtém seu ponto culminante na construção do templo que é considerada como um ato da maior infidelidade28. Por esta mesma razão, os helenistas abandonam Jerusalém e se voltam " Na mesma ordem de idéias, pode-se perguntar se os “gregos” que querem ver a Jesus (Jo 12.20) não são outros senão os helenistas pré-cristãos. Em todo caso é signifi cativo que só o Quarto Evangelho mencione este incidente. Sem dúvida que se trata aqui de H e llen e s como em At 11.20 onde a maior parte dos manuscritos lêem a mesma palavra e onde muito bem parece se tratar de helenistas. O que nos faz pensar que Jo 12.20 diz respeito aos helenistas, é o fato de que estes “gregos” se dirigem a Felipe, que por sua vez se dirige a André antes de aproximarem-se com ele de Jesus. Pois bem, Felipe e André são, no grupo dos doze, os únicos que levam nomes gregos, e nós sabemos, por outro lado, que segundo o Quarto Evangelho, André ao menos tinha sido discípulo de João batista antes de seguir a Jesus. E curioso comprovar que ao contrário dos Sinópticos, o Quarto Evangelho faz, em intervalos, descrições detalhadas do papel exercido por estes dois discípulos. Não é pois impossível pensar que esses dois discípulos tenham estado em contato com os helenistas judeus, ou se até eles mesmos tenham formado parte pessoalmente desse movimento. K. G, KUHN, D ie in P a lã stin n a g e fu n d e n e n h e b r ã isc h e n Texíe u n d d a s N e u e Testament, 193 s. •' Cf. H. ODEBERG, The Fourth Gospel, 1929. •KS. E. JOHNSON, o. c., 113, menciona os paralelos interessantes entre o discurso de Estêvão e o M anual de dis cip li na.
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em direção aos samari-tanos que eram, também estes, opostos ao templo. E quanto aos essênios, sabemos que, sem irem tão longe como os helenistas, mani-festam com respeito ao templo uma atitude menos favorável que o conjunto do judaísmo29. Podemos comprovar que o evangelho de João se preocupa mais que os Sinópticos sobre a questão do templo. Por esta razão, já no prólogo, o Logos encarnado se contrapõe indiretamente à Shekina (doxaj de Deus no templo. Em vez do tabemáculo (skêné) ao qual a presença de Deus estava ligada e da qual faz alusão o versículo 14, se vê aparecer a pessoa de Jesus Cristo. Dai o verbo eskênosen: “ele tem plantado sua tenda entre nós e temos visto sua glória”. O final de Jo 1.51 nos revela que o ponto de encontro entre o céu e a terra não esta limitado a um lugar santo tal como Betei, sobre o qual se faz alusão nesta ocasião (sonho de Jacó), mas que se encontra a partir de agora na pessoa do filho do homem sobre o qual ascendem e descendem os anjos do céu. Este interesse particular pelo templo explica também porque o quarto evangelho, ao'contrário dos sinópticos, situa a cena da purificação bem no inicio do ministério de Jesus. E quanto às palavras relativas à destruição e a reconstrução do templo, elas não são postas na.boca de falsas testemunhas, senão na do próprio Jesus. Se se tem de crer na explicação que dá o evangelista, é o próprio Jesus quem, em seu corpo ressuscitado, substitui o templo. Este mesmo interesse que o evangelista mostra pelo problema do culto se encontra por todo seu livro. Em nossa obraZas sacrements dans Vevangile johannique tentamos demonstrar que o batismo e a eucaristia devem ser considerados como a linha mestra da descrição joanina da vida de Jesus. O Evangelho ilustra esta idéia: o culto em espírito e em verdade deve substituir o culto do templo. E não é uma simples coincidência que as palavras sobre o culto verdadeiro se encontrem precisamente no relato do diálogo com a samaritana. E este mesmo relato, por demais, o que contém a alusão aos helenistas, adversários do culto do templo que inauguraram a obra missionária em Samaria, região hostil ao templo de Jerusalém, desde há muito tempo. 29 No que diz respeito à atitude dos essênios com relação ao culto do templo, ver os textos mencionados na nota 11.
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Os paralelos entre o Quarto Evangelho e os textos de Qumran não se referem unicamente ao aspecto negativo do problema do culto (oposição ao templo), mas também à maneira como este culto se encontra substituído pelos batismos e os banquetes sagrados. Finalmente, é necessário mencionar o interesse joanino pelas festas do calendário judaico às quais Cristo dá uma significação nova. Um interesse análogo pelo calendário aparece igualmente nos textos de Qumran30. A existência de um laço entre os helenistas e o quarto evangelho, por um lado, e entre estes dois e o judaísmo esotérico, por outro, está confirmada pelo fato de que o título de “Filho do Homem” (sua aplicação a Jesus remonta ao próprio Jesus, porém este título foi rapidamente substituído pelo de “Cristo”) se encontra nos lugares seguintes: 1) no livro de Enoque, que poderia ter relação com o essenismo; 2) nas últimas palavras do helenista Estêvão (enquanto que nos 28 capítulos de seu livro, o autor de Atos não designa jamais a Jesus como o “Filho do Homem”); e 3) no Quarto Evangelho onde o título de “Filho do Homem”, todavia, é até mais importante que o de “Logos”31. O parentesco que comprovamos entre o pensamento dos essênios, os helenistas cristãos e o do quarto evangelho, nos permite supor que o grupo dos helenistas da Igreja primitiva de Jerusalém se encontrava em contato com a form a de judaísmo que encontramos nos textos de Qumran, da mesma forma que em livros de caráter similar tais como o de Enoque, o Testamento dos Doze Patriarcas e as Odes de Salomão que são do mesmo tipo que os manuscritos de Qumran. Nós não afirmamos de nenhum modo que os helenistas foram velhos essênios (o que não é impossível), mas que estes provêm de uma forma de judaísmo próxima a este grupo. Parece-nos importante fazer constar que o autor de Atos faz menção, justamente no capítulo 6 que fala dos helenistas, a numerosos “sacerdotes” que se têm unido à Igreja (v. 7). Sabemos, com efeito, que os membros da seita de Qumran eram sacerdotes. Cf. LUCETA MOWRY, The D ead Sea Scrolls and the Backgrou nd o f the Gospel o f Johtr. The Biblical Archacologist (1954) 78 s. 11 Este ponto foi desen vo lvido em nossa Cristologia do Novo Testamento, Editora Custom, p. 181.
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Por que se deu o nome de helenistas a este grupo da primeira comunidade cristã? Já fizemos alusão à dificuldade suscitada por esta questão. Todavia, ela parece menos grave se se leva em conta que não havia outro meio para designar àqueles que não pertenciam ao judaísmo oficial. Deram-lhes o nome de helenistas, porque não existia outro nome para caracterizar os representantes do que nós chamamos hoje de sincretismo helenista. Se existe um laço que une os essênios, os helenistas e o Quarto Evangelho, podemos compreender melhor porque se encontram, já no Novo Testamento, estas duas formas de cristianismo que são representadas pelos Sinópticos e o Quarto Evangelho. Pois não é possível, no que se segue, considerar a forma joanina como posterior e contestar sua origem palestina pela simples razão de que ela se distancia mais do judaísmo oficial que os sinópticos. Estes dois tipos de cristianismo existiram depois das origens porque ambos fundam suas raízes nas formas de judaísmo existentes na Palestina. Se conhecemos melhor a forma judaica tradicionaí é porque a outra tinha mais conteúdo de tendência esotérica. Os helenistas eram, aparentemente, a parte mais viva e mais interessante da Igreja primitiva de Jerusalém. . Outra questão se apresenta agora: é possível remontar esta mesma linha, para mais além da Igreja primitiva até a época do próprio Jesus? É muito difícil supor que só depois da morte de Cristo houve na Palestina helenistas para confessar seu nome. Visto que estes pertenceram à igreja desde os primeiros dias, é normal pensar que, ao menos, um certo número seguiu a Jesus durante sua vida. É possível dar um passo a mais e pretender que o próprio Jesus teve relação, de alguma maneira, com os Essênios? E a antiga hipótese - certamente falsa - segundo a qual ele teria sido um essênio, não poderia, ao menos conter, considerada à luz dos novos descobri mentos, uma parte de verdade? Devemos recordar aqui o princípio de interpretação que temos mencionado: um movimento pode muito bem nascer de outro e não obstante estar em oposição ao primeiro. É possível pois que, por João Batista, Jesus tenha tido conhecimento da seita dos Essênios e tenha tomado certos elementos de sua doutrina. Ele comparti lhou sua atitude com relação ao templo. Porém, as divergências
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predominam sobre as semelhanças, tal como já temos demonstrado no tratar outros pontos. No ensino de Jesus não se encontra o legalismo dos membros de Qumran; o sacerdócio não tem o papel nem ocupa o lugar que ocupava na seita (o mestre de justiça era sacerdote). O evangelho de Jesus não contém nenhum ascetismo nem nenhuma tendência esotérica. Porém, isto não é, todavia, o ponto mais importante. O que é decisivo é a consciência que Jesus tinha de sua missão. Atendo-se aos textos atualmente disponíveis, parece haver, neste aspecto, uma diferença fundamental. Durante sua vida, o mestre de justiça exerceu uma grande autoridade espiritual. Ele morreu e foi venerado depois de sua morte. Porém, foi morto como profeta. Ele pertence a estirpe dos profetas que sofreram por causa de sua mensagem. E a estes que Jesus faz alusão quando diz: “Jerusalém, Jerusalém que mata os profetas”. Porém, em nenhuma parte se diz claramente que o mestre de justiça tenha assumido o papel misterioso de servo de Iahvé que sofre substitutivamente pelos pecados do mundo. Os textos conhecidos até hoje não falam claramente de uma morte expiatória do mestre de justiça, ainda que os hinos que foram publicados contenham alusões verbais a Is. 53, e isto é, todavia, o aspecto mais importante da consciência que o próprio Jesus tem da obra a realizar. O fato de que o mestre de justiça tenha sofrido, padecido a morte por causa de sua atividade sacerdotal e profética, não poderia ser posto sobre o mesmo plano com a figu ra do Servo, que é uma relação consciente e fundamental em Jesus. O fato de que Jesus esperava p or sua vez voltar como Filho do Homem sobre as nuvens do céu (espera esta que o aproxima do livro de Enoque) e a sofrer como servo de Iahvé, é o que é novo e inédito. Temos visto que o Quarto Evangelho está aparentado por muitos lados com a seita de Qumran, e isto com toda a probabilidade por meio dos helenistas da Igreja primitiva. Também se compreende sem dificuldade que este Evangelho insista, por outro lado, nas diferenças profundas que separam os dois grupos e que se manifestam sobre o terreno da cristologia. Não é improvável que homens como o mestre de justiça sejam os que o Evangelho tem presente no capítulo 10, quando refere estas palavras de Jesus: “Todos os que vieram antes de mim são salteadores...” O versículo 18 é especialmente
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importante, no sentido de que estabelece uma clara distinção entre a obra de Jesus e aquela do profeta mártir: “Ninguém me tira a vida; eu a dou voluntariamente”. A insistência desta declaração parece ter por objeto opor claramente o sentido da morte de Jesus à outra concepção. Inevitavelmente, o mestre de justiça chamou a atenção sob este aspecto e os paralelos entre a seita essênia e o cristianismo parecem impor-se. Todavia, apesar de todos os pontos de contato históricos e teológicos, fica sempre uma diferença essencial; quanto à pessoa, o ensino e a obra de Jesus e, também, quanto ao papel atribuído a sua morte pelo pensamento teológico da Igreja primitiva. Não é por acaso significativo que Josefo e Filo tenham dado uma descrição detalhada dos essênios sem mencionar uma só vez o mestre de justiça? Sem o manuscrito de Damasco e os textos de Qumran, nós ignoraríamos absolutamente tudo o que diz respeito a este mestre essênio. Imaginemos em troca, que se poderia dizer do cristianismo primitivo sem se nomear a Cristo? Formular esta questão é já respondê-la! E isto prova que a pessoa do mestre de justiça não teve a mesma importância capital para a seita, que a que teve Jesus para o cristianismo primitivo; importância que em Jesus tem sua origem na consciência que Ele tem de sua missão. O mesmo sucede com a teologia paulina que, apesar de certos paralelos, é fundamentalmente diferente da dos textos de Qumran. Pode-se expor toda a doutrina dos essênios sem dizer uma só palavra sobre a morte do mestre de justiça. Porém, quanto à doutrina de Paulo, pelo contrário, é impossível fazê-lo sem atribuir o lugar central ao ato salvífico da morte expiatória de Cristo. Para Paulo, a fé é antes de tudo a fé neste ato expiatório realizado por outro. Esta diferença capital no terreno da cristologia nos leva a pôr em evidência outra originalidade importante da Igreja primitiva. A fé na obra expiatória de Cristo tem como conseqüência, a vinda do Espírito Santo na Igreja. E só em sua relação com o Espírito Santo, nós podemos compreender a comunhão, o culto, a comunhão de bens, enfim, todas as coisas que são manifestações características do Espírito. Em lugar do Espírito, a comunidade de Qumran tinha uma organização. A maneira como se administrava entre eles a comunhão de bens é somente um exemplo entre outros. A ação do Espírito na
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Igreja primitiva se fez possível em virtude de uma fé ardente na clicácia realmente salvifíca do que Jesus havia realizado pelo mundo. ( )s milagres de cura, o falar línguas, elementos que dão ao cristianismo primitivo seu caráter específico e sem os quais chegaria a ser desfigurado, não podem ser compreendidos de outra maneira. Não basta que a seita de Qumran tenha tido um mestre de justiça e escrito sobre o Espírito; o mestre e o Espírito não exerceram sobre o pensamento e a vida da comunidade essênia a mesma influência suprema que, no cristianismo, exerceu Jesus e o Espírito dado àqueles que crêem nEle. Esta impulsão soberana falta à seita de Qumran, e isto é o que explica porque os essênios deixaram de existir depois da guerra judaica no ano 7032, enquanto que o cristianismo, não somente pôde sobreviver a esta catástrofe, mas que, depois deste acontecimento, se expandiu de uma maneira, todavia, mais eficaz no mundo.
Sobre o desaparecimento da seita de Qumran, ou antes sobre sua retenção por parte do mo vimen to judaico -cristão, cf. nosso artigo D ie n e u e n td e c k le n Q um ra ntexte u n d d as j u d e n c h ri s te n t u m d e r P s e u d o k l e m e n t in e n , em N e u te sta m e n tlic h e Stu die n fü r R u d o lf B ulltm an n, 1954, 35 s.
2 A OPOSIÇÃO AO TEMPLO DE JERUSALÉM, MOTIVO COMUM DA TEOLOGIA JOANINA E DO MEIO AMBIENTE A historiografia das origens do cristianismo está dominada, desde há muito tempo, por um dogma científico do qual seria necessário libertá-la. A responsável é a chamada escola de Tubinga, inspirada na filosofia de Hegel. Segundo este dogma (esquema: tese - antítese síntese), existiria no princípio do cristianismo a comunidade de Jerusalém, inteiramente dominada pela teologia judaica e toda a esperança judaica; mais tarde, com o contato do mundo helenístico, teria surgido outro cristianismo: o pagão-cristão. O catolicismo representaria a síntese. É certo que todos os historiadores modernos que se ocupam do Novo Testamento têm o hábito de distanciaremse, em princípio, desta escola. Hoje em dia, é quase de bom tom recusar tudo o que há de esquemático e de exagerado nesta posição, li, todavia, quase todos os sábios modernos que se ocupam das origens do cristianismo conservam, ao menos, a tese geral desta escola segundo a qual não haveria, no cristianismo primitivo, mais que estas duas tendências: a judaico-cristã do primeiro momento, localizada na Palestina, e a pagã-cristã, nascida mais tarde e localizada fora da Palestina, no âmbito do helenismo1. Todas as grandes obras consagradas à história e ao pensamento dos primeiros cristãos estão dominadas por este esquema. E verdade 1 A única diferença no fundo é esta: enquan to que no passado se havia insistido, sobre tudo, 110 fato de que as duas tendências, sucedendo-se todavia, existiram simultaneamente e chocaram-se efetivamente em seu encontro histórico, hoje, sem negar esta simultaneidade, tem-se mostrado, porém, como uma foi modificada deixando lugar à outra.
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que W. Bousset e R. Bultmann têm o mérito de terem demonstrado em suas obras a existência de um movimento de pensamento oriental helenista, ao que chamam de gnosticismo pré-cristão no qual admitem uma influência sobre o judaísmo anterior ao cristianismo, porém sua maneira geral de apresentar o desenvolvimento, sobretudo das idéias teológicas do cristianismo primitivo está, apesar de tudo, dominada inteiramente por esta perspectiva: primeiro cristianismo judaico na Palestina, logo em seguida cristianismo helenizado fora da Palestina. Ali concepção acerca da origem do evangelho de João é a que mais sofre desta concepção esquemática. É verdade que o comentário de Bultmann2e também o de Barret3levam em grande consideração o sincretismo espalhado na Síria e na Palestina. Porém, enquanto se mantenha a seguinte alternativa: judaismo-cristianismo da comunidade prim itiva - cristianismo-helenístico das igrejas missionárias é necessário enquadrar o evangelho de João no segundo, fazendo com que persista o chamado enigma joanino. O enigma consiste em que o cristianismo que nos dá a conhe cer o quarto evangelho, difere do cristianismo dos sinópticos e das Epístolas de Paulo. O esquema: judaismo-cristianismo palestinense -paganismo-cristianismo do mundo helenístico não permite resolver o enigma. Precisamente o evangelho»joanino contém incontestavelmente elementos helenísticos, e, ao mesmo tempo, está muito apa rentado precisamente com as correntes judaica e judaica-cristã da Palestina que nós conhecemos bem, graças aos recentes descobri mentos. Este tipo de cristianismo, por conseguinte, não surgiu somen te numa época tardia, porém deve ter coexistido com o tipo mais conhecido, representado pelos Evangelhos Sinópticos. Estes dois tipos de cristianismo devem remontar ambos às próprias origens do cristianismo palestino. Veremos que correspondem a dois tipos de judaismo existentes na palestina da época de Jesus. O judaismo palestino da época do Novo Testamento não teria a homogeneidade que nós pudessemos crer. Havia, no final do primeiro século, na Pales tina de um lado o judaismo oficial e de outro um judaismo mais ou menos esotérico que já continha os elementos helenísticos. Portanto, 2R. BULTMANN, D as E v a n g e liu m des Joh an nes, 1941. 3 C. K. BARRET, The Gospel According to St John, 1955.
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também para o judaismo é falso distinguir somente o judaismo pales tino e o judaismo helenístico da diáspora. O judaismo palestino não tem esse dom homogêneo que se havia pensado. Os dois tipos de cristianismo primitivo da Palestina correspondem a dois tipos de judaismo pales-tino. Desde há muito tempo, e já independentemente dos desco brimentos de Qumran, se tem admitido que o cristianismo poderia se relacionar não com o judaismo oficial, mas antes com uma ramificação mais ou menos esotérica do judaismo palestino do final do primeiro século a.C., porém nunca se deduziu as conseqüências que implica esta comprovação na representação das origens do cristianismo. Já no meu livro sobre as Pseudo-Clementinas, sustento, há uns trinta anos, a tese segundo a qual à margem do judaismo teria existido na Palestina (insisto ali neste fato) uma espécie de gnosticismo judaico4 que se pode considerar como o berço do cristianismo5. No passado se pensou que o gnosticismo havia entrado em contato com o cristianismo mais tarde, no quadro do helenismo pagão, fora da Palestina. Porém, existiu um gnosticismo judaico muito tempo antes de um gnosticismo cristão. Nós hoje podemos comprová-lo pelo fato da existência dos textos descobertos em Qumran. Sob este aspecto, a conclusão que deduzi da existência de um /«da/smo-cristianismo com tendência gnóstica muito antigo se encontra confirmada: o cristianismo primitivo parece enraizar-se no judaísmo que, por falta de uma expressão melhor, chamarei “esotérico”. Não penso que a tese de Del Medico6, Cecil Roth7e Driver8tenham alterado a tese 1O empregar o termo “gnosticismo” ou não, parece-me um jogo de palavras. Em todo caso, é arbitrário restringir o termo só aos sistemas nos quais aparece o mito do salvador divino que, descendo sobre a terra salvando-se a si mesmo, salva aos outros por sua ascensão. O g nostic ism o não é um m ovim ento de conto rnos bem delim ita dos. É um fenômeno sincretista, e quando se intenta eleger mais ou menos arbitrari amente um dos múltiplos aspectos para descrevê-lo como o único elemento distintivo legítimo, se faz violência à complexidade da realidade histórica. Por falta de um termo melhor, é necessário continuar empregando o termo “gnosticismo”. ' O. CULLMANN, L e p ro b lè m e li ttèra ire et his toriq u e du rom an p seud o-clé m entin . Étude sur le rapport entre le gnosticisme et le judéo-christianisme. Paris, 1930. " H. E. DEL MEDICO, L 'é n ig m e des m anuscrits d e Ia m er M orí. Paris, 1957. C. ROTH, L e p o in t de vu e de l'his to rie n sur les m anuscrits de la m er Morte: Evidences 65 (1957) 37 s. “ G. R. DRIVER, The H ebrew Scrolls from the Neighbourhood o f Jericho an d the De ad Sea. 1951; H eb rew Scrolls: JournThSt, 17 s.
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original adotada pela grande maioria dos sábios competentes, tais como o P. de Vaux, Kuhn, Dupont-Sommer, Brownlee e Burrows, segundo a qual a seita de Qumran representa um grupo judeu aparentado (se não idêntico) com os essênios descrito por Josefo e Filo. Esta tese da existência de um judaísmo esotérico, confirmada hoje em dia, é de um grande valor para a compreensão do cristianismo primitivo. Desde o momento em que este gnosticismo judeu já denota uma influência helenística ou sincretista, todo o problema da relação entre judaísmo e helenismo, entre judaismo-cristianismo e paganismocristianismo, deve ser colocada de maneira diferente da habitual. Até agora, ao se encontrar em um escrito do Novo Testamen to influências helenísticas, se concluía quase automaticamente que o escrito em questão deveria ser de origem tardia. Isto concerne sobretudo ao evangelho de João. Não se pode negar que contenha elementos helenísticos (ao lado de elementos judaicos que se com provam até na língua do evangelho que contém numerosos arameismos)9. Converteu-se em um dogma científico -que, por causa dos elementos helenísticos, a origem do evangelho de João deveria ser buscada distante da esfera palestinense situando-o num movimento relativamente recente; a influência do helenismo sobre o cristianis mo não é concebível, segundo esta opinião, senão em um época bas tante distante das origens. Esforcei-me, ademais, por demonstrar que o evangelho joanino finca suas raízes neste judaísmo esotérico. Não poderei repetir aqui todos os pontos desta demonstração. J. A. T. Robinson mostrou a relação entre o quarto evangelho e João Batis ta10. Odeberg o relaciona com um certo misticismo judeu11. Kuhn pôs em relevo a relação entre o evangelho joanino e Qumran,12e F. M. Braun à completou13. Esforçar-me-ei sobretudo por mostrar que 9 Cf. A. SC HL AT TE R, D ie Sprache u n d H eim a t des vie rte n E vangeiiste n, 1902. Cf. também C. F. BURNEY, The Aram aic Origin o f the Fourth Gospel, 1922, e C. C. TORREY, The aramaic Origin o f the Gospel o f Jo hn : HarvardThRev 16 (1923) 305 s. 10 J. A. T. ROBINSON, The Baptism o f Joh n the Qum rân Com munity. HarvardThRev (1957) 181 s. 11 H. OD EBE RG, The Fourth gospel, 1929. 12 K. G. KU HN , D ie in P alã stin a gefu nden hebráis chen Text u n d das N eue Testament: ZThlrche (1950) 194 s. 13 F. M. BR A UN , L ’a rrière -fo n d ju d a iq u e du qu a trièm e éva n g ile e t la C om m unauté de 1’alliance : RevBibl 62 (1955) 5 s.
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0 cristianismo joanino não é, no interior do cristianismo primitivo, esse fenômeno isolado que se tem pensado, mas que, pelo contrário, exis te, por exemplo, um forte parentesco entre o grupo joanino e o grupo de Estevão denominado os helenistas palestinenses dos quais fala o livro de Atos, tanto quanto entre o grupo joanino e o meio de onde saiu a Epístola aos Hebreus. Para provar que há aí todo um movimento de pensamento comum, me esforçarei por pôr em evidência que não somente essas correntes do cristianismo primitivo (joanino, grupo de Estevão, Hebreus) formam uma certa unidade entre si, mas que cada uma delas está em estreita relação com esse judaísmo ambiental que eu chamo de judaísmo-esotérico. A demonstração deverá então ser feita em três movimentos, por assim dizer: 1. demonstração de uma relação do joanismo com o grupo de Estevão (os helenistas); 2. demonstração de uma relação do joanismo com o judaísmo esotérico; 3. demonstração de uma relação do grupo de Estevão (os helenistas de Atos) com o judaísmo esotérico. Existe então uma espécie de relação triangular, cujo esquema seria este: judaísmo esotérico
joanism o ____________ grupo de Estevão Na realidade, as relações são todavia mais complexas; pois seria necessário distinguir diferentes correntes no interior do judaísmo esotérico em que cada qual se encontre precisamente com o joanismo e com o helenismo de Atos. Aqui limitar-me-ei a uma só questão: a atitude em relação ao templo, para provar a relação triangular que me interessa estabele cer. A relação que eu creio comprovar aqui me parece confirmar a
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tese segundo a qual a corrente joanina representa, no interior do cristianismo primitivo, uma corrente palestina ju daica diferente da quela que se aproxima da corrente sinóptica. Começarei por uma distinção que o próprio livro de Atos faz entre as duas correntes existentes no cristianismo primitivo de Jerusalém, distinção entre hebreus e helenistas que deve haver existido já no judaísmo palestino. Não vou entrar aqui nos detalhes de todas as questões relacionadas a este grupo de Estevão. Enfocarei sobretudo o ângulo de sua atitude com relação ao templo. Comprovamos, com efeito, que no interior do cristianismo pri mitivo da Palestina, este grupo particular apresenta uma matiz nitida mente diferente do tipo de cristianismo que nós conhecemos pelos Evangelhos Sinópticos. E todavia não é o paulinismo o que temos aqui. Que Estevão e os seus representam um tipo à parte, se depreende já do modo de proceder dos judeus que não lhes reserva ram a mesma sorte reservada aos outros cristãos de Jerusalém. Estes helenistas são perseguidos. Atos 8.1 nos diz expressamente que estes devem abandonar Jerusalém enquanto que os outros podem permanecer. Este tipo de cristianismo representado por Estevão e seus partidários é encontradô então na própria Palestina. E verdade que o livro de Atos os denomina “helenistas”, e este termo desafortu nadamente se presta à confusão. Geralmente, se tem pensado que estes • fsAÂrçvtara^de Atos 6, eram simplesmente judeus que fala vam grego, como os • Efip ai• oi teriam sido os judeus que falavam aramaico. Todavia não temos nenhum documento que ateste esta signi ficação do termo. A palavra se deriva do verbo •ÀArçv^feiv que não significa precisamente falar grego, mas viver à maneira dos gregos. O elemento constitutivo deste grupo não é o fato de que muitos sejam originários da diáspora ou que sejam prosélitos, como se tem dito freqüentemente. O fato de que um só dos sete, Nicolau, seja chamado prosélito prova precisamente que os outros não o são e que isto não é, em todo caso aí, o sinal distintivo desse grupo. Em Atos 11.20, se diz que muitos deles são da diáspora; porém, isto não é o elemento constitutivo. Bamabé que vem de Chipre e que pertence também à comunidade de Jerusalém não é chamado “helenista”; ao apóstolo Paulo a quem se deveria aplicar portanto este recurso, se se quisesse indicar sua proveniência da diáspora, não se lhe chama jamais
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"helenista”. Para dar-se conta da confusão das críticas ávidas em explicar o que eram exatamente os helenistas da comunidade primitiva de Jerusalém, basta ler o excursus em Foakes Jackson - K. Lake, Tha Beginning of Christianity14consagrado a esta questão. Os “helenistas” devem ter existido como grupo ou haver formado parte de um grupo no interior do judaísmo. Então, é necessário perguntar-se se não se trata de um grupo de antigos judeus diferentes do judaísmo oficial e representante das tendências mais ou menos esotéricas de proveniência sincrética. Muitos destes, sem dúvida, podiam ser originários da diáspora, porém isto não parece ser o elemento distintivo do grupo. O autor de Atos não teria à disposição um termo mais apropriado para designá-los coletivamente. Sendo o futo de que este judaísmo apresentava elementos sincretistas e continha elementos de origem estrangeira, os denomina, por falta de um termo melhor, helenistas. Não esqueçamos que •• kXr\veç era freqüentemente o termo com o qual os judeus designavam todo aquele que não era judeu. Nós mesmos não encontramos um termo que englobe todas estas tendências judaicas que tenho denominado igualmente por falta de um termo melhor - “esotéricas”. Não demos demasiada importância ao termo: o que importa são as idéias e a história do grupo. Infelizmente, Estevão não deixou nenhum escrito. É pois difícil fazermos uma idéia precisa das idéias teológicas deste grupo tão importante da comunidade primitiva. Não temos mais que o discurso de Estevão, Atos 7, e nos discursos do livro de Atos comprovamos de maneira simples e necessariamente, a influência das idéias de Lucas que os refere e que não pertence a este meio. Todavia, o discurso de Estevão contém idéias tão caracte rísticas e que diferem totalmente das outras idéias do livro de Atos que é necessário admitir que o autor utiliza aqui uma fonte direta pro veniente deste grupo15. 11 Tom o V, 1933, 59 s. " M. DIBELIUS, A ufs átze zu r A p oste lg esch ic hte , 1951, 143 s. e E. HAECHEN, D ie A poste lg eschic hte , 1956, 243 s., negam todo o valor documental a este discurso. E. TROCME, Le “livre des A c te s" et l'H is to ir e, 1957, 213, sem ir tão longe se mostra mais céptico; sobretudo no que diz respeito ao pensamento diretriz. BO REICKE, G l a ub e n u n d L e h e n d e r U r g e m e in d e , 1957, 131, manifesta com razâo o a p r i o i inadmissível segundo o qual o autor do livro de Atos não haveria se sentido mal em até adaptar o discurso à situação do relato.
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Um autor holandês16mostrou os paralelos entre este discurso e a regra de Qumran. Os detalhes e sobretudo a intenção geral da exposição de Estevão, que é a de mostrar que os judeus sempre resistiram à lei divina, se encontram na seita de Qumran, que em uma perspectiva análoga vê os dois espíritos atuando em Israel17. Nós falaremos em seguida do que Estevão considera como o ápice da resistência judaica ao Espírito: a construção do templo. Por esta recusa do templo, Estevão preconiza implicitamente - logo o veremos - um culto em espírito onde o templo é a comunidade. Veremos também que esta atitude radical com respeito ao templo e os sacrifícios, sem ser aquela da seita de Qumran, é todavia nitidamente preparada por ela. Podemos mencionar aqui, ademais, o fato de que Estevão chame Jesus de Filho do Homem, noção corrente no judaísmo esotérico18. Parece, pois, haver uma relação entre Estevão e seu grupo por um lado e certas correntes do judaísmo e.sotérico por outro. Existirá (independentemente da questão do templo que falaremos em seguida) também uma relação entre o cristianismo joanino e Estevão com os seus? À primeira vista, se pôderia sentir a tentação de responder negativamente. E, todavia, a relação me parece aqui particularmente estreita. No capítulo seguinte19intentarei demonstrar que o evange lho joanino se interessa de maneira particular por estes helenistas, ainda mais, se esforça, por assim dizer, por reabilitar estes helenistas e fazer-lhes a justiça que lhes é devida. Pois foram esquecidos rela tivamente depressa, e nós comprovamos as conseqüências até na historiografia moderna. O evangelho joanino os reabilita. Eu penso que tal é o sentido de Jo 4.38, passagem do relato joanino sobre o diálogo da samaritana tão difícil de explicar: Jesus insiste no fato de 16 A. F. J. K.LIJN, Stephen ’s Speech - Acts VII, 2.53: NTS 4 (1957) 25 s. 17 Os filhos da luz estão sustentado s pelos anjos (I QS III, 24), da mesm a ma neira que segundo o discurso de Estevão os anjos intervém no momento decisivo no qual Deus se revelou a seu povo (At 7.30,35,38,53), porém de uma parte e da outra um povo de dura cerviz que desobedece. 18 O. CU LLM AN N, Cristologia do Novo Testamento, Editora Custom, pp. 2l8ss. 19 La S am arie et les org ines de Ia m ission c hrétienne. Qui sont les “alloi” de Jean 3.38?: Annuaire 1953-54 de 1’Ecole Pratique des Hautes Études, Paris, 3 s. Cf. mais a frente o capítulo 3, pp. 51-59.
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que, não os doze, senão os outros (*AAoi) fundaram a missão em Samaria e que os apóstolos entraram somente depois no trabalho dos • kXoi. O contexto relata o encontro de Jesus com a samaritana. Sua conversão lhe apresenta, por um lado, a ocasião de falar do verdadeiro culto “em espírito e em verdade” oposto, por sua vez, ao culto judaico oficial do templo de Jerusalém e ao culto samaritano de (icrazim; por outro lado, lhe apresenta a ocasião de falar do funda mento da missão em Samaria. Esta obra missionária era considerada por muitos cristãos como problemática neste país semi-judeu, tanto mais que os adversários desta missão criam, sem dúvida, poder basea rem-se sobre uma frase de Jesus que encontramos em Mt 10.5, “não entreis em nenhuma cidade de Samaria”. O Quarto Evangelho quer mostrar que Jesus queria a missão em Samaria da qual Ele tinha lan çado as bases junto ao poço de Jacó, inaugurada pelos helenistas. Mas os versículos que nos interessa de momento se encon tram no epílogo do relato, os v. 31 s.; Jesus emprega as imagens do campo, da semeadura, da ceifa. Estas imagens se aplicam à missão. Está dito (v. 36b) que aquele que semeia e aquele que ceifa se ale grem juntamente. Porém, o v. 37 acrescenta que o provérbio tem razão ao dizer que “um é o que semeia e outro é o que ceifa”. Diz a verdade, na condição de que não se esqueça o que declara os versí culos precedentes, a saber, que é ninguém menos que Cristo quem se encontra atrás daqueles que recolhem em Samaria. Segue o v. 3Kb que concerne diretamente a nossa questão: os outros realiza ram o trabalho árduo e vós (os doze) viestes a usufruir do tra balho deles. Logo, entre o Cristo que semeia e os apóstolos que
ceifam em Samaria, uma terceira categoria se introduz: os outros que trabalharam em Samaria antes dos apóstolos. Quem são estes • kXoil Pode se tratar, segundo o contexto que fala da missão em Samaria, unicamente dos missionários que em Samaria abriram o caminho aos apóstolos. Estou convencido de que o livro de Atos nos dá a resposta. O capítulo 8 refere que a obra missionária em Samaria foi inaugurada pelos helenistas, em particular por Felipe, um dos sete, e que somente depois os apóstolos Pedro e João “entraram” em seu campo de trabalho. Temos aqui o que lemos em (8.14): “Os apóstolos que estavam em Jerusalém ao saberem que Samaria havia recebido a
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Palavra de Deus, lhes enviaram Pedro e João”. Estes dois apóstolos não fizeram mais que “ceifar” em Samaria onde o verdadeiro trabalho foi realizado pelos • kXoi, os helenistas partidários de Estevão, cuja maior parte era anônima. O autor do evangelho joanino se interessa particularmente por esses primeiros valentes missionários de Samaria. Ele lhes rende a honra que lhes é devida sublinhando seu papel de iniciadores da pregação do evangelho entre os samaritanos que recusam o culto do templo como eles. Interessa-se por seu trabalho, e se interessa pelo país onde trabalharam. Temos aqui porque é o único que faz referência à tradição relativa ao encontro de Jesus com a samaritana, encontro que prefigura a futura missão. Este interesse não pode ser explicado a não ser se considerar mos o fato de haver entre nosso autor e estes helenistas uma relação muito estreita, ou em outras palavras: entre os helenistas e o grupo joanino. Este grupo joanino deve ter mantido, por um lado, alguma relação com Qumran e com João Batista, e, por outro, com o grupo de Estevão. Isto é o mínimo que se pode dizer. Porém, talvez possa mos ser mais atrevidos e propor a questão (eu reconheço que é uma hipótese!): o autor do evangelho jbanino, provavelmente antigo discí pulo de João Batista, não pertenceria, ele próprio, a este grupo da comunidade de Jerusalém ao qual pertencia Estevão? Eu não me atreveria a ir tão longe se a idéia essencial do discurso de Estevão não fosse, como vou mostrar, uma idéia essen cial também para o evangelho joanino: a oposição ao culto do tem plo, ou, melhor dizendo, a espiritualizarão do culto do templo. Mas, perguntemos antes de tudo se esta oposição ao templo pode ser seguida igualmente até esse judaísmo esotérico no qual este ramo tão importante do cristianismo primitivo finca suas raízes. Nós podemos encontrar naturalmente traços de uma atitude crítica com relação a uma superestimação do templo e dos sacrifícios nos profetas do Antigo Testamento. Os profetas já tendem a espiritualizar o culto do templo. Estevão mesmo cita a Is 66.1: “O céu é meu trono, e a terra é estrado de meus pés: que templo podereis construir-me?” A passagem de Am 5.25-27 citada tanto no escrito de Damasco como nos textos de Qumran e no discurso de Estevão, certamente com uma intenção diferente em cada lugar, ataca também aos sacrifícios.
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Porém, é evidente que Estevão vai muito mais longe em sua recusa ao templo que os profetas. Situa a construção do templo sobre o mesmo plano das infidelidades de Israel resistindo ao Espírito Santo, que a fabricação do bezerro de ouro! Idéia singularmente atrevida! Hsta polêmica se encontra na seita de Qumran? Se colocarmos a questão desta forma, é necessário responder provavelmente com um não. Por outro lado, se perguntarmos: foi preparada pela atitu de da seita de Qumran? Seria necessário responder com um sim. É possível também que esta seita, que estava na impossibilidade de seguir o culto do templo de Jerusalém, posto que recusava em todo caso seu sacerdócio, não tenha professado sempre as mesmas idéias a este respeito. O escrito de Damasco (11.19 s.) condena somente os sacrifícios oferecidos em estado de impureza. Porém, outra passagem (6.11-14) vai mais longe. E de maneira contrária, a passagem da Regra (9.3 s.), que se cita freqüentemente para apoiar a idéia de que “a expiação está assegurada por uma conduta irreprovável mais que pela carne dos holocaustos e a gordura do sacrifício” (idéia que por demais não superaria facilmente a polêmica dos profetas do Antigo Testamento), deve ser traduzida provavelmente de outra maneira, a saber: “A expiação está assegurada a partir (= pela) da carne dos holocaustos e da gordura dos sacrifícios”20. Então esta passagem estaria dizendo, ao contrário, que os sacrifícios são em princípio necessários, e esta interpretação parece confirmada pelo escrito intitulado Guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas 2.5 6 e 7.11, que dá instruções precisas sobre o culto ideal, a maneira como os sacrifícios devem ser oferecidos e sobre a vestimenta sacerdotal. A mesma coisa nos dão os fragmentos aramaicos encontrados na gruta 221segundo a interpretação mais imposta; uma descrição da Nova Jerusalém análoga à de Ezequiel, de onde o profeta nos refere as revelações recebidas em uma visão sobre o futuro do templo. A não ser que se interprete alegoricamente esta descrição, o que não " J. T. MILIK, Verbum Domini, 1951, 151; J. CARMIGNAC, L ’util ité ou 1'inutilité dês sacrifiques sanglants dans la Règle de la communauté de Qumrân : RevBibl (1956) 524 s. M. BAILLET, Fragments araméens de Qumrân 2. Description de la Jérusalem nouvelle : RevBibl (1955) 222 s.
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é muito verossímil, é jprovável que os homens de Qumran tivessem consciência de representarem o verdadeiro sacerdócio, esperando no futuro o restabeleciimento do verdadeiro culto que seria assegurado por eles mesmos, saccerdócio genuíno, no templo de Jerusalém. Provavelmente considleravam, em todo caso e em certos momentos, sua separação de Jerusalém e de seu culto como passageiro. Assim se explicaria a que se2 refere Josefo em uma passagem, por certo não muito clara (Ant 118. 1-5), segundo a qual os essênios enviavam as oferendas ao tempho de Jerusalém sem participarem, todavia, do seu culto. Estes não' podiam tomar parte porque condenavam radicalmente os sacendotes que haviam usurpado o sacerdócio em Jerusalém. No lugar do culto de sacrifícios que não podiam observar, tinham seus ritos, principalmente os batismos e os banquetes sagrados. Porém, é mais pirovável que o que era considerado em primeiro lugar como uma necessidade ditada pelas circunstâncias deve ter, pouco a pouco, aparec;ido como uma instituição definitiva conforme vontade divina. Enquafflto que, em princípio, os ritos específicos de Qumran não eram c»onsiderados como opostos aos sacrifícios sangrentos, a larga prática exclusiva de seus ritos particulares e a larga abstenção dos sacrifícios fez surgir a idéia de que estes não eram de modo algum qiueridos por Deus. Assim Filo22pode dizer que os essênios recusavami os sacrifícios de animais. A teoria dos sec tários dos judeus pode ter variado, porém, em todo caso, o que advertimos perfeitamente é que o terreno era favo rável à oposição ao templo e aos sacrifícios, apesar da esperança de um futuro templo empírico, ideal. As duas coisas poderiam caminhar juntas. A oposição ao templo presente era o que predominava. Temos aqui pois o elo entre Qumran e Estevão. Por outro lado, comprovamos que as Pseudo-Clementinas que apontam em parte, até em seus mínimos detalhes, as idéias e os usos de Qumran vão sobre esta questão do templo e dos sacrifícios muito mais longe que a seita de Qumran e se aproximam, nesse ponto, à atitude de Estevão23. A js Pseudo-Clementinas devem ser citadas neste 22 Quod omnis probus liber , 75. 23 O. CULL M AN N, D ie n eii entdeckete n Q um rantexte u n d das Ju dench risten tum der Peseudo klementinen, em Fe stschrift f Bultmann 70. Cjehurtstagt 38 s.
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contexto do judaísmo esotérico do qual nos ocupamos. Estes escritos Rflo, com efeito, muito mais judeus que cristãos, e estão relacionados com esta corrente particular do jadaísmo gnóstico. Segundo estes, o objetivo da vinda de Jesus, verdadeiro profeta, era pôr fim ao culto i.ios sacrifícios em Jerusalém pelo batismo. Ele veio ao mundo afim de extinguir pela água do batismo o fogo acendido pelo sumo sacer dote24./^ destruição de Jerusalém no ano 70 é um castigo aos judeus porque continuaram os sacrifícics do templo abolidos pelo verdadei ro profeta25. Ademais, no marco deste radicalismo, não há lugar para o sacerdócio. Temos aqui porque Aarão é considerado como repre sentante do princípio do mal, oposto a Moisés26, enquanto que, nos manuscritos de Qumran, Aarão desfruta todavia da maior venerayão. Este é o único ponto em que as Pseudo-Clementinas diferem dos textos de Qumran, e seu radicalismo não é mais que um desen volvimento natural, por assim dizer, da atitude qumrânica em relação ao templo e seu culto. Por outro lado, há um acordo completo sobre esta recusa radical entre a Pseudo-Clementinas e os “helenistas” do livro de Atos. Aqui Aarão está também na origem da idolatria. Dá-se o mesmo juízo negativo sobre Aarão à quem se remonta o sacerdócio. A fabricação do bezerro de ouro é obra das “mão humanas” (7.14) e o próprio lemplo de Salomão é obra de mãos humanas (7.48)27. E difícil levar este radicalismo mais longe. Bo Reick mostrou muito bem, em sua análise do discurso de Estevão28, que a idéia principal do resumo da história de Israel dado por Estevão é que as revelações divinas essenciais foram verificadas fora de Canaã. Estas revelações não estão ligadas a um lugar. O tabemáculo móvel não cai sob o golpe da acusação formulada por Estevão. Pois ele foi feito segundo o modelo que Deus mostrou a Moisés. Não está ligado a um lugar. Davi pediu um tabemáculo para a casa de Jacó29. Ele pensou em 24 Rec. 1.48. 25 Rec. 1.68. 36 H om . 2 .16 -1 7. 27 Cf. M. SIM ON , Saint Stephen and the Jerusalem Templo : JournEcclHist (1951) 132 s. 28 Glaube und Leben der Urgemeinde, 1957, 136 s. 29 É nec essá rio ler assim com B, D e H, antes que: “para o Deus de Jacó ” (A, C, Vulg. e as trad. siríacas); contra E. HAECHEN, D ie A poste lg eschic hte , 1956, ad loc., 242.
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Jerusalém. Porém, Salomão que não o compreendeu construiu uma casa para Deus. Entretanto, Deus não habita naquilo que é feito por mãos humanas. Sem dúvida que está latente, na base desta oposição, a idéia de um tabernáculo espiritual que, como na Epístola aos Hebreus, é a comunidade de discípulos. Provavelmente esta é a idéia do próprio Jesus quando fala de um templo que não é feito pelas “mãos do homem” (Mc. 14.58)30. A relação entre esta atitude e aquela das Pseudo-Clementinas, que devemos considerar como representantes de um judaísmo esotérico, aparece particularmente em uma passagem das PseudoClementinas inteiramente paralela ao discurso de Estevão, paralela até nos detalhes: Rec. 1.35. Nesta passagem, o mesmo que em Atos 7.41, o culto dos sacrifícios é considerado como a causa da idolatria, e o tabernáculo é oposto, exatamente como em Atos 7, ao templo de Salomão (Rec. 1.38). Schoeps31tem razão ao insistir sobre esse paralelismo. Porém, a explicação que ele dá, como se o autor de Atos 7 tivesse posto sem razão na boca de Estevão o que nas Pseudo-Clementinas é pronun ciado por Tiago, não me parece absolutamente fundada. Na realida de, o paralelismo provém de que os dois documentos, Atos e Rec. 1.35 s., pertencem à mesma corrente de idéias de um judaísmo que se opõem ao templo de Jerusalém. Existe todaviai outro elo que une a oposição helenista ao tem plo com as correntes! anti-hierosolimitanas da Palestina: não esque çamos que os helenisítas expulsos de Jerusalém depois do martírio de Estêvão (enquanto que os doze podem permanecer) se voltaram em direção à Samaria sendo assim os primeiros missionários dali, como já observamos anteriormente. Por que se dirigem à Samaria? Porque os habitantes deste país que sofreram fortemente a influência do paganismo, do helenismo sincretista, são semi-jíudeus que reconhecem os cinco livros de Moisés, mas que recusam, sobretudo, o templo de Jerusalém em benefício de 30 Ce rtam ente, Jesu s prom unciou um a frase deste tipo. Ao falar do temp lo, Ele disse: “não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada” (Mc 13.2), e, por outro lado, pensando na com unid ade: “Eu construir ei um te m plo não feito por m ãos hum anas” (Mc 14.58). 31 Theologie und Geschichte des Judenchritentums, 1949.
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seu próprio lugar de culto, que é o monte sagrado de Gerazim. Segundo os Pais da Igreja, houve em Samaria uma religião “simoníaca” que remontava a Simão o Mágico. O papel de Simão deve ter sido mais importante que o que permite entrever o livro de Atos. Segundo as Pseudo-Clementinas, ele foi o verdadeiro fundador de uma seita gnóstica, na qual os elementos helenísticos e judeus se encontram combinados de tal maneira que recorda certos aspectos do judaísmo sincretista que nós estudamos32. A pregação do Evangelho neste país semi-judeu, onde reina o sincretismo, por um grupo partidário de Estevão, é altamente importante para a missão cristã. É a transição natural da missão cristã na Palestina à missão cristã em terra pagã. Mas o que nos interessa aqui é que os cristãos que foram expulsos de Jerusalém por causa de sua oposição ao templo se voltaram, para pregar o Evangelho de Jesus, precisamente em direção a esses judeus heréticos de Samaria, que também recusavam desde há muito tempo 0 culto do templo de Jerusalém.
Isto nos leva novamente a tratar do Quarto Evangelho. Vimos que o Quarto Evangelho se interessa especialmente por estes helenis tas, posto que no capítulo 4 os reabilita. Agora daremos um passo a mais. Da mesma forma que os dois valentes helenistas, o quarto evan gelho se interessa especialmente por Samaria, esse país semi-judeu que viu as origens da missão. O Quarto Evangelho se interessa pelos samaritanos precisamente sob o ângulo do culto, sob o ângulo de sua oposição ao templo. Tal é o sentido da história da samaritana no capí tulo quarto. Todo o diálogo entre Jesus e a samaritana concerne a esta questão. Porém, nós podemos ir mais longe. Este radicalismo dos helenistas e seu interesse pela questão do templo, de maneira geral, não predomina em nenhum outro escrito do Novo Testamento como no Evangelho joanino e na Epístola aos 1Icbrcus à qual, sob todos os aspectos, está estreitamente aparentada com a literatura joanina33, e deve ser atribuída provavelmente ao mesmo grupo. É certo que a idéia de que a comunidade é o verdadeiro lemplo se encontra, também, no paulinismo (os cristãos são o templo L. CERFAUX, L a Gnose sim onie nne, em R e c u e il L. C erfa vx I, 1954, 19 s. " E sobretudo o comentário de C. SPICQ, L "ep ítre aux hébreux I e II, 1952-1953, o que sublinha este parentesco.
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de Deus: 1 Co 3.16; 2 Co 6,16; Ef. 2.21s.) e em 1 Pe. 2.5 (a casa espiritual). Porém, no evangelho joanino, a idéia de que o templo é abolido, ou melhor substituído, se encontra verdadeiramente em primeiro plano e pode ser seguida por todo o livro. E, sobretudo, se reveste da forma sob a qual a encontramos no discurso de Estevão: a presença divina não está ligada ao templo. Se, como é provável, o Quarto Evangelho, em sua forma atual, foi escrito depois da destruição do templo no ano 70, seu interesse por essa questão se explica de um modo particular. Sua atitude não pode ser menos do que uma atitude relacionada diretamente com aquela dos helenistas. O fato de que a declaração joanina de Jesus acerca do templo de Jerusalém se encontre precisamente neste diálogo com a samaritana, que serve ao evangelista de quadro para as frases proféticas de Jesus relativas à missão dos helenistas, adversários, como os samaritanos, do> culto do templo de Jerusalém, é muitò significativo. Confirma e explica, de certa maneira, que o interesse do evangelista pela questão do templo se una precisamente à oposição do grupo de Estevão e dos missionários de Samaria contra o templo. É verdade que para o quarto evangelista, o aspecto positivo é muito mais impor tante que a polêmica. Convém advertir, por outro lado, que no discur so de Estevão, que é uma auto defesa, seja natural que predomine o aspecto da polêmica. Ignoramos completamente como se apresen tava a pregação de Estevão fora da polêmica. É provável, não obs tante, que Estevão fosse mais longe que o Quarto Evangelho: para Estevão a construção do templo representava uma infidelidade já no interior da história de Israel; para o Quarto Evangelho, em troca, é somente depois da vinda de Cristo que o culto do templo se encontra abolido. '* Seja como for, no evangelho joanino é sempre o aspecto cristológico o que predomina: a presença divina, ligada até o momento presente ao templo de Jerusalém, é visível no que se sucede na pessoa de Jesus Cristo, no Logos feito carne34. 34 Tudo que pertence ao m eio do qual o evangelista faz parte e tem um caráter polêmico está despojado em seu Evangelho da polêmica. Já comparamos sob este aspecto a grosseira polêmica das Pseudo-Clementinas contra a seita do Batista, com a do Quarto Evangelho. Este não se contenta em dizer que João batista não é o Cristo, porém diz que é a testemunha.
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É verdade que também Jesus, no diálogo com a samaritana, acentua o aspecto negativo, na resposta à questão que a mulher lhe propôs de saber quem tinha razão, os samaritanos que adoram a Deus sobre o monte Gerazim ou os judeus que O adoram no templo tk- Jerusalém. Nem uns nem outros, responde Jesus. A presença divina, não esta ligada a um lugar. O templo de Jerusalém sob este aspecto não é melhor que o monte Gerazim. Esta declaração esta ahsoluta-mente na linha do discurso de Estevão (Atos 7). Poderia , muito bem fazer parte dele. Pois bem, isto é exatamente o que deveriam pregar esses missionários helenistas que foram à Samaria. Vós recusais o templo de Jerusalém. Porém, Deus tão pouco habita sobre o monte Gerazim. Todo o discurso de Estevão tem por objeto que Deus não esta ligado a um lugar e tão pouco a um país, uma vez que Israel já tem recebido suas revelações fora do país sagrado35. Depois, a parte positiva da resposta de Jesus à samaritana no Quarto Evangelho: “vós adorareis a Deus em espírito e em verdade”. Na primeira parte do diálogo se tratou da água viva que Cristo dará. A água no quarto evangelho (como em Qumran) é freqüentemente símbolo do espírito e certamente tem também uma relação com o batismo. E no espírito que se manifesta a presença divina. Porém, nós sabemos que esse espírito esta ligado a Cristo. O espírito, Cristo, substitui desde já o lugar de culto. Recordemos que o discurso de Estevão, depois de ter mencionado a construção do templo, conclui precisamente: Vós sempre haveis resistido ao Espírito Santo! A construção do templo é uma oposição ao Espírito Santo. O evangelista vê realizada, nos acontecimentos da vida de Jesus, a idéia de que Cristo assume o lugar do templo. Esta questão do culto é uma de suas principais preocupações. Ele se esforça em mostrar pela vida de Jesus encarnado que desde agora a questão do culto deve ser proposta de maneira distinta de como se propunha antes da vinda de Jesus. O próprio Jesus se situa em lugar do templo. Deus revelou sua presença na vinda de Jesus encarnado, e depois de sua ressurreição, ele continuará manifestando sua presença ali onde Cristo elevado à destra de Deus está presente. Deus presente na vida de um homem •v crapK” temos aqui o que disse o prólogo. 35 Cf. mais atrás na p. 39.
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Aglória divina, em hebraico shekina, é visível em Jesus Cristo. Temos aqui para os ouvidos judeus uma frase blasfema como a que disse Estevão (Atos 6.14). Pois para todo judeu a shekina, a glória divina, está ligada ao templo. A partir da encarnação esta se desliga do templo e se une ao Logos feito carne. Nós temos contemplado sua glória (a glória de Deus). Esta é a idéia que predomina em todo o evangelho e nas Epístolas joaninas. Deus a quem não se pode ver se tomou visível. Sua shekina pode ser contemplada em Jesus. Ele estabeleceu seu tabernáculo entre nós, diz o prólogo joanino: •cjtc* vcoaev. Certamente o autor que escreveu em grego escolheu intencionalmente este verbo por causa da idéia do tabernáculo, OK* vTj, que como» já temos visto cumpriu um grande papel na polê mica dos helenistas. Porém, ademais, é possível, como sugere Schaeder36, que o evangelista tenha escolhido este termo porque as consoantes do verbo são as da palavra hebraica shekina. No final do primeiro capítulo do Evangelho de João, lemos no v. 51 que a partir de agora os céus estão abertos, que a ponte entre o céu e a terra é o filho do homem sobre o qual os anjos ascendem e descendem. Esta é uma alusão clara ao sonho de Jacó (Gn. 28), que se encontra na ori gem do lugar de culto em Betei. De novo, encon tramos aqui esta idéia preferida do evangelista do grupo de Estevão, que a presença divina não está ligada a uma localidade, não está mais ligada a esta pedra de Betei onde Jacó viu a escada do Céus. Trata-se da questão do lugar de culto. A partir de agora os céus estão sempre abertos, onde quer que Cristo esteja. Ele é a ponte, sobre quem os anj os ascendem e descendem. Em Cristo há um vaivém contínuo crítre o céu e a terra37. Ele substitui o lugar de culto. O capítulo que segue, capítulo 2, fala todavia do templo: de sua purificação. Este aicontecimento teve lugar certamente no final da vida de Jesus onde se emcontra efetivamente nos Sinópticos, pois ele expli ca em parte as medidas tomadas pelos judeus, o ódio sobretudo por parte do sumo sacerdote. Por que, pois, o Quarto Evangelho o coliocou 36 R. RE ITZ EN ST EIN - H. H. SCHAE DE R, Studien zun antiken sinkretismus aus Iran und Griechenland , 11926, 318. Cf. também, C. F. BURNEY, The Aramaic Origin of the Fourth Gospel , 1922, 35 s. 37 O fato de q ue J e su s seja cha m ado de o Filho do H om em m e recorda, tod a’via, as ultimas frases de Estêvão.
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no princípio do ministério de Jesus? A resposta se impõe: para subli nhar a importância que se dá neste evangelho à idéia de culto. Neste caso de purificação se põe de manifesto de maneira particularmente visível o que toda vida de Jesus deve ilustrar, isto é, que no que se sucede o culto não esta mais ligado ao templo, mas à pessoa de Cristo. Ao expulsar os vendedores de pombas e os cambistas que trocavam a moeda oficial pela moeda utilizada no (emplo, Jesus atacou, no fundo, todo o sistema de culto do templo. Pois os vendedores e os cambistas eram necessários para o bom funcionamento deste culto. No final do relato, o evangelista interpreta, à sua maneira, a Irase pronunciada por Cristo: destruam este templo, e eu o levantarei em três dias. Ele falava de seu próprio corpo, disse o evangelista, e sublinha que só depois da ressurreição de Cristo os discípulos com preenderam o pensamento de Jesus. Nós encontramos aí, todavia, a idéia de que Cristo crucificado e ressuscitado assume o lugar do templo. Ao mesmo tempo, o autor sabe sem dúvida que o próprio Jesus ao falar do templo, que Ele construiria e que não seria feito por mãos humanas (Mc 14.58)38, apontava para a comunidade de discí pulos. Cristo está ali onde esta a comunidade. Templo - Cristo comunidade: as três coisas seguem-se unidas. O interesse pelo culto pode ser seguido por todo o evangelho joanino. Em meu estudo sobre os sacramentos no Quarto Evangelho, me esforcei por mostrar que muitas passagens joaninas estão destina das a ilustrar a idéia de que, depois de sua ressurreição, Cristo está presente na Igreja, no batismo e na eucaristia39. Encontramos aqui a idéia espalhada nos grupos esotéricos (Qumran!) de que os sacrifícios são substituídos pelo batismo e o banquete sagrado, porém no evange lho joanino, e isto é o que tem de novo, batismo e eucaristia estão unidos à pessoa de Cristo. Em última análise, pois, é Cristo quem substitui o templo: antes de sua morte e ressurreição, a presença divina se manifesta em sua encarnação, depois nos sacramentos. Não pretendo defender que o autor do Apocalipse pertença ao mesmo grupo joanino. Porém, a idéia do templo o preocupa também, ’!i Cf. mais atrás, pp. 39 s. O. CULLMANN, L es sac ra m en ts d a n s l ”evangil e jo h a n n iq u e , 1951.
