URBANO ZILLES
PANORAMA DAS FILOSOFIAS DO SÉCULO XX
PORTO ALEGRE 2014
SUMÁRIO PREFÁCIO / 4 1 UMA VISÃO PANORÂMICA / 6 1.1 Contexto histórico-cultural histórico-cultural / 6 1.2 Novos problemas / 11 1.3 Uma visão panorâmica / 15 1.4 Pluralismo filosófico / 19 2 A FENOMENOLOGIA FENOMENOLOG IA / 23 2.1 Edmund Husserl (1859-1938) / 24 2.2 Max Scheler (1874-1928) / 34 2.3 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) (1908-1961) / 38 3 FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA / 45 3.1 Martin Heidegger (1889-1976) / 47 3.2 Karl Jaspers (1883-1969) (1883-1969) / 52 3.3 Hannah Arendt (1906-1975) / 56 3.4 Jean-Paul Sartre (1905-1980) / 59 3.5 Albert Camus (1913-1960) / 66 3.6 Gabriel Marcel (1889-1973) / 68 3.7 Hans Jonas (1903-1993) / 74 4 O PERSONALISMO / 80 4.1 Emmanuel Mounier (1905-1950) / 82 4.2 Jean Lacroix (1900-1986) / 92 4.3 Maurice Nédoncelle (1905-1976) / 94 5 FILOSOFIAS DO DIÁLOGO / 99 5.1 Ferdinand Ebner (1882-1931) / 100 5.2 Martin Buber (1878-1965) / 102 5.3 Franz Rosenzweig (1886-1929) / 104 5.4 Emmanuel Levinas (1906-1995) / 108 6 O ESPIRITUALISMO ESPIRITUALISMO / 115 6.1 Maurice Blondel (1861-1949) / 117 6.2 Henri Bergson (1859-1941) / 122 7 O PRAGMATISMO / 130 7.1 Charles Sanders Peirce (1830-1914) / 131 7.2 William James (1842-1910) / 135 7.3 John Dewey (1859-1952) (1859-1952 ) / 139 7.4 Richard Rorty (1931-2007) / 141 8 O NOVO UTILITARISMO UTILITARISMO / 147 8.1 Peter Singer (1946) / 150 8.2 John Rawls (1921-2002) / 159 9 FILOSOFIA HERMENÊUTICA HERMENÊUTICA / 168 9.1 Hans-Georg Gadamer (1900-2002) / 171 9.2 Paul Ricoeur (1913-2005) / 175
10 O ESTRUTURALISMO ESTRUTURALI SMO / 180 10.1 Ferdinand de Saussure (1857-1913) / 182 10.2 Claude Lévi-Strauss Lévi-Stra uss (1908-2009) / 183 10.3 Louis Althusser (1918-1990) / 185 10.4 Jaques Lacan (1901-1981) / 186 10.5 Michel Foucault (1926-1984) / 188 11 O MARXISMO / 193 11.1 Karl Marx (1818-1883) / 194 11.2 Lênin (1870-1924) / 199 11.3 Georg Lukács (1885-1971) / 200 11.4 Ernst Bloch (1885-1977) (1885-1977) / 202 12 ESCOLA DA TEORIA CRÍTICA / 206 12.1 Max Horkheimer (1895-1973) / 208 12.2 Theodor W. Adorno (1903-1969) / 212 12.3 Walter Benjamin (1892-1940) / 220 12.4 Herbert Marcuse (1898-1979) / 221 12.5 Teoria crítica: o homem e a religião / 223 12.6 A segunda geração da teoria crítica / 229 13 TEORIA DA CIÊNCIA / 234 13.1 Karl Raimund Popper (1902-1994) / 235 13.2 Imre Lakatos (1922-1974) / 244 13.3 Thomas Samuel Kuhn (1922-1996) / 245 13.4 Paul Karl Feyerabend (1924-1994) (1924-1994 ) / 246 14 FILOSOFIA ANALÍTICA DA LINGUAGEM / 249 14.1 Gottlob Frege (1848-1925) / 251 14.2 Bertrand Russell (1872-1970) / 253 14.3 Ludwig Wittgenstein (1889-1951) / 257 15 FILOSOFIA DA LINGUAGEM ORDINÁRIA / 264 15.1 Gilbert Ryle (1900-1976) / 265 15.2 George Edward Moore (1873-1958) (1873-195 8) / 266 15.3 Willard van Orman Quine (1908-2000) / 268 15.4 John Langshaw Austin (1911-1960) / 269 15.5 Peter Frederick Strawson (1919-2006) / 271 15.6 Donald Davidson (1917-2003) / 272 15.7 John Roger Searle (1932) / 273 16 NEOPOSITIVISMO OU POSITIVISMO LÓGICO / 276 16.1 O Círculo de Viena / 276 16.2 Moritz Schlick (1882-1936) / 279 16.3 Rudolf Carnap (1881-1970) / 281 17 O NEOTOMISMO / 284 17.1 Caraterísticas do neotomismo / 285 17.2 Desenvolvimento do neotomismo / 287 17.3 Principais representantes / 289
PREFÁCIO
O presente panorama quer apresentar os problemas centrais e introduzir nos métodos das filosofias no século XX, para franquear, ao leitor, um acesso a textos de autores já consagrados. Limita os dados externos (biografia dos autores) ao mínimo, concentrando a atenção sobre as ideias dos autores, usando linguagem que permita o diálogo com as ciências e a cultura no sentido mais amplo. Para isso, sempre que possível, no final de cada capítulo, constam obras disponíveis em português. Por filosofia entende-se um corpo de ideias que se formam e se acumulam e evoluem no decurso do tempo. As especulações de pensadores individuais desenvolvem-se no diálogo com a tradição e no confronto entre si. O panorama da filosofia no século XX é plural. Nesse livro exploramos a ampla diversidade de referências a pensadores que provocaram impacto mais notável na sua época. Logo salta aos nossos olhos uma diversidade de interesses, objetivos e abordagens tanto no tratamento crítico de questões novas quanto de antigas. Claro, ampliando a visão não foi possível aprofundar o pensamento de cada autor. É muito difícil decidir até que ponto uma história da filosofia deve penetrar na atualidade. Aqui nosso objetivo é mediar um saber histórico e de conteúdo que capacita o leitor a acompanhar as discussões atuais. Por outro lado, é indiscutível que os textos de História da Filosofia Contemporânea no Brasil , muitas vezes, estão desatualizados ou, então, obedecem à determinada perspectiva de uma corrente, excluindo o que nela não se enquadre. Isso limita muito certos cursos de graduação, embora concordemos com Antonio Joaquim Severino que “o conjunto de formas de expressão cultural e acadêmica, já tem um significativo desenvolvimento no Brasil das últimas décadas” 1. No cenário do século XX destaca-se a fenomenologia de Edmund Husserl. Dela partiram impulsos para diferentes correntes e autores, nem todos 1
História da Filosofia Contemporânea no Brasil . 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 14.
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tratados no capítulo sobre a fenomenologia. Através de Max Scheler, foi fundada a antropologia filosófica como disciplina autônoma e, por influência decisiva de M. Heidegger, a hermenêutica. São abordadas as múltiplas ligações entre fenomenologia, filosofia da existência, filosofias do diálogo e do personalismo. Filosofias restauradoras encontram-se em cena: o neotomismo recorre a Tomás de Aquino; o neokantismo, a Immanuel Kant; o neoidealismo, a Hegel, e o neopositivismo a A. Comte para tratar os novos problemas. No cenário mundial, ainda, merecem reconhecimento filosofias não-europeias, como o pragmatismo e o neoutilitarismo e pensadores como John Rawls e outros. A filosofia analítica tem em comum com a fenomenologia a crítica do idealismo e do psicologismo. Impulsos importantes partiram da lógica moderna de Frege e Russell, da volta à linguagem ordinária que se desenvolveu em Oxford. No final do século XX surge um novo interesse pela Ética e pela Política. Este livro nasceu do curso de Filosofia Contemporânea, ministrado aos alunos de graduação da PUCRS, em 2014. O texto foi escrito para estudantes ou leigos interessados em filosofia. Oferece ao leitor uma seleção de autores, de questões e ideias predominantes nas academias do século XX. Seu objetivo é proporcionar uma visão panorâmica, e o critério da seleção não é o da maior importância filosófica das questões, mas o que os autores escreveram. Para ser acessível, o texto evita o mais m ais possível, o caráter técnico, mas tornou-se denso. Não temos a pretensão de originalidade, nem de esgotar a abordagem, mas cremos oferecer ajuda a quem pretende conhecer a pluralidade de problemas e perspectivas na filosofia, uma atividade de longa tradição, mas sempre a caminho e nunca encerrada. O texto tem a marca de sua origem e de seu objetivo didático. Finalmente, cabe registrar aqui um triplo agradecimento: ao Prof. Blásio Guido Jacobi pela leitura dos manuscritos e seu parecer positivo; à senhora Elisete Teresinha Polese, Encarregada de Secretaria da FATEO/PUCRS, pela digitação do texto em suas horas vagas; aos alunos do Curso de Graduação em Filosofia que foram os primeiros a conhecerem esse texto, na disciplina de História da Filosofia Contemporânea. Contemporânea . Aos leitores desejamos proveitosa leitura. Porto Alegre, 15 de outubro de 2014 Urbano Zilles
I UMA VISÃO PANORÂMICA
Na filosofia do século XX não ocorre uma ruptura abrupta com o passado. Entretanto, muitos referenciais foram relativizados, pois mudou o contexto histórico-cultural e com ele surgiram novos problemas. A afirmação de que as questões filosóficas são perenes só parcialmente é correta, pois, como na evolução da tecnociência, também na atividade filosófica ocorrem mudanças. Alguns problemas sempre retornam sob novas formas, outros ficam para trás, e outros são realmente novos e exigem novas respostas. Nenhuma filosofia é definitiva porque a própria vida não é definitiva. A evolução de alguns problemas coloca as condições para surgirem novos, pois o homem sempre est á a caminho. 1.1 Contexto histórico-cultural O século XX caracterizou-se como século dos extremos. Por um lado, houve guerras mundiais, o nazismo e o fascismo, totalitarismos de diferentes ideologias, explosão mortal de bombas atômicas, enfim, genocídios; por outro, houve progressos significativos no campo cultural, científico e sociopolítico e, na Europa e na América do Norte, o desenvolvimento de um estado moderno com relativo bem-estar material. De um lado, os homens vivem uma situação de bemestar e aparente segurança nos países industrializados; por outro, a prosperidade econômica parece basear-se em numerosas contradições, pois deixou massas na pobreza e na miséria, os chamados excluídos. A modernidade caracteriza-se por uma crescente experiência do contingente, na qual confrontam-se diferentes valores, projetos de vida e diferentes cenários em relação ao futuro. Em 1970, o Clube de Roma já apontava para os riscos ecológicos e os limites de um
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planejamento econômico extensivo. As riquezas do planeta são finitas, as mudanças do meio ambiente, em vista da explosão demográfica e a influência da industrialização sobre a natureza, trazem consequências para o próprio homem, ameaçando sua própria sobrevivência: mudanças climáticas, exploração de recursos vitais. Nasceu e cresce, cada vez mais, a consciência da responsabilidade ecológica. Christoph Helferich, em sua História da Filosofia, aponta para três processos que marcaram o século XX: O desenvolvimento da consciência moderna das ciências naturais (teoria da relatividade, física quântica), o surgimento da psicanálise e o salto para a arte abstrata na pintura. Os três ampliaram e aprofundaram de modo inteiramente imprevisível a representação do que seria a “realidade”2.
Pouco adiante observa: A transformação decisiva, na visão de mundo das ciências naturais, refere-se aos conceitos básicos de espaço e tempo, à possibilidade de conhecimento “objetivo” da natureza, ou seja, independente de cada observador, assim como, nesse sentido, ao problema da aplicabilidade da lei de causa e efeito (a lei causal), o princípio explicativo próprio das ciências naturais.
No século XX, o homem ampliou sua visão de mundo, explorando o cosmos. Foram surpreendentes os sucessos não só com a construção de aviões, mas a investigação do cosmo permitiu-lhe lançar o primeiro satélite artificial ao redor da terra (1957), os foguetes teleguiados aos planetas vizinhos (1960), a primeira viagem tripulada ao redor da terra (1961), a primeira viagem tripulada ao redor da lua (1968) e a primeira alunissagem feita pelo homem (1969). Todas essas descobertas e conquistas do espaço cósmico, evidentemente, repercutem na consciência do homem contemporâneo. Os limites do desconhecido deslocamse para mais longe na medida em que se amplia o mundo conhecido. Por um lado, o homem toma consciência, de maneira nova, de sua posição singular e da limitação de sua soberania dentro do universo; por outro, perde o sentimento de segurança de uma ordem na imensidão de um universo que, ao mesmo tempo, o 2 HELFERICH,
Christoph. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 362.
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fascina e o apavora. Apavora-se com a força da natureza: vulcões, terremotos, tsunamis, enchentes, desastres atômicos e destruição do meio ambiente. No campo da comunicação houve verdadeira revolução com a invenção e o desenvolvimento da TV e do telefone celular, da imagem e do som através de satélites, mas sobretudo do computador e da rede de internet. Tudo isso influencia a conduta e a consciência dos homens, de modo especial dos jovens. O progresso nunca traz apenas vantagens. Jovens, por exemplo, fisicamente próximos em grupos, podem estar existencialmente distantes entre si quando cada um no seu celular aciona joguinhos, facebook, etc. Por um lado, a mídia dá a sensação de proximidade e liberdade e, por outro, vive-se a solidão, pois é fácil confundir o virtual com o real. E isso traz consequências para a educação e a vida. Por que ainda escrever a mão? Por que não abreviar as palavras e as frases? Qual a diferença entre a morte de um personagem no mundo virtual da play station e no mundo real? A investigação também penetrou no microcosmo. O homem conseguiu amplo e profundo conhecimento das coisas, dos últimos elementos da estrutura e da função da realidade material e da vida, identificando o mapa do genoma humano. Realiza o transplante de órgãos humanos. Por um lado, o homem sabe, pelas experiências feitas que agora pode manipular, teórica e praticamente, a vida. Por outro, sabe que não deve fazer tudo que sabe e que a natureza lhe reserva novidades surpreendentes, pois seu conhecimento sempre será limitado. Quais os limites da manipulação humana pelo próprio homem? No grande “boom” econômico de 1928-30, a Alemanha ainda não assimilara a humilhante derrota da 1ª guerra mundial, quando grandes massas populares perderam seu emprego e, consequentemente, o fundamento de sua existência. A miséria chegou ao ponto de a maioria do povo ter três opções: morrer de fome, roubar o alimento necessário ou rebelar-se. Nesse contexto surgiu a voz profética de Adolf Hitler como última esperança. Em 1932, Hitler conquistou legalmente, pelo voto popular, o ingresso no governo de um país que ainda ensaiava os primeiros passos no regime democrático, e ele o transformou no totalitarismo mais absurdo e bárbaro dos tempos modernos. A irrupção da primeira grande guerra mundial, a qual milhões de pessoas foram vítimas de bombas com produtos químicos, obscureceu o otimismo frente ao futuro.
