Quais são os aspectos de uma vida com sentido? Um exame das ideias de Susan Wolf sobre o sentido da vida Mayra Moreira da Costa
Neste ensaio faço uma crítica a algumas ideias acerca do sentido da vida apresentadas pela filósofa Susan Wolf (datas) no artigo “Felicidade e Sentido: Dois Aspectos da Vida Boa” (data). Argumentarei que a concepção de vida com sentido
proposta por Wolf é demasiado abrangente. Apesar disso, defenderei que muitos aspectos de sua tese estão corretos e são essencias para o desenvolvimento de uma teoria adequada sobre o sentindo da vida. Na primeira parte do ensaio, apresento as idéias de Wolf sobre o sentido da vida. Na segunda parte, apresento contra-argumentos às idéias que considero inadequadas, algumas respostas possíveis a esses argumentos e minhas respectivas contra - respostas. Na terceira parte, para concluir, apresento um esboço de como poderíamos solucionar o problema da tese de Wolf: acresecentando a distinção do filósofo Neil Levy entre valores objetivos superlativos e valores objetivos comuns . Defenderei que uma vida não
tem sentido se não envolver a entrega a atividades com valor superlativo tanto quanto a atividades com valor comum. I
Penso que os pontos mais fortes das ideias de Wolf sobre o sentido da vida são: a) a exigência de uma conexão estreita entre o sentido da vida e a realidade objetiva, e b)
a introdução de uma concepção de interesse próprio não idêntico aos nossos
interesses meramente subjetivos. Ambos os pontos estão relacionados ao conceito de valor objetivo. Nos parágrafos seguintes explicarei por que penso que esses dois aspectos são importantes para compreendermos o que é realmente uma vida com sentido. Antes de prosseguir, no entanto, quero deixar clara a acepção de valor objetivo que irei pressupor neste ensaio. Penso que o valor objetivo é uma propriedade relacional como a cor, algo que apenas
existe quando há um agente que valoriza algo 1. Apesar disso, o valor objetivo é independente de nossas preferências ou crenças pessoais, pressupõe-se antes uma conexão interna com a realidade externa, da mesma forma que a cor tem conexão com diversas frequências de luz, que são recebidas de diferentes formas pelo nosso aparelho cognitivo. Isto não impede que consideremos erroneamente algo como conectado de forma perfeita com a realidade quando não o é. O que determinará um valor como objetivo será a sua justificação: um valor é objetivo se sua conexão com a realidade puder ser justificada independendente da nossa mera subjetividade. Portanto, quando eu utilizar o conceito “valor objetivo” , estarei utilizando nessa acepção do termo. Posto este esclarecimento, voltemos à teoria de Wolf: A tese central de Wolf sobre o sentido da vida pode ser resumida na forma da seguinte condicional: se uma vida envolve entrega ativa a projetos ou atividades com valor objetivo, então essa vida tem sentido (p.119). Além disso, ela defende a existência de uma conexão direta entre o sentido da vida e o interesse próprio. Wolf argumenta que uma pessoa que tem preocupação genuína com seu interesse próprio buscará viver uma vida com sentido (p.116). Somando isso à sua tese central, uma pessoa que dedique a maior parte do seu tempo a atividades com valores meramente subjetivos acabará por não viver uma vida com sentido, não atendendo assim aos seus próprios interesses, independentemente de acreditar ou não que os atende. Por outro lado, uma pessoa esclarecida neste aspecto, que se importe realmente com seu próprio interesse, se preocupará em viver uma vida dedicada ativamente a projetos ou atividades com valor objetivo e não somente aos meramente subjetivos. Uma vida tem sentido se envolver entrega ativa a atividades com valor objetivo e, por isso, tem conexão com a realidade. A exigência de conexão entre o sentido da vida e a realidade impede que pessoas imersas em atividades ilusórias possam considerar suas vidas como vidas com sentido, por mais que elas próprias não se dêem conta dessa ilusão. Esse é o primeiro aspecto que considero como um dos pontos fortes da tese de Wolf.