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como se depreende da visão da Jerusalém celeste (Ap. 21.22): não vê templo nela, pois seu templo é o Deus todo poderoso e o cordeiro40. Temos aqui exatamente a idéia do Evangelho. Temos chegado ao fim de nossa exposição, vemos, pois, como sem perder nada de sua originalidade, o pensamento joanino se relaciona com a esfera espiritual que temos estudado. A filiação que explica esta comunhão de pensamento me parece ser esta: judaísmo esotérico - helenistas de Atos - grupo joanino. O grupo joanino foi recrutado, sobretudo, do círculo de João Batista, e está estreitamente aparentado (se não idêntico) com o grupo de Estevão, denominado “helenistas”. Se esta filiação é exata, compreendemos melhor por que já no Novo Testamento encontramos dois tipos de cristianismo tão diferentes: o tipo sinóptico e o tipo joanino. Neste caso, não será possível, no que se sucede, considerar o tipo joanino, com o que se pode relacionar, ademais, à Epístola aos Hebreus, como um produto tardio (e não palestino) pela simples razão de que ele é mais estranho às tendências do judaísmo oficial que o tipo sinóptico. Se nós conhecemos melhor o tipo cristão que está mais próximo ao judaísmo oficial, é porque o segundo tipo parece haver sido relegado a um segundo plano por conseqüência da perseguição de Estevão; e ademais porque o tipo paulino, distinto por sua vez do tipo sinóptico e do tipo helenista, é o que tende a tomar a proeminência. Não propomos a questão de saber em qual dos grupos pertence o próprio Jesus, pois isto exigiria um estudo à parte. Ele próprio participou do grupo de João Batista antes de começar seu ministério. Por outro lado, é necessário admitir que o grupo que o livro de Atos chama helenistas existiu antes de Jesus, pois se trata de um grupo judeu que existe desde o primeiro momento da constituição da * Pode-se encontrar certamente no Apocalipse outra corrente segundo a qual há um templo celeste (11.19) conforme a tradição da escatologia judaica . Cf. M. SIMON, R eto u r du C hris í et recon str uctio n du te m ple dans la p e n sé e chrétie nne p rim itiv e , em A u x so u rc es de la tra d itio n ch rétien n e. Melanges Goguel, 1950, 247 s. Esta dualidade corresponde àquela que já temos comprovado a propósito de Qumran por um lado: espera do culto em um templo concreto ideal e, por outro, espiritualizaçâo do culto, portanto, espera da abolição de todo culto em um templo concreto. Cf. a importante obra de Y. M. J. CONGAR, El mistério dei templo. Barcelona, 1964, que apareceu demasiadamente tarde para poder ser utilizada neste trabalho.
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comunidade de Jerusalém. Não podemos tratar aqui das relações entre Jesus e este grupo. Diremos somente que Jesus não só purificou o templo, como também pronunciou frases sobre o templo que julgou ter um papel importante em seu processo. A expressão: eu destruirei este templo e o reconstruirei é, segundo os sinópticos, um falso testemunho que as falsas testemunhas proferiram contra Ele, como diz Marcos (14.57-58). Porém, Ele certamente disse outra coisa. Por um lado (Mc 13.2): “não ficará deste templo pedra sobre pedra que não seja derribada”; e por outro: “Eu construirei um templo não leito por mãos humanas” (Mc 14.58 = comunidade de discípulos). Km João 2, as duas afirmações estão combinadas na declaração que lemos no v. 19: destruam este templo e Eu o reconstruirei. Quer dizer: se este templo é destruído, eu o reconstruirei. Não podemos resolver aqui a questão de saber se Jesus está mais próximo do tipo sinóptico ou do tipo joanino. Pois Ele está para mais além dos grupos, e o encontramos, por conseguinte, nos dois. E certo, nós não tomamos como ponto de partida para conhecer a vida de Jesus o evangelho joanino, ainda quando não se possa elimi ná-lo como fonte41, pois a partir do ponto de vista literário ele é mais recente que os sinópticos. Trata-se do joanismo que está na base do evangelho, e sob este aspecto é conveniente não eliminá-lo comple tamente de uma maneira unilateral, como estamos habituados a fazer quando se trata de conhecer o pensamento de Jesus. Se a solução do enigma joanino é a que eu vos tenho proposto à luz dos novos descobrimentos, isto tem inevitavelmente conse qüências concernentes a nossa maneira de compreender as origens do cristianismo.
41 É sobretudo M. GO GU EL quem, em sua Vie de Jésus, mostrou que, especialmente para o rela to da paix ão, as referência s histó ric as contidas no Q uarto E vangelh o são freqüentemente mais exatas. Cf. também O. CULLMANN, D ie u et César. Neuchâtel, 1956.
3 SAMARIA E AS ORIGENS DA MISSÃO CRISTÃ Quem são os
AAOI ” de Jo 4.381
No evangelho segundo Mateus (10.5), Jesus disse a seus dis cípulos: “Não entreis em nenhuma cidade de Samaria”. Isto quer dizer que Ele compartilha o ódio do povo judeu para com Samaria, esse país síncretísta religioso onde somente um judaísmo truncado havia encontrado lugar?1Sabemos que os samaritanos não reconhe ciam mais que o Pentateuco, o qual haviam ademais modificado o texto2; que estes recusavam o culto do templo de Jerusalém e que ofereciam seu próprio culto sobre o monte Gerazim3, até depois da destruição do santuário (que ali haviam erigido) no ano 128 a.C. por João Hircano4. A recomendação de Mt 10.15 está precedida desta outra: “Não vos ponhais a caminho com os pagãos”. E certo que não é com base num preconceito nacional que Jesus tinha preceituado, com a ordem que dá aos discípulos de não estender Sua missão aos pagãos, mas em respeito ao plano de Deus que quer que “a salvação tenha seu ponto de partida nos judeus” (Jo 4.22). Assim, apesar da interdição de Sobre Samaria, cf. E. SCHÜRER, Geschichte des jüd isch en Volks im Z eütalter Jesu Christi, 4 (1907), 19 s.; J. A. MONTGOMERY, The samaritans, 1907; A. E. COWLEY, T h e sa m a r i t a n L i tu r g y , 1909; J. E. H. THOMSON, T h e S a m a r i t a n s , 1919; E. HAEFELI, G e s c h i ch t e d er L a n d sc h a f t S a m a r i e n v o n 7 2 2 v. Chr. bis 67 n. Chr., 1922; M. GASTER, The Samaritans, 1925; J. JEREMIAS, D ie P a ssa h fw e ie r d er s a m a r i ta n e r , 1932. ' O primeiro sacrifício em Canaã (Dt 27.4) não aconteceu sobre o monte Ebal, mas sobre o monte Gerazim, montanha da benção (Dt 11.29; 27.12). ' Jos. Ant., XIII, 2,3; XIII, 3, 4; XVIII, 4, 1; João 4.20. 1Jos. Ant., XIII, 9,1.
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Mt 10.5, Ele pode predizer, por outro lado, que “muitos virão do oriente e do ocidente, e se sentarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus, e em troca os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas” (Mt 8.11; Lc 13.29); e que “os homens de Nínive se levantarão no juízo com esta geração e a condenarão” (Mt 12.41; Lc 11.32). O mesmo sucede com a atitude de Jesus em relação à Samaria. O Evangelho segundo Lucas, que não refere a expressão de Mt 10.5, atribui não obstante a Jesus a intenção de fazer um descanso em Samaria em sua viagem à Jerusalém. Enquanto os discípulos, ante a atitude dos samaritanos que não querem recebê-lo, pedem que desça fogo do céu, Jesus os repreende (Lc 9.51 s.). No evange lho segundo Lucas (10.30 s.) lemos a parábola do bom samaritano que implicitamente condena os preconceitos raciais. E também no Evangelho segundo Lucas, no qual lemos que, entre os dez leprosos curados por Jesus, só o samaritano se prostra diante dele para darlhe graças (Lc 17.11 s.). Portanto, o terceiro evangelho se interessa particularmente pelas relações entre Jesus e Samaria. Sabemos que depois da morte do mestre, os apóstolos inaugu raram a missão entre os pagãos. Porém, o livro de Atos nos refere que esta foi precedida precisamente pela missão em Samaria. Esta abriu o caminho, por assim dizer, à pregação do evangelho entre os pagãos. Podemos dizer então que Samaria viu os começos da mis são cristã. Aqui pela primeira vez, o Evangelho entrou num país que fazia parte da comunidade judaica. Por conseguinte, temos que dar uma importância primordial a esta missão em Samaria. Os cristãos indo à Samaria, como aqueles que mais tarde inau guraram a missão entre os pagãos, estão convencidos de não esta rem em contradição por isto com a vontade de Jesus. O Evangelho segundo Mateus (28.19) nos refere às frases pelas quais o ressusci tado ordena à seus discípulos “ensinarem todos os povos”; e em Atos 1.8, Jesus aparecendo aos seus lhes prediz que seriam suas “testemunhas em Jerusalém, e em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra”. A idéia de que o Evangelho deva ser pregado aos pagãos dos confins da terra, faz parte do fundo comum das crenças do cristianismo primitivo5. Samaria representa a primeira etapa da 5 Cf. O. CU LL M A NN , Cristo y el Tiempo. Esteia, Barcelona, 1967, 137.
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execução desse plano divino. Era, pois, sumamente importante para os primeiros cristãos terem a certeza de trabalharem segundo a von tade de Cristo ao dirigirem-se a esse país. Esta questão nos parece ser uma das muitas preocupações do autor do Evangelho joanino. Em geral, este evangelista pretende apresentar em uma mesma perspectiva o Cristo da Igreja e o Jesus histórico, traçar a linha que vai da vida de Jesus às diversas manifes tações da vida da Igreja. Nós tentamos mostrá-lo anteriormente pelo culto da Igreja6. Porém o culto não é a única manifestação desta vida. Ao lado dela está precisamente a missão. Também compro vamos no Quarto Evangelho, em sua maneira de narrar a vida de Jesus, um interesse particular pela obra missionária. Em Jo 12.20 s., o autor introduz os gregos que expressam o desejo de ver a Cristo. Este não acede a sua demanda falando da necessidade prévia de sua morte e de sua glorificação. O evangelista quer insistir com isto sobre o fato de que, segundo a vontade do mesmo Jesus, a missão entre os pagãos não deveria ser inaugurada senão após a sua morte. Porém, ele se interessa de maneira especial pela origem da pregação do Evangelho fora do povo judeu: a missão em Samaria. Ele quer pôr em evidência que também ela tem como autor o mesmo Jesus, se bem que durante sua vida, tenha recomendado aos seus evitar “as cidades de Samaria”. O Capítulo 4 refere o encontro entre Jesus e a samaritana. Este diálogo lhe apresenta por um lado a oportunidade de falar do verdadeiro culto “em espírito e em verdade’” oposto, por sua vez, ao culto judeu do templo de Jerusalém e ao culto samaritano de Gerazim (v. 20 s.); porém o que interessa, antes de tudo, nesse relato é o próprio fundamento da missão em Samaria feita por Jesus. Ele responde à acusação que certamente foi suscitada entre os primeiros cristãos: a missão nesse país semi-judeu, tão infiel ao plano divino, é querida por Cristo? Nós não pensamos que a mulher samaritana seja para o autor uma personagem fictícia, uma representação figurativa de Samaria. É provável que, como em todo o Evangelho, o evangelista reúna aqui as duas coisas: uma tradição da vida de Jesus e sua significação para 6 O. CU LL M AN N, Les Sacram ents dans Vévengile joh an niqu e; L a vie de Jésus et le culte de 1'Église primitive , 1951.
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a Igreja7. Assim o evangelista atribui - em seu relato - ao mesmo tempo um papel tipológico à samaritana. Os cinco maridos que ela teve e o marido atual que “não era seu marido” correspondem per feitamente à situação de Samaria descrita em 2 Reis 17.24-34 e Jos. Ant., IX, 14.3, para que esta aproximação que se impõe possa pas sar desapercebida ao espírito do evangelista8. Com efeito, segundo estas passagens, depois da destruição do reino do norte, cinco tribos babilônicas se estabeleceram em Samaria. Elas levaram suas divin dades9, porém depois adoraram igualmente a Yavé. As relações matrimoniais da samaritana têm, sem dúvida, no conjunto do relato, a finalidade de ilustrar, seguindo o exemplo do profeta Oséias, o culto ilegítimo de Samaria cujos habitantes, segundo Sir. 1.25-26, “não são um povo”. A conversão cristã de Samaria está prefigurada no episó dio junto ao poço de Jacó, narrado em João 4. Os samaritanos têm uma certa crença messiânica: esperam a vinda de Taeb10que se manifestará em um quadro puramente terrestre. A samaritana fez alusão a isso e Jesus lhe disse: “Eu sou o Messias! Eu que estou falando com você”. (4.25 s.). Mas é o epílogo do relato, os versículos 31 s., a conversação com os discípulos que voltam da cidade, o que nos interessa aqui antes de tudo. No momento em que os samaritanos de Sicar chegam (v. 31), Jesus contempla a esplanada dos trigais em tomo do poço de 1 Cf. O. CULLMANN, L es sacram ents dans V évang il e jo h a n n iq u e , 9 s. 8 Percebido já por um copista do sec. XIII (cf. E. NESTLE, D ie f ü n f M ã n n er d es samaritanischen Weibs: ZNTW [1904] 166 s.), é atribuído ao evangelista por W. B A U E R , D a s jo h a n n e s s e v a n g e liu m , 3(1933), 75; E. C. HOSKYNS, T h e fo u r t h Gospel, 1947, 242; H. STRATHMANN, D as E van geliu m nach Joha nn es, 1951, 84 e outros; M. LAGRANGE, Évangile selon saint Jean, 1948, 110; J. H. BERNARD, The Gospel according to st. John (I.C.C.), 1928, vol. I, 143 s.; W. F. HOWARD, The Fourth Gospel in recent Criticism and Interpretation, 1931, 184 s., e R. BULTMANN, D as E vangelium des Johannes, 1941, 138, n. 4, insistem sobre as dificuldades dessa relação intencionada (cf. a nota seguinte). Em nossa obra L e s sa c ra m e n ts d an s Vévangile joh ann ique, 54, nos expressamos de uma maneira reservada em relação a esta interpretação, que achamos difícil de comprovar hoje, sem negar por isto a outra significação que o evangelista parece atribuir a esse traço. 9 O fato manifestado, entre outros, por W. F. HOWARD e R. BULTMANN, de que duas das cinco tribos levaram duas divindades, de sorte que se chegaria a um total de sete e não de cinco divindades, não tem a importância que estes críticos lhe atribuíram. Ao utilizarem o Antigo Testamento, os autores cristãos não se envolvem jamais em detalhes deste tipo. "'A. M liR X , D er M essia s od er T a ’eb d e r sam arita ner, 1910.
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Jacó. Estes lhe sugeriram a comparação com os campos de missão. A imagem era corrente para Jesus. Encontramo-la no logion sinóptico de Mt 9.37 s. sobre a colheita e os trabalhadores. Ao contemplar a missão em Samaria, o Cristo joanino pensa no tempo da semeadura e da ceifa: “Não dizeis vós: faltam todavia quatro meses para a colheita?” (v. 35). Nós sabemos que na Palestina as semeaduras acontecem em outubro ou novembro e a ceifa em abril11, de sorte que seis meses separam a semeadura da ceifa. Os campos que Jesus e seus discí pulos vêem diante de si quatro meses antes da ceifa estão todavia verdes. Temos aqui pois o sentido da frase de Jesus: quando se trata dos campos no sentido próprio, um certo lapso de tempo deve mediar a semeadura e a ceifa; para os campos no sentido figurado, os cam pos nissonários, não é assim. Ao dizer: “levantai vossos olhos”, Jesus intenta assinalar com o dedo os samaritanos vindos de Sicar que, informados pela mulher, vêm ver aquele que revelou o passado dela. Ele faz ver aos discípulos um campo onde o tempo da semeadura e o da ceifa coincidem: nesse campo, o tempo da colheita já tem chega do; já chegou aos samaritanos. O v. 36b o sublinha: “O que semeou se alegra igual ao que colhe”. Todavia a colheita feita por Jesus no momento em que o povo de Sicar aflue em direção a Ele não é mais que uma antecipação da verdadeira colheita que está reservada em Samaria aos Apóstolos, depois da morte de Jesus. Ainda que em Jesus o que semeia se identi fique com o que ceifa, o velho provérbio12citado no v. 37 segue tendo razão: “Um é o que semeia e outro o que ceifa”13. E verdadeiro sob condição de que se una com a afirmação precedente à simultaneidade da alegria daquele que semeia e do que ceifa. Porque detrás dos após tolos que colherão se encontrará, todavia, Jesus. Assim o que aconte ce junto ao poço de Jacó, onde Jesus semeia e colhe ao mesmo tempo, se repetirá brevemente na missão que os discípulos organizarão em Samaria depois de sua morte. E verdade que serão os discípulos que recolherão, porém Cristo atuará: • y • • KmfíXEika *piaç (v. 38). 11
G. DALMAN, A rb eit u n d S it te in P alã stin a I, 1928, 164 s., 413 s. 12 T o y o ç = provérbio; cf. as referências em W. BAU ER, o. c., IA. 13 A idéia só é declarada. Veja os textos em R. BULTMANN, o. c., 146, n. 6 .
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Como sempre, o evangelista traça a linha que vai da vida histórica de Jesus à Igreja de Cristo. A semeadura (João 4) e a ceifa (a futura missão em Samaria) remontam a Cristo. O evangelista quer dissipar os preconceitos existentes relacionados a esta obra missionária que se embasavam, provavelmente sem razão, sobre a frase de Jesus referida por Mateus: “Não entreis em nenhuma cidade de Samaria”. Até aqui o texto é relativamente fácil de interpretar. A situa ção se complica no v. 38b: “Outros realizaram o trabalho árduo, e vocês vieram a usufruir do trabalho deles”. Entre aquele que semeia e os que colhem, uma terceira categoria é introduzida: “outros” que trabalharam - em Samaria - antes dos apóstolos. Quem são esses • AAoi? Não podem ser identificados nem com Jesus, “aquele que semeia”, por ser um termo plural, nem com os apóstolos que ceifam. Não esqueçamos que o Cristo joanino se acomoda aqui ao ponto de vista da Igreja do tempo do evangelista, posto que fala, empregando o perfeito (e^OE/LrjA* 6axe), da obra missionária que será realiza da somente pelos apóstolos. Por conseguinte, nãó é necessário pen sar aqui, como certos pais da antigüidade14, aos quais segue M.-J. Lagrange15que entendiam os “outros”como os profetas ou os justos do Antigo Testamento, explicação que em nada é sugerida no texto, e muito menos em João Batista, como o propõe E. Lohmeyer16. R. Bultamann se inclina pela solução que parece impor-se, ao dizer que os “*AAoi” são todos os que - com Jesus - são precursores no trabalho missionário. Ademais, Harnack mostrou, com razão, que nos escritos cristãos do primeiro século “ k o k i * eo” tem um sentido técnico que designa sobretudo a atividade missionária17. Será que o autor não pensa em um fato preciso? Trata-se de uma comissão concreta, da missão em Samaria. Quem são, pois, esses misteriosos missionários que, em Samaria, abriram, o caminho aos apóstolos? Acreditamos que o livro de Atos nos dá a resposta. Temos visto que o evangelho segundo Lucas se interessa de uma maneira 14
ORIGENES, XIII, 50, 325 s.; Cris., 198 a ; TEOD. MOPS., 104 e outros (cf. W. BAUER, o. c., 74). 15 Évangile selon saint Jean, 19488, 120. 16 D as Urchrisíentu m /, 1932, 26, n. 3, seguindo uma sugestão de W. BACON, N ew and Old in Jesus’ Relation to John: JoumBiblLit (1929) 53 s. 17 A. VON HARNACK, koo^xov, im jrühc hrístilichen Sprachgebrauch: ZNTW (1928) ls.
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especial pelas relações entre Jesus e os samaritanos. Que nos diz o livro de Atos sobre as origens da missão em Samaria? Atos 8. l-4s. refere que a obra missionária em Samaria foi inaugurada pelos helenistas, em particular por Filipe, um dos “sete”, e que só depois os apóstolos Pedro e João “se fizeram responsáveis por seu campo de trabalho”. “Os apóstolos em Jerusalém, ouvindo que Samaria havia aceitado a palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João”. (Atos 8.14). Na história do cristianismo primitivo deveríamos atribuir uma importância maior a esses helenistas da primeira comunidade. A fundo só conhecemos um: Estevão. De Felipe sabemos precisamente que pregou com êxito o Evangelho junto com os outros membros do mesmo grupo em Samaria; conhecemos somente os nomes de seus cinco colaboradores; os outros, nos são desconhecidos. Há um bom tempo, se disse com razão que a competência dos sete devia ultrapassar as questões relativas à capacitação exigida e que na realidade deviam representar para o grupo helenista uma autoridade paralela à autoridade dos doze18. O livro de Atos nos leva a reconhecer no discurso de Estevão (Atos 7.2 s.) as idéias teológicas particulares dos helenistas; estes condenavam o culto do templo. Estevão apresenta como o ápice da infidelidade do povo judeu a construção do templo de Salomão, enquanto que “o todo poderoso não habita no que é feito por mãos humanas”19. Estas são as idéias revolucionárias que valeram a Este vão o apedrejamento por parte dos judeus, e estas idéias estão na base da primeira perseguição dos cristãos. Isto não diz respeito a toda igreja em Jerusalém, mas unicamente^a este grupo dos helenistas, partidários de Estevão. Seria/interessante'saber se existe um laço entre esses helenistas e os membros da seita essênia que os textos de Qumran nos dão a conhecer. Os doze não compartilhavam das idéias dos helenistas sobre o culto do templo, e manifestamente não foram solidários com estes no momento da perseguição. Por isso não foram incomodados, podendo permanecer em Jerusalém (Atos 8.1). IH Cf. S. G. BRAN DO N, The Fa li o f Jerusalem an d the Christian Church, 1951, 89, 127 s. Sobre os antecedentes da polêmica contra o templo, cf. H. J. SCHOPS. Theologie und Geschichel des Judenchrisíeníims, 1949, 133 e M. SIMON, Verus Israel, 1948, 56.
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Esta primeira perseguição dá lugar à primeira missão cristã, que é precisamente a missão em Samaria. Com efeito, os helenistas expulsos de Jerusalém pregaram o evangelho nas regiões onde se refugiaram, e o livro de Atos nos fala de sua atividade em Samaria. Por que se voltaram precisamente em direção à Samaria? Compre endemos este fato perfeitamente quando nos recordamos que os samaritanos recusavam também o culto do templo e que, sob este aspecto, estavam próximos aos helenistas. Não seria a coisa mais natural para aqueles que haviam sido perseguidos por causa de sua oposição ao templo de Jerusalém, que se refugiassem junto àqueles cuja mesma questão lhes separava há muito tempo dos judeus? Este fato teve uma importância capital para a expansão do cristianismo. Ainda que, com o tempo, segundo as indicações de Justino mártir20e certos indícios contidos no livro de Atos (8.18 s.), a religião simoníaca parece ter sido um rival perigoso para a fé cristã21, esta primeira missão entre os pagãos que, sem serem judeus, estavam todavia aparentados com os primeiros missionários por certas crenças comuns, formava a condição de uma transição natural à missão entre os pagãos. Pedro e João não fizeram senão colher em Samaria, onde o verdadeiro “trabalho” missionário fôra realizado por estes “outros”, os helenistas, cuja maior parte era anônima. Portanto, isto deve ter sido decisivo também para Pedro. Pois, pouco tempo depois destes acontecimentos, o vemos, no livro de Atos, inaugurar a missão entre os pagãos. Pedro que sempre parece ter ocupado um lugar inter mediário entre as partes, não esteve, desde esse momento, mais pró ximo dos helenistas do que outros colegas seus, em particular Tiago?22 E não compartilhará por sua vez, um pouco mais tarde, a mesma sorte dos helenistas? A história não se repetirá, quando ele for encar cerado em Jerusalém, enquanto que a Tiago não sobrevirá nada; o mesmo que em outro tempo quando os helenistas foram perseguidos 20 Apol., 21 Cf. L.
I, 26, 2 s.; I, D iá l. con Trifón 120. CERFAUX, L a gnose simonienne. Nas principais fontes: RechScRel (1926) 5 s., e (1929) 489 s. 22 Cf. O. CULLMANN, Saint Pierre. Disciple, apôtre, martyr. Histoire et théologie, 1952, 57, e W. GRUNDMANN, D a s P ro b le m d e s h e lle n ists c h e n C h riste n tu m s innerrhalb der Jerusalemer Urgemeinde : ZNTW (1939) 45.
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enquanto que aos doze não sobreveio nenhum inquietamento? E isto não será a razão pela qual Pedro abandonará Jerusalém e Tiago dirigirá definitivamente a comunidade na cidade santa? Nós sabemos que existe uma relação particular entre o Evan gelho segundo Lucas e o Evangelho joanino. Tão pouco deve nos surpreender que, sobre este ponto, também o Quarto Evangelho re monte à tradição relativa ao laço que une os helenistas à Samaria, enquanto que o livro de Atos nos tem conservado os traços que mini mizam sua importância. O autor do Quarto Evangelho se interessa particularmente por estes primeiros missionários. Ele lhes dá a honra que lhes é devida sublinhando seu papel de iniciadores da pregação do Evangelho entre os samaritanos, que recusavam também o culto do templo de Jerusalém. É necessário recordar aqui que, desde o começo do livro, o evangelho joanino se ocupa da questão do templo (Jo 2.13 s.). A censura que os judeus fazem a Jesus: “Você é samaritano” (Jo 8.48), não será mais que um vago insulto? Não será uma alusão ao fato de que o próprio Jesus, como os samaritanos, e como mais tarde os helenistas, foram criticados por sua atitude em relação ao culto do templo? Seja o que for, o essencial para o autor em Jo 4.33 s., é mostrar que esta missão era querida por Cristo. Ele havia lançado as bases junto ao poço de Jacó. É Ele quem/éstíTpdr-detrás dos o f esses valentes missionários helenistas. É Ele, enfim, quem dirige a missão por todas as partes onde o Evangelho é pregado, como também nesse país problemático que é SamariaX
4 O CARÁTER ESCATOLÓGICO DO DEVER MISSIONÁRIO E DA CONSCIÊNCIA APOSTÓLICA DE SÃO PAULO Estudo sobre o KdVXOV (- covj de 2 Ts 2.6-7.
A passagem da segunda Epístola aos Tessalonicenses consa grada ao Anticristo (2.1-12), e em particular os dois versículos (6-7) relativos ao obstáculo “que detém” no momento a vinda do Anticristo, são daqueles que suscitaram maior número de estudos e de hipóteses, até tal ponto que, já em 1894, um exegeta alemão pôde consagrar 60 páginas de seu comentário à “história da interpretação de 2 Ts 2.1-12”1. Desde então, a literatura a este respeito tem aumen tado. Quando se estuda esta história, se tem às vezes a impressão de que todo exegeta que se tem ocupado do Novo Testamento tem quase como um dever propor sua solução pessoal ao problema que o autor da segunda Epístola aos Tessalonicenses delineou aos teólogos dos séculos posteriores ao referir-se com uma simples alusão a “o que o detém” (kü.t*%ov, v. 6) e “aquele que o detém” (kgt*% 0)V, v . 7). Para os primeiros leitores da carta, essa simples referência era suficiente, posto que estes sabiam bem de que se tratava; o remetente 1
W. BORNEMANN, D ie Tessaloncherbriefe, 5a e 6a na coleção Meyer, 400-459; E. VON DOBSCHÜTZ, que comentou a Epístola aos Tessalonicenses na 7a edição da mesma coleção (1909), não indica, em seu excelente comentário, mais que o essencial desta história. Nesta parte recorremos a Bomemann, para ter uma informação mais completa.
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da carta2 os recorda expressamente: o*<5are (v. 6), vós sabeis! Poderíamos perguntar, diante do número desconcertante de solu ções diferentes e freqüentemente contraditórias que se tem pro posto, se a atitude mais sábia para a crítica do século XX não seria opor ao “saber” dos destinatários da carta um resignado ignora mos. Sem deduzir esta conclusão de desesperança, nós estimamos que efetivamente uma certa reserva se impõe, posto que se trata de um problema no qual os dados seguros são pouco numerosos. Ninguém pense que procedemos levianamente se decidimos somar mais uma solução àquelas que já foram propostas. Sentimo-nos estimulados a isto por três considerações. Antes de tudo, o quadro geral - escatologia e dever missionário - no qual nossa interpreta ção permite considerar o texto em questão, se desprende suficien temente do conjunto de outros textos menos controvertidos; de sorte que, a exposição que nós lhe consagraremos poderia, com todo rigor, bastar-se a si mesma, independentemente da passagem de 2 Ts 2.6-7 que, segundo nós, não faz senão pôr em evidência os con tornos concretos desse quadro. Por outro lado, sendo reconhecida a necessidade de recorrer a uma hipótese, para a interpretação de 2 Tes. 2.6-7, como inevitável e por conseguinte como legítima, esta questão não se tratará mais do que medir o grau de verossimilhança. Com efeito, nos parece certo que a hipótese com mais êxito, que identificou o “obstáculo” retardador da vinda do Anticristo com o Império Romano, não é a mais verossímil3. Enfim, ao propor uma solução nova da passagem tão discutida, nós temos o consolo de ampliar, nada mais que parcialmente, a lista já demasiadamente ampla das hipóteses propostas, já que ao menos um dos elementos de nossa explicação se encontra, sob uma forma diferente é verdade, tanto no comentário de Calvino sobre a segunda Epístola aos Tessalonicenses, como em até certa medida muito tempo antes, no século V de Teodoreto de Ciro4, representante da escola 2 Admitimos
com a maior parte dos críticos modernos a autenticidade da segunda carta aos Tessalonicenses. Se nossa explicação de K 0n:*xov é exata, constitui um argumento a mais em favor de sua autenticidade. Toda a primeira parte de nossa hipótese é, por outro lado, independente desta questão. 3 Veja mais adiante, pp. 63 s. 4 PG, 82, col. 664 s.; cf. mais adiante, 69.
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exegética de Antioquia e discípulo de Teodoro de Mopsuestia que já havia dado uma intóípretaçãÔNanáloga. 1. Crítica das duqs principais hipóteses sobre os obstáculo de 2 Ts 2.6-7 ^
Limitaremos o exame exegético de 2 Ts 2 à questão de saber qual é o enigmático poder que detém o Anticristo atualmente. Sem perder de vista o contexto sobre a interpretação na qual os críticos coincidem quase unanimemente, estudaremos antes de tudo os v. 6 7 que nós traduzimos assim: “v. 6: e o que detém agora o homem da iniqüidade5, a fim de que não se manifeste até seu tempo, vós o sabeis. V. 7: Porque o mistério da iniqüidade já está em ação; somente (é necessário esperar) até que, o que o detém agora, seja afastado”. O verbo grego KaT%£iv que nós traduzimos por “deter” significa “ter cativo”, “impedir que um poder hostil se manifeste”. Porém, também se emprega com sentido temporal de “retardar”, sobretudo em um contexto cronológico. Toda explicação deverá levar em consideração este duplo sentido6. Com von Dobschütz7e a maior parte dos críticos modernos, somos da opinião que é necessário descartar todos os intentos de considerar o neutro do v. 6 x* • toax* %ov como apontando para um poder totalmente diferente daquele que está indicado pelo masculino do v. 7 • %(/.!• %o)v. Seria necessário, por assim dizer, atribuir ao autor uma intenção consciente de formular aos leitores um verdadeiro enig ma para admitir que, em dois versículos que se seguem, ele tenha empregado o mesmo particípio em dois sentidos absolutamente dife rentes. Pensamos que Freese8não conseguiu provar o contrário, e apesar de seu artigo relativamente recente, nós consideramos esse ponto como seguro. O neutro do v. 6, “o que o detém”, designa a função impessoal do obstáculo, o masculino do v. 7, “aqu ele que o N ós unim os v *v com KCtt^XOV (com M. D IBE LIU S, A n die T hesalo nic her I, II, (1925), 39, e contra E. VON DOBSCHÜTZ, o. c., 278). 6 Sobre o sentido de koct^xw cf. PASSOW, Wòrterbuch de r griechischen Sprache\ ZORELL, N o v i T e sta m e n ti g ra c c u m , 1 9 1 1 ; P R E U S C I I E N - B A U E R , G r i e c h is c h - D e u t s c h es Wòrterbuch zu den Schriften des N. T., 1936, e HANSE em ThWNT de Kittel, 1935. 7 O. c., 282. 8 Theologische Studien und K ritiken, 1920-21, 73 s. 5
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detém”, o agente pessoal desta mesma função. Todavia apesar des se vínculo estreito entre as duas palavras, o exegeta deve explicar como o autor pode servir-se, para designar no fundo a mesma coisa, tanto do neutro como do masculino. Isto é o que a maior parte das hipóteses propostas se esforçam por fazer9. Nós não vamos refazer a história dessas hipóteses. Todavia, é necessário examinar aquela, já mencionada, que identifica o “obs táculo” com o Império Romano. Esta tem o privilégio de ser a mais antiga: os pais da Igreja e, depois deles, a maior parte dos reformado res, tomaram-na quase canônica, e os sábios modernos como Bousset10 e Dobschütz11 lhe têm conferido uma espécie de dignidade científica. Ademais, esta solução teve a vantagem, durante muitos sé culos, de dar um valor atual à profecia de 2 Ts 2. Com efeito, depois da queda do Império Romano, o Sacro Império germânico, considerado como sua continuação legítima, herda o papel glorioso de Kax*% ov que retarda a vinda do Anticristo. Porém, se a grande autoridade exte rior conferida a esta hipótese não pode impedir que em todo tempo se tenha proposto outros intentos de explicação, isto prova que sua evi dência não se impõe. Todavia, é necessário reconhecer que ela teve o mérito de levar em conta a mudança do neutro para o masculino. O neutro designará, nesse caso, o Império, e o masculino um dos imperadores, personificação do Império. E quanto a identificar esse imperador, há mais de uma possibilidade: os nomes de Cláudio12, de Néro13, de Vespasiano14como também de Trajano15têm sido propostos16. W. HADORN, D ie A bfa ssim g der Thess alo nic herbriefe , 1919 (Beitrãge z. Fõrderung christlicher Theologie, vol. 24) crê que se pode irrelevar este fato. Bastaria, segundo ele, explicar o masculino. 10 W. BOUSSET, D e r A ntichris t, 1895, 77 s. 11 O. c. 12 WHITBY, P a r a p h r a si s a n d C o m m e n t a ry o f íh e N . T ., 1718, e entre os críticos m o d e r n o s W . H A D O R N , D ie A b fa s s u n g d e r T h e ss a lo n ic h e r b rie fe , 1919, 113. Q uis-se ver no particípio K ax ^c ov um a alusão prec isa ao nome do imperador C l á u d i o c l a u d e n s ( r e l a ç ã o r e c u s a d a p o r H A D O R N , o. c., ibid., t a m b é m p o r D O B S C H Ü T Z , o. c., 421. 13 WETSTEIN, ver W. BORNEMANN, o. c., 433. 14 KERN, em ZWissTh (1839); veja BORNEMANN, o. c., 433. 15 HILGENFELD, em ZWissTh (1862). 16 HUGO GROTIOS propõe o nome do governador Vitélio (A d N. T. animadversiones, 1641).
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Portanto, esta hipótese se encontra com dificuldades que nós consideramos quase como insuperáveis. Até se se chega a provar a Existência de uma tradição apocalíptica pré-cristã, segundo a qual o ImpérioNRomano assumiria a função de adversário do Anticristo17, será sempre difícil, se não impossível, admitir que um cristão do primeiro século pudesse atribuir este brilhante papel ao Império Romano. Na apocalíptica cristã, o Império Romano aparece, antes pelo contrário, como uma encarnação do Anticristo. Mesmo antes das perseguições de Néro, os cristãos não tinham, todavia, razão para irem tão longe, uma apreciação tão exclusivamente positiva do poder desse mundo se enquadraria mal com a concepção cristã, desse tempo. É verdade que no Capítulo 13 da Epístola aos Romanos, o apóstolo reclama de seus leitores uma lealdade absoluta para com o Estado. Porém, esta recomendação, quando é considerada em relação ao arcabouço geral do ensino paulino, em particular de textos tais como 1 Co 6.1 -8, não nos autoriza a atribuir ao apóstolo a idéia segundo a qual ao império pagão se atribuísse um papel tão eminentemente positivo no grande drama escatológico18. Finalmente - e este me parece o argumento decisivo - não é possível discernir uma relação interna entre as funções do estado romano e a data da vinda do Anticristo. A maneira como está sublinhado o fato de que o ícax* %ov retarda todo o drama por esse momento, quero dizer, segundo o contexto, concernente à última hora, antes da cortina ser levantada, nos faz supor que a ação deste obstáculo, por seu caráter intrínseco, deve estar relacionada a esse momento decisivo; dito de outra maneira: ela mesma deve ser de ordem essencialmente escatológica. Ora, as funções do estado romano tal como são concebidas em Rm 13, não têm nada de escatológico, e a relação estabelecida entre elas e a vinda do Anticristo seria, nesse caso, puramente exterior. Parece-nos, pois, que é necessário abandonar esta explicação que se poderia chamar de hipótese “histórica”. Por um outro lado, uma hipótese mais recente (nós a denominaremos “mitológica”), sem 17 Este intento foi proposto por W. BOUSSET, D e r A ntichris t, 77 s. 18 O ponto frágil da hipótese salta à vista sobretudo quando se considera
que, em um grande número de explicações, é o próprio Anticristo, o mistério da iniqüidade, o que é identificado com os imperadores romanos.
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explicar, a nosso ver, a passagem de 2 Ts 2, contém provavelmente elementos de verdade. Desde há muito tempo, esta hipótese desfruta de certo prestígio, sobretudo graças à autoridade que lhe confere o excelente comentário de M. D. Dibelius, um dos mais recentes sobre as Epístolas aos Tessalonicenses19. Segundo os antigos mitos cosmo-gônicos, existentes em muitos povos, na origem do mundo houve uma luta entre a divindade e seu grande adversário, um monstro que, para os babilônios, tem a forma de dragão20; para os persas, a forma de uma serpente21; para os germanos, a de um lobo22. A divindade se apossou do monstro e o encarcerou. Todavia, no final dos tempos, será posto em liberdade para o combate definitivo. Na época atual, está “retido” como prisioneiro. Os traços desta concepção podem ser encontrados na literatura judaica. Is 27.1; Ap. Bar. sir. 29.4; Enoque 60.24 s.; Esd. 6.52, ela fala de monstros marinhos que aparecerão no final dos tempos, para serem destruídos, e outras passagens fazem alusão à existência atual do monstro: Am 9.3; Jó 3.8; 7.12 segundo a LXX, Jo 40.10 s.; Sal. 104.2623. A mesma tradição se encontra também no Apocalipse joanino (20.2-10) onde o dragão está preso por mil anos, depois solto e vencido definitivamente. Parece-nos provável que estas idéias mitológicas subjazem na concepção do “obstáculo”, tal como o encontramos em 2 Ts 2. Estas nos indicam a origem distante desta concepção, porém nada mais. Elas não saberiam explicar, de maneira satisfatória, a mudança do neutro para o masculino. O “anjo” que detém cativo o Anticristo não poderia ser designado de uma maneira tão vaga por • • • kc c t e xc o v . Ademais, as palavras “até que ele tenha desaparecido” (• taç ‘ fc ju^fjov y vr\ m.i) dificilmente se aplicariam a um anjo. Por outro lado, parece certo que o apóstolo pensa que o obstáculo se reveste de uma form a concreta justamente nesse momento, quero dizer, durante o último período do eón atual no qual o mesmo e seus leitores 19
M. DIBELIUS, An die Thessalonicher I, II; A n die Philipper, 2(1925) (H. LIEZTMANN [ed.], Handbuch zum N. T.), 40 s. 20 H. GRESSMANN, A ltorientali sch e Text u n d B ild er zum A lt e n Teslament, 1909, 15. 21 SÕDERBLOM, L a vie fu tu r e d ’après le m azdéis m e, 1901, 258. 22 M. DIBELIUS, o. c., 40, onde se encontra uma bibliografia detalhada. 23 Cf. GUNKEL, Schõpfung und Chaos in Urzeit und Endzeit, 1895, 22 s.
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têm consciência de viver. Nesse instante decisivo, o Kax*%(OV deve ser um dos elementos que precede os tempos messiânicos. Por conseguinte, o apóstolo não se contentou certamente em fazer alusão à crença muito generalizada do encarceramento do Anticristo24. Mesmo porque, fora do Ap. 20.2-10, onde se trata do milênio, esse encarceramento não é considerado jamais como um sinal do fim dos tempos, mas, pelo contrário, caracteriza todo o período compreendido entre a criação e a inauguração dos tempos messiânicos. Como já o temos indicado ao criticar a hipótese “histórica”, nós consideramos como insuficiente toda explicação que não leva em contaj o caráter essencialmente escatológico do “obstáculo”. 2. Ponto de partida e enunciado da solução proposta '
O apóstolo insiste sobre o tempo em que ele escreve e que, segundo o contexto, se encontra situado no fim da época pré-messiânica. Toda a segunda Epístola aos Tessalonicenses se refere a esse momento preciso, e seu intento é mostrar que, apesar da iminência do fim, esse tempo durará até que os tessalonicenses creiam. Nós temos visto que, nesse quadro cronológico pressuposto por toda a carta, o obstáculo que “detém” é necessariamente um obstáculo que “retarda”, ou seja, que não deve somente combater o Anticristo, como também realizar sua tarefa própria, tarefa escatológica, e atrasar assim a manifestação do adversário “a fim de que não apareça até o seu tempo”. Com efeito, desde há muito tempo, os judeus haviam calcula do a data da vinda dos tempos messiânicos, havia se formado uma tradição, da qual o apóstolo parece ser tributário em grande medida, com relação aos sinais precursores desses tempos. Desde já, se o apóstolo fala de um obstáculo que detém “agora” a vinda do Anti cristo e que retarda assim a inauguração da era messiânica, o mais provável é que ele faça alusão a um ato pré-messiânico novo, do qual certamente já havia falado aos tessalonicenses, tendo como cla ro o conhecimento prévio deste assunto por parte dos tessaloni24
É o que M. DIBELIUS tentou admitir, o. c., 43, porém sem pronunciar-se com certeza.
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censes, porém que não era previsto diretamente no esquema ha bitual da apocalíptica judaica.
Se fora de todo recurso a um texto preciso, nos perguntás semos qual pode ser o ato precursor dos tempos messiânicos que necessariamente deve ter sido intercalado pelo cristianismo no qua dro cronológico da apocalíptica judaica, nos veríamos quase inevita velmente obrigados a responder que é a pregação do Evangelho: a era messiânica, que implica também o juízo, não começará, enquanto a boa nova anunciada por Cristo não tiver se estendido; e se devês semos precisar de que forma particular deve ser entendido este ato precursor na época do apóstolo Paulo, e sobretudo sob sua pena, nós consideramos que aí se impõe uma só resposta: a pregação do Evan gelho aos pagãos.
Com efeito, possuímos um texto explícito atestando efetiva mente a crença cristã segundo a qual o Evangelho deve ser pre gado aos pagãos antes que o fim possa chegar: “e é necessário que antes o Evangelho seja pregado a todos os pagãos (todas as nações)” (Mc 13.10). Esse versículo é seguido, um pouco mais distante, pelo anúncio da manifestação do Anticristo e das pragas apocalípticas que aparecerão. Na passagem paralela de Mt 24.14, lemos a mesma afirmação com a forma seguinte: “e este Evange lho do reino será pregado no mundo inteiro, em testemunho para todos os pagãos (todas as nações); então virá o fim”. O versículo se encontra no grande discurso escatológico que se chama “apoca lipse sinóptico”. A questão de saber se este foi interpolado ou não nesse discurso não tem nenhuma importância para nossa argumen tação. Porque de todas as maneiras, testemunha a existência da crença cristã relativa a esse ato que deve preceder o fim. ’Se o versículo foi interpolado, isto confirmaria mais claramente, todavia, que se trata, como nós o admitimos, de um elemento novo introdu zido pelo cristianismo no esquema tradicional judaico. Nos Evangelhos, a indicação cronológica está sublinhada; em Marcos: Ttpco» t o v “antes”; em Mateus: • *cÓT£ • t* • v A,oç “e então virá o fim”; e este fim é inaugurado pela aparição do Anti cristo nos Sinópticos e na Epístola aos Tessalonicenses. A pregação do Evangelho aos pagãos é, pois, o último acontecimento que prece de o fim, e a relação deste ato com a escatologia não é puramente
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exterior, como seria o caso para as funções do estado romano segundo a hipótese “histórica”, e para o poder que detém cativo o monstro segundo a hipótese “mitológica”. A pregação do Evange lho é, ao contrário, de ordem escatológica por sua vez no que se refere a seu conteúdo (o reino dos céus esta próximo!) e na neces sidade da pregação: antes de ser julgado, o mundo inteiro deve ter tido a oportunidade de escutar a mensagem. Esta necessidade está indicada claramente no versículo citado de Marcos: Seim*é neces / sário que antes o Evangelho seja pregado! Se a pregação do Evangelho aos pagãc/s foi efetivamente inserida pelo cristianismo primitivo no esquema cronológico da apocalíptica judaica, no que diz respeito ao último elemento que deve retardar a aparição dos tempos messiânicos, nos pàreee que a relação com o • gct ^ x o v de 2 Ts 2.6 se impõe. E o que Teodoreto de Ciro25 parece ter compreendido quando declara, por um lado, seguindo a Teodoro de Mopsuestia26, que “o que o detém” é • “ po% %o v 'Osov • isto é, o plano divino segundo o qual o Anticristo não deve se manifestar até seu tempo, e quando, por outro lado, acrescenta que, conforme a pregação do Senhor, o Evangelho deve ser pregado a todos os pagãos antes do fim. Da mesma maneira disse Calvino, a propósito de nossa passagem27, que “o retardo será até que o curso do Evangelho se tenha cumprido”.28 Se a explicação do exegeta de Antioquia e do reformador teve pouco êxito foi, em primeiro lugar, porque estes não a apoiaram suficientemente sobre os textos, e, em segundo lugar, porque não deduziram a conclusão que se impõe para a interpretação do masculino do versículo 7. Com efeito, a pregação do Evangelho pode relacionarse com o neutro do versículo 6. Quem é então “aquele que o detém”? 25
PG, 82, col. 664 s. 26 PG, 66 , col. 933. 27 Cf. Commentaire de Calvin sur la 2a Epitre aux Thessaloniciens , em referência a 2.6. 28 Ibid. Outros dois exegetas reformados do século da reforma, ZANCHI em seu comentário às Epístolas aos Filípenses, Colossenses e Tessalonicenses (Neustad, 1595) e BENEDICTUS ARETIUS (Novum Testamentum explanatum, 1580) tratam de comb inar essa explicação com a identificação do • K f jj o v com o Império Romano. Do lado luterano, N. HEMMING (Commentarius in omnes apostolorum Epístolas, Leipzig, 1565) é o único que pensou na pregação do Evangelho.
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Segundo a interpretação de Teodoro de Mopsuestia e de Teodoreto de Ciro, se pode pensar em Deus. Porém, o apóstolo, depois de ter feito no v. 6 uma alusão tão concreta, cairia em uma generalidade tão vaga? Pois é certo que em última análise é Deus quem detém o Anticristo; porém, a maneira como fala do • eci^xcov não pode ser explicada senão por uma alusão a alguém que, nesse caso, é o instrumento concreto de Deus. Ademais, dificilmente se poderia dizer de Deus que Ele deve “desaparecer”, ausentar-se, retirar-se do meio .............. tw y* vr|Toa. Quanto a separar completamente “o que o detém” de “aquele que o detém”, demonstramos a absoluta impossibilidade mais atrás29. Também é necessário lamentar que Calvino, depois de ter dado uma explicação tão feliz do neutro do v. 6, destruía completamente o resultado, ao identificar na continuação de sua exposição o masculino do v. 7 com o próprio Anticristo. Se “o que o detém ” é a pregação do Evangelho aos pagãos, “aquele que o detém ” não pode ser mais que o órgão chamado a executar esta tarefa, isto é, uma pessoa identificada, por assim dizer, de maneira precisa com esta obra. Neste caso, nos parece que a explicação que propomos para o neutro implica a do masculino: o •fXT*%cov é aquele cuja obra e pensamento estão inteiramente fundados sobre a consciência que tem do chamado a ser “o apóstolo dos pagãos ”, me refiro ao próprio apóstolo Paulo. O apóstolo pode se considerar, com razão, como • ca*%cov em vista desta tarefa realmente concreta que entra no plano escatológico de Deus. A identificação do • t u , %cov com o apóstolo pressupõe a identificação do neutro, • k i *%ov, com a pregação do Evangelho aos pagãos, como uma relação implicada, por outro lado, quase que logicamente30. Diante de tudo isto, estabeleceremos mais solidamente Veja mais atrás pp. 63 s. 30 Por esta razão, podemos apenas utilizar para nossa explicação os ensaios que, em outro tempo, tentaram identificar o • u t '% o>v com o apóstolo Paulo, por J. B . KOPPE, Quis sit • • «repcoTioç x* ç • jt a p ^ a ç e quis •• • kt*%cov 2Thess. 2.2-13, Gõttingen, 1776, e por C. Th. BEYER, KATEXONTI THN ANOMIAN Lipsiac, 1824; (cf. também HEYDENREICH, Neus Krit. J o u rn a l d e r th eol. L itte r a tu r v. Winer u. Engelhardt, 1828, vol. 8). O que dá um caráter mais ou menos fantástico à tese destes autores é o fato de que não procedem da identificação estabelecida previam ente entre o n eutro e a pregação do E vang elho aos pagãos. E la p arte do masculino, em lugar de partir do neutro. A dissertação latina de Beyer, que temos em 25
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a primeira parte de nossa tese. Mostraremos em primeiro lugar como a concepção da pregação aos pagãos, prelúdio da era messiânica, sendo um elemento específico e novo da escatologia cristã, se relaciona todavia com as idéias essenciais da escatologia judaica; na conti nuação do nosso estudo, intentaremos encontrar no cristianismo primitivo, fora dos textos explícitos de Mc 13.10 e Mt 24.14 dos quais partimos, outros traços desta crença. Então poderemos examinar mais acerca da aplicação do papel de • k t * % o v à pessoa do próprio apóstolo e provar que, até em sua pena, não somente nada de chocante se encontre, mas que parece até natural que ele a considere sob o ângulo escatológico de sua consciência apóstólica. 3. O “obstáculo” e a escatologia ju daica
A apocalíptica judaica não prevê a pregação aos pagãos como prelúdio da era messiânica. Existe certamente uma missão judaica, e, na época de Jesus, parece ter sido particularmente ativa. Os fariseus “percorrem terra e mar para fazer um só prosélito” (Mt 23.15). É verdade também que o livro de Jonas e a 3a Sibila estabelecem uma relação entre a tendência missionária e a idéia de juízo. Porém, os textos não nos permitem dizer que a missão, no que diz respeito ao começo da era cristã, tenha tido um caráter escatológico. Ainda que a esperança messiânica tenha sido muito ardente nos judeus desse tempo, a missão não parece ter sido motivada pela proximidade do fim dos tempos, nem ter sido, sobretudo, considerada como parte integrante dos diferentes atos preliminares do drama apocalíptico. A sorte dos pagãos não está certamente esquecida na esperança judaica; todavia seu papel escatológico não tem, em geral, relação direta com a pregação missionária, e ainda quando não se trate simplesmente de seu extermínio, consiste antes em submeterem-se ou em filiarem-se aos eleitos de Israel nos tempos messiânicos31. vista, fica, por esta razão, totalmente vaga. Com efeito, Beyer considera o apóstolo como • KT7 BV unicam ente sob a condição de que seja • «T*xcov x* ç • fiap x -exv, ou seja, adversário do pecado em geral. Não é, em absoluto, disso que se trata. 31 Cf., por exemplo, o Sal 17.30-31. Cf. outros textos em P. VOLZ, D ie E schato lo gie der jiidischen Gem einde im neutestame ntlichen Zeitalter, 1934, 358.
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Por conseguiinte, a noção escatológica e cristã de uma prqgação do Evangelho, fixaida cronologicamente aos pagãos, não procedee nem das idéias missionárias do judaísmo, nem de suas conceppções apocalípticas refeirentes ao destino dos pagãos. Pelo contráriio, se relaciona estreitamente com outro elemento da escatologia judaica, a saber, com certajs especulações relativas à data da era messiâânica. Depois do século II a.C, os judeus se esforçaram consttantemente por calculai" esta data. Com o tempo, toda uma técnica lhavia sido elaborada paria indicar, com antecipação, o Vp, o “fim”. Porém, os pontos de partida e os processos de cálculo se multiplicavam e variavam cada vez mais. Embasavam-se principalmente solbre o livro de Daniel: p>or um lado sobre 9.24 s., que inspirando-sse em Jr 25.11 e 29.10, conta 70 “semanas” depois da destruição de Jeru salém até o momento em que “a justiça eterna seja restabelecida”; por outro lado, sobre a indicação de Dn 9.27, concernente à “msctade da semana”; sobre* Dn 12.7, concernente a “um tempo, dois tempos e a metade de um tempo” e sobre a indicação de 1290 dias (=3 V anos) de Dn 12.11 que fornecem outros pontos de orientação e outras possibilidades de cálculo. Um sistema inteiramente difeirente parte da divisão dia duração do mundo em três períodos de 2000 anos: o primeiro compreende os anos que vão desde a criaçãio até Moisés, o segundo» a “lei” e o terceiro 0 reino messiânico32. Todavia, de novo a exatidão de todos esses cálculos se encon tra desmentida pelo fato brutal de que o fim não chegava. Isto deli neava um grande problema. Distantes de concluir que nesse campo todo cálculo é impossível, muitos judeus não se desanimam mesta tarefa e concluem que o método que utilizavam para contar os anos é que era falso, e assim sendo, exercitam sua sagacidade em desco brir uma nova maneira de calcular. Ao percorrer, na obra de StrackBillerbeck33, as numerosas passagens relativas a esses cálculos tão 2
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Cf. Hen. sl. 33: 1; Vida de Adão, 42; Sanedrin, 97 a; Aboda Sara, 9 a. Para mais detalhes concernentes aos métodos de cálculo, veja BOUSSET-GRESSMANN, D ie R eligion des Ju d e n tu m s im sp ã th e llen istisch en Z eita lter, 1926, 246 s.; P. VOLTZ, D ie E sch a to lo g ie der' jü d isc h e n G em ein de im n eu íesta m en ílic h en Z e ita lte r, 1934, 141 s., e sobretudo a excelente exposição de STRACK-BILLERBECK, K o m m e n t a r zum N euen Testam ent aus Talm ud u n d M idrasch. Exkurse zu einzelnen Stellen des N euen T esta m ents , 2, Teil, 1928, 977 s. 33 Cf. a importante obra citada na nota precedente.
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variados, se compreende que em certos meios judeus, o bom senso reagiu em todo tempo, certamente sem êxito, contra essas intermi náveis discussões das quais alguns homens de “elite” parecem ter sentido o caráter blasfemo que as acompanhava34. Outros, pelo contrário, recorreram a uma explicação comple tamente diferente que nos interessa de maneira especial no âmbito do presente estudo. Com efeito, e a julgar por muitos textos, muitos judeus, sem chegar expressamente à exatidão dos cálculos, deduzem que o fim (que, segundo a aritmética apocalíptica, já deveria ter chegado) não acontecera, pelo fato de que devia haver um elemento que retardava a manifestação dafera messiânica. Muitas passagens provam que a sinagoga se preocupava muito com o que detém a realização da esperança. A questão: “Quem detém?”, expressa por sua vez a esperança frustrada e a convicção inque brantável de que o fim era somentèTadiado. A resposta faz intervir a necessidade do arrependimento dos próprios israelitas. Os dados indicados pelos apocalípticos não eram declarados falsos, antes, se pensava que uma das condições tacitamente subentendidas para a vinda do reino messiânico não tinha sido cumprida pelo povo eleito: o arrependimento de Israel. Esta resposta, relegando os cálculos a um segundo plano, dá um novo impulso à escatologia judaica. Que encontremos na literatura judaica um termo inteiramente equivalente ao • nos parece muito importante para a inter pretação de 2 Ts 2.6-7. No Talmude, esse termo parece quase ter tomado um sentido técnico, absolutamente conforme aquele que pres supõe a palavra grega empregada na segunda Epístola aos Tessalo nicenses. O verbo •tu*%eiv pode ser considerado como uma tradução exata de,D^35. “Quem detém,DbTlD?”, nós lemos no trata do Sanedrin36. Resposta: é “a justiça divina o que detém (TlDDülD)”. Trata-se da justiça em virtude da qual os israelitas, por causa de seus pecados, não podem, todavia, ser admitidos na felicidade messiânica. 34 Cf. os textos de STRACK-BILLERBECK, o. c., 1013. 35 O verbo aramaico DDÜ corresponde ao hebraico DpV (cf. Jó
37.4) e se encontra de novo nos Targums quase sempre com o sentido de “deter, impedir”, e outras vezes com o de “retardar”. Tem, pois, os dois sentidos que tem igualmente o verbo grego • KT*%et.v. 36 Sanedrin, 97 b. Cf. STRACK-BILLERBECK, o. c., vol. II, 1922. Com relação a Atos 1.7, p. 589.