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Surgiram advertências como a de Oswald Spengler (1880-1936) com sua obra Declínio do Ocidente. O médico e psicanalista Sigmund Freud (1856-1939) falava de um mal-estar na modernidade, defendendo a tese de que nossa consciência emerge de um mar de medos, experiências e fantasias sexuais inconscientes. Freud via a civilização como uma superfície fina que a todo momento pode ser rompida por forças subterrâneas. O sociólogo Max Weber (1864-1920) vê as transformações históricas como consequência da racionalidade ocidental. Prevê também o aumento do burocratismo e da administração. Contra essas tendências do empobrecimento da experiência do mundo, posteriormente, protestaram os artistas como o espanhol Salvador Dali (1904-1989), o belga René Magritte (1898-1967) e muitos outros. A semana de Arte Moderna, em 1922, em São Paulo, marca o início da Modernidade no Brasil. Um grupo de intelectuais e artistas desejavam renovar a inteligência de nosso país e criar uma autêntica cultura nacional. Nas grandes metrópoles, nas primeiras décadas do século XX, houve um desenvolvimento cultural em todos os campos da vida e a descoberta de um novo individualismo livre, através da pesquisa cientifica e do espírito de pioneirismo, no qual ainda hoje se inspiram, em grande parte, a arte e a ciência. Na Alemanha o poeta Bertolt Brecht (1898-1956) criou uma nova forma de expressão dramatúrgica através do teatro épico. Charlie Chaplin (1889-1977) chamou atenção para as mudanças com seu filme Os tempos modernos. As mudanças sucederam-se através do impressionismo, expressionismo, dadaísmo, em vanguardas radicais. Obras como as de Marcel Proust e Thomas Mann declararam o fim da Belle Epoque. A obra de Franz Kafka (1883-1924), no início do século, influenciou autores de todo o mundo até hoje. Movimentos de juventude e o renascimento dos jogos olímpicos, em 1896, conduziram a uma redescoberta do movimento e da valorização do corpo. A nova situação exige homens sempre mais capazes e o cultivo da beleza. Obras como de Ellen Key O século da criança, a de Georg Simmel Filosofia do espírito e a de Max Planck sobre a teoria quântica e outras expressaram a irrupção do espírito de uma nova época. A descoberta de Albert Einstein (1879-1955) de que espaço e tempo não são grandezas absolutas mas relativas à velocidade, alterou a compreensão
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da ciência e da própria compreensão do homem. Werner Heisenberg (1901-1976) mostrou o limite do conhecimento quando descobriu que, no microcosmo, é impossível determinar lugar e impulso de partes elementares. Como consequência evidencia-se que não existe um caráter “objetivo” da natureza independentemente do questionamento humano. Na arte, o cubismo rompeu a regra da perspectiva central, usando linguagem radicalmente nova com uma pluralidade de perspectivas. Um dos acontecimentos mais significativos do século XX foi, sem dúvida, a revolução de 1917, liderada por Vladimir Ilytsch Lênin (1870-1924). Como mais tarde, na China (1949) sob Mao Tse-tung (1893-1976), na Rússia queria implantar-se, sobre os fundamentos do marxismo, uma sociedade comunista. Mas logo se percebeu que, no sistema socialista, surgiram novos mecanismos de poder que ameaçavam uma terceira guerra mundial. No contexto da chamada “guerra fria”, poetas como o irlandês Samuel Beckett (1906-1989), o romeno Eugène Ionesco (1912-1994) e o francês Jean Genet (1910-1986) tematizaram o crescente sentimento existencial do absurdo e do fim dos tempos. Quando a política reformista de Michail Gorbachow, com sua teoria da glasnost e da perestroika, indicou uma possibilidade de desarmamento (queda do muro de Berlim, 1989), em 1990, 16 países membros da OTAN declararam o fim da guerra fria e, num primeiro momento, parecia terminado o medo de uma guerra atômica. Mas o fim do conflito entre Ocidente e Rússia não significa paz permanente, pois esta é ameaçada com o surgimento de novas potências atômicas. O ataque ao World Trade Center , em 11 de setembro de 2001, em New York, revelou que o fim da guerra tradicional entre dois países não impede guerras civis, ataques terroristas com armas destruidoras de massas. O poder do Estado, em grande parte, foi privatizado, mas permanece, sempre, uma ameaça para a segurança pública dos cidadãos. Depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU, em 1948, no Ocidente, as tradicionais estruturas sociais transformaram-se numa pluralidade de instituições, projetos de vida, organizações civis orientadas nos direitos fundamentais do homem, ao menos nas constituições. Na prática é diferente. No regime capitalista da economia criou-se uma maneira luxuosa de viver para restritas camadas do povo. Descobertas científicas contribuíram para
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libertar o homem da ignorância e da pobreza e os modernos meios via satélite anunciam, na visão de Herbert Marschall McLuhan (1911-1980), a formação de uma “aldeia global” (a globalização) em nosso planeta. Iniciou uma nova era eletrônica com novas formas de percepção. Por isso fala-se de globalização para significar a ampliação, a rapidez e a intensificação das relações mundiais. Falase, também, da globalização no campo econômico, político, social e jurídico. Um dos aspectos essenciais da globalização é a harmonização cultural que parte da indústria universal do consumo e do entretenimento. Os anseios dos jovens, sua maneira de vestir e de conduta, igualam-se cada vez mais no mundo inteiro. Tudo isso poderá criar novos conflitos culturais, pois, até que ponto a globalização absorverá as identidades regionais? Diante de toda essa situação complexa para o homem de nossos dias é fundamental a reflexão crítica do filósofo. Mas problemas novos exigem novas respostas. 1.2 Novos problemas Depois de considerar alguns aspectos importantes do contexto histórico-cultural do século XX, podemos perguntar: quais são os grandes problemas filosóficos? 1. Nos primórdios da filosofia, pensadores como Tales, Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro e Zenão, não só eram “amantes da sabedoria”, mas preocupavam-se com o que há no universo, como funcionam as coisas e como poderíamos viver melhor. Alguns filósofos eram cientistas como, por exemplo, Aristóteles, que era reconhecido biólogo. Por isso tratavam de problemas hoje reservados às ciências, à religião ou à arte. Na Idade Média, a filosofia serviu à Teologia. Mas, depois da Reforma e do Renascimento, com Newton, Galileu, Copérnico e outros, a ciência passou a separar-se da filosofia. A ciência passou a tematizar o empírico e a filosofia limitou-se ao conceitual, mas agora a serviço da ciência. Se a filosofia, nos seus primórdios, se referia a todo o saber teórico outrora disponível, cedo a medicina, a matemática e o direito se estabeleceram como disciplinas autônomas. Desde o começo da Modernidade, a física, a química e a biologia emanciparam-se da “mãe” filosofia. Nos séculos XVIII e XIX
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também as ciências humanas e sociais, tais como a história, a sociologia, a economia e, depois, a psicologia e a ciência da linguagem seguiram o mesmo caminho. Qual, então, o objeto próprio da filosofia? 2. Depois do Renascimento, a sociedade ocidental passou por um processo de racionalização, por um lado, e, por outro, de secularização. Nesse contexto, David Hume olha a mente humana como uma parte da natureza e, aos poucos, as ciências passam do mundo empírico para considerar o mundo psíquico como objeto da psicologia, separando também esta da filosofia. Definitivamente, a filosofia deixou de ser a “rainha das ciências”. Que tipo de saber é a filosofia? 3. No final do século XVIII, na Europa continental, Kant ainda defende a tese de que a mente contém a natureza. Por isso ela deve ser tida como a fonte das leis abstratas da natureza. Na mesma linha desenvolve-se o idealismo de Hegel e de seus seguidores. Mas essas tentativas não superaram o abismo criado entre filosofia e ciências. Como a atividade filosófica se relaciona com a realidade? 4. No começo do século XX, na Grã-Bretanha e em parte da Alemanha, surgiu uma reação contra o idealismo através da filosofia analítica. Filósofos como Bertrand Russell, George E. Moore e Ludwig Wittgenstein expressaram a ideia de que a filosofia deve restringir sua tarefa a “clarear a linguagem” e o pensamento. Eles partem do pressuposto de que há tantas filosofias quantos filósofos por causa da falta de clareza no uso da linguagem. B. Russell e Gottlob Frege chegam a propor uma teoria do que é clareza. Outros afirmam que a história da filosofia se reduz a notas de rodapé às obras de Platão e Aristóteles porque faltam questões genuinamente filosóficas. Em 1932, Rudolf Carnap afirma que as proposições metafísicas carecem de sentido, pois são pseudoenunciados. No positivismo lógico introduz-se o critério do que “tem sentido” e do que “carece de sentido”. Pode a atividade filosófica ser reduzida à analise da linguagem? 3 É comum às diferentes correntes da filosofia analítica e do positivismo lógico a convicção de que a verdadeira tarefa da filosofia consiste em investigar a linguagem humana, modificando, no decurso do século XX, a própria ideia de 3 STÖRIG,
Hans Joachim. História geral da filosofia. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 552.
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fazer filosofia através do linguistic turn (a virada linguística). A nova filosofia tem um cunho inglês porque surgiu na Inglaterra e predomina nos países de língua inglesa, embora tenha tido representantes expressivos no continente europeu como no Círculo de Viena e em Ludwig Wittgenstein. 5. A partir dos tempos modernos a metafísica tradicional passa a ser desacreditada em círculos cada vez mais amplos, sendo considerada uma espécie de autoajuda ou uma teologia disfarçada. Ora, a metafísica versa sobre o fundamento ontológico do próprio mundo físico. Hoje, torna-se difícil distinguir entre física teórica e filosofia. Eliminar a metafísica seria tirar o fundamento da própria ciência, pois o cientista, já ao formular suas hipóteses, recorre à metafísica. Para esta, o conceito-chave não é apenas o ser, mas a possibilidade. Trata-se de eliminar ou de atualizar a metafísica? 6. Contra a filosofia das ideias (idealismo) e a filosofia das coisas (materialismo), depois da primeira guerra mundial, reagem as chamadas filosofias da existência, do personalismo, do diálogo, para mostrar que o homem não é uma coisa, mas alguém. Não deveria a filosofia exercer uma função humanizadora no crescente processo de coisificação do homem? 7. No início do século XX, Edmund Husserl desenvolveu o método fenomenológico em busca da raiz do conhecimento, seja científico ou filosófico, na consciência humana. Já na maturidade da vida, volta-se ao problema da separação entre o “mundo da ciência” e o “mundo da vida”, vendo nela a raiz da crise das ciências europeias. Como caminho para superar essa crise aponta para a reintegração do “mundo da ciência” no “mundo da vida”. Deverá o homem estar a serviço da tecnociência, ou esta a serviço do homem? 8. Nesse cenário complexo não existe simplesmente a filosofia, mas muitas filosofias. Alguns filósofos, no século XX, sentem certo complexo de inferioridade diante do sucesso das ciências e tentam f azer filosofia à maneira das ciências; outros fecham-se em torres de cristal, longe do mundo, para o exercício da reflexão de ideias abstratas; outros, ainda, buscam dialogar não só com as ciências, mas com o mundo em desenvolvimento. Os últimos colocam o foco, sobretudo, na filosofia política e ética. Essa tendência é compreensível por várias razões, como a globalização, o enfraquecimento do controle religioso, a instabilidade social, etc. A globalização enfraquece o monopólio dessa ou daquela
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religião a favor do pluralismo de crenças. Poderá o homem fazer simplesmente tudo o que sabe para tirar proveito ou tem responsabilidade perante seu próprio futuro? 9. As filosofias do século XX ainda podem ser consideradas sob o aspecto do pensamento restaurador ou do pensamento novo. Entre as filosofias restauradoras podemos citar o neotomismo, o neokantismo, o neoidealismo, o neopositivismo, o neomarxismo e o neoutilitarismo. Algumas vezes essas filosofias tentam responder perguntas novas com respostas velhas; as filosofias novas, por sua vez, enclausuram-se no mundo dos conceitos e das ideias. Se a filosofia é uma atividade humana pode ser absoluta? Deve renunciar à busca do absoluto? 10. Os próprios supostos da filosofia no século XX mudaram. Fritz Heinemann, em sua obra enciclopédica, escreve: Se nos é permitido afirmar, numa simplificação de que temos consciência, encontrar-se a filosofia grega fundada sobre a crença no ser, no cosmos e sua racionalidade, a filosofia medieval sobre a crença em Deus, sua criação e revelação e a filosofia moderna sobre a crença no homem e sua capacidade de realizar o reino de Deus sobre a terra, o século XX carateriza-se por levar a tendência moderna até ao extremo, embora, ao mesmo tempo, padeça de uma dissolução da substância da crença4.
Talvez devêssemos ser menos radicais, pois, no século XX, o homem ainda crê na razão instrumental ou científica. Nisso está, ao mesmo tempo, sua grandeza e sua fragilidade. A filosofia nasceu na antiga Grécia, com o objetivo de resolver os enigmas do universo sem depender do mito nem das crenças religiosas, por um caminho orientado unicamente na reflexão racional ( logos). Entretanto, a longa história da filosofia ocidental parece evidenciar que a própria razão científica pressupõe a crença, pois dela emerge. Bem antes de usarmos nossa razão, como crianças, vivemos da crença nos adultos. Assim parece que a razão extrapola sua competência quando quer negar tudo que resiste a seu domínio.
4 HEINEMANN,
Fritz. A filosofia do século XX , Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1969, p. 255.
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Enfim, constatamos, na experiência, que o homem não é deus, nem senhor do universo. Cabe-lhe a tarefa de administrar responsavelmente os bens materiais e espirituais para sua própria realização ou frustração. Neste novo contexto em que a cultura passa a ser determinada cada vez mais pela tecnociência, cabe ao filósofo dar sua contribuição relevante para o bem-estar das pessoas e da sociedade humana através da reflexão crítica, sem negar o que transcende seu domínio. A realidade humana não se limita ao estritamente racional. Emoções e sentimentos não deixam de ser reais porque escapam ao controle. 1.3 Uma visão panorâmica As filosofias contemporâneas, em parte, surgem de posições anteriores e, em parte, são novas. Assim, a filosofia do século XX está marcada profundamente pelo pensamento de Kierkegaard (filosofia da existência), Marx e Nietzsche. O neokantismo retorna a Kant que se interroga sobre as condições da validade da ciência, da moral, da arte e da religião. Seus representantes distribuem-se pela França, Itália, Inglaterra e, sobretudo, Alemanha, onde se destacam as escolas de Marburg e Baden. Em Marburg celebrizam-se Hermann Cohen (1842-1918), Paul Natrop (1854-1920) e Ernst Cassirer (1874-1945). Este último tornou-se célebre pela sua filosofia das formas simbólicas. A Escola de Baden destacou-se no cenário filosófico com W. Windelband (1848-1915) e Heinrich Rickert (1863-1936), cujo interesse se concentra na natureza dos valores. Paralelo ao neokantismo, com alguma afinidade, está o historicismo de W. Dilthey (183301911), O. Spengler (1880-1936) e a sociologia de M. Weber (1864-1920). No historicismo formaram-se inovadores como Edmund Husserl, M. Heidegger, etc. O ser humano é um ser histórico, mas nem tudo se reduz à história. O neoidealismo desenvolveu-se, sobretudo, na Inglaterra e na Itália. Na versão inglesa destacam-se John McTaggart (1866-1925), Francis H. Bradley (1846-1924) e, nos USA, Josiah Royce (1855-1916); na versão italiana, Benedetto Croce (1866-1952) e Giovanni Gentile (1875-1944).