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Alguns filósofos que defendem uma concepção análoga de valor, entre outros, são Thomas
Nagel e John Mcdowell. Ver MCDOWELL, J. Values and secondary qualities In: Essays on Moral Realism, (ed) Sayre-McCord, G. Ithaca and London: Cornell University Press, 1988, e NAGEL, T. Visão a partir de lugar nenhum,
A afirmação de que uma vida com sentido tem conexão com a realidade, é fundamental para diferenciarmos vidas com sentido de vidas sem sentido. Suponhamos, por exemplo, que um amante acredita que seu amado o ama e que isso que lhe dá sentido a vida, mas digamos que na verdade o amado o engana e não o ama realmente. Se alguém lhe disser a verdade, o amante poderá afirmar que preferia viver sem saber a verdade, pois sua vida perdeu o sentido. Penso, no entanto, que sua vida já não tinha sentido, mesmo se ele não soubesse isso. Por mais que o amante afirme que é melhor não saber a realidade quando ela é muito dura, não poderá negar que preferiria que sua crença passada tivesse, de fato, conexão com a realidade. Se pudesse escolher ter vivido com a crença de que seu amor é recíproco em conexão com a realidade (o amado não o engana) ou viver com a mesma crença só que agora sem conexão com a realidade (o amado o engana), certamente ele preferiria a primeira alternativa. O segundo ponto que considero forte na teoria de Wolf é a introdução de uma concepção de interesse próprio não idêntico aos nossos interesses meramente subjetivos. Se uma pessoa ocupa demasiadamente seu tempo em atividades com valor meramente subjetivo, costumamos dizer que essa pessoa se importa muito com seus próprios interesses. No entanto, argumenta Wolf, ao contrário do que essa pessoa pensa, ela não atende ao seu interesse próprio. Para que essa pessoa atenda aos seus interesses ela precisa ter uma vida com sentido. Para que ela tenha uma vida com sentido ela precisa se entregar ativamente a projetos com valor objetivo. Se ela não se entrega ativamente a projetos com valor objetivo, então sua vida não tem sentido. Como sua vida não tem sentido, concluímos também, que ela não atende ao seu interesse próprio. Ironicamente, não atende aos seus interesses subjetivos essenciais. É preciso chamar a atenção para o fato de que a subjetividade não é um elemento ausente na sua teoria. Quando ela nos fala em “entrega ativa” ela está falando exatamente em entrega subjetiva. É importante que exista entrega ativa a uma atividade para que ela tenha sentido. Por mais que uma atividade tenha valor objetivo, isso não é suficiente para dar sentido a ela. Isso significa que uma vida dedicada a atividades com valor objetivo, mas sem entrega ativa a essas atividades, não terá sentido. Basta imaginar a vida de uma pessoa que dedica grande parte de seu tempo à preservação do meio ambiente e se entrega ativamente a isso e a de uma pessoa que dedica a maior parte do seu tempo ao mesmo tipo de atividade, mas não se entrega ativamente a ela. Não diríamos que suas atividades não têm valor objetivo, mas poderíamos dizer que as atividades da primeira pessoa têm sentido enquanto que as da segunda não, ou, de
acordo com os termos de Wolf, as atividades da segunda não “valem a pena” para ela como valem para a primeira. Para finalizar minha exposição da tese de Wolf, apresento o que considero como o ponto fraco da sua teoria: Wolf pensa que uma distinção intuitiva entre atividades que valem mais ou menos a pena será suficiente para formarmos uma ideia adequada de atividade com sentido (p. 119-120). O problema de tal tese é que muitas pessoas podem usar uma distinção intuitiva entre atividades que valem mais ou menos a pena e, ainda assim, formar uma ideia inadequada de atividade com sentido. Uma
distinção mais precisa é necessária. Na seção seguinte me ocuparei em desenvolver minhas objeções. II
A partir das idéias de Wolf podemos concluir que alguém que leva uma vida dedicada somente às relações de amizade, por exemplo, teria uma vida com tanto sentido quanto poderia ter. No entanto, no que diz respeito ao sentido da vida, não colocamos a vida dessa pessoa no mesmo patamar que a vida de alguém que tem ótimas relações de amizade, mas, além disso, dedica seu tempo à redução da desigualdade social, por exemplo. É necessário algo mais que distingua essas duas vidas do que uma mera distinção intuitiva entre as atividades às quais se dedicam. Vejamos por quê: O argumento de Wolf da distinção intuitiva 1) Qualquer pessoa que utilize uma distinção intuitiva entre atividades que valem mais ou menos a pena, formará uma ideia adequada do que é uma atividade com sentido. 2) Uma determinada pessoa usa uma distinção intuitiva entre atividades que valem mais ou menos a pena. 3) Logo, essa pessoa forma uma idéia adequada de atividade com sentido. Esse argumento é válido, mas não é sólido. Um agente pode usar uma distinção intuitiva entre atividades que valem mais ou menos a pena e não formar uma ideia adequada de atividade com sentido, o que significa que a premissa 1 é falsa. Portanto, o argumento não é sólido e sua conclusão pode ser falsa.
