UNICURITIBA FACULDADE DE DIREITO
RENATA RIBAS RAPHAEL TURRA SPRENGER
A ASCENSÃO DA BURGUESIA
CURITIBA 2013
A ASCENSÃO DA BURGUESIA
Tentar explicar o processo de ascensão da burguesia necessariamente implica em falar do crescimento das cidades. A própria etimologia da palavra “burguês” reforça essa necessidade: ela deriva da palavra latina burgus, cujo signficado é “povoado”, “pequena cidadela”. Inicialmente, a palavra “burgo” designava apenas uma zona fortificada, como um castelo. Com o crescimento do comércio, pequenas aglomerações urbanas começaram a se formar em torno dos muros dessas áreas. Gradualmente, a quantidade de pessoas que ali se encontrava era tamanha que os muros antigos eram derrubados, novos eram levantados, e a palavra “burgo” começou a designar tanto o antigo castelo, como a povoação que se estabelecera em seu redor 1. Mas o que motivou o crescimento das cidades na Baixa Idade Média? 2 Basicamente, de acordo com Leo Huberman, “um dos efeitos mais importantes do aumento no comércio foi o crescimento das cidades” 3. “A cidade medieval é, portanto, essencialmente, uma criação da burguesia”4. E essa criação entrou em choque direto com os nobres, que eram os proprietários das áreas em que as cidades se encravavam. Devido aos tributos e outros estorvos impostos pela nobreza, de acordo com os costumes feudais, os habitantes das cidades – os burgueses –, com o tempo, passaram a exigir maior independência dos senhores, iniciando-se uma luta que durou alguns séculos, tendo desdobramentos diferentes dependendo da região. Por isso que ao longo do período de transição entre Idade Média e Idade Moderna, verificam-se tipos urbanos bastante heterogêneos. De acordo com Leo Huberman, Havia cidades totalmente independentes, como as cidades-repúblicas da Itália e Flandres; havia comunas livres com graus diversos de 1
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem . Rio de Janeiro: LTC Editora, 1986. p. 26. Importante é frisar que as cidades jamais desapareceram totalmente durante a Idade Média. Obviamente que o esplendor das antigas cidades de Grécia e do Império Romano não encontraram rivais na época medieval, mas cidades como Roma, residência do Papa ou como Paris, residência do Rei da França durante quase todo período medieval, permaneceram como centros urbanos relevantes. 3 HUBERMAN, Leo. op.cit. p. 25. 4 PIRENNE, Henri. História econômica e social da Idade Média . São Paulo: Editora Mestre Jou, 1982. p. 171. 2
independência; e havia cidades que apenas superficialmente conseguiram arrebatar uns poucos privilégios de seus senhores feudais, mas na realidade permaneciam sob seu controle 5.
Os protagonistas desse processo de autonomização urbana eram os mercadores, cujo objetivo principal era obter privilégios para suas associações. De acordo com Huberman, o objetivo das associações de mercadores era possuir o controle total do mercado. Quaisquer mercadorias que entrassem ou saíssem da cidade tinham que passar por suas mãos. Devia ser eliminada a concorrência de fora. Os preços das mercadorias deviam ser determinados pelas associações. Em todas as fases do jogo elas desempenhariam o papel principal. O controle do mercado teria que ser seu monopólio exclusivo 6.