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A Escola neotomista, regressando a Tomás de Aquino e Aristóteles, recebera um impulso pelo papa Leão XIII, tendo como principais representantes o cardeal Désiré Joseph Mercier (1851-1926), Maurice de Wulf (1867-1947), e Joseph Maréchal (1878-1944), na Bélgica; Etienne Gilson (1884-1978) e Jacques Maritain (1882-1973), na França; Martin Grabmann (1875-1949), na Alemanha, entre muitos outros. Entre as filosofias restauradoras cabe citar, ainda, o neomarxismo, que marcou o começo da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Entre os numerosos marxismos, pela ressonância política e mundial, destaca-se aquele cujas premissas foram lançadas por Vladimir I. Lênin (1870-1924) mediante uma interpretação da obra do Marx maduro, desconhecendo os escritos humanistas da juventude, para justificar o totalitarismo soviético. Do ponto de vista teórico, são mais interessantes as obras de autores do austromarxismo como Otto Bauer (1881-1931), Rosa Luxenburg (1871-1919), Antonio Gramsci (1891-1937) e George Lukács (1885-1971) com seus conceitos de “consciência de classe” de “reificação” e de alienação. Ernst Bloch (1885 -1977), o pensador da utopia e da esperança, e a Escola de Frankfurt, fundada por Max Horkheimer (1895-1973), propondo uma “razão crítica”, e por Theodor W. Adorno (1903 -1969), o teórico da arte. A eles somam-se Herbert Marcuse (1898-1979) e Jürgen Habermas. Entre as filosofias inovadoras do século XX podem citar-se a fenomenologia, a hermenêutica e a analítica. A fenomenologia, criada por Edmund Husserl, é um dos movimentos filosóficos mais importantes e originais do século passado, com grande riqueza de manifestações, de atitudes e interesses. A atitude e o método fenomenológicos encontraram ampla aplicação na ética, na psicologia, na crítica literária e no estudo do fenômeno religioso. Grandes pensadores como Martin Heidegger (1889-1976), Max Scheler (1874-1928), Maurice
Merleau-Ponty
(1907-1961)
e
outros
serviram-se
do
método
fenomenológico. O representante principal da hermenêutica é Hans-Georg Gadamer (1900-2002), cuja teoria repercutiu na teologia, nas ciências sociais, na epistemologia e na teoria literária. A filosofia dialógica e existencial inspira-se em Kierkegaard e Nietzsche, entre outros, e ainda na tradição bíblica. Na vertente dialógica podem citar-se Martin Buber (1878-1965), Ferdinand Ebner (1822-1931) e Franz
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Rosenzweig (1886-1929); na vertente existencial, Gabriel Marcel (1889-1973), Karl Jaspers (1883-1969), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Simone de Beauvoir (1908-1986), Albert Camus (1913-1960) e Hannah Arendt (1906-1975). Antes da segunda guerra mundial, Max Scheler desencadeou o movimento da antropologia filosófica. Entre os cultores dessa tentativa de uma teoria global do humano como fundamento das ciências sociais, históricas e psicológicas destacam-se Helmuth Plessner (1892-1985), com sua teoria da “excentricidade”, e Arnold Gehlen (1904-1976) que propôs uma teoria da cultura, das instituições e da técnica. Nessa linha pode citar-se ainda Sigmund Freud (1856-1939) com sua doutrina do inconsciente psíquico e da libido que influenciou outros campos do conhecimento e pensadores. Sob o título de espiritualismo e personalismo, diferentes movimentos filosóficos e pensadores, em diversos países, polemizaram contra reducionismos materialistas em defesa da dignidade da pessoa humana, salientando não apenas a dimensão espiritual, mas sua imanência, transcendência e sua singularidade. Assim, Henri Bergson (1861-1949) apresenta uma metafísica evolutiva e a afirmação do primado da intuição sobre a inteligência e Maurice Blondel (18611949), com sua filosofia da ação, descobre a transcendência na imanência da pessoa. Emmanuel Mounier (1905-1950), com seu personalismo, opõe-se ao marxismo e ao capitalismo, sem separar o material do espiritual, nem o pessoal do social. Nos Estados Unidos da América do Norte desenvolveu-se um método de fazer filosofia conhecido como pragmatismo. Parece ter nascido no Metaphysical Club, fundado por Charles Sanders Peirce, William James e outros, em Cambridge, Massachusetts, na década de 1870. Para sua expansão contribuiu muito a obra de John Dewey (1859-1952) com seu instrumentalismo, com uma notável reflexão sobre a experiência e a existência, sobre os valores e a democracia. Outra corrente, que exerceu grande influência, é a do positivismo lógico, que aceitou incondicionalmente a ciência. Inicialmente era um grupo conhecido como Círculo de Viena, formado por Moritz Schlick (1882-1936), Rudolf Carnap (1891-1970), Otto Neurath (1882-1945), seguido de outros nomes. O Círculo de Viena aproveitou ideias recentes de Gottlob Frege (1848-1925),
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Bertrand Russell (1848-1925), Alfred North Whitehead (1861-1947) e do Ludwig Wittgenstein (1889-1951) do Tractatus, propondo como objeto da filosofia a mera atividade clarificadora da linguagem, a análise semântica e sintática do discurso científico, a rejeição da metafísica. Essa filosofia recebeu fortes críticas por parte de Karl Popper (1902-1996), entre muitos outros. Aparentada com o positivismo está a filosofia analítica que se centra no significado. Esta corrente compreende duas linhas: uma dedicou-se ao exame da linguagem cotidiana como instrumento e objeto da análise filosófica nas Escolas de Oxford e Cambridge. Entre seus representantes destacam-se Gilbert Ryle (1900-1976), John Oulton Wisdom (1904-1993), John Langshaw Austin (19111960) e J. P. Strawson (1919-2006). Outra linha tematiza a linguagem lógicomatemática como linguagem perfeita. Comum a ambas é a ideia da filosofia como crítica da linguagem, fazendo da filosofia da linguagem o fundamento. A filosofia da ciência empirista, inspirada no empirismo lógico, além das críticas de K. Popper, foi questionada por Imre Lakatos (1922-1974) com sua metodologia dos programas de investigação científica; Thomas S. Kuhn (19221996) com a introdução do conceito de paradigma; Paul Karl Feyerabend (19241994) propôs uma teoria anarquista do conhecimento. Em outra perspectiva, Gaston Bachelard (1884-1962) introduziu o conceito de “corte epistemológico”. Na América Latina a tentativa de Henrique Dussel de criar uma filosofia da libertação, até o momento, não encontrou repercussão maior. Enfim, constatamos que existe uma pluralidade de diferentes perspectivas e sistemas filosóficos. Desse fato, não se pode concluir que somente uma filosofia ou um único sistema possa ser verdadeiro. A pluralidade de filosofias baseia-se no interesse (intencionalidade), que pode incidir mais num ou em outro aspecto, da terminologia empregada e do método a seguir. Provavelmente a filosofia do século XX entrará na história como século da linguagem, pois ela foi objeto de um estudo mais aprofundado, através das discussões pelo empirismo e pelo existencialismo, pela fenomenologia e pela analítica, pela hermenêutica, etc. Em segundo lugar, possivelmente, constará a ética e a filosofia social e política com John Rawls, Richard Rorty e outros. No conjunto, percebe-se uma ampliação do conceito tradicional da razão, reduzido, na modernidade, pelo iluminismo à razão instrumental ou científica.
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1.4 Pluralismo filosófico Na introdução às Meditações cartesianas, Edmund Husserl afirma: “É certo que ainda existem congressos de Filosofia; os filósofos encontram-se aí, mas não as filosofias. O que a estas falta, é um espaço espiritual comum, onde possam tocar-se e fecundar-se mutuamente”5. Defrontamo-nos com um pluralismo de filosofias, com um pluralismo de questões e ideias com diferentes pontos de partida e escolas, sem referencial comum. O pluralismo diz respeito aos métodos, aos conceitos, à própria terminologia. Reina incerteza sobre o que é a filosofia. Para alguns, a filosofia define-se pelo seu objeto. Os representantes dessa visão colocam, geralmente, três questões: O que existe? Como conhecemos? O que podemos fazer? Nessa concepção tradicional propõe-se o estudo da natureza da realidade, a teoria do conhecimento e a ética. Os que propõem o objeto eliminarão Maquiavel da lista dos filósofos? Outros afirmam que se pode filosofar sobre qualquer coisa e o que define a filosofia é seu método, que justifica suas conclusões, clareando-as. Nessa visão, qualquer pessoa pode opinar sobre o que é certo ou errado, mas a opinião somente se carateriza como filosófica quando justificada pela razão. Como os representantes do método enquadrarão Nietzsche e Hegel? Há, ainda, outros que consideram a filosofia como um tipo de atitude ou modo de vida, que se distingue por uma visão crítica das coisas. Os representantes dessa corrente reduzem o termo filosofia literalmente ao seu sentido etimológico de “amor à sabedoria” como uma maneira de se posicionar frente à vida. Onde, nessa visão, ficará um Martin Heidegger? No século XX, com a “virada linguística” de 1960-70, atribuída a Wittgenstein, Carnap e outros, havia uma forte tendência a reduzir as questões filosóficas a meras questões de linguagem. Dessa maneira, pela análise linguística, desaparecem as questões metafísicas. A palavra metafísica torna-se sinônimo de absurdo. Entretanto, nas últimas décadas, a metafísica ressuscitou
5 HUSSERL,
Edmund. Meditações Cartesianas. Porto: Rés, s.d., p. 14.
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vigorosamente. Se o mundo físico é como é, podemos perguntar por suas possibilidades: ele poderia ser diferente? Esta é uma questão metafísica. Desde 1950, até certo ponto, dentro da tradição cartesiana, surgiu a filosofia da mente humana. Os representantes dessa corrente buscam uma teoria da mente que reconheça ao cérebro humano seu lugar e explique os conceitos mentalistas como desejo, crença, percepção, pensamento e assim por diante. Nessa linha compara-se, às vezes, a mente com um computador (Jerry Fodor) como motor do desenvolvimento. No final do século XX, muitos pensadores centram sua reflexão na filosofia política e na ética. No campo ético, todavia, há uma mudança de postura profunda. Enquanto a ética tradicional normativa se preocupava com os conteúdos das normas morais, a nova ética enfatiza a forma, sendo mais descritiva. A ética tradicional tinha apoio do controle religioso, a estabilidade social e contava com fronteiras nacionais e culturais. Tudo isso garantia-lhe certa unidade sobre o conteúdo da moralidade. Tal consenso, todavia, desapareceu. A discussão ética também envolve a religião, ou melhor, as religiões, mas, cada vez mais, torna-se uma ética secular. Em sua História geral da Filosofia, H.J. Störig afirma que, no começo, a filosofia, (...) abarcava todo o saber outrora disponível (o saber teórico, não o saber da práxis dos camponeses, dos artesãos, dos artistas, dos navegadores, etc.). Já bem cedo, no Helenismo, em Roma na Idade Média, a medicina, a matemática e a jurisprudência se estabeleceram como disciplinas autônomas. Desde o começo na Modernidade, física, química e biologia, em suma, as ciências naturais, emanciparam-se da mãe filosofia. Em seguida, nos séculos XVIII e XIX, as ciências humanas e sociais, tais como a história, a sociologia (Comte era filósofo), a economia nacional (Adam Smith era professor de filosofia moral) e, por fim, mais tarde, somente no século XIX, a psicologia e a ciência da linguagem seguiram esse caminho6.
O cenário filosófico do século XX é, pois, muito diversificado e altamente especializado. A especialização transferiu-se do campo das ciências para o campo da filosofia. As sumas medievais foram substituídas por ensaios sobre determinadas questões. Nas ciências, o especialista é aquele que sabe 6
STÖRIG, Hans Joachim. História Geral da Filosofia. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 552.
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quase tudo sobre quase nada e nada sobre o todo. Ora, na Filosofia do século XX, observamos um fenômeno de fragmentação. Alguns estudam durante a vida inteira Platão, outros Aristóteles, e outros ainda Kant ou qualquer outro autor ou tema. Os especialistas são importantes, também na Filosofia, desde que não queiram reduzi-la ao seu limitado campo de estudo e reflexão como algo acabado. Apesar das ciências que, no decurso da história, se separaram da filosofia, apesar do fenômeno da especialização também no campo da filosofia, apesar da pluralidade de métodos e perspectivas, a filosofia floresce hoje como nunca no passado. Houve uma ampliação gigantesca do número de universidades e faculdades e, com isso, do número de cursos e graduados em filosofia. Cresceu, outrossim, o número de livros publicados, de revistas especializadas, verbetes em enciclopédias, na imprensa e on-line. A separação entre filosofia e ciências criou uma situação nova no século XX. Por um lado, os filósofos precisam conhecer e considerar adequadamente o saber que as ciências particulares trouxeram à luz. Por outro, os cientistas defrontam-se com questões fundamentais de tipo filosófico. Na física teórica, por exemplo, Max Planck e Einstein formulam questões filosóficas como: O que é tempo? O que é espaço? Como os dois se relacionam? O que é matéria? Como surgiu a totalidade do mundo? Surgem campos para o trabalho interdisciplinar entre filosofia e ciência. Isso ocorre, por exemplo, quando se trata da concepção de homem (antropologia filosófica), da linguagem, do conhecimento, da ética (aplicada), da consciência e do espírito. Independentemente do conceito que tivermos da filosofia, ela continua sua já longa caminhada. Ela lida racionalmente com questões humanas relevantes, por vezes difíceis, mas importantes para os homens de hoje e de amanhã.
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II A FENOMENOLOGIA
No século XIX, na Europa, a filosofia concentrara-se na crítica às filosofias modernas do sujeito e da consciência. Segundo essa crítica, o verdadeiro impulso transformador não parte da razão (Hegel), nem da moral (Kant), mas da luta de classes (Marx) ou da vontade cega (Schopenhauer) ou ainda da vontade de poder (Nietzsche). Assim Augusto Comte (1798-1857) declarou o fim da metafísica em nome do positivismo científico e os neokantianos Ernst Cassirer (1874-1945), Herman Cohen (1842-1918), Paul Natorp (18541924) e Heinrich Rickert (1893-1936) quase reduziram a filosofia à teoria do conhecimento e a aspectos lógicos e metodológicos. Nesse contexto, na virada do século, surgiu a filosofia da vida no continente europeu. Na França, Henri Bergson (1859-1941) elaborou uma teoria da autoexperiência e, na Alemanha, Wilhelm Dilthey (1833-1911) e Georg Simmel (1858-1918) tematizaram a significação da subjetividade e a experiência da vida. Para Dilthey, o ponto de partida mais importante, para a filosofia, é a vida. Edmund Husserl (1859-1938) partiu de conceitos de Franz Brentano (1838-1917), afirmando que o conhecimento humano sempre se volta às coisas com determinada perspectiva: a intencionalidade. Com seu apelo da “volta às coisas mesmas” e com seu conceito de “mundo da vida” como fundamento do qual emerge todo o pensamento, Husserl aponta para o fenômeno, concentrando a filosofia no conteúdo da consciência. Tentou captar o essencial de maneira intuitiva e singular. Muitos consideram sua fenomenologia uma libertação do ideal moderno de subordinar tudo à ciência. Entre as correntes filosóficas do século XX, a fenomenologia, ao lado da filosofia analítica, é uma das mais importantes e mais amplas. A figura central
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dessa corrente é, sem dúvida, Edmund Husserl, considerado seu pai. A fenomenologia nasce, de um lado, de uma desconfiança contra as construções especulativas do idealismo e do neokantismo e, de outro, da reação contra a aplicação de métodos das ciências singulares a problemas filosóficos. Entre os seguidores de Husserl, na fenomenologia, destacam-se Max Scheler e Maurice Merleau-Ponty. Outros servem-se da fenomenologia como método na corrente das filosofias da existência como Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Gabriel Marcel etc. como também representantes da hermenêutica e outros pensadores. O método fenomenológico foi aplicado em outros campos do saber como psicologia, sociologia, ciências religiosas e literatura. O termo fenomenologia apareceu, pela primeira vez, no Neues Organon (1764) de Johann Heinrich Lambert para designar a teoria da aparência. O fenômeno é concebido como a superfície visível por trás da qual se esconde ou manifesta parcialmente o real. Para Kant, fenômeno e fenomenologia remetem ao real, enquanto perceptível e cognoscível. A “coisa em si” permanece fora do alcance do conhecimento. O fenômeno não coincide com o real. Para Hegel, o fenômeno adquire significado ontológico. Para Husserl, o fenômeno é a única verdadeira realidade, pois ser é aparecer. 2.1
Edmund Husserl (1859-1938) Husserl dedicou-se totalmente à ciência e à filosofia. Estudou em
Leipzig, Berlim e Viena. Primeiro estudou matemática e física e, posteriormente, filosofia. Doutorou-se em matemática. Em 1886 habilitou-se em filosofia. Tornouse conhecido através de sua obra Investigações lógicas (2 volumes) publicada em 1900/01, garantindo-lhe uma cátedra em Gôttingen, onde reuniu um círculo muito participativo de alunos, entre os quais destacam-se Max Scheler, Edith Stein, A. Koyré e R. Ingarden. Seus alunos, contudo, não o acompanharam na transformação do método fenomenológico em uma filosofia transcendental que expressou, pela primeira vez, em Ideias para uma fenomenologia e uma psicologia fenomenológica (1913). Essa experiência e a da guerra levaram Husserl à crise. Em 1916 foi a Freiburg i.Br. onde ensinou até aposentado em 1928. Ai não formou mais círculo, a não ser de seus assistentes (L. Landgrebe, E.