Na realidade, a maioria das pessoas fazem uma distinção intuitiva entre atividades que valem mais ou menos a pena e consideram que suas vidas têm sentido, mas suas ideias de vida com sentido podem ser consideradas inadequadas. Lembremos que Wolf exige uma conexão estreita com a realidade e defende que pessoas imersas em ilusão não têm uma vida com sentido, independente de acreditarem nisso ou não. Ela nos assegura que essa distinção intuitiva não depende inteiramente das preferências subjetivas ou da felicidade do sujeito. Contudo, não apresenta uma caracterização precisa do que é valor objetivo e pensa que o simples reconhecimento de que existem distinções entre atividades que não dependem inteiramente de nossa subjetivade é o bastante para compreendermos o que é uma vida com sentido. O problema é que essa suposta distinção intuitiva é demasiado frouxa para distinguirmos vidas com sentido de vidas sem sentido. Ficamos com uma ideia extremamente vaga daquilo que seria a base para formarmos a ideia de sentido. Entre os exemplos que a autora cita como atividades que dão sentido à nossa vida estão coisas tais como as relações familiares, o envolvimento com a igreja, relações de amizade, enamoramento etc. Wolf coloca tais atividades no mesmo patamar que atividades como dominar uma área de estudos, transformar um pântano num jardim, ou curar o câncer (p.122). Parece evidente que existe uma diferença significativa entre os dois grupos de atividades, embora não pareça evidente que um tenha mais valor que o outro. Para colocar o problema de acordo com a nossa realidade específica, pensemos numa pessoa socialmente adaptada, mas consumista e fútil, que siga um padrão de vida tal como é apresentado nas novelas e não faça nada além disso. Essa pessoa terá dificuldades em reconhecer sua vida como uma vida plena de sentido, caso leia o artigo da Wolf? Na verdade, qualquer um terá de reconhecer que essa pessoa está, de acordo com o artigo, levando uma vida com sentido. A própria filósofa chama atenção para a vagueza de sua tese, mas afirma que isso é intencional. Ela argumenta que deve ser assim porque se os nossos juízos préteóricos sobre o sentido se aproximam da verdade, então os objetos de valor e os tipos de interação com eles que podem contribuir com o sentido da vida são imensamente variáveis:
Pode-se obter sentido da criação, promoção e protecção de coisas (que valem a pena), da ajuda a pessoas de que gostamos e a pessoas necessitadas, da aquisição de níveis de proficiência e excelência, da ultrapassagem de
obstáculos, da obtenção de compreensão e até da mera comunhão ou da apreciação activa do que há para ser apreciado (p.122).
Neste caso, um defensor da Wolf poderia responder que as minhas objeções são despropositadas, pois se não houvesse vagueza, acabaríamos excluindo algumas atividades que dão sentido às nossas vidas. Mas, ao exigir menos vagueza, não exigimos uma espécie de “tábua sagrada” das atividades com sentido em que só algumas atividades bem descritas e definidas são grafadas nela. A exclusão de uma imensidão de atividades que podem contribuir para o sentido da vida não se segue do estabelecimento de uma concepção menos vaga para a distinção entre atividades que valem mais ou menos a pena. Uma concepção menos vaga pode dar uma base mais sólida e objetiva para uma distinção entre atividades que valem mais ou menos a pena e é exatamente isso o que falta na tese de Wolf. Existe uma diferença enorme, em termos de sentido da vida, entre passar no vestibular e ajudar pessoas necessitadas. Mais ainda, entre somente ajudar pessoamos que gostamos e ajudar quem mais precisa. Wolf pensa que o objetivo da distinção intuitiva não é fazer classificações de vidas com sentido ou de atividades que os indivíduos se entregam, é antes compreender quais são os ingredientes do nosso próprio bem e do bem dos outros para ficar com uma ideia melhor dos gêneros de considerações que fornecem razões para viver as nossas vidas de uma forma e não de outra (p.123). Basta considerarmos intuitivamente que existem atividades que valem a pena por fazerem nossa vida valer a pena, não valem a pena só porque as preferimos ou porque nos são agradáveis. Para viver bem devemos nos entregar ativamente aos primeiros tipos de atividades. Penso, contudo, que Wolf está fundamentalmente errada num aspecto. Só podemos compreender os ingredientes do nosso próprio bem e ter uma ideia das razões para viver nossa vida de uma determinada forma, se tivermos uma distinção mais precisa entre diferentes tipos de atividades e se distinguirmos vidas com sentido de vidas sem sentido. Não tenho em mente, no entanto, a necessidade de sermos capazes de fornecer algum tipo de cálculo a priori de classificação de vidas com sentido, mas, ao menos, algum tipo de fundamentação para que cada pessoa possa ser capaz de pensar se sua vida realmente tem sentido, por mais que muitas pessoas possam ser levadas a assumir que não. Vejamos um tipo de exemplo de vida que seria considerada uma vida com sentido, de acordo com a concepção de Wolf, mas que na verdade parece não ter