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A mesma questão e a mesma resposta, sob uma forma mais explíci ta, se encontra no tratado Taanith37: “Quem detém,DülQ? Ele res ponde: (a necessidade de) arrependimento. Arrependei-vos!” Assim a espera escatológica toma um caráter moral que a aproxima muito da escatologia cristã: “Todas as datas (calculadas para a vinda do messias) passaram. De agora em diante não depende senão do arre pendimento e das boas obras”38. Ademais, lemos: “Se os israelitas se arrependessem, ainda que não fosse mais do que por um só dia, seriam salvos em seguida, e o filho de Davi viria imediatamente”39. “Grande é o arrependimento, pois ele conduz à salvação”, diz o tratado Joma40. O livro apócrifo de Baruc dirige esta exortação aos leitores: “Convertei-vos, e ponhais dez vezes mais de zelo no buscar. Então o que vos tem infringido a desgraça vos concederá, com a libertação, uma felicidade eterna”.41A idéia segundo a qual o arrependimento de Israel era a condição prévia para a vinda dos tempos messiânicos era tão corrente que o autor da Assunção de Moisés não duvida em designá-lo com o termo dia do “arrependi mento”.42 Esta concepção que torna os israelitas responsáveis pelo “atraso”, atribui ao homem um papel escatológico eminentemente ativo, porém, por uma acentuação excessiva do elemento moral, corre o risco, por outro lado, de despojar a esperança escatológica de seu conteúdo essencialmente religioso, fazendo a intervenção divina depender unicamente do homem. Não é estranho que esta concepção tenha suscitado contradições e controvérsias. Nós encontramos o eco no Talmude. Uma parábola compara a espera dos israelitas que tarda em realizar-se, à espera de um príncipe prometido, impaciente, por ver chegar o dia de suas bodas, e ela conclui assim: “e quem o (esse dia) detém, A data fixada”43. Esta concepção sobre “o P. Taan. 1, 64 a, 20. Cf. STRACK-BILLBERCK, o. c., vol. I, 1922. Com relação a Mt. 11.12, p. 599. 38 Sanedrin 97 b. Cf. STRACK-BILLERBECK, o. c.; vol. I. Com relação à Mat 4.17, p. 164. 39 MIDRASCH, Cant. dos Cantares 5, 2 (118 a) e Pesiqía, 163 b. 40 B. J o m a , 86 b. 41 B a ruc (Apócrifos), 4.28 s. 42 A ssunç ã o de M o isé s , 1.18. Poderíamos citar ainda outros, por exemplo, Tob 13.6; J u b 1, 15.22. 43 MIDR. Sal. 14, 6(57 6), citado por STRACK-BILLERBECK, o. c., vol. III, 1926, 641. 37
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que o detém” se opõe, pois, à opinião segundo a qual se trata do arrependimento. O elemento moral está completamente ausente. Em uma interessante discussão, referida no Talmude44, entre o rabino Eliezer e o rabino Josué, as duas concepções se enfrentam. Eliezer, que aceita os cálculos baseados sobre as setenta semanas de Daniel, admite que esta data, agora passada, era certamente a que estava fixada para o fim dos dias. Porém, afirma que, por causa dos pecados de Israel, teve de ser adiada, de tal sorte que faz com que seu cumprimento não possa ser calculado, pois que depende do arrependimento de Israel. O adversário de Eliezer, Josué, tomando como ponto de partida de seu cálculo a divisão da duração do mundo em três períodos de 2000 anos45, situa a/d:ata da vinda do messias no futuro, no ano 4000 depois dàN^naçãó, isto é, 240 d.C. Desta feita, pode manter, contra Eliezer, a tese tradicional segundo a qual o “fim” chegara independentemente da atitude de Israel, não tendo o homem parte alguma na determinação da data decisiva. Esta controvérsia representa, em última análise, uma interessante aplicação do problema do livre arbítrio e do determinismo à escatologia, e dá um relevo particular à concepção do “obstáculo” de 2 Ts 2.6-7. Com efeito, se a interpretação que nós propomos para a célebre passagem é exata, a noção cristã de • «T*%ov pode estar derivada, em linha direta, da idéia judaica, defendida pelo rabino Eliezer e compartilhada, a julgar pelo grande numero de testemunhos, pela maioria dos judeus. Por outro lado, ao insistir antes de tudo sobre a ocasião de arrepender-se que Deus, imediatamente antes do fim, oferece aos homens pela pregação, sinal precursor deste fim, a concepção cristã tem, ao mesmo tempo, a vantagem de não fazer depender unicamente do homem a vinda do reino de Deus, posto que de maneira definitiva a iniciativa se encontra referida a Deus. O *«T»^ov de 2 Ts 2.6, considerado sob a forma da pre gação do Evangelho aos pagãos, não é, portanto, mais que a transposição, sobre o plano cristão, do, DülD judeu que indica 44 P. Taan.,
1,6 (63 d) y b. Sanedr., 97 b. Cf. P. VOLZ, D ie eschato lo gie der jüdis chen Gemeinde im neutestamentlichen zeitalter, 1934, 103, y STRACK-BILLERBECK, Exkurse II, 1928. 992 s. Exemplo citado também por BUSSET-GRESSMANN, o. c., 248. 45 Veja mais atrás nas pp. 71 s.
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a necessidade do arrependimento como condição prévia para a realização do reino messiânico.
Veremos em seguida que não falta no judaísmo o motivo de uma pregação escatológica dirigida aos judeus. Porém, é normal que na escatologia judaica se trate com mais freqüência do motivo do arrependimento que da pregação. Pois nada mais é necessário que ensinar ao povo de Israel em que consiste o arrependimento: a lei mosaica e sua interpretação são conhecidas; no judaísmo a esperança messiânica não modifica essencialmente o conteúdo da exigência moral. Não há interpenetração íntima entre as duas expressões da piedade judaica: a lei e a esperança. Da mesma forma, é normal que não se trate do arrependimento dos pagãos. Pois a escatologia judaica situa o povo de Israel no centro do drama apocalíptico. E se a realização desse dràma depende da atitude do homem, é sem dúvida da atitude de Israel que se trata. É natural, por outro lado, que no cristianismo, que tem cons ciência de proporcionar uma interpretação nova acerca da vontade divina fixada na lei, o motivo escatológico judaico do arrependimento foi necessariamente completado com a pregação. Com efeito, o arrependimento cristão pressupõe, por sua vez, outra condição pré via: a pregação do Evangelho. A grande novidade do cristianismo com relação ao judaísmo consiste precisamente no fato de que a esperança, a convicção da proximidade do reino de Deus, modi ficou a interpretação da lei divina no sentido de uma aplicação.
Temos aqui a essência do Evangelho. Não basta dizer: “Arrependeivos!, porque o reino de Deus está próximo!” É necessário, todavia, acrescentar um ensino sobre a maneira de arrepender-se; é neces sário mostrar como, servindo de base, “o que foi dito aos antigos” aparece à luz do reino que está próximo e de Cristo que já veio. De outra maneira, é natural que o cristianismo, ultrapassando os limites do quadro judeu, tinha sido levado a expressar o motivo escatológico arrependimento-pregação do Evangelho, sob a forma precisa de “pregação do Evangelho aos pagãos A necessidade da pregação aos pagãos “que detém”, no último momento (agora), a vinda do Anticristo, portanto, a inauguração da era apocalíptica, constitui então, na escatologia cristã, um elemento por sua vez especificamente cristão e inteiramente judaico.
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A relação com a escatologia judaica aparece com mais evi dência, todavia, quando consideramos que até a pregação, sob a forma de um chamamento escatológico ao arrependimento, está prevista, como sinal precursor, erra uma das tradições apocalípticas do judaísmo: aquela que fala da volta do profeta Elias no fim dos tempos. Esta tradição, que parece ter sido bastante difundida, rem ontajáaM l 3.1, onde o profeta tem a missão de purificar Israel antes da realização da salvação messiânica. Encontramo-la nova mente em Jesus ben Sira (48.10-11): “Está escrito que te reservam para o momento de apla<5ar a ira antes que estale, para reconciliar os pais com os filhos/para restabelecer as tribos de Israel”. Ade mais, há muitos precursores encarregados de pregar o arrepen dimento antes do fim45, ümtojalias e Enoque, como Elias e Moisés. A concepção judaica da volta de Elias é encontrada no Novo Tes tamento, em Mt 11.14; 17.10; Lc 1.17; Jo 1.21; a da volta de Elias e Moisés em Ap 11.3, onde as duas testemunhas devem profetizar durante 1260 dias47. Esta tradição é importante para a solução do problema do “obstáculo” de 2 Ts 2, não somente porque ela com prova a espera judaica de uma pregação, considerada como sinal precursor da era messiânica, mas porque, o mesmo que na passa gem de 2 Ts 2, ela implica a personificação desta pregação prémessiânica em um profeta precursor48. A noção judaica do arrependimento de Israel cuja ausência “detém” a vinda do “fim”, e a concepção da volta e da pregação escatológica de Elias nos parecem ser os antecedentes judaicos da crença cristã segundo a qual a pregação do Evangelho aos pagãos “detém”, todavia, por um momento, a vinda do anticristo e os acontecimentos subsequentes; e estas idéias nos parecem conferir um alto grau de probabilidade para a solução que temos proposto como explicação de 2 Ts 2.6-7. 46 C.f. 4 Esdras 47 Veja sobre a
6.26. vinda de Elias BOSSUET-QRESSMANN, o. c., 232 s. 48 Temos de advertir que EWALD, Sendschreiben des Ap. Paiãus , 1857, identificou o • w v ^ c o v d e 2 T e s s a lo n i c e n s e s d ir e ta m e n t e c o m E l ia s . É e v id e n t e m e n t e ir demasíadamante longe. Porém, comprovamos com prazer que a aproximação que se impõe já foi notada anteriormente.
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4. A pregação caos p agãos considerada como prélu dio da era messiânica mos escritos do cristianismo prim itivo fora das epístolas paw.linas
A crença eiscatológica pela qual nós explicamos 2 Ts 2.6-7 não é estranha ao cristianismo primitivo. Encontramo-la nos versículos sinópticos de M
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joanino” e que o autor “não teve consciência da origem astrológica... de seus materiais”. Em conseqüência, a explicação astrológica não resolveria a questão de se saber que idéia o autor atribuiu a esta ima gem. E quase certo que o terceiro cavaleiro é originariamente a figura do símbolo zodiacal de libra, porém não é menos certo que no apocalipse joanino este tenha tomado uma significação escatológica propriamen te dita, simbolizando a praga da fome. Desde então a interpretação astrológica do primeiro cavaleiro não nos impede de indagar sobre qual sentido imediato nosso autor lhe atribuiu no quadro de seu Apocalipse56. Há outros elementos de origem astrológica nesse livro, porém sempre se encontra a astrologia subordinada à escatologia57. Quando se lê a descrição dos quatro cavaleiros, nos sentimos surpreendidos pela diferença radical que separa o primeiro cavaleiro dos outros três. Enquantp que a função destes é patente: disseminar sobre o mundo uma/das pragas que anunciam o fim (guerra, fome, morte), e que seu aspecto respectivo corresponde perfeitamente a essas lúgubres missões, os atributos exteriores do primeiro cavaleiro não indicam nada semelhante. Em primeiro lugar, vai montado sobre um cavalo branco. Se se considera o papel que tem a cor branca no Apocalipse, sente-se já uma certa dificuldade em ver nessa persona gem um mensageiro de desgraças. Da mesma maneira, a coroa com que está adornado tão pouco lhe confere certamente este caráter sinistro. Enfim, o autor nos diz que “ele saiu vencedor e para ven cer”. Pois bem, o termo grego vi* • eemão tem jamais, no Apocalipse, o sentido pejorativo de “vencer pela violência”; serve, ao contrário, para designar uma vitória divina. Essas considerações bastam para que duvidemos da explicação tradicional acerca do primeiro cavaleiro, explicação segundo a qual ele simbolizaria um poder guerreiro conquistador do mundo antes da vinda da era messiânica. Ademais, esta explicação choca com o fato de que o segundo cavaleiro, que monta um cavalo vermelho e leva 56 Estamos
convencidos de não sermos infiéis ao método de nosso venerado mestre, à memória de quem dedicamos este estudo, ao opormo-nos, neste ponto particular, à alternativa que ele estabelece (a. c., 10 s.) entre a explicação astrológica e a das críticas citadas mais a frente às quais nós mesmos nos unimos. 57 Cf. E. LOHMEYER, D ie O ff em b arung des Jo han nes (H andbuch z. N. T., ed. por LIETZMANN), 1926, que mostra muito bem como é necessário utilizar, para a interpretação do apocalipse, certas aproximações feitas por F. BOLL, o. c.
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uma grande espada, e cuja tarefa está indicada em termos precisos e claros, tem por missão “impedir a paz na terra”, isto é, estender a guerra entre os homens “a fim de que se degolem” (v. 4). É impossível supor que o primeiro cavaleiro tenha relação com o segundo. Em conseqüência, ele não poderia personificar a guerra ou um poder guerreiro empírico como o império dos romanos ou dos partos, como se tem pensado58. Sendo seu aspecto relativo mais a uma potência a serviço de Deus, é necessário então buscar outra explicação. Pois bem, no livro de Apocalipse (19.11 s.), encontramos outro cavaleiro montado sobre um cavalo branco. Nessa passa gem, esta imagem está claramente explicada: “Se chama fiel e ver dadeiro..., seu nome era a Palavra de Deus". E difícil identificar pura e simplesmente esse cavaleiro com o de 6.259. Todavia, parece certo que a semelhança que apresentam esses cavalheiros nos indi ca o sentido que o autor do Apocalipse atribuiu ao primeiro cavalhei ro do capitulo 6. Este seria, pois, símbolo da pajavra divina, por conseguinte, da pregação do Evangelho: “Ele saiu vencedor e para vencer”, e precede os outros três cavalheiros. Nós compreendemos então, por sua vez, porque está representado sob uma forma análoga àquela que serve para ilustrar as três pragas, e que seu aspecto dife re absolutamente dos outros. A pregação do Evangelho forma, com efeito, parte dos símbolos precursores da era messiânica; todavia, pertence a outra ordem de valor, que os três sinais que seguem, no sentido de que ela não é uma praga. Se esta interpretação é exata, então, estamos aqui na presença da mesma concepção que se encon tra em Mc 13.10 e Mt 24.15. Os outros textos do cristianismo primitivo que atestam a mes ma crença não se contentam, de maneira geral, em assinalar pura e simplismente o fato escatológico da pregação pré-messiânica, mas expressam ao mesmo tempo uma advertência. Por um lado, adver tência aos discípulos para que cumpram sua tarefa escatológica de pregadores do Evangelho na qualidade de instrumentos divinos na 58 E. 59 As
LOHMEYER, o. c., 57, se pronuncia em favor dos Partos. dificuldades que provocaria uma tal identificação têm sido sublinhadas, sobretudo, p o r F. SPITTA , O f f e n b a r u n g d e s J o h a n n e s , 1889, 288 s., e W. BOUSSET, D ie O ffenbarung Johannes, 265, também por W. BALDENSPERGER, a. c., 12.
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execução de um ato apocalíptico preliminar. Por outro lado, adver tência aos que escutam esta pregação, para que obedeçam o cha mamento divino pelo arrependimento da fé. O dever que a necessidade escatológica da pregação missio nária implica para os discípulos se encontra sublinhada em At 1.6 s. Essa passagem põe em evidência a relação desta pregação com o fato da vinda do reino de Deus: o retardo. Depois da morte de Cristo, os discípulos reunidos propõem ao ressuscitado a questão que está no centro de suas preocupações e que lhes obceca durante este período, sobretudo porque vêem multiplicarem-se as aparições pas sageiras do Senhor, garantia de sua volta definitiva:60 “Senhor, é nes te tempo que vais restaurar o reino a Israel?” Em sua resposta Cristo começa por condenar toda tentativa de calcular o fim: “Não vos compete saber os tempos ou datas que o Pai estabeleceu pela Sua própria autoridade” (v. 7). Esse começo da resposta toma um cará ter especial, quando recordamos os intermináveis cálculos dos judeus e a controvérsia no seio da escola rabínica que continua ape gada a esses cálculos tanto quanto àquela que lhe resta, como con trapartida, na qual toda importância deveria ser concentrada sobre aquela condição prévia já exposta, isto é, sobre o arrependimento61. Porém, é sobretudo a continuação, o versículo 8, o que nos interessa aqui. Convém não esquecer que esse versículo forma parte da res posta de Cristo à questão determinante de seus discípulos. Enquanto que o versículo 7 encerra o lado negativo desta resposta, este nos dá o lado positivo: “mas (• Kk* ) recebereis poder quando o Espírito Santo descer sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda Judéia e Samaria, e até os confins da terra Isto quer dizer que não é todavia no “tempo presente” que será estabelecido o rei no, posto que os discípulos deverão espalhar o evangelho no mundo. A situação é análoga àquela de 2 Ts 2. De uma parte e de outra, se trata de acalmar a impaciência concernente à vinda do reino de Deus, e a argumentação é parecida nos dois casos. Em At 1.6-8, Cristo atrai a atenção dos discípulos, inquietos por causa do 6(1
Cf. nosso estudo L a sig in ifica tio n de Ia sa in t cène dans le chris ti an is m e p r im itif: RHPR (1936) 10 s. 61 Cf. mais atrás nas pp. 72 s.
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problema “cronológico” da apocalíptica, sobre a ação prévia e necessária do Espírito Santo que, considerado aqui unicamente como agente missionário, os impulsionará durante o tempo que separa Sua ressurreição de Sua volta, “a darem testemunho dele até os confins da terra”. Em 2 Ts 2.6-7, o apóstolo concentra sobre “o que o detém”, todavia, a atenção dos tessalonicenses que “se têm deixado impressionar demasiado facilmente, a ponto de perderem o bom senso, e se alarmarem por uma pretendida inspiração... como se o dia do Senhor fosse iminente” (2 Ts 2.2). O célebre chamamento missionário de Mt 28.19, “ide e ensinai a todos os pagãos (a todas as nações) ... ensinando-lhes a guardar tudo o que eu vos ordenei” se relaciona também com um tempo limitado', com o intervalo que separa a ressurreição e a volta de Cristo. A promessa que serve de conclusão a este chamamento mostra claramente esse aspecto cronológico: “ Eu estarei convosco todos os dias até o fim deste eori'. Esta promessa não tem, na origem, a significação vaga que nós intentamos atribuir-lhe, mas faz alusão ao caráter essencialmente escatológico do imperativo missionário; se refere ao lapso de tempo que precede o fim e durante o qual é necessário pregar o Evangelho aos pagãos62. A relação entre a necessidade da pregação e o juízo final está indicada no discurso pronunciado por Pedro (At 10.42) no momento da conversão de Comélio: “(Cristo) nos ordenou pregar ao povo e testificar que ele é aquele a quem Deus constituiu como juiz de vivos e de mortos”. Pedro indica aqui a razão pela qual o fim não virá até que o Evangelho seja pregado. Há, pois, um fato escatológico novo que foi revelado e que deve ser anunciado ao mundo: Jesus de Nazaré constituído por Deus como juiz. Em seu discurso em Jerusalém (At 3.19 s.), Pedro insiste sobre a obrigação entranhada na pregação pré-messiânica em relação àqueles a quem se dirige; de tal maneira que o arrependimento 62
O fim inautêntico do Evangelho segundo Marcos, sobretudo segundo o texto do ms. W., sublinha todavia mais, de uma maneira análoga a At 1.6 s., a relação da ordem missionária com o fato da vitória definitiva sobre Satanás. Os discípulos responderam (v. 14 b seg undo W): “ ...man ifesta tua jus tiça. Cristo lhes disse: o término do s anos da dominação de Satanás chegou; já se aproximam outras coisas terríveis... Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”.
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aparece como condição da vinda dos tempos messiânicos, como na escatologia judaica: Arrependei-vos, pois, e convertei-vos para que sejam apa gados vossos pecados, a fim de que venha da parte do Senhor os tempos de refrigério e que Ele envie aquele que vos tem sido destinado, Cristo Jesus, a quem é necessário que o céu receba, até que cheguem os tempos da restaura ção de todas as coisas. A medida que o Evangelho se espalha efetivamente e se distancia
da idade apostólica, a necessidade escatológica da pregação será cada vez mais examinada, não sob o ângulo dos pregadores, mas dos ouvintes. Deste modo se tenderia a esquecer que o fato desta pregação entra como um sinal precursor, no drama escatológico fixado por Deus. Todavia, se tratará sempre da crença relativa à condição prévia quanto ao fim. “Aguardai e apressai o advento do dia do Senhor, no qual se dissolverão os céus incendiados e se derreterão os elementos abrasados... reconhecei que a paciência do Senhor é nossa salvação!” disse o autor da segunda carta de Pedro (3.12,15). A noção de “paciência” divina, |íoc* po0\)(i*«, está estreitamente ligada à crença com a qual nos ocupamos. O autor das homilias pseudoclementinas especificará que as pragas apocalípticas todavia não chegaram: “ao contrário, Deus usa de paciência, Ele chama ao arrependimento”63. Nós poderíamos multiplicar os textos do mesmo gênero; porém cremos ser isto inútil, tanto mais que estes nos distanciariam da época que nos interessa aqui. Os textos que temos estudado são suficientes para concluirmos que no Século I, a escatologia cristã introduziu no quadro cronológico da apocalíptica a pregação do Evangelho: ela está no número das condições indispensáveis para vinda da era messiânica. 5. O “obstáculo ” e o caráter escatológico do apostolado de Paulo
A diversidade de fontes cristãs nas quais temos encontrado o motivo escatológico da pregação considerada como sinal precursor 63 H om .
XVI, 20.
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da era messiânica, parece indicar que não se trata de uma crença especificamente paulina. Não é menos certo que, na teologia de Paulo, esse motivo ocupa um lugar particularmente central, e que está fortemente ancorado nos próprios fundamentos do pensamento do apóstolo. Toma a forma de uma convicção escatológica infinitamente mais profunda e mais concreta que em todos os outros escritos cristãos. Isto se depreende sobretudo dos capítulo 9-11 da Epístola aos Romanos que trata da salvação de Israel e dos pagãos. Nessa expo sição, encontramos uma explicação da necessidade (8et* ?Mc 13.10) da pregação: “Como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão se não há quem pregue? E como pregarão se não forem enviados? Segundo está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam boas novas!” (Rm 10.14-15). Por conseguinte, para o apóstolo, a noção de salvação é inseparável da noção de “pregação”. Quando o apóstolo Paulo escreve estas linhas, a pregação do Evangelho não está senão em seus começos, e já se podia compro var a reação do mundo a este respeito: “Nem todos têm aceitado o Evangelho!” (v. 16). O povo de Israel se mostrou rebelde, e isto, apesar das promessas messiânicas das quais ele é depositário. Des de então, a salvação cessa de ser um privilégio exclusivo de “Israel segundo a carne”. Israel não será, pois, mais intermediário na con versão dos pagãos, tal como o havia sido na apocalíptica judaica. Pelo contrário, os pagãos é que levarão a salvação aos judeus. Tal é de fato a conclusão dos Capítulos 9-11. A vinda de Cristo, ou melhor, a atitude dos homens com relação à pregação do Evangelho, inver teu a ordem primitiva. No que se refere ao que se sucede ao advento da era messiânica esta depende da pregação aos pagãos que assu mem o papel de “Israel segundo o espírito”, e participam assim de todas as promessas feitas ao povo eleito. Para o apóstolo, a velha questão: “O que é que retarda a era messiânica?” Toma esta forma mais concreta: “Que é feito da promessa divina à Israel?” Definiti vamente, o problema é o mesmo. O que importa é mostrar que o plano divino concernente à salvação vindoura subsiste, apesar das aparências contrárias. Sublinhando a prioridade da salvação dos pagãos, Paulo reúne, de certa maneira, sobre um plano mais teológi co, as preocupações cronológicas da apocalíptica judaica, e, sobre
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tudo, a afirmação do apocalipse sinóptico: “É necessário que antes o Evangelho seja pregado a todos os pagãos” (Mc 12.10). Porém, ele insiste sobre a palavra “pagãos”. Enquanto é necessário realizar a tarefa escatológica antes do fim, isto não significa para Paulo a pre gação do Evangelho em geral, mas de uma maneira precisa, a pre gação aos pagãos 64. A imagem da oliveira enxertada (Rm 11.16-24) serve ao apóstolo para ilustrar o desejo de Deus: tendo sido cortadas as ramas podres do judaísmo, o paganismo é enxertado no lugar, sobre o tronco. E somente no fim, quando a árvore for completamente renovada, o judaísmo poderá enxertar-se de novo. A salvação messiânica de Israel depende, pois, do que se sucede aos pagãos, e de maneira definitiva, da ocasião que Deus oferece a estes de converterem-se. A pregação aos pagãos toma assim para o apóstolo um lugar cronológico claramente determinado no plano divino; ela constitui para ele um elemento integrante desse plano. No capítulo 11, Paulo exorta seus leitores a admirarem “a profundidade da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus” (v. 33) e faz isto para que possam pressentir o plano divino; ele lhes revela esse “mistério... que se endureceu uma parte de Israel até que haja entrado a plenitude dos pagãos ” (Rm 11.25). Ainda que o termo • fxx* %ov não apareça nesse importante relato da Epístola aos Romanos, a idéia do “obstáculo”, no sentido referido do neutro (do • a i ^ o v ) , se encontra de maneira manifesta. A alusão de 2 Ts 2.6-7, examinada à luz dos ensinos essenciais do pensamento paulino, se torna então inteiramente clara; tudo leva a H As idéias desenvolvidas em Rm 9-11 pressupõem a distinção teológica entre o “Israel segundo a carne” e o “Israel segundo o espírito”. Com efeito, de acordo com o capítulo 10 , onde o apóstolo enfoca a questão sob o ângulo da responsabilidade humana, “o Israel segundo a carne” é plenamente responsável por não desempenhar já o papel de “Israel segundo o e sp írito ” . Tem recusado a pregação com ple no con hecim ento de causa. “Não tem ouvido (os pregad ores do evang elho)? ...” (10.18). Porém, ainda quando o livre arbítrio humano seja salvaguardado, as promessas feitas por D eus no A ntigo Testa m ento subsiste m . No capítulo 9, com efeito, Paulo abor dando a questão da recusa provisória de Israel e da eleição dos pagãos sob o ângulo da soberania absoluta de Deus, afirma que esta é tão íntegra e completa como a respon sabilidade humana. No plano escatológico permanece tal como foi fixada pelas prom essas m essiânicas, pois Deus, por estas prom essas, não se ligou, se gundo ele, a um grupo étnico, mas ao Israel “segundo o espírito”.
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crer que Paulo, nessa passagem, remete os tessalonicenses a esta idéia que lhes é particularmente querida e segundo a qual a multidão dos pagãos deve entrar na salvação antes dos judeus. A importância que ele atribui a esta convicção se explica pelo caráter especifico de sua vocação, e isto nos leva a examinar, no marco da teologia paulina, a identificação do masculino • fxx*xcov com o próprio apóstolo. Se Paulo dispende tanto ardor em provar que, seguindo o plano divino, os pagãos devem “entrar” antes na salvação, isso não é somente por causa da polêmica dos adversários judaizantes. Uma necessidade mais pessoal lhe impulsiona a sondar sobre este ponto os últimos segredos da sabedoria divina. Não é provavelmente uma mera causalidade, que se introduz de maneira solene em Rm 11.25, a conclusão relativa à sorte final dos judeus e dos pagãos com essas palavras: “Não quero que ignoreis, irmãos, este mistério”. Se trata aí de uma revelação especial da qual ele mesmo tem sido objeto, e que lhe faz pronunciar, precisamente nesse lugar, a ação de graças que já temos mencionado: “Oh! profundidade da riqueza, da sabedora e do conhecimento de Deus” (v. 33). Esta revelação, concernente ao papel escatológico dos pagãos, afeta intimamente a Paulo, já que se refere a sua vocação apostólica que coincide, ademais, com sua conversão. Ela permite, por assim dizer, compreender o sentido teológico de sua vocação. Não seria demais insistir sobre o fato de que, em Paulo, não se trata de uma vocação ao apostolado em geral, mas a um apostolado bem definido, entre os pagãos. Desde sua conversão ele recebeu o chamamento divino sob esta forma concreta: “... que me separou desde o ventre materno e me chamou por Sua graça, agradou revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os pagãos” (G1 1.15 s.; cf. At 26.17). Reiteradamente ele afirma ter recebido seu apostolado “para conduzir à sabedoria da fé a todos os pagãos (cf. Rm 1.15; 15.18). Esse caráter concreto de sua vocação explica o zelo com que, até fora de toda polêmica, ele trata o problema proposto pela pregação aos pagãos. É verdade que esta pregação é para ele um dever imperioso que não se discute; porém, tem a segurança de que esse dever coincide com uma necessidade escatológica objetiva: o plano divino segundo o qual o Evangelho deve ser anunciado aos
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pagãos pag ãos antes do fim. Também T ambém é m ui uito to imp i mport ortant antee que, qu e, precis pre cisam amen ente te nesse mesmo capítulo onde revela aos romanos o “mistério” desse plano divino, lhes recorde seu próprio pró prio “ministéri “ ministérioo que lhe honra hon ra como após ap ósto tolo lo dos do s p a g ã o s” (Rm 11.13). Na N a E p ísto ís tola la aos Colo Co loss ssen ense sess (1.2 (1 .222-29 29)) in insis siste, te, da m esm es m a maneira, sobre s obre o vínculo estreito entre ent re seu “ministér “min istério” io” pessoa pes soall (* (*y* • • ccu* A.oç .oç 8i* • ©voç) e a “eco “econo nomi miaa di divi vina na”” (o (o** o r o p , e/. xou* Oeoi)* Oeoi)*)) que concerne ao “mistério entre os pagãos pagã os”” ( f *p .t)O T* T* pio p iovv t o d * t o • v TOl* TOl* ç • 0VEC 0VECJIV JIV). ). Autêntica Autên tica ou não, não, a passagem passa gem da carta aos Efésios (3.6 s.) põe em evidência esta mesma relação profunda, atestada pelo conjunto de outras outras cartas, entre a consciên cons ciência cia apostólica apos tólica de Paulo e seu ensino relativo ao papel escatológico dos pagãos: pagãos: Esse Es se mistério mist ério é que os p a g ã o s também são sã o herdeiros... po p o r meio do evangelho, do qual qu al fu i constitu cons tituído ído ministro segundo o dom da gra g raça ça de Deus... A mim, o mais pequeno peque no de todos tod os os santos, me f o i outorga outo rgada da esta es ta graça, gra ça, a de anun an uncia ciarr aos ao s p a g ã o s as rique riq ueza zass inson ins ondá dáveis veis de Cristo.
Paulo se reconhece como instrumento, não somente de Deus, mas também de um plano escatológico inteiramente inteiram ente concreto fixado por po r Deus: antes de tudo, o Eva E vang ngelh elhoo deve ser preg p regad adoo aos pagã p agãos, os, Por esta razão, apela às “revelações” todas as vezes que se trata de conhecer os mínimos detalhes desse plano. “Por uma revelação”, o apóstolo sobe à Jerusalém para expor aos irmãos “o Evangelho que preg pr egav avaa aos p agão ag ãos” s” (G1 2.2). 2.2 ). O livro liv ro de A to toss cons co nser ervo vouu cert ce rta a mente uma lembrança exata, quando diz que o Espírito, em certo momento, impede a Paulo e seus companheiros de “pregar na pro víncia da Ásia” (At 16.6), ou que o “Espírito de Jesus não lhes per mite ir a Bitínia” (At 16.7; cf. 20.22). Em tudo o que concerne a sua missão entre os pagãos, Paulo não é mais que o órgão de um plano ministro de escatológico decretado em todos os seus detalhes65; é “ ministro Cristo Jesus perante os pagãos ” (Rm 15.16), de quem é “deve dor” do r” (• Tt|ç: Rm 1.14). 1.14). 65 Veja,
a este respeito, o excelente artigo ’Atiocttoào<; de RENGSTORFF, era ThWbNT, 1932, 406 s., 440, 16.
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O apóstolo compreende, cada vez melhor, melhor, que o Evangelho Evang elho deve ser pregado com urgência aos pagãos no momento mom ento em que ele vive, “a noite esta avançada e o dia se aproxima” (Rm 13.12), e também se afirma nele, mais e mais, a consciência da “necessidade” terrível (• v» 7* f): 1 Co 9.16) que pesa sobre ele; ele é “prisioneiro de Cristo Jesus p o r amor am or aos ao s p a g ã o s” (Ef 3.1). Porém, ao mesmo tempo, nesse mandato consiste o que ele chama a “graça ” que o tem tocado po p o r eleição. “Nós recebemos a graça e o apostolado para conduzir à obediência obediên cia da fé a todos os pagãos” pagão s”.. A consciência consciência de ser um elemento indispensável no grande drama que se concluirá no estabelecimento final do do reino messiânico confere a todas todas essas passagens paulinas um sentido preciso que geralmente se perde de vista; é necessário lê-las sob esse ângulo para compreender todo seu alcance: A graç gr aça a divina divin a me f e z ministro de Cristo Cris to Jesus pe p e r a n te os p a g ã o s, cump cu mprin rindo do o s a gra gr a d o ser se r viço vi ço do evangelh evan gelho o de Deus, a fim de que a oferta ofe rta 'dos 'dos pa p a g ã o s Lhe s eja ej a a g radá ra dáve vel l (Rm 15.15-16).
A vocação dos outros apóstolos de Cristo tem também um caráter escatológico. Todos os discípulos que receberam o mandato missionário, seja da parte do Jesus histórico, seja da parte do ressuscitado, devem preparar os homens para a parousia “daquele que deve vir”66. Todavia, em algum destes, esta vocação não parece ter tido um caráter tão concreto como é o caso caso do apóstolo após tolo dos pagãos. A consciência apostólica de Paulo alcança um grau de intensidade excepcional que não foi jamais jam ais realizada por nenhum n enhum outro outro apóstolo apóstolo,, nem, inclusive, por nenhum profeta do Antigo Testamento67. Esta consciência tão intensa que remonta a sua conversão, e se encontra todavia estimulada pela polêmica dos judaizantes contra seu apostolado, lhe autoriza a “gloriar-se até em excesso” de sua missão escatológica especial, “sem envergonhar-se” (2 Co 10.8). Veja o artigo citado de RENGSTURFF, em ThWbNT, 1932, 423, 31. 67 LOHMEYR sublinhou a relação entre a consciência profética de Jeremias e a de Paulo. Cf. G r u n d l a g e n p a u l i n i sc h e r Th e o l o g i e , 1929, 201. Cf. também o artigo citado de RENGSTORFF, 440 s.
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Sua obra pessoal pesso al não é mais que qu e a obra de Deus, e sua pessoa se identifica com esta obra. Se é exato que, em 2 Ts 2.6-7, “o que detém” no momento a manifestação definitiva do Anticristo é a pregaçã preg açãoo aos pagão pa gãos, s, “ aquele que o detém de tém”” não não pode ser outro outro senão senão o instrumento eleito para esta pregação, a saber, o apóstolo que recebeu este encargo e a graça. Ele foi chamado a exercer de certa maneira o papel escatológico reservado ao “profeta precursor” na apocalíptica judaica que reconhece, como temos visto68, uma perso per sonif nifica icação ção da preg pr egaçã açãoo pré-m pr é-mess essiânic iânica. a. Que Paulo tenha podido atribuir a si mesmo o papel de • erc*%cov, e que ele tenha podido assim fazer depender a vinda dos tempos messiânicos de sua própria pessoa, pode parecer difícil à primeira vista. Todavia, está absolutamente conforme o elo es treito que ele estabelece nas epístolas entre sua pessoa e o plano divino relativo à sorte dos pagãos. Constantemente, sua consciên cia apostólica, fundada sobre este vínculo, lhe inspira uma dupla atitude: lhe impulsiona, por um lado, a “gloriar-se”; por outro, a expressar sua debilidade na execução de uma tarefa na qual não é mais que um instrumento passivo. E esta aparente contradição que lhe força a explicar tão freqüentemente sua maneira de “gloriarse” (• BO)%a* ü9ai). Quando considera o papel verdadeiramente sobre-humano da tarefa escatológica que lhe é de incumbência, não pode fazer menos do que “gloriar-se”: Eu me glor gl orio io em Cristo Cris to Jesus, em meu servi se rviço ço a Deus. Não me atrevo atre vo a fa la r de nada, exceto daqu da quilo ilo que Cristorealizou por meu intermédio em palavra e ação, a fim fi m de levar leva r os gentios a obedecerem a Deus (Rm 15.17 s.)
Assim, ele se gloria e não se gloria, gloria, pode dizer por um lado que “poderia, sem ter que se envergonhar, gloriar-se inclusive inclu sive em excesso” exce sso” (2 Co 10.8) 10.8) e, e, por outro, que a responsabili respon sabilidade dade de pregar preg ar o Evangelho não é para ele “causa de vangloria” (1 Co 9.16). A partir parti r de então, então, a idéia de considerar-se a si mesmo como o • fXT*%(ü v , de ser de certa maneira uma personificação do “obstá 68
Cf. mais atrás, p. 76.
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culo”, cessa de nos parecer demasiadamente atrevida. Esta maneira de se auto-designar denota, pelo contrário, exatamente a mesma dualidade que temos comprovado nas outras outras passagens: por po r um lado, lado, a consciência apostólica de Paulo encontra sua mais alta expressão, por outro, transparece uma grande reserva ao falar de si mesmo de um modo impessoal, na terceira pessoa. Convém relacionar o texto em estudo com 2 Co 12.2 12.2 s., s., onde o após apóstolo tolo fala igualmente igualm ente de revelações pessoais pess oais das quais ele tinha tinh a sido objeto obje to e onde empre em prega ga também tam bém a terc te rcei eira ra p e s s o a p a r a d esig es ign n ar-s ar -see a s i m esm es m o: “Eu conheço um que, há 14 anos, foi fo i arrebatado arrebatad o até o terceiro terc eiro céu...” céu... ” homem homem em em Cristo que, Se o autor vê sua própria pessoa em 2 Ts 2.7, empregando discretamente a terceira pessoa, se compreende tanto melhor que ele se contente com uma simples chamada à tarefa de um ensino oral recebido anteriormente. anteriormente. Crem Cremos, os, adema ademais, is, que que a ide identi ntifi fica caçã çãoo do • &T &T*%cov com co m o após a pós tolo permite permite também solucionar o problema quanto a dar uma explica ção mais satisfatória ao final do versículo 7: “Somente é necessário que, o que o detém agora, seja afastado”. A expressão •• • •^"©ou Y»yv£G0oa não tem necessar nece ssariame iamente nte o sentido senti do de “ser “s er suprimid su primidoo pela pel a violênc vio lência”; ia”; com efeito, õs exemplos exemplo s deduzidos deduzid os dos autores profano prof anos6 s699 provam pro vam que qu e signifi sig nifica ca simplesmen simp lesmente te “desa “d esapar parece ecer” r” e que pode pod e se apli car à morte. morte. Seria então a morte mo rte do apóstolo apó stolo Paulo a que, que, coincidindo coincidindo com o fim da pregação aos pagãos, marcaria ma rcaria o termo termo decisivo decisivo para a manifestação do Anticristo e a inauguração dos tempos messiânicos. Neste Nes te caso, seria neces ne cessár sário io relacio rela ciona narr essa ess a passa pas sage gem m da segund seg undaa Epístola aos Tessalonicenses com aquela da Epístola aos Filipenses (1.23) (1.23) onde Paulo Paulo menciona me nciona de uma maneira análoga sua morte morte,, pon do-a em relação com a obra missionária que ele deve realizar: Estou pressionado dos dos dois lados: lados: desejo partir p artir e estar com Cristo, o que é muito melhor; contudo, é mais necessário, p o r causa cau sa de vós, que eu permaneça no corpo. A tese defendida por Albert Schweitzer70 segundo a qual o apóstolo esperava ser, depois de sua morte, levado ao céu à maneira 69 Veja as referência no comentário de E. VON DOBSCHUÜTZ, o. c., 282. 70 A. SCHUWEITZER, O misticismo de Paulo, Novo Século, 2003.
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de Enoque, Elias e Baruc, poderia encontrar, em certo sentido, uma confirmação em nossa passagem tal como nós a interpretamos. Com efeito, esta esperança se explicaria muito bem por uma consciência apostólica tão intensa que impulsiona Paulo a ver sua própria morte como uma data decisiva a partir de um ponto de vista escatológico. O apóstolo em nenhuma parte fala mais de sua grande tarefa do que nos três capítulos da sua segunda Epístola aos Tessalonicenses. E nós consideramos este fato como uma última confirmação da solu ção que temos proposto. Já na primeira Epístola aos Tessalonicenses, ele havia falado do endurecimento dos judeus “que nos impede de falar aos pagãos para salvá-los” (2.16). Na segunda Epístola, são precisamente os versículos que seguem imediatamente a passa gem sobre o “obstáculo ” os que mostram porque o Evangelho deve ser pregado antes da manifestação do Anticristo; é que ”os que não aceitaram o amor à verdade que lhes teria salvo” se deixaram sedu zir pelo Anticristo, o “homem da iniqüidade” (2 Ts 2.9-12). Essa pas sagem exige, por assim dizer, uma menção quanto a pregação anterior, e se necessitaria quase exigi-la se não houvesse já a alusão ao “obs táculo”. Aos que não creram na pregação e caíram sob a condena ção, o apóstolo opõe em seguida aos mesmos leitores: “(o Senhor) vos elegeu... para dar-vos a salvação... Para isto vos chamou por meio de nossa pregação...” (v. 13). No capítulo seguinte, ele lhes pede que se associem a sua obra missionária por meio da oração: “Enfim, irmãos, orem por nós, afim de que a palavra do Senhor se propague rapidamente e seja glorificada em todas as partes, assim como aconteceu entre vós” (3.1), e lhes recorda como ele trabalha va “dia e noite” a fim de ganhar seu pão no cumprimento de sua tarefa escatológica. Ele se põe como exemplo para aqueles de Tessalônica que, preocupados pela proximidade do fim, deixaram de trabalhar. Ele próprio, realizando seu papel de • etT* %cov, mostra que a espera escatológica, longe de paralisar a ação neste mundo, é o mais poderoso estimulante. Os versículos 6-7 de 2 Ts 2, tal como nós os entendemos, concordam então perfeitamente com o resto da carta. Por outro lado, temos visto que, segundo nossa interpretação, estes não contém um elemento inteiramente novo em relação ao conjunto das epístolas paulinas, e confirmam, sob esta relação, a autenticidade da segunda
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Epístola aos Tessalonicenses que também, por outras razões, é, cada vez menos, negada pelos críticos. Portanto, estes versículos nos convidam a examinar o paulinismo sob um ângulo geralmente esquecido. Com efeito, as simples alusões ao • txx^ov e ao • c c x , % í o v relacionadas com o ensino de outras Epístolas, projetam uma luz mais viva sobre a figura de Paulo, e nos obrigam a situar a consciência apostólica, sob sua forma escatológica, muito mais no centro de sua personalidade e de sua teologia do que o que se faz habitualmente. A convicção de cumprir o papel principal até o fim, para que o véu possa se levantar de sobre o drama messiânico, eleva sua personalidade acima das leis ordinárias da psicologia humana e nos permite adivinhar os lados misteriosos da vida que escapam à investigação histórica. Nós compreendemos melhor a urgência quase febril com a qual o apóstolo, sem trégua, busca constantemente novos xóran (Rm 15.23) onde exercer seu ministério: “desde Jerusalém até Ilírico”; e quando nesta parte do mundo “a obra do evangelho estiver terminada” (Rm 15.19), sua preocupação se dirige à Espanha. “O tempo é curto” (1 Co. 7.29), porém o apóstolo tem a obrigação terrível de deter, todavia, a vinda do Anti-Crísto finalizando antes a pregação aos pagãos: “Ai de mim, se não pregar o evangelho!” (1 Co. 9.16).
5 • EIAEN KAI • ÍIIIT* EEN
A VIDA DE JESUS OBJETO DE “VISÃO” E DE “FÉ”, SEGUNDO O QUARTO EVANGELHO Um dos méritos de M. Goguel é ter mostrado em sua Vida de Jesus, contrariamente à tendência que caracteriza quase todas as obras similares de seus predecessores, que não somente a tradição sinóptica, mas também o Quarto Evangelho, contém elementos que podem e devem ser utilizados pelo historiador desejoso de reconstruir o que podemos saber sobre a vida histórica de Jesus de Nazaré, apesar das alterações que este Evangelho tenha feito para adaptá-lo a seu intento. Nós queremos, neste capítulo, nos ocupar de outro aspecto da questão e buscar a significação religiosa e teológica que o próprio evangelista atribui a esses acontecimentos históricos. O pensamento joanino que se pode derivar deste Evangelho foi freqüentemente estudado. Porém, em ditos estudos, a questão da relação precisa desse pensamento com os acontecimentos históricos da vida de Jesus, que se lhe serve de quadro, quase nunca é exposta. E, todavia, o autor deve ter tido uma idéia sobre este assunto, dado o fato de ter escolhido intencionalmente a forma literária do Evangelho. Antes de tudo, é exato falar aqui de “quadro”? Isto não implica já numa interpretação dos fatos narrados que talvez não seja a do evangelista? Com efeito, se pressupõe quase sempre, e, por assim dizer, a priori que os relatos não tiveram, para o próprio evangelista, senão uma importância puramente literária. Nós veremos que isto impede a verdadeira compreensão do intento do evangelista. Na realidade, é necessário propor a questão de outra maneira e nos
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perguntarmos que relação o autor vê entre a história da vida de Jesus e a fé que, seguindo sua própria afirmação (Jo 20.30), ele quer comunicar aos seus leitores. Esta relação não teria sido puramente exterior. Deve haver, no pensamento do evangelista, uma relação interna entre as duas. Quando no capítulo 20.30, ele declara que fez uma seleção entre os relatos que tomou de uma tradição muito mais rica, e que os “sinais” que ele escolheu para incorporá-los em seu livro foram fixados por escrito, a fim de que os leitores “creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus”, implica evidentemente que sua “seleção” foi determinada não por um princípio histórico, mas por um princípio teológico. Todavia, seria falso concluir que os acontecimentos históricos como tais, relativos a Jesus feito carne, não tiveram mais que um interesse secundário para o evangelista. Pois a afirmação: “Jesus é o Cristo, o Filho de Deus”, de tal natureza que exige a história. Isto é válido em um duplo sentido: antes de tudo, o próprio sujeito desta afirmação central da fé, “Jesus”, concerne diretamente à história. E quem diz “Cristo” diz, evidentemente, fé e teologia. Porém, para o autor do Quarto Evangelho, não se trata de uma teologia gnóstica, atemporal, metafísica, mas de uma história da salvação: trata-se de Cristo presente na execução do plano divino por completo; no passado, desde a • px* *“Ele estava junto a Deus”, no presente e no porvir: “fora dele, nada se fez”. Isto não é uma afirmação filosófica. Cristo é o Filho de Deus, é o agente do drama redentor que se desenrola do início ao fim. A relação entre Jesus e Cristo não é então a relação entre uma personagem histórica e uma entidade metafísica, mas, antes, entre uma história visível, limitada a um período muito breve, o da vida de Jesus, e uma história especial que se desenvolve através dos tempos: a “história da salvação”. Os acontecimentos da primeira foram objeto da visão, os da segunda são objeto da fé. Por isso, a vida de Jesus, no pensamento do evangelista, não tem por objetivo proporcionar simplesmente um quadro exterior, cômodo, mas antes pôr em evidência a identidade entre o Jesus encarnado e o Cristo eterno, em especial Cristo presente na Igreja. Isto resulta em uma dualidade que podemos seguir facilmente por todo o Evangelho: assim como nenhum Evangelho insiste tanto
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sobre a humanidade perfeita de Cristo - se pode provar, com efeito, que não somente as epístolas joaninas, mas também o próprio Evan gelho toma posição contrária ao docetismo - tão pouco, talvez, nenhum outro escrito do Novo Testamento1sublinhe tão freqüen temente a divindade de Cristo. De um lado se insiste na importância da a* e de outro nos damos conta de que a o* pt, não é de nenhum proveito. Esta dualidade encontra sua explicação no próprio intento do Evangelho tal como nós o definimos. Ela nos dá a chave para compreender esse Evangelho e ao mesmo tempo o seu princípio de interpretação. Nas páginas que se seguem vamos mostrar, estudando o emprego dos termos “ver” e “crer” e sua relação recíproca no Quarto Evangelho, o problema que o próprio evangelista propõe. Ele suscita, se se pode falar assim, o problema da teoria do conhecimento que implica essa maneira de compreender os acontecimentos da vida de Jesus. Ele se interessa pela questão de saber como pode chegar a escrever uma vida de Jesus considerada sob este ângulo particular e como o leitor poderá compreendê-la: de que maneira a relação profunda dos acontecimentos históricos desta vida, que não se produziram mais que uma só vez, puderam unir-se com o plano divino do passado e sobretudo do presente? Dito de outra maneira: como o que foi objeto da visão pode chegar a ser objeto da f é l Depois comprovaremos como a fé deve ser seguida de uma compreensão só se tornará possível depois da glorificação de Cristo. O emprego extremadamente freqüente dos verbos que signifi cam “ver” e “crer” tem preocupado muito os intérpretes do Quarto Evangelho. Assim, desde o prólogo, lemos: “Nós vimos a sua glória” (1.14), e todo este Evangelho culmina no relato do apóstolo Tomé. Importa assinalar que não é mera casualidade que este relato seja o último deste Evangelho propriamente dito, tendo sido o capítulo 21 acrescentado mais tarde. Não se fez notar suficientemente que a última frase pronunciada por Jesus neste Evangelho é a que dirige a Tomé: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (20.29). 1
Com exceção da Epístola aos Hebreus, que também se interessa pela humanidade de Cristo de maneira especial.
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O evangelista colocou esta frase como o coroamento de sua obra no final do Evangelho, pois se aplica aos leitores de todo o livro. Com efeito, estes se encontram em uma situação em que não viram por si mesmos, por isso devem crer. Esta situação, um tanto problemática, forma o elemento norteador deste Evangelho. Todavia, o autor não quer dizer com isto, de modo algum, que o testemunho ocular careça de importância. Pelo contrário, é necessário que durante a vida de Jesus tenha havido quem o tenha visto; é necessário também que os cristãos, que não o viram por si mesmos, possam fundamentar-se sobre o testemunho daqueles que realmente o viram com seus próprios olhos (1 Jo 1.1 s.). Porém não basta, todavia, tê-lo visto nem fundamentar-se sobre o testemunho ocular de outros, por muito necessário que isto seja. E necessário, ademais, um ato de fé que pressupõe um condicionamento superior, uma compreensão superior da vida de Jesus. Sob este aspecto, a situação dos leitores é a mesma que a do evangelista. Assim, nos encontramos no Quarto Evangelho, por um lado, com textos que sublinham a necessidade de ver, e, por outro, com textos que sublinham a necessidade de crer, ou antes, de chegar pela fé a uma compreensão mais perfeita. Como na primeira Epístola joanina, os três verbos *pcc*v (com os sinônimos) rnoxe^eiv e yiyv* g» eiv se encontram também neste Evangelho, em uma relação recíproca muito estreita2. À primeira vista, parece haver contradição ao dizermos, por um lado, que é a visão e, por outro, que não é a visão, mas a fé o que importa. Intentou-se resolver está dificuldade atribuindo, no primeiro caso, ao fato de ver o sentido de uma contemplação espiritual. Porém, esta explicação esta nitidamente excluída pelo emprego que o autor faz das palavras que significam “ver”: • pa» v, 0e* ©|iai, Gecopet» r. É verdade que o sentido de uma contemplação puramente espiritual está atestada para as duas últimas. Porém, há o fato de que o uso joanino dos três verbos prova que os três podem ser empregados indiferentemente com o mesmo sentido (assim *0eaa* pte0a t* v ôó^av, 1.14, comparar com •*)/• *xri* v ôóÇocv, 11.40, e evêev x*v ôó^av, 12.41, há passagens onde 2
Cf. RUDOLF BULTMANN, em ThWbNT , t. I, 711 s.
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0£»O|j,ai (1.38; 6.5; 11.45) e 0£copet*v (6.19; 10.12) significando indiscutivelmente ver com os olhos do corpo3. Em outras passagens, encontramos os dois sentidos, e esta é uma das características da tendência joanina em empregar estes verbos em duplo sentido4. Por conseguinte, não há contradição alguma quando este Evan gelho insiste, por um lado, sobre a necessidade de ver fisicamente, e, por outro, sobre a de crer. Na realidade, esta justaposição corresponde a todo o pensamento do Quarto Evangelho assim como também ao intento que ele persegue. Com relação à necessidade de “ver”, já citamos a frase do prólogo que corresponde ao exórdio da primeira epístola joanina onde todos os sentidos humanos são invocados, por assim dizer, como tes temunhas: “Nós vimos sua glória” (•0eaa* pteGa, 1.14). Com efei to, não somente o uso já mencionado do verbo 0e* ©|iai como também o contexto (•••foóyoç o* pç •yrexo) provam que nesta passagem está implicado, ao mesmo tempo, o fato de se ver com os olhos do corpo. E essa comprovação deve ser feita independentemente da questão referente às conseqüências que podem derivar-se para o problema do autor; além da solução da primeira pessoa do plural empregada néste lugar5. No relato da ressurreição de Lázaro, este Evangelho refere intencionalmente a frase pela qual Jesus manifesta Sua alegria pelo fato de que os discípulos têm a ocasião de ver; têm a possibilidade de assistir como testemunhas oculares a este milagre. Em 11.15 se decla ra: “Alegro-me por vós de não terem estado ali (junto à Lázaro no momento de sua enfermidade) para que creia is ”. Segundo o versículo 21 (se tu tivesses estado aqui, meu irmão não teria morri do), isto pode significar somente que é necessário que os discípulos tenham a possibilidade de ver, antes de tudo, o milagre da ressurrei 3 Cf.
WALTER BAUER, Griechsch-deutsches Worterbuch zu den Schriften des Neun Testaments, a propósito de 0e* onca e Gecopeiv. 4 Cf. O. CULLMANN, D e r jo h a n n e isc h e G ebrauch d o p p e ld e u tig e r A u sd riick e ais Schliissel zum Verstándnis des vierten Evageliums: TheolZ (1948) 360 s. Cf. mais adiante, 133, n. 11. 5 Cf. RUDOLF BULTMANN, D as E vangelium des j o h a n n e s , 1941, 45 s. e F. TORM, D ie P sychologie des vie rte n Evange/ium s: A ugenzeue oder n ic h t ?: Zeitsehrift für die neutestamentliche Wissenschaft (1931) 125 s.
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ção para chegarem logo à fé. Com efeito, observamos no versículo 45 que muitos judeus que se chegaram junto à Maria viram o que ele havia feito e creram nele. Parece se dar o mesmo propósito no Capítulo 12.30, onde Jesus sublinha que a voz celeste ressoa por causa da multidão que está presente. Por conseguinte, nestas passagens, o importante é que as testemunhas viram verdadeiramente com seus olhos, e ouviram com seus ouvidos. É necessário mencionar igualmente o relato da ida dos dois discípulos ao sepulcro de Cristo: o discípulo amado que chega primeiro, ao entrar no sepulcro, “vê” e “crê”. O versículo seguinte dá, por assim dizer, a explicação desta necessidade de ver e crer para os discípulos, quando afirma que estes não haviam compreendido, todavia, a Escritura, onde poderiam encontrar a prova da ressurreição. A mesma necessidade existe para Tomé, que deve tocar no ressuscitado antes de crer (20.27). Se é verdade que Cristo lhe disse: “por que me viste, creste? Bem-aventurados os -que não viram e creram”, não é menos importante que o apóstolo Tomé deva antes de tudo ver e tocar. A frase que o ressuscitado lhe dirige não encerra unicamente uma censura a sua atitude. Pois também os outros apóstolos dos quais os versículos 19 s. tratam, tiveram que ver as mãos e o lado de Cristo6; e, por outro lado, Tomé, depois de ter visto e tocado, chega efetivamente à verdadeira fé pronunciando a confissão mais sublime que pode haver para o evangelista, aquela que resume o prólogo (1.1): “Senhor meu e Deus meu!” De todas as formas, para se chegar a esta fé não basta só a visão. É certo que as testemunhas oculares devem ter visto, porém, para elas, é necessário algo mais. Esta é a razão pela qual encontramos já um grande número de passagens que insistem sobre a insuficiência da visão e a opõem, sem contradizerem-se, à fé. Por isso, o evangelista quer mostrar aos leitores que estes só têm o ato de fé, e que já nos tempos de Jesus o fato daqueles terem visto não havia bastado. Tomé (20.28), e mesmo o discípulo amado (20.8), haveria de crer depois de ter visto. Porém, a insuficiência da visão é todavia mais patente no caso em que ela não é seguida da fé. 6 Isto foi sublinhado com razão po r M A RK US BARTFí. D er A u genzeuge, 1964, 196.