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Fink). Heidegger, no qual primeiro depositara grande esperança de que levaria adiante seus propósitos, o decepcionou. Em vida, Husserl publicou poucas obras: Lógica formal e transcendental (1929), Meditações cartesianas (1931) e os primeiros capítulos de A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental (1936). Quando morreu, em 1938, muitos de seus manuscritos foram salvos da destruição nazista pelo franciscano belga H. L. Van Breda, pois Husserl tinha origem hebreia. Hoje esses manuscritos encontram-se no Arquivo Husserl de Lovaina e são publicados na coleção “husserliana” , na qual, até 2000, saíram 30 volumes. a) O problema colocado por Husserl A fenomenologia husserliana propõe-se descrever o modo como o mundo aparece para a consciência, sem nenhum pressuposto. Ela ilustra o debate entre a filosofia e a ciência. Desde o começo, Husserl tenta superar a oposição entre objetivismo e subjetivismo. Em sua época reinava um fascínio pelo ideal do conhecimento científico. Tentou satisfazer, de um lado, a objetividade do conhecido, seja ele de natureza ideal ou real, e a subjetividade da vida de conhecimento. No primeiro volume das Investigações lógicas (1900) critica a tese do psicologismo, que desde D. Hume e J. S. Mill influenciara grande parte dos filósofos do século XIX. A tese psicologista afirmava: a lógica resume as normas que valem para todo o pensamento correto, da mesma maneira que a arte da engenharia da construção repousa sobre a física, aquela se baseia na psicologia. As leis do pensável, originariamente, são leis do pensamento e essas são formas do funcionamento psíquico. Dessa maneira, a ciência dos fatos empíricos da psicologia torna-se metateoria da lógica. Husserl diz que tal reconstrução não satisfaz a especificidade de proposições lógicas, pois essas contêm verdades necessárias, puramente ideais, mas as proposições da psicologia são generalizações quase sempre vagas, que carecem de sólida fundamentação para interpretar a experiência. A psicologia pressupõe a existência de seus objetos e a lógica não pressupõe existência alguma. O psicologismo é, inevitavelmente, ceticismo enquanto suspende as condições de possibilidade de cada teoria, ou seja, a ideia de uma determinação
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objetiva do ser e a ideia de uma conclusão necessária. Com isso destrói seu próprio fundamento que, por outro lado, reivindica ingenuamente para si. Portanto, a psicologia, ciência empírica, não pode fundar a lógica e as matemáticas. A crítica que Husserl fez do psicologismo, na lógica, teve ampla aceitação, mas foi apenas um ponto de partida para sua distinção e correlação de determinados atos psíquicos (perceber, ver etc.) e os objetos aos quais se relacionam (sequência de números, peças musicais etc.). Os atos surgem e se desenrolam segundo determinadas leis do processo e de acordo com determinadas condições que a psicologia estuda. Os objetos dos atos não são objetos da psicologia, mas da matemática, da música, da lógica etc. Husserl propõe-se a tarefa de buscar uma fundamentação última da filosofia como ciência de rigor, como ciência dos fundamentos. O filósofo, segundo ele, deve orientar-se para o mundo interior, que chama transcendental , enquanto chama o mundo exterior de transcendente. O ser transcendente é o ser real ou empírico, enquanto o transcendental é o ideal, mas não fictício. Quer explorar este ultimo. Segundo Husserl, o filósofo deve buscar a evidência apodítica ou indubitável na subjetividade transcendental através da descrição dos fenômenos puros, ou seja, das vivências da consciência. Portanto, a fenomenologia não pretende estudar puramente o ser, nem a representação do ser, mas o ser tal como e enquanto se apresenta à consciência como fenômeno. b) A intencionalidade da consciência Os estados mentais são sempre dirigidos para além de si mesmos. Para Husserl, a consciência é intencionalidade, ou seja, somente existe como consciência de algo. Esse algo, que não é a consciência, mas nela se torna presente, chama de fenômeno. Nesse sentido tornou-se célebre o lema husserliano da “volta às coisas mesmas” ( zu den Sachen selbst ). Entende por coisa (Sache) não objetos físicos, mas o fenômeno como o imediatamente dado à consciência, isto é, como se apresenta ou manifesta à consciência. Trata-se de prescindir do empírico, de preconceitos e pressupostos, do singular e do
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acidental, para chegar às essências dadas, as quais são o objeto inteligível do fenômeno, captado numa visão imediata da intuição. A consciência é sempre consciência de alguma coisa, e essa intencionalidade tornou-se o eixo de sua nova metodologia filosófica. A fenomenologia envolve uma descrição pura dos conteúdos da experiência consciente. É preciso, contudo, suspender a crença do mundo natural e todas as suposições que ela produz para a experiência. Para fundamentar uma filosofia como ciência de rigor, segundo Husserl, exigem-se três condições: 1º Ausência de pressupostos A filosofia não começa com os textos de grandes filósofos, mas com os problemas da vivência da consciência, prescindindo do mundo exterior ou do que outros pensadores já disseram, pois teorias podem dificultar o acesso “às coisas mesmas” (fenômenos). A fenomenologia deve ser ciência dos fundamentos originários: “não é das filosofias que deve partir o impulso da investigação, mas, sim, das coisas e dos problemas” 7. Husserl constatou que em congressos encontram-se os filósofos, mas não as filosofias. Através da epoqué (redução) quer fazer da filosofia uma ciência autônoma e radical: Em nossas afirmações fundamentais nada pressupomos, nem sequer o conceito de filosofia, e assim queremos ir fazendo adiante. A epoqué filosófica, que nos propusemos praticar, deve consistir, formulando-o expressamente, em nos abstermos por completo de julgar acerca das doutrinas de qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas as nossas descrições no âmbito desta abstenção8.
2º Caráter a priori da fenomenologia A base das ciências empíricas ou dos fatos é a intuição de fatos individuais e a base para as ciências eidéticas é a evidência intelectual ou intuição eidética. A intuição eidética é um dar-se do eidos ou essência – objeto universal. 7 HUSSERL,
Edmund. A filosofia como ciência de rigor . Coimbra: Atlântida, 1965, p. 72.
HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura. Aparecida: Ideias e Letras, 2006, §18. 8
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A filosofia, para tornar-se uma ciência de rigor, não se deve fundamentar em dados empíricos, ou seja, nos fatos, mas num a priori universal. Husserl
parte
de
idealidades
porque
somente
essas
são
válidas,
independentemente da contingência dos fatos, para construírem aprioridade radical para a filosofia e para todas as ciências. Segundo ele, a consciência, ao ser estudada em sua estrutura imanente, mostra-se como algo que ultrapassa o plano empírico e emerge como condição a priori de possibilidade do próprio conhecimento, ou seja, como consciência transcendental. Por isso cabe à fenomenologia descrever a estrutura do fenômeno como fluxo imanente de vivências que constituem a consciência (estrutura constituinte). Enquanto a consciência transcendental constitui as significações é a priori de possibilidades de conhecimento. A fenomenologia torna-se ela mesma a priori das ciências. Em síntese, a fenomenologia não poderá recorrer a qualquer resultado científico como um dado disponível. 3º Evidência apodítica Por “evidente” costuma entender -se um saber certo e indubitável. A evidência é um critério de verdade e de certeza. Descartes afirma: Não aceitar nunca alguma coisa como verdadeira a não ser que ela se reconheça evidentemente como tal, isto é, evitar diligentemente a precipitação e a prevenção; e não compreender nos próprios juízos senão o que se apresenta tão clara e distintamente ao próprio espírito, que não se tenha nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida 9.
Para Descartes, a evidência se reduz à clareza e distinção de ideias, vinculando-a à intuição. Husserl, nas
Investigações, descreve-a como
“preenchimento de intenção” (II, 39). Afirma que a evidência surge quando há uma equação completa entre o pensado e o imediatamente dado. Em A ideia de fenomenologia diz que “o fundamental é não passar por alto que a evidência é esta consciência que efetivamente vê, que apreende (o seu objeto) direta e
9 DESCARTES,
René. Discurso do método, 2ª parte.
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adequadamente, que evidência nada mais significa que o adequado dar-se em si mesmo”10. Nas Meditações cartesianas esclarece: Tomando, como filósofo, meu ponto de partida, tenho para o fim presumido uma ciência verdadeira. Por isso, eu não poderia evidentemente nem afirmar nem admitir como válido juízo algum, se eu não o tomar na evidência, isto é, em experiências onde as coisas e os fatos em questão me são presentes, eles mesmos11.
Sem
evidência,
segundo
Husserl,
não
podemos
falar
de
fundamentação radical. E, para isso, não satisfaz qualquer evidência, pois exigese evidência apodítica, isto é, com ausência de qualquer dúvida. A fenomenologia é fundamento radical da filosofia e das ciências como atitude e como método de evidenciação. Para fundamentar, pois, uma filosofia como ciência de rigor, deve obedecer-se às condições de ausência de pressupostos, considerar o caráter a priori da fenomenologia e buscar a evidência apodítica. Por outro lado, a consciência é intencionalidade, ou seja, somente existe como consciência de algo. Assim a análise da consciência abrange a descrição de todos os modos possíveis de como alguma “coisa” ideal ou real é dada imediatamente à consciência. A fenomenologia husserliana parte da vivência da consciência: Toda a vivência inteletiva e toda a vivência em geral, ao ser levada a cabo, pode fazer-se objeto de um puro ver e captar e, neste ver, é um dado absoluto. Está dada como um ente, como um isto-aqui (Dies-da), de cuja existência não tem sentido algum duvidar 12.
Husserl desenvolve o método de mostração das estruturas implícitas na experiência para definir o conceito de intencionalidade como: a) consciência de algo; b) consciência de si mesmo. A partir de Descartes explica-se o conhecimento como relação entre duas coisas: a coisa que está na consciência (ideia) e a que está fora. A primeira é representação da segunda. Ora, Husserl abandona a ideia de representação, distinguindo, na consciência, o ato que 10
HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 88.
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HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas. Porto: Rés, s.d., p. 24.
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HUSSERL, A ideia da fenomenologia, p. 55-56.
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conhece (noese), que ao configurar os dados os dota de sentido, e a coisa conhecida (noema). O “objeto” (noema) é intencional, ou seja, está presente na consciência sem ser parte dela. É esta “coisa” que interessa à fenomenologia. Em Ideias I, Husserl expõe um exemplo: “Nosso olhar, suponhamos, volta-se com um sentimento de prazer para uma macieira em flor num jardim...” 13. Na atitude comum ou natural, tal percepção consiste em colocar primeiro a existência da macieira no jardim, depois em relação a essa macieira real a macieira
representada
na
consciência,
correspondente
à
real.
Como
consequência haveria duas macieiras: uma no jardim e outra na consciência. Para Husserl não acontece assim. Recorrendo à analise intencional, não partimos da macieira em si, porque dela nada sabemos, nem da macieira representada, porque dela também nada sabemos. É preciso partir das “coisas mesmas”, ou seja, da macieira-enquanto-percebida, ou seja, do ato de percepção da macieira no jardim, pois essa é a vivência originária. Através da epoqué (colocação entre parênteses) somente atendemos à percepção como vivência, prescindindo de suas relações reais. A única “coisa” que permanece é a percepção e o percebido, o visto desde um ponto de vista eidético (da essência) na “pura inconsciência” da consciência de minhas vivências. A radicalidade e universalidade do saber fenomenológico situa-se, pois, no plano da consciência, da subjetividade transcendental. Dada a bipolaridade imanente/intencional de toda a vivência, distinguem-se dois modos correlativos da investigação fenomenológica, embora de fato não haja separação real entre os mesmos: a) um orientado para a pura subjetividade (fenomenologia noética) e b) outro, orientado para aquilo que pertence à constituição da objetividade para a subjetividade (fenomenologia noemática). A intencionalidade da consciência, segundo Husserl, corresponde à correlação consciência-mundo, sujeito-objeto, mais originária que o sujeito ou o objeto, pois esses somente se definem nessa correlação. A intencionalidade fenomenológica é a visada da consciência e produção de um sentido que permite perceber os fenômenos humanos em seu teor vivido. A consciência, como “corrente de experiências vividas”, é inte ncional, ou seja, é consciência de algo. A 13
HUSSERL, Ideias para uma fenomenologia pura, § 88.