sentido. Suponha que uma mulher só dedica a sua vida às relações com amigos, marido, família, a atualizações do facebook, a freqüentar uma academia e a se controlar para não exagerar no chocolate - como grande parte das mulheres da pequena burguesia. É reconhecida no seu meio social e cuida para que seus filhos sejam pessoas de status e sucesso como ela. Essa mulher não tem nenhum tipo de impedimento físico, mental ou social para desenvolver outras atividades. Ao longo de sua vida ela não se dedicou apenas ao que lhe era agradável ou preferível subjetivamente, optou por exercer atividades que considerou intuitivamente valerem a pena porque achava que faziam sua vida valer a pena, e se entregou ativamente a elas. Por vezes teve que se sacrificar para superar obstáculos e ser bem vista no seu meio social, mesmo que para isso tivesse que perder parte de seu tempo “puxando o saco” de alguém, ou fazendo outras coisas não
muito agradáveis subjetivamente, como se privar de comer mais chocolates. As únicas atividades descritas acima que não contribuiriam para sua vida valer a pena, segundo a teoria da Wolf, seriam ir à academia e comer chocolates 2. Penso, ao contrário, que a mulher do exemplo não compreenderá quais são os ingredientes do seu próprio bem se não buscar dar sentido a sua vida. Mesmo intuitivamente, ela pode não considerar que as atividades às quais se dedica valem menos a pena do que as atividades de alguém que não siga o padrão social de comportamento e dedique grande parte de seu tempo a ajudar pessoas independentemente delas serem do seu círculo de amizade ou não. Parece faltar algo na vida daquela mulher para que sua vida tenha sentido. O que está em causa é a falta de uma distinção mais adequada entre certos grupos de atividades e a falta de uma explicação de como se dá a relação entre esses grupos de atividades e a consideração de uma vida com sentido. Diferenciamos claramente a atividade de ajudar quem gostamos da atividade de ajudar seres desconhecidos, bem como a vida de pessoas entregues majoritariamente a alguma dessas atividades. Apesar de considerarmos que atividades como relacionamentos com amigos, família e enamorados podem ter valor objetivo (são boas não só porque são subjetivamente agradáveis e estão em conexão com a realidade), não achamos que são equivalentes ou têm o mesmo tipo de valor que atividades como resolver um problema teórico importante, acabar com a fome de muitas pessoas ou despoluir o meio ambiente etc. Mas como poderíamos estabelecer uma distinção mais precisa entre os dois grupos 2
Acredito que se exercitar e consumir energia são atividades com valor objetivo que ajudam nossa vida a valer a pena, na medida em que são meios de efetivação e manutenção de atividades com valor comum ou superlativo. Tais atividades seriam caracterizadas como atividade com valor objetivo intermediário. No entanto, não explorarei este ponto neste ensaio.
de atividades e relacioná-la à classificação de vidas com sentido? Na próxima seção, para concluir, me ocuparei em apresentar uma tentativa de resposta para essa questão.
III
Alguém pode dizer que não há mais nada a fazer: por mais que busquemos, acabaremos por conseguir apenas uma distinção intuitiva entre os dois grupos de atividades. Mas o filósofo Neil Levy em seu artigo “Despromoção e sentido da vida” (...) nos oferece um rico instrumento para a classificação entre eles: (...) apesar de o sentido comum estar disponível para quase todos nós, por meio da participação nos bens da família e da apreciação da arte, por meio da amizade e da interacção com o mundo natural, o sentido superlativo exige muito mais: entrega activa a projectos. Mas a entrega a um projecto, a um nível que possa garantir realizações suficientes para conferir sentido superlativo, só é acessível a poucos (p.153).