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Diferentes passagens deste Evangelho falam daqueles que, durante a vida de Jesus, puderam ver com seus olhos as obras de Jesus, ouvido com seus ouvidos suas palavras, e, todavia, sem chegar à verdadeira fé que era exigida a partir do que viram e ouviram. Por conseguinte, a fé não segue automaticamente à visão. Já, no capítulo 2.23, o evangelista nota que, depois das bodas de Caná, muitos de Jerusalém, depois de terem visto os sinais realizados por Jesus, “creram”, dito de outra maneira, chegaram a uma certa fé. Porém, “Jesus não se confiava a eles”. Uma fé baseada unicamente sobre a visão, que se confunde, por assim dizer, com o próprio ato de ver, não basta. Uma fé que é simplesmente uma dedução extraída dos fatos que se tem visto, e nada mais, não é a verdadeira fé. Com essas observações, o evangelista intenta mostrar que a verdadeira fé é um ato que se realiza no coração daqueles que crêem. Os fatos quanto a ver e entender devem ser seguidos desse ato interior. Assim, no capítulo 4.48, Jesus censura o oficial real, e, ao mesmo tempo, a toda sua geração: “Se porventura não virdes sinais e prodígios, de modo nenhum crereis”. E se pode dizer que o sentido profundo de todo este relato reside no fato de que o oficial real crê imediatamente sem ver (v. 50) quando Jesus lhe disse: “Teu filho vive!”; aqui, a fé está fundamentada não sobre a visão do milagre, mas, antes, sobre a atitude interior que o oficial toma frente à “palavra” de Jesus. O mesmo motivo sinóptico da busca do milagre por parte da multidão serve, no capítulo 6, para pôr em evidência a insuficiência da visão. Quando no versículo 30 os judeus perguntam a Jesus: “Pois tu, que sinais farás para que vejamos e creiamos?”, o evan gelista entende a palavra Ttioxe* ctv no sentido de uma fé imper feita, pois se deriva simplesmente do ato de ver, independentemente do ato de fé interior propriamente dito. Com efeito, os judeus já tinham tido antes a ocasião de ver o milagre da multiplicação. Alguns versículos mais adiante (v. 36), Jesus lhes diz: “Vós me vistes e não haveis crido!” No capítulo 7.5, o evangelista escreve que os próprios irmãos de Jesus não crêem, e todavia, segundo o versículo 3, tiveram a oportunidade de ver suas obras. No capítulo 14.7 s., fala também da insuficiência da visão. Quando Jesus disse: “Desde agora o conheceis e o tendes visto”,
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Felipe, que não compreende nada disto, pergunta: “Senhor, mostranos o Pai e isso nos basta”. Jesus então se vê obrigado a repreendêlo: “Há tanto tempo estou convosco, e tu não me tens conhecido?” Nessa mesma ordem de idéias, é necessário voltar, todavia, sobre o relato de Tomé (20.34 s.). Temos comprovado certamente que o fato de ver se apresenta como uma necessidade para o apóstolo, testemunha ocular da vida de Jesus. Porém, também encontramos igualmente que o ato de fé deve juntar-se ao ato da visão; todavia, o ato de fé é mais importante que a visão. A frase que Jesus pronuncia no capítulo 9.39, expressa, por sua maneira, a insuficiência da visão física: “Eu vim a este mundo para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tomem cegos”. Aqui (3À*rceiv está empregado em um duplo sentido. Também, ali onde a visão com os olhos carnais é pressuposta como uma necessidade, a segunda significação, a de uma “contempla ção espiritual”, se encontra freqüentemente como pano de fundo; e esta simultaneidade de “ver com os olhos” e “contemplar pela fé” é uma das características do Quarto Evangelho. Isto se sucede no versículo já citado do prólogo, o mesmo que nos capítulos 6.40 e 14.19. Por esta razão, se pode chegar a inverter a ordem, como no capítulo 11.40: “Se creres verás a glória (Só^a) de Deus”7. , O mesmo se sucede com as frases relativas ao fato de enten der; freqüentemente implicam a necessidade de entender de modo distinto e anterior aos dos ouvidos. Em todo caso, o episódio da voz celeste (12.28 s.) pressupõe que a multidão que a escutava (v. 30) deveria entender nela a glorificação de Cristo por Deus, enquanto que na realidade não perceberam mais que um ruído, crendo que se tratava de um trovão. À simultaneidade da visão física e da contemplação pela fé corresponde também a dupla significação do termo pelo qual o evangelista tem o costume de designar o objeto da visão e da fé: ele não emprega nossa expressão moderna “acontecimento”, mas disse oripeiov e indica por isto que se trata de fatos que são visíveis e que, portanto, exigem uma compreensão superior que não é possível senão por meio da fé. 7 Seria necess ário relac ion a-lo com 1.51.
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Sendo assim, todas as testemunhas oculares até a última, Tomé, deveriam necessariamente realizar este ato interior de fé, esta necessidade se imporá tanto mais à geração que viverá depois da morte e ressurreição de Cristo. Porém, o autor vai mais longe. Não somente é necessário este ato de fé depois da ressurreição de Cris to, mas também é mais fácil a compreensão superior dos “sinais” nesse momento do que durante a encarnação de Jesus. Com efeito, essa compreensão espiritual que resulta da fé, mas que não se con funde com ela, não é possível senão pelo Espírito Santo, depois da glorificação de Cristo (7.39). Temos aqui uma idéia que tem grande importância para o autor. Os leitores não podem dizer, por conse guinte, que estão em uma situação menos vantajosa que aqueles que viram a Cristo segundo a carne. Pelo contrário, estes se encontram, até certo ponto, em uma situação privilegiada em relação àqueles que viveram somente no tempo de Jesus. Pois estes têm o Espírito Santo que abre a mente dos crentes e lhes explica o sentido profundo dos acontecimentos da vida de Jesus. O relato desses acontecimen tos lhes é transmitido pelo testemunho ocular dos apóstolos, sobre o qual se pode fundamentar (17.20). Este testemunho ocular é tam bém indispensável ao crente. Porém, a verdadeira compreensão da vida de Jesus não é possível senão depois da glorificação de Cristo, isto é, depois que Ele tenha enviado o Espírito de verdade. Temos aqui porque as frases de Jesus, que o evangelista refere nos discursos de despedida (14.16), têm para ele mesmo um valor pessoal. Estas justificam todo seu intento literário: O Espírito Santo prometido por Jesus aos Seus neste momento, à véspera de Sua morte, deu também ao autor a compreensão acerca da vida de Jesus que ele quer comunicar a seus leitores neste Evangelho. Duas passagens do discurso de despedida nos dão a chave para a compreensão de nosso Evangelho: O Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos recordará tudo o que Eu vos disse (14.26); tenho porém muitas coisas que vos dizer, porém não as podeis compreender agora. Porém, quando o Espírito da verdade vier, Ele vos guiará a toda à verdade (16.12 s.).
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Em geral, se esquece que a ação do Parácleto concerne, em primeiro lugar, à compreensão da vida de Jesus. Fala-se muito da consciência messiânica de Jesus. Aqui, se poderia quase falar da consciência literária do evangelista, de sua consciência de estar inspirado pelo Parácleto. Movido por esta consciência, ele situou os acontecimentos da vida de Jesus na perspectiva particular que distingue seu Evangelho dos outros e que nos faz abraçar a um mesmo tempo o Jesus da história e o Cristo da fé. Por isto, o autor, ao longo de seu relato, recorda constante mente aos leitores que os que viram os acontecimentos não compre enderam seu verdadeiro significado até a glorificação de Cristo. Por exemplo, no final da perícope sobre a purificação do templo (2.19), ele declara expressamente que os discípulos se deram conta de que Ele lhes havia falado de seu próprio corpo que devia ser destruído somente depois da morte do Senhor. Todas as passagens do Quarto Evangelho que mencionam essa “recordação”8devem ser relacio nadas com as afirmações retaliavas ao Parácleto p têm, para a com preensão do caráter especial deste Evangelho, muito mais importân cia do que se crê geralmente. A “recordação” de que se trata aqui não é simplesmente a recordação do fato material propriamente dito, mas, antes, que implica, ao mesmo tempo, a compreensão desse fato que é conferido pelo Espírito Santo. Assim, em virtude dessa recorda ção particular, o evangelista compreende a relação que une os aconte cimentos da vida de Jesus com o Antigo Testamento. Quando, ao lon go de seu relato, recorda ao leitor esta relação, faz notar expressamente que as testemunhas oculares não se deram conta desta relação até um período posterior. Por exemplo, no capítulo 12.16, refere o fato de que Jesus havia montado em um jumentinho, como cumprimento de Is 40.9 e de Zc 9.9; e ali, também, acrescenta intencionalmente: Seus discípulos a princípio não compreenderam isto; quando, porém, Jesus fo i glorificado, então eles se lembraram de que estas coisas estavam escritas a respeito dele e também de que lhas fizeram. 8 Cf. N. A. DA HL, A n a m n e sis. Mémoire et commémoration dans le christianisme prim itif, em Studia theologica. Lund, 1947, 94.
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É necessário mencionar aqui a frase de Jesus dirigida a Pedro no momento do lava-pés: “Isto que eu faço tu não compreendes agora, porém o compreenderás mais tarde” (13.7). Trata-se da com preensão da relação deste ato com os sacramentos da comunidade. Por outro lado, a informação já citada pelo evangelista, no capítulo 20.9, recorda o conhecimento que, também a comunidade, terá mais tarde (o* 8* rcco) do testemunho que o Antigo Testamento dá da res surreição de Cristo. As indicações acrescidas pelo autor, em 12.32 e 18.32, se apoiam igualmente sobre a compreensão profunda de uma frase de Jesus, tal como é revelada a ele somente “depois de um pouco de tempo”. Em um trabalho anteriormente publicado9, estudamos o voca bulário do Quarto Evangelho e mostramos que o evangelista empre ga preferentemente palavras e expressões que têm um duplo sentido: o material e o espiritual. E o mais característico é que as emprega em uma mesma passagem nos dois sentidos. Isto confirma exata mente o resultado a que temos chegado aqui estudando a relação entre “ver” e “crer”. O intento que persegue este Evangelho é o de referir os acontecimentos da vida do Jesus histórico, ao mesmo tem po que o de mostrar sua relação com a continuação da história da salvação, com a Igreja. Ele quer mostrar, em cada relato, a identida de que existe entre o Jesus da história e o Cristo presente na Igreja. Não há nenhuma alternativa. Os acontecimentos históricos são como uma prefiguração do que acontece na vida da Igreja, particularmen te no culto e nos sacramentos da Igreja10. Este resultado é importante para a exegese do Quarto Evan gelho. Pois se tal é o intento desse Evangelho, isto é, se intencional mente quer falar por sua vez de fatos únicos e de sua prolongação na história da salvação, o exegeta do Quarto Evangelho deve conside rar como seu dever levar em conta esta intenção de abarcar, ao 9 Cf. a p. 97, n. 4. 10 M. GO GU EL semp re insistiu sobre o interesse particular do quarto evangelho pelos sacramentos. Cf. sobre tudo L ’eucharis tie des orig in es à Justin M arty r, 1910, 195 s. Nós se guim os esta preocupação do evangelista através de todo se u livro, em Urchristentum und Gottesdienst, 1944. Nossa tese foi discutida e parcialmente contestada por W. M IC H A EL IS, D ie Sa kra m ente im Joha nn eseva n g eliu m , 1946. Na segunda edição corrigida de nossa obra, respondemos a W. MICHAELIS.
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mesmo tempo, esses dois aspectos em todas as partes do livro. Não deve se contentar em examinar um fato unicamente sob o ângulo material, mas é necessário propor, de uma maneira sistemática, a questão de saber que fato atual o autor vê prefigurado em tal acon tecimento da vida de Jesus. Esta questão deverá ser delineada não somente nos relatos onde o próprio evangelista a suscita explicita mente, pois, levando em consideração sua maneira preferida de se expressar, é necessário delineá-la em todo o Evangelho. No caso do Quarto Evangelho, isto não é cair de nenhuma maneira na alegoria11. O evangelista tem confiança nesta faculdade de compreensão que o Parácleto comunica também ao leitor. Este deve participar no conhe cimento superior do evangelista que abarca, por sua vez, de uma só vez, o acontecimento histórico único ou a palavra de Jesus pro nunciada uma só vez, e seu desdobramento na ulterior história da salvação.
11 E sta censura foi feita ao livro Urchristentum und Gottesdienst, 1944, 33 s., ao tentar mostrar em um grande número de perícopes joaninas as alusões ao batismo e à eucaristia, por H. VAN DER LOOS, A lle g o r isc h e E x e g e se ’. Nederlands ThTij (1948) 130 s. e W. MICHAELIS, D ie Sakra m en te im Johannesevangeli um . B.E.G., Berne 1946. Se não tivéssemos por exemplo mais que Jo 3.14, se consideraria certamente como uma explicação “alegórica” a relação estabelecida entre o termo «empregado neste lugar e a cruz de Jesus. Casualmente, o autor nos indica mais adiante (12.32) o que ele entende por “elevar” ao falar de Cristo, não somente no sentido corrente de “elevar à direita de Deus”, mas também de “elevar na cruz”.
6 O RESGATE ANTECIPADO DO CORPO HUMANO SEGUNDO O NOVO TESTAMENTO Nossos corpos não ressuscitarão imediatamente depois da morte individual de cada um, mas somente no final dos tempos. Tal é a esperança geral do Novo Testamento que, neste aspecto, se opõe não somente à crença grega na imortalidade da alma, como também à opinião segundo a qual os mortos viverão, antes da parousia, fora do tempo e se beneficiarão também do cumprimento final. Nem a frase de Jesus (Lc 23.43) “em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso”, nem a parábola do rico refestelado e do pobre Lázaro que, depois de sua morte, foi levado pelos anjos “ao seio de Abraão” (Lc 16.22), nem a expressão do apóstolo Paulo (Fp 1.23): “eu desejo morrer e estar com Cristo” e nem sua exposição em 2 Co 5.1 s., sobre o estado de “nudez” atestam a idéia de que aqueles que morrem em Cristo antes da parousia sejam imediatamente revestidos de um corpo de ressurreição. Estes textos afirmam unicamente que o fato de pertencer a Cristo tem também conseqüências para aqueles “que dormem”, e a passagem de 2 Co 5.1 s. mostra em particular que os “dons do Espírito” (v. 5) outorgados aos crentes impede o estado de nudez dos mortos falecidos antes da parousia, tudo o que poderia ter de terrífico. Graças ao nveu* pia, estes estarão “junto ao Senhor” já durante este estado intermediário, que é descrito com a ajuda da imagem do “sonho” (lT s4.1 3)o u daquela visão do lugar privilegiado que estes ocupam “sob o altar” (Ap 6.9). Toda a exposição paulina consagrada em Ts 4.13 s. à questão da sorte dos que morrem em Cristo antes da parousia estaria desprovida de sentido, se atribuirmos
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ao apóstolo a idéia de uma ressurreição do corpo que sobrevive depois da morte individual de cada crente. Na realidade, não há mais que um só corpo que já ressuscitou e que existe desde agora como a©* j*ta TUveujiaTi* óv: o de Cristo, que pelo mesmo fato é o primogênito entre os mortos (Cl 1.18; Ap 1.5). Por esta ressurreição, a vitória decisiva sobre a morte já foi obtida (At 2.24). É verdade que a morte exerce todavia seu poder sobre os homens, porém já perdeu sua onipotência definitivamente (2 Tm 1.10). Com a ressurreição de Cristo o poder da vida, o Espírito San to, entrou no mundo. O Espírito Santo é a grande antecipação atual do fim: • ppa(3* r (2 Co 1.22; 5.5), • rcap%* *(Rm 8.23). Em Rm 8.6 s., o apóstolo Paulo mostra que o Espírito Santo é o grande adversá rio da carne, poder da morte. Dizer carne, a* p^, é dizer morte, 0* vaxoç. Dizer Espírito Santo é dizer vida, Çco* r Quando o Espírito Santo aparece, a morte desaparece. Tudo o que o Espírito toca per de, como por encantamento, seu caráter perecível, mortal. O Espíri to Santo, é o poder criador do próprio Deus. Toda ação do Espírito Santo é milagre, milagre de vivificação. Ao grito de desespero de Rm 7.24, “quem me libertará do corpo dessa morte?” (•• •tou** o • piaxoç tod* •O av to u to* fou), responde o testemunho de todo o Novo Testamento: o “Espírito Santo”. Todavia, ainda que o Espírito Santo já atue, os homens conti nuam morrendo como antes, depois da páscoa e depois do pentecostes. Seus corpos permanecem mortais e expostos à enfermidade. Ainda que já se encontre vencida, privada de sua onipotência (2 Tm 1.10), a morte não será aniquilada senão no fím dos tempos como o “último inimigo” (1 Co 15.26; Ap 20.13). Então, somente o Espírito Santo transformará os corpos carnais em corpos espirituais o* tia ia 7tvet)|J,om* • *(*1 Co 15.44). Esta será a nova criação, onde uma matéria de vida substituirá a matéria da morte. No presente, o juveu* wa renova a cada dia somente nosso homem interior (2 Co 4.16; Ef 3.16). O fato de que o Espírito Santo habite em nós, desde agora, é a garantia de que, no porvir escatológico, Ele vivificará nossos corpos mortais: Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus
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dentre os mortos vivifícará também os vossos corpos mortais, por meio de seu Espírito que em vós habita. (Rm 8.11). Porém, no presente momento, a a* pç, domínio da morte, se definha unida indissoluvelmente ao nosso oco* pia. Quer dizer que há um poder, o de nossos corpos, que escapa completamente à ação atual do Espírito Santo? Seu poder vivificador fica assim condenado à impotência diante do nosso corpo de morte? O fato de que exista, neste momento, um corpo de ressurreição, o de Cristo, não significa nada para nossos corpos mortais? Vamos mostrar que, segundo o Novo Testamento, o Espírito Santo, ainda que sem poder transformar nossos corpos carnais em corpos espirituais antes da parousia, estende antecipadamente sua ação presente até o domínio do < j c o * pia, fazendo retroceder assim a própria morte, onde havia se estabelecido com mais solidez. Mostra remos: 1) que esta ação antecipada sobre o corpo humano se mani festa já na presença de Jesus durante seu ministério terrestre, nos milagres de cura e de ressurreição; 2) que na Igreja, sendo o corpo de Cristo, o oco* pia íive/uncm* óv sobre a terra, os corpos carnais dos membros que compõem este corpo espiritual experimentam as repercussões do poder vivificado do corpo glorificado de Cristo, em particular nos sacramentos do batismo e da santa ceia. Nós vere mos, por outro lado, que as relações conjugais se integram nes sa relação existente entre o corpo de Cristo-Igreja e nosso corpo, enquanto que as relações sexuais fora do matrimônio a destroem.
I Enquanto Cristo viveu sobre a terra em carne e osso, a redenção antecipada do corpo humano se dava em Sua própria pessoa. O Evangelho segundo João afirma que o Espírito Santo não existiu até depois da glorificação de Cristo: “não havia todavia Espírito Santo, pois Jesus não tinha sido glorificado” (Jo 7.39). Estando Jesus sobre a terra, o poder da vida que atuará mais tarde pelo Espírito Santo está encarnado em sua pessoa. “Cristo é o 7iveuu* ex”, dirá mais tarde o apóstolo Paulo (2 Co 3.17).
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Uma transformação antecipada do corpo humano foi realizada, durante um curto instante, no corpo carnal do próprio Jesus no momento da transfiguração (Mc 9.2 par.) da que foram testemunhas três discípulos. O sentido cristológico deste acontecimento é o de um sinal precursor, que põe em evidência que Jesus, poder da vida, veio ao mundo revestido de um corpo de morte para vencer o poder da morte sobre o corpo. Assim, a morte retrocede, quase podemos dizer, automatica mente na presença de Jesus: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados (Mt 11.5). Toda enfermidade não é mais que uma forma particular de morte. Por esta razão, os milagres de cura e os milagres de res surreição são mencionados uns ao lado dos outros. Não há entre estes milagres mais que uma diferença de grau. Em ambos os casos, é a morte a que é contida, a que retrocede diante do poder da vida. Segundo Mt 12.28, o próprio Jesus disse que expulsa os demônios pelo Espírito de Deus. Inclusive, se a variante de Lc 14.20, “pelo dedo de Deus”, for mais primitiva, a interpretação de Mateus é exa ta. Os milagres de cura assinalam o triunfo da vida sobre a morte, do Ttveu* pia, poder da vida, sobre a o* p£, poder da morte. Por esta razão, aos milagres de cura segue o perdão dos pecados, pois a morte unida à o* p^ é conseqüência do pecado de Adão (Rm 8.10: “o corpo da morte por causa do pecado”). Assim, cada enfermida de, sem ser certamente um castigo individual por tal ou qual peca do individual (Jo 9.2 s.), é, o mesmo que a morte, um sintoma do estado de pecado geral em que se encontra toda a humanidade. Consequentemente, com cada cura se abre uma brecha no domínio da morte, e, portanto, no domínio do pecado. Esta é a razão pela qual Jesus faz acompanhar às curas a promessa do perdão dos pecados. E verdade que a morte retrocede nesses milagres de cura. Todavia, não se trata de seu aniquilamento. Sob este aspecto, as curas se distinguem facilmente dos milagres de ressurreição feitos por Jesus; nestes, a morte não encontrou todavia seu fim definitivo: a filha de Jairo, o jovem de Naim e Lázaro deverão morrer e ressuscitar de novo, pois estes ressuscitaram, todavia, com um corpo mortal, e não com um oco* pia 7iV£'U|j,aTf év.
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O Evangelho segundo Mateus (27.52 s.) nos refere que no momento do próprio Cristo morrer, precisamente no instante em que a morte sofre sua derrota decisiva, os corpos de muitos mortos saem das tumbas. O evangelista considerou também este acontecimento como um antecipação que acontece por conseqüência da vitória obtida por Cristo, e não como uma ressurreição definitiva dos corpos dos santos. Do contrário não se compreenderia porque ressuscitaram nesse momento somente muitos (t o AA* ) e não todos os corpos dos santos. Da mesma forma que na presença de Jesus vivendo sobre a terra a morte devia retroceder, assim, é natural que ela retroceda no momento em que se produz o acontecimento mais importante na história da morte: o veredicto irrevogável de sua condenação ao aniquilamento é pronunciado, ainda que, todavia, não seja executado.
n Depois da morte e ressurreição de Cristo, sua Igreja é o lugar onde o Espírito Santo atua, onde trata de conferir antecipadamente a incorruptibilidade aos nossos corpos mortais nos milagres realizados pelos apóstolos. O apóstolo Paulo dá, por assim dizer, uma base teológica a este fato. Afirma que a Igreja é o corpo de Cristo sobre a terra, o único oco* jsia TCveDiiaxi* óv que existe desde já. Porém, esse corpo de ressurreição de Cristo, que é a E* • ^T]o*fX, está composto de crentes revestidos de corpos carnais. Esta situação é paradoxal: sobre a terra, os fiéis constituem conjuntamente um corpo de res surreição, o de Cristo, e todavia nenhum dentre estes individual mente possui um corpo de ressurreição, pois todos estão revestidos de um corpo carnal. Nós vamos tentar deduzir do pensamento paulino esta idéia que nos parece fundamental: o fato da igreja compor o corpo espiritual de Cristo tem, por antecipação, conseqüências atuais para os corpos dos fiéis.
A primeira vista, esta idéia nos parece atrevida e choca com o nosso idealismo moderno, mas, todavia, podemos seguí-la através de todo o paulinismo. O mesmo se dá quando no fim “nós seremos a* |U.(iop(poi à imagem de seu Filho” (Rm 8.29) e que “o Senhor
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transformará então”, como disse em Fp 3.21, “o nosso corpo de humilhação, tomando-o semelhante, o* pijiopcpoç, ao corpo de Sua glória”; o mesmo onde agora a |iop(p* *do corpo de nossa miséria experimenta já a influência de Cristo que deve tomar forma (uopcpcoG* • *614.19) em Sua Igreja. O paradoxo da Igreja, sob este aspecto, consiste na dupla refe rência ao corpo e aos corpos; o corpo espiritual de Cristo e os corpos carnais dos homens. Os textos relativos à Igreja, corpo de Cristo, não se encontram somente na Epístola aos Colossenses (1.18,22,24) e na Epístola aos Efésios (4.12; 5.30), mas em toda Ia Epístola aos Coríntios, os quais são como o seu tema central: “vós sois o corpo de Cristo, e cada um de vós, individualmente, é membro desse corpo” (12.27), e na Epístola aos Romanos (12.5): “nós que somos muitos formamos um só corpo em Cristo”. Posto que a pessoa de Cristo, e, por outro lado, o logion de Jesus referente ao templo que não seria feito por mãos humanas, aponta certamente já para a comunidade de discípulos, o Quarto Evangelho pode fazer, a propósito da história da purificação do templo (Jo 2.19), a relação entre o templo e o corpo de Cristo. Encontramos no apóstolo Paulo esta relação templo-Igrejacorpo espiritual de Cristo em 1 Co 3.16: “Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” Esta expressão se refere claramente ao corpo espiritual de Cristo que é a Igreja. É muito importante para o problema que nos ocupa que a mesma frase, alguns capítulos depois (6.19), se aplique ao corpo individual, camal dos fiéis de que está composta a Igreja: “Não sabeis que vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós, que haveis recebido de Deus e que não vos pertence?” Esta curiosa aplicação de uma mesma frase, em uma mesma Epístola, em duas realidades tão diferentes como são a Igreja e o nosso corpo carnal e individual, se explica unicamente pela relação que nós tentamos pôr aqui em evidência entre o corpo e os corpos. Toda a exposição do capítulo 6 da primeira Epístola aos Coríntios está embasada sobre a idéia fundamental de que não é um fato indiferente para nosso corpo camal que nesse momento seja integrado em outro corpo que é o corpo de ressurreição de Cristo, o único oco» pia 7iV8U|iaxi* óv que já existe. Temos aqui porque os corpos carnais dos membros da Igreja são desde já revestidos de uma
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dignidade especial: estes não nos pertencem mais, e o apóstolo, com base nisto, pode exortar os coríntios a “glorificarem a Deus em seus corpos” (6.20). Nisto radica-se o fundamento cristológico de toda a moral sexual do paulinismo. Nesse mesmo capítulo (v. 15), o apóstolo chega até a dizer: “Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo?” (t* *o* jtiaxa • tico* v u* *r| XpiGTOU* ••frav; cf. também xod* Ef. 5.30: n*A,r| pimoç a* t o d * ). E verdade que este corpo glorioso de Cristo, com tanto que seja idêntico com a Igreja terrestre, é, ao mesmo tempo, o corpo crucificado, posto que se encontra em um mundo que lhe é hostil. A integração do nosso corpo carnal no corpo de Cristo-Igreja se manifesta, em conseqüência, sob dois aspectos opostos, correspon dentes ao duplo caráter do corpo de Cristo: corpo crucificado e cor po glorificado. Tanto que, membro do corpo crucificado, o corpo carnal participa em seu sofrimento: Trazemos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo. (2 Co 4.10)
Todavia, é necessário advertir que sob este aspecto, o apósto lo não menciona mais que seu próprio sofrimento: parece, pois, que este efeito do corpo de Cristo é reservado ao corpo carnal do após tolo, em acordo com o posto especial que ele ocupa na E* • Assim, ele escreve na Epístola aos Filipenses (1.20), falando de sua própria pessoa: “Cristo será glorificado em meu corpo, seja por minha vida, seja por minha morte”. Na Epístola aos Gálatas (6.17), fala das “marcas” de Jesus que leva em seu corpo. Porém, a passa gem mais explícita nesta ordem de idéias se encontra na Epístola aos Colossenses: “Agora me alegro de meus padecimentos por vós, e sofro em minha carne o que falta às tribulações de Cristo em favor do seu corpo, que é a Igreja” (1.24). Aqui, a relação entre o corpo de Cristo-Igreja e o corpo carnal do apóstolo se afirma claramente. Com efeito, a relação do corpo glorioso de Cristo sobre o cor po humano, do qual se compõe a Igreja, interessa ao apóstolo porque se estende a todos os crentes. Antes de tudo, esta ação acontece nos sacramentos: batismo e santa ceia. Os sacramentos são na Igreja o
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que os milagres foram no ministério de Jesus. Com efeito, os sacra mentos são também tamb ém milagres milagres do Espírito Santo. Santo. Sem dúvida, dúvida, os mila gres propriamente ditos continuam também depois da ressurreição de Cristo, porém no seio do corpo de Cristo feito Igreja, a partir do dia de pentecostes, no momento da efusão do Espírito Santo, os mi lagres do Espírito se confundem confun dem cada cad a vez mais com a ação do batis mo e da santa ceia. O batismo tem por efeito efeito participar a cada um individualmente o Espírito Santo Santo que havia sido derramado sobre toda a Igreja no dia de pentecostes. Ao entrar na Igreja, o homem se coloca sob o efeito imediato do oco* pia Tcvetiiiom* óv: “Em um só espírito fomos batiz ba tizad ados os p a ra form fo rmar ar um só corp co rpo” o”,, diss d issee o apósto apó stolo lo (1 Co 12.13). 12.13). Este corpo é o corpo glorificado de Cristo e assim o batismo batis mo faz com que, segundo o livro de Atos, onde os relatos relatos do batismo batis mo não deixam de pôr em relevo esta participação, isto aconteça em certa medida imediatamente sobre nosso corpo. É verdade que essa ação se manifesta ma nifesta somente somen te sob a forma de glossolalia. glossolalia. Esta Es ta não é outra coisa que uma tentativa do do Espírito Santo de romper rom per os limites, que o corpo corpo poss po ssui, ui, n a lingu lin guage agem m humana hum ana,, e de enco en cont ntra rarr uma um a lingu lin guag agem em mais direta, a “linguagem “ling uagem dos anjos an jos”” (1 (1 Co 13.1) 13.1).. Tentativa T entativa por po r demais vã, vã, pois po is a g lo loss ssol olal alia ia perm pe rman anec ecee ence en cerr rrad adaa nos no s m eios ei os de expr ex pres essã sãoo corporal e não chega a ser mais que “suspiros” que o apóstolo manifesta em Rm 8.23 s., como sinais da redenção de nosso corpo corp o (• itoà,* •cpcooiç TOv**a* fiaxoç) que, apesar de ser visada e ardentemente esperada, não é, porém, realizada. san ta ceia ce ia , a relação entre o corpo ressuscitado de Cristo Na N a santa e o corpo corpo carnal do homem aparece da maneira man eira mais manifesta. Nós pode po demo moss chama cha marr à euca eu caris ristia tia de: de: o sacra sa cram m ento en to da Igreja Igr eja corpo corp o de Cristo. O texto texto do capítulo 10.16 10.16 s. s. da primeira prim eira Epístola Epís tola aos aos Coríntios Co ríntios é com freqüência citado, citado, porém, talvez, talvez, não suficientemente suficientemente meditado. Aqui, o apóstolo diz claramente que o pão que nós partimos na eucaristia é o corpo de Cristo constituído por “nós que somos muitos” muito s”.. Ao partir o pão, nós entramos em contato direto, imediato, com o aco* pia TtvEU.uaxi* óv do ressuscitado, e este cco* pia, é ao mesmo tempo, a comunidade dos fiéis. fiéis. A identidade misteriosa m isteriosa entre entre a Igreja e ó corpo de Cristo de que falamos se faz particularmente eficaz no sacramento da eucaristia, e se se se quer intentar determina dete rminarr n a vida vid a do do
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apóstolo o lugar lug ar e o momento em que lhe foi revelada revelad a esta es ta identidade, identidade, seria necessário provavelmente pensar nas comidas eucarísticas que ele compartilhou compartilho u com os demais irmãos. irmãos. Em todo caso, podemos afirmar com certeza que Paulo admite uma influência, presente na assembléia que se reune para o banquete, do corpo espiritual de Cristo sobre nosso corpo carnal. E uma uma idéia que à primeira vista pode nos chocar. Porém, os versículos 29-30 do capítulo 11 são absolutamente absolutam ente claros a este respeito, e ainda quando se cite tão freqüentemente a passagem, que no mesmo mesm o capítulo lhe precede, sobre a instituição institu ição da eucaristia, não permiti silenciá-los s ilenciá-los a este respeito: “O que come e bebe sem discernir de que corpo se trata, come e bebe para pa ra sua própr pró pria ia condenação. Por Po r isso há entre vós muitos fracos e doentes e muitos mortos”. Paulo chega a dizer que o manjar comido dignamente impediria a enfermidade e a própria morte. Esta idéia extremamente atrevida pressupõe evidentemente que a eucaristia jamais jam ais será comida comid a dignamente dignamente enquanto durar dur ar o presente pres ente eon. Jamais o corpo ressuscitado de Cristo é realizado plenamente, plenamente, como deveria, deveria, pela pe la comun co munidade idade dos fiéis reunid re unidos os para p ara celebr ce lebrar ar o banquete. Com razão se tem feito observar que Paulo não quer dizer simplesmente simples mente nestes versículos versículo s que aqueles que comem come m a santa ceia indignamente são castigados de qualquer maneira, mas que são castigados em seu corpo carnal. A participação do corpo de ressur reição de Cristo no banquete poderia arrancar-lhe arrancar-lhes, s, desde já, do poder da morte. Isto é, é, se se privam priv am do efeito efeito vivificador vivificado r da ceia e, por sua indignidade, impedem que a vida faça a morte retroceder, desde já, impedem que se produzam os milagres de cura e de ressurreição que poder po deriam iam se produz produzir ir..
No corpo cor po ress re ssuu scita sc itadd o de Cristo, Cris to, cons co nstit tituí uído do p ela el a Igre Ig reja ja e realizado nos banquetes eucarísticos, não deveria haver lugar para o pode po derr da morte. Assim As sim entend ent endida ida,, a eucari euc aristia stia é verda ver dade deira irame mente nte a antecipação do fim por excelência. O apóstolo nos recorda isso no mesmo mesm o capítulo da primeira prime ira Epístola Epísto la aos aos Coríntios (v. (v. 26), quando diz que nós anunciamos na eucaristia a morte do Senhor “até que Ele venha”. É verdadeiramente o milagre da vida que deve penetrar em nós, inclusive inclu sive em nosso corpo, para p ara que sejam expulsas a enfermid enfermidade ade e a morte, como Jesus as expuls e xpulsou ou durante o seu ministério terrestre, terrestre, antecipando desta maneira os acontecimentos do fim.
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o que viemos comprovando comp rovando se encontra encon tra confirmado pela concepçãí» paulina das relações de matrimônio. Paulo fala, na oca sião, sião, do cíaso íaso de incesto produzido prod uzido na Igreja Igre ja de Corinto. M ostra que que toda relaç ão sexual fora do matrimônio é um atentado ao corpo res suscitado de Cristo. Cristo. Assim, a união corporal com co m a 7ió 7iópv pvr|r| é incom patív pa tível el com co m 0 fato de se per p erte tenc ncer er a esse outro corpo cor po que é o corpo de Cristo. Toda a exposição de 1 Co 6, sobre as relações entre o corpo de Cristo e nosso corpo partem dessa consideração. “O que se une a uma um a prostituta prostit uta se toma tom a um só corpo corpo com ela”, diz no v. v. 16. Não N ão se pc>de ser ao mesm me smoo tempo tem po um só corpo corp o com co m a pro p rost stitu ituta ta e com Cristo. Estas duas uniões se excluem radicalmente. Assiim se explica o fato do apóstolo conceber o pertencer à Igreja corno uma relação corporal. Sem esta idéia fundamental, todo o desenvolvimento desenvolv imento do capítulo seria incompreensível. incompreensível. Da m es ma forma que somos membros da Igreja, Igreja, somos membros mem bros de Cris to. “Entã, tomarei eu os membros de Cristo e os unirei a uma pro p ross tit tituu ta? ta ? ” , p e rgu rg u n ta P aulo, au lo, depoi dep oiss de ter te r afirm af irmad adoo que qu e “noss “no ssos os corpos sãP membros de Cristo” (v. 15). Ele pressupõe que a união entre o nc>sso corpo e o corpo de Cristo é tão íntima que ela não pod po d eria er ia s£r m e lh lhoo r com co m para pa rada da do que qu e a u ni nião ão sexu se xual al entre en tre dois corpos, n£ qual os dois se tornam uma só carne (v. 16). Daí a incompatibilidade entre essas essas duas duas uniões. uniões. Nosso corpo não se pode unir, por sua vez, à 7rópv 7rópvr|r| e o Senhor, pois “nosso corpo corp o - diz o v. 13 - é para o Senhor, Senhor, e o Senhor Senh or (é) para pa ra o corpo” corpo ” . A gora gor a compre com pre endemos porque o impudico deve ser excluído da comunidade (1 Co 5.5). 5.5). E ^ não pode formar parte parte do corpo de Cristo, Cristo, pois por sua união impudica exclui-se exclui-s e a si mesmo. Toda a moral sexual ensinada pelo apóstolo está ancorada na idéia idé ia do cc cc>ip° de Cristo. Porém, Porém , esta idéia idé ia nos permite perm ite tamb ta mbém ém des d es cobrir cob rir o mí> mí>ttiv ivoo positivo pos itivo que, segundo o apóstolo, santifica o matrimô matri mô se xual al entre dois do is corp co rpos os nio. A união conjugal é a única união sexu que poder? integrar-se na união com o corpo de Cristo. E neces sário não fsquecer que o apóstolo prefere, em 1 Co 7, para aqueles que tem o sarisma, sarisma, o celibato ao matrimônio matrim ônio por po r razões de oportun opo rtuni i dade, todavia considera ao longo de todo o capítulo, a união conju Tucio
ga g a l perfeitamente perfe itamente com co m patíve pa tívell com a união entre nosso corpo cor po e o corpo corp o de Cristo risto.. Depois do que disse no capítulo 6, o apóstolo toma
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esta idéia como ponto de partida do capítulo 7, que é consagrado ao matrimônio. É verdade que ela não está expressa de maneira ma neira explíci exp líci ta, porém po rém é claro claro que soa como com o pano de fundo. Se a união uniã o conju c onjugal gal é a única para a qual há lugar no interior da união com o corpo de Cristo, resulta que o matrimônio se reveste, aos olhos do apóstolo Paulo, ainda quando ele tenha escolhido para sua pessoa o celibato, de uma dignidade teológica especial. Somente por esta razão ele pode po de diz d izer er que “o marido ma rido não n ão cren c rente te é santific san tificado ado pela pe la mulh mu lher er crente e a mulher não crente é santificada pelo marido crente” (1 Co 7.14). Partindo disto, não se pode opor 1 Co 7 à Ef 5.28 s., como se o matrim mat rimôn ônio io fosse depreciado deprec iado em 1 Co 7 e, pelo contrário, contrá rio, apreciado apr eciado de uma um a maneira mane ira positiva pos itiva somente em Ef E f 5. Por Po r outro lado, lado, E f 5.28 5.28 s., desenv des envolv olvee as idéias idéias sem as quais 1 Co 7, 7, e sobretudo sobretu do seu nexo com o capítulo 6 que o precede, não seria compreendido. Em Ef 5.30, encontramos de novo a afirmação de 1 Co 6.15 que “nós somos membros do corpo de Cristo”. Esta é a base da apreciação positiva do matrimônio. Porém, em Ef 5, percebemos, ademais, a razão pela qual se dá a união com o corpo de Cristo: as relações corporais entre o homem e a mulher correspondem (• ecG* ç, Ef 5.29) à realidade entre Cristo e sua •• • Por Po r caminhos diversos d iversos chegamos à conclusão de que, segundo o Novo Nov o Testamento, Testamento, a ressurreição ressu rreição de Cristo implica imp lica conseqüências em relação ao nosso corpo: desde agora, ele pode ser tomado pela ação vivificadora do Espírito Santo, Santo, ainda que sua transformação em corpo espiritual não seja possível poss ível até a chegada chegad a do momento em que todas as coisas sejam criadas de novo pelo Espírito Santo. Desta maneira, o corpo humano, longe de ser depreciado pelo pensam pen samen ento to do Novo Nov o Testamento que é alheio a todo dualismo, se encontra singularmente enobrecido à luz da ressurreição de Cristo. Daí uma um a moral, moral, relativa ao corpo humano, inteiramente embasada no fato cristológico da ressurreição de Cristo e sobre a fé no Espírito Sant Santo. o. Pois Po is noss no ssoo corp corpoo na n a • • • À,T]0 *fx já está em relação com o corpo de ressurreição de Cristo, Cristo, daí a necessidade necessidade de vigiar vigiar de maneira espe cial no que se refere a ele, ele, para que que guarde sua dignidade dignida de de “templo do Espírito Santo”. Baseado nesta razão, o apóstolo Paulo introduz a parte moral da Epístola aos Romanos (12.1) com a exortação de se “apre sentar a Deus nossos corpos como sacrifício vivo santo e agradável”.
7 O BATISMO DE CRIANÇAS E A DOUTRINA BÍBLICA DO BATISMO Em que medida Jesus instituiu o batismo cristão? Não basta, para responder a esta pergunta, remeter a Mt 28.19, pois esta frase do ressuscitado não faz mais que dar a ordem de batizar, sem explicar qual é o vínculo interior entre o batismo, a pessoa e a obra de Cristo. Por outro lado, o judaísmo não ignorava a prática do batismo, já que submetia os prosélitos pagãos a ele. João Batista, pondo os judeus no mesmo nível dos prosélitos, chamava-os ao batismo de arrependimento, por causa da vinda iminente do messias. O próprio ato de batizar não foi, pois, instituído por Jesus. Sob este aspecto, o batismo se distingue do outro sacramento cristão, a eucaristia, cuja forma particular remonta a Cristo. Porém, o vínculo entre Cristo e o batismo parece mais tênue, todavia, se se leva em conta que Jesus não batizou, pelo menos durante seu ministério público1. A situação é a seguinte: João Batista batizou, relacionando seu batismo com o dos prosélitos; Jesus não batizou, porém, depois de Sua morte, a Igreja primitiva reconheceu a prática do batismo. Foi simplesmente uma volta ao batismo de João? Ou antes, não se deve distinguir o batismo conferido pelos apóstolos em nome de Jesus, do batismo de João, que, todavia, foi celebrado já com vistas ao perdão 1
É verdade que o Evangelho de João (3.22) diz que Jesus batizava, porém, mais adiante (4.2), o autor se retrata dizendo que não é Jesus, mas seus discípulos que batizavam. Este último versículo não é, talvez, senão uma glosa ratificada. Neste caso a afirma ção de Jo 3.22 poderia referir-se a um período durante o qual Jesus tivesse sido, todavia, discípulo do Batista. Em todo caso, é certo que durante seu próprio ministé rio Jesus não batizava.
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dos pecados? Se isto é certo, que há então de novo no batismo da Igreja nascente, nascente, e em que medida med ida remonta este a Jesus, Jesus, que todavia todavia não o praticou pratico u nem o “instituiu” “in stituiu” sob sua forma exterior? 1. O fundam fun damento ento do batismo: a morte mor te e ressurr res surreição eição de Jesus Cristo
João Batista, em sua pregação, teve o cuidado em definir a . diferen dife rença ça entre seu próprio batism bat ismoo e o de Cristo: Cristo: “Eu vos batizo batiz o com água para a conversão... conversão... porém po rém Ele vos batizará batizar á com o Espírito Santo Santo e com fogo” fogo ” (Mt 3.11; 3.11; Lc 3.16‘). ). O fogo faz sem s em dúvid dú vidaa alusão ao juízo juí zo final, o batismo que vem com Cristo não é somente um batismo de preparaçã prepa ração, o, provisório, provis ório, mas antes definitivo, e fará f ará o batizad ba tizadoo entrar diretamente no Reino de Deus. Porém, Porém, no intervalo no qual o cristianismo primitivo tem consciência de encontrar-se, encontrar-se, entre a ressurreição de Cristo Cristo e seu retomo, retomo , o que há de essencial no batismo conferido pelo Messias Messias é o dom do Espírito Santo, Santo, dádiva escatológica esc atológica que se realiza a partir de agora (• rcap%* • • ppaP* r). Isso explica porque Marcos pode limitar-se a mencionar mencion ar o batismo do Espírito Es pírito (1.8). (1.8). Segundo a pregação preg ação de João Batista, o dom do Espírito Santo Santo constitui então o elemento novo no batismo batism o cristão; com efeito, efeito, nem o batismo judeu jud eu dos dos prosélitos, prosélitos, nem seu próprio batismo conferiam conferiam o Espírito. Este E ste dom está ligado à pesso pes soaa e a obra de Cristo. Cristo. Pois bem, como a efusão do Espírito Santo sobre “toda carne” (At 2.17) pr p r e s s u p õ e , no d e s e n rola ro larr da h istó is tórr ia da salv sa lvaç açãã o , a m o rte rt e e a ressurreição ressurreiçã o de Cristo, e como esta efusão teve lugar no pentecostes, o batismo cristão não é possível senão depois deste acontecimento, que fez da Igreja o lugar do Espírito Santo. Santo. Por P or esta es ta razão, razão, o livro de Atos menciona os primeiros batismos cristãos somente depois da história de pentecostes. Igualmente Pedro, depois de ter explicado o milagre da efusão do Espírito, termina seu discurso com esta exortação: “Convertei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus” (2.38). Isto é, que o que foi passado de maneira coletiva no dia de pentecostes vai repetir-se no que se sucede individualmente no sacramento do dom do Espírito. Porém, por que este dom do Espírito se apresenta então na Igreja sob sob a forma de um batismo? Por P or que fica ligado ao banho de
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imersão “para o arrependimento”, que os judeus praticavam com os pros pr oséli élitos tos e que João Batis Ba tista ta havi ha viaa recon rec onhe hecid cido? o? Qüe relaç rel ação ão há entre o Espírito Santo Santo e a água, água, a ablução pela água ou a imersão na água? Compreende-se, Compreend e-se, com efeito, que o batismo dos prosélitos ou o de João se apresentam como um ato de ablução, posto que o efeito deste sacramento sacramen to é o perdão dos pecados. Como a água comumente purif pu rific icaa fisicam fis icament entee o corpo, assim ass im a água á gua do bati b atism smoo deve tirar tir ar os pecad pe cados os da alma. Surpre Sur preend ende-n e-nos os que a realizaç reali zação ão pl plen enaa do batism bat ismoo de João, no batismo do Espírito do Messias, deva, todavia, tomar a forma de um banho por imersão. Seria de esperar antes que o sacramento cristão revestisse uma forma exterior diferente. Porém, é necessário perguntar-se se o batismo de João, com sua significação precisa (Lc 3.3: (3* rcTic^a |i£xavo*6CÇ £*ç • ípeoiv • piapxi piapxicov cov), ), foi foi considerado considera do como verdadeir verd adeirame amente nte prescrito pres crito depois da aparição do novo sacramento cristão que confere o Espírito San to. É necessário perguntarmos se o Espírito Santo não teria nada a ver com o perdão dos pecados. Pois bem, no livro de Atos se diz: “Que cada um de vós seja batizado em nome de Jesus, para obter a remissão dos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (2.38). Os cristãos têm todavia necessidade, também na Igreja, do perdão dos pecados; não é suficiente que o dom do Espírito lhes seja conce dido. dido. O batismo para a remissão dos pecados não é portanto abolido. abolido. Seria inconcebível, inconcebív el, por po r demais dem ais para os cristãos, só o dom do do Espírito Santo sem a remissão dos pecados. Por isso, o sacramento cristão, prep pr epara arado do e anunciad anun ciadoo pel p eloo batis ba tismo mo de João, J oão, se esta e stabe belec leceu eu em um batis ba tismo mo,, um banho ban ho por po r imers im ersão, ão, ainda aind a que o dom do m sacram sacr amenta entall do Espírito Santo não tenha, à primeira vista, nenhuma relação com a forma deste ato. Todavia, o vínculo que, no batismo cristão, une o perdão dos peca pe cado doss e o dom do m do Espír Es pírito ito é real. Não Nã o se pode di dize zerr que à imersão para pa ra o perdã per dãoo vem ve m ajuntarajun tar-se se simples sim plesmen mente te um elemento elem ento novo: o dom do Espírito. O elemento novo, em relação ao batismo judaico, não diz respeito somente ao dom do Espírito, Espírito, mas também, também , em relação relação estreita com este dom, ao perdão dos pecados. Segundo o livro de Atos, a Igreja sentiu, num determinado momento, a necessidade de junt ju ntar ar,, ao ato exteri ext erior or da d a imers im ersão ão,, um ato espe es pecia ciall corres cor respon ponden dente te à transmissão do Espírito Santo: a imposição das mãos. Pois parecia
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normal que às duas significações do batismo correspondessem igualmente dois atos exteriores: o banho por imersão para o perdão dos pecados e a imposição das mãos paro o dom do Espírito. Sem dúvida, isto faria o batismo correr o perigo de perder sua unidade unid ade e de cindir-se em dois sacramentos sacram entos distintos. Se a Igreja pôde pô de final fin alm m ente en te evita ev itarr esta es ta cisão, cis ão, é por p orqu quee a lig l igaç ação ão entre en tre os e fei fe i tos do batismo cristão era fortemente sentida. A narração que Atos faz de certos batismos prova, não obstante, que tal cisão foi quase estabelecida no uso da Igreja. Releia-se a narração de Felipe em Samaria! Quando os samaritanos “creram na pregação de Felipe que lhes anunciava o reino de Deus e o nome de Jesus Cristo, foram batizados homens e mulheres” (8.12). Nos versículos 14 s., se refere que os apóstolos de Jerusalém, tendo recebido esta notí cia, enviaram à Samaria Pedro e João para que orassem, a fim de que os que tivessem tivessem sido sido batizados com água á gua recebessem também o Espírito, “pois este não havia, ainda, descido sobre nenhum deles. Haviam sido sido batizados somente em nome do Senhor Jesus. Jesus. Então, Então, Pedro e João lhes impuseram as mãos e eles receberam o Espírito Santo”. O batismo com água para a remissão dos pecados e a imposição das mãos para a comunicação do Espírito estão aqui separados no tempo e administrado por pessoas diferentes. Em Atos 10.4 10.44, 4, encontra-se encontra-s e um fato análogo, com a diferença de que a ordem cronológica é inversa. A Comélio e aos seus, tendo recebido o Espírito Santo (sem imposição impos ição das mãos), Pedro os batizou com água. É necessário mencionar finalmente At 19 1-7: Paulo perg pe rgun unta ta aos discíp dis cípulo uloss de Efeso Efe so se tinha tin ham m recebid rece bidoo o Espírit Esp íritoo Santo quando creram. creram. “Estes responderam: nem sequer ouvimos ouvimos que exista o Espírito Santo. Santo. Ele pergunto perg untouu de novo: que qu e batismo tendes recebido? Responderam: o batismo de João”. São, então, batizados com água em nome do Senhor Jesus, e “depois que Paulo lhes impôs as mãos, o Espírito Santo desceu sobre eles e se puseram a falar em línguas e a profetizar”. Deste modo se acentuava o perigo de ver, na primeira conse qüência do batismo, somente uma sobrevivência de tempos passa dos, sem ligação interna com o dom do Espírito prometido prom etido por Cristo. E, pois, pois, muito m uito possível possí vel que quando João recorda record a que não se nasce só pel p elaa água, mas pela pe la água ág ua e pelo p elo Espír Es pírito ito (3.3-5), (3.3 -5), quis reag re agir ir contra con tra
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esta cisão do batismo cristão em dois atos diferentes.2 Ademais, os textos judaico-cris judaic o-cristãos tãos citados citados nas Pseudo-Clementinas Pseudo-C lementinas provam prov am que, no começo do século II, II, existia efetivamente efetivamen te uma um a seita judaic jud aicaa cristã para pa ra a qual qu al o batismo batis mo havia ha via descid de scidoo ao nível nív el de um u m rito judaic jud aico. o. O problema das relações entre a água do batismo e o sacra mento do Espírito preocupou, durante muito tempo, à Igreja antiga.3 Tertuliano, por exemplo, em seu tratado sobre o batismo4, trata de resolver o problema estabelecendo uma relação essencial entre o Es pírito e a água. água. Remete-nos Remete-n os para pa ra isto a Gn G n 1.1 s., onde se diz que no princ pr incípi ípioo “o Espírito Esp írito de Deus se movia sobre a face das água águas". s". Estima que desde sempre o Espírito esteve ligado com a água e, por conseguinte, conseguinte, o próprio batismo do Espírito Es pírito não pode prescindir da d a água água.. Esta solução não pôde, todavia, sustentar-se para definir adequadament adequadamentee a relação entre o perdão dos pecados, pecados, o dom do Espírito e o batismo batism o pela pel a água. água. A explicação deve ser buscada, como veremos mais abaixo, no próprio batismo batism o de Jesus, interpretado teologicamente teologica mente por Paulo no capítul capítuloo 6 de sua Epístola aos aos Romanos. Romanos. Verem Veremos, os, também, também, que não se pode considerar co nsiderar o batismo batism o cristão, entendido enten dido também tamb ém como batismo batis mo para pa ra a remissão remissã o dos pecados, como uma um a simples repetição r epetição de João. E, pelo contrário, seu cumprimento, tomado possível somente pela pel a obra expiatória expia tória de de Cristo. Cristo. Por Po r demais, esta obra une estreitamente estreitamen te os efeitos do batismo. Isso é o que evidencia este célebre capítulo, no qual Paulo mostra que, por nosso batismo, participamos na morte e na ressurreição de Cristo.5Cada um participa aí desse perdão dos pecados, conquistado por Jesus de uma vez por todas morrendo na cruz. 2
As palavras 'êaTO Ç 'K - s e encontram em todos t odos os os bons manu scritos. scritos. R. R. BULTBULTMANN, Kritischexegetischer Kommentar iiber das Neue Testament, Johannesevangelium, 1938, 98, nota 2, propõe suprimí-las, de acordo com sua tendência geral em considerar como inserções tardias ou a interpretar de modo diferente, no Quarto Evangelho, todas as alusões aos sacramentos. Porém, esta tendência me parece falsa, po p o is se o p õ e a u m d o s m o tiv ti v o s e s s e n c ia is d o E v a n g e lho lh o d e Joã Jo ã o . C f. O. C U L L M A N N , Urchristentum und Gottesdienst, 21948, c. 2 pássim. 3 Se poderia recordar aqui também At 6.2, onde se menciona, entre os ”primeiros ensinos do evangelho de Cristo”, a doutrina dos batismos (plural) e a imposição de mãos. 4 D o b a ti s m o , c. 3. 5 E interessante ind icar aqui que em 1 Co 11.26, 11.26, é Pau lo, também , quem record a à Igreja que a eucaristia esta igualmente ligada à morte de Cristo. Sabemos, com efeito, que certos ambientes da Igreja de então tinham tendência a esqucê-lo. O gozo e a alegria legítimas que caracterizavam as eucaristias dos primeiros cristãos (cf. At 2.46), motivadas provavelmente pela lembrança das alimentações com o ressuscitado,
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O batismo de João, portanto, não é aceito sem nenhuma ressalva pela Igreja cristã, posto que, segundo Rm 6.5, nós chegamos a ter, pelo ato batismal, “uma mesma semelhança” com Cristo, morrendo e ressuscitando com Ele. O ato externo do batismo pela água toma assim seu sentido pelos dois efeitos do batismo cristão. Uma ligação nova é estabelecida entre o ato externo do pcx7ix*^£iv e o perdão dos pecados. Aquele não é, já somente o banho, a ablução que limpa, mas a imersão enquanto tal, porque, nesse momento, o batizado é “sepultado com Cristo” (v. 4). Ressuscita quando sai da água6. Graças somente a este ato, os dois efeitos do batismo se tomam inseparáveis, posto que ser sepultado com Cristo significa o perdão dos pecados, enquanto que ressuscitar com Ele quer dizer “viver uma nova vida” (v.4), isto é, viver segundo o Espírito (G1 5.16). Os dois efeitos do batismo estão, assim, ligados tão indissoluvelmente como a morte e a ressurreição de Cristo. O recurso da obra expiatória de Cristo, para resolver o proble ma do batismo cristão, engendra três conseqüências: a) o perdão dos pecados, anunciado já antes da vinda de Cristo, está agora fundado sobre a morte expiatória, b) o perdão dos pecados e o dom do Espírito se encontram unidos por um estreito vínculo teológico, c) as significa ções do batismo se encontram ligadas ao único ato exterior do banho de água, a imersão e emersão tomam sua plena significação teológica. A equação “ser batizado = morrer com Cristo” que, como ve remos, tem sua origem no próprio batismo de Jesus, se encontra em todo o Novo Testamento e não somente em Rm 6.1 s. Esta equação se encontra em primeiro plano em outra passagem paulina, em 1 Co 1.33, onde o batismo é considerado sem equívoco possível como uma participação na cruz de Cristo: “Foi Paulo quem foi crucificado por vós, ou fostes batizados em nome de Paulo?” As expressões “estais p o diam às vezes d e g e n e rar (cf. 1 Co 11.2 1) e neg ar co m p le ta m e n te, em ú ltim a instância, a idéia da morte de Cristo (cf. O. CÜLLMANN, L e cult e dans 1'É glise p rim itiv e , 2(1945, 13 s.). 6 Não se pode negar a sem elh ança do batism o com os rito s análo gos das religiõ es de mistério. Cf. em particular, A. DIETRICH, Eine Mithrasliturgie, 1903, 157 s.; R. REITZENSTEIN, H e lle n isti sch e M y sterien relig io n en , 3(1927), 259; F. CUMONT, L es reiig ions orienta les dans le p ag anism e rom ain , 1 90 7; O. CLEMEN, R eligio nsegeschichtliche Erkãrung des Neuen Testaments, 2(1924), 168 s. Porém estas seme lhanças não têm importância para a questão que estamos tratando aqui.
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batizados” e “um outro foi crucificado por vós” são aqui utilizadas como sinônimas. Esta curiosa maneira de expressar-se mostra tam bém que, segundo o Novo Testamento, é Cristo quem atua no batis mo, enquanto que o batizado é objeto passivo desta ação. Na Epístola aos Hebreus ocorre o mesmo. A impossibilidade de um segundo batismo está motivada, no capítulo 6.4 s., pelo fato de que o batismo é uma participação na cruz de Cristo: E impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível reconduzí-los ao arrependimento; pois para si mesmos estão crucificando de novo o Filho de Deus, sujeitado-0 à desonra pública. (Hb 6.4 s.)