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intencionalidade da consciência é de natureza lógico-transcendental, significando uma possibilidade que define o modo de ser da consciência como um transcender, dirigir-se à outra coisa que não é o próprio ato da consciência. c) Reduções e epoqué A intencionalidade conduz à redução, ou seja, à colocação entre parênteses da realidade como a percebe o senso comum pela atitude natural . Nesta a consciência ingênua vê o objeto como exterior e real. Pela atitude fenomenológica, o objeto é constituído na consciência. E a fenomenologia é o estudo da constituição do mundo na consciência. Para Husserl, a fenomenologia é, antes de tudo, uma atitude, segundo a qual o mundo é nada mais do que o que ele é para a consciência, ou seja, fenômeno. Esse procedimento ele chama de epoqué. O filósofo não duvida da existência do mundo, mas o põe entre parênteses para não usá-lo como fundamento da filosofia como ciência de rigor. O problema da epoqué é o significado do mundo. Por isso, ao contrário de Descartes, para Husserl, do ego cogito apenas se pode concluir o cogitatum, pois a única coisa que é absolutamente evidente é o cogito com seus cogitata. A epoqué ou suspensão de juízo sobre a existência do mundo exterior é um aspecto, pois o outro é concentrar-se no mundo enquanto fenômeno, ou seja, como se apresenta à minha consciência. É a redução fenomenológica que nos proporciona evidência apodítica. A fenomenologia husserliana parte do mundo reduzido às vivências da consciência. Husserl propõe como princípio metódico descrever as vivências da consciência tais como se apresentam à reflexão de maneira imediata. Sua fenomenologia analisa dados inerentes à consciência, não especulando sobre cosmovisões. Funda-se na essência dos fenômenos e na subjetividade transcendental, pois as essências somente existem na consciência. Para chegar às essências, é preciso purificar o fenômeno de tudo que não é essencial, ou seja, é preciso reduzir o fenômeno à essência ( eidos). A essência se definirá pela análise mental como aquilo que é impossível à consciência pensar de outro modo. Essa invariante se identifica através das diferenças, definindo a essência dos
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objetos dessa espécie. Esse processo Husserl chama de variação eidética para chegar à redução eidética, ou seja, obter uma essência purificada. Para atingir o terreno firme das evidências apodíticas, terei que “por entre parênteses” a própria existência do eu e de seus atos, a fim de chegar ao eu absoluto, o eu transcendental e, com ele, à experiência genuinamente filosófica. Esta é a redução transcendental . Através dela chegamos ao contato imediato com as “coisas” que se nos apresentam na sua evidência originária na consciência. Não mais possuímos simplesmente o mundo, mas apenas a consciência de mundo. O filósofo, segundo Husserl, deverá concentrar sua atenção para esse novo mundo da “consciência pura”. Durante seu trabalho paciente aparece, em primeiro plano, a questão de como o mundo real em sua temporalidade, na sua consistência intersubjetiva e na sua objetividade é construído em nossa consciência. As reduções, que suspendem à adesão à existência exterior do mundo e das coisas, decorrem da estrutura intencional da consciência, que faz de qualquer objeto um correlato da consciência, e a busca dos fenômenos como essências e significações, tende ao idealismo. d) A crise O pensamento de Husserl passou por longa e profunda evolução. No período de 1934-37, já aposentado, dedicou-se ao tema da “crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendent al”. Perseguiu a origem da ruptura entre um objetivismo fisicalista e o subjetivismo transcendental. Segundo ele, há uma herança histórica, que é o objetivismo científico, mas, por outro lado, há um esquecimento trágico, que é o mundo da vida ( Lebenswelt ). A crise das ciências significa uma crise da civilização ou da humanidade europeia. E a origem dessa crise, segundo ele, é a convicção de que “a verdade do mundo apenas se encontra no que é enunciável no sistema de proposições da ciência objetiva”, ou seja, no objetivismo. Husserl opõe o “mundo da vida” ao “mundo da ciência” e fundamenta o último no primeiro, pois o mundo da vida é anterior, mais rico e mais amplo que o mundo da ciência. A própria ciência emerge de algo anterior a ela mesma, do campo das experiências pré-científicas, isto é, de um a priori concreto, que chama
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de Lebenswelt . Tenta, pois, reconduzir a ciência à sua origem no mundo da vida. Este é a fonte do sentido dos conceitos científicos. Ocupar-se com o mundo da vida, na atitude fenomenológica, é ocuparse com o mundo como tem lugar para nós na consciência; a fenomenologia não investiga tanto o mundo em seu ser, quanto seu sentido. A ciência do mundo da vida é a ciência da subjetividade como fundamento de toda e qualquer objetividade. O mundo da vida é o mundo histórico-cultural concreto, sedimentado intersubjetivamente em usos e costumes, saberes e valores, entre os quais se encontra a imagem do mundo elaborada pelas ciências. O Lebenswelt é o âmbito de nossas originárias “formações de sentido”, do qual nascem as ciências. Para Husserl, o erro do objetivismo foi esquecer o mundo da vida. Tenta recuperar o mundo da vida através do regresso ao mundo que precede a conceitualização metafísica e científica, ou seja, integrar o mundo da ciência no mundo da vida. Por um lado, é o mundo da experiência feita pelo homem, significando uma realidade rica, polivalente e complexa, que o próprio homem constrói. Por outro, ao mesmo tempo, é constituído pela história, linguagem, cultura, valores etc. O Lebenswelt , para Husserl, é a priori das ciências, cujos resultados passarão a integrar o mesmo. As ciências, por sua vez, apresentam uma visão do mundo na qual predomina o objetivismo, a quantificação, a formalização, a tecnificação. Entre ambos, entre o mundo da vida e o mundo da ciência, instaurase um processo dialético. O mundo expresso no modelo científico, interpretado por uma ideologia ou cosmovisão, permanece mundo, mas é um mundo mutilado ou parcial. É um empobrecimento da realidade rica do mundo da vida do qual não deixa de ser um ato derivado. O sentido da ciência, em última instância, legitimase no mundo da vida. A crítica de Husserl ao objetivismo da ciência gira em torno de dois pontos: a) o esquecimento do sujeito e de seu mundo vital; b) a perda da dimensão ética, pois o método matemático objetivista renuncia explicitamente a tomar posição sobre o mundo do dever-ser. Segundo Husserl, a crise das ciências europeias é uma crise de sentido. Ele afirma que a história do pensamento moderno é uma busca do sentido da vida humana, ou seja, uma teleologia. O lugar da crise é o projeto de vida, o mundo ético-político, porque o mundo da ciência foi separado do mundo
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da vida concreta. Refletir sobre a história, segundo ele, equivale a meditar sobre seu sentido. Dessa maneira, a filosofia husserliana da história sustenta-se pela ideia de finalidade ou telos. O telos ou fim que orienta a história da humanidade europeia, desde a antiga Grécia, consiste na realização da razão mediante a elaboração de uma filosofia concebida como saber fundamental, uno e universal. A ciência e a técnica modernas esqueceram o telos. Husserl diagnostica a crise e apresenta a fenomenologia como método para superá-la. Com ela pretende retornar do mundo artificial e abstrato do objetivismo científico ao mundo da vida, baseando o saber fundamental no campo das experiências pré-científicas e originárias. Pretende restituir o sentido originário às ciências a partir da “função fundante” do mundo da vida, que é o problema anterior e universal para todas as ciências. A fenomenologia entende-se na função de “filosofia primeira” que tematiza a subjetividade transcendental enquanto origem e raiz de toda a intencionalidade e sentido, pois a ciência é um produto humano que parte de uma intuição pertencente ao mundo da vida, fundamento último da ciência. 2.2
Max Scheler (1874-1928) A filosofia de Husserl não teve seguidores no sentido intencionado por
ele, mas exerce uma influência ampla e profunda em todo o mundo. Ele formara um círculo de estudos fenomenológicos em München e Göttingen dos quais participou Max Scheler. A obra de Scheler abrange a área do conhecimento, da metodologia das ciências do espírito, da ética, da religião, da filosofia, da história e da sociologia. Suas obras completas foram publicadas em 15 volumes. a) Aspectos biográficos Max Scheler estudou psicologia, medicina, sociologia e filosofia. Em 1901 começou sua atividade docente como Privatdozent (livre-docente) na Universidade de Jena. Em 1907, transferiu-se para Munique e passou a integrar um grupo de jovens fenomenólogos. Depois da primeira guerra mundial foi professor de filosofia e sociologia na Universidade de Köln. Era fascinado por
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múltiplos problemas e seu espírito fascinava amplos círculos. Distanciou-se do ideal metódico rigoroso orientado para o transcendentalismo de Husserl. Para ele, fenomenologia era, em primeiro lugar, doação ao objeto, arte de descrição de fenômenos vivenciais em vista à multiplicidade de estruturas de sentido implicadas; aprofundou a epoqué fenomenológica no sentido clássico da diferença entre existência e ser dessa ou daquela maneira para uma metafísica. Tentou absorver os impulsos da filosofia da vida (Dilthey, Nietzsche, Bergson e Simmel) sem sacrificar o específico do espírito. Inicialmente, seus ensaios se baseiam na convicção de que o pensamento ocidental paga os sucessos no aspecto técnico ao preço de uma impotência criadora. Abre-se um abismo entre as forças da inteligência e as do instinto, sendo necessário restaurar, com rigor, a ordem dos valores morais e espirituais. De sangue hebreu, descobriu a fenomenologia e o catolicismo. A fenomenologia que Husserl ensinara em Goettingen, desde 1905, propunha uma noção de “consciência intencional” para superar a fissura entre o sujeito e o obje to do conhecimento. Além disso, implica um método de “redução transcendental” que tende a libertar o sujeito de seus preconceitos e o objeto de suas deformações para um encontro autêntico. Scheler impressionou-se com a intensidade de reflexão e a precisão das descrições da fenomenologia husserliana, decidindo-se a aplicar os novos instrumentos de reflexão aos atos emocionais da consciência moral e religiosa. A conversão ao catolicismo, em 1906, renovou seu entusiasmo para perseguir a ordem de verdades eternas que a fé instaura. Scheler ofereceu uma visão espiritual um tanto ingênua, unida às aspirações do coração e confortada pelo testemunho das grandes figuras da tradição cristã. b) Obra e pensamento Aos poucos surgiram suas principais obras: Formalismo na ética (1907), na qual usa o método fenomenológico para uma crítica de Kant, defendendo a ideia de que há valores morais objetivos, apreendidos através de sentimentos; Essência e formas da simpatia (1913), que trata da simpatia. A simpatia como intenção, visão e participação afetiva, é a forma concreta de viver
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a ordem do mundo, a presença do outro, o segredo da pessoa e o enigma de Deus. É um dos laboratórios nos quais o homem começa a identificar a matéria e o espírito, a alma e o corpo, a sociedade, o divino. Os gênios afetivos, como S. Bernardo ou S. Francisco de Assis, pela simpatia, celebram o encontro do eros e do ágape. São os modelos católicos, segundo Scheler, de uma espiritualização da vida e de uma vivificação do espírito. Sua experiência da “f onte emocional originária”, assumida intencionalmente, ajuda a verificar a “materialidade” dos valores morais. A fenomenologia inspira-se neles quando trata de constituir seus objetos para alcançar a essência (Wesenschau). Este é o tema do qual Scheler trata num conjunto de ensaios intitulado Der Formalismus im der Ethik und die materiale Wertethik (O formalismo na ética e a ética material dos valores), publicada em 1913-16. Parte desse livro critica a ética kantiana, que é formalista, rigorista, imprópria para o amor, fechada à graça. Outra parte apresenta uma fenomenologia aplicada para apreender em sua qualidade intencional diversos “elos afetivos”. O conhecimento exato dos modos de ser do “ressentimento”, do “sofrimento”, da “vergonha”, do pudor, do arrependimento e do amor, educa para o espírito de plenitude; funda o reino dos valores na consistência de uma materialidade original; ajuda ao sujeito a conhecer-se como forma de participação no ato que é o absoluto, o eterno. A fenomenologia axiológica de Scheler afeta a crença. Os valores intencionados opõem-se e se fortalecem. Dóceis à norma da relação com o divino, manifestam a existência de uma ordem. Sem dúvida, segundo Scheler, as grandes figuras da tradição alteram a ordem construída. Em diferentes graus, o herói, o gênio e o santo transformam o conjunto dos valores. As páginas do ensaio intitulado A reviravolta dos valores (1919) corrigem o juízo de Nietzsche sobre o cristianismo. A resposta de Scheler à critica de Nietzsche mira no coração: o cristianismo inverteu o sentido do amor. A realidade inimaginável da encarnação, tornada efetiva pelo ágape, é um movimento para o pobre, o doente e o pecador. A caridade de Jesus e do cristianismo, essencialmente distinta do desapego de Buda e dos budistas, aparece claramente na predileção pelos débeis. A doação de si mesmo não é uma debilidade. Não se produz nas perversões do altruísmo, na benevolência humanitária, mas no transbordamento feliz do ser que modificou o mundo e abriu um acesso à fonte. Essa tendência caritativa, longe de ser a “fina flor do
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ressentimento”, testemunha a soberana independência dos valores liberados das formas demasiado humanas da aristocracia do coração, do espírito, do gesto. “Cristo não possui a verdade, mas é a verdade com todo carát er concreto de sua pessoa”. A beatitude do reino, já participada, constitui uma paixão do ser entre o sofrimento e o gozo. É um ato eterno. Scheler investiga a atitude religiosa do homem na obra Vom Ewigen im Menschen (Sobre o eterno no homem, 1921). Em O lugar do homem no cosmo (1928), mostra como Deus, o homem e o mundo formam um único processo de vi-a-ser. A reflexão axiológica e a fenomenologia dos atos afetivos, que originaram a teoria da simpatia intencional, levaram Max Scheler ao conceito de pessoa, não a reduzindo à razão da tradição clássica, nem ao sujeito transcendental kantiano, nem à alma-substância cartesiana, nem à esfera psicofísica. Rejeitando o formalismo kantiano, pretende construir um personalismo moral com base fenomenológica. Admite uma intencionalidade emocional pura, dirigida diretamente para as essências que são os valores. Para ele, pessoa é uma essência singular, supraconsciente, irradiadora de atos intencionais, centro de valorizações. Os valores morais realizam-se não apenas numa pessoa isolada, mas numa comunidade de pessoas, num todo hierarquizado, cujo termo supremo é Deus. A pessoa individual, que percebe os valores, é a portadora dos valores. O sentido do amor, o valor supremo, permite que a pessoa tenda a Deus. A pessoa é uma essência da esfera ideal. Scheler rejeita o conceito aristotélico de colocar os atos intencionais num sujeito substancial, pois, para ele, pessoa é pura atualidade, que sempre coloca em jogo toda a per sonalidade e, por isso, não pode ser objetivada. Além da pessoa humana individual também conhece pessoas coletivas (igreja, nação, etc.) e, uma pessoa das pessoas que garante a realização espiritual do mundo e a compreensibilidade mútua das pessoas: Deus. A esfera ideal, na qual a pessoa realiza sua vida, caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo amor e não pelo conhecimento. c) A antropologia filosófica Chegado à maturidade, Scheler voltou-se ao estudo do homem em sociedade em As formas do saber e a sociedade (1926). A fenomenologia
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scheleriana, aplicada às realidades da vida coletiva, critica a intencionalidade cativa da ideia do progresso social. Neste sentido contribui na orientação dos sociólogos para o campo e para os objetos de uma sociologia da cultura. Sua originalidade consiste em considerar a natureza, a pessoa e a sociedade em reciprocidade. Esse projeto motivou, talvez, sua antropologia filosófica A posição do homem no cosmos (1928), projeto interrompido por sua morte. Essa obra tem como objetivo acompanhar os resultados obtidos pela biologia, no começo do século XX, para mostrar como o homem não pode ser pensado simplesmente a partir desses resultados, pois para determinar seu lugar no todo é preciso abordar a dimensão do interior de uma outra experiência: a metafísica. Caracteriza, (...) o homem como o ser vivo que, por força de seu espírito, pode se comportar em princípio asceticamente em relação à sua vida, à vida que o faz estremecer violentamente, subjugando e reprimindo os próprios impulsos, isto é, recusando-lhes alimento através das imagens perceptivas e das representações. Comparado com o animal que sempre diz “sim” ao que está realmente aí onde se atemoriza e foge, o homem é aquele que pode dizer “não”, ele é o asceta da vida, aquele que protesta eternamente contra toda mera realidade14.
O homem é um ser aberto. O pensamento de M. Scheler, que estimula a profundidade do homem e da fé, provoca simpatias. Em 1953, Karol Wojtyla, depois papa João Paulo II, dedicou-lhe sua tese doutoral com um título significativo:
O sistema
fenomenológico de Max Scheler pode servir como instrumento para uma ética cristã? Scheler exerceu grande influência na filosofia posterior através de sua doutrina dos valores, do personalismo ético, sendo tido como um dos fundadores da disciplina de Antropologia Filosófica. 2.3
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) A ideia da fenomenologia encontrou terreno fértil na França, um terreno
preparado pela filosofia da reflexão desde Descartes, passando por Maine de Biran até Bergson. Em 1929, Husserl proferiu palestras na Sorbonne que, SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Rio de Janeiro: Forense Univ., 2003, p. 5253. 14
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traduzidas por E. Levinas, foram publicadas com o título de Meditações cartesianas. Maurice Merleau-Ponty desenvolveu a fenomenologia na França e a transformou numa perspectiva ontológica. De 1949 a 1952 foi professor de Psicologia e de Pedagogia na Sorbonne. De 1952 até sua morte foi professor no Collège de France. Suas principais obras são: A estrutura do comportamento (1942), Fenomenologia da percepção (1945) e O visível e o invisível (1964). Em 1945, juntamente com Sartre, fundou a revista Les Temps Modernes. Durante longo tempo, foi considerado existencialista porque amigo de Sartre. Apesar de sua morte prematura, deve ser considerado o maior dos fenomenólogos franceses. Exerceu progressiva influência nos pensadores através do “novo sentido da palavra sentido”, da nova maneira de pensar o ser e da concepção da linguagem dela decorrente. Em A estrutura do comportamento, sua tese de doutoramento, está implícita sua nova ontologia. Na introdução afirma: “Para compreender as relações da consciência e da natureza – orgânica, psicológica ou mesmo social – deverá apelar-se para uma reabilitação ontológica do sensível, para uma racionalidade encarnada”. Se a problemática inicial é de índole psicológica, a obra tem como objetivo a crítica das concepções fisiologistas do comportamento e a definição do comportamento em termos de estrutura. Em sua análise crítica da noção de estrutura sugere uma realidade que o pensamento filosófico tradicional não consegue captar. Trata-se de uma realidade que não é puramente coisa, nem puramente ideia. Por isso, tem a vantagem de ultrapassar a antítese do empirismo e do racionalismo. Por um lado, a estrutura do comportamento desemboca na fenomenologia da experiência perceptiva e, por outro, precede as investigações sobre a natureza e o logos. A filosofia de Merleau-Ponty pode ser caraterizada como uma filosofia do corpo vivido ou do sujeito corporal. Ele foi o primeiro filósofo que fez do corpo o tema central de uma análise filosófica detalhada. Isso ofereceu-lhe uma perspectiva original, a partir da qual pode repensar questões clássicas como a natureza do conhecimento, da liberdade, da linguagem, etc. Desde logo, também enfatizou a insuperável ambiguidade e contingência de todo o significado e verdade, a ponto de ser chamado filósofo da ambiguidade.