Aos poucos, esses direitos foram sendo alcançados; isso era reflexo da importância que o comércio começava a ganhar numa sociedade até então imóvel e estática. Um novo tipo de riqueza surge – o dinheiro –, que começa a competir com a velha medida de riqueza, a terra. Como afirma Huberman, “(...) a posição dos mercadores na cidade reflete a importância crescente da riqueza em capital, em contraste com a riqueza em terras” 7. Obviamente – se o dinheiro começa a se tornar índice de riqueza, aqueles que o possuem começam a competir politicamente com a velha ordem. E estes são, claro, os burgueses, pessoas que viviam da compra, da venda e da indústria. O crescimento das cidades desestabilizou por outra via a velha sociedade, atingindo, talvez, seu ponto mais vulnerável: o campo. Como os burgueses se ocupavam basicamente de comércio e indústria, eles não produziam alimentos em quantidade suficiente para sua sobrevivência e precisavam adquiri-los de outro lugar. Basicamente, esse lugar era o campo (como sempre foi, aliás). Nesse momento se estabelece uma “rigorosa divisão do trabalho” 8 entre campo e cidade, onde o campo fornece víveres e suprimentos para a cidade. A novidade é que a nova relação entre burguês e camponês, que deriva do renascimento urbano, é totalmente diferente da velha relação entre senhor feudal e camponês: ela pauta-se no pagamento em dinheiro e não na prestação de trabalho. E como as cidades não paravam de 5
HUBERMAN, Leo. op. cit. p. 30. Idem. p. 32. 7 Idem. p. 33. 8 PIRENNE, Henri. op. cit. p. 169. 6
crescer, o mercado ampliava-se continuamente. O crescimento da produção, de modo a acompanhar a demanda, foi alcançado por dois meios: por desenvolvimento intensivo, ou seja, através da maior produtividade obtida por meio de melhores métodos, maiores plantações, trabalho mais intensivo e racional; e por extensão da cultura, ou seja, cultivo de terras que até então estavam paradas, ou, melhor, eram inutilizáveis, como pântanos e florestas. Bem, há aí três importantes pontos, que desestabilizaram totalmente o velho modo de produção feudal: primeiro, dinheiro nas mãos dos camponeses; segundo, produção voltada para o mercado (e não para mera subsistência); terceiro, desbravamento de novas terras para plantio, o que implicava menos servos para os nobres: “(...) os servos podiam então encontrar uma terra livre, terra que não exigia o penoso pagamento de arrendamento em serviços, mas em dinheiro apenas” 9. Como no sistema feudal a possibilidade do servo mudar sua posição social era praticamente inexistente, não havia incentivos para elevar a produção além do necessário para sua sobrevivência. O surgimento de grandes cidades fez com que os camponeses começassem a plantar mais de modo a poder vender o excedente no mercado. Com o dinheiro obtido, os camponeses poderiam pagar seus senhores. Além disso, a necessidade da nobreza por dinheiro começou a ser muito maior do que antes. Ela precisava dele para pagar as mercadorias de luxo que adquiria com os comerciantes, por exemplo – mercadorias que até então não estavam disponíveis ou eram de acesso muito mais remoto. Outro fator de importância para a emancipação do camponês (por paradoxal que seja, pois muitos camponeses morreram nesse evento), foi a peste que assolou a Europa no século XIV, causando mais mortos do que a 1ª Guerra Mundial 10. A falta de homens levou ao encarecimento da mão-de-obra, cujo preço a nobreza e a Coroa procuravam manter de modo artificial. Apesar disso, no entanto, o processo de libertação do servo através do desenvolvimento ecônomico, acelerado pela peste, era já fato quase consumado. Nesse sentido, já no século XV, na maior parte da Europa, o trabalho servil já estava em processo de dissolução, ou seja, a maioria dos 9
HUBERMAN, Leo. op. cit. p. 42. Idem. p. 44.
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camponeses trabalhavam como rendeiros e não como servos. Juntamente com isso, entre os séculos XIV e XV, a terra, que durante a maior parte Idade Média estava imobilizada sob o regime feudal, começava a ser objeto de transações econômicas: surgia uma nova relação econômica do homem com a terra, que se tornara uma mercadoria como tantas outras. A nova posição do camponês e da terra apontam com nitidez para o declínio já praticamente irreversível do feudalismo. No mesmo período, a indústria, ou seja, a transformação de matériaprima11, começou a passar por um processo de mudança. Durante a Idade Média, a atividade industrial não produzia para o comércio, ou seja, era apenas para uso doméstico. O artesão, geralmente, era um servo como qualquer outro, que trabalhava no campo e ocasionalmente produzia algo para si, para a família ou para seu senhor. Não era incomum, porém, que houvesse servos habilidosos que desempenhassem exclusivamente a atividade industrial. O crescimento das cidades e a circulação de moeda transformou esse cenário: os artesãos foram para os centros urbanos e produziam para o mercado e não para si mesmos; trabalhavam em pequenas oficinas, e seu comércio era basicamente local, sem intermediários. Como os comerciantes, os artesãos logo formaram corporações cujo fim principal era manter o monopólio local. Outros objetivos eram: manter em segredo técnicas de trabalho, evitar competição entre os artesãos da cidade, manter a qualidade dos produtos e determinar o “justo preço” 12. No entanto, com a ampliação do comércio além do nível local, o “justo preço” se tornou impraticável: as condições do mercado se tornavam cada vez mais instáveis e o preço de mercado se impôs gradualmente, apesar da resistência dos consumidores acostumados à prática antiga, adequada ao nível local. Como o “justo preço”, o sistema de corporações também, em torno do século XV, já estava em seu período de crise. Esse sistema se baseava na igualdade dos mestres e na possibilidade do aprendiz um dia vir a se tornar um 11
Pode parecer óbvio salientar que indústria é transformação de matéria-prima, mas essa palavra hoje está “viciada”: muitas vezes ela parece designar apenas a indústria moderna, pesada (por exemplo, a indústria automobilística). Provavelmente isso se deve à expressão “sociedade industrial”. 12 HUBERMAN, Leo. op. cit. p. 54.