Esta passagem mostra também quão estreito é o vínculo entre o dom do Espírito Santo e a morte expiatória de Cristo. Os escritos joaninos, finalmente, fazem também alusão à relação entre a água do batismo e o sangue de Cristo7Porém, para compreender todo o alcance do vínculo entre o batismo e a morte de Cristo, e, por conseguinte, para compreender o aspecto essencial da doutrina batismal do Novo Testamento, é necessário perguntar qual é o sentido do batismo pelo qual o próprio Jesus se submeteu no Jordão. Que significa para Jesus Seu próprio batismo? Essa é uma pergunta freqüentemente delineada na Igreja primitiva, como testemunha o evangelho apócrifo dos ebionitas e o dos hebreus. Não é de se estranhar. Pois, por que Jesus, que estava sem pecado, se batizou no batismo de João destinado aos pecadores? Mateus sentiu também a dificuldade, pois colocou no começo do seu 7
Cf. em particular Jo 5.6; porém também Jo 3.14 s. e 13.1 s. (cf. O. CULLMANN, U r c h r is t e n t u m u n d G o t t e ss d i e n t , 73 o. c., ad loc. e apesar das objeções de W. M I C H A E L I S , D ie S a c ra m e n te im J o h a n n e se v e n g e liu m , 1946) a relação que Jo 19.34 (e também 13.1 s.) estabelece entre o batismo e a ceia. Porém, nestas duas passagens como em outra parte 1 Jo ão 5.6 dev e haver ta m bém um a alusão à rela ção entre o batismo e a morte de Cristo, de sorte que nestes textos encontraríamos relações “triangulares”, que nos parecem estranhas ao pensamento joanino.
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relato a pergunta do Batista: “Sou eu quem tem necessidade de ser batizado por ti, e tu vens a mim?” (3.14). Ao que Jesus responde: “Deixa por enquanto, porque assim convém cumprir toda a justiça”. É o próprio relato do batismo de Jesus, tal como é referido nos três Evangelhos Sinópticos, que dá a verdadeira resposta a esta pergunta. Ela está contida na voz que ressoa no céu: “Este é o meu filho amado em quem me comprazo” (Mc 1.10 s.; Mt 3.16 s.; Lc 3.22). Se quisermos deduzir a significação que teve para Jesus seu próprio batismo, como queremos compreender sua “consciência messiânica”, é de uma importância capital advertir que esta voz celeste cita Is 42.1, o começo dos cantos do servo de Iahvé. Por estas palavras, com efeito, é interpretado no Antigo Testamento o servo de Deus que deve sofrer em lugar de seu povo8. 8É
verdade que o manuscrito D, com outros testemunhos do texto “ocidental”, apre senta, no texto de Lucas, uma variante segundo a qual a voz celeste teria dito: “Tu és meu filho mui amado; hoje te gerei”. A citação estaria tomada então não do livro de Is 42.1, mas do célebre SI real 2.7. Esta passagem está citada em At 13.33 (igualmente em Hb 1.5; 5.5) onde se aplica não precisamente ao batismo, mas antes à ressurreição de Cristo. Os cristãos viram neste salmo, no qual o rei é designado como o Filho de Deus, a prova escriturística da filiação divina de Cristo, posto que depois de sua ressurreição, esta filiação se manifesta pela realeza do Messias. Em At 13.33, onde se trata da ressurreição, esta citação do Salmo 2, está, pois, verdadeiramente em seu lugar. Daí depende, talvez, a introdução, por causa de sua analogia formal com Is 42.1, e nos testemunhos ocidentais da narração que Lucas faz do batismo de Jesus. Por outro lado, até se não estiver excluída pela variante D e a citação ser original em Lucas, é preciso d ar pre ferên cia à de Mateus e Marcos: • v GO"£' Só* T|0 a. Segundo esta, Cristo não foi todavia proclamado rei no momento de seu batismo, foi designado como o ebed Iahvé destinado ao sofrimento. Se é certo que exerce a realeza depois da ressurreição, deve começar por realizar a obra e a vida de sofrimento do servo de Iahvé, e entrar assim no batismo de João para realizá-la. Se a voz do céu, referida por Marcos e Mateus, modifica o texto de Is 42.1 é somente no sentido de que em lugar de 7iaiç (tradução correta do hebraico abdi, “meu servo”, recolhida por outro lado corretamente na citação da mesma passagem de Mt 12.18) se lê D*óç. O parentesco dos termos gregos 7tcaç e w ó ç , a relação também entre as palavras hebraicas bachir e ja c h id por um lado, e as palavras gregas • YfX7tT|ióç, • • Kítóç, (10 V07 EV ç por outro, fazem supor que é somente na tradução grega de Is 42.1, onde Jesus foi designado como D*óç, enquanto que 0 original semítíco devia, segundo Is 42.1, designá-lo como ebed, servo. Esta hipótese se toma tão mais verossímil conquanto que em Jo 1.34 passagem que, como verem os, se refe re à voz cele ste - se ja um a lição bem ate sta da não de u^éç mas de • • Ke* tóç, que é a forma corrente que os LXX traduzem a palavra hebraica bachir, pela qual Deus designa a seu e b e d em Is 42.1. Porém, até mesmo se no original semita se encontrava o termo “filho”, contrariamente ao texto de Is 42.1, não é menos certo que todo o resto da passagem remete indubitavelmente ao começo dos cantos do servo, e Jesus é filho, então, na medida em que, como servo,
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Aqui encontramos, em última análise, a resposta à questão delineada por Mateus e mais tarde pelos evangelhos apócrifos: Qual é a significação, para o próprio Jesus, do batismo para a remissão dos pecados? Podemos formular a resposta da maneira seguinte: no instante de Seu batismo, Jesus foi investido da missão de realizar o papel de servo sofredor, que deve carregar os pecados de seu povo. Os outros judeus vão ao Jordão para serem batizados por João por causa de seus próprios pecados. Jesus, no mesmo momento em que todo o povo se fez batizar, ouve uma voz que diz: “Tu não és batizado por teu próprio pecado, mas pelo pecado de todo o povo, pois de ti profetizou Isaías: será destroçado por causa dos pecados do povo”. Isto é, Jesus é batizado visando um sofrimento substitutivo, implicando Sua morte, pela qual será outorgado o perdão dos pecados a todos os homens. Temos aqui porque Jesus deve solidarizar-se no batismo com todo o seu povo, ir Ele também à beira do Jordão, a fim de que “toda justiça seja cumprida”. Deste modo as palavras de Jesus ao Batista adquirem um sen tido muito preciso. Fala-se de cumprir “toda justiça” ('7i/a'|p0)* oca 7ia* oav ôi* moa* vr|v, Mt 3.15) é porque seu batismo está em rela ção com a ôt* moa*tT|, não com a Sua própria, mas com a de todo o povo. É preciso sublinhar o termo n a' oc/.v. A resposta de Jesus, que confunde tanto os exegetas, tem deste modo um sentido muito concreto: Jesus provocará um perdão geral. Se Lucas (assim como Marcos) não refere esta palavra, não deixa de sublinhar menos o mesmo fato a sua maneira no versículo 21: “Como todo o povo (• t c o c v t o c t*v ?iaóv) se fez batizar, Jesus se batizou também”. A voz celeste nos revela a razão pela qual Jesus deve atuar como os outros judeus. Diferentemente de todos aqueles que se fazem bati zar por seus próprios pecados, Ele é posto à parte e chamado a cumprir em favor daqueles o ministério do servo de Iahvé9. tomará sobre ele, por Seu sofrimento e Sua morte, o pecado de Seu povo. Aquele de quem fala Is 42.1 tem a missão de realizar o que está anunciado em Is 53. F.-J. LEENHARDT, L e baptê m e chrétien, son origin e, sa sig nificati on, 2(1946), 27, nota 2, estima que o termo • ya7IX|TóÇ não procede nem de Is 42.1, nem do Salmo 2. Porém em Mt 12.7, onde se cita igualmente a Is 42.1-4, se volta a encontrar • • • yajniióç |iou. 9 O ebed Iahvé, como o messias, era uma figura conhecida do judaísmo. Porétn, o que era absolutamente inconcebível era a “fusão” dos títulos em uma só pessoa: o messias não podia sofrer. O título de servo de Yavé foi certamente as vezes atribuído ao
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O batismo de Jesus já anuncia assim o fim, o ponto culmi nante de Sua vida, a cruz, sobre a qual se cumprirá o que o batismo de João deveria conferir: o perdão dos pecados para todo o povo. No momento de sua crucificação, Jesus celebrará um batismo geral, conforme a missão que lhe havia sido designada, quando foi batizado no Jordão. A interpretação do batísmo de Jesus que propomos está con firmada pela significação que toma a palavra pajrc^eiv em sua boca. Temos visto que o próprio Jesus não batizou, e compreende mos agora o porque. Para ele, “ser batizado” significa, no que suce deria, “sofrer, morrer por seu povo”. Não se trata somente de uma suposição. Com efeito, as duas únicas passagens em que Jesus utili za o verbo PcOTT^eaOca são apresentadas por Mc 10.38 e Lc 12.50. Em Marcos 10.38 (“podeis ser batizados com o batismo com o qual eu vou ser batizado?”), “ser batizado” significa “morrer”. Sucede o mesmo em Lucas 12.50: “Tenho que receber um batismo e como me angustio até que seja levado a cabo!” Nas duas vezes é Jesus quem fala. A identificação entre o batismo e a morte concerne pois a sua própria morte, e, por analogia, esta maneira de falar poderá identifi car-se também com o batismo cristão. Jesus não batizará a particula res, como João Batista, mas realizará um batismo geral, de uma vez por todas, no momento de Sua morte expiatória. Este batismo geral, realizado por Jesus, tem como essencial o ser totalmente inde pendente da fé e da compreensão dos que se beneficiam com ele. A graça batismal que encontra aqui sua origem é, em sentido
estrito, uma “graça pre-veniente”. Nos próximos parágrafos, veremos como é preciso compre ender que os discípulos, depois da morte e ressurreição de Jesus, voltaram a batizar os indivíduos com água. Veremos claramente por que a prática eclesiástica dos batismos individuais não é um retomo ao batismo de João, mas se encontra indissoluvelmente ligada à mor te de Cristo. Compreenderemos também porque o batismo é uma participação na morte e na ressurreição de Cristo, porque temos ido messias, porém jamais sua missão de sofrimento substitutivo. A este respeito é instrutivo estudar o Targum de Is 53. Jesus é quem, por sua vida, estabeleceu esta identificação entre messias e servo. Cf. P. SEIDELIN, Ebed Yahvé und Messiasgestalt im Jesajatargunv. ZNTW (1936) 197 s.
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até às raízes da doutrina batismal do Novo Testamento, tal como foi formulada explicitamente em Rm 6.1 s. No Evangelho de João (1.29-34), encontramos, de alguma maneira, um primeiro comentário do relato sinóptico do batismo de Jesus, que confirma o que já temos visto, descobrindo no batismo de Cristo a origem do batismo cristão. O batismo de Jesus é aqui refe rido sob a forma de uma iiaprup^f/., de um testemunho de João Batista em favor de Cristo, depois de Seu batismo. O batismo mes mo não é narrado, porém, sem dúvida, é pressuposto. Este testemu nho está resumido no versículo 29 com estas palavras: “Eu sou o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. No versículo 33, João Batista recorda que viu descer o Espírito Santo sobre Jesus e repousar nele, conclui com o versículo 34: “Eu o tenho visto e dou testemunho de que este é o eleito de Deus”. Isso é uma alusão clara à voz celeste que se fez ouvir para designar Jesus, em seu batismo, como o ebed Yahvé de Is 42.110. Enquanto que, segundo os Sinópticos, só a voz celeste estabe lece uma relação entre o batismo de Jesus e os sofrimentos substitu tivos do servo de Iahvé, o Evangelho de João é aqui mais explícito. O Batista tira a conclusão da designação da voz celeste especifican do que Jesus “é o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Entende pois, com razão, esta designação como uma chamada dirigi da a Jesus de encarregar-se da missão do servo de Iahvé.11 A narração que os Evangelhos fazem do batismo de Jesus, segundo a interpretação que temos dado, considerando a sua impor tância para a história da salvação, aclara também a relação que o 10 A
variante •• A,e* í ó ç , da qual já temos falado (cf. na p. 124 s., nota 8 ), e que adotamos aqui, está atestada pelo sinóptico, pelas antigas versões latinas e as duas antigas versões siriacas. Sem dúvida para harmonizar o texto com o relato sinóptico se tem substituído •• k t ' tóç por t>*óç. Temos visto também que é geralmente pelo termo •• Kg* tóç pelo qual os LXX traduzem o hebraico bachir que se lê em Is 42.1. 11 A r elação entre o • ptv* ç tou* •Geod- •e o ebed Iahvé é mais patente, todavia, se levarmos em conta, por um lado, o fato de que Is 53.7 compara o e b e d I a h vé com um cordeiro, e por outro o dado filológico, assinalado por C. F. BURNEY, The aramaic origin o f the fou rth Gospel, Ox ford, 1922, de que o equivale nte aram aico de • p tv ç TOD- •Geoi)1 • thalja delaha significa por sua vez “cordeiro de D eus ” e servo de Deus. Igualmente o equivalente aramaico de a*pco, nathal, pode ser traduzido da mesma maneira por tp- pe iv , o que tomaria mais estreita todavia a relação entre o • ptv» ç t o v Ôeou de Jo 1.29 e a voz celeste. Porém, até prescindindo destas considerações, esta relação esta suficientemente estabelecida.
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Novo Testamento estabelece entre os efeitos do batismo cristão: o perdão dos pecados e o dom do Espírito Santo. Os Sinópticos mos tram, com efeito, tão bem como o Evangelho de João, que o batismo cristão tem sua origem no batismo de Jesus na medida em que é um batismo do Espírito. Pois, também Jesus, no momento de seu batis mo com água, recebe o Espírito de maneira plena. Este dom está também relacionado com o sofrimento substitutivo do servo de Iahvé. Com efeito, na segunda metade do versículo de Is 42.1, citado pela voz celeste, se diz: “Pus o meu Espírito sobre ele (o servo), ele fará reinar a justiça no meio das nações”. Assim, comprovamos que a possessão do Espírito é prometida no mesmo versículo do ebed Iahvé. E, pois, em virtude deste Espírito, que Cristo poderá realizar seus milagres, seus ô w pieiç, e Mt 8.14 e 12.17-22, tem razão em rela cioná-los com Is 42.1-4; 53.4. O batismo de Jesus na água do Jordão anuncia assim o coroamento de Sua obra: Sua morte e Sua ressurreição. E se compreende agora porque o batismo cristão está ligado temporalmente com a morte e ressurreição de Cristo: isto não é possível mais que uma vez quando a obra de salvação já esteja cumprida. E preciso recordar aqui os textos de Jo 7.39, onde se diz que “o Espírito não tinha sido dado todavia porque Jesus não tinha sido glorificado” e de Jo 16.7, onde Jesus disse a Seus discípulos: “Se eu não for, o consolador não virá a vós”. Para que fosse possível o batismo cristão, a partici pação na morte e na ressurreição de Cristo, era necessário que Je sus realizasse, em primeiro lugar sobre a cruz, este batismo geral, com vistas ao qual Ele mesmo havia sido batizado no Jordão. Temos manifestado, com efeito, que somente a partir de pentecostes iniciou-se o acolhimento dos cristãos na Igreja por meio do batismo. O fato de que a prática do batismo eclesiástico tenha começa do somente a partir de pentecostes, depende do desenvolvimento da história da salvação. Assim, a morte expiatória e a ressurreição de Cristo, ponto central da história que concerne ao • éaja,oç de maneira completa, se encontra também no centro da história do batismo. Com efeito, a partir do momento em que, em pentecostes, a Igreja passa a ser o lugar onde atua o Espírito Santo, o corpo do crucificado e res suscitado, o batismo único, realizado na cruz, vai estender seus efei tos sobre os batismos que a Igreja celebrará. Pentecostes é portanto,
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no que concerne à história do batismo, a dobradiça que encadeia a realização da salvação sobre a cruz com o desdobramento ulterior dessa salvação. É necessário que vejamos agora em que relação se encon tram o batismo único de Cristo e o dos membros de seu corpo. 2.
O batismo, agregação ao corpo de Cristo
Nos parágrafos anteriores, vimos que, segundo o Novo Testa mento, todos os homens receberam fundamentalmente o batismo desde há muito tempo: no Gólgota, no dia da sexta feira santa e da páscoa. Deste modo, o verdadeiro ato batismal já foi realizado, sem nossa colaboração, como também sem nossa fé. O mundo inteiro já foi batizado em virtude do ato absolutamente soberano de Deus, que em Cristo “nos amou primeiro” (1 Jo 4.19), antes que nós O amásse mos, antes que nós crêssemos. Então, por que a Igreja batiza? O batismo não se converteu em algo supérfluo, posto que Cristo já morreu e ressuscitou por cada homem, naquela data única da história que, para o crente, dá sentido e transcendência ao desenvolvimento do tempo? A maior parte dos teólogos contemporâneos coincidem em di zer que o ato batismal da Igreja primitiva se caracteriza pela relação que estabelece entre a cruz e a ressurreição por um lado, e um indi víduo por outro, que no momento deste ato, morre e ressuscita com Cristo (Rm 6.3 s.).12 Suas interpretações divergem quando se trata de precisar o sentido desta relação, isto é, de estabelecer como se realiza, para o batizado, sua participação na morte e na ressurreição de Cristo. Segundo Karl Barth13, que recorre aqui a uma expressão de Calvino, o batismo neo-testamentário confere somente um cog nitio da salvação, de sorte que ele excluiria perfeitamente atribuirlhe uma virtude realmente causativa: não é mais que um “participar” na salvação, dada àquele que é batizado.14Vendo no acontecimento Trata-se de uma comprovação somente provisória. Mais adiante veremos (cf. 136 s.) que o ato batismal concerne à edificação da Igreja e por isso mesmo ao indivíduo batizado. '3 K. BARTH, D ie K ir chliche L ehre von d er Taufe. Zürich-Zollikon, 1943, IX, 14 K. BARTH, o. c., 20. Na p. 19, o autor fala do batismo como um acontecimento cuja virtude não seria causativa, nem gerativa, mas cognosciliva. 12
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batismal somente um cognitio, a questão do batismo de crianças se encontra delineada e resolvida de antemão negativamente, porque seria absurdo querer “fazer participar” um recém-nascido da morte e ressurreição com Cristo. Por outro lado, a fé, isto é, a única possi bilidade que teria de aceitar esse “participar” e de responder a ele, estaria neste caso excluída. Por isso tem razão Barth, se parte da cognitio, em por em dúvida o caráter bíblico do batismo de crianças. Quem aprova a noção barthiana da graça batismal terá grande difi culdade em defender o batismo de crianças15. Todavia, esta redução da virtude do batismo à cognitio salu tis não nos parece estar conforme a concepção neo-testamentária. Os textos da Escritura, como vamos ver, nos convidam a dar uma definição diferente do acontecimento batismal. Advertimos em pri meiro lugar que é preciso estudar o batismo de crianças, sempre como o fez Barth, a partir de uma definição teológica do batismo do Novo Testamento. Considerando as fontes de que dispomos, é inútil, definitivamente, perguntar se a Igreja nascente já batizava aos recém-nascidos. Os escritos do Novo Testamento não nos permitem dar resposta alguma, negativa ou positiva, a esta pergunta, e seria de desejar que todos se persuadissem disto. Os textos que falam do batismo de “toda uma casa” nos deixam na incerteza, pois não sabe mos se nessas “casas” havia crianças pequenas. Estas passagens não podem ser levadas em conta senão para definir a doutrina do batismo, porém não para atestar a prática do batismo de crianças na idade apostólica. Seria desejável que os defensores do caráter bíbli co do batismo de crianças não tentassem facilitar a tarefa aduzindo estes textos, como se fossem uma prova peremptória da prática do batismo de crianças desde as origens. Porém, os que crêem poder negar a prática do batismo de crianças na Igreja nascente deveriam, por sua vez, absterem-se de aduzir o argumento da ausência, no Novo Testamento, de uma 15
“Nur von cinem kausativen oder generativen Verstãndnis der Taufgnade her, kõnnte es unterlassen werden, auch diese zweite Ordnungsfrage aufzuwerfen und genau genommen auch dann nur wenn man mit der rümischen Dogmatik entschliesst, der Taufhandlung eine ex opere operato eigentümliche Wirkkraft zuzuschreiben”, como disse K. BARTH, o. c., 28. Estamos de acordo com a primeira parte da frase, porém não pensamos que uma definição causativa da graça batismal implique inevitavel mente a doutrina do ex opere operato.
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menção precisa desta prática. Pois é evidente que em uma Igreja missionária, como era a do tempo apostólico, em uma Igreja que estava se constituindo, a ocasião desta prática - ainda se está em perfeito acordo com sua doutrina - era mais rara que em uma Igreja constituída. Esta não se apresentava senão: 1. Quando uma casa inteira, na qual havia crianças pequenas, passava a fazer parte da Igreja; 2. Quando as crianças nasciam depois da conversão e batis mo de seus pais (eventualmente só do pai ou só da mãe, se somente um dos cônjuges estava convertido). Este segundo caso, se não era freqüente no próprio começo da vida da Igreja, se produziu certa mente antes de que fosse redigido o último livro do Novo Testamento. Quase todos os que não crêem que a Igreja nascente batizas se às crianças caem no erro de não distinguir estes dois casos tão diferentes. Todavia, esta consideração deveria ser levada em conta muito atentamente, por conta do fato de que o judaísmo contemporâ neo a fazia para os batismos dos prosélitos. A obra de Joachim Jere mias16, que é de capital importância para a discussão desta questão, recorda com efeito que no judaísmo se batizava não somente os pagãos adultos, como também às suas crianças, enquanto que as crianças que nasciam depois da conversão dos pais já não eram batizadas, sendo consideradas como santas por causa de seus pais. J. JEREMIAS, H a t die ãltesíe C hris te nheií die K in derta ufe g e ü b ?, 1938. Temos de mencionar também outras duas obras muito importantes sobre a relação entre o b atism o do cristianism o prim itivo e o dos prosélitos: A. Õ PK E, Z u r F ra g e nach dem Ursprung der Kindertaufe, 1928, e J. LEIPOLDT, D ie urc histlich e Taufe im L ich te d e r R e lig io n sg esc h ic h te, 1928. Se embasam nestes escritos, em particular / sobre o de Jerem ias, G. MIE GG E, II battesim o dei fa nciu lli nella storia, nella teoria, nella prassi, s. a. (estudo claro, nascido das discussões de 1942 na Igreja valdense de Piamonte e lamentavelmente levado muito pouco em consideração) e H. GROSSM A N N , E i n J a z u r K i n d er t a u f e : K i r c h li c h e Z e i t f r a g e n 13 (1944 ), que já tom a posiç ão contr a a opin iã o de K. BARTH, o. c., e de F.- J. LEENHARDT, o. c.; A. SCHAEDELIN, D ie T a u f im L eben d er K ir ch , em Grundriss, 1943, havia tomado uma posição análoga à de H. GROSSMANN. Cf. também o artigo de T. PREISS, Le baptême des enfants et le Nouveau Testament'. Verbum caro (1947) 113 s., no qual o autor conclui igualmente que a prática do batismo de crianças não é oposta à doutrina neo-testamentária do batismo. Cf. também M. GOGUEL, L 'E g lis e p rim i tive, 1947, 324 s. Infelizmente não pudemos ter em consideração duas obras holan desas importantes que apareceram depois que elaborei este capítulo e que se opõem igualmente à doutrina barthiana do batismo: G. C. BERKOUWER, Karl Barth en de kinderdoop, 1947, e G. C. VAN NIFTRIK, D e kinderd oop en K arl Barth: MederlandsThTij (1947) 18 s.
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Esta comprovação é importante também por sua analogia com o que Paulo escreve em 1 Co 7.1417. O estudo muito esmerado de J. Jeremias nos parece provar que é, pelo menos possível, sustentar que os textos bíblicos atestam, de maneira indireta, a prática do batismo de crianças no período apos tólico. Cremos também que se pode invocar a este respeito a manei ra como os Sinópticos (Mc 10.13 s.; Mt 19.13 s. e Lc 18.15 s.) referem a benção das crianças por Jesus18. Não queremos dizer mais no momento. Porém, se intencionalmente nos mantemos tão prudentes a respeito da questão histórica da constatação pedo-batista do Novo Testamento, queremos, antes de tudo, e sem dúvida algu ma, recordar com insistência que o Novo Testamento não contém nenhum vestígio da prática de um batismo de adultos cujos pais foram cristãos que educadaram estes adultos. Este fato pode ter
se produzido a partir do ano 50 ou até antes, portanto, antes da'reda ção da maior parte dos livros do Novo Testamento. A.única coisa que sabemos a respeito das crianças filhas de pais cristãos é o que Paulo disse em 1 Co 7.14 e que corresponde à prática do batismo dos prosélitos, o qual não era administrado senão às crianças nasci das antes da conversão de seus pais. Esta passagem paulina exclui igualmente a idéia de um batismo desses filhos de cristãos uma vez tomados adultos. Os impugnadores do caráter bíblico do batismo de crianças deveriam portanto render-se diante da evidência. O que estes preco nizam, a saber, o batismo na idade adulta das crianças nascidas de pais cristãos e educadas por estes, está todavia pior atestada no Novo Testamento que o batismo de crianças (em favor do qual se pode pelo menos descobrir certos vestígios), e até mais, seu ponto de vista não está atestado de maneira absoluta. Cf. STRACK-BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und M id ra sch , vol. I, 1922, 110 s. ■ 18 Cf. mais adiante, A pêndic e, 177 s., onde mostramos a influência do verbo • 6)X, £IV, termo técnico das liturgias batismais primitivas, nesses relatos. J. JEREMIAS, o. c., 25, chega a conclusões análogas, não partindo como nós de Mc 10.14, mas de Mc 10.15, e mostrando que Marcos, como Jo 3.3 e 5 referem o batismo à chamada ao arrependimento de Mt 18.3, e interpreta • ç miS*ov no sentido de “enquanto criança”. J. JEREMIAS reconheceu esta idéia, conjuntamente com a nossa, em M a rk 10.1 316, und die Übung der Kindertaufe in der TJrkirche: ZNTW (1940). 17
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Porém, não é do ângulo testemunhai da Escritura de onde se deve delinear a questão do batismo de crianças. Se levarmos em conta nossas fontes nesta matéria, não podemos encontrar mais que uma resposta a partir da doutrina geral do Novo Testamento. O pro blema é o seguinte: o batismo de crianças é compatível com a con cepção neo-testamentária do batismo? O valor inquestionável do pros pecto de Karl Barth é o de ter levado a discussão a este terreno. Porém, ainda que descubra aspectos capitais e amiúde desconheci dos do batismo, a interpretação do nosso colega não pode, a nosso ver, ser seguida em suas principais conclusões, segundo o Novo Tes tamento. Ele não tem menos mérito em haver convidado a igreja a refletir de novo sobre a significação bíblica do batismo. O problema do batismo de crianças deve, antes de tudo, ser considerado no terreno da exegese e da teologia neo-testamentári as. Não seria útil, por conseguinte, estudá-lo de um só golpe em outras perspectivas, por exemplo, sob o ângulo “Igreja da multidão Igreja confessante”. Por isso, K. Barth, com seu hinc, hinc, Mae lacrimae 19, acusa os defensores do batismo de crianças de se deixa rem guiar, de maneira definitiva, pela preocupação de salvar a “mul tidão”. Esse pode ser o caso de numerosos pedo-batistas. Porém, da leitura do opúsculo barthiano não se pode impedir a pergunta se seu hinc, hinc, illae lacrimae não poderia ser-lhe devolvido e aplicado ao vivo interesse, certamente legítimo, que K. Barth põe na consti tuição de uma Igreja confessante. Sua negação do caráter bíblico do batismo de crianças, que ele chega até a chamar de “uma ferida no corpo da Igreja”20, não está posta à serviço desta causa? Portanto, se se faz intervir a questão “Igreja da multidão Igreja confessante” no debate, a propósito do sentido do batismo, se dá de antemão, a todo o problema, uma perspectiva que não é a do Novo Testamento*.Isto não quer dizer, por demais, que o estudo da essência e da significação do batismo não permita que se tire conclu sões eclesiológicas precisas, porém estas não serão mais que a con seqüência lógica da doutrina estabelecida previamente. Pedimos, pois, que para buscar o que constitui o fundamento do ato batismal, não se 19 K.
BARTH, o. c., 39. N.R. expressão em latim “de um lado ou de outro, não se pode chorar”. 20 K. BARTH, o. c., 28.
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estude os textos da Escritura a partir de um a priori quase sempre não conforme o Novo Testamento. A Igreja, na qual o batizado é acolhido, é certamente, segundo o Novo Testamento, uma Igreja “confessante”. É exato igualmente que os batismos de adultos, vindos do judaísmo ou do paganismo, isto é, os únicos que nos são explicitamente referidos pelos textos, permi tem regularmente comprovar a fé dos batizados. Porém, é errôneo tirar de um só golpe as duas conclusões seguintes: em primeiro lugar, o caráter “confessional” da Igreja primitiva estaria ligado ao batis mo; em segundo lugar, a fé e sua confissão seriam a condição de um batismo regular. Isto é: se é verdade que o batismo - o batismo de adultos - foi no cristianismo primitivo uma ocasião importante para o crente de confessar sua fé, esta não era a única. Com efeito, é im possível pretender que só o batismo garantia à Igreja seu caráter de comunidade de confessantes. Pois a fé era, ademais, confessada em cada culto nos exorcismos, no ensino da Igreja21 e pode ser que também quando um ministério era conferido. Era-o igualmente quando os cristãos, diante dos tribunais, deviam “dar conta da esperança que havia neles” (1 Pe 3.15). E quanto ao segundo ponto, que concerne ao elo inegável e indissolúvel que une o batismo e a fé, será necessário mostrar com detalhes como deve ser definido de uma maneira mais precisa. Faremo-lo no próximo capítulo. No momento, basta notarmos que não podemos nos apoiar no fato de que a fé geralmente está presente no momento do batismo de um adulto, para então afirmar que esta simultaneidade constitui o primeiro elemento das relações entre batis mo e fé. Finalmente, voltamos a advertir que é necessário separar o problema do batismo das crianças desse outro da “Igreja da multidão - Igreja cofessante”, pois muito tempo antes do triunfo do imperador Constantino e suas conseqüências eclesiológicas, Irineu já aprovava o batismo de crianças22. Ninguém negará, todavia, que Irineu era membro de uma “Igreja confessante”. 21
Cf. O. CÜLLMANN, L e culte dans VÉglise prim itiv e, 20, e Les prem iè res confe sio ns de foi chrétiennes, 1943. 22 Como o indica muito justamente H. GROSSMANN, o. c., 27. A este respeito, cf. também o artigo claro e conveniente de Ph.-H. MENOUD, L e baptê m e des enfa nts dans VÉglise ancienne: Verbum caro (1948) 15 s.
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Em seu estudo sobre a origem e significação do batismo, F. J. Leenhrdt23 pretende defender que o batismo de crianças seria, no fundo, um sacramento distinto daquele dos adultos. Recorda a este respeito que, para fundamentar biblicamente o batismo de crianças, se tem o costume de basear-se em textos neo-testamentários que não dizem uma palavra sobre o batismo, quando não podem ser invo cados os verdadeiros textos batismais em favor do batismo de crian ças. Esta opinião, de nosso colega de Genebra, se explica por sua interpretação da doutrina do batismo, que está aparentada com a de K. Barth e que não nos parece corresponder plenamente com a con cepção bíblica. Nós comprovaremos, pelo contrário, que esta pode muito bem aplicar-se ao batismo de crianças, tenha sido este pratica do ou não. Em troca, os outros textos neo-testamentários, invocados geralmente para justificar o batismo de crianças, podem ser legitima mente aplicados também ao batismo de adultos24. Por isso, importa agora compreender bem o que significa teo logicamente morrer e ressuscitar individualmente com Cristo pelo ato batismal, depois que o batismo coletivo decisivo já tenha sido realizado por todos os homens no Calvário. Para esclarecer este ponto, é necessário partir do que distin gue o batismo da santa ceia. Em um livro anterior25, mostramos que a Igreja primitiva não conhecia provavelmente mais que duas clas ses de assembléias cultuais: a do alimento compartilhado da eucaris tia (compreendendo certamente a pregação do Evangelho) e o batis mo. Pois bem, no momento da ceia, a assembléia participa também da morte e ressurreição de Cristo. Qual é, pois, a diferença entre os dois sacramentos? Advertimos em primeiro lugar que é essencial para a ceia o ser repetida26, em troca o batismo deve ser um ato realizado para cada indivíduo, uma só e única vez. Na ceia, é a comunidade consti tuída enquanto tal quem participa na morte e na ressurreição de Cristo, enquanto que pelo batismo esta relação se aplica, no seio da Igreja, a 23
F.-J. LEENHARDT, o. c., 69 s. 24 A. SCH AED ELIN, o. c., 187, sublinha igualmente que a introdução do batismo de crianças na Igreja não alterou o sentido do batismo. 25 O. CULLMANN, L e culte dans V É glis e p rim itiv e , 26-31. 25 Cf. O. CULLMANN, Urchristentum und Gottesdienst, 12 e 77.
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um indivíduo. Assim se encontra refutada a objeção de Karl Barth, segundo a qual se se batiza aos recém-nascidos seria igualmente necessário admití-los na ceia27. Com efeito, a participação reiterada da comunidade na morte e ressurreição de Jesus Cristo, no momen to da eucaristia, encontra precisamente seu sentido no fato de que são aqueles que já crêem os que asseguram de novo sua salvação, com a exclusão dos incrédulos e daqueles que não são todavia capa zes de crer. No batismo, ao contrário, é o indivíduo quem, pela pri meira e única vez, é situado na Igreja, isto é, ali onde, segundo a vontade de Deus, o perdão dos pecados e o dom do Espírito Santo atuam em seu favor no tempo que separa a ascensão da Parousia. O que distingue, pois, o batismo da ceia é seu caráter único, enquan to que o que lhes é comum é a relação com a morte e a ressurreição do Senhor. Em Rm 6.3 s., Paulo descreve o que se passa no batismo: o batizado se toma uma “mesma planta” com o crucificado e ressusci tado. Em 1 Co 12.13, ele define claramente como eâsa participação na morte e ressurreição de Cristo se efetua precisamente no batis mo: por um só espírito, todos nós fomos batizados para sermos introduzidos em (e*ç) um mesmo corpo. O versículo precedente mostra que se trata do corpo de Cristo, isto é, da Igreja, como indica todo o contexto. Para definir a essência da significação do batismo, nos parece, pois, importante recorrer, por sua vez, a Rm 6.3 s. e a 1 Co 12.13. Este último texto responde sem equívoco à pergunta que delineamos no começo deste capítulo, concernente à diferença entre o ato batismal da Igreja primitiva e aquele batismo geral já realizado no Calvário. Ajusta posição dos textos citados, Rm 6.3 s. e 1 Co 12.13, não é arbitrária. Com efeito, estão intimamente ligados, posto que o cor po de Cristo no qual somos batizados, é, por sua vez, o corpo crucifi cado (2 Co 1.5; Cl 1.24; 1 Pe 4.13) e o corpo ressuscitado (1 Co 15.20-22) de Cristo. E Paulo, unindo de maneira análoga a morte e a ressurreição com Cristo por um lado e a incorporação à única Igreja de Cristo por outro, escreve aos Gálatas esta outra passagem capi tal: “Todos vós que haveis sido batizados em Cristo (e*ç Xpicxóv), 27 K.
BARTH, o. c., 39.
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vos haveis revestido de Cristo..., pois vós sois todos um em Jesus Cristo” (3.27 s.). Entre os textos neo-testamentários que falam do batismo, vis tos sob o ângulo doutrinai, não se encontra nenhum pelo qual o acon tecimento essencial do ato batismal seria a comunicação cognoscitiva da obra salvadora de Cristo, a cognitio, como quer K. Barth e como pensa também, no fundo, F.-J. Leenhardt28. Não encontramos uma só passagem que diga ou dê a entender que essa cognitio, esse “participar”, justifique, ao lado do batismo geral realizado no Gólgota, a celebração do ato batismal na vida da Igreja e que defina sua essên cia. É verdade que na maior parte das vezes, o Novo Testamento refere que o batizado - adulto - chegou à fé antes de seu batismo e que ele a confessava sem dúvida no momento de ser batizado29. Porém, esta cognitio não é jamais o elemento essencial. Em troca, os textos decisivos de 1 Co 12.13 e G1 3.27-28, que acabamos de recordar, determinam claramente que o acontecimento essencial do ato batismal é a agregação ao corpo de Cristo. Deus incorpo ra, não dá apenas um informe sobre esta incorporação. No instante do acontecimento, o batizado se limita a ser objeto passivo deste ato de Deus, ele é incorporado por Deus. “E agregado”, como diz Atos com um estilo eminentemente passivo (2.41)30. Todos os outros ele mentos que entram todavia em consideração devem ser subordinados a essa definição e explicados a partir dela. Certamente também Karl Barth fala da edificação da Igreja por meio do batismo, porém, e isto é o essencial, não reconhece a este ato de Deus, enquanto tal, uma for ça causativa para aquele que se beneficia dele. Considera a graça batismal como uma declaração divina que se dirige à fé. A ceia igualmente é um acontecimento que concerne ao cor po de Cristo, distinguindo-se do batismo, como temos notado. Na mesma Carta aos Coríntios (1 Co 10.16 s.), se diz que a comunhão no partir do pão é uma comunhão no corpo de Cristo e que os que tomam parte do mesmo pão formam um só corpo, ainda que sendo F.-J. LEENHARDT, o. c., 69. Cf. At 8.37 e o A pênd ice deste estudo. A mais an tiga liturgia do batismo que conhecem os menciona também esta confissão (cf. mais adiante pp. 171 s.). 30 N este sentido é necessário diz er tam bém , apesar do que pensa F.-J. LEENHARDT, o. c., 57, que “o batismo é o sacramento pelo qual a Igreja recruta”. 28 25
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muitos. Pois na ceia, o corpo de Cristo não é aumentado com novos membros que lhe seriam agregados, mas que a comunidade existen te é cada vez mais fortalecida tanto quanto o corpo de Cristo, na acepção mais alta deste termo. O ato batismal, pelo contrário, con cerne ao corpo de Cristo de uma maneira diferente. “Pela associa ção” (7tpoo£T0r|Gav, At 2.41) ao corpo de Cristo (e*ç *v cwiaa) daqueles que são batizados, este corpo aumenta quantitativamente. Este aumento é para ele um ato sumamente real. O batismo, por conseguinte, não afeta só ao batizado, como se diz habitualmente, mas antes à Igreja em sua totalidade. Cada batismo significa assim uma vitória sobre a potência do maligno, posto que coloca o batizado num lugar onde pode escapar desta potência.31 Como no Calvário, também no batismo é Deus quem atua em Cristo. Esta “associação” é um ato soberanamente livre de Deus, que não depende nem do nosso comportamento humano nem tão pouco de nossa fé. O batismo eclesiástico teria, com efeito, um caráter funda mentalmente diferente do batismo geral realizado por Cristo na cruz, se a obra de Deus estivesse aqui ligada ao ato de fé e a confissão do homem. Pois, precisamente, o sentido mais profundo desta obra expiatória consiste no fato de que foi realizada sem o concurso e ainda contra a vontade, o conhecimento e a fé daqueles que deviam benefi ciar-se dela32. Pois se no batismo da Igreja a fé não é, antes de tudo, uma resposta que segue ao ato de Deus, mas uma condição deste ato, então o Calvário e o batismo não se situam no mesmo plano. No parágrafo seguinte vamos definir o papel da fé no aconte cimento do batismo e explicar porque o Novo Testamento menciona tão freqüentemente a fé do batizado adulto, seja antes, ou no mo mento de seu batismo. Porém, aqui se trata de mostrar que o batismo do Calvário e o batismo na Igreja estão íntima e essencialmente liga dos, pois são um e outro uma obra divina totalmente independente do ação humana. Do fato da soberania deste ato de Deus, a fé, enquanto 31 Neste
sentido podemos referendar o que K. BARTH, o. c., 21, disse acerca da “glori ficação de Deus pela edificação da Igreja de Jesus Cristo”. Porém, por que esta glorifi cação de Deus não tem de ter, enquanto tal, um efeito causativo independentemente de seu sentido cognoscitivo, para aquele que participa nela pelo batismo? 32 Isto é também o que sublinha G. BORNKAMM, Taufe und neues Leben bei Paulus: ThBlãtter (1939) col. 237, nota 14.
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resposta humana, não pode senão seguir-se. Deve acompanhar o batismo eclesiástico ainda quando a fé, no batismo geral do Calvário, preceda o sacramento, ou seja, nos casos que o Novo Testamento menciona correntemente. O batismo na água dado pela Igreja requer, neste caso também, uma fé que não pode vir senão depois do ato batismal, fé no evento especial que acontece na presença da Igreja: associação de um novo membro ao corpo crucificado e res suscitado de Cristo. Se esta fé não segue o batismo, o dom divino é menosprezado, blasfemado, e os frutos que deveria produzir são ani quilados. Porém, o dom em si mesmo conserva toda sua realidade, pois não depende do fato de que um homem tenha confessado a Cristo por sua fé, mas antes é Cristo quem, agregando-o a seu corpo, o tem confessado e, por conseguinte, o fez participar em Sua morte e em Sua ressurreição. Tudo o que o Novo Testamento ensina implicitamente acerca da graça preveniente (Rm 5.8-10; Jo 15.16; 1 Jo 4.10 e 19) vale com maior razão para o batismo enquanto incorporação ao corpo de Cris to. A graça batismal não é somente a “imagem” daquela graça pre veniente pela qual Deus no Calvário veio ao nosso encontro. É ade mais - em dependência absoluta do acontecimento do Gólgota uma manifestação nova e especial dessa mesma graça preveniente, que é a obra divina da salvação perpetuando-se no tempo da Igreja. Na sexta-feira santa, a graça preveniente de Deus foi dada em Cristo a todos os homens e o acesso a Seu Reino aberto a cada um. Pelo batismo, se pode entrar no que em outro lugar chamamos “o centro”33 desse Reino, isto é, o corpo terrestre de Cristo, a Igre ja.34 A cruz do Calvário se refere, pois, ao batismo como o evento no qual o Reino de Cristo, em toda sua extensão, concerne à Igreja. Neste sentido, a graça batismal não é mais que uma manifestação particular da graça preveniente do Gólgota. A existência desta mani festação especial depende do fato de que o Novo Testamento conhece, por um lado, uma humanidade salva por Cristo e, por outro, uma Igreja: um regnum Christi e um corpus Christi. 33 Cf. O. CÜLLMANN, Cristo e el tiempo, 131. 34 O que significa que os batismos in extremis perdem
seu sentido posto que uma criança moribunda não fará precisamente parte deste corpo terrestre.
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Os teólogos protestantes têm amiúde um temor verdadeira mente exagerado em fazer a pergunta da qual nós temos partido desde o começo deste capítulo: Cristo, no momento de cada batismo individual celebrado na Igreja no curso da história, realiza uma obra nova, distinta do simples anúncio de sua única obra expiatória? Cer tamente, Jesus Cristo não morre de novo em cada batismo, e sua obra única do Calvário não se repete. Porém, aquele que agora está assentado à direita de Deus, autoriza o batizado a participar, em sua Igreja, do que foi realizado *
BARTH ressaltou o lado específico do acontecimento do batismo, e se esforçou po r m o stra r o que isto sig n ific a com relação à o bra ex p ia tó ria ún ica de C risto. Porém, pode perguntar-se se ele não está também obcecado pelo temor de reconhecer no ato batismal, realizado na Igreja, uma obra nova de Cristo, que engendraria, de um modo especial, uma participação dos membros de Seu corpo em Sua morte e ressurreição. Pois então, por que, se não estivesse impulsionado por este temor, se obstinaria em fazer da cognitio salutis o acontecimento primordial do batismo? 36 Cf. O. CULLMANN, L a royauté du ch rist e t V É glise dans le N ouveau Testamen t: Foi et vie (1941).
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a seu batismo e*ç • v oo* pia, em sua agregação ao corpo crucificado e ressuscitado do Senhor. Deste ponto de vista da história da salvação, a relação crono lógica entre o acontecimento do Calvário e o batismo é idêntica à relação entre a cruz e a ceia. Isto é, o batismo não é uma repetição daquele acontecimento histórico único, mas é sempre um evento novo. Cada vez que um membro é “agregado” à Igreja, nos recorda que a história da salvação continua também no presente. Ademais, este acontecimento presente está totalmente determinado por aquele que, de uma vez por todas, foi realizado no Calvário pelo • «p* naq que dividiu o tempo.37 Segundo os ensinos do Novo Testamento sobre a Igreja, cor po de Cristo, nos atrevemos a afirmar que, segundo o plano de Deus para a salvação do mundo, a participação na morte e na res surreição de Cristo está ligada à Igreja, certamente não de maneira exclusiva, porém, sim, de maneira muito especial. Em virtude da economia divina, a Igreja é o lugar do Espírito Santo, ainda que este Espírito possa soprar “onde quiser”. No que diz respeito à salva ção, isso significa que, se os membros da Igreja não são necessaria mente mais favorecidos que os não batizados, pelos quais Cristo também morreu e ressuscitou, a graça batismal especial, outorgada aos cristãos, consiste no fato de que Cristo os toma especialmente ao Seu cuidado. K. Barth tem o mérito de ter trazido a público este aspecto do problema.38Porém, é necessário perguntarmos de novo, por que este “responsabilizar-se” (Inpflichtnabme ), no ato batis mal, deve depender da cognitio simultânea? Porque este “responsabilizar-se” constitui, na realidade, uma graça causativa que tem por efeito o “revestir-se de Cristo” do apóstolo (G13.27) tão exata mente como a incorporação de um jovem no exército implica levar um uniforme.39 37 Cf.
a este respeito nossa obra sobre Cristo e o Tempo, onde tratamos de mostrar que cada época da história da salvação tem seu próprio valor, porém que não está menos indissoluvelmente ligada ao acontecimento único e central da encarnação e da paixão de Cristo. 38 K. BARTH, o. c., 22. 39 J. LEIPOLDT, o. c., 60, trata de interpretar a locução paulina “revestir-se de Cristo” a partir das religiões de mistério.
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Sem dúvida, é infinitamente mais grave para os batizados que para os não batizados trair a participação na cruz e na ressurreição de Cristo, quer dizer, não responder a ela pela fé. Com efeito, à incorporação na Igreja, que se produz no batismo, deve correspon der obrigatoriamente a fé do novo membro. É nesta perspectiva que é necessário compreender os textos neo-testamentários que falam de um pecado que não será perdoado, para o qual o arrependimento está excluído. Diga-se o mesmo dos textos concernentes a uma exclusão definitiva da comunidade cristã. Porém, não é menos ver dade que quem perde a graça batismal, porque não tem fé, permane ce, apesar de tudo, sob o sinal do batismo. O próprio Karl Barth sublinha, e não se pode fazê-lo com mais força, seu caráter indelé vel:40 “Toda humanidade ocidental, indiscutivelmente má, se encon tra sob este sinal”.41 Portanto, se a incredulidade não pode destruir senão o efeito que segue o batismo e não o acontecimento sacra mental propriamente dito, é preciso admitir que o Novo Testamento não requer a fé no momento do batismo, mas depois. Os adversários do batismo de crianças intentam, amiúde, apre sentar o problema como se toda noção que não faça da fé uma con dição sine qua non do batismo pressuponha já, inevitavelmente, uma concepção mágica, simbólica, como se o batismo de adultos fosse a única possibilidade de escapar a esta alternativa. Somente então, pensam estes, o batismo pode ser um acontecimento real, que não está nem liqüefeito pelo simbolismo nem paganizado pela magia.42 Se nós definimos aqui a graça batismal como a incorporação do bati zado à Igreja e se supormos que esta graça não depende do homem, não permitimos, portanto, uma interpretação mágica desta afirma ção, posto que é somente em virtude de sua resposta que o homem poderá permanecer nessa graça, como veremos no parágrafo seguinte. Veremos também que a participação ativa da comunidade no momento do ato do batismo exclui o opus operatum.43 Porém, o que queremos mostrar no momento é que no próprio ato do batismo não se está tratando de um acontecimento simbólico, mas de um fato 40 K. BARTH, o. c., 47. 41 I b id ., 45. 42 É também a opinião de
F.-J. LEENHARDT, o. c., 69. 43 Cf. mais adiante, pp. 150 s.
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muito real, ainda que seus efeitos ulteriores estejam intimamente ligados à fé subsequente do batizado e que até dependam profunda mente dela. É necessário distinguir aqui cuidadosamente entre a incorporação à Igreja, que acontece no momento do ato batismal e representa uma graça real independente da acolhida que o batizado lhe faça, e as conseqüências de dita incorporação que são uma gra ça real, ainda que dependente da constância da fé. Para ilustrar a primeira das duas realidades, a graça da recepção na Igreja, não vemos analogia mais feliz do que a que Karl Barth44 propõe: o ato de nacionalização concedido pelo governo de um estado. Este exemplo nos parece, por outro lado, amenizar a maneira como K. Barth interpreta o acontecimento do batismo. Com efeito, o essencial para uma nacionalização não é, na realidade, o fato de que o nacionalizado tenha conhecimento do alcance deste ato, senão até do próprio ato, para sua admissão entre os cidadãos do estado em questão. O ato tem, pois, em si mesmo uma virtude “causativa”. Não se trata unicamente de um “participar” da nacionalização, mas tam bém de um acontecimento real e novo. Todas as vantagens que o estado em questão pode oferecer, em virtude de sua história e de suas tradições, não são somente prometidas ao recém-chegado para quando ele soubesse se mostrar digno delas. São-lhe perfeitamente outorgadas no momento de sua nacionalização, independentemente de que as use ou as entenda. Para a vida do novo cidadão, este ato é uma mudança decisiva, é algo real, independente tanto de seu com portamento no futuro como de sua intenção de prestar honra a sua nova pátria. Se é pré-requisito que o candidato testemunhe previa mente seus desejos de ser nacionalizado, este testemunho não é cons titutivo do próprio ato de nacionalização, que depende do governo do país. Se o que foi nacionalizado tem filhos menores de idade, estes podem, sem que o queiram, ser nacionalizados ao mesmo tempo que o pai, o que vai determinar de maneira muito real toda sua vida civil, posto que vão ser submetidos, ao longo do tempo, ao mesmo regime que seu pai. Isso é o que K. Barth esquece. Pode-se recordar tam bém que, depois de uma guerra, os estados vitoriosos chegam a 44
K. BARTH, o. c., 20.
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decretar a nacionalização coletiva dos habitantes de toda uma região sem que estes testemunhem previamente sua aceitação e sua vonta de de respeitar no futuro esta mudança de nacionalidade. Este ato tem um efeito absolutamente idêntico ao de uma nacionalização privada conferida por petição de um candidato. É um acontecimento eminen-temente real que, no dia de sua entrada em vigor, confere àqueles aos quais concerne, os direitos e os deveres dos outros cida dãos da nação vitoriosa.45 Não discutimos aqui a questão quanto a se este ato é legítimo ou não; se trata unicamente de pôr em evidên cia seu poder causativo. Este exemplo nos parece particularmente feliz pela seguin te razão: nos permite compreender que no mesmo instante em que é promulgado o ato de nacionalização, o governo em questão é o único que atua concedendo ao novo cidadão o privilégio de sua nova nacionalidade. O recém-chegado permanece passivo. O fato de que tanto crianças quanto adultos, tenham pedido ou não, poderem ser beneficiados por este ato, cujo os efeitos são semelhantes para as duas categorias, demonstra que não se poderia fazer do comportamento prévio do beneficiário, e de sua aquiescência ao ato, uma condição para o próprio ato. Para o estado, como por outro lado para o novo cidadão, seu comporta mento ulterior é evidentemente da maior importância. Porém, até se não permanece digno de sua nacionalização, esta não per de todo seu valor de acontecimento real e não simbólico. Se, mais tarde, o que foi nacionalizado - como menor, portanto sem seu consentimento, ou como adulto - renegue, por sua conduta, a nacionalidade que realmente lhe foi conferida (e não somente comunicada por meio de um papel oficial que é o certificado de nacionalização), acabará por não desfrutar mais dos privilégios de sua nova nacionalidade. Ao tornar-se um traidor, será julgado e condenado à prisão perpétua ou à pena de morte. Assim, perde rá as vantagens conseguidas por sua nova nacionalidade. O fato de que possa tornar-se um traidor prova, então, a posteriori, que o ato de nacionalização, a partir de sua promulgação, lhe permitia efetivamente desfrutar de tudo, ao longo do tempo, que perde por 45 Estes
e seus filho s se beneficiara, por exemplo, de uma melhor situação alimentícia.
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sua traição. Poderia desfrutá-lo inclusive quando se opunha tal vez a este ato, ou quando todavia não o compreendia. Sem dúvida, a comparação não é totalmente adequada, porém apresenta bem o batismo como um ato divino que confere ao batiza do, independentemente de seu comportamento, a graça de “revestirse de Cristo” (G1 3.27; Rm 6.3 s.), de chegar a ser membro de seu corpo. Com efeito, neste corpo atua o poder de ressurreição do Espí rito Santo. Este poder forma esse corpo. O batismo significa, pois, que se é admitido no único corpo onde depois de pentecostes se irrompeu este poder.46 Temos visto, com efeito, que o essencialmen te novo no batismo cristão é que Cristo, em virtude de Sua obra expiatória, “batiza no Espírito Santo”. A este respeito, é também necessário distinguir entre o que se passa no momento do ato batismal e os efeitos ulteriores deste. Para o cristianismo primitivo, o novo batizado pertencerá para sempre ao reino do Espírito na condição de que permaneça na fé. No seio das assembléias da comunidade, será sobretudo preservado das tenta ções, próprias dos “últimos dias” em que vive (Hb 10.25; cf. Did 16.2). O culto eucarístico da Igreja lhe permitirá realizar de novo a experiência da presença de Cristo. Porém, se as conseqüências do batismo modificam até tal ponto a existência do batizado, é preciso que este ato solene, pelo qual Deus coloca de uma vez por todas o homem diante de tantas graças, possua também uma virtude própria. Esta consiste no dom batismal que é a incorporação do batizado à igreja pelo Espírito Santo. Este dom, cuja apropriação subsequen te em sua vida dependerá de sua fé, lhe é gratuitamente concedida por Deus no ato de seu batismo, sem sua intervenção. Quando Paulo disse que por um só Espírito fomos batizados em um só corpo, não quer com isto dizer que o dom do Espírito Santo seja a condição da admissão na Igreja, mas antes que o Espírito atua no próprio ato da incorporação. Em virtude de sua própria essência, o Espírito não pode ser transmitido como uma coisa estática, mas somente in actu, e esta ação do Espírito, nesse instante, consiste precisamente no fato de que “agrega” o batizado à Igreja. Dito de 46
Precisamente porque o poder de ressurreição do Espírito atua na Igreja, Paulo pensa que uma participação digna da eucaristia deveria conter os poderes da enfermidade e da morte que assaltam aos membros da comunidade (1 Co 11.30).
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outra maneira: no que concerne ao ato batismal, não há incorporação à Igreja sem ação do Espírito, e não há ação do Espírito sem incorpo ração à igreja. Poderia se objetar que um ser humano que não pode nem com preender nem crer não é capaz de receber, ainda que passivamente, este dom do batismo; não pode, portanto, ser objeto de uma tal ação do Espírito. O problema, por conseguinte, não está em saber se um recém-nascido tem necessidade de beneficiar-se da morte e ressurreição de Jesus Cristo47, mas se lhe é possível receber o Espí rito Santo, ainda que passivamente. Poderíamos responder com a pergunta seguinte: Como o acontecimento do Calvário pode exercer seu efeitos em favor de todos os homens antes de crerem e a despei to de sua incredulidade manifesta e de sua postura negativa em dei xarem-se redimir desta maneira? Todavia, tratando-se aqui do Espí rito Santo, surge uma dificuldade que é preciso não fazer desaparecer: pode o Espírito Santo atuar em um recém-nascido apesar da sua incapacidade de crer? Esta pergunta deve ser delineada deste modo porque o batismo cristão é inconcebível fora da ação simultânea do Espírito Santo. Não há batismo cristão sem dom do Espírito Santo.48 E necessário levar a sério o que aqui temos dito49, a saber, que tudo o que se disser sobre o batismo deve poder aplicar-se também ao batismo de crianças. 47 O
Novo Testamento não permite responder diretamente à pergunta, delineada com freqüência depois de Santo Agostinho, que é a de saber se os recém-nascidos são inocentes ou não, isto é, se é necessário para eles morrer com Cristo. H. WINDISCH, Zum P roble m d er K in d erta u fe im U rchris te ntu m : ZNTW (1929) 119, e A. ÕPKE, em ThWbNT, vol. I, 541, a tem delineado em seus últimos anos. J. JEREMIAS, o. c., 17, responde a H. W IND ISCH em primeiro lugar que o judaísm o não estendeu jam ais aos filhos dos pagãos a idéia de um a inocênc ia inata, e em continuação - de acordo com Õ PKE - que no judaísmo se encontram juntas a idéia desta inocência e a que prete nde que as crianças “n ascem na in iq üid ade” (SI 51.7). A questão, por outro lado, não é capital, se o batismo, participação na morte e ressurreição de Cristo, for considerado como a admissão em Seu corpo crucificado e ressuscitado, pois cada membro deste corpo deve receber o “selo” desta admissão. 48 Os relatos de Atos dos Apóstolos que falam de batismos vêem às vezes no “falar em línguas” o testemunho imediato do dom do Espírito (At 19.6; cf. 2.4; 10.46). Pois bem , a glo ssola lia está exclu íd a nos recém -nascid os. Poré m , is to não sig nif ica que não possam receber o Espírito, pois o Novo Testamento e Atos em particular proíb em pedir a glo ssola lia com o confirm ação in iludív el e obrig ató ria de todo batis mo cristão (Cf. At 2.41; 8.38; 9.18; 16.15-33, etc.) 45 Cf. as pp. 133 s.