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O ponto de partida da filosofia de Merleau-Ponty é a crítica ao cientismo e ao criticismo, tendo a percepção como o conhecimento radicalmente fundamentador, pois ela situa-se na zona pré-consciente do sujeito. Contra o cientismo (sinônimo de atomismo e mecanicismo) afirma o princípio da intencionalidade e da Gestalt (forma). Por outro lado, combate a tese do criticismo de que toda a forma no empírico é o resultado de uma formação do material múltiplo da percepção pelas formas que o sujeito intelectual desenvolve de maneira autônoma. Ele busca o ponto de equilíbrio, perdido por ambas as teorias opostas, no sujeito estruturado e estruturante de si mesmo. Desenvolve o conceito fenomenológico da intencionalidade de maneira criativa. Merleau-Ponty encontrou em Husserl os argumentos decisivos contra a autocompreensão objetivista da psicologia e, ao mesmo tempo, no conceito de síntese passiva, uma interpretação da conexão mútua entre sujeito e mundo. Rejeita, contudo, a crença de Husserl numa possível autotransparência da consciência. Para ele, a redução fenomenológica é possível apenas parcialmente. Vê a limitação de Husserl em seu projeto iluminista radical, pois contra a identificação do ser com o objetivo torna-se outra vez claro que existe um ser bruto (être brut ) e uma subjetividade selvagem (esprit sauvage). Até em nosso esforço espiritual, para superar a contingência impenetrável do que é, ainda permanecemos no prolongamento de uma subjetividade natural-anônima. A camada permanente de nossa dinâmica técnico-intelectual é a dinâmica da corporeidade através da qual estamos arraigados na realidade pré-objetiva. Até podemos imaginar-nos o funcionamento do nosso corpo e do mundo corpóreo, mas permanecemos vinculados à natureza viva. Sinal disso é a percepção sobre a qual construímos toda a teorização. A fenomenologia da percepção é a obra mais elaborada de MerleauPonty. Ele inicia o prefácio perguntando: O que é a fenomenologia? Responde: Pode parecer estranho que ainda se precise colocar essa questão meio século depois dos primeiros trabalhos de Husserl. Todavia, ela está longe de estar resolvida. A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”. É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o
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mundo já está sempre “aí”, antes da reflexão, como uma presença inalienável...15
Numa recriação da fenomenologia, Merleau-Ponty descreve a percepção como experiência originária do sentido radicalmente fundamentador, pré-reflexivo. A experiência perceptiva é existência, pacto originário eu-mundo. A tese central é a “primazia da percepção”. Afirma que as funções mais elevadas da consciência estão enraizadas na existência corporal pré-reflexiva do sujeito, ou seja, dependem dela. Para ele, o corpo vivido não é um objeto distinto do sujeito cognoscente, mas é o sujeito cognoscente original. O sujeito corpóreo está animado por uma intencionalidade operante, que o une inseparavelmente ao mundo da vida. Pela experiência perceptiva mergulhamos na espessura do presente pré-objetivo, num mundo anterior ao conhecimento, em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, simbólica e dependente. É a experiência primordial de nós mesmos e do mundo que a fenomenologia quer descrever: “É a experiência ainda muda que se trata de trazer à expressão pura do seu próprio sentido”. A redução eidética, que desemboca no assombro perante o mundo, se traduz na ambição de igualar a reflexão à vida irrefletida da consciência. Em
Fenomenologia
da
percepção,
Merleau-Ponty
busca
a
redescoberta do corpo através de uma filosofia concreta. Contra a filosofia da reflexão de Descartes, diz que antes de nos ocuparmos com a consciência ou com a própria ciência, pelo nosso corpo já estamos vinculados indissoluvelmente ao mundo. Afirma que as funções mais elevadas da consciência estão enraizadas na existência corporal pré-reflexiva do sujeito: “Toda consciência é perceptiva, at é a consciência de nós mesmos”. Tentou mostrar que ciência e técnica são derivadas dessa situação originária e, por isso, secundárias em relação à percepção e nosso ser-no-mundo. Para ele, o corpo não é objeto da consciência, mas é o corpo que projeta um mundo ao seu redor, pois é o sujeito da percepção. Fundamenta todas as aquisições intelectuais e culturais na vida pré-reflexiva e pré-pessoal do corpo. Merleau-Ponty entende a linguagem não a partir da função figurativa, mas como decorrente de experiências corpóreas. Na fase de
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 1. 15
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envolvimento político, em Humanismo e terror (1947) questiona se as metas humanas podem ser atingidas através de meios desumanos. Em O visível e o invisível (1964), obra póstuma, Merleau-Ponty abandona a fenomenologia da percepção em favor de uma ontologia da visão, rejeitando uma filosofia da consciência, ainda presa a uma teleologia. Rejeita, outrossim, um cogito tácito que se aceitava como fonte do sentido originário, em favor de um ser afinalista. O nexo visível/invisível remete para a linguagem, em cujas virtudes repousa a descrição do silêncio. Ele verifica que a percepção deve inserir-se numa realidade que a precede e excede. Essa realidade é o ser. Inspirado na noção de corpo próprio, afirma que a “carne do mundo” é um elemento fundamental deste ser, a sua face visível. O ser é algo que sempre se esconde no momento preciso em que se manifesta. Por isso, não pode ser objetivado, sem um “ser bruto”, um “espírito selvagem”. O pensamento de Merleau-Ponty é uma ontologia sem metafísica. A busca de um sentido originário permanece interna, nunca se dirige à transcendência. Busca as origens essencialmente no passado, tentando reabilitar o ontológico ao mesmo tempo que denuncia as ruínas do ser racionalista. Ele entende a fenomenologia como uma filosofia que reintegra as essências na existência e que sabe que só poderá compreender o homem e o mundo a partir de sua facticidade. O mundo sempre já está aí. Sobre ele cabe a reflexão filosófica. Um dos conceitos centrais da filosofia de Merleau-Ponty é o de ambiguité (ambiguidade) para designar o caráter paradoxal e antilógico da existência. O movimento fenomenológico iniciado por Husserl abrange, pois, diferentes correntes. Na sua essência, consiste numa análise e descrição das vivências da consciência, mas, também, é um método para abordar a existência concreta, a tentativa de dar uma descrição direta de nossa experiência, tal e qual ela ocorre. Nesse sentido, por exemplo, o alemão Rudolf Otto descreveu a experiência religiosa em O sagrado16 e o romeno Mircea Eliade em O sagrado e o profano17. O certo é que o método fenomenológico tornou-se fecundo em outros 16 OTTO, 17
Rudolf. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa: Livros do Brasil, s.d.
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campos do saber humano como, por exemplo, na psicologia, na sociologia e na teoria literária. Apesar da diversidade de compreensão e uso do método, alguns aspectos são comuns à maioria de seus representantes: a) a maioria admite a diferença entre a atitude natural e filosófica; b) a filosofia tem uma tarefa fundamental na relação com as ciências; c) para realizar esta sua tarefa, a filosofia deve realizar certa redução, dirigindo sua atenção do sentido objetivado das ciências para o significado como é experimentado na vida real; d) todos os fenomenólogos apoiam a doutrina da intencionalidade, embora a entendam de diferentes maneiras; e) os fenomenólogos concordam que a preocupação básica da filosofia deve responder à questão do “sentido do ser e do Ser dos entes”, dando uma posição privilegiada à subjetividade; f) todos defendem determinada forma de intuicionismo.
Referências Bibliográficas
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III FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA
A primeira guerra mundial arrasou a Europa, sobretudo a Alemanha, e, por essa experiência, o homem europeu começou a desconfiar dos sistemas abstratos, vivendo no medo, no desespero, na consciência de culpa e no cuidado. Neste contexto surge, de maneira nova, a velha pergunta pelo sentido da existência humana. As filosofias da existência, no século XX, não constituem uma escola, nem uma corrente, pois trata-se de um conjunto de filosofias que têm em comum o instrumento usado: a análise da existência. Elas divergem nos pressupostos e nas conclusões. Por existência entendem a maneira de ser própria do ser humano enquanto é seu modo de ser no mundo. A existência é considerada em termos de possibilidade. Essas filosofias surgem a partir da primeira guerra mundial e atingem seu apogeu nos anos de 1950 e 1960. No fim da primeira guerra, o homem europeu sente-se aviltado e, vivendo na angústia e no medo, questiona os valores da civilização que criara. E a segunda guerra somente agravou esse sentir do aviltamento e o do desespero. Uma caraterística comum dessas filosofias é tematizarem uma vivência muito pessoal e, por isso, variável de filósofo para filósofo, seja a angústia (Heidegger), a náusea (Sartre), a fragilidade (Jaspers), etc. A existência é sempre individual, singular, subjetiva, finita, mas não se define... Ela sempre se refere a uma situação, seja na relação com o mundo ou com os outros. Cada pensador vê o ser humano concreto dentro de determinada perspectiva, que é a sua, na situação concreta de sua experiência. Martin Heidegger (1889-1976) radicalizou a fenomenologia de Husserl, transformando-a numa ontologia fundamental, mostrando que o homem primeiro
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vive, mas como ser finito, intramundano e carente de cuidados. Ele sempre se encontra numa compreensão do ser mediada culturalmente. Ele suporta o medo da morte para tornar-se essencialmente homem. Hans Jonas (1903-1999), aluno de Heidegger, seguiu um caminho próprio. Karl Jaspers (1883-1969), médico psicanalista de formação, colocou a transcendência em primeiro plano. Ocupou-se com os grandes filósofos e sistemas de pensamento para descobrir questões existenciais permanentes. Hannah Arendt (1906-1975), aluna de Jaspers, em sua filosofia existencial acentua a possibilidade de um novo começo a cada momento. Atacou a banalidade do mal. O ponto de partida de Heidegger e Jaspers encontrou eco na França, onde o terreno já fora preparado por Gabriel Marcel (1889-1973). Além disso, o filósofo russo Alexandre Kojève (1882-1964) ensinara, em Paris, uma interpretação exitencial-fenomenológica de Hegel. Na década de 1930, Kojève também influenciou M. Merleau-Ponty. Depois da experiência com sistemas totalitários, Jean-Paul Sartre e Albert Camus desenvolveram uma concepção individualista e ateia da filosofia da existência, questionando tudo que transcendesse o individual. Para eles, a única meta, nesta vida, era ser o mais autêntico possível. Camus, em Mito de Sísifo, tenta mostrar o absurdo da existência, dizendo que o suicídio é a questão filosófica mais séria. De maneira geral, pode dizer-se que as filosofias da existência nascem “como uma reação da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das ideias e da filosofia das coisas”18. O conceito de existência é usado pelos representantes desse modo de pensar, no sentido kierkegaardiano, como maneira de ser própria da existência humana, da existência como possibilidade. A filosofia da existência coloca a questão do Ser e parte do ser humano que sempre se encontra na tensão entre dado e tarefa. Filosofia é ontologia. É difícil dizer onde começa e onde termina a filosofia da existência. Além dos nomes citados, pode falar-se da filosofia da existência de pensadores russos no exílio, como Leo Chestow (1866-1938) e Nicolai Berdjajev (1874-1948) e dos espanhóis Miguel de Unamuno (1864-1936) e José Ortega y Gasset (188318 MOUNIER,
Emmanuel. Introdução aos existencialismos. São Paulo: Duas Cidades, 1963, p. 11.
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1955). Como Kierkegaard e Nietzsche, também escritores como F. M. Dostoievski (1821-1888), Rainer Maria Rilke (1875-1926) e Franz Kafka (1883-1924) anteciparam ideias da filosofia da existência. Todos eles tentam mostrar que o ser humano deve ser pensado em outras categorias que o ser das coisas. Por isso, existência designa sempre o modo peculiar de ser do homem singular, sem isolálo do resto. Aqui abordaremos brevemente os representantes mais expressivos. 3.1 Martin Heidegger (1889-1976) Heidegger pergunta pelo sentido do Ser no ambiente da década de 1920, na Europa continental, ou seja, numa situação de crise econômica, desemprego de massas e num clima político de tensão, pois os bolcheviques assumiram o poder na Rússia (1917), a república de Weimar encontrava-se impotente. Nessa situação aparece o Sein und Zeit (1927), a principal obra de Heidegger. a) Vida Martin Heidegger nasceu em Messkirch (Baden), pequeno vilarejo, no Sul da Alemanha, em 1889. De 1909-1911 estudou em Freiburg, primeiro teologia católica e depois ciências e filosofia. Ele acompanhava a evolução de seu tempo e refletia sobre ela. Ocupava-se com poesia, com a arte literária e com a pintura. Elaborou sua tese de habilitação sobre A doutrina das categorias e da significação de Duns Scotus (1915). Em 1919 tornou-se assistente de Edmund Husserl; em 1923, professor na Universidade de Marburg e, em 1928, sucessor na cátedra de Husserl em Freiburg i. Br. Decisivo para Heidegger e a filosofia atual é sua obra principal Sein und Zeit (Ser e Tempo). Essa obra estava projetada para ter duas partes: a primeira, que foi publicada, interpreta a existência humana ( Dasein) como base para uma teoria geral do Ser; a segunda, que nunca foi escrita, exporia as linhas fundamentais de uma “destruição” fenomenológica da histó ria da ontologia. Contudo, podem considerar-se, nessa linha do projeto da segunda parte, seus
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escritos Kant e o problema da metafísica (1929), Da essência do fundamento (1929) e Que é Metafísica? (1930). Com a publicação de Hölderlin e a essência da poesia, em 1936, Heidegger realiza uma viragem na sua filosofia, viragem que não rompe a continuidade, mas significa uma mudança de acento nos temas e o aparecimento de novos horizontes. Ele não fornece conceitos prontos, mas ensina a perguntar filosoficamente, de tal modo que apresenta a história da filosofia clássica em uma nova perspectiva. Em Ser e Tempo desenvolve uma ontologia fundamental, ou seja, uma análise da existência humana. Diz que o sentido da existência humana é determinado pela temporalidade. Sendo ser-para-a-morte, o homem sempre de novo deve decidir qual existência quer viver, pois ele é o ente que somente leva uma vida autêntica se encara decididamente a temporalidade ( Zeitlichkeit ). Em 1933, ano em que Adolf Hitler foi eleito chanceler da Alemanha e o socialismo nacionalista assumiu o poder, Heidegger ingressou no partido e, no mesmo ano, foi eleito reitor da Universidade de Freiburg. Na posse pronunciou um discurso de impacto sobre A autoafirmação da Universidade alemã, esperando uma renovação espiritual da Alemanha, através do regime de Hitler. Por isso, depois da guerra foi destituído de sua função docente e proibido de ensinar até 1951. Mas, já em 1934, decepcionado com a política, renunciou ao reitorado e começou a formular uma crítica radical ao pensamento a serviço do poder. Depois da decepção com o socialismo nacionalista, Heidegger redescobriu Hölderlin e os gregos pré-socráticos. Neles encontra algo da abertura do ser. Conceitos como acontecimento, iluminação do ser e o homem como pastor do ser indicam que, depois da viragem, buscava uma filosofia que se distanciasse ainda mais do sujeito pensante. b) Ser e Tempo Em Ser e Tempo, Heidegger reabre a questão do sentido do ser e declara que a grande tradição filosófica do Ocidente esqueceu essa questão fundamental desde os antigos gregos. Diz que hoje, depois de séculos, ainda não temos resposta para a questão do sentido do ser. O homem ocidental perdeu a
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sensibilidade para perguntar: o que é o ser? Segundo ele, ao interrogar-se pelo ser, o homem interroga-se a si mesmo, torna-se o centro da reflexão, pois é o único que coloca a questão do ser e do sentido. Entretanto, não mostra um interesse direto pela antropologia. O homem está no centro de sua reflexão porque ele é o centro privilegiado em que o ser aparece a si mesmo e se revela. Somente desvelando o ser do homem, temos a possibilidade de abrir o caminho para a compreensão do ser em geral. Por isso o homem é o Dasein, literalmente o “ser -aí”, o lugar no qual o ser se manifesta a si mesmo. Ele usou a expressão Dasein para designar o modo original da consciência humana, por estar sempre já no mundo, não separado dele. O Dasein, embora parcialmente determinado pelo passado, sobre o qual carecemos de controle, mas pelo qual ele é constituído, também tem um sentimento de liberdade em relação ao futuro. Nesse sentido, ele também é constituído, no presente, por seu futuro aberto e possível, e pela responsabilidade que o acompanha. Não é apenas factualidade, mas também possibilidade rumo ao futuro. Se negligenciamos o passado e o futuro, perdemo-nos no envolvimento da lida cotidiana do presente. Por isso, o tempo humano em sua totalidade exige consideração cuidadosa, se realmente quisermos compreender a verdadeira natureza do ser. Mas nosso tempo é limitado. Heidegger enfatiza a realidade vivida de nosso ser, num mundo que não é de nossa própria escolha. O Dasein designa uma existência encarnada, situada no tempo e num contexto com outras pessoas. Em Ser e Tempo, pela análise fenomenológica das estruturas da existência humana, busca a via de acesso para a descoberta do Ser. Na primeira seção descreve a vida cotidiana do homem, que o autor considera a existência inautêntica. Esta carateriza-se pela facticidade, a existencialidade e a ruína. A facticidade consiste no fato de o homem ser jogado no mundo sem a participação de sua vontade. A existencialidade é constituída pelos atos de apropriação das coisas do mundo por parte de cada indivíduo. A ruína significa o desvio de cada indivíduo do seu projeto essencial em favor das preocupações cotidianas, que o distraem e perturbam. Confundindo-se com a massa coletiva, o indíviduo esquece de tornar-se si-mesmo. Com isso o homem torna-se preguiçoso e prefere vegetar na banalidade, exilado de si mesmo e do ser.