mestre. Em relação à primeira característica, a igualdade corporativa, a prosperidade de alguns homens levou à cisão das corporações, surgindo corporações inferiores e superiores. Algumas associações de comerciantes se especializavam em certo produto e outras corporações artesanais deixavam de produzir para se concentrar apenas no comércio. As corporações mais poderosas passaram a dominar a política e se tornaram governantes das cidades – ou seja, o próprio conceito de corporação (irmandade) já havia ido por água abaixo. Em relação à segunda, o natural progresso na “carreira”, “o ciclo, que até então havia sido aprendiz-jornaleiro-mestre, passou a ser apenas aprendiz-jornaleiro”13. Mas foi a crescente demanda o princípio destruidor do sistema corporativo, ainda mais depois que a civilização europeia retomou o crescimento demográfico após o terrível século XIV. Como as corporações não tinham meios de acompanhar a demanda, criaram-se nichos para o estabelecimento de produtores e comerciantes marginais. Nesse momento, aliás, longe do controle estrito dos artesãos citadinos, se consolida uma nova organização de produção: o sistema doméstico. Neste o trabalhador deixa de controlar a totalidade do processo de produção e realiza apenas uma tarefa entre as várias necessárias para a confecção de determinado produto. O trabalhador não sai de sua casa (por isso doméstico), mas a matéria-prima que utiliza é fornecida pelo negociante. Esse tipo de indústria surgiu na Inglaterra, fora das grandes cidades, controladas pelas corporações, em pequenas aldeias e distritos rurais, e foi alimentada pela mão-de-obra abundante derivadas dos cercamentos. Já em princípios do século XV, no entanto, havia alguns indícios de um sistema fabril, como o caso de Jack de Newbury que “ergueu um edifício próprio, com mais de 200 teares, no qual cerca de 600 homens, mulheres e crianças trabalhavam” 14. Basicamente, aparece nesse período o primeiro esboço do capitalista: os artesãos, antes responsáveis por comprar a matéria, fazer o produto e vendê-lo, agora somente eram responsáveis pela produção.
13 14
HUBERMAN, Leo. op. cit. p. 59. Idem. p. 103.
Dessa situação decorreram perturbações sociais desde o final do século XIV e o poder das corporações ficou comprometido; as cidades voltaram a ser controladas por déspotas, como na Itália, por exemplo, mais poderosos que os de antanho, com territórios menos desorganizados sob seu domínio. A noção de Estado começa a aparecer nesse momento, em outras regiões da Europa, como na França, Espanha e Inglaterra. No decorrer do século XV, segundo Huberman, surgiram nações, as divisões nacionais se tornaram acentuadas, as literaturas nacionais fizeram seu aparecimento, e regulamentações nacionais para a indústria substituíram as regulamentações locais. Passaram a existir leis nacionais, línguas nacionais e até mesmo igrejas nacionais. Os homens começaram a considerar-se não como cidadãos de Madri, de Kent ou de Paris, mas como da Espanha, Inglaterra ou França. Passaram a dever fidelidade não à cidade ou ao senhor feudal, mas ao rei, que é o monarca de toda uma nação 15.