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Não trairemos nosso objetivo se mencionarmos aqui o gesto da benção que Cristo fez sobre as crianças que Lhe eram apresentadas (Mt 19.13 s., juntamente). E isto não somente porque a maneira como os evangelistas nos referem o fato50 deixa supor que queriam dar com isto diretivas a respeito do batismo de crianças, sendo este, talvez já, objeto de discussão eclesiástica51, mas sobretudo porque a imposição das rrtãos era precisamente o gesto que acompanha a doação do Espírito. A mão que Jesus coloca sobre as crianças em sinal de ben
ção é o instrumento do Espírito assim como a que impõe sobre os enfermos. As crianças ((3p*fpri, Lc 18.15) de que fala o Evangelho entram, em virtude desse ato, em comunhão com Jesus. Certamente não se trata do batismo52, porém com direito, todavia, desde os tem pos mais antigos, este episódio é invocado para legitimar o batismo de crianças, pois trata de introduzir as crianças na comunhão com Cristo. “Não as impeçais de entrar nessa comunhão!” |i* •• eoÂ* fi£. Não seria, por isto mesmo, um sinal de pouca fé declarar im possível o milagre invisível que constitui a introdução pelo Espírito de uma criança na comunhão com Cristo? Porém, se objetará então - e a isto já temos feito alusão53 que quem pretende relacionar este milagre com o ato exterior está próximo da magia. Por isto é indispensável falar aqui da fé da comu nidade, reunida durante o batismo, fé que tornou possível a obra do Espírito. Com efeito, no Novo Testamento só excepcionalmente caso do batismo do eunuco (At 8.26 s.) - a comunidade, ainda que reduzida a “dois ou três”, está ausente na celebração do sacramen to54. A fé da comunidade não é uma fé substitutiva, como dizem os Apêndice, 177 s. 51 Cf. as pp. 133 s. 52 Não podia tratar-se do batismo posto que Jesus, todavia, não havia ainda morrido e ressuscitado. É pois errôneo querer legitimar por este texto uma liturgia de benção ou de “apresentação” de crianças que precederia seu batismo na idade adulta (cf. L. SECRÉTAN, B ap tê m e des croyants ou baptêm e d es e n fa n ts ? La Chaux-de-Fonds 1946, 26, 55 s., 62 s.). Ao contrário, se este episódio que precede no tempo a morte e a ressurreição de Cristo legitima um uso litúrgico que seguirá a Sua obra expiatória, é melhor o uso do batismo de crianças. 53 Cf. as pp. 142 s. 54 Por outro lado, a glossolalia, que atesta as vezes o dom do Espírito, pressupõe, sem dúvida, a presença da comunidade, ainda que Paulo (1 Co 14) põnha em dúvida o valor deste dom espiritual para a edificação da comunidade, se não houver interpretação. 50
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Reformadores55. Com efeito, o batizado desprovido de fé não se beneficia da fé da comunidade reunida ao redor dele. Erroneamen te se invoca esta concepção nas apologias clássicas do batismo de crianças. Não se trata disso. A comunidade crê que se realiza diante de seus olhos um acontecimento decisivo que concerne ao batizado, e que este acontecimento é real, seja criança ou adulto, tenha cons ciência ou não. Se a comunidade reunida para o batismo não cresse nisto, não seria Igreja e o Espírito Santo estaria ausente. Porém, ali onde há uma comunidade crente, o Espírito Santo, que atua sobera namente nela, tem o poder de comunicar-se a um recém-nascido da mesma forma que a todos aqueles que, segundo Paulo, “por um só Espírito são batizados em (e*ç) um só corpo”. E necessário, a este propósito, falar do matrimônio, que existe também em função da vida da comunidade. Este está enobrecido, segundo Ef 5.22 s.56, porque é um reflexo das relações que unem Cristo à Sua Igreja57. Por isso, uma criança nascida de um matrimô nio de pais batizados participa por seu mesmo nascimento do corpo de Cristo (1 Co 7.14).58 Este texto paulino não atesta nem o batismo de crianças nem o de adultos. Pois um e outro são supérfluos para as crianças nascidas de pais cristãos; ao nosso entender, Paulo pensa aqui que a santidade conferida pelo nascimento em si basta neste caso para que se seja membro da Igreja59. Porém, esta passagem, 55
Esta reserva diz respeito a tudo o que H. GROSSMANN, o. c., 33 s., disse a este respeito. Poderia se falar no máximo de “fé substitutiva” para esse problemático batism o pelo s m ortos de que fala Paulo (IC o 15.29). O sentido desta passagem nos p a re c e im p re c iso no m o m en to e é p re fe rív e l não in v o c a -lo no d e b ate so b re o batism o de crianças. Cf. todavia K. L. SC HMID T, D ie Taufe f ü r die Toten: Kirchenblatt für die Reformierte Schweiz (1942) 70 s. 56 H. GROSSMANN, o. c., tem razão ao manifestar que esta passagem fala igualmente do batismo (no v. 26). 57 Cf. o capítulo 6 , pp. 105-116. 58 Advertimos anteriormente que esta opinião de Paulo procedia, sem dúvida, do judaísmo onde não se batizava aos filhos dos prosélitos nascidos depois da conversão de seus pais. 59 Esta exegese não é indiscutível, o sabemos, porém é a que melhor nos parece explicar o texto. H. GROSSMANN, o. c., 18, sustenta o contrário. Pensa, com efeito, que a “santidade” destas crianças é uma alusão ao seu batismo. Este ponto de vista nos parece dificilmente sustentável. Se o concedemos aos adversários do batismo de crianças. Cf. a este propósito M. GOGUEL, o. c., 328 s. F.-J. LEENHARDT, o. c., 67, pensa que não se pode deduzir deste texto que os filhos dos cristãos são “aptos para o batismo”. Estima que “é o contrário que seria preciso deduzir: se são “santos”, não têm necessidade de batismo. Têm por nascimento o que o batismo deveria dar-lhes.
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como as que se referem ao batismo de toda uma casa, não permite tirar conclusões precisas concernentes à prática batismal nem num sentido nem noutro. É necessário, pois, invocá-la em relação com a doutrina geral do batismo. Pois bem, se nos situarmos sobre esse terreno, é necessário reconhecermos que ela atesta de todos os mo dos uma noção coletiva de santidade. A admissão no corpo de Cristo não depende, pois, de uma decisão pessoal, mas do fato de que se nasceu de pais cristãos, portanto, batizados. Isto quer dizer que esta admissão consiste em um ato da graça de Deus, indepen dentemente do homem. Que Paulo julgue o batismo de tais crianças ou não, uma coisa é certa: a noção de santidade implicada pelo que fo i dito, conduz diretamente à prática do batismo de crian ças. Opõe-se à idéia de que os filhos de cristãos não poderiam receber o batismo senão depois de decidirem por si mesmos. E a
hipótese de J. Jeremias60, a saber, a de que já nos tempos do Novo Testamento se praticava o batismo das crianças, adquire assim, a partir dessa observação, um alto grau de probabilidade. No caso que se refere a 1 Co 7.14 não se trata de uma evolução que vai do batis mo de adultos ao de crianças, mas que a primitiva comunidade cristã, como a comunidade Israelita, renunciava o batismo dos filhos nasci dos de pais cristãos, mas que depois passou ao batismo das crian ças, sempre segundo a mesma noção coletiva de santidade.61 É preciso, com efeito, observar que em 1 Co 7.14, Paulo fala exclusivamente de crianças de pais já membros da Igreja. Não se pode, pois, aduzir esta passagem para legitimar o batismo dos filhos de pagãos ou de judeus que se convertiam à fé cristã. Para aqueles, é preciso recorrer aos textos que referem o batismo de casas intei ras. Vimos que, baseando-se somente nestes, não se pode afirmar com certeza que tais batismos de filhos de pagãos foram celebrados ao mesmo tempo que os de seus pais, ainda que a prática judaica do batismo dos prosélitos faça com que seja uma hipótese provável. 60 O. c., 24 s. 61 Provavelmente
esse passo foi desobstruído no momento em que se começou a pensar que a parousia não se daria enquanto viv essem as duas prim eir as gerações cristãs. Tanto razões práticas como teológicas (o paralelismo batismo e circuncisão que se impunha então ainda mais que o de batismo cristão e batismo dos prosélitos judeus) im puls io naram a Igre ja a batizar as crianças, poré m sua doutrin a do batism o não foi em absoluto alterada.
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Porém, no que concerne à doutrina do batismo, essas passagens permitem concluir que nesse caso também a solidariedade batis mal da familia62 devia superar a decisão individual de cada membro. Uma graça batismal que beneficia a toda uma comunidade, a saber o povo de Israel no momento da passagem pelo mar Vermelho, é suposta também em 1 Co 10.1 s., texto que seria necessário subli nhar nas discussões sobre o batismo de crianças. Ela mostra, com efeito, claramente que o ato da graça, considerado como tipo de batismo, concerne à aliança que Deus concluiu com todo o povo. A este respeito, é preciso mencionar a continuidade da linha que vai desde a aliança pactuada por Deus com Abraão, em favor de sua posteridade, com a da Igreja. Esta, da mesma forma que corpo de Cristo, única posteridade verdadeira de Abraão (G13.16), cumpre e realiza a primeira aliança. Em Rm 4.11 seu sinal, a circuncisão, é designado como uma c(ppay*ç, um selo: da justiça que Abraão havia obtido pela fé, a fim de ser pai de todos os crentes (v. 1lb e 12). Pois bem, esse termo mppay*ç designa no Novo Testamento o batismo, pois a este sacramento faz alusão acppay*^ea9ai‘ de 2 Co 1.22; Ef 1.13 e 4.30. Como a circuncisão, a o
Vimos que é necessário distinguir no sacramento do batismo dois elementos sucessivos, a saber: o ato soberano de Deus, que incorpora um indivíduo à Igreja, corpo de Cristo, e as conseqüências 62
K. BARTH, o. c., 37, subestima a importância do vínculo familiar no Novo Testa mento. Certamente, o matrimônio e a vida familiar entre a ascensão e a parousia de Cristo perderam seu valor próprio. Porém com sua integração na Igreja adquiriu uma nob reza da qual estava de sprov ido por si m esmo. 1 Co 7 não testem unh a uma posição essencia lm ente diferente da de E f 5.2 2 s.
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deste ato para a vida inteira do indivíduo. Faremos uma distinção entre o papel da fé antes e durante o ato do batismo e o que desem penha depois. Os textos do Novo Testamento permitem fazer esta distin ção? Já o texto citado mais atrás, 1 Co 10.1 s., não autoriza a respon der afirmativamente. Com efeito, Paulo distingue escrupulosamente o que aconteceu quando da libertação do povo eleito no momento da passagem pelo Mar Vermelho, tipo de batismo, do acontecimento subsequente: a maneira negativa como a maior parte do povo reage diante deste batismo e suas conseqüências funestas. A mesma dis tinção se encontra também nas outras passagens neo-testamentárias que falam de uma perda da graça batismal (Hb 6.6 e 10.26). Pois se se pode perder esta graça, isso significa que a vida ulterior do batizado decide também sobre o acontecimento sacramental. Porém, apesar disso, não se pode pôr em dúvida a realidade do que se passou no próprio momento do batismo.63 No momento, trata-se somente de demonstrar o quão bem fun dada está esta distinção. Para isto teremos que recorrer a Rm 6, pas sagem capital que justamente, nos recentes debates sobre o batismo, se destacou sem cessar. Nela também se faz esta distinção, posto que o indicativo do batismo (estamos mortos) está ligado de maneira muito característica ao imperativo (que o pecado não reine mais). Para todo batizado, o batismo está na origem de outros aconte cimentos. É verdade que somos eleitos em Cristo desde antes de nos so nascimento. Porém, no curso da vida terrestre de um batizado, o batismo é um ponto de partida. Da mesma maneira que a história da salvação se desdobra no tempo, assim, independentemente de seu nas cimento natural, há, na vida de um indivíduo, um primeiro ato redentor, um novo nascimento, seguido de um desdobramento no tempo. Essa é a razão pela qual o Novo Testamento chama o batismo de um “novo nascimento” (Tt 5.5; Jo 3.3 s.). Tal é o batismo; um começo muito real em si mesmo, porém, que leva consigo uma continuação, assim como o nascimento natural é um começo ao que não se saberia negar sua realidade. Pois bem, apesar disto, privado de uma continuação, isto é, se a morte sobrevem em seguida, perderia todo o efeito. 63
Cf. mais atrás, pp. 142-146.
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A distinção que o Novo Testamento nos convida a fazer é, pois, de grande importância para a questão do batismo de crianças. Com efeito, os adversários do batismo de crianças crêem que devem negar seu caráter bíblico precisamente porque falta-lhes a fé no instante do ato batismal. Por outro lado, quiçá, K. Barth não tenha tentado fazer esta distinção temporal, à propósito das relações entre o batismo e a fé, pelo fato de não ter uma concepção linear do tempo.64 Será necessário que a fé coincida com o ato batismal? É legí timo que nos façamos esta pergunta, pois o batismo é chamado um “novo nascimento”. Este fato nos permite sem dúvida alguma respon der negativamente. Advertimos que este segundo nascimento perde seu efeito se for seguido da morte, isto é, no caso de ausência da fé. Mas por isso não perde sua realidade. No momento em que ocorreu, era perfeitamente uma participação na morte de Cristo. Segue-se por tanto que este ato batismal único, este “nascimento”, não está ligado à fé prévia e não depende dela. O qual é distinto da .vida que se seguirá. E verdadeiramente necessário levar a sério o fato de que o batismo é um voltar a um começo radical: as coisas antigas já não contam mais, nem sequer a fé que existia, talvez, antes deste nascimento. Para o homem que o recebe, o batismo é um sepultamento total. Toda a doutrina de Rm 6.1 s. se dirige a homens que já estão batizados, a quem o batismo selou sua salvação. Não é, pois, um catecismo preparatório, mas explica a posteriori, àqueles que já são membros do corpo de Cristo, o que então havia se passado: “Considerai-vos, pois, como mortos para o pecado e como vivos para Deus em Jesus Cristo” (Rm 6.11). Segundo esta passagem, ainda se trata de pessoas batizadas na idade adulta, o “participar” da salvação, a compreensão e a fé que isto supõe não são constitu tivos do primeiro ato do acontecimento batismal, mas do segundo. Dá-se um duplo ensinamento aos batizados: primeiramente que foram objeto de um ato redentor e em segundo lugar, agora que o sabem, devem permanecer dignos, isto é, segundo Paulo, crer na realidade deste ato. E ainda se o apóstolo não faz aqui mais que recordar a seus leitores o que já lhes havia sido talvez comunicado antes de seu batismo, não é menos certo que se dirija a cristãos 64 Cf. a este respeito, Th. PREISS, a. c., 116.
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bat b atiz izad ados os e que qu e lhes lhe s fale fal e do batis ba tism m o como com o de um ato p assa as sado do do qual foram objetos passivos. Por Po r outro lado, lado, Paulo não menciona mencion a esta esta prefiguração do batis bati s mo que é a passagem pelo Mar Vermelho (1 Co 10.1 s.) senão para mostrar que no primeiro ato é só Deus quem atua, o homem não res ponde pond e senão no momento momen to do segundo ato. ato. A seqüência: seqüência: ação de Deusresposta respo sta do homem é determinante a este este respei respeito. to. O que aconteceu a todos os membros do povo (tc* rieç, cinco vezes nos quatro primeiros versículos), este milagre de Deus, é oposto à iniqüidade iniqü idade e ao castigo castigo de alguns alguns (xtveç, v. 7) que não puderam ser salvos, pois não puderam responder respon der pela fé. fé. Está, Está, pois, claro claro que o batismo aponta ap onta para o futuro futuro e espera no futuro uma resposta daqueles que se beneficiam dele, o que é um elemento essencial para pa ra um sacramento de admissão. admissão. Isto é válido para todo membro da comunidade, batizado quando criança ou adulto, havendo ou não tido a fé antes de ser incorporado à Igreja. Porém, se é essencial para o acontecimento batismal que o ba b a tiz ti z a d o , em to todd os os caso ca sos, s, crei cr eiaa dep d epo o is da celebração deste sacramento, por que o Novo Testamento refere tantos casos nos quais a fé precede e parece autorizar o batismo? Porque os únicos relatos precisos que temos apresentam pagãos e judeus convertidos em idade adulta. Para estes é com rigor que não sejam admitidos na Igreja de Cristo senão pela condição de afirmarem, sobre a base da fé, sua intenção sincera de responder no futuro à graça do batismo po p o r uma um a fé e uma u ma vida vid a dignas dig nas dela. A fé do candi can dida dato to neste nes te caso é uma condição humana que tornará possível a obra divina. Não é tão pouc po ucoo uma um a garan ga rantia tia da pers pe rsev ever eran ança ça futura fut ura do batizad ba tizado. o. Consti Co nstitui tui um sinal, um critério que permite, perm ite, à Igreja, fazer uma um a eleição entre os os homens que vai agregar pelo batismo. Assim, Assim, para um u m pagão ou um jud ju d e u conv co nver ertid tidos os quan qu ando do adulto adu ltos, s, como com o não nã o nasc na scer eram am em uma um a família cristã, é sua fé pessoal que mostra à Igreja que Deus quer aumentar aum entar o corpo de de seu Filho acrescentando-lhe um u m novo membro. membro. Por P or isso se requer a f é de um adulto no momento de seu batismo. batismo. Seria, com efeito, contrário à vontade de Deus, no que diz res pe p e ito it o ao batismo, batismo, que a Igreja Ig reja batizas bati zasse se indistintamente a todo o mundo, mundo, isto é, sem h aver av er um sin si n al divino divin o que lhe fa f a ç a espe es pera rarr que o batizado b atizado viverá fielmen fielm ente te em seu seio. O batismo de um
adulto, sem esse sinal da fé, seria tão inaceitável como o de uma
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criança moribunda. Com efeito, é preciso admitir neste caso, porém po p o r outras outr as razões, razõ es, que a crian cri ança ça não parti pa rticip cipar aráá do corpo corp o terrest terr estre re de Cristo, posto que o segundo ato necessário para o acontecimento batis bat ism m al não se produz pro duzirá. irá. Pode-se Pode-s e objetar aqui que, do mesmo mesm o modo que se batiza a um recém-nascido do qual se ignora a reação futura, os adultos indife rentes ou hostis poderiam ser batizados, pois adiante lhes seria ofe recida a possibilidade de chegar um dia à fé. Seria então possível, nos batismos de adultos, prescindir dessa pergunta sobre a fé do candidato de que fala o Novo Testamento, se esta não tem mais significação que a que nós lhe atribuímos. Para responder a esta objeção, é necessário dizer que o batismo de um recém-nascido, tal como se apresenta sobre a base dos textos estudados no parágrafo prece pre cede dente nte,, era basta ba stant ntee difere dif erente nte do batis ba tism m o de um u m adulto ad ulto in incr créd édu u lo.. O pertencer lo pertence r do recém-nascido, recém-n ascido, por p or seu nascimento nascim ento natural, à uma um a família cristã, ou ao menos a um pai ou uma mãe cristãos, constitui constitui um sina si nal l para a Igreja, em virtude da solidariedade batismal e da santidade notada previamente. previamen te. Este sinal indica que o acontecimento batis ba tisma mall divino divi no da incorp inc orpor oraçã açãoo à Igreja Igr eja deve dev e produ pro duzirzir-se. se. A fé do adulto que sai do judaís jud aísm m o, ou do paganismo, pagan ismo, e que por este fato fato não nasceu em uma família fam ília cris cristã, tã, deve desempenhar desem penhar o papel deste nas na s cimento e constituir cons tituir um sinal válido para pa ra a Igreja e, por po r conseguinte, indispensável. Most M ostra ra que Deus quer qu er atuar e somar, somar, pela pe la água e pelo Espírito, um novo membro a sua Igreja. Esta tem necessidade de tal sinal para não cair na arbitrariedade quanto à eleição dos que se batizam. batiz am. Deste Des te modo mo do o sinal será ser á em um caso o nascim nas cimen ento to da cri cr i ança em uma família cristã e noutro a fé do adulto. O testemunho da fé antes do batismo é para os adultos um elemento que faz parte das “ordenanças batismais”. A fé que segui rá ao batismo dá sentido a esta fé prévia. O pertencer de uma crian ça a uma família cristã não é uma garantia de fé subsequente, mas uma um a indicação indicação divina de sua probabilidade. probabilidade. Ocorre o mesmo com a fé de um adulto adulto pagão, ou judeu, judeu , testemunhada testemunhad a no momento de seu batismo. batism o. Est E staa não é mais ma is que qu e uma um a indicaçã indi caçãoo divi d ivina na assinalan assin alando do como com o prov pr ováv ável el a fé subsequen subse quente, te, única, decisiva. A fé que precede o batismo batismo não é então um elemento constitu cons titu tivo do próprio acontecimento batismal, batismal, da incorporação de um ser
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humano à Igreja de Cristo. Cristo. É somente necessária nece ssária no caso - mais freqüentemente nos nos primeiros primeiros tempos da Igreja Igreja - em que o candida to ao batismo batism o é um adulto adulto proceden proc edente te do judaísm jud aísmoo ou do paganismo. paganismo. segu e ao batismo é requerida a todos os batizados, a fé Se a fé que segue que o precede não é condição para o batismo senão no caso dos adultos que não têm vínculos naturais com a Igreja cristã. cristã. A situação situação partic par ticula ularr da Igreja Igr eja nascente, nascen te, que q ue batizav batiz avaa sobretud sob retudoo adultos, adu ltos, exp e xplica lica o porqu por quee a mais ma is antiga liturgia litur gia batis ba tisma mall conhecid con hecida6 a655 contenh con tenhaa uma um a declaração da fé do candidato. Porém, não teremos direito em tirar disto conclusões para a significação do batismo. Por outro lado, J. Jeremias recordou com razão que as declarações litúrgicas ou teo lógicas lógicas que acompanham o batismo de prosélitos judeus jude us não menciona senão a adultos. Portanto está provado que as crianças dos proséli tos eram batizadas ao mesmo tempo que seus pais66. Pode-se dizer então que o batismo batis mo dos adultos não se distingue do batismo batis mo das crian ças senão na medida em que se trata de neófitos que vêm do judaís mo ou paganismo. A confissão de sua fé é de praxe antes do batis mo. mo. Porém, nos dois dois casos, a doutrina dou trina do batismo é a mesma, sendo sendo os atos e os os gestos do batizado depois depo is do batismo o elemento decisivo para a confissão da fé cristã. A fé está essencialmente liga da ao segundo ato do acontecimento batismal e não ao primeiro. Isto está confirmado pelo fato de que encontramos no Novo Testamen Testamento to batismos batismos - de adultos adultos ou de criança criançass - que não pressu põem põ em a fé antes ou durante duran te a administração administraç ão do sacramento. É certo que a seqüência “pregação-fé-batismo” se encontra na maior parte dos casos referidos pelo Novo Testamento e se explica pela situação concreta da d a Igreja naquele naquele momento; porém, esta seqüência seqüênci a não é tão tão regular como pretendem os adversários do batismo de crianças67. Em todos os casos em que o Novo Testamento se embasa na solidariedade solidariedad e batismal batism al da família com o corpo de Cristo, não se trata da questão de um ensino precedente ao batismo e de uma fé confes 65 66
Cf. A p ê n d i c e , 172. s. J. JEREMIAS, o. c., 17. No momento do batismo de Cornélio e de “toda sua Casa”, de “seus pais e de seus amigos íntimos” (Atos 10), de Lídia e de “sua família”, do carcereiro de Filipos e de “todos os seus” (Atos 16), só Cornélio, Lídia e o carcereiro tomam a palavra junto aos apóstolos Pedro e Paulo. 67 Cf. H. GROSSMANN, o. c., 16.
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sada no momento do sacramento. sacramento. Isto é patente e totalmente indepen ind epen dente da questão insolúvel de saber se as “casas” compreendiam ou não também crianças pequenas68. O relato da conversão do carce reiro de Filipos é instrutivo a este respeito. O convite à fé (At 16.31) não é dirigido senão a ele somente, enquanto que a salvação é pro metida a ele e a sua casa: “Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo tu e tua casa”. casa ”. Pelo qual, naquela hora hor a noturna, 7ic/pa%pr|* fia, ele é batiz ba tizad adoo com todos tod os os seus, e “se “ se alegr ale grou ou com co m to toda da sua famíli fam íliaa por po r ele haver have r crido crido em D eus” eus ” (v. 34). 34). Em E m 1 Co 7.14, como como vimos, Paulo ensina que por po r causa dos laços que unem o matrimônio matrim ônio com o corpo de Cristo, a família fam ília é implic i mplicada ada solidariam solida riamente ente na n a santidad san tidade6 e699. É, pois, lícito lícito e ainda necessário evocar aqui essa e ssa passagem. passagem. Ela mostra que a santidade, santidad e, isto é, o pertenc perte ncer er aos “san “ santos tos”7 ”700, e, e, portanto, portan to, segundo segund o a p erte ten n cer ce r à Igreja Igr eja não estão li terminologia neo-testamentária, o per ga g a d o s a uma f é que f o i conf co nfess essad ada a previamente'.
E preciso preciso que recordemos aqui todavia, todavia, a prefiguração do batis bati s mo de 1 Co 10.1 s. Para Par a este este texto texto j á não é umà um à questão de vínculo entre a família e o corpo de Cristo, mas da aliança divina concluída com um povo de maneira ma neira completa. completa. Pois bem, o apóstolo apóstolo não pens pe nsa a va certamente ao escrever isto que o povo inteiro, salvo através do Mar Vermelho e “batizado em Moisés”, que os n* n* rteç, menciona dos com tal insistência tenham tido todos a fé. Resulta de todas estas considerações que, segundo o Novo Testamento, não se pode dizer, dizer, sem mais, que somente a fé conduz ao batismo. Esta afirmação é certamente verdadeira, posto que o Nov N ovoo Testa Te stame mento nto a refe re fere re sobr so bree to todo doss os rela re lato toss de batis ba tism m os de jud ju d e u s o u de pag p agão ãoss adult ad ultos os.. P orém or ém,, não n ão é a ún ú n ica ic a ver v erda dade deira ira,, pois po is para pa ra os outros batism bati smos os,, igualm igu alment entee menc me ncion ionad ados os,, a seqüên seq üência cia “con “c on fissão fissão de fé - batism batis m o” não não é observada. Ao contrário, contrário, está inver tida: é o batismo que conduz à fé. Assim a fórmula “batismo-fé” concerne a todos tod os os casos de batismos, posto que esta deve ser o pont po ntoo de part pa rtid idaa da fé. E esta es ta fórm fó rmul ulaa entã en tãoo a que qu e é norm no rmat ativ iva. a. Cf. mais atrás na p. 130. 69 Cf. mais atrás nas pp. 148 s. 70 É preciso preciso fazer notar que em 1 Co 7.14 7.14 fala-se da parte não crente crente que é “santificada” pe p e la p a rte rt e cren cr en te ( * 7 *e(atai), enquanto que das crianças se diz que são “santas” (*yioc). 68
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Para a categoria de batismos de adultos pagãos ou judeus, encon tramos o esquema seguinte: o homem é conduzido ao batismo pela fé, é agregado à Igreja de Cristo pelo sacramento, depois levado à fé71. A Igreja à qual o ato batismal incorpora, não é somente o lugar onde o Espírito Santo opera Seus milagres, mas também aquele onde se suscita a fé. Esta observação nos leva à última comprovação. No parágrafo precedente, vimos que a fé da comunidade, que é melhor não chamar substitutiva, já faz parte no momento do próprio ato batismal, do próprio ato do batismo. E preciso recordar aqui que a comunidade ora pelo batizado (At 8.15). Pede a Deus que introduza o candidato, adulto ou recém-nascido, no milagre do batismo. Esta fé, que tem por objeto aquele que vai morrer e res suscitar com Cristo, é efetivamente um elemento indispensável do próprio ato do batismo. Encontra-se a afirmação deste fato vendo o papel desempe nhado pela fé nos milagres realizados por Jesus. Não sem razão, falamos de milagres em um estudo sobre o batismo. Pois para o Quarto Evangelho particularmente, os sacramentos da Igreja cristã têm a mesma significação que os milagres realizados por Jesus durante o seu ministério terrestre72. O paralelismo milagre-sacramento está também na base de 1 Co 10.1 s. E, portanto, legítimo aduzir não como uma prova, mas como confirmação de nossa inter pretação, que na época dos milagres de Jesus - efetuados em favor de adultos e de crianças - não era sempre a fé dos beneficiados o que era decisivo. Amiúde, a fé daqueles que levam o enfermo ou falam do morto é que é tida em conta: “Jesus vendo a fé daqueles homens, disse ao paralítico: filho, teus pecados te são perdoados” (Mc 2.5). Em numerosos relatos evangélicos de milagres, se vê como a fé daqueles que imploram a Jesus em favor de um membro de sua família precede o milagre. “Em nenhum homem de Israel encontrei tanta fé” (Mt 8.10) disse Jesus do centurião de Cafamaum antes de 71 Cf. 72 Cf.
G. MIEGGE, o. c., 30 s. O. CÜLLMANN, Urchristentum und Gottesdienst , 33 s. No artigo citado de T. PREISS se fez referência a Jo 7.23, onde Jesus reconhece na circuncisão um poder vivifícante e a compara com seus milagres de cura.
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curar seu criado. Os evangelistas narraram a cura do menino lunáti co (Mc 9.14 s.) para mostrar que Cristo pode curar ali onde encontra fé. Nesta passagem, é o pai do menino quem crê: “Tudo é possível ao que crê, disse Jesus. Em seguida o p ai do menino exclamou: Creio” (Mc 9.23 s.). Precisamente porque faltava fé aos discípulos, estes não puderam curar este menino: “Então os discípulos se apro ximam de Jesus e tomando-o à parte perguntam: Por que não pude mos expulsar este demônio? Ele lhes respondeu: porque vos falta fé; • pois vos tenho dito, em verdade, que se tiverdes fé do tamanho de um grão de mostarda...” (Mt 17.19 s.)73. Nesta mesma ordem de idéias, a fé da comunidade reunida é decisiva no momento do ato batismal. As conclusões deste parágrafo sobre as relações entre a fé e o batismo são, pois, as seguintes: 1. Depois do batismo, a fé é requerida de todos os batizados. 2. Antes do batismo, a confissão de fé é exigida dos adultos que vêm individualmente do judaísmo ou do paganismo. É um sinal da vontade divina e indica à Igreja que pode procèder o batismo. 3. Durante o batismo, a fé é requerida da assembléia em oração. 4. O batismo e a circuncisão
Intencionalmente e por razões de método, temos descrito no que precedeu a doutrina neo-testamentária do batismo prescindindo provisoriamente dos textos bíblicos que falam da circuncisão. Não se pense, todavia, que estes textos sejam de uma importância secun dária. Vamos ver que todo o problema do batismo, suas conseqüên cias litúrgicas e práticas, pressupõem a doutrina e a prática da cir cuncisão, como também o batismo dos prosélitos. Estes atos sacramentais judaicos são aplicados tanto aos adul tos como às crianças. Há uma circuncisão de adultos e uma circun cisão de crianças, um batismo de prosélitos adultos e um batismo para seus filhos. É importante advertir que ao judaísmo esta prática não se tomou um problema. Porém, se fez uma distinção entre as crianças nascidas de pais judeus e as dos prosélitos admitidas na 73
Remetemos aqui o leitor ao artigo de J.-J. VON ALLMEN, L uc 9 .3 7 -4 3 a e t le baptême des enfants : Foi et vie.
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comunidade ao mesmo tempo que seus pais, o que mutatis mutandis pode exercer seu papel na maneira como se aplicará a doutrina neo-testamentária do batismo às crianças. É preciso começar por sublinhar bem que a noção de um batis mo cristão, considerado como o cumprimento e, por conseguinte, a abolição da circuncisão judaica, não é uma invenção teológica tardia devida ao apologista Justino. Não foi pré-fabricada a posteriori para justificar o batismo das crianças cristãs. Esta interpretação está expli citamente contida em Cl 2.11 s.74 Isto prova a existência de um paren tesco essencial e fundamental entre circuncisão e batismo cristão. A maneira como K. Barth trata esta questão é sem dúvida o ponto mais fraco de sua doutrina acerca do batismo. Pois se é preci so reconhecer que os argumentos dos Reformadores em favor do batismo das crianças não são incontrovertíveis, foi necessário pelo menos levar mais a sério o paralelismo que estabelecem entre a cir cuncisão e o batismo. Sobretudo porque nosso conhecimento do judaísmo contemporâneo, na época do Novo Testamento, nos obriga a esclarecer o batismo cristão em sua forma e fundo com o que nós sabemos acerca da circuncisão e do batismo dos prosélitos. Não podemos compreender bem como K. Barth pode admitir que o batis mo é o cumprimento da circuncisão negando, no momento decisivo, seu vínculo interno e afirmando que a circuncisão seria em sua essência totalmente diferente do batismo. De sorte que, segundo ele, não seria possível deduzir da circuncisão das crianças a legitimidade do batismo das crianças. Nós, todavia, encontramos uma correspon dência entre o ato de admissão na antiga aliança e o ato de admissão na nova, que não pode explicar-se senão por sua unidade essencial. Razões terminológicas já nos fizeram compreender assim, pois o Novo Testamento faz alusão ao batismo pelo verbo o
este último texto, HARALD-SAHLIN escreveu um importante artigo, Omskãrelsen i Kristus-, Svensk Teologisk Kvartalskrift (1947) 11 s. Apoiando-se no artigo que N. A. DAF1L havia publicado na m esm a rev ista (1 945, 85 s.) sobre o batism o na E pístola aos Efésios, mostra de m aneira convincente que a perícope de E f 2.11-22 está dominada pelo paralelismo circuncisão-batismo, e chega quase a interpretar este texto particularmente difícil integrando-o sem choques na teologia paulina. 75 Cf. mais atrás na p. 150.
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que, no judaísmo, a circuncisão é considerada como um “novo nasci mento”76 e que os circuncisos são chamados “os santos”, como os batizados na Igreja. Tudo isto prova claramente que a circuncisão é o sacramento de admissão na antiga aliança e que ela confere santi dade aos circuncisos. Karl Barth crê poder debilitar o paralelismo neo-testamentário indubitável entre a circuncisão e o batismo cristão afirmando que a circuncisão não significaria mais que a admissão a uma sucessão natural de gerações e, por esta razão, praticada somente nos meni nos (varões). De acordo com esses dados, não se poderia, pois, tirar conclusões concernentes ao batismo cristão. Para este último, o ele mento importante seria a fé individual e não a ligação a uma suces são de gerações, a um povo ou a uma família. Segundo nosso colega, não seria necessário atribuir importância ao fato de que em Cl 2, por exemplo, se fale sem restrição alguma da circuncisão em um texto batismal. Segundo ele, o Novo Testamento mostra, por outro lado, que na Antiga Aliança o sinal da vontade salvadora de Deus era a solidariedade familiar, enquanto que na Nova este sinal estaria representado pela fé e o compromisso pessoais. Porém, esta interpretação da circuncisão judaica não é sus tentável, pois não corresponde em absoluto à maneira segundo a qual Paulo compreendia este sacramento da Antiga Aliança. Com efeito, segundo Rm 4.11, “o sinal da circuncisão” é dado a Abraão “como o selo da justiça que ele havia obtido pela fé ”. Esta fé de Abraão, que Deus sela para ele e seus descendentes com o sinal da circuncisão, é precisamente a fé na promessa que foi feita a Abraão, promessa de chegar a ser o pai de muitos povos (^l<5'k'k• **0vr|, Rm 4.17 e 18). Não se trata somente de gerações do povo judeu. Na Epístola aos Gálatas (4.21 s.) o apóstolo se esforça por demonstrar que o princípio camal da sucessão natural das gerações não é deci sivo para Isaque e seus sucessores. Ao contrário, é o filho da serva, Ismael, quem deve seu nascimento a este princípio • ecT* *a* p* ex, enquanto que o filho da livre, Isaque, o deve milagrosamente à pro messa divina. Paulo pode assim designar os cristãos como sendo os seus descendentes • cct* *Taa* • • •7cayyEÀ*ecç (G1 4.28). 16 Cf. STRACK-BILLEBERCK, o. c., vol. II, 423.
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Se o Novo Testamento faz da circuncisão o selo desta fé de Abraão, isto é, se a circuncisão tem de antemão a finalidade da incorporação dos pagãos à aliança divina, é incompatível com o ensino neo-testamentário não ver nesse selo mais que uma admissão à sucessão natural das gerações. Na realidade, a circuncisão é a incorporação à aliança realizada por Deus sobre a base da promessa feita a Abraão e a seus descendentes, compreendidos os pagãos, tal como o batismo os toma membros do corpo de Cristo. Bem compreendida, a circuncisão, que não é somente exterior e feita pelas mãos dos homens (Ef 2.11; Cl 2.11), mas “uma circun cisão do coração” (Rm 2.29), se prolonga diretamente até o batismo cristão, a circuncisão de Cristo” (Cl 2.11). Tal é o sentido da argu mentação apostólica em Rm 4.1 s. e G1 3.6 s. Com efeito, nesta última passagem, fala-se também da descendência que a promessa feita a Abraão tinha em vista, e Paulo disse explicitamente que todos aqueles que são “batizados em Cristo” participam dela. Abraão é também o pai dos membros da Igreja de Cristo, não em virtude da descendência carnal, mas em virtude da história divina da salvação. Pois bem, o que é válido para Abraão o é também para a circuncisão que selou a justiça que ele havia obtido por sua fé na promessa pre cisamente acerca desta descendência. Na história da salvação, a circuncisão encontra significação referindo-se não somente à descendência natural, como também, e por sua vez, ao mundo das nações. Por causa da eleição divina, a aliança da graça se aplica em primeiro lugar a Israel • cct» *G* p* fx, porém não é este o elemento mais importante para compreender a significação neo-testamentária acerca da circuncisão. Não con siste tão pouco na constatação, perfeitamente exata em si, de que “a sucessão das gerações chegou ao seu fim no momento do nas cimento do messias”77. O elemento primordial da circuncisão é, desde sua instituição, o ser selo de uma aliança aberta a todos os povos. Se mais tarde, esse selo não foi o sinal distintivo dos membros reais da aliança abraâmica, se, por outro lado, a linha de demarcação entre os descenden tes de Abraão e os que não são desapareceu, não foi porque esse 77 K. BARTH, o. c., 31.
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selo estivesse destinado somente à descendência natural do patriar ca, senão antes por causa da infidelidade de Israel. Esta infidelidade não se consistiu, em princípio, no não reconhecimento da amplitude universal da promessa afirmada na circuncisão. Com efeito, segun do o Antigo Testamento, a aliança da graça esteve fechada aos gen tios, entretanto a genealogia santa dos descendentes de Abraão não chegou a seu fim, quero dizer que, entretanto, o messias não havia nascido. Se a “entrada” das nações não se produziu sob a antiga aliança é porque os fariseus - para recorrermos às palavras bem conhecidas de Jesus - fizeram dos pagãos convertidos que eles circuncidavam “filhos do inferno duas vezes piores do que eles mes mos” (Mt 23.15). Por isto não tem nada que ver com a essência da circuncisão. Temos aqui porque a maneira como K. Barth conside ra as relações circuncisão-batismo não é correta. O que caracteriza a doutrina neo-testamentária da circunci são, o que é para ela o fator capital, não é a eleição de Israel • fxx* • o* p* ex, mas antes uma interpretação universalista da circuncisão, correspondente à concepção do judaísmo do tempo de Jesus, apesar de toda a infidelidade deste judaísmo. Pois na prática, a circuncisão não estava ligada ao princípio carnal, pois antes do nascimento do messias, os pagãos já estavam convidados a participarem da alian ça da promessa. “Nem a doutrina nem a prática judaica do tempo do Novo Testamento permitem afirmar que a circuncisão concerne ao nascimento natural”78. Que sentido então teria em ver nela um “novo nascimento”?79 A missão no meio dos pagãos era uma das expressões mais importantes da vida do judaísmo sob o império romano. Se não temos textos judaicos e profanos para afirmá-lo, o próprio evangelho nos ensina que os fariseus “percorriam mar e terra para fazer um só prosélito” (Mt 23.15). Pois bem, nem estes prosélitos nem seus filhos estavam ligados por nascimento a uma sucessão de gerações israelitas. Em regra geral estes prosélitos eram adultos, e por conse guinte não eram circuncidados como as crianças. K. Barth não fala nunca dos prosélitos. Todavia, os textos neo-testamentários que 78 K. BARTH, o. c., 31. 79 Veja mais atrás nas pp. 159. s.
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mencionam a circuncisão concernem tão freqüentemente à circun cisão de pagãos adultos como a que era praticada nos filhos dos israelitas. A polêmica de Paulo se dirige sem dúvida, em grande parte, contra a pretensão de circuncidar os pagãos adultos que se tornavam cristãos (Atos 16.3). Isto prova igualmente que a circun cisão judaica não estava essencialmente ligada ao nascimento natural, senão que seu significado era a admissão na aliança de Deus aberta a todos. A situação é portanto mutatis mutandis análoga a do batismo. Eram admitidos à circuncisão e por conseguinte introduzidos na ali ança: os que vinham de fora (7tpoo* fonoi) e as crianças judias que, pelo fato de seu nascimento, estavam destinadas a fazer parte da comunidade, porém, deviam receber todavia o selo efetivo. A cir cuncisão tem nos dois casos um sentido absolutamente idêntico. Se há uma diferença no que concerne às crianças, consiste no fato de que são eleitos por Deus e destinados à circuncisão, não sobre a base de uma catequese e de uma decisão pessoal, mas antes em virtude de seu nascimento. É exatamente a mesma diferença que nós chegamos a reconhecer para o batismo cristão nos parágrafos precedentes. Todavia, na comunidade judaica, constituída desde há vários séculos, a necessidade de circuncidar às crianças se apresentava com mais freqüência, que a de batizá-las na comunidade cristã que acabava de tomar corpo. Não obstante, em seguida se delineia, como o demonstra a passagem de 1 Co. 7.14, a questão da “santi dade” das crianças na Igreja. Como já vimos, Paulo afirma que os filhos dos cristãos são “santos” por seu nascimento. Isto significa provavelmente que seu batismo não era necessário80, porém tam bém que seu batismo na idade adulta estava excluído, posto que por seu nascimento já entrou na aliança dos santos. A circuncisão na idade adulta dos filhos nascidos de pais cincuncisos tinha sido igualmente excluída no judaísmo, o qual conhecia todavia a circun cisão dos adultos. A analogia não está debilitada pelo fato de que a santidade é já conferida sem batismo aos filhos cristãos de 1 Co. 7.14, enquanto 80 Cf. mais atrás nas pp. 148 s., 155 s.
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que a lei estipula que só a circuncisão tomou a santidade das çrianças judias efetiva. O elemento tanto no caso de 1 Co 7.14 como no que concerne à circuncisão de crianças judaicas é o nascimento natural, que oferece a “santidade” e a incorporação à aliança divina. O papel desempenhado pelo nascimento natural é semelhante na Igreja cristã e na comunidade judaica, qualquer que seja a interpreta ção que se dê a 1 Co 7.14. Para as crianças cujos os pais estavam já admitidos na alian ça, o nascimento natural tem a mesma função que a decisão de fé pessoal para um adulto que vem de fora. É um sinal que mostra que Deus quer realizar o milagre da incorporação. A analogia se toma mais patente todavia se recordarmos que, nos tempos neo-testamentários, a circuncisão dos prosélitos era seguida de um banho de purificação, o batismo dos prosélitos. Podemos conside rar como certo que João Batista se sujeita a esta prática. Introduz, não obstante, a novidade revolucionária e escandalosa para os judeus de exigir este batismo não somente dos pagãos, como também dos circuncisos, antes de admiti-los na comunidade messiânica. Esta é a primeira parte da transição da circuncisão ao batismo. Para João, todos aqueles que querem ser introduzidos nesta comunidade se encontram, sem exceção, na situação de prosélitos e devem ser batizados. A circuncisão era, até aqui, o único ato de admissão para os filhos de circuncisos. Por outro lado, os prosélitos - crianças ou adul tos - deviam passar pelo batismo de purificação depois de terem sido circuncidados. Somente neste sentido é que há uma diferença entre a admissão pessoal. Esta dependia das leis rituais judaicas de purificação. Já advertimos que os filhos nascidos de pais prosélitos, antes de sua conversão, eram juntamente com seus pais batizados ao mesmo tempo81. Por razão desta prática e dadas as relações estreitas existentes entre o batismo de João, por conseguinte o batismo cristão, e o dos prosélitos, se deve dar razão a H. Grossmann quando disse que o Novo Testamento deveria conter uma proibição explícita ao batis mo de crianças, se a Igreja cristã não o houvesse praticado, pois que esta maneira de atuar era corrente na comunidade judaica82. 81 Cf. STRAC K-BILLERBE CK, o. c., vol. I, 110 s. 82 H. GROSSMA NN, o. c., 14.
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Não se poderia ver então uma causa de incompatibilida de entre o batismo de crianças e a doutrina bíblica do batismo no fato de que João Batista exigia o arrependimento antes de batizar. Havendo sempre candidatos ao batismo que se encontravam em situação de prosélitos, como já temos visto83, ele exigia um arre pendimento prévio. Atuava deste modo como os missionários judeus em relação aos prosélitos adultos que tratavam de ganhar para sua fé. Por outro lado, não há motivo algum para supor que João se colocou em contradição à pratica do batismo dos proséli tos, excluindo as crianças que os pais arrependidos traziam consigo para serem também introduzidas na comunidade messiânica. Não é necessário atribuir um alcance negativo ao fato de que os Evan gelhos não falam disto; o ministério do Batista se sujeita diretamen te à prática judaica do batismo dos prosélitos. O ministério de João não foi tão longo para que o caso do nascimento de novas crianças na comunidade dos que ele havia batizado se apresentasse com regularidade. Pelo contrário, este caso deve ter se apresentado com mais freqüência na Igreja. Vimos que Paulo, em 1 Co 7.14, está verossimilmente de acordo com a doutrina e a prática judaica, que dispensavam as crianças nascidas dos prosé litos, depois de sua conversão, de receber o batismo84. Para compreender o vínculo profundo que une a circuncisão, o batismo dos prosélitos, o batismo de João e o batismo cristão, é preciso advertir que João não reconheceu mais que um dos atos de admissão dos prosélitos: o banho de purificação. Quiçá porque se dirigia sobretudo aos circuncisos, que pelo fato de serem presunço sos por causa da santidade de filhos de Abraão de tal modo a perdi am. Era necessário então purificá-los de novo pelo batismo, pois a circuncisão, pelo fato de ser o sinal da descendência de Abraão, não bastava para pô-los ao abrigo “da ira vindoura” (Mt 3.7). Por isso, seu batismo tomava um alcance parecido ao da circuncisão. Con verteria-se em um ato divino de admissão, de agregação ao “rema nescente” do povo de Deus que esperava, pelo arrependimento, o cumprimento das promessas. Nesse sentido, o batismo de João pre 83 Cf. m ais atrás na p. 163. 84 Po rém não da circuncisão. Cf. m ais adiante, pp. 169 s.
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parava também o da Igreja. O que caracteriza, com efeito, o batismo cristão é que a purificação e a admissão não acontecem, como para os prosélitos judeus, por meio de dois atos distintos - circuncisão e batismo - mas antes de um só: o batismo. Este o toma “santo”, no sentido neo-testamentário deste termo, ao permitir, por sua vez, por um só e mesmo ato, ter parte na morte expiatória de Cristo, ser purificado e ser introduzido pelo Espírito Santo na comunhão dos “santos”, chegar a ser membro da Igreja. Tal como o batismo de João, porém completando-o, o batismo cristão reconhece em si mes mo o que os dois atos judaico, da circuncisão e do banho de purifica ção, conferiam. O que foi exposto até aqui dá uma grande probabilidade à hipótese formulada por J. Jeremias.85Este pensa que a afirmação de Paulo em 1 Co 7.14 - isto é, que as crianças que nascem na Igreja estão dispensadas do batismo porque seu nascimento já as toma “san tas” - não podia ser a última palavra do cristianismo primitivo a este respeito. Os cristãos não podiam permanecer nesta dispensa do batis mo conforme a prática judaica em relação às crianças dos antigos prosélitos. Com efeito, o batismo não era a realização só do banho de purificação judaico, mas também o da circuncisão enquanto sinal de admissão no povo de Deus. Assim como o judaísmo não batizava aos filhos já “santos” dos prosélitos, porém os circuncidava, igualmente a Igreja devia selar as crianças “santas” de nascimento pelo batismo, a CKppayç neo-testamentária que realiza a da antiga aliança. O batismo cristão preparado pelo de João recolheu, assim, da prática de admissão do judaísmo, o ato exterior do banho de purifica ção dos prosélitos. Porém, para a igreja este não é como para o judaísmo, um ato complementar para purificar antigos pagãos quejá haviam recebido a circuncisão. É único porque assume a significa ção do batismo dos prosélitos e a da circuncisão, pois santifica e incorpora ao povo de Deus os que o recebem. Ademais, o batismo, sendo um complemento da circuncisão, a supera pelo fato de que não se aplica somente aos homens, mas também às mulheres. Tem-se pretendido que por esta razão era im possível estabelecer uma analogia entre a circuncisão e o batismo. 85 J. JEREM IAS, o. c., 24 s.
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Porém, este argumento não leva em conta, tão pouco, as relações existentes entre o batismo judeu dos prosélitos e a circuncisão. Pois já no batismo dos prosélitos, o antigo princípio de que só os homens podem ser plenamente membros do povo de Deus está, se não supri mido, em decadência. Com efeito, se as mulheres pagãs eram admi tidas no batismo dos prosélitos com igual título que os homens, este batismo se convertia então em algo mais que um rito de purificação. Convertia-se no sinal de sua incorporação à comunidade judaica. Pois bem, ao substituir e realizar por sua vez o batismo dos prosélitos e a circuncisão enquanto ato de admissão, o batismo da Igreja primi tiva suprime assim toda diferença entre o homem e a mulher. Isto está intimamente ligado ao fato de que o Espírito Santo, pelo qual os que são batizados no nome de Cristo se convertem em membros de seu corpo, já não concede um lugar preeminente ao homem (cf. At 2.17 s.). Por isso Paulo, tendo em vista o batismo, pode afirmar que já não há “nem homem nem mulher” (G13.28). Não se pode portanto deduzir do batismo das mulheres que não existe nenhum vínculo en tre a circuncisão dos meninos e o batismo de crianças, aplicando a circuncisão somente às crianças masculinas. Comprovamos ademais que no Novo Testamento a fé desem penha na circuncisão o mesmo papel que no batismo86. A este res peito as explicações paulinas de Rm 4, são muito instrutivas, pois tratam precisamente da relação entre a circuncisão e a fé. Desde o começo desse capítulo, o que se disse da circuncisão é inseparável do que se disse da fé. Paulo sublinha que Abraão recebeu o selo da circuncisão depois de ter crido, porém, isso não quer dizer que os descendentes do patriarca teriam assim de crer antes de serem circuncidados. O apóstolo sabe perfeitamente que se circuncidava os recém-nascidos e que, por conseguinte, estes não podiam crer senão depois da circuncisão. Porém, não tem intenção de criticar o costu me. Abraão, o pai dos crentes, creu na promessa divina antes da instituição desta CKppayç, a fim de que se saiba que ela é dirigida aos crentes. Como Abraão creu na promessa de Deus, igualmente seus descendentes devem crer no selo que lhe tinha sido dado e que sela a estes também. Todavia, não se requer que sua fé prece 86 Cf. o parág rafo anterior.
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da o momento de sua circuncisão. O “selo” significa para estes exatamente o que a mesma promessa divina significava para Abraão. Quando se pensa na clara relação estabelecida por Pauk) entre a fé e a circuncisão, parece-nos obrigatório considerar a maneira segundo a qual o Novo Testamento compreende a circunci são como um argumento em favor do batismo cristão de crianças. Para Paulo, a fé de Abraão é a fé no milagre da ressurreição que fez nascer a vida da própria morte, pois o patriarca crê na promes sa de um filho que lhe seria dado apesar de sua idade avançada e a de sua mulher (Rm 4.17 s.). Segundo Rm 4, a circuncisão é o selo da fé de Abraão na ressurreição. Apesar disso, se submete a ela os recémnascidos que não poderão crer senão depois de havê-la recebido. Da mesma forma que para o batismo não se pode deduzir que a fé seja aqui compreendida, antes de tudo, como uma resposta, ain da que para os prosélitos adultos - e pela mesma razão para os batizados cristãos que vêm do paganismo - já deva preceder a cir cuncisão, é necessário ainda que a fé suporte, depois da circuncisão, a prova da vida. Deste modo, nos introduzimos nas críticas que o Novo Testamento dirige à circuncisão, ou antes ao abuso dela. É necessário distinguir entre o abuso da circuncisão no seio do judaísmo pré-cristão e a tentativa judaico-cristã de manter ou de impor a circuncisão como um sacramento da Igreja cristã. O que Paulo censura ao judaísmo da circuncisão não concer ne ao fato de que foi praticada nos recém-nascidos. Pois o que Paulo declara é que a vida dos circuncidados desmentia a graça que lhes havia sido dada no momento de sua admissão na aliança de Deus. O que se expressa em Rm 2.25 s., corresponde à sua exposição sobre o batismo de Rm 6.1 s. e de 1 Co 10.1 s., de onde podemos deduzir que, ao escrever estas passagens, pensava também no batis mo cristão, ainda que não fale dele explicitamente. Paulo ensina que a circuncisão não deve ser considerada de maneira mágica e que não tem, por outro íado, direito “de descan sar” sobre a lei (Rm 2.17). Deve-se viver de maneira digna do dom recebido, se se quer que a circuncisão seja útil (• «peÀei* *Rtn 2.25).87 87 João 7.23, também con sidera a c ircuncisão de m an eira positiva. Cf. mais atrás na p. 157, no ta 72.
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Como no batismo cristão, ele distingue aqui o ato do sacramento da resposta que deve segui-lo. Lendo este capítulo, recordar-se-á cons tantemente a maneira como o apóstolo fala do batismo no indicativo e no imperativo em Rm 6.1 s.; assim como o texto de 1 Co 10.1 s., onde se diz que o batismo, se é desmentido pela vida do batizado, não pode impedir que a cólera de Deus caia sobre ele. Quando K. Barth disse que, segundo Rm 4, já desde antes da vinda do messias a sucessão dos que haviam crido na promessa feita a Abraão não era idêntica à dos circuncisos88, era preciso responder-lhe, além do que temos visto até aqui, que uma comprovação análoga poderia ser fei ta a respeito do batismo: a sucessão dos crentes não é idêntica à dos batizados, posto que o que é decisivo é a maneira segundo a qual o batizado responde à graça que lhe tem sido dada. Não é por causa da circuncisão, mas por causa dos circuncisos que “crentes” não eqüivale a “circuncisos”. Abraão, segundo o conselho da predestina ção de Deus, se tornou também pai dos incircuncisos. Por causa da conduta dos circuncisos, a circuncisão - segundo a ótima interpreta ção de Ef 2.11 feita por H. Sahlin89- não é automaticamente o limite que separa os que são dos que não são descendentes de Abraão. Por outro lado, igualmente no seio do judaísmo, se criticava com justiça uma noção de circuncisão que reduzia seus efeitos somente à operação feita pelas mãos do homem. Por isso Jeremias fala de uma “circuncisão do coração” (Jr 9.25 s.). E Paulo se refere a esta crítica quando, em Rm 2.29, opõe a TtepiTojJ* aap* **à 7iepuo(J,* •rriç • «p5*ecç que tem a Deus por autor e à qual o homem deve responder. A passagem de Cl 2.11 pressupõe também esta crítica, pois fala indiretamente de uma circuncisão “feita pelas mãos do homem”. F.- J. Leenhardt90 trata de minimizar aqui a liga ção clara entre a circuncisão e o batismo. Pretende que, segundo este texto, Paulo não veria na circuncisão mais que um ato exterior, feito por homens, enquanto que o batismo seria o despojamento do ser carnal no sentido de uma realidade espiritual. É preciso respon der que Paulo - como é possível que também Pedro (1 Pe 3.21) 88 K. BAR TH, o. c., 31. 89 Veja mais atrás na p. 159, nota 74. 90 F.-J. LEENHARDT, o. c., 67.
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conhece também a existência de uma falsa noção de batismo, da qual pode dizer que só foi realizada por um homem para purificar com água as manchas físicas. O que importa em uma e outra não é o ato exterior. Por isso, não se poderia opor neste sentido o batismo espiritual à circuncisão carnal. Em Cl 2.11, Paulo se refere a uma falsa interpretação da cir cuncisão. Dirige-se àqueles que, depois da instituição do batismo cris tão, querem impor a circuncisão aos cristãos. Deste modo, nos situa mos na crítica do apóstolo quanto a sobrevivência da circuncisão na Igreja cristã. Uma vez que a aliança pactuada com Abraão com vistas à Cristo encontrou sua realização no Calvário, e que se entre nesta aliança pelo batismo, a circuncisão, enquanto ato de admissão, perdeu sua razão de ser. Está realizada na “circuncisão de Cristo” (Cl 2.11). Pelo batismo se dá, no que se sucede, a admissão na alian ça da graça de Deus e, ao mesmo tempo, a purificação do batizado de todo o peso de seu pecado, pela participação na morte e ressur reição de Cristo. Não seria só insensato, mas blasfemo, continuar praticando a circuncisão da antiga aliança. Seria lutar contra o plano de Deus, negar o desenvolvimento da história da salvação, esquecer que Cristo morreu e ressuscitou. A circuncisão, então, deixaria de tender em direção a Cristo. Destacaria-se do plano da salvação de Deus, já não selaria a fé de Abraão em uma posteridade crente, pois, arrancada de tudo o que dava seu sentido, seria rebaixada ao nível de um rito exterior, de um sinal racial. Por isso, Paulo disse também aos judeus “que já não deviam circuncidar seus filhos” (At 21.21). Porque agora que o batismo na morte de Cristo constitui para todos os homens o sinal de sua incorporação à Igreja cristã, a prática da circunci são deixa de ser um ato de Deus. Já não pode ser, com efeito, mais que um ato externo feito pelas mãos do homem (Cl 2.11; Ef 2.11). Paulo pode igualmente compará-la às mutilações que se fazem aos adeptos de certos cultos pagãos (G15.12). Compreende-se deste modo a severidade extraordinária do apóstolo em relação à circuncisão apesar de ter dito, colocando-se no terreno do judaísmo de antes de Jesus Cristo, que ela era útil (• epeÀ£l* ?Rm 2.25). Depois do batismo geral realizado por Cristo na cruz, e agora que depois do pentecostes o batismo é oferecido a todos, os que exigem e praticam, todavia, a circuncisão agem como
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se Cristo tivesse morrido em vão (G1 2.21; 5.2 s.). Pois bem, se a circuncisão é abolida, para se entrar na nova aliança existe o batismo na morte e ressurreição de Cristo, e, por conseguinte, o batismo não é o dom de uma graça radicalmente nova, mas o cumprimento da circuncisão, estes dois selos não podem implicar elementos essencial mente diferentes um do outro. A continuidade de um e de outro, segundo Rm 4, é precisamente a fé. Os descendentes de Abraão, seus descendentes naturais tanto como os prosélitos, são todos chamados, antes ou depois da vinda do messias, à uma mesma fé no poder divino da ressurreição. Devem sua existência de crentes àquela fé de Abraãp no milagre de Deus que pode suscitar-lhe, ainda sem a a* pç, uma posteridade (Rm 4.19; G14.21 s.). Posteridade que nas cerá, se for preciso, “destas pedras” (Mt 3.9; Lc 3.8; recordando uma passagem que tem seu lugar nesse contexto). Temos aqui por que o lugar ocupado pela fé permanece o mesmo. Como Abraão respondeu pela fé à promessa de Deus, igualmente todos os descen dentes devem responder pela fé à graça divina que lhes foi dada sem sua cooperação, soberanamente, no momento em que, seja pela cir cuncisão, seja pelo batismo, Deus lhes colocou no lugar escolhido por Ele para serem o povo de sua aliança. 5. Conclusão
O Novo Testamento atesta indubitavelmente batismos de judeus e de pagãos adultos que se converteram a Cristo. A prática do batismo de crianças, pelo contrário, é atestada, no máximo, indireta mente por alguns indícios. O batismo de crianças é, todavia, perfeita mente compatível com a doutrina do batismo ensinada pela Escritura. 1. Por sua morte e ressurreição, e independentemente dos homens, Cristo realizou para todos um batismo geral. 2. Pelo ato totalmente soberano do batismo eclesiástico, Deus coloca o batizado na comunidade cristã, o agrega ao corpo de Cristo, fazendo-o participar de maneira especial no acontecimento redentor único realizado na cruz. 3. A fé não é decisiva senão enquanto resposta humana àque la graça de Deus. 4. Em sua essência, o batismo é cumprimento da circuncisão judaica e do batismo dos prosélitos.
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Segundo estas conclusões, seria necessário reconhecer tanto o caráter do batismo de adultos como o de crianças. A este resultado global é ao que pensamos chegar quando começamos nosso estudo. Porém, agora devemos propor uma restrição: os batismos de adultos, cujos pais já fossem cristãos crentes91 no momento de seu nasci mento, não são mencionados em nenhum lugar do Novo Testamen to. Diferir o batismo até a idade adulta é, nesse caso, incompatível com a noção neo-testamentária. Para o Novo Testamento, é o nasci mento natural o que conta, e não a decisão pessoal da fé, como no caso dos judeus ou dos pagãos adultos convertidos: nascimento natu ral que constitui o sinal pelo qual Deus mostra à Igreja que quer santificar um novo membro e agregá-lo ao corpo de Cristo. 6. Apêndice: Os indícios de uma antiga fórmula batismal no Novo Testamento
Em At 8.36-37, encontramos o ritual mais antigo do batismo cris tão. Como nas outras passagens neo-testamentárias que referem rela tos do batismo, e por causa da situação em que se encontrava a Igreja no próprio começo de sua existência, trata-se do batismo de um adulto. Advertimos a razão pela qual, nesse caso, a confissão de fé deve prece der o sacramento.92 Não há nenhuma razão para que o versículo 37 passe por uma interpolação tardia, ainda que só o ateste o texto “ociden tal” e que seja desde então que passou ao texto de Antioquia. Para responder à pergunta do eunuco (“... há água. Que me impede de ser batizado?” v. 36) Felipe lhe diz: “Se crês de todo o coração, é lícito (que sejas batizado)”. E o eunuco responde: “Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus”. A brevidade desta última fór mula remete-nos aos tempos mais antigos da Igreja, pois foi pre cisamente com vista às confissões batismais que se iniciou o desen volvimento da confissão de fé cristã até dar-lhe uma formulação trinitária. Era necessário, com efeito, mencionar o Espírito conferido 91 Insistimo s a propó sito na palav ra “c rentes” . Se os pais, ainda que batizados, não crêem, o caso é diferente. O Novo Testamento, então, não justifica somente, mas exige o adiamento do batismo até à idade adulta. 92 Cf. m ais atrás nas pp. 153 s.
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pelo batismo93. Se o versículo 37 for verdadeiramente uma interpreta ção introduzida no texto sob a influência da prática batismal ulterior, não teríamos essa confissão breve que atesta uma procedência muito antiga e que corresponde ao que sabemos dos primeiros batismos, quan do só era invocado o nome de Cristo (At 2.38; 8.16; 10.48; 19.5). At 8.37 nos parece que também contém o ritual mais antigo do batismo neo-testamentário, pois dá a resposta litúrgica • £,£
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III. At 11.17: £•!)• • m x* m *otiv ôcope* r •6co* ev a* toiç • •08* ç • ç • • f i f v , 7iiaxe*oaotv ' i f T v • • ptov Irioouv Xpicrr* v, • y» *x*ç • pr|v ôuvax* %• «Av cmx*r 0eóv;
Pois se Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós outor gou quando cremos no Senhor Jesus, quem era eu para que pudesse impedir a Deus?
IV. Mt 3.13 s.: xóxe napayvexai •• TriCTOu* ç • ji* *c* ç r ofokosaq • x*v Top6* vr|v Ttp* ç x* r Tco* vvr|v xou*
Por esse tempo, dirigiu-se Je sus da Galiléia para o Jordão, a fim de que João o batizasse. Ele, porém, o impedia, di-zendo: eu é que preciso ser bati zado por ti, e tu vens a mim?
V
João ajoelhou-se (diante de Jesus) e disse: te peço Senhor, 7tpoo7tea* v a ’ v - te T e ^ o ^ a * * batiza-me tu mesmo. Porém oou, • • pte, a* *|j.e p* nxiaov - (Jesus) o impediu dizendo, etc. • *5........ kvaev a* xóv • tà. EVANGELHO DOS EBIONITAS (Epifânio 30.13): ’I«>*vvr|ç
O que surpreende nos textos é a regularidade com que se re pete o verbo • toÀ* etv “impedir”, quando se trata do batismo. Esta observação, entretanto, não carece de importância e nos leva a per guntar se a questão de saber se nada se opunha a que tal ou qual fosse batizado não era, desde o século I, delineada correntemente antes da administração do batismo; até o ponto de se converter pou co a pouco em uma pergunta ritual; e se até os relatos de batismo, nos quais o verbo • eo^.* eiv se repete com uma certa regularidade, não fazem uso aqui de um termo quase litúrgico. Assim se explicaria, em primeiro lugar, a pergunta “que impede que eu seja batizado?” no relato de Atos 8.36, onde ao ser dita pelo eunuco parece, pois, surpreendente. Com efeito, seria de se esperar Lc 6.29: • íc* to u * « •p o v tó ç a o u t* -pi* tio v • r "/itco’ v a 11 * - eoX*o* ç (cf. BLASSD E B R U N N E R , Grammatik des neutestamentlichen Griechisch, 51921, e 180, 1). Esta cons trução é, po r outro lado, rara. Qu ando • eo vem seguindo de um infinitivo, é o complemento de pessoa que está no acusativo (cf. BLASS-DEBRUNNER, o. c., 404, 9). O texto II pressupõe, por conseguinte, uma personificação da água (cf. W. G R I M M , L exico n g ra c c o -la tin u m , 255: “aquam se offerentem”). * Palavra, sintagma ou proposição que, em uma oração, completa o significado de um ou de vários componentes da mesma e, inclusive, da oração inteira: complemento direto, indireto e circunstanciai. (N. do T.)
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uma pergunta mais simples e mais direta, como esta: “Eu não posso ser batizado?”96 Já os antigos se surpreenderam pela forma singular desta pergunta. Crisóstomo vê nela uma expressão de modéstia. Calvino, que não aceita esta interpretação, nota que “esta interrogação tem mais veemência do que se o (eunuco) tivesse dito simplesmente a Felipe: Quero que me batizes”, e explica a presença estranha do verbo • eoX* etv pelas “coisas que pudessem dissuadir o (eunuco) de receber o batismo a fim de não expor-se, em absoluto, à malevolência e ao ódio do reino e aos opróbrios de toda sua nação”.97 Esta interpretação ex cessivamente rebuscada não poderia tão pouco nos satisfazer, e nos parece mais verossímil que a pergunta do eunuco reproduza uma fór mula ritual que devia ser corrente na época do autor de Atos. A maneira como o verbo • fOA* civ é introduzido em At 10.47 é, todavia, mais surpreendente, pois aqui é a água quem exerce o papel daquele que seria “impedido” .98 “Pode alguém impedir a água...?” Ainda que uma personificação da água do Jordão apareça mais tarde na arte cristã da antigüidade, em representações do batis mo99, é preciso reconhecer que em nosso texto é inesperada e exige uma explicação. Segundo a situação descrita no contexto, o batismo na água se impunha a si mesmo, pois os candidatos haviam já rece bido o batismo do Espírito, e deste modo um efeito que sucedia nor malmente ao batismo na água estava, neste caso particular, produzido já por antecipação100. A água é considerada aqui como representan do ela mesma o batismo na água aos que já receberam o Espírito. Pedro declara que não se pode recusar esta petição feita pela pró pria água. Esta personificação extraordinária da água se explica pos sivelmente da melhor maneira pela influência de um antigo uso segundo o qual o candidato é representado por um terceiro ao bati% Porém, é impo ssível traduzir assim o texto grego !••• w ^ e i com o o fez o comentarista do livro de Atos, H. W. BEYER, D as N eue Testament D euts ch, t. 2, 1932, 57: “Kann ich nicht getauft werden?” 97 CALVINO, Commentaire sur les Actes, ad loc. 98 Trata-se d e um a personificação da água; cf. nota 95. 99 CAB ROL-LECLERC Q, D icti onnair e d 'a rch éolog ie chrétienne e t de litu rg ie , artigo b a p tê m e. 100 Vemos aq ui um a tentativa intere ssan te em su blinhar a ne ces sidad e do batism o nas águas e sua ligação com o batismo do Espírito, em um momento que os dois ameaçam constituírem-se em dois atos independentes: imersão e imposição das mãos. Cf. mais atrás, página 119 s.
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zante que, segundo as circunstâncias, aceita ou recusa o pedido feito em favor do candidato. Declara que nada se opõe - o* 8*v • ci - ou, antes, que haja algum impedimento.101 No texto III (At 11.17), a situação é idêntica. Somente que já não é a água, mas o próprio Deus quem, pelo fato de já haver conce dido o Espírito aos candidatos, é considerado aquele apresenta a estes para o batismo na água. A declaração de Pedro tem aqui mais força que no parágrafo precedente: o apóstolo não pode recusar uma petição feita por Deus em favor dos pagãos. Ainda que se encontre também em outra parte, o fato de que o verbo • eoÀ* etv esteja em pregado aqui sem complemento indireto, quase como um termo téc nico, é algo que devemos levar em consideração neste caso parti cular. O texto D julgou necessário ajuntar depois das palavras “quem era eu para poder impedir a Deus” um infinitivo: “de dar o Espírito Santo a quem tem crido nele (xou* v* 'Sou* v a i a* tot* ç rcveu* |tia •yiov t u c t i e *c a a iv •rfaux* • ) ’*. O autor desta variante se equi vocou evidentemente sobre o sentido da frase ao traduzi-la desta maneira. Pois segundo o contexto, e sobretudo segundo At 10.47, seria preciso subentender, depois de “impedir”, precisamente outra coisa, a saber: “de conceder-lhes, por isso mesmo, a água”. A cons trução que o texto D apresenta não é certamente primitiva, ainda que o diga Preuschen.102 Todavia é preciso reconhecer que o emprego do verbo • eoÀ• eiv, sem indicação de complemento indireto, apresenta aqui quiçá uma certa anomalia: com efeito, a ação que não poderia ser impedi da (o batismo na água), não é idêntica à que é mencionada anterior mente (o batismo do Espírito).103 Pelo contrário, esta omissão, um pouco surpreendente da construção do infinitivo depois de • eoPi*eiv, 101 E. PR E U SC H E N , D ie A p o ste lg e sc h ic h te , em H. LIETZMANN (ed.), H an dbu ch zum N euen Testam ent, 1912, 69, propõe, sem nenhuma razão objetiva, considerar T# • • êo>p com o um a interp ola çã o, e co ntinua; “D er G end ank e ist a u f jed en Fali schief, da nicht das Wasser, sondem der Apostei verhindert werden soll”. Preuschen esqueceu que se trata da mesma situação de Atos 11.17. O apóstolo não é considerado como aquele que deve ser impedido, mas como o que, em princípio, poderia impedir o batismo na água opondo seu veto. 102 E. PR EU SC H EN , o. c., a d loc. 103 Em outro s lugares tais com o Lc 9.49; Lc 11.52; tam bém Mc 10.14 do qual falarem os, desta página e seguintes, a situação é diferente, o infinito subentendido poderia ser tirado diretamente do que precede.
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encontra uma explicação satisfatória, se considerarmos este verbo como uma espécie de termo técnico tomado da fórmula batismal: “que impede que fulano de tal seja batizado?” ou de uma fórmula análoga pela qual Mt 3.14 e o texto do evangelho dos ebionitas estariam influenciados. Da confrontação dos cinco textos citados, cremos poder che gar a esta conclusão: desde o século I, todas as vezes que um con vertido foi apresentado ao batismo, deveria haver informações para a certificação de que não havia algum impedimento, isto é, se o can didato apresentava as condições requeridas. A constância com que os primeiros relatos cristãos insistiam no arrependimento e a fé dos que receberam o batismo não permite pensar que era uma das condições essenciais e geralmente exigidas quando judeus e pagãos se convertiam. Pois o arrependimento e a fé não eram, sem dúvida, em todas as partes as únicas exigências importantes para a administração do batismo; houve outras que variavam segundo os ambientes. Assim, parece ser que, nas comunidades judaico-cristãs, existia o contente de informar-se previamente se o candidato era judeu, e de reclamar a circuncisão como condição obrigatória; por isso precisamente Pedro reage contra este contente, em At 10 e 11. Contrariamente à prática judaico-cristã, o apóstolo responde negativamente à pergunta de saber se a incircuncisão constituía um impedimento para o batismo. De todas as maneiras, quaisquer que tenham sido as condi ções impostas, uma vez reconhecido que o candidato as reunia, se pronunciava sem dúvida, antes do ato do batismo, o nihil obstat, odô* v • WÂ* ct104em resposta à pergunta: x*~ eo?o)* ei„ “que há que impeça?” (At 8.36). Outra observação se desprende todavia de nossos textos: ape sar da regularidade com que esta pergunta parece ter sido feita, não se assinalou todavia, de maneira precisa, por quem devia sê-lo. Se nos fixarmos nas passagens citadas anteriormente, comprovare mos que seguindo os textos I (At 8.36) e IV (Mt 3.14) é o que quer ser batizado que a faz ou se supõe que deve fazê-la. Segundo os 104 Em g rego profano , a expressã o O- 6* v • e A , ei tem efetivam ente esse sentido. Veja PLATÃO, Gorgias 456 D e outros.
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textos II (At 10.47) e III (At 11.17), pelo contrário, seria feita por um terceiro que desempenharia de alguma maneira as funções do padri nho (a água em II e Deus em III). E quanto a quem deve dar a resposta, positiva ou negativa, os cinco textos parecem designar ao que preside a cerimônia do batis mo, ainda que os textos II e III parecem pressupor uma consulta prévia dos assistentes no caso particular dos judeus-cristãos. Podemos juntar aos cinco textos tomados como ponto de parti da, outra passagem tirada dos Evangelhos Sinópticos: Mc 10.13-16 com os paralelos. Ainda que o relato, que contém também o verbo • eoÀ* ffiv “impedir”, não fale do batismo mas da benção das crianças pela imposição das mãos, cremos que deva ser mencionado no pre sente trabalho. Com efeito, Tertuliano já colocou a discussão do batismo das crianças em relação com esta perícope na qual Jesus pede que não se impeça às crianças de chegarem até ele, posto que o reino de Deus lhes pertence. A maneira como Tertuliano fala mostra, por ou tro lado, que este relato deve ter sido invocado, anteriormente a ele, pelos que praticavam o batismo de crianças. Tertuliano aceita este costume com reservas. Também reconhece o relato de Mc 10.13-16 como uma norma que permite resolver esta questão, com a condi ção, todavia, de que seja bem interpretada. “É certo, disse105, que nosso Senhor disse: Deixai vir a mim! Que venham, pois, porém quan do tiverem mais idade: que venham, porém quando estudarem e lhes for ensinado porque vêm!” Esta interpretação pode, com rigor, estar justificada quanto a Mc 10.13 e Mt 19.13 s., pois o termo 7taiô’fx, que diz respeito às crianças, não está reservado aos recém-nasci dos; porém está excluída pelo texto paralelo de Lucas que diz (3p* «pr| “crianças de peito”.106 Seja o que for, Tertuliano não acreditava poder negar a relação entre nosso relato e o batismo, o qual simplifi cou por causa da tarefa a que se propôs de reagir contra o uso do batismo de crianças demasiadamente novas. Isso prova que esta relação era universalmente admitida desde os primeiros tempos 105 TER TU LIA N O , D o batis m o 18. 106 Cf. J. JERE M IA S, H at d ie âlte ste C hris te nheit die K in derta ufe g e ü b tl, 27, e M ark 10.13-16 Parr., und die Ünbung der kindertaufe in der Kirch: ZNTW (1940) 245.
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do cristianismo. Mais
tarde, Calvino chamará nosso relato, em seu comentário sobre a harmonia evangélica, de um “pequeno escudo contra os anabatistas”, e falará dele como se fosse um relato de batismo.107 Ainda que estes textos sinópticos não dizem nada acerca do batismo em si mesmo, nos parece todavia que nesta aproximação, estabelecida sob outra forma também por um crítico moderno como H. Windisch108, existe uma parte de verdade. Não pretendemos cer tamente que a questão do batismo de crianças tenha sido já prevista por Jesus. Tão pouco pretendemos que a Igreja primitiva tenha inventado o episódio de Mc 10.13-16 para justificar o batismo de crianças. Porém, cremos que a questão desta prática está delineada na época em que a tradição evangélica foi fixada, e admitimos com G. Wohlenberg109 e J. Jeremias que os que transmitiram este relato da benção das crianças quiseram recordar com isto, aos cristãos de seu tempo, um episódio da vida de Jesus em que puderam inspirar-se para resolver o problema do batismo de crianças. Se é assim, com preendemos perfeitamente que, sem referir-se a um batismo, este relato foi fixado de maneira que os costumes batismais do século I se refletissem nele. Depois destas observações, podemos citar os versículos deci sivos do texto em questão, assinalando-lhes no presente trabalho unicamente o papel de confirmar a hipótese que pensamos haver suficientemente fundado independentemente destes: Mc 10.13-14: • a ,, npoo, epepov a* t • 7tai6*€C *va a**cco*v •tpr|Xoa. o** ô** ^aGriia** •rceffiriaav a* xoi* ç ‘ v §• “ • Mriaou* ç • f a v • xr)OEV• a , £*»7t£v a* «cot* % • ipexe x* • 7tcu5*« •pxeaGai Ttpóç |ie, |i* •• c o n s t e a* v *xco*v y p xoto* tcov *fTX*v • {JacnA^axov* Oeouv
Então lhe trouxeram algumas crianças para que as tocasse, mas os discípulos os repreendiam (aos que as levavam). Jesus, porém, vendo isto, indignou-se e disselhes: Deixai vir a mim os pequeninos, não os impeçais, pois o reino de Deus pertence precisamente a estes (postulantes).
107 CA LV IN O , Commentaires , ad loc. Cf. outros textos no artigo de J.-D. BENOIT, Calvin et le baptême des enfants: RHPR (1937) 463. íos h WIND ISCH , Z im Problem der Kin dertaufe im Urchriostentuni : ZNTW (1929) 119 s. 109 G. W OH LE NB ER G, D as Evangelium des M arkus, em Th. ZAHN (ed.), Kommentar zu m N e u en T estam en t , 1910, 272.
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A situação é exatamente a mesma que nos relatos do batismo, sobretudo At 10.47 e 11, 17, com uma só diferença de que, em lugar do batismo, se encontra a benção por imposição das mãos. Estão, com efeito, 1) os que devem ser abençoados; 2) os que fazem a petição em seu favor; 3) os que querem recusar a petição; 4) o que administra a benção e que decidindo pela admissão, em última ins tância, aceita a demanda; 5) e há a fórmula i i » •• foA.* cxe a* v *“não os impeçais”. Remetendo ao estudo exegético que precede pensamos, pois, que os textos citados revelam a existência de uma das mais anti gas fórmulas batismais. Talvez duas delas contenham, ademais, os primeiros vestígios de uma espécie de apadrinhamento. Estes elementos têm provavelmente sua origem no judeu-cristianismo que estava preocupado em não admitir ao batismo os pagãos sem a circuncisão. Ainda que a situação seja aqui completamente diferente, é interessante recordar as discussões dos rabinos concer-nentes ao batismo dos prosélitos e à admissão a este rito que não era concedida senão depois da realização da circuncisão. Segundo a escola de Hillel, um intervalo de sete dias havia de separar os dois ritos. A presença de três testemunhas na cerimô nia do batismo era exigida110. Os relatos do livro de Atos nos coloca na presença de um estágio de evolução segundo o qual o arrependimento e a fé - no sentido que reconhecemos no parágrafo 3 deste estudo - são as únicas condições de admissão ao batismo. Mais tarde se chegará à instituição do catecuminato cristão. A Igreja estará obrigada a examinar antes de tudo a sinceridade dos candidatos, a pureza de suas intenções, e a recusar os que se pro põem continuar exercendo uma profissão incompatível com o estado de cristão batizado.111Porém, sobretudo estará obrigada a exigir uma definição mais precisa da fé em Cristo. A fórmula breve bastará. A Igreja reclamará, da parte do candidato ao batismo, a assimilação, controlada por testemunhas, de um ensino, e essa será a condição 110 Cf. os textos reunidos por STR AC K-B ILLE RB EC K, o. c., t. I, 102-112. Ver TERTULIANO, D o batism o 18: PL, t. I, col. 1221, e AGUSTIN, D e fi d e e t operibus I, PL, t. 40, col. 197.
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extema cuja realização terá, por conseqüência, que ninguém “impe dirá” que seja batizado. Em lugar da simples pergunta ritual, haverá uma instituição com uma organização na que os menores detalhes estarão regulamentados112.
112 Cf. sob re tudo as Categuesis de CIRILO: PG, t. 33, col. 348 s. Provavelmente há no Procatequesis 3.5 ura resíduo de nossa fórmula. Cirilo sublinha a importância da disposição com a qual o novo convertido entra no catecuminato. Parafraseando a parábola de M t 22.11 faz diz er ao noiv o: “Amig o, com o entr aste aqui? O porte iro não te impediu , • •Oupwp- ç o* • ••• • kvcrev?”
IMORTALIDADE DA ALMA OU RESSURREIÇÃO DOS MORTOS? Coloquemos a um cristão, protestante ou católico, intelectual ou não, a seguinte questão: o que ensina o Novo Testamento sobre o futuro individual do homem depois da morte? Salvo raríssimas exce ções, obteremos sempre a mesma resposta: a imortalidade da alma. Todavia, esta opinião, por muito generalizada que seja, significa um dos mais perigosos mal-entendidos do cristianismo. Seria inútil que rer silenciar este fato e tentar tergiversar por meio de interpretações arbitrárias que violentam até mesmo o próprio texto; deveríamos, antes, falar com clareza. A concepção de morte e ressurreição, tal como vai ser exposta nestas páginas1, está enraizada na história da salvação. Sendo completamente determinada por esta, é incompatí vel com a crença grega na imortalidade da alma. Dita concepção talvez seja chocante para o pensamento moderno e, todavia, se nos apresenta como um dos elementos constitutivos da pregação dos primeiros cristãos; portanto, isto não poderia nos fazer silenciar ou mudar para uma interpretação modernizante sem fazer com que o Novo Testamento fosse privado de sua substância. Perguntemo-nos agora: a fé dos primeiros cristãos na ressur reição seria compatível com a concepção da imortalidade da alma? Não ensina o Novo Testamento, sobretudo o Evangelho de João, que já possuímos a vida eterna? E, não é a morte, certamente, no Novo 1Ver também O. CULLMANN, La fo i à la ré su rre iction et V esperance de la réssurection dans le Noveau Testament : ÉtudThéoloRel (1943) 3 s.; Cristo e el Tempo. Esteia, Barcelona 1967, 205 s.; Ph. MENOUD, Le sort des tr ésp assés, 1945; R. MEHL, D er letzte Feind , 1954.
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Testamento, o “último inimigo”? Não está concebida de uma manei ra diametralmente oposta ao pensamento grego que vê nela um ami go? Não escreve o apóstolo Paulo: “Onde está, morte, o teu agui lhão?” Este mal-entendido, de que o Novo Testamento ensina a imor talidade da alma, se vê favorecido pelo fato de que os primeiros discípulos possuem a convicção de que depois da páscoa, com a ressurreição corporal de Cristo, a morte perdeu todo seu terror2; desde esse momento, o Espírito Santo já fez nascer a vida da ressur reição àquele que crê. Porém, com esta afirmação, conforme o Novo Testamento, é preciso sublinhar as palavras “depois da páscoa”, e isto demonstra todo o abismo que separa a concepção primeva do cristianismo da concepção grega. Todo o pensamento da Igreja pri mitiva está orientado em direção à história da salvação. Tudo que se afirma sobre a morte e a vida eterna depende inteiramente da fé num fato real que se desenvolveu no tempo; aqui reside a diferença radical em relação ao pensamento grego. Como temos querido demonstrar em nosso livro Cristo e o tempo, esta concepção per tence à própria substância da fé dos primeiros cristãos, a uma essên cia que não se pode silenciar nem trocar por uma interpretação moder-nizante.3 No Novo Testamento, a morte e a vida eterna estão ligadas à história de Cristo. Está claro que para os primeiros cristãos a alma não é imortal em si, mas que chegou a sê-lo unicamente pela ressur reição de Jesus Cristo, “primogênito dentre os mortos”, e pela fé nele. Está claro também que a morte em si não é “o amigo”; somen te pela vitória que Jesus obteve sobre ela, com Sua morte e ressur reição corporal, seu “aguilhão” foi detido, seu poder vencido. E por fim, é óbvio que a ressurreição da alma que já aconteceu não experi mentou o estado de cumprimento: é preciso esperar o tempo em que nosso corpo ressuscite, e isso acontecerá no final dos tempos. 2 Jam ais a Igreja primitiva p ôde dizer que era natura l morrer. Esta expressão que K AR L BARTH empregou em uma exposição impressionante sobre a concepção negativa da morte como “último inimigo” (Die Kirchliche Dogmatik III, 2, 1948, 776 s.) não nos parece ter fundam ento no N ovo Testamento; ver, por exem plo, 1 Co 11.30. 3 E sta dem onstração foi a m eta real que persegu imo s em nosso livro; nossa intenção não foi a que freqüentemente se nos têm imputado sem razão, isto é, de ter querido tratar do problema “tempo e eternidade”.
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É falso observar já no Evangelho de João uma tendência em direção à doutrina grega da imortalidade da alma, pois ele também liga a vida eterna à história de Cristo.4 E certo que os acentos intrín secos desta história de Cristo estão diversamente repartidos pelos livros neo-testamentários. De todas as formas, o fundamento doutri nai é comum: a história da salvação.5Não há dúvida que devemos reconhecer uma influência grega desde o começo do cristianismo nascente6; porém, tão pouco há dúvida que, durante muito tempo, as noções gregas estão submetidas a esta visão de conjunto da história da salvação; não pode, portanto, ser uma questão de verdadeira helenização7, que só começará mais tarde. A concepção bíblica da morte está fundamentada sobre uma história da salvação, e deve diferir, por conseguinte, de maneira total da concepção grega; nada o demonstra melhor do que confrontar a morte de Sócrates com a de Jesus, confrontação que, desde a anti güidade - com distinta intenção - foi compreendida pelos adversá rios do cristianismo.8 1. O último inimigo: a morte. Sócrates e Jesus
Na impressionante descrição da morte de Sócrates que Platão dá em seu Fedom, podemos ler o que de mais sublime foi escrito sobre a imortalidade da alma. A reserva, a prudência científica, o reconhecimento deliberado em toda demonstração matemática dão a sua argumentação um valor que jamais foi superado. Conhecemos 4 N este Evang elho não estamos toda via, falando nos termo s de R. BULTM ANN , no caminho da “desmitologização”, pois está orientado no sentido da história da salvação. 5 Ver BO REICKE, Einheitlichekeit oder verschiedene Lehrbegriffe in der neutestamentlichen Theologie: TheolZ 9 (1953) 40-1 s. 6 Sobretudo desde que os textos de Qu m ran já p rovaram que o ramo do judaísm o ao qual o cristianismo se aproxima mais está afetado pelo helenismo. Cf. O. CULLMANN, The Significance o f the Q umrân Text fo r R esearch into the B eginnings o f Christianity: JournBibliLit 74 (1955) 213 s.; cf. igualmente R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, 1953, 361, n. 1. 7 Seria preciso falarmos antes de uma “historizaç ão” cristã (no sentido de história da salvação) de noções gregas. Somente neste sentido, e não no sentido de R. BULT MANN, os mitos do Novo Testamento já são “desmitologizados” pelos próprios autores cristãos. 8 Cf. os textos em E. BENZ, D er gekreuzig te Gerechte bei Pla to , im Neuen Testament und in der alten Kirch, 1950.
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as razões que o filósofo grego alega em favor da imortalidade da alma. Nosso corpo é um invólucro exterior que, enquanto vivemos, impede a alma de mover-se livremente e viver conforme sua própria natureza eterna. Impõe-lhe uma lei que não é válida para ela: a alma está encerrada no corpo como numa camisa de força, em uma pri são. A morte é a grande libertadora. Ela rompe as cadeias fazendo a alma sair da prisão do corpo e a introduz na pátria eterna. Corpo e alma são radicalmente opostos entre si e pertencem a dois mundos distintos; a destruição do corpo não poderá coincidir com a destrui ção da alma, da mesma maneira que uma obra de arte não será destruída ainda que o seja o instrumento executor dela. Ainda que as provas alegadas em favor da imortalidade da alma não tenham, para o próprio Sócrates, valor de prova matemática, se obtém delas o mais alto grau de probabilidade; tomam a imortalidade tão provável que constitui para o homem, empregando o termo que advertimos no Fedom, um “belo risco”. Esta doutrina não foi somente ensinada por Sócrates, quando no dia de sua morte examinava com seus discípulos os argumentos filosóficos em favor da imortalidade da alma. Em poucos instantes ele colocaria em prática o ensino compartilhado. Demonstra com seu exemplo como, ocupando-nos das verdades eternas da filosofia, trabalhamos nesta vida pela libertação da nossa alma. Pois a filoso fia nos permite sempre penetrar neste mundo eterno das idéias à qual pertence a alma, e livrá-la assim da prisão do corpo. A morte não fará mais que terminar esta libertação. Também Platão nos mostra como Sócrates, com absoluta serenidade, vai ao encontro da morte, de uma bela morte. O horror está completamente ausente. Sócrates não sabia renunciar à morte posto que ela nos livra do corpo. Todo aquele que teme à morte prova, segundo ele, que ama seu corpo e que é escravo deste mundo. A morte é a grande amiga da alma. Este gênio grego, que personifica o que há de mais nobre, morre em uma perfeita harmonia entre sua doutrina e sua vida. Vejamos agora de que forma morre Jesus. No Getsêmani, sabe que a morte o espera - também Sócrates o sabe no dia da discussão com seus discípulos. Os Evangelhos Sinópticos concordam entre si, grosso modo, no relato de Getsêmani. Jesus começa a “sentir tre mor e angústia” escreve Marcos (14.34). “Minha alma está triste
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até à morte”, disse aos discípulos.9 Jesus é tão completamente homem que participa do medo natural que a morte nos inspira: deve, como Filho do Homem e servo de Deus, prová-la mais terrivelmente que os demais homens.10Tem medo, não como um covarde pode ter dos homens que o matam nem às dores que precedem a morte, mas teme à morte por ser o grande poder do mal. A morte, para ele, não é algo divino; é algo horrível. Não quer estar só em tal momento. Sabe que seu Pai lhe tem sempre sustentado. Apela a Ele no mo mento decisivo como o fez ao longo de Sua vida. Apela a Ele com a angústia humana que a morte lhe inspira, a grande inimiga. É inútil querer eliminar do relato evangélico, por qualquer classe de explica ções artificiais, este medo de Jesus. Os inimigos do cristianismo, que já antigamente colocavam de relevo o contraste entre a morte de Sócrates e a de Jesus, atinaram aqui de maneira mais certeira do que muitos comentadores cristãos. Jesus tremia realmente diante do gran de inimigo de Deus. Não há nada da serenidade de Sócrates que sai ao encontro da morte. Jesus implora a Deus que lhe evite ter que passar pela morte. Sabe de antemão que a tarefa que lhe foi confe rida é sofrer a morte e já havia dito antes: “Tenho que receber um batismo, e como me sinto angustiado até que se cumpra!” (Lc 12.50). Porém, agora que está diante da morte, roga ao Pai conhecendo Sua onipotência: “tudo te é possível; afasta de mim este cálice” (Mc 14.36). E quando acrescenta: “Porém não se faça o que eu quero, mas o que 9 Apesar do texto paralelo de Jn 4.9, sobre o qual chamara a atenção E. KLOSTERMANN, D as M arkusevengeliu m , 3J936, ad loc., e E. LOHMEYR, D as Evangelium des Markus, 1937, ad loc., a explicação: “estou tão triste que desejaria antes mor rer”, nos parece de fato improvável, nesta situação, onde Jesus s a b e que morrerá (instituição da ceia); a interpretação de J. WEISS, D as M a rku s-ev a n g eliu m , 31917, ad. loc.\ “minha tristeza é tão grande que me vejo sob seus pés”, nos parece que se impõe, sobretudo à luz de Mc 15.34. A frase (Lc 12.50): “tenho que receber um batism o (= a morte) e como me sinto angustiado até que se cum pra!”, su gere a mesm a explicação sobre a nossa passagem. w Os antigos comentadores e alguns mais recentes como J. WELLHAUSEN, D as evan gelium Marci, 21909, ad loc., J. SCHN1EWIND em N. T. D euts ch, 1934, ad loc., E. LOHMEYR, D as Evangelium des M ark us, 1937, ad loc., buscam, em vão, escapar a esta conseqüência que está sugerida pelas fortes expressões gregas como “tremer” e “estar em angústia”; dão explicações que não estão de acordo com a situação onde Jesus já sabe que deve sofrer pelos pecados de Seu povo (santa ceia). Em Lc 12.50, é impossível eliminar esta angústia diante da morte e tendo em conta a frase de Jesus sobre a cruz (Mc 15.34), não se pode explicar Getsêmani de outra forma que pela angústia diante da morte, a grande inimiga de Deus.
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tu queres”, parece significar que em última análise considera a mor te, à semelhança de Sócrates, como amiga libertadora. Porém, quer dizer simplesmente: se esta coisa horrível, a morte, deve chegar a mim, segundo Tua vontade, me submeto a tal coisa horrível. Jesus sabe que a morte em si mesma, como inimiga de Deus, significa extremo distanciamento, solidão radical. Por isto roga a Deus. Na presença da grande inimiga, não quer estar só. Pois de certo modo pertence à própria essência da morte o separar-se de Deus. Enquanto está em poder da morte não está nas mãos de Deus. Jesus queria estar unido com Deus tão estreitamente como o esteve durante sua vida terrenal. Todavia, neste momento, não busca sim plesmente a companhia de Deus, mas também a de seus discípulos. Por isso, interrompe Sua prece e reúne os discípulos mais íntimos a que tratem de lutar contra o sono com a finalidade de vigiar até quando vierem prender o mestre. Não conseguem e Jesus deve des pertar-lhes de novo. Por que Jesus quer que eles vigiem? Ele não deseja estar só. Não quer estar abandonado, quando a morte se lan çar sobre Ele, nem sequer pelos Seus discípulos ainda que conheça sua debilidade humana. Quer estar rodeado de vida, da vida que vibra nos discípulos: “Não podeis velar uma hora comigo?” Pode-se imaginar contraste maior que o que existe entre as mortes de Sócrates e a de Jesus? Sócrates, rodeado por seus discí pulos no dia de sua morte, como Jesus, discute com estes sobre a imortalidade com uma serenidade sublime; Jesus, que tremia já há horas antes da morte, roga aos discípulos que não o deixem só. A Epístola aos Hebreus que, mais que qualquer outro livro do Novo Testamento, assinala a plena divindade (1.10), ainda que também a plena humanidade de Jesus, descreve a angústia de Jesus diante da morte com elementos todavia mais fortes que os três relatos sinópticos. Diz-nos que Jesus “apresenta com muito clamor e lágrimas suas orações e súplicas àquele que podia livrá-lo” (5.7).11 Logo, segundo esta Epístola, Jesus clamou e chorou diante da morte. Temos, por um lado, Sócrates que, com calma e serenidade, fala da imorta lidade da alma; por outro, Jesus, que clama e chora. 11 A relação com Getsêmani parece -m e fora de toda dúvida; cf. também J. HÉRING, L ”E p it re aux H éb reu x , 1954, ad loc.
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Vejamos a cena da própria morte. Com calma soberana, Sócrates bebe a cícuta; Jesus, pelo contrário, grita com as palavras do salmo: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonas-te?”, e morre proferindo outro grito inarticulado (Mc 15.37). Não se trata de nenhuma morte amiga do homem, mas da morte em todo o seu hor ror. É verdadeiramente o último inimigo de Deus. Assim é como Paulo designa a morte: o último inimigo (1 Co 15.26). Aqui aparece o abismo entre o pensamento grego e a fé judaica e cristã.12Usando outras expressões, o autor do Apocalipse considera igualmente a morte como o último inimigo, quando descreve como, no fim, ela é lançada no lago de fogo (20.14). Sendo o inimigo de Deus, ela nos separa daquele que é vida e criador de toda vida. Jesus, que está completamente unido a Deus, mais unido que nenhum outro homem havia jamais estado, deve sofrer a morte de uma maneira mais horrorosa que ninguém. Jesus deve provar este isolamento, esta separação - a única digna de ser realmente temida - de uma maneira infinitamente mais intensa que qualquer um, por estar tão unido a Deus. Por isso grita a Deus com o salmista: “Por que me abandonas-te?” Nesse momento Ele está realmente nas mãos da grande inimiga de Deus: a morte. É preciso estarmos agradecidos ao evangelista por não haver atenuado a des crição em nada. Temos confrontado a morte de Sócrates com a de Jesus. Pois nada nos mostra melhor a diferença radical entre a doutrina grega da imortalidade da alma e a fé cristã na ressurreição. Já que Jesus pas sou pela morte em todo seu horror, não somente em Seu corpo como também em Sua alma (Deus meu, Deus meu, por que me desamparas-te?), Ele pode e deve ser para o cristianismo que vê nele o redentor, aquele que triunfa sobre a morte com a Sua própria morte. Ali onde a morte é concebida como o inimigo de Deus, não pode haver “imortalidade” sem uma obra ôntica de Cristo, sem uma histó ria da salvação onde a vitória sobre a morte é o centro e o fim. Jesus 12 J. LEIP OL DT , D e r Tod bei Griech en und Juden, 1942, delineou o problema a partir de uma perspectiva falsa. A concepção grega acerca da morte é, com razão, nitida mente distinta da concepção judaica. Porém, a preocupação de Leipoldt em identi ficar constantemente a concepção cristã com a grega, e de separá-la da judaica, explica-se quiçá somente quando se leva em conta o ano da aparição deste livro e a série na qual foi publicado ( Germ anentum, C hristentum u nd Jude ntum ).
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não pode conseguir esta vitória se continuar vivo em Sua alma imortal e, no fundo, sem morrer. Não pode vencer a morte senão morrendo realmente, entregando-se ao seu domínio, o domínio do nada, da sepa ração de Deus. Quando se quer vencer a alguém se está obrigado a submeter-se ao seu domínio. Quem quer que deseje vencer a própria morte deve morrer; matizando ainda mais, deve deixar de viver, deve perder o bem mais precioso que Deus lhe outorgou: a própria vida. Por isto Marcos, ainda que apresente Jesus como o Filho de Deus, não atenua em nada o aspecto horrível e inteiramente humano de Sua morte. Se a vida deve emanar desta morte, é necessário um novo ato criador de Deus que atraia à vida não somente uma parte do homem, mas o homem inteiro, tudo o que Deus criou, tudo o que a morte destruiu. Para Sócrates e Platão não há necessidade de um ato criador, já que, o corpo é mal e não deve continuar vivendo. A parte que realmente deve seguir vivendo, a alma, não morre jamais. Se quisermos compreender a fé cristã na ressurreição deve mos prescindir completamente da idéia grega segundo a qual a matéria o corpo são maus e deveriam ser destruídos, de maneira que a morte do corpo não significaria a destruição da verdadeira vida. Para o pensamento cristão e judeu, a morte do corpo, significa tam bém a destruição da vida criada por Deus; não há diferença. A vida de nosso corpo é vida verdadeira. A morte é a destruição de toda vida criada por Deus. Por esta razão, é a morte e não o corpo que deve ser vencida pela ressurreição. Somente tendo como os primeiros cristãos horror à morte, tomando-a em toda sua seriedade, é que poderemos compreender a alegria da comunidade primitiva no dia da páscoa. Então, é possível compreender que toda a vida e todo o pensamento do Novo Testa mento estejam dominados pela fé na ressurreição. A fé na imortali dade da alma não é uma fé num acontecimento que revolucione tudo. A imortalidade, na realidade, não é mais que uma afirmação negati va: a alma não morre (continua vivendo). A ressurreição é uma afir mação positiva : o homem inteiro, que está realmente morto, é cha mado à vida por um novo ato criador de Deus. Acontece algo inaudito: um milagre criador. Antes também havia sucedido algo estranho: uma vida criada por Deus havia sido destruída.
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A morte, para a Bíblia, não é algo belo, sobretudo a morte de Jesus. A morte é tal como se a representa: um esqueleto; ela espalha por toda terra um cheiro de decomposição. A morte de Jesus é tão tenebrosa como a pintou Grünewald; porém, precisamente por esta razão, este pintor representou ao lado, de uma maneira incomparável e única, a grande vitória, a ressurreição de Cristo, revestido de um novo corpo, do corpo de ressurreição. Quem pintasse uma morte doce, não saberia pintar a ressurreição. Quem não provou o horror da morte, não pode cantar com Paulo o hino da vitória: “A morte foi destruída, vitória! Onde está, morte, a tua vitória? Onde está, morte, o teu aguilhão?” (1 Co 15.54 s.). 2. O salário do pecado: a morte. Corpo e alma. Carne e espírito.
O contraste entre a imortalidade grega da alma e a fé cristã se vislumbra todavia de uma maneira mais profunda quando considera mos que a fé na ressurreição pressupõe o nexo que o judaísmo esta belece entre a morte e o pecado. Por isto, a necessidade de um drama salvador se mostra mais clara. A morte não é simplesmente algo natural, querido por Deus, como concebia o pensamento grego, mas é algo anormal e contrário à natureza, oposto à intenção divi na13. O relato de Gênesis nos ensina que o fim do mundo não tem começado a não ser pelo pecado humano. A morte é uma maldição e a criação inteira está constrangida por esta maldição. O pecado do homem tornou necessário toda esta série de acontecimentos relata dos pela Bíblia e que nós chamamos de história da salvação. A morte só será vencida pela expiação do pecado, já que ela é o “salário do pecado”. Não é somente o relato de Gênesis que faz alusão a isto; tal é a concepção de Paulo (Rm 6.23) e de todo cristianismo primiti vo. Pelo fato do pecado ser contrário a Deus, sua conseqüência, a morte, é oposta à Deus. É certo que Deus pode se servir da morte 13 Veremos que, à luz da vitória ob tida por Cristo, a morte perde u todo seu horror. Porém, seguindo o Novo Testamento, não nos atreveríamos a dizer com K. BARTH que é “natural” morrer (Die Kirchiiche Dogmatik III, 2, 1948, 777 s., onde nos rem ete a Ap 21 .8, à distinção de um a “segu nda mo rte”); ver com efe ito 1 Co 11.30.
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(1 Co 15.36; Jo 12.24), como pode se servir de Satanás. Porém, não é por isso que a morte é menos inimiga de Deus, já que Deus é vida, criador da vida. Não é da vontade de Deus que haja decrepitude e corrupção, morte e enfermidade; a enfermidade não é mais que um caso particular da morte que atua enquanto vivemos. Tudo o que é contrário à vida, morte e enfermidade, segundo a concepção judaica e cristã, não provém senão do pecado humano. Temos aqui porque toda ferida de enfermidade que Jesus cura não é somente contenção da morte, mas irrupção da vida no domino do pecado; por isso Jesus disse aos curados: teus pecados estão perdo ados. Não é que a cada pecado individual corresponda uma enfermi dade individual, mas que a existência da morte e da enfermidade como tais são conseqüência do estado dê pecado no qual se encon tra toda humanidade. Toda cura é uma ressurreição parcial, uma vitória parcial da vida sobre a morte. Esta é a concepção cristã. Na concepção grega pelo contrário, a enfermidade do corpo provém do fato de que o corpo como tal é mal e está exposto à destruição. Para o cristão, uma antecipação passageira da ressurreição pode tomarse visível até no corpo carnal. O corpo não é mal, mas um dom do criador, o mesmo que a alma. Por esta razão, segundo Paulo, temos obrigações com o cor po porque Deus é o criador de todas as coisas. A concepção judai ca e cristã acerca da criação exclui todo dualismo grego entre cor po e alma. As coisas visíveis, corporais, são criações divinas no mesmo grau que as invisíveis. Deus é o criador do meu corpo. Este não é uma prisão para a alma mas um templo; segundo as palavras de Paulo (1 Co 6.19), é templo do Espírito Santo. Aqui reside a diferença fun-damental. Deus também acha “bom” o corporal antes de havê-lo criado. O relato de Gênesis nos ensina expressa mente. Como golpe, o pecado feriu ao homem completamente, não somente ao corpo, mas também à alma, e sua conseqüência, a morte, afeta ao homem por completo, corpo e alma, e não somente à humanidade mas a toda criação. A morte é algo espantoso, pois toda a criação visível, compreendendo nosso corpo, estando agora corrompida pelo pecado, é em si algo maravilhoso. Antes de uma concepção pessimista da morte há uma con cepção otimista da criação. De maneira contrária, onde a morte é
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considerada como libertadora, como no platonismo, o mundo visível não é reconhecido como criação divina, e quando os platônicos con sideram o corpo como belo, não é considerado assim por si mesmo, mas enquanto permite transparecer algo da alma imortal, única rea lidade divina verdadeira. Para o cristão, o corpo não é apenas a som bra de um corpo melhor, mas a realidade que aponta para um corpo melhor. A diferença aqui não é, como para Platão, entre o que é corporal e a idéia imaterial mas entre a criação presente, corrompida pelo pecado, e a nova criação livre do pecado; entre o corpo corrup tível e o incorruptível. Isto nos leva a falar sobre a concepção do homem, sobre a antropologia. A antropologia neo-testamentária não é a grega; se aproxima mais da judaica. Para os conceitos “corpo”, “alma”, “car ne” e “espírito”, para não mencionar outros, os autores do Novo Testamento se servem dos mesmos termos que os filósofos gregos. Porém, estes conceitos recebem uma significação totalmente distin ta para os autores cristãos, e compreendemos equivocadamente o Novo Testamento quando o interpretamos segundo o sentido grego. Muitos dos mal-entendidos provém daqui. Não podemos oferecer aqui uma exposição detalhada da antropologia bíblica. Junto aos artigos correspondentes no dicionário Kittel14, existem boas monografias consagradas a esta questão.15Seria preciso analisar separadamente a antropologia dos diferentes auto res do Novo Testamento. Aqui só podemos mencionar alguns pontos essenciais que interessam a nossa questão, e devemos fazê-lo de uma maneira mais ou menos esquemática sem levar em conta as matizes, que, em uma verdadeira antropologia, devem ser considera das. Apoiamo-nos primeiramente em Paulo, pois é o único autor onde ao menos encontramos os elementos de uma antropologia, ainda que não empregue os mesmos termos, consequentemente e com a mes ma significação.16 14 Tam bém rem etemo s, supostamen te, às teologias do Novo T estamen to. 15 W. G. KÜ M M EL, D as B ild des M en sche n im N euen Testa m ent, 1948, e J. A. T. R O B I N S O N , El Cuerpo. Estúdio de teologia paulina. Ariel, Barcelona 1968. Cf. também os artigos antropológicos do Vocabulário bíblico. Marova, Madrid, 1968. 16 W. GUT BRO D, D ie p a u lin isc h e A n tro p o lo g ie, 1934; W. G. KÜMMEL, R òm er 7 u n d d i e B e k e b r u n g d e s P a u l u s , 1929; E. SCHWEIZER, R õ m e r 1.3 f. u n d d e r
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O Novo Testamento também conhecia evidentemente a dis tinção entre corpo e alma, ou melhor, entre homem interior e exte rior. Porém, esta distinção não significa oposição, como se o homem interior fosse naturalmente bom e o exterior mal.17 Os dois são essencialmente complementares um ao outro, ambos foram criados bons por Deus. O homem interior sem o exterior não possui existên cia independente verdadeira. Tem necessidade do corpo. Tudo o mais que pode fazer e levar, à semelhança dos mortos do Antigo Testa mento, é uma existência sombria esfumada no sheol, porém isto não é uma vida verdadeira. A diferença com repeito à alma grega é evi dente: esta sobrevive sem o corpo e somente sem o corpo pode alcançar seu pleno desenvolvimento. Nada disto ocorre na Bíblia. O corpo, segundo a concepção cristã, tem necessidade, por sua vez, do homem interior. Qual é o papel da carne (a* p^) e do espírito (jtvetiiia) na antropologia cristã? Nesta questão, sobretudo, é importante que o uso profano das palavras gregas não nos leve à confusão, ainda que se encontrem no Novo Testamento em diferentes lugares e ainda que em um único autor, como por exemplo Paulo, a terminologia não seja completamente uniforme. Com esta reserva podemos dizer que, segundo uma das significações paulinas, a mais característica, carne e espírito são dois poderes transcendentes ativos que, a partir fora, podem entrar no homem, porém pertencem tanto um como outro ao homem em si. A antropologia cristã, diferente da grega, está funda mentada na história da salvação.18A “carne” é o poder do pecado que como poder da morte entrou com o pecado de Adão no homem inteiro. Soma-se ao corpo e à alma, porém, de tal maneira, e isto é particularmente importante, que a carne está ligada substancial mente ao corpo de uma maneira mais estreita que ao homem inte Gegensatz von Fleisch und Geist vor und bei Paulus: EvTh 15 (1955) 563 s.; e particularm ente o capítulo corre spondente em R. BULTM ANN, Theologie des Neuen Testaments, 1953. 17 As frases de Jesus em M c 8.36, M t 6.25 e 10.28 (• ■= vida) não falam do “valor infinito da alma imortal”, nem supõem uma apreciação superior do homem interior. Para estes textos (como também para Mc 14.38), veja W. G. KÜMMEL, o. c., 16 s. 18 Isto é o que qu er diz er W. G. K ÜM M EL , o. c., qu and o sublinh a que no Nov o Testamento, também na teologia joanina, o hom em é sempre con siderado com o um ser histórico.
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rior1'1, pois, antes da queda, a carne tomou posse dele. O Espírito é o antagonista da carne, porém não como uma doação antropológica; é um poder que é dado ao homem e que lhe vem de fora. E o poder criador de Deus, a grande força vital, o elemento de ressurreição, assim como a carne é, pelo contrário, o poder da morte. Na antiga aliança, o Espírito só se manifesta fugazmente nos profetas. Depois de Cristo, e por Sua morte, a própria morte sofreu um terrível golpe, e por Sua ressurreição este poder de vida atua em todos os mem bros da Igreja de Cristo. Segundo At 2.16: “nos últimos dias” o Espí rito será derramado em todos os homens. Esta profecia de Joel se realiza no pentecostes. Está força criadora apodera-se completamente do homem, do interior e do exterior, porém, como a carne esta substancialmente unida ao corpo nesta vida, e como não domina completamente o homem interior, o poder de vida do Espírito já toma posse do homem interior a partir de agora de uma maneira tão decisiva que este, como disse Paulo (2 Co 4.16), “se renova a cada dia”. Também no corpo se derrama o Espírito; se dá nisto uma certa antecipação do fim, um retrocesso momentâneo do poder mortal, no qual atua o poder de vida do Espírito Santo20; daí a cura dos enfermos entre os primeiros cristãos. Todavia, trata-se não mais do que um retrocesso, não é uma transformação definitiva do corpo mortal em corpo de ressur reição. Por isso, os que foram ressuscitados por Jesus durante Sua vida, voltaram a morrer; pois não haviam recebido ainda um corpo de ressurreição. Esta transformação do corpo carnal, exposto à cor rupção, em corpo espiritual, só acontecerá no fim dos tempos. Então o poder da ressurreição, que é o Espírito Santo, se derramará no corpo totalmente, transformando-o como agora o renova, “a cada dia” o homem interior. E importante mostrar aqui até que ponto a antropologia do Novo Testamento difere da grega. Corpo e alma são bons pois são 19 O corpo é, por assim dizer, a sede de onde a alma exerce sua influência sobre o homem de maneira total; deste modo se explica que, contrariamente a sua própria concepção fundamental, Paulo pode chegar em alguns lugares a dizer “corpo” em vez de “carne”, ou vice-versa. Estas exceções terminológicas não alteram sua concepção de conjunto, para a qual a distinção cla ra entr e “corpo” e “carne” é característica. 20 Cf. o ca pítulo 6, pp. 105 -116 .
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criados por Deus. São ambos maus enquanto estão sob o poder da morte, da carne e do pecado. Todavia, ambos podem e devem ser libertados pelo poder da vida do Espírito Santo. A libertação não con siste em que a alma se liberta do corpo, mas, antes, em que ambos serão libertados do poder mortal da carne.21 A transformação do corpo carnal em corpo de ressurreição não acontecerá a não ser no momento em que toda a criação seja criada de novo pelo Espírito Santo; então a morte não existirá. A substância22 do corpo já não será carne, mas Espírito. Haverá, segundo Paulo, um “corpo espiritual”. Esta ressurreição do corpo não será mais que uma parte de toda a nova criação. “Esperamos um novo céu e uma nova terra”, diz 2 Pe 3.31. A esperança cristã não compreende só a minha sorte individual, mas a criação inteira. Toda a criação, até a criação visível, material, foi arrastada pelo pecado à morte. “Por tua causa”: é a maldição. Isto o podemos ver não somente no Gênesis, mas também em Rm 8.19 s., onde Paulo escreve que toda a criação23, desde o momento presente, espera impaciente por sua libertação. Esta redenção virá quando o Espírito Santo transformar toda a matéria, quando Deus, em um novo ato criador, distante de destruir a matéria, a livrará do poder da carne, do aspecto corruptível. Então não surgirão as idéias eternas, mas os objetos concretos que renasceram na nova substância de vida incor ruptível do Espírito Santo, e entre estes nosso corpo. 21 A frase de Jesus referida p or M t 10.28: “não tem ais aos que m atam o corpo porém não po dem m atar a • t>x* *’ não supõe de nen hum m odo a conce pç ão g reg a de um a alma que não necessitará do corpo. O que segue mostra justamente o contrário. Jesus não continua: “temei ao que mata a • v%' v, mas “temei àquele que pode matar • v%‘ • e corpo no inferno” . Os e xeg etas notam com razão que • w%- *não designa aqui a noção grega de alma mas que deveria ser traduzida antes por “vida”, conforme o aramaico n a p s h s a . Cf., por exemplo, J. SCHNIEWIND, D a s E v a n g e liu m n ach M atthãus, 1937, ad loc.; W. G. KÜMMEL, o. c., 17, escreve igualmente com razão: Mt 10.28 “não alude ao valor da alma imortal, mas sublinha que só Deus pode destruir, além da vida terrestre, a vida celeste”. Cf. também R. MEHL, D er letz te Feind, 40, n. 12. 22 Em prega m os este term o, que não é m uito feliz, po r falta de outro melhor. Porém , depois do que foi exposto, cremos que está claro o que quero expressar com este termo. 23 A alusão a estas palavras “po r tua causa” no v. 20, exclui, por sua referência a Gen 3.17, toda qualquer outra tradução de • vpiç, como a que propôs E. BRUNNER e A. SCHLATTER: criatura enquanto homem. Cf. O. CÜLLMANN, Cristo e o Tempo, Editora Custom, pp. 144 s.