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Na segunda seção, cujo núcleo central se carateriza pelo conceito de angústia, o autor tenta desvendar a existência autêntica do homem, aquela que o faz o verdadeiro revelador do ser. Ele descreve as dimensões afetivas do ser: as experiências do tédio, da angústia, da culpa e do medo. A angústia não tem coisa alguma como causa, mas sua fonte é o mundo como um todo. Aponta para o nada e faz o homem sentir-se um ser-para-a-morte. Por isso a angústia coloca o homem perante a alternativa: ou retornar para a cotidianeidade, esquecendo o ser, ou superar a angústia, desenvolvendo seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo, atribuindo um sentido ao ser. Para Heidegger, o homem não é uma coisa entre coisas e, por isso, não pode ser caraterizado pelas categorias tradicionais aristotélicas. As noções clássicas da filosofia são um obstáculo para uma descrição da experiência humana, naquilo que oferece de mais original. Os predicados, com os quais descreve as estruturas do ser humano, Heidegger chama “existenciais”. A essência do ser do homem é a “ex-sistência”, porque o homem é o ser que se refere ao próprio ser. O ser humano está vinculado ao mundo, pois é um ser-no-mundo ( Inder-Welt-sein). Primeiro as coisas do mundo se lhe revelam como instrumentos num complexo sistema de referências que constitui o mundo do homem. Dessa maneira, o mundo é o horizonte a partir do qual o homem compreende as coisas e a si mesmo. Mas, o ser humano é também um ser-com-os-outros (Mitsein), de modo que o mundo de cada homem é um mundo com outros mundos ( Mitwelt ). As linhas estruturais da “existência” humana t êm como núcleo o cuidado (Sorge), referido ao mundo pela preocupação (Besorge) e aos outros pela solicitude (Fürsorge). A suprema possibilidade para o homem é a morte, pois é um ser-paraa-morte, a morte que a existência autêntica enfrenta decididamente. Mas Ser e tempo é um livro inacabado. Para Heidegger, a essência do homem consiste em sua existência. Sendo a existência possibilidade, compreender e projetar uma possibilidade de ação são a mesma coisa. Por isso, a razão última de ser, o fundamento é a liberdade. Pode dizer-se, então, que a essência do homem é a preocupação (Sorge), pois, se o homem estivesse totalmente determinado, não se preocuparia.
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c) Ontologia fundamental A análise existencial prepara a questão fundamental do Ser. Deve começar com a decisão daquilo que o homem é na vida cotidiana. Assim considerado, o homem é ser no mundo. O ser no mundo é, originariamente, um relacionar-se com o mundo, um preocupar-se com... Segundo Heidegger, a metafísica tradicional fixou-se nos entes, esquecendo de investigar o ser dos entes. A metafísica, que dominou o pensamento ocidental desde os antigos gregos até Nietzsche, deve ser superada. Tal superação consiste em passar do pensamento representativo para um pensamento originário, anterior à metafísica. Este é, então, um dos grandes temas do Heidegger na maturidade. O pensamento de Heidegger exerceu grande influência na filosofia do século XX. Contribuiu para novos enfoques a diversos problemas. Seu tema central de reflexão é o Ser em seus múltiplos significados, questão esquecida pela tradição metafísica, apesar das ontologias gerais e especiais. A fenomenologia husserliana, que Heidegger usa em sua análise existencial, por sua exigência da “volta às coisas mesmas”, coloca a questão do ser como tal e permite uma ontologia fundamental com seu ponto de partida num ente privilegiado: o ente humano que coloca a questão do ser pelo simples fato de seraí (Dasein). Portanto, a ontologia fundamental é uma analítica existencial centrada nas estruturas que definem o modo de ser do homem: a intelecção, a angústia, a preocupação, o ser-no-mundo, o ser-com-outros, o ser-para-a-morte. Esses “existenciais” definem de que modo o homem vive a diferença ontológica, separando e unindo o ente ao ser. Numa etapa ulterior, a relação entre o tempo e o ser resulta determinante. Assim, em Heidegger começa uma nova época na qual a oportunidade do “dizer” poético e do “dizer” do pensamento sugerem novos significados do ser, principalmente do Ereignis (acontecimento). Segundo Heidegger, não se pode dizer o que é o Ser, pois todo o dizer, todo o logos, todo o conceito pressupõe o ser. Os sentimentos revelam o ser muito mais do que o intelecto. Neste sentido, os poetas revelam-no melhor que os filósofos.
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d) Verdade e linguagem Numa segunda fase, nas suas últimas obras, Heidegger não mais parte da existência humana em busca do acesso ao Ser, mas o próprio ser possibilita a compreensão da existência humana. Centraliza suas reflexões no próprio ser. Com isso o universo da linguagem passa a ser o horizonte para enfocar o ser. A verdade é desvelamento, manifestação do ser, abertura do ser ao homem, que sempre se encontra na verdade do ser. A essência da verdade consiste na liberdade em deixar o Ser ser e mostrar-se naquilo que é. Para Heidegger, a linguagem não é uma simples construção humana de sinais convencionais. É a casa do ser e o homem habita nela. Seus vigias são os poetas e os pensadores, como diz na introdução da Carta sobre o Humanismo e expõe em A caminho da linguagem (1959). É preciso colocar-se à escuta da linguagem, aprender a deixar que ela fale. Escuta da linguagem é diálogo, diálogo com outrem, mas principalmente com os textos e com a própria linguagem. Os poetas, porque dialogam com a linguagem e com as coisas, ao contrário dos cientistas, não procuram dominar. Heidegger não critica a tecnociência como tal, mas seu imperialismo. Ele tem o mérito de recolocar o tema do Ser no centro da reflexão filosófica. Teve, outrossim, o mérito da intuição de colocar o ser do homem no centro de perspectiva. Certamente a filosofia de Heidegger não pode ser acusada de teologia disfarçada. Apesar disso, muitos teólogos, católicos (K. Rahner) e protestantes (R. Bultmann), nele se inspiraram. 3.2 Karl Jaspers (1883-1969) Nascido em Oldenburg, Karl Jaspers estudou medicina antes de interessar-se pela psicologia e pela filosofia. Em 1909 doutorou-se em medicina, em Heidelberg, com a tese Nostalgia e Criminalidade. Inicialmente, dedicou-se à neurologia e à psiquiatria, escrevendo duas obras notáveis: Psicopatologia Geral e Psicologia das Mundividências. Nomeado professor de Filosofia em Heidelberg (1921), em 1937 foi proibido de ensinar por causa de seu casamento com Gertrud Mayer que era judia. Foi reintegrado no corpo docente em 1945. A partir de 1948 ocupou a cátedra de filosofia na universidade de Basileia (Suíça) até sua
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aposentadoria (1961). Pesquisador incansável, lia os grandes filósofos aos quais reconhecia o mérito de estarem suficientemente desligados dos “interesses mundanos particulares” para abrir -se à verdade. O pensamento de Jaspers recebeu um forte impulso de Nietzsche e, sobretudo, de Kierkegaard, precurssores da filosofia da existência. Para Jaspers, existência é o lugar da verdade. Esta não é privilégio de especialistas. Todo homem, englobado pelo ser, está situado nela. A verdade está ao alcance de todos: do homem comum e do filósofo, da criança e do adulto, do alienado como do espírito sadio. Vai-se a ela mediante o aprofundamento da existência, na imanência, no retorno às “fontes de nosso ser”. O chamado da transcendência nasce no eu: “A exigência absoluta me chega como exigência do meu eu essencial frente à minha simples realidade vital”. Entre as grandes obras filosóficas de Jaspers destacam-se Filosofia (três volumes) (1932) e um estudo Sobre a Verdade (1947). Entende a filosofia como uma atitude capaz de dar um fundamento à vida humana, pois não é um saber como o das ciências particulares, embora essas possam servir-lhe de guia pelo senso crítico, rigor e senso do limite. A filosofia, para Jaspers, não é ciência porque não é saber de coisas determinadas, mas seu problema é o Ser. O objeto das ciências são seres determinados, o da filosofia é o Ser. Este não é nenhuma das coisas que são objeto do saber científico. Mas a filosofia não é ciência do ser porque não há um logos capaz de expressar o Ser. O Ser pode, apenas, ser esclarecido como condição de tudo que é. Na filosofia de Jaspers há três termos estreitamente ligados entre si: existência, transcendência e situação. A existência define-se, em sua profundidade última, como preocupação pelo ser. Mas, como a existência é liberdade, pode falhar ou reencontrar-se na medida em que ela se abre a algo que é mais que ela. Sempre correndo o risco de perder-se num saber objetivado, a existência também é capaz de arriscar-se fora da objetividade, até a transcendência, segundo foco da filosofia de Jaspers. No início do segundo volume de Filosofia define “sou existência na medida em que não me torno objeto. Nela eu me sei independente sem poder intuir o que eu sou. Vivo de sua possibilidade. Somente ao realizá-la sou eu”.
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A transcendência não se conhece, nem se experimenta, mas crê-se; atinge-se pela “fé filosófica”, por meio das “cifras”. Jaspers pretende esclarecer a existência, apoiado no Dasein e abrindo-se à transcendência. Por isso elaborou uma “filosofia da existência” que implica uma “orientação no mundo”, um “esclarecimento da existência” e uma “metafísica”. A fé filosófica é um dos pontos mais caraterísticos da filosofia de Jaspers. Difere da “fé teológica”, porque não está baseada em nenhuma revelação ou crença religiosa, mas está para além daquilo que a razão pode esclarecer. Uma das caraterísticas da existência é a comunicação. A verdade é a possibilidade do ser de exprimir-se na comunicação. A comunicação mais elevada encontra-se no plano da existência, que se expressa na fé. Esta é a orientação para a transcendência, pois não tenho o fundamento do ser em mim como existência isolada, nem na comunicação porque esta jamais é total. A transcendência não se manifesta em si mesma, mas em certos fatos que é preciso decifrar. A transcendência, que não é exterior à existência, sempre se articula com a liberdade, que deve aceitá-la. Ela deixa reconhecer-se por aquele que acede livremente a ela, mas não se deixa justificar. Primeiro manifesta-se negativamente quando a própria existência aparece em sua qualidade de existência finita, percebendo-se a si mesma como algo distinto da transcendência. Mas de que maneira podemos aceder a ela? Aqui entra em jogo o terceiro enfoque: o mundo, que não se reduz à mera realidade fáctica, pois aparece como “cifra” da transcendência, como convite para orientar -se para ela. A cifra é o intermediário entre a existência e a transcendência. O homem somente pode abrir-se ao “sentido” dentro de sua situação existencial. A noção de “cifra” é fundamental: “Não há nada que não possa ser cifra” e certas cifras constituem dados imediatos e estão disponíveis na natureza (o mundo é uma “selva de símbolos”). Outros são mediatos, produzidos pela cultura, inscritos na linguagem humana. Neste segundo caso, enquadram-se os mitos e as religiões. Mas a cifra mais eloquente é a própria existência, sobretudo a existência enfrentada nas situações-limite (Grenz-situationen): sofrimento, luta, morte... Tais situações são inevitáveis. As situações-limite são momentos críticos e densos em que o homem vê estar em jogo “tudo ou nada” e sente que pode
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fracassar. Por um lado, tais situações extremas são “índices” da existência e, por outro, cifras da transcendência. Proporcionam, ao homem, a experiência de sua debilidade e destroem a segurança ingênua. Podem ou obscurecer a transcendência ou conduzir a uma maior disponibilidade. A autenticidade da existência verifica-se sempre no fracasso e nele pode realizar-se a união com o Uno. Dessa maneira, para a existência, as cifras constituem um recurso em seu impulso para o Ser (a transcendência, o Uno), como indicadores de transcendência. As cifras “nunca perdem seu caráter oculto”. Ainda que constituam “a linguagem de Deus no mundo”, não fornecem nenhum conhecimento objetivo. Na busca da transcendência, Karl Jaspers encontra-se com as religiões, adotando uma postura matizada. Reconhece que elas sabem muito sobre o homem: mais que as ciências e certas filosofias que diluem a existência no sistema do saber. As religiões abrem-se ao mistério, diminuindo a mediocridade da existência. Mas, em sua postura crítica, nega a noção de revelação. Para ele, o Deus da filosofia é um Deus oculto, ofertado à liberdade humana. O Deus da revelação desvela a transcendência, tolhendo a liberdade, restando ao homem apenas obedecer. Karl Jaspers faz uma crítica ao cristianismo, rejeitando a ideia de dogma. O dogma, objetivação da transcendência, segundo ele, elimina o campo da liberdade. Isso, todavia, não significa que se deva rejeitar o cristianismo. Jaspers defende o retorno à religião bíblica, a única capaz de dar ao Ocidente sua identidade. Mas ele pede três renúncias ao cristianismo: a) deve abandonar a ideia de que Jesus é a encarnação da transcendência. Na humanidade, Jesus é um homem que fala como homem. b) O cristianismo deve renunciar à ideia de dogma, embora se possa continuar atribuindo aos dogmas cristãos o valor de cifras, isto é, sem valor objetivo. c) O cristianismo deve renunciar à sua pretensão de detentor do monopólio da verdade e denunciar seu “orgulho de pretensioso depositário da verdade absoluta”. A
religião
pertence
ao
âmbito
da
orientação
do
mundo
(Weltorientierung ). Segundo Jaspers, a filosofia não pode prescindir da religião da mesma maneira como não pode desprezar as ciências. Mas, na religião fundada sobre a “fé teológica”, o homem busca uma segurança no dogma, que é um mito.