Um dos fatores que propiciaram a centralização do poder político foi a lenta, mas firme, ascensão da burguesia entre os séculos X e XV, já que a fragmentação do poder era prejudicial ao comércio. Nesse sentido, os burgueses, principalmente seu braço bancário, que detinha somas colossais de capital, tiveram papel primordial na estruturação das grandes monarquias nacionais – pense-se, por exemplo, na capacidade política da família de banqueiros Fugger. E o poder central, cada vez mais dependente das finanças, começou a derrubar os estatutos corporativos locais, que entravavam o comércio, o que era bom para ambos os lados, burgueses e reis. Outra dimensão do longo processo de ascensão da burguesia foi a Reforma. De acordo com Huberman, o sentido da Reforma é basicamente econômico: uma luta entre a nascente classe média e um dos bastiões do feudalismo, a Igreja, organização poderosa que possuía cerca de um terço das terras da Europa. E nessa luta, novamente se observa a aliança entre a burguesia e monarquia: ambos viam a Igreja Católica como um oponente formidável – um porque ela representava um entrave ao desenvolvimento do comércio, não menos pela ideologia retrógrada, contrária ao ideal burguês do indivíduo “auto-suficiente, diligente, de espírito prático e motivado por
15
HUBERMAN, Leo. op. cit. p. 64.
interesses pessoais” 16, e o outro porque ela era uma entidade supraestatal que competia pela soberania. Outro fator de monta que se relaciona ao surgimento das grandes entidades estatais modernas é seu papel de consumidor: os Estados nacionais motivaram ainda mais a expansão comercial e industrial. Segundo Marvin Perry, “as monarquias em ascensão dos séculos XVI e XVII, com uma crescente renda tributária a despender, compravam cada vez mais – navios, armas, uniformes, papel – e, com isso, estimularam o desenvolvimento econômico”17. Nos últimos anos do século XV, portanto, a Europa já havia passado diversas transformações sociais e econômicas irreversíveis. Esse cenário é, no entanto, ainda mais subvertido pelos descobrimentos de novos continentes e de novas rotas comerciais. As navegações, empreendidas por um punhado de homens valentes e ambiciosos, resultaram de diversos fatores, mas os dois principais motivos foram de ordem econômica: a conquista de Constantinopla pelos turcos em 1453, que aumentou significativamente o custo das rotas comerciais usuais em direção à Índia, e a escassez de ouro e prata para cunhar moedas. A possibilidade de se chegar à Índia através da circunavegação da África foi de tal monta que levou ao deslocamento do eixo comercial europeu do Mediterrâneo para o Atlântico. Além disso, os novos continentes significaram novos mercados: forneciam matéria-prima, mão-deobra barata e consumiam os produtos europeus. Além disso, como as empresas ultramarinas precisavam de grandes quantias de capital para funcionarem, no século XVI aparece o protótipo das atuais sociedades por ação: as companhias marítimas, que pulularam em vários países da Europa nesse período. O final desse período de sublevações econômicas, sociais, culturais (nem chegamos a citar a Renascença nesse trabalho, que comporta várias relações com a ascensão da burguesia), geográficas até mesmo, que coincide com a ascensão da burguesia, assinala o momento em que a Europa consolida sua posição de potência, dando início a seu longo período de 16
PERRY, Marvin. Civilização ocidental : uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 248. 17 Idem. p. 276.
hegemonia sobre todo o resto do globo. O momento, entretanto, de afirmação final da classe burguesa só chegara alguns séculos mais tarde. Nesse período de grande expansão econômica, ela divide a cena, de forma muitas vezes ambígua, com os monarcas. Principalmente no século XVII, os Estados nacionais se tornarão extremamente poderosos, principalmente o francês, que é o modelo clássico do Estado absoluto. E progressivamente, de “parceiro” da burguesia, o Estado absoluto se torna um obstáculo ao seu pleno desenvolvimento ao manter alguns aspectos da velha ordem que lhe eram vantajosos. Somente no dobrar do século XVIII para o XIX, após as duas grandes revoluções – a Francesa e a Industrial – pode-se afirmar que a burguesia se torna classe dominante tout court. Mas a história de sua ascensão começa alguns séculos antes, como pretendemos expor acima.
BIBLIOGRAFIA:
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: LTC Editora: 1986. PERRY, Marvin. Civilização ocidental: história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. PIRENNE, Henri. História social e econômica da Idade Média. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1982.