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Pois a ressurreição do corpo, em um novo ato criador que transforma o universo, não pode sobrevir no momento da morte individual de cada um, mas no fim dos tempos. Não é um “passo” daqui de baixo para o mais além, como ocorre com a alma na crença da imortalidade. A ressurreição do corpo é um passo do século pre sente ao século futuro. Está ligada ao drama da salvação. Por causa do pecado, é necessário que este drama se desen volva no tempo. Desde que o pecado é considerado como a origem do domínio da morte sobre a criação divina, a morte juntamente com o pecado devem ser vencidos. Não somos capazes de fazê-lo por nossas próprias forças, não podemos vencer o pecado, ensina o Novo Testamento, sendo nós pecadores. Outro o fez por nós e não pôde fazê-lo senão na condi ção de ter-se rendido ao domínio da morte, isto é, morrendo e expi ando o pecado de sorte que a morte, que é o salário do pecado, é vencida. A fé cristã anuncia que Jesus fez isto e que ressuscitou em corpo e alma antes de haver estado real e completamente morto. Anuncia que a partir de então atua o poder da ressurreição, o Espíri to Santo. O caminho está livre! O pecado está vencido, a ressurrei ção e a vida triunfam sobre a morte porque a morte não era mais do que a conseqüência do pecado. Deus realizou antecipadamente o milagre da nova criação que esperamos para o fim. De novo, criou a vida, como no princípio. O milagre aconteceu em Jesus Cristo. Res surreição não somente no sentido de um novo nascimento do homem interior cheio do Espírito Santo, mas ressurreição do corpo. Criação da nova matéria, de uma matéria incorruptível. Em nenhuma parte deste mundo há uma matéria de ressurreição nem corpo espiritual: somente em Jesus Cristo. 3. O primogênito dentre os mortos. Entre a ressurreição de Cristo e o aniquilamento da morte
Deveríamos nos dar conta do que significa para os primeiros cristãos proclamar a grande nova de páscoa! Para compreender todo o alcance deveríamos, antes de tudo, recordar o que a morte signifi cava para eles. Caímos na tentação de mesclar a afirmação inaudita “Cristo ressuscitou”, com a idéia grega da imortalidade da alma, e de
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privá-la assim de sua verdadeira substância. Cristo ressuscitou! Isto significa: nós já entramos na nova era onde a morte está vencida pelo Espírito Santo, onde já não há corruptibilidade. Pois se verdadei ramente já há um corpo espiritual que substituiu o corpo carnal que havia sido morto, é que o poder mortal já foi vencido. No fundo, os crentes já não deveriam mais morrer, segundo a convicção dos primeiros cristãos, e esta era certamente sua esperança nos pri meiros tempos. Porém, até agora, o fato de que os homens conti nuem morrendo não tem muita importância. Desde agora sua mor te já não será mais um sinal do domínio absoluto da morte, mas tão somente um sinal do último combate neste domínio. Por isso a mor te já não poderá mais anular este fato tão pleno de conseqüências: existe um corpo ressuscitado. Deveríamos tentar simplesmente compreender o que a comu nidade primitiva queria dizer proclamando a Jesus Cristo “primogêni to dentre os mortos”. Deveríamos tentar, sobretudo, por muito difícil que nos pareça, eliminar a questão de saber se podêmos todavia aceitar ou não esta fé. Deveríamos renunciar igualmente a delinear mos a questão de saber se Sócrates tem razão ou se a tem o Novo Testamento. Sem isto, mesclaremos constantemente idéias estranhas com as do Novo Testamento. Em vez disso, deveríamos começar simplesmente a escutar o que ensina o Novo Testamento. “Jesus Cristo, primogênito dentre os mortos!” Seu corpo, o primeiro corpo de ressurreição, o primeiro corpo espiritual! Toda a vida e todo o pensamento dos que tinham esta convicção deveriam ser transfor mados radicalmente sob Sua influência. Tudo o que se sucedeu na comunidade primitiva explica-se somente a partir daqui. O Novo Testamento é para nós um livro selado com sete selos quando não subentendemos por trás de cada frase esta outra: Cristo ressucitou24; a morte já foi vencida; existe uma nova criação. A era da ressurreição fo i inaugurada. 24 Inc lusive se o verdade iro m estre de jus tiça da s eita de Q um ran foi ex ecutado, o que não foi demonstrado até agora com clareza por nenhum texto, não obstante, subsistiria uma diferença capital em relação à fé da Igreja primitiva (sem falar de outras diferenças; cf. nosso artigo T h e s i g n i fi c a n c e o f t h e Q u m r â n t ex ts , etc.: JourBiSILit [1955] 213 s.): a fé na ressurreição de Jesus, que já aconteceu, não tem p aralelo na seita.
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Certamente esta era só foi inaugurada, porém o foi de manei ra decisiva. Só inaugurada: pois a morte, todavia, atua. Os cristãos continuam morrendo. Os discípulos se dão conta disto quando os primeiros membros da cristandade morrem. Isto delineou um grave problema.25 Em 1 Co 11.30, o apóstolo Paulo dizia que no fundo já não deveria haver nem morte nem enfermidade. Todavia há pecado, enfermidade e morte. Porém, o Espírito Santo como poder criador já é eficaz no mundo. Atua visivelmente na comunidade dos primeiros cristãos nos diferentes dons que se manifestam. Chama mos a atenção em nosso livro Cristo e o Tempo sobre o “já” cum prido e o “todavia não” concluído que é um elemento integrante do Novo Testamento. Por conseguinte, esta tensão não é uma solução secundária inventada fora do tempo26, como os discípulos de Albert Schweitzer e agora também R. Bultmann27 pretendem. Esta tensão caracteriza, pelo contrário, a doutrina que o próprio Jesus deu sobre o reino de Deus. Prega a vinda do Reino no futuro e, por outro lado, proclama que já foi realizado, pois Ele próprio, com o Espírito Santo, freia a morte curando as enfermidades, ressuscitando os mortos (Mt 21.28; Mt 1.3 s.; Lc 10.18) e antecipando assim a vitória que por sua pró pria morte conseguirá sobre a mesma morte. Nem Albert Schweit zer, que considera a esperança de Jesus e dos primeiros cristãos unicamente como a esperança que se realiza no futuro, nem C. H. Dodd, que fala somente de realized eschatology, nem sobretudo R. Bultmann, que dissolve a esperança dos primeiros cristãos num existencialismo heideggeriano tem razão. É essencial para o pensamento do Novo Testamento o servir-se de categorias temporais, precisa mente porque a fé de que em Cristo a ressurreição já aconteceu é o ponto de partida da vida e do pensamento cristãos. Se admitimos que 25 Cf. Ph. H. M EN OU D, L a m o r t d 'A n a n ia s et de Sa phira, en A u x so u rc e s de la tradition chrétienne. Neuchâtel, Paris, 1950. especialmente 150 s. 26 Assim , so bretu do , F. BU RI. D as P roble m der augebliebenen Parusie: Schw. Theol. Umschau (1946) 97 s. Cf. sobre esta questão O. CÜLLMANN, D as w abre durc h die ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem: TheolZ 3 (1947 177 s., 428 s. 27 R. BULTM ANN , H is tory and esca th olo gy in th e N ew Testament: NewTest Stud 1 (19534) 5 s.
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essa é a afirmação central da fé no Novo Testamento, a tensão cor poral entre o “já” cumprido e o “todavia não” concluído é um ele mento constitutivo da fé cristã. Então a imagem de que nos servimos em nosso livro Cristo y el tiempo deve caracterizar a situação pro posta por todo o Novo Testamento: a batalha decisiva, a que decide o resultado da guerra, já aconteceu na morte e ressurreição de Cris to; só fica por chegar o dia da vitória. No fundo, toda discussão teológica moderna sintetiza-se na seguinte questão: é ou não o acontecimento da páscoa o ponto de partida da Igreja cristã primitiva, de seu nascimento, de sua vida e de seu pensamento? Se é assim, a fé na ressurreição corporal de Cristo deve ser considerada como o próprio coração da fé cristã no Novo Testamento. O fato de que exista um corpo de ressurreição, o de Cristo, determina toda concepção de tempo que os primeiros cris tãos possuem. Se Cristo é “o primogênito dentre os mortos”, isto significa também que uma distância temporal, seja qual for sua dura ção, separa o primogênito dos demais homens, pois eStes ainda não “nasceram da morte”. Isto significa que vivemos, segundo o Novo Testamento, em um tempo intermediário entre a ressurreição de Jesus e nossa ressurreição que não acontecerá até a chegada do fim. Isto também significa que o poder da ressurreição, o Espírito Santo, já atua entre os mortos. Por esta razão, o apóstolo Paulo se serve (Rm 8.23), para designar o Espírito Santo, do mesmo termo grego: • rcap%» • primícias, que emprega em 1 Co 15.20 para designar o próprio Jesus ressuscitado. Deste modo já se dá uma antecipação da ressurreição a partir de agora. E isto de duas maneiras: nosso homem interior já é renovado a cada dia pelo Espírito Santo (2 Co 4.16; Ef3.16). Porém, também no corpo se derramou o Espírito San to, ainda que a carne esteja solidamente estabelecida no corpo. Ao grito desesperado de Rm 7.24: “quem me livrará deste corpo mortal?”, todo o Novo Testamento responde: o Espírito Santo! A antecipação do fim pelo Espírito Santo se torna mais visível no pedaço de pão eucarístico dos primeiros cristãos. Ali se cumprem os milagres visíveis do Espírito Santo. No marco dessas reuniões, o Espírito Santo tenta romper os limites da linguagem imperfeita dos homens, fato que o Novo Testamento chama de “falar línguas”. Nesta ocasião, a comunidade entra em relação direta com o ressuscitado,
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não somente com sua alma, mas também com seu corpo invisível de ressurreição. Por esta razão, Paulo escreve: “O pão que partimos, não é a comunhão com o corpo de Cristo?” (1 Co 10.16). Na comu nidade fraternal, os cristãos já estão mais diretamente em contato com o corpo ressuscitado de Cristo e por isso o apóstolo escreve, no capítulo seguinte (11.27 s.), essa passagem curiosa que não se levou muito em conta: se a comida do Senhor fosse compartilhada por todos os membros da comunidade de uma maneira inteiramente digna, a união com o corpo de ressurreição de Cristo atuaria desde agora sobre nossos próprios corpos humanos, de tal maneira que desde o momento presente não haveria mais enfermidade nem morte (1 Co 11.28-30). Afirmação singularmente audaz.28 Estas antecipações nos remetem à transformação do corpo carnal em corpo espiritual, que não acontecerá até a chegada do momento em que toda a criação seja novamente criada. Nesse mo mento não haverá mais que Espírito. A matéria carnal será substi tuída pela matéria espiritual. Isto significa que a matéria corruptível será substituída pela incorruptível. Nesta afirmação é preciso atri buir à palavra “espiritual” o sentido grego que exclui a idéia de cor po. Não se trata de um novo céu e de uma nova terra. Esta é a esperança cristã. A expressão de que se serve o símbolo apostólico não está, certamente, conforme o pensamento paulino: creio na ressurreição da carne.29 Isto não é o que o apóstolo queria dizer. Ele crê na res surreição do corpo, não da carne. A carne é o poder da morte que deve ser destruído. Esta confusão entre carne e corpo teve seu surgimento em uma época onde a terminologia bíblica era mal com preendida, isto é, no sentido da antropologia grega. Segundo Paulo, é nosso corpo que ressuscitará no final, quando o poder de vida, o Espírito Santo, criar de novo todas as coisas, todas sem exceção. Um corpo incorruptível! Como representaremos isto? Ou me lhor, como foi representado pelos primeiros cristãos? Paulo disse em 28 É nes ta persp ectiva que deve ser co m preen dida a nova tese de F.-J. LEE NH ARD T, Ceei est mon corps. Explication de ces paroles de Jésus-Christ. Neuchâtel, Paris, 1955. 25 W. BIEDER, A ufe rste hung des L eib es oder des F le is ches ?: The oIZ 1 (1945) 105 s., tenta explicar esta expressão a partir do ponto de vista da teologia bíblica e da história dos dogmas.
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Fp 3.21 que Jesus transformará no final nosso corpo corruptível em um corpo semelhante ao Seu próprio de glória (ôóça); o mesmo em 2 Co. 3.18: “somos transformados em sua própria imagem, de glória em glória” (• rc* *ô ó ^ t iç e*ç ôó^av). Esta glória (ôó^a) os primei ros cristãos a representam como uma espécie de esplendor materi alizado, o qual é só uma imagem imperfeita. Nossa linguagem não tem palavras para expressá-la. Uma vez mais remetemos ao retá bulo de Grünewald que representa a ressurreição. Parece-nos que se aproxima muito da realidade que o apóstolo viu, falando do cor po espiritual. 4. Os que dormem. Espírito Santo e estado intermediário dos mortos
Chegamos à nossa última questão: Em que momento esta trans formação do corpo acontece? A respeito disto não pode haver dúvi da. Todo o Novo Testamento responde: no final dos' tempos, enten dendo-o verdadeiramente no sentido temporal. Porém, isto delineia o problema do “estado intermediário dos mortos”. Certamente, a mor te já foi vencida segundo 2 Tm 1.10: “Cristo aniquilou a morte e chamou à luz a vida e a incorruptibilidade”. Porém, a tensão tempo ral sob a qual nos permitimos insistir tanto concerne precisamente a este ponto: a morte foi vencida, porém não será destruída senão no fim: “o último inimigo que será vencido é a morte” (1 Co 15.26). É característico que em grego se use o mesmo verbo, • fxiapy et30, quando se trata da vitória decisiva que aconteceu, e quando se faz referência à vitória final: “a morte foi lançada no lago de fogo”; e mais adiante o autor do Apocalipse continua: “a morte não existirá mais”. Isto significa que a transformação do corpo não aconteceu imediatamente depois de cada morte individual. Aqui, sobretudo, é preciso que nos desprendamos das concepções gregas, se quiser mos compreender a doutrina neo-testamentária. Nesse ponto, tam bém nos separamos de K. Barth quando atribui ao apóstolo Paulo a 30 Assim é que LUTER O tradu z o mesm o verbo em 2 Tm H O : “er hat ihm die Macht gen om m en” (lhe arreb atou seu poder); em 1 Co 15.26: “er wird aufge hob en” (foi aniquilada).
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idéia de que a transformação do corpo carnal aconteceria para cada um no momento de sua morte, como se os mortos estivessem fora do tempo.31 Segundo o Novo Testamento, eles estão todavia no tempo. Sem isto, todo o problema tratado por Paulo em 1 Ts 4.13 s. não teria sentido. Nesta carta o apóstolo trata de demonstrar que, no momen to do retomo de Cristo, os vivos todavia não terão precedência sobre os mortos em Cristo. Em Ap 6.10, vemos igualmente que os mortos esperam: “até quando?”, gritam os mártires que dormem sob o altar. A parábola do homem rico, onde Lázaro é levado diretamente, antes de sua morte, ao seio de Abraão (Lc 16.22) e a palavra de Paulo aos filipenses: “desejo morrer e estar com Cristo” (1.23) não falam de uma ressurreição corporal que se sucede imediatamente à morte individual como se tem admitido frequentemente.32 Nem um nem outro dos textos falam da ressurreição dos cor pos. Pelo contrário, servindo-se de imagens, falam do estado dos que morrem em Cristo antes do fim, deste estado intermediário no qual se encontram também os vivos. Todas estas imagens não estão des tinadas senão a explicar uma proximidade especial com respeito a Deus e a Cristo, na qual os que morrem na fé se encontram espe 31 K. BAR TH, D ie K ir chliche D o g m a tik II, 1, 1940, 698 s.; III, 2, 1948, 524 s., 714 s. E verdade que seu ponto de vista se encontra aqui muito mais matizado e se aproxima mais da escatologia do Novo Testamento que em suas primeiras publicações, sobretudo D ie A u fe rste h u n g d er Tote n , 1926. 32 Temos que dizer o mesmo da frase freqüentem ente discu tida de Lc 23.43: “hoje estarás comigo no paraíso”. Ainda que não seja impossível relacionar 0 " ftepov com ooi, parece-nos todavia pouco verossímil. É necessário interpretar esse logion à luz de Lc 16.23 e das concepções do judaísmo tardio concernentes ao “paraíso” como lugar dos bem-aventurados (STRACK-BILLERBECK, ad loc.; P. VOLZ, D ie Esch atologie der jüdisc he n Gem einde im neutestam entlichen Zeitalter, 21934, 265). O texto não fala certam ente da ressurreiçã o do corpo nem anula a esperan ça da parousia . Tal interpre ta ção é ig ualm ente refu ta da por W. G. KÜM M EL, Verheissung und E rfüllung , 21953, 67. E verdade que subsiste um certo desacordo com o paulinismo no sentido de que o próprio Cristo não havia ressuscitado no momento de dizer “hoje” e não podia ainda fundamentar essa “comunhão dos mortos com Ele”. Porém, e afinal de contas, o texto sublinha o fato de que o malfeitor estará com Cristo. Ph. H. MENOUD. L e so rt des trépassés, 45, assinala com razão que é necessário compreender a resposta de Jesus em relação à suplica do malfeitor. Este pede a Jesus que se lembre dele quando “estiver em Seu Reino”; segundo a concepção messiânica ju d a ic a , estas pala vras não podem d esignar senão o m om ento em que o m essias venha para restaurar seu reino. Jesus não responde à petição, mas dá ao malfeitor mais do que ele pede: já antes, estará reunido “com ele”. Compreendida assim, esta frase se situa então, segundo sua intenção, na ordem de idéias antes mencionadas.
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rando o fim dos tempos. Estão no “seio de Abraão”, ou antes (segun do Ap 6.9) “sob o altar”, ou “com Cristo”. Não são mais que ima gens diferentes para ilustrar a proximidade divina. Porém, a imagem mais corrente empregada por Paulo é “os que dormem”.33 Que no Novo Testamento se conta com tal tempo intermediário tanto para os mortos como para os vivos, é um fato difícil de se refutar. Toda via, não encontramos aqui nenhuma especulação sobre o estado dos mortos nesse tempo intermediário.34 Por conseguinte, os que morreram em Cristo participam da tensão do tempo intermediário. Isto não significa somente que estes esperam. Significa ademais que para estes também a morte e a res surreição de Jesus foram acontecimentos decisivos. Para estes tam bém a páscoa é a grande transformação (Mt 27.52). A nova situação que a páscoa criou permite entrever ao menos um nexo possível, não com a doutrina de Sócrates, mas com sua atitude prática de encarar a morte. A morte perdeu seu terror, seu “aguilhão”: ainda que per maneça, todavia, sendo o último inimigo, já não significa na realidade mais nada. Se a ressurreição de Cristo marca o grande aconteci mento só para os vivos e não para os mortos, os vivos teriam uma vantagem imensa sobre os mortos. Com efeito, os vivos, na qualida de de membros da comunidade de Cristo, estão, a partir de agora, em posse do poder de ressurreição do Espírito Santo. É inconcebível que, segundo a concepção dos primeiros cristãos, nada seja mudado por Cristo em relação aos mortos no que diz respeito ao tempo que precede o fim. Precisamente, as imagens de que se serve o Novo Testamento para designar o estado dos que morreram em Cristo provam que a ressurreição de Cristo, esta 33 A interpretação que K. BAR TH, D ie K irc h lic h e D o g m a tik III, 2, 778, dá a esta expressão “dormir”, como se o termo reproduzisse somente a “impressão” que os que dormem pacificamente causam aos vivos, não pode ser defendida do ponto de vista do Novo Testam ento. Este term o disse mais e se refe re como a palavra “re pousar” em Ap 14.13, realmente ao estado no qual se encontram os mortos antes da parousia. 34 Poré m esta discrição não deve ser para nós razão su ficiente p ara sim plesm ente suprimirmos o estado intermediário como tal. Não compreendemos bem porque os teólogos protestantes (como também K. BARTH) sentem, a respeito desta concepção, tão grandes dúvidas, quando o Novo Testamento nos ensina o seguinte: 1) que este estado existe, 2) que já significa comunhão com Cristo (em virtude do Espírito Santo). De nenhum modo trata-se do purgatório.
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antecipação do fim, produz seus efeitos neste estado intermediário para os mortos e sobretudo pelo fato de que: estão junto a Cristo, como disse Paulo. Porém é principalmente a passagem de 2 Co 5.1 -10, a que nos refere o porque que os mortos também, ainda que não estejam revestidos de um corpo, ainda que só “durmam”, se encontram muito próximos de Cristo. O apóstolo fala neste lugar da angústia natural que ele experimenta em vista da morte que está atuando. Teme mui to o que chama estado de “nudez”, que é o estado da alma, privada do corpo. Por conseguinte, esta angústia natural de encarar a morte não desapareceu totalmente, inclusive depois de Cristo, pois a pró pria morte, o último inimigo, ainda que tendo sofrido uma derrota decisiva, não desapareceu. O apóstolo desejaria, disse ele, ser revesti do do corpo espiritual, “por cima” (*íc*), sem ter que passar pela morte. Isto é, queria estar vivo no momento do retorno de Cristo. Uma vez mais, vemos confirmado aqui o que temos dito da atitude de Jesus diante da morte. Porém, ao mesmo tempo, comprovamos nesta passagem (2 Co 5) o que há de radicalmente novo depois da ressurreição de Cristo: esse mesmo texto, ao lado da angústia natu ral produzida pelo estado de nudez da alma, proclama a grande cer teza de estar, no que se sucede, ao lado de Cristo, sobretudo duran te esse estado interme-diário. Por que poderia inquietar-nos, então, o fato de que haja um estado intermediário? A certeza de estar ali mais próximo de Cristo está fundamentada sobre esta outra convic ção cristã, a de que nosso homem interior foi tomado pelo Espírito Santo. Nós, os vivos, estamos de posse do Espírito Santo antes da vinda de Cristo. Se verdadeiramente o Espírito Santo habita em nós, tem transformado nosso homem interior. Apossou-se de nós. Nós sabemos que o Espírito Santo é o poder de ressurreição, o poder criador de Deus; por conseguinte a morte é impotente diante dele. Por isso também transformou a situação dos mortos a partir de agora, contanto que verdadeiramente morram em Cristo, isto é, em posse do Espírito Santo. A espantosa solidão e a separação de Deus criadas pela morte, da qual temos falado, já não existe, pois o Espírito Santo está presente. Por isso, o Novo Testamento assinala que os mortos em Cristo estão ao lado de Cristo, não estão abandonados! Assim compreendemos que Paulo, precisamente em 2 Co 5.1 s.,
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onde fala da angústia diante da nudez no estado intermediário, desig ne o Espírito Santo como “primícias” (• ppa(3* v). Segundo o versículo 8 do mesmo capítulo, os mortos parecem estar inclusive mais próximos de Cristo; o “sono” parece proporcio nar-lhes vantagem: “preferimos habitar fora do corpo e próximo do Senhor”. Por esta razão, o apóstolo pode escrever em Fp 1.23 que “ele deseja morrer” para estar próximo do Senhor. Por conseguinte, o homem sem o corpo carnal , se tem o Espírito Santo, está mais próximo de Cristo que antes. Pois a carne, ligada a nosso corpo ter restre, é um obstáculo ao progresso completo do Espírito Santo enquanto vivemos. O morto está livre deste obstáculo, ainda que seu estado seja todavia imperfeito, pois não tem o corpo de ressurreição. Tão pouco esta passagem dá mais precisões que as outras sobre este estado intermediário, onde o homem interior, despojado do cor po carnal, porém privado, todavia, do corpo espiritual, se encontra só com o Espírito Santo. É suficiente que o apóstolo nos assegure que na via pela qual o fim se antecipa, que é a nossa depois de termos recebido o Espírito Santo, este estado intermediário nos aproxima mais da ressurreição final. Dá-se, por um lado, uma angústia diante do estado de nudez e, por outro, a firme segurança de que este estado, que não é mais que um estado intermediário, passageiro, não nos poderá separar de Cristo (entre as forças que não podem nos separar do amor de Deus em Cristo, se designa também a morte, Rm 8.38). Esta angústia e esta segurança estão unidas no texto de 2 Co 5, o qual confirma que os mortos participam também da tensão que caracteriza o tempo pre sente. Porém, a segurança predomina, pois a batalha decisiva já acon teceu. A morte foi vencida. O homem interior, despojado de corpo, não está só; esta existência de penumbra, que era o único objeto de esperança dos judeus e que não podia ser considerada como uma “vida”, não lhe guia mais. O cristão, privado do corpo pela morte, já foi transformado durante sua vida pelo Espírito Santo, e já foi tomado pela ressurreição (Rm 6.3 s.; Jo 3.3 s.) toda vez que tenha sido real mente regenerado, já em vida, pelo Espírito Santo. O Espírito Santo é um dom que não se pode perder ao morrer. O cristão que morreu tem o Espírito Santo, ainda que durma e que todavia espere sempre a ressurreição do corpo, o único fato que lhe conferirá uma vida plena e verdadeira.
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Neste estado intermediário, a morte, ainda quando todavia exista, perdeu tudo o que tinha de terrível, pois sem a presença da carne o Espírito Santo lhes aproxima mais de Cristo, os mortos “que morrem no Senhor a partir de agora (• t c’* pxt)”35 podem ser real mente chamados bem-aventurados, como escreve o autor do Apo calipse (14.13). O grito triunfal do apóstolo Paulo (1 Co 15.54) encontra também sua aplicação aos mortos: “Onde está, morte, tua vitória? Onde está, morte, teu aguilhão?” Por isso o apóstolo escreve aos romanos: “vivamos ou morramos, somos do Senhor” (14.8). “Quer estejamos acordados quer dormindo, vivamos para ele” (1 Ts 5.10). Cristo é “Senhor de mortos e vivos” (Rm 14.9). Poderíamos propor a questão de saber se, desta maneira, não nos vemos reduzidos, em última análise, à doutrina grega da imorta lidade da alma, e se o Novo Testamento não supõe, para o tempo depois da páscoa, uma continuidade do “homem interior”, do cristão convertido, antes e depois da morte, de forma que a morte não represente praticamente mais que um “passo” natural.36 Até certo ponto nos aproximamos da doutrina grega no sentido de que o homem interior, transformado, vivificado pelo Espírito Santo já com anterioridade (Rm 6.3 s.), continua vivendo assim transformado, ao lado de Cristo em estado de sono. Esta continuidade da vida em espírito é assinalada especialmente pelo Evangelho de João (Jo 3.36; 4.14; 6.54 e outros). Aqui vislumbramos ao menos certa analogia em relação à imortalidade da alma. Todavia, a diferença é radical: o estado dos mortos é imperfeito, de nudez, como disse Paulo, de sono, na espera da ressurreição de toda a criação, da ressurreição do cor po; e, por outro lado, a morte fica como inimigo que, tendo sido ven 35 N a perspectiva dc outras passagens do Novo Testamento ond e certamente não pode significar mais que “a partir de agora” (p. e. Jo 13.19), e por causa do sentido excelente que dá esta interpretação temporal, inclusive aqui preferimos manter tembém esta tradução habitual: “a partir de agora” em relação com a expressão • rcoQv *>• «o v t e ç , ainda quando haja argumentos a favor da proposição de A. DEBRUNNER, Grcimmatik des neutestamentlichen Griechisch II, Anhang, par. 12, que, seguindo um a sugestão de A. FRIDR ICHSEN , considera • rtapT” como a palavra ática vulgar para significar “exatamente, certamente” e a relaciona com \ “ {£ t X " Jtveu* pia, o q ue encontraria certo apoio na lição P47 que omite. 36 Já falam os d a tentativa de K. BA RT H, q ue na realidade vai m uito longe, de pôr de maneira dialética uma apreciação positiva da morte ao lado da concepção negativa.
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cida, ainda não foi destruída. Se os mortos, incluindo os que se encontram neste estado, vivem já perto de Cristo, isso não corres ponde de nenhuma maneira a sua essência, à natureza da alma, se não à conseqüência da intervenção divina atuando de fora pela mor te e ressurreição de Cristo, pelo Espírito Santo que já havia ressusci tado o homem interior por Seu poder milagroso durante sua vida ter restre, antes da morte. Resta dizer que a ressurreição dos mortos é sempre objeto de espera, inclusive no Quarto Evangelho. É certo que, no que se sucede, é uma espera com a certeza da vitória, pois o Espírito Santo já habita no homem interior. Já não poderia surgir nenhuma dúvida: posto que já habita em nós, transformará também um dia nosso corpo. Pois o Espí rito Santo, força da vida, penetra tudo de maneira absoluta, não conhe ce nenhum limite, não se detém. As seguintes palavras de Paulo podem ser consideradas como um verdadeiro resumo da doutrina aqui exposta: Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mòrtos, vivifícará também os vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que em vós habita (Rm 8.11). Esperamos o Senhor Jesus Cristo que transformará nosso corpo de humilhação igual ao seu corpo de glória (Fp 3.21). Nós esperamos e os mortos esperam. E certo que o ritmo do tempo é distinto para os mortos em relação aos vivos, e que este tempo intermediário pode ser abreviado para os mortos. Poderia alguém nos repreender o sobrecarregar esta última observação37, do ponto de vista da exegese, contra a limitação estrita aos dados do Novo Testamento que nós temos imposto até agora; estamos, não obstante, convencidos de não abandonar as bases exegéticas deste trabalho, enquanto a expressão “dormir”, que é a mais corrente no Novo Testamento para designar o estado intermediário, nos convidar a conceber para os mortos uma coincidência distinta acerca do tempo, 37 Seg uimos aqui a indica ção de R. M EH L, D er le tzte Fein d, 56.
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a “dos que dormem”. Porém, isto não quer dizer que eles não se encontrem ainda no tempo, o qual confirma de novo que a fé do Novo Testamento na ressurreição é diferente da crença grega na imortalidade alma. 5. Conclusão Durante suas viagens missionárias, Paulo certamente se encontrou com gentes que não podiam aceitar sua pregação da res surreição pela simples razão de que criam na imortalidade da alma. Por isso os gregos do Areópago de Atenas riram das palavras do apóstolo sobre a ressurreição (At 17.37). As gentes, das que Paulo disse em 1 Ts 4.13 que “não tem esperança” e das que escreve em 1 Co 15.12 que não crêem que há uma ressurreição dos mortos, não são provavelmente os epicureus, como cremos ordinariamente. Pois os que crêem na imortalidade da alma não têm a esperança da qual fala Paulo, a esperança que pressupõe a fé num milagre divino, em uma nova criação. É preciso ir mais longe e dizer que os que crêem na imortalidade da alma deverão experimentar mais dificuldades que os demais para aprovar e aceitar a pregação cristã sobre a ressur reição. Justino38, no ano 150 da nossa era, menciona aqueles que “dizem que não há ressurreição dentre os mortos, mas que suas almas sobem ao céu no próprio momento da morte”. Aqui o contras te está claramente expresso. O imperador Marco Aurélio, o filósofo que junto com Sócrates forma parte das mais nobres figuras do mundo antigo, também expe rimentou o contraste. Sabemos que sentiu grande desprezo para com o cristianismo e precisamente porque a morte dos mártires cristãos, em vez de merecer o respeito deste grande estóico que esperava também a morte com serenidade, lhe inspirava pelo contrário grande antipatia. A paixão com que os cristãos iam à morte lhe repugnava39. O estóico se priva desta vida sem paixão; o mártir cristão, pelo con trário, morre com uma santa paixão por causa de Cristo, pois sabe 38 D ia l., 80. 35 M. A U RÉ LIO , Med. XI, 3. Ce rtam ente ele foi aband ona ndo , cad a vez mais, a fé na imortalidade.
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que está integrado no grande drama da paixão. O primeiro mártir cristão, Estevão, nos demonstra como ele, que morre por Cristo, su pera o horror da morte de uma maneira distinta do filósofo da anti güidade: vê, disse o autor de Atos, “o céu aberto e Cristo em pé à direita do Pai” (7.55). Vê a Cristo como vencedor da morte. Com a certeza de que a morte pela qual deve passar foi vencida por Cristo que já passou por ela, sofre o apedrejamento. A resposta à questão que temos proposto: imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos no Novo Testamento, está clara. A dou trina do grande Sócrates, do grande Platão, é incompatível com o ensino do Novo Testamento. Que sua pessoa, sua vida e sua atitude diante da morte pode e deve ser respeitada não obstante pelos cris tãos, o mostraram os apologetas cristãos do seculo II, e pensamos que se poderia mostrar também inspirando-se no Novo Testamento. Sobre esta e outra questão não vamos nos ocupar aqui.40
40 Não tratam os o problem a da sorte dos ímp ios segundo o cristianism o prim itivo. Esperamos fazê-lo mais tarde em uma obra consagrada à escatologia do Novo Testamento.
9 DUAS MEDITAÇÕES BÍBLICAS 1. Meditação sobre 1 Co 1.10-13 [ Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que faleis todos a mesma coisa, e que não haja entre vós divisões; antes sejais inteiramente unidos, na mesma disposição mental e no mes mo parecer. Pois a vosso respeito, meus irmãos, fui informado, pelos da casa de Cloe, de que há contendas entre vós. Refiro-me ao fato de cada um de vós dizer: “Eu sou de Paulo ”, “e eu de Apoio ”, “e eu de Cefas ”, “e eu de Cristo Acaso Cristo está dividido? fo i Paulo crucificado emfa vor de vós, ou fostes, porventura, batizados em nome de Paulo?
Devemos verdadeiramente “ter todos a mesma linguagem”? Devemos verdadeiramente ter “uma só e única opinião”? Se tal fos se a última palavra do apóstolo, dificilmente poderíamos compreen der o que disse no capítulo 12 da mesma Epístola aos Coríntios sobre a diversidade de dons do Espírito Santo, e sobretudo no v. 8, onde Paulo distingue diferentes Àóyot: o (Ãóyoç aocp*exç), o (Ãóyoç yv* • • • gecoç ), porém atribuindo a todos ao mesmo tempo o nVEUiia. Em nossa passagem se trata do JiveDjia do batismo que nos confere o Espírito Santo, e o que embasa o batismo: Cristo crucificado. Damo-nos conta, nas reuniões deste mesmo congresso, da diversidade de opiniões. Estamos aqui para confrontá-las. Esta é a sorte inevitável dos exegetas: chegar freqüentemente a resultados contrários àqueles de seus colegas e ter até que combate-los, pois Meditação pronunciada no dia 27 de agosto de 1964, durante o congresso celebrado em Lovaina pela Studiorum Novi Testamenti Societas.
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nós devemos nos concentrar sobre o próprio Âóyoç xou morupou e não sobre as opiniões humanas; devemos, e está certo, ser críticos antes de tudo em relação as nossas próprias hipóteses, porém, pela mesma razão, é nosso dever estudar as opiniões exegéticas de outros com espírito crítico. Por isto, temos necessidade uns dos outros, pois um só não pode encontrar a verdade. A discussão é um dos meios que Deus pôs a nossa disposição para que penetrássemos mais no sentido de Sua Palavra. Necessitamos de todos os que interpretaram o Novo Testa mento antes de nós e dos que o interpretam ao mesmo tempo que nós. Apesar de todos os desvios de nossa exegese e de todos os nossos erros, cremos que a interpretação da palavra divina, que já na própria Bíblia se desenvolve progressivamente, deve continuar evo luindo até mesmo quando as linhas desta evolução não sejam sempre direitas curvas. A discussão é necessária; inclusive a polêmica pode ser útil, enquanto se mantenha sobre o plano objetivo da exegese e respeite a lei do amor. As grandes épocas da teologia foram as da polêmica, e o mesmo se sucede com a exegese. Deus pode servir-se, tam bém, de nossos erros humanos para nos conduzir por Seu Espírito à verdade. E inevitável também que certos intérpretes que seguem os mesmos métodos e chegam a resultados análogos formem “escola”. Desde que começou a exegese bíblica, começaram também as dife rentes escolas. Certos aspectos da verdade serão melhor esclareci dos quando forem examinados em comum, por grupos. Devemos estar agradecidos a Deus por ter-nos dado certos mestres que receberam um carisma especial. Portanto, não é toda escola que é condenada como tal por estas palavras do apóstolo. Não, ele conhece muito bem o valor da diversidade dos dons, também quando se trata de nos deixar condu zir pelo Espírito de verdade. Ele, tampouco condena as pessoas às quais os partidos de coríntios fazem menção. Ele não combate nem a Céfas nem a Apoio. Pelo contrário, Paulo considera o teólogo Apoio, ainda que foi teologicamente muito diferente dos outros, como um 5 f • oro çque conduziu os coríntios à fé (3.5); ele o considera como um o* repyoç 0£ou* *como ele mesmo é um a* vepyoç Geot)* <3. 8).
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O que ele condena é a importância excessiva dada às pessoas humanas. Pois esta leva à divisão. Quando um grupo está embasado sobre o culto às pessoas, cessa de ser um elemento legítimo na Igre ja de Cristo. Quando a base de uma escola teológica é o culto à pessoa, esta escola deixa de ter um lugar na comunidade de Cristo, pois, nesse caso, o fundamento único, Cristo crucificado, está amea çado, e quando o fundamento é inseguro, o edifício corre o risco de vir abaixo. O Espírito Santo, que confere a fé em Cristo crucificado, unifica os homens na diversidade. O culto à pessoa, pelo contrário, conduz aos 0 %*ü|J.axa, aos *piôeç, pois destrói nosso único funda mento. Quando o posto de Cristo ou uma parte somente deste posto foi ocupado pelos homens, por nós mesmos ou por outros, a base que mantém a unidade na diversidade já não existe e surgem as divisões. Já não existe a diversidade legítima num mesmo espírito. Desgraçadamente, as Igrejas têm obedecido e obedecem muito pouco a esta advertência do apóstolo. Freqüentemente caem nesse culto à pessoa: culto tributado a tal pregador célebre ou a tal teólogo famoso. Isto se dá também nas comunidades profanas, fora da Igre ja. Porém eu temo que entre nós os teólogos, o costume de designar nosso ponto de vista teológico ajuntando ao nome de tal teólogo céle bre o sufixo bem conhecido: ...ista; em inglês ...ians; em alemão ...ianer, seja mais freqüente que em outras comunidades, e sobretu do este costume é muito mais doentio entre nós porque pretendemos um monopólio da verdade que tanto se opõe à diversidade de dons do Espírito Santo, como ao próprio fundamento único. Se o “partido de Cristo” existiu verdadeiramente em Corinto (sabemos que isto não é seguro e que há outras explicações), neste caso, esse partido não está caracterizado pelo culto da pessoa. Toda via, é a mesma falsa atitude que está na base desse partido. Ainda quando se designe a si mesmo “segundo Cristo”, seu fundamento não é Cristo, posto que ele se isola dos outros que também “invocam o mesmo nome de Cristo”. O nome de Cristo deve unir os homens na diversidade. Um grupo que monopoliza para si mesmo esse nome com o intuito de se isolar é algo particularmente odioso. A diversidade de nossas opiniões teológicas e exegéticas não é um mal enquanto se mantenha ancorada sobre nosso fundamento único e comum: nosso batismo em nome de Cristo crucificado que
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nos confere o mesmo Espírito Santo. Nesta carta ao coríntios, o após tolo nos recorda, no capítulo 12, que pelo mesmo Espírito nós fomos batizados em um mesmo corpo. Por outro lado, a própria passagem sobre a qual estamos meditando conclui na exposição sobre a GO
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geta na “comunhão do Espírito Santo”? E só em segundo lugar, o deveríamos criticar. Creio também que deveríamos fazer um esforço especial para que nossos estudantes renunciassem a sua tendência natural a amar - não a discussão à qual os devemos estimular - mas às divisões teológicas como tais , a amar os slogans teológicos e a polêmica pela polêmica e não pela verdade. Preservemo-lhes desta tentação que os desvia do fundamento. Preservemo-lhes por meio de nosso exemplo renunciando a nossa vaidade natural de sábios e respeitan do a diversidade de dons do Espírito Santo. Que a comunhão do Espírito Santo não seja uma palavra vã para os que são chamados a interpretar a Bíblia. 2. Meditação sobre 1 Tes 5.19-212 Não apagueis o Espírito, não desprezeis as profecias, julgai todas as coisas e retende o que é bom.
Fala-se neste texto do Espírito Santo e do exame crítico, de duas coisas que parecem excluir-se. Com efeito, não é próprio do Espírito Santo o fato de que, onde atue, faça calar a crítica? E inver samente, não se exige à crítica, para que seja fecunda, que exclua toda atitude profética? Pois bem, nesses versículos, o apóstolo convida a Igreja de Tessalônica a unir justamente, e de maneira harmoniosa, o Espírito Santo e a crítica. Esta chamada está dirigida à comunidade inteira. Segundo a função que cada um exerce, a relação entre profecia e crítica se apresentará diferentemente. Seria muito instrutivo ver, por exemplo, as conseqüências desta exortação para os chefes da comunidade, os Tipoiax* pievot mencionados no v. 12. Oxalá as au toridades eclesiásticas de todos os tempos levassem a sério esses versículos! Com efeito, acontece com freqüência que os chefes da Igreja se limitam a recorrer à crítica e à diplomacia que estes inspi ram, e crêem que é um dever o enriquecer-se com os métodos “mun 2 Esta m editação foi pronu nciada na abertura da seção de 1965 da Studiorum Novi Testamenti Societas, em Fleidelberg em 30 de agosto do mesmo ano.
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danos” de governar, sem se preocuparem de se com isto apagam ou asfixiam o Espírito. Em sentido inverso, os chefes das seitas descui dam freqüentemente do necessário exame crítico sobre o pretexto de que o Espírito tem que atuar livremente. Nas paredes de todas as salas de deliberação das autoridades eclesiásticas deveriam estar escritas estas exortações: “Não apagueis o Espírito - Examinai todas as coisas - Conservai o que é bom”, agregando talvez esta frase de Jesus que contém uma lição parecida: “Sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10.16). Nós não somos chefes de Igreja, porém, a palavra do apóstolo está dirigida também a nós que somos exegetas. Como doutores na Igreja, e, mais especialmente, como intérpretes do Novo Testamen to, esta exortação nos toca diretamente. Sem dúvida, no campo em que se desenvolve nosso trabalho há setores, como os da filologia ou da crítica textual e literária, que são explorados fazendo-se abstração de toda fé cristã e de toda intervenção notável do Espírito Santo. E necessário estarmos agra decidos a estas ciências auxiliares puramente profanas; não podere mos jamais exortá-las suficientemente a fundo. Porém, sabemos que para compreender o sentido dos textos neo-testamentários em toda sua profundidade - não esqueçamos que são testemunhos de fé temos também, como aqueles, aos quais os devemos, necessidade da assistência do Espírito Santo. Ele nos deve conduzir a toda a ver dade. Pois as chamadas ciências auxiliares e a compreensão do sen tido do texto se enriquecem e se fecundam mutuamente, posto que entre elas se estabelece, como um intercâmbio permanente, a invo cação, a epiclesis do Espírito Santo que deve presidir completamen te nosso esforço exegético, inclusive ali onde não se faz uso, aparen temente, senão das ciências auxiliares profanas. Por esta razão, não devemos deixar-nos impressionar pelo emprego dos dons do Espírito, que se encontra tanto no pietismo como no iluminismo, também no crítico, ao ponto de cair no outro extremo e excluir o Espírito Santo de nosso trabalho. Ao contrário, queremos levar a sério a exortação do apóstolo de não “desprezar” o Espírito e de não “impedí-lo”, como o Novo Testamento disse em outro lugar: não as impeçais, |i* ~ eí/s CT£! Esta exortação se encon tra na frase sinóptica de Jesus em relação às crianças (Mt 19.14
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par.), e na frase pronunciada na ocasião em que um homem expul sa os demônios em nome de Jesus sem seguir os discípulos (Mc 9.39 par.), e Paulo aplica a mesma exigência, •• íoà ,»£X£, em 1 Co 14.39, diretamente às intervenções do Espírito: “Não as impeçais!” Em um sentido análogo, ele disse aqui aos tessalonicenses: “Não os desprezeis!” Ao explicar os textos, não queremos perder de vista a vontade de pelo menos nos integrar no ato de fé que impulsionou seus autores a dar o testemunho que temos diante de nós nestes textos. Com relação a nossa comunhão de trabalho, é ademais indispensável não esquecer que também nossos colegas, os que fizeram de uma justa interpretação do Novo Testamento tarefa de sua vida, se encontram sob a mesma assistência do Espírito Santo. Nós deveríamos pensar o mesmo, inclusive se os outros não falam ou parecem se ocupar (de maneira um tanto quanto neutra, não diretamente comprometida) de nada mais que dos problemas críticos do Novo Testamento. Justamente quando pensamos não poder compreendê-los é o momento em que deveríamos reconhecer mutuamente que conta mos com esta assistência e que sob ela queremos viver. Só se partir mos de um fundamento semelhante é que nosso trabalho e nossa colaboração serão fecundos. Também é necessária a segunda parte da exortação: aplicar às declarações de nossos colegas, como as nossas, nosso sentido crítico: “pondo-o à prova completamente!” Este segundo ensino da exortação apostólica está estreitamente ligado à primeira, e é neces sário que o sublinhemos. Pois de fato ali, onde o Espírito atua, os outros espíritos que o imitam intentam também infiltrar-se; o espírito do erro se insinua ali onde o espírito da verdade está presente. Assim se explica que o autor da primeira Epístola de João disse também: “Provai os espíritos para saber se vêm de Deus” (1 Jo 4.1), e empre ga o mesmo verbo grego que Paulo: 8o* t|i* Çeiv. Este verbo vale a pena ser examinado mais de perto. Ao* t|Lf íeiv significa: buscar o que tem um valor provado, o que é 8ó* tjiov. Como o autor da primeira Epístola de João, Paulo dá como objeto desse So* t(J.* Çeiv a comprovação do que é a “vontade de Deus” (Rm 12.2). Para a aplicação de nossa passagem, é necessário obser var que Paulo utiliza precisamente esse verbo, 8o* t|i* Çstv em vez
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de • p*retv por exemplo. Com efeito, enquanto • p*vetv significa simplesmente, e de uma maneira neutra, “distinguir”, o uso da lípgua, sobretudo no Novo Testamento, teve como certo que o juízo atesta do por esse verbo pressuponha sempre uma acusação. Kp*veiv tenta examinar, antes de tudo, o que é negativo, o que é necessário recusar, e se o resultado do exame leva a um resultado positivo, é ao término de um processo que começou sendo desconfiado. Quanto ao verbo 8o* t|i* (eiv, ao exercício do qual Paulo exorta aqui, é o processo oposto o que o caracteriza: busca-se antes de tudo e coin cidentemente o que é positivo, o que é a toda prova, e só assim se chega eventualmente a recusar, a • ftoSo* t|i* (eiv, os outros ele mentos. A diferença entre • p*veiv e 8o* t|i* (eiv parece mínima. Todavia é fundamenta] no que se refere ao que Paulo quer inculcar aqui. A prioridade do positivo sobre o negativo não carece de valor. O apóstolo não disse: “provai tudo e recusai o que é mal”, mas de maneira positiva: “provai tudo e conservai o que é bom”. Em outros termos, no exame crítico, no sentido de 8o* tja* (eiv, devemos antes de tudo considerar o que é bom, o que é verdadeiro e evitar o que é falho, através da evidência do que é bom. Nosso dever de exegetas é evidentemente o de ser críticos, de examinar. Não podemos ser demasiadamente críticos. Porém, o devemos ser de maneira que busquemos, em tudo o que lemos e escutamos, antes de tudo, o que é de valor a toda prova, o que é suscetível de oferecer suas provas, e de logo criticar o resto somente a partir do que foi retído como bom. Quando lemos um artigo ou um livro, quando escutamos uma transmissão ou uma conferência, nos sentimos tentados, queiramos ou não, por uma certa vaidade de eru ditos que nos ameaça a todos, de propor, antes de tudo, a questão inversa: como refutar, a partir da força de minha posição, o que tenho lido ou entendido de outro? Em vez de perguntarmos em pri meiro lugar: que posso eu aprender positivamente de outro, já que também ele se esforça por estar na verdade? Qual é o • rxXóv que eu posso e devo reter com gratidão, do que ouço ou do que leio; inclusive se isto deve ser ao apreço de uma retificação ou de um abandono de minhas opiniões? Quão mais fecundas seriam nossas discussões e mais construtiva nossa crítica, se buscássemos no outro sempre e, antes de tudo, o • ttkóv que queremos reter, e se somente
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em continuação, ainda que com toda franqueza e firmeza, refutásse mos o que nos parece que não pode suportar a prova desta busca do • f/.Âóv! Não se trata somente de uma cortesia exterior que facilita os contatos. Objetivamente, se só se tratasse de uma cortesia, isto per deria seu valor. Não se trata então de cumprimentar alguém, de cer ta captatio benevolentiae para demolir em seguida tanto mais duramente àquele que nos faz frente. E completamente outra a atitu de que o ôo* tu* Çstv exige por princípio. Não queremos renunciar a sermos críticos. Pelo contrário. Porém, só podemos ser verdadeira, severa e rigorosamente críticos na medida em que nossa crítica flua menos do processo desconfiado de • p*T£tv (apesar da etimologia) que do processo confiado de 5o* tfi* Çeiv. Esse 6o* tjLt* Çeiv, com efeito, é um dom do Espírito, um carisma. Nele se encontra o vínculo de união entre o Espírito e a crítica. Somente nesta união de Espírito e de crítica se toma possível uma verdadeira unidade de trabalho. Pois se a refutação sistemática prevalece sobre a busca do que é de valor provado, ou se se exerce sem união com esta busca, corremos o perigo de dar ao nosso brio de sábios preeminência sobre a verdade. Se buscamos antes de tudo o que é negativo, como refutar ao outro, estamos propensos a cair nesta tentação, tão pouco científica, de triunfar por nós mesmos. Em troca, se praticamos frente aos outros uma crítica positiva no sentido de ôo* ?}i* Çetv, aprendemos a ser críticos em relação as nossas próprias posições ou declarações. Não esqueceremos então que, em nossa pessoa e também em nossa investigação, o espírito do erro tenta insinuar-se da mesma maneira que o Espírito da verdade. Todos sabemos que um texto bíblico desperta em nós mil pen samentos, mil associações de idéias. Porém, é necessário prová-las antes de segui-las. E devemos estar agradecidos por dispor do méto do histórico-crítico para esse controle. A nobreza deste método está em que nos facilita o 5o* t|i* Çstv, o exame crítico, o pôr à prova. Paulo escreve aos Gálatas dizendo-lhes que devemos aplicar tam bém o 5o* tft» Çetv a nossos próprios atos (6.4). Temos também o direito e o dever de começar pelo que é positivo, de começar por buscar aquelas nossas afirmações que suportem esta prova, e bus car portanto o que é * ukóv. A partir daí, nos é necessário evidente
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mente saber renunciar também ao que, em nossas próprias teses e hipóteses, não suporta um exame sério. Ali onde, frente a um tercei ro, intervém a polêmica, deve situar-se em nós a disposição em, se necessário, renunciar a tais idéias, inclusive sedutoras, que não suportaram o afrontamento de um ôo* m* ( e iv prolongado, inclusi ve se temos dado ao conhecimento público essas idéias em confe rências ou escritos, isto é, até quando essas idéias parecem, ao nosso orgulho, mais sacro-santas que o que demonstra serem as objeções que lhes são feitas com razão. O que é de valor seguro e o que permanece em nossos próprios trabalhos, até se é pouco a partir de um ponto de vista quantitativo, se tomará muito mais fecundo e manancial de enriquecimento exegético. Se em nossa atividade de exegetas praticamos o exame críti co de uma maneira carismática, se buscamos o “provado” e o que é suscetível de dar mostras de seu valor, a crítica não será entre nós um fator de divisão, mas, pelo contrário, um vínculo do Espí rito que nos une a todos. Pois ali onde um exercício carismático de So* t|i* (eiv é querido e buscado por todos, o Espírito de verdade, através da comunidade de trabalho que formamos, fará avançar nos sas pesquisas.
ÍNDICE DE NOMES A Agostinho -179 Allmen, J.-J. von -157 Aretius, B. - 69
B Bacon, W. - 56 Baillet, M. - 39 Baldensperger, W. -16, 78, 80 Barret, C. K. - 30 Barth, K. - 129,130, 131, 133, 135, 136, 138,140, 141, 143, 149, 151, 159, 161, 162, 168, 182,189,206,201,205 Barth, M. - 98 Bauer, W. - 54, 55, 56, 63,96 Benoit, J.-D. - 178 Benz, E. - 183 Berkouwer, G. C. - 131 Bemard, J. H. - 54 Beyer, C. Th. - 70, 71 Beyer, H. W. - 174 Bieder, W. - 199 Billerbeck - 72,73,74,75,78,81, 131,159,179,200 159,81 Blass, F. - 173 Boll, F. - 78
Bomemann, W. - 61, 64 Bomkamm, G. - 138 Bousset, W. - 30, 64, 65, 72, 73, 77 e 80 Brandon, S. G. F. - 57 Braun, F, M. - 32 Brownlee - 32 Brunner, E. - 194 Bultmann, R. - 16, 18,27,30, 34, 55,56, 96, 97, 121, 123, 1S3# 197 Buri, F. - 196 Bumey, C. F. - 32, 46, 127 Burrows - 32 C Cabrol-Leclercq - 174 Calvino - 62,69,70,174,178 Carmignac, J. - 39 Cerfaux, L. - 43, 58 Cirilo-180 Cláudio - 64 Clemen, 0.-122 Congar, Y.-M. J. - 48 Constantino - 134 Cowley, A. E. - 51 Cumont, F. - 122
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D
H
Dahl, N. A .-102, 158 Dalman, G. - 55 Daniélou, J. - 13 Debrunner, A. - 173, 204 Del Médico, H. E .-31 Dibelius, M. - 35,63,66 ,67 Dietrich,A. - 122 Dobschütz, E. von - 61, 63, 64 e 90 Dodd, C. H. - 197 Driver, G. R. - 31 Dupont-Sommer - 32
Hadom, W. - 64 Haefeli, E. - 51 Haenchen, E. - 35, 41 Hanse - 63 Hamack, A. von - 56 Hegel, G. W. F. - 41 Heitmüller, W. - 78 Hemming, N. - 69 Héring, J. - 186 Heydenreich - 70 Hingelfeld - 64 Hoskyns, E. C. - 54 Howard, W. F. - 54
E Elliger, K. -12 Ewald: - 77 F Filo:-9 Fridrischsen, A. - 204 G Gressmann - 72, 75, 77 Grimm, W. -173 Grossmann, H. - 131, 134, 147, 148,155e 164 Grotius, H. - 64 Grundmann, W. - 58 Grünewald, M. - 188 e 199 Grunkel: - 66 Gutbrod, W. - 191 Gaster, M. - 51 Goguel,M. -49,93,103,131,148
I Irineu: -134 J Jackson, F. - 19 e 35 Jeremias, J. - 51, 131, 132, 149, 155 165 e 178 Johnson, S. E. - 13, 18,20,21 Josefo, F. - 9, 13, 14,26, 32 João Crisóstomo - 174 Justino - 58,158,206 K Kem, W. - 64 Kittel, G. - 191 Klijn, A.F. J. - 36 Klostermann, E. - 184
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Koppe, J. B. - 70 Kübel - 78 Kuhn, K.G. - 12, 14,21,32 Kümmel, W. G. - 191, 192, 193, 201 L Loisy, A. - 58 Larange, M.-J. - 54, 56 Lake, K. - 19, 35 Leenhardt, F.-J. - 124, 131, 134, 136,137,142,148,169,198 Leipoldt, J . - 131,141,187 Lidzbarski, M. -11 Lietzmann, H. - 16, 66,79, 175 Lohmeyr, E. - 56, 79, 88, 185 Loisy, A. - 78 Loos, H. van der - 104 Lutero, M. - 200 M Marco Aurélio: - 207 Mehl, R. - 181,193,206 Menoud, Ph. H. - 134,181,196 e 201 Merx, A. - 54 Michaelis, W. - 103, 104, 123 Miegge, G. -131,156 Milik, J .T .-3 9 Montgomery, J. A. - 51 Mowry, L. - 23 N Nero - 64, 65
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Nestle, E. - 54 Niftrik, G. C. van - 131 O Odeberg, H .-2 1,3 2 Õpke, A. - 131, 146 Origines - 56 P Passow - 63 Platão - 177,183,184, 188e207 Preiss, T. - 131, 151, 157 Preuschen, E. - 175, 176 R Reicke, B. - 13, 35, 41, 183 Reitzenstein, R. - 46, 122 Renan, E. - 7 Rengstorff - 87, 88 Robinson, J. A. T. - 32, 191 Roth, C. -31 S Schuré, E. - 9 Schürer, E. - 51 Schweitzer, A. - 90, 196 Schweizer, E. - 191 Secrétan, L. - 147 Seidelin,P.-125 Simon,M.-41 ,47, 57 Sócrates-183,184,185,186,187, 188,206,207 Sõderblom - 66
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Spicq, C. - 43 Spitta, F. - 80 Strack: - 73,74,75,78,131,159, 164,179,200 Strathmann, H. - 54 Sahlin, H. -158,168 Schaedelin, A. -131, 135 Schaeder, H. H. - 46 Schilling, F. A. -18 Schlatter, A. - 32, 194 Schmidt, K. L. - 147 Schniewind, J. -185, 193 Schoeps, H. J. - 42, 57
T Teodoreto de Ciro - 63, 69 Teodoro de Mopsuestia - 56, 63, 69 Tertuliano - 177,178,180 Thomas, J. - 11 Thomson, J.E. H. - 51 Torm, F. - 97 Torrey, C. C. - 32
OsCÂR CuLLMANN
Trajano - 64 Trocmé, E. - 35
V Vaux, P. de - 32 Vespasiano - 54 Volz,P.-71,72, 75,200
W Weiss, J. - 78, 185 Wellhausen, J. - 185 Wetstein - 64 Whitby - 64 Windisch, H. -146,178 Wohlenberg, G. -178
Z Zahn, Th. - 78, 178 Zanchi - 69 Zõckler - 78 Zorell - 63