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Por isso, corre o risco de apoiar-se demasiadamente numa instituição e de se despersonalizar, caindo até mesmo na superstição ou na idolatria. Entretanto, segundo ele, pode libertar-se desse risco pela “fé filosófica”, embora essa também corra o risco de conceber a transcendência como mera aspiração vazia. Enfim, a religião é superada na filosofia e a “fé teológica” torna-se apenas um meio para chegar à “fé filosófica”. Portanto, o filósofo não necessita da religião revelada, pois vive sua fé individual perante o seu Deus, o qual não precisa invocar, mas apenas reconhecer. Este Deus não exige culto, nem louvores, nem propaganda. Enfim, postula um Cristianismo sem Deus encarnado, sem credo e sem magistério. O projeto de Jaspers pretende apagar as diferenças. É o peregrino de um absoluto sem nome. Para o cristão, a transcendência é, ao mesmo tempo, distância e presença, indigência e plenitude. Toda a linguagem sobre ela trai. Dela também se pode dar testemunho no silêncio. O que o filósofo alemão rejeita é o dogmatismo e o imperialismo da verdade das religiões. A religião certamente pode ser isso que Jaspers combate, mas da possibilidade, fáctica ou não, não se deve concluir que necessariamente deva ser isso. 3.3
Hannah Arendt (1906-1975) Nascida em Hannover, doutorou-se em Heidelberg, em 1928. Fugindo
dos nazistas, em 1933 fixou-se em Paris e, em 1941, em Nova York. Professora universitária, dedicou-se a estudos judaicos. Sua obra principal, no domínio da ciência política, é The Origins of Totalitarism ( As Origens do Totalitarismo), publicada em 1951. Na juventude Arendt estudou Kant, Nietzsche, Kierkegaard e Jaspers, que publicara suas primeiras obras. Em 1924 iniciou seus estudos de filosofia e teologia em Marburg com Martin Heidegger e Rudolf Bultmann (1884-1976). Depois de uma relação amorosa infeliz com Heidegger transferiu-se para Heidelberg, onde, em 1928, doutorou-se com a tese sobre Conceito de amor em Santo Agostinho, sob orientação de Karl Jaspers. Embora influenciada por Heidegger, Arendt preocupou-se menos com os fenômenos da angústia, do ser-para-a-morte, centrando sua reflexão na natalidade (Gebürtlichkeit ) e no agir político. A natalidade é, para Arendt, um
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termo para simbolizar um sempre possível recomeço, um possível renascer do homem a qualquer momento. Em 1929 mudou-se para Berlim, onde casou com o publicitário Günther Stern, separando-se em 1937. Em 1933, depois de presa pela Gestapo, fugiu para a França, trabalhando como assistente social em diferentes organizações judaicas de Paris, até 1940. Em 1941 emigrou para EE.UU. Exercendo a docência em diversas universidades, escreveu uma obra vastíssima. Em 1951 adquiriu a cidadania americana. Entre suas principais obras podem citar-se: A origem do totalitarismo (1951); A condição humana (1958); Entre o passado e o futuro (1961); Sobre a revolução (1963); Sobre a violência (1970); Crises da república (1972). Em 1961 viajou como enviada do magazine The New Yorker a Israel para informar sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann. Naquela oportunidade formulou a sua discutida tese da banalidade do mal , pois segundo Arendt, Eichmann não refletia, mas simplesmente estava a serviço do poder. Via, nessa atitude irrefletida, o que torna homens bobos muito perigosos. A morte de milhões de pessoas não sensibiliza os burocratas banais. Hannah Arendt concebe o homem como sendo um ser essencialmente político, cuja suprema determinação é a linguagem e o agir comunicativo. Acha que, nos tempos modernos, a sociedade do trabalho e da técnica reprimiu a antiga dimensão do político como dimensão própria da liberdade. Ela considera que, no público pluralista, a troca de argumentos é o fundamento principal para possibilitar um novo começo. Por isso os principais conceitos de sua filosofia política são: pluralidade e natalidade. Refletiu, de modo especial, sobre a essência e a função da força humana do juízo. Segundo ela, nas sociedades modernas de massa, muitas vezes, falta-nos compreensão e capacidade de penetrar nos problemas e nas preocupações de outras pessoas. Em The Origins of Totalitarism defende a tese de que o totalitarismo do século XX é um fenômeno completamente novo, que não se pode comparar com as ditaduras anteriores, como as dos antigos imperadores. O totalitarismo novo se apoia em massas deserdadas e a sociedade moderna de massa, surgida pelo capitalismo e pela industrialização, é o chão fértil para regimes totalitários. Afirma que o socialismo nacionalista e o estalinismo são regimes totalitários, sendo o
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último mais brando. O marxismo ao menos concedia alguns elementos racionais ao estalinismo. Tais elementos faltaram totalmente no nazismo. Contudo, ambos os sistemas tinham o objetivo de abranger toda a sociedade, em todas as esferas, e instrumentalizar o indivíduo totalmente para seus fins políticos. Diz Arendt que é da natureza de uma reivindicação total que a exigência do poder de regimes totalitários, em princípio, é ilimitável. Em tal situação, o terror e a dominação totalitária reduzam o homem a um simples feixe de reações. Por isso a dominação totalitária é a negação completa da existência individual e de seus direitos. Nos campos de concentração, os detentores do poder provam que, na sociedade de massa, o homem pode ser manipulado totalmente e, a qualquer momento, substituído e, porque supérfluo, pode ser liquidado. Segundo Arendt, nazismo e antissemitismo fundam-se na falta de orientação e na incapacidade do juízo crítico do homem moderno. Sem vínculo mais profundo em valores, as massas empobrecidas voltam-se exclusivamente para a sobrevivência material. O que carateriza os indivíduos, numa sociedade de massa, não é a brutalidade, a bobeira ou a ignorância, mas a falta de contato e de raízes. Arendt afirma que a massa é manipulável por campanhas demagógicas e, por isso, a qualquer momento, também no Ocidente, podem surgir regimes totalitários. Nesse sentido, é importante que um grande público permaneça vigilante para que não se repitam fenômenos como o socialismo nacionalista de Hitler e o estalinismo. O que Arendt mais lamenta é a perda da capacidade do juízo crítico. Nos últimos anos, dedicou-se à elaboração de uma teoria filosófica do julgar. Em 1958, Hannah Arendt publicou sua segunda obra importante intitulada The Human Condition ( A condição humana), na qual distingue o animal laborans, o homo faber e a práxis. Nela critica a filosofia ocidental por ter-se fixado na teoria. Dessa maneira, a filosofia esquece que, antes de tudo, o homem é um ser ativo, prático que age em comunidade. Diferentemente de Marx, Arendt compreendia o homem não através do trabalho, que é um meio e não uma finalidade, mas através do agir comunicativo. Com o conceito de agir, ela designa a ação política e a comunicação entre seres livres como a conhecemos, a partir da polis grega. Pluralidade e presença de outros homens são a condição para
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agir. Na antiguidade, os gregos cidadãos livres todos discutiam os problemas políticos no mesmo nível. Ser político, viver numa polis, para eles significava que todos os assuntos fossem resolvidos através da palavra convincente em assembleia e não através da imposição e da força. Numa tal sociedade, em tal espaço político, trocavam-se diferentes opiniões e eram assumidos compromissos mútuos. A ação decorrente da comunicação, segundo Arendt, em princípio, é aberta. A partir da conversa e das discussões sempre pode nascer um espírito novo. O humano surge na troca espontânea de ideias, pois pode conduzir sempre a novas maneiras de ser. A fabricação ou produção distingue-se do agir. Produzimos obras de arte e coisas técnicas, sistemas ou instituições. A produção sempre é criativa, mas na medida em que a gente depende da relação meio-fim, não se compara com o pensamento sem fronteiras. Segundo Arendt, o tempo moderno encontrase totalmente sob o signo do trabalho. Trabalha-se para satisfazer determinadas necessidades. Mas essa preocupação está exagerada em nossa sociedade. As decisões políticas e as relações sociais giram quase exclusivamente em torno da economia. Técnicos e experts dominam o campo. Artistas, filósofos e políticos são acessórios. As decisões são tomadas não a partir da discussão pública, mas sob a influência dos experts e dos grupos de pressão. Segundo Arendt, é preciso reencontrar o caminho para uma forma de fazer política na qual a troca pública de opiniões se torne mais relevante. A obra póstuma The life of the Mind ( A vida do Espírito, publicada em 1977, em dois volumes) tematiza a atividade espiritual do homem sob o aspecto de três funções: pensar, querer e julgar. 3.4 Jean-Paul Sartre (1905-1980) Nascido em Paris, Jean-Paul Sartre esteve presente nas grandes lutas do século. Nasceu numa família burguesa e cristã, mas cedo distanciou-se em relação a essa dupla origem. Quando jovem, ele rejeitou os valores “burgueses” de sua criação e buscou um modo de vida, livremente escolhido, que não estivesse determinado pela autoridade, pela religião ou pela tradição. Em muitas páginas de sua vasta obra fez apologia da liberdade absoluta, tentando pensar o
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homem a fundo sem recurso a Deus. Ensinou que a liberdade humana é total, exigindo que assumamos responsabilidade pelo que fazemos e por quem nos tornamos. De 1924 a 1929, Sartre estudou na Escola Normal Superior de La Rochelle, onde pouco antes dos exames finais conheceu sua futura companheira Simone de Beauvoir (1908-1906), filósofa feminista e romancista. Depois ensinou filosofia em diferentes ginásios. Em vista do sucesso de venda de seu romance A náusea, demitiu-se como professor para viver como escritor. Em 1933 fez um estágio mais longo em Berlim para estudar a fenomenologia de Husserl, na qual enraizou sua abordagem filosófica. Durante a guerra, em 1940, Sartre foi prisioneiro dos nazistas. Depois de libertado juntou-se à Resistência, em Paris, mas não empreendeu ações perigosas contra os invasores, posicionando-se, todavia, do lado do Partido da Resistência. Terminada a invasão da França pelos alemães, Sartre cultivou simpatia para com o comunismo da então União Soviética e visitou Fidel Castro, em Cuba. Assumiu posições de simpatia ao Partido Comunista, apesar da dificuldade de compatibilizar o determinismo marxista com o libertarismo absoluto do seu existencialismo. Somente em 1956, depois do massacre dos rebeldes da Hungria pelo exército soviético, começou a distanciar-se do comunismo. Quando, em 1968, o exército soviético invadiu Praga, Sartre rompeu suas relações com o partido comunista. Politicamente Sartre defendia posições da esquerda radical, fazendose advogado dos oprimidos em todo o mundo. Na década de 1970 aproximou-se de posições maoístas. Distribuindo panfletos maoístas em Paris, não foi preso porque o General Charles de Gaulle (1890-1980) achava que não convinha prender um Voltaire. Em 1966 presidiu o Tribunal Russell para julgar os crimes de guerra dos americanos no Vietnã, pois interessava-se, sobretudo, por temas sociais, políticos e artísticos. Mostrava pouca sensibilidade para questões ecológicas, pois era homem de cidade grande. Em 1943, Sartre publicou sua obra principal O Ser e o Nada. O existencialismo sartreano chegou a seu ápice na década de 1950, mas sua carta magna – O existencialismo é um humanismo – já apareceu em 1948. Para expor suas ideias, Sartre também serviu-se do teatro, do romance e do periodismo.
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Quando ainda simpatizava com o Partido Comunista Francês, declarou que “o marxismo era a filosofia insuperável de nosso tempo”. No contato com suas próprias ideias, retocou o marxismo, adaptando-o como se pode constatar em Crítica da razão dialética (1960). Embora nunca tenha fugido das lutas sociais e políticas, sentiu-se mais cômodo na espontaneidade de sua casa que nas fileiras dos partidos. Em 1963 esboçou sua autobiografia em As palavras, obra que lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1964, prêmio que rejeitou por seu anticonformismo e por sua oposição aos valores burgueses. Sartre soube expressar-se em todos os terrenos: tratados filosóficos, teatro, ensaios, crítica literária e novelas. Em toda parte atraía grandes públicos, sabendo formular sua filosofia sob a forma de romances e peças teatrais. Entre suas principais obras filosóficas destacam-se: A transcendência do Ego (1936); Náusea (1938); Esboço de uma teoria das emoções (1939); O Ser e o Nada (1943); O existencialismo é um humanismo (1948); Crítica da razão dialética (1960) e O idiota da família (1972). a) O homem está condenado a ser livre Depois da Segunda Guerra Mundial, muitas palavras de Sartre popularizaram-se no ambiente cultural: angústia, náusea, absurdo, nada, má fé, etc. Sem dúvida, uma se destacou: liberdade. É essa a palavra mágica em torno da qual se alinha todo o pensamento de Sartre e goza de um privilégio único. A liberdade não precisa submeter-se à prova, pois não é uma experiência como as demais. Diz que constitui “com toda a exatidão o tecido de meu ser” e se dá numa imediatez tão próxima que a esquecemos: “Busquei essa liberdade longe de mim; mas ela estava tão perto que não pude vê-la. Não pude tocá- la: sou eu mesmo”. Sartre é o filósofo da liberdade. Sartre perdeu o pai quando ainda não tinha dois anos de idade. Foi criado pela mãe e pelo avô materno Karl Schweitzer, um homem severo e dominador. Mas nunca se sentiu muito à vontade na casa dos avós. Órfão de pai, cedo sentiu-se estrangeiro na vida. Ele teve poucos amigos na infância. Passou grande parte dela lendo e escrevendo na biblioteca do avô. A mãe o amava muito.
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Sem princípio paterno na infância, cedo passou a rejeitar tudo que era autoritário e hierárquico nas instituições sociais. Segundo ele, a liberdade define o homem. Ela é absoluta. Apenas não somos livres de ser livre. A liberdade precede a essência no ser humano. Exercitando-a, o ser humano cria sua essência. Através de nossas escolhas e ações criamo-nos livremente com a responsabilidade que isso acarreta. Dirá o senso comum: mas essa liberdade é muito limitada, pois não pode tudo. Chocase por todos os lados com realidades que a precedem e lhe impõem caminhos pré-fixados. Sartre não refuta a objeção. Conhece a importância das estruturas socioeconômicas e analisa, de maneira concreta, todas as ameaças que pesam sobre a liberdade. Nem sempre o homem é capaz de impor-se ao mundo, mas sempre é livre. Negar isso seria fugir da responsabilidade, pois ele sempre tem o poder de mudar as situações. Tudo depende “em cada momento do sentido que dou às coisas”. Na verdade o homem pode viver de acordo com duas possibilidades. A primeira consiste em existir como as coisas. Há uma parte de facticidade que pode servir de desculpa à liberdade. Mas existir humanamente é dar sentido e comprometer a própria responsabilidade. Se nada tem sentido, tudo pode adquirilo, partindo dessa fonte de significação que é a liberdade. Daí a definição do homem: “Um projeto que se vive subjetivamente... Nada existe com anterioridade a este projeto e o homem, antes de tudo, será o que projetou ser”. No homem, “a existência precede a essência”. Segundo Sartre, a vida do indivíduo humano não é determinada por um criador, nem por causas necessárias, nem por leis morais absolutas. Ele é “o que faz de si mesmo”. A única necessidade do homem é escolher, autodeterminar -se, sendo responsável por seus atos e por sua vida. De início, ele é muito mais um nada. Ele precisa tornar-se o que ele é, numa criação constante, a partir do nada. Neste sentido está “condenado a ser livre”. Nas décadas de 50 e 60, Sartre e sua companheira Simone de Beauvoir (1908-1986) tornaram-se uma espécie de ícones do individualismo, sobretudo, para a geração mais jovem. Em Paris, os jovens vestiam de preto, visitavam cafés e bares cheios de fumaça e ouviam as canções de Juliette Greco.
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Muitas vezes, Sartre era comparado com Voltaire, mas, em sua ambição à liberdade, assemelhava-se mais a Jean-Jacques Rousseau. b) O ser-em-si e o ser-para-si Em sua obra O Ser e o Nada, Sartre considera o Ser na tensão entre dois polos: o em-si e o para-si . O em-si designa tudo que simplesmente está aí, que existe como ameaça, enquanto o para-si designa não só a consciência, mas o eu, que deve travar a luta da liberdade frente ao em-si. Sartre desconhecia uma determinação para este eu. O homem é o que faz de si mesmo. O que conta é a ação e o pensamento do indivíduo. Concebia a posição do homem na natureza e na sociedade mais como consequência da ação que do conhecimento. Como Husserl e Heidegger, criticou a moderna teoria do conhecimento. Sartre disse que o homem não se representa o mundo, pois sempre já se encontra inserido nele. Para ele, o Dasein está envolto em tensões existenciais e dramas. Na luta contra as injustiças sociais e em ações inúteis para o proveito próprio via o principal sentido da vida. Como Heidegger, também Sartre vê o sentido da vida no encontro do homem com seu ser e não no conhecimento de objetos. Quando se trata de uma coisa, como um cortador de papel, parte-se do conceito (sua essência). No caso do homem ocorre o contrário: a existência precede a essência. Que significa isso? Significa que o homem primeiro existe, encontra-se consigo, surge no mundo e passa a definir-se. O eu que me torno é um construto criado e recriado a partir de experiências e condutas. O encontro do homem com o mundo não é harmonioso. A natureza das coisas é impenetrável, incompreensível, mas carece do mistério real. O em-si não tem mistério. Tudo é casual. Inspirado em Hegel, Sartre criou uma terminologia para designar duas maneiras diferentes de ser: o em-si do dado imediato e o para-si da consciência. Do lado do