Entenda-se projeto aqui não na sua acepção simples, mas como práticas em que bens de valor supremo estão em causa (p.149). Para fins de clareza de entendimento, continuarei usando a palavra “projeto” na sua acepção comum . As atividades do
segundo grupo seriam atividades com valor superlativo e as do primeiro atividades com valor comum. Ambos os tipos de atividades têm valor objetivo, mas as atividades com
valor superlativo se diferenciam das atividades com valor comum por exigirem um maior empenho do agente na sua execução e por trazerem maiores benefícios diretos a grande parte da sociedade e ao ambiente que a cerca. Ao contrário de Levy, penso que a entrega ativa a projetos com valor superlativo não é suficiente para dar sentido a uma vida. Vidas dedicadas exclusivamente a atividades com valor superlativo são raras, mas nem por isso plenas de sentido. Considere, por exemplo, a vida de um grande filósofo, porém avesso a qualquer relação de amizade, amor, ou carinho pela família. Pensamos que sua vida tem mais sentido que a da nossa típica perua pequeno burguesa. Mas a vida desse filósofo também não é plena de sentido. Podemos imaginar outro grande filósofo que ao mesmo tempo também preserve relações de amizade ou de amor. A vida do segundo filósofo pode ser plena de sentido, a do primeiro não.
Há, infelizmente, muitos casos de pessoas extremamente dedicadas e talentosas que não suportaram continuar com a vida por falta de entrega a atividades com valor comum, como a amizade e o amor. Quem pensa em suícidio geralmente se pergunta se sua vida tem sentido, se vale a pena viver. Em grande parte dos casos de suicídio, as pessoas se matam por algo relacionado às atividades com valor comum. Atividades com valor comum, além de serem importantes para que exista entrega ativa a projetos com valor superlativo, são importantes em si e podem tornar a vida de alguém plena de sentido. Munidos dessa distinção mais precisa, podemos estabelecer uma relação entre ela e a classificação de vida com sentido. Vamos tentar responder a pergunta de Wolf: “É a vida de um filósofo grande mas solitário mais ou menos significativa do que a de uma empregada doméstica benquista?” (p.138) Podemos dizer que independentemente
de serem mais ou menos significativas, ambas não têm sentido, como nos exemplos do filósofo e da mulher pequeno burguesa. Mas, considerando o exemplo de Wolf da empregada benquista, nos vemos diante de outro ponto: algumas pessoas não têm oportunidade de se entregar a atividades com valor superlativo, embora possam ser extremamente competentes para isso. Esse caso é diferente do caso da mulher pequeno burguesa, embora esteja relacionado socialmente com ele. A perua pode não se dedicar a nenhuma atividade com valor superlativo porque isso ocuparia o tempo que ela prefere dedicar a atividades com valor comum. Ela não teria nenhuma justificação adequada, que não fosse meramente subjetiva e estivesse em conexão com a realidade para explicar por que não dedicou parte do seu tempo a alguma atividade com valor superlativo. Mesmo que ela não tenha nenhum talento, pode ter grandes oportunidades para ajudar outras pessoas, mas não acha que vale a pena se dedicar a isso. Além disso, o que não falta são atividades com valor superlativo a serem feitas e sempre restarão atividades correlacionadas à manutenção do estado das coisas, mesmo que o ser humano mude suas atitudes. A pequeno burguesa, além de ter uma vida destituída de sentido, não tem uma justificação adequada para esse fato. O filósofo, do mesmo modo, não conseguirá justificar adequadamente o fato de não se entregar a atividades com valor comum como a amizade ou o amor, pois teria de negar que a existência desses valores é importante
para a humanidade, o que é falso, ao menos evolutivamente. No final, ele só poderá apresentar sua opinião injustificada. No caso de uma empregada doméstica as coisas são diferentes, pois, embora em muitos países desenvolvidos as empregadas não sejam exploradas a ponto de não terem oportunidade de exercer outras atividades, este não é o caso em países como o Brasil, no qual dificilmente uma empregada doméstica tem oportunidades para se dedicar ativamente a um projeto com valor superlativo, apesar de poder se dedicar a atividades com valor comum. Ela não pode escolher gastar seu tempo em atividades com valor superlativo e pode não ter uma vida extremamente desagradável, mas também não terá uma vida plena de sentido. Alguém poderia objetar que como ela tem um motivo para não dedicar grande parte do seu tempo a uma atividade com valor superlativo é elitismo classificarmos sua vida como não sendo plena de sentido – assim, o que eu digo teria conseqüências éticas desagradáveis. Mas, pensar que pessoas que não têm a oportunidade de se entregar a atividades com valor superlativo têm vidas com sentido é o que me parece elitista. Se pensarmos assim, não precisaremos dar oportunidade para que essas pessoas vivam vidas com sentido. Acredito que a desigualdade social não se reflete somente em condições de sobrevivência e conforto, mas também em condições para se viver uma vida com sentido, uma vida realmente boa. Apesar de a empregada poder justificar por que não se dedica a atividades com valor superlativo, apesar de não a condenarmos por isso, o fato dela ainda não exerce essa atividade, priva sua vida de sentido. Do mesmo modo que uma pessoa que é solitária não por escolha, mas porque os outros não a acham adequada aos seus padrões, pode não ter uma vida plena de sentido mesmo que não deseje isso. A falta de oportunidade de algumas pessoas se dedicarem a atividades com valor superlativo torna suas vidas sem sentido, por mais que elas possam justificar-se pessoalmente. A falta em si retira o sentido de suas vidas. Pessoas que não se entregam a qualquer atividade com valor superlativo têm vidas sem sentido. Saber que essas pessoas não têm tempo ou oportunidade para isso é irrelevante para o sentido de suas vidas. Uma empregada que não se entrega a atividades com valor superlativo também tem uma vida destituída de sentido, mesmo que não tenha oportunidades para entregar-se a essas atividades.
No entanto, se uma vida que não tem qualquer entrega a atividades com valor superlativo é, de fato, uma vida sem sentido, somos levados à conclusão contra-intuitiva de que as vidas de grande parte da humanidade não têm sentido. Será que isso não é concluir demais? Penso que não. Uma vida que não envolve entrega a atividades com valor superlativo e valor comum é uma vida sem sentido. Se a grande maioria da humanidade é assim, então a grande maioria da humanidade tem uma vida sem sentido. Se as nossas intuições são contrárias a isso, tanto pior para nossas intuições. Não há dúvida, contudo, que essa conclusão nos remete a uma questão ética importante: não há nenhuma justificação plausível que possa ser dada para o fato de várias pessoas não terem oportunidade de viver uma vida com sentido e devemos nos empenhar para que isso acabe. Podemos estabelecer uma distinção entre os diversos tipos de atividades: as atividades com valor estritamente subjetivo e aquelas com valor objetivo, dentre estas as com valor superlativo e as com valor comum. Todos esses tipos de atividades isoladamente são necessárias mas não suficientes para se viver uma vida com sentido, somente em comunhão são necessárias e também suficientes. Talvez alguém possa considerar minhas ideias sobre o sentido da vida um tanto pessimistas em comparação às da Wolf. Mas, infelizmente, a maioria das pessoas não tem realmente uma vida com sentido. Ao alargar demais o campo de vidas que podem ser consideradas com sentido, Wolf acaba por apresentar uma concepção de vida com sentido que não corresponde à realidade, apesar dos pontos fortes de sua teoria serem extremamente importantes para os estudos sobre o sentido da vida. Muitas pessoas acreditam falsamente que têm vidas plenas de felicidade quando não têm e poucas procuram dar sentido real às suas vidas. Na nossa sociedade, somos incentivados a produzir e consumir execessivamente, o que significa um gasto desnecessário de energia e a destruição de recursos tão preciosos para a existência da vida, alêm do estabelecimento de relações em que como elas mesmas não são percebidas. O ser humano de sucesso, geralmente é aquele que é bem visto no seu círculo social e é isso que a maioria das pessoas procura ser. Isso leva tanto a uma deturpação das atividades com valor superlativo - assistencialismo, populismo, falsa democracia, pseudo-ativismo etc - quanto das atividades com valor comum – falsos amores, amizades por interesse, hipocrisia etc.
Referências Bibliográficas
MCDOWELL, J. Values and secondary qualities In: Essays on Moral Realism , (ed) Sayre-McCord, G. Ithaca and London: Cornell University Press, 1988. p. 167-180. NAGEL, T. Visão a Partir de Lugar Nenhum. WOLF, S. Felicidade e Sentido: Dois Aspectos da Vida Boa, p. 116-139. In : VIVER PARA QUÊ?Ensaios sobre o sentido da vida , Ed. Dinalivro, trad. Desidério Murcho, 2008. LEVY, N. Despromoção e sentido da vida, p.140-154. In: VIVER PARA QUÊ?Ensaios sobre o sentido da vida , Ed. Dinalivro, trad. Desidério Murcho, 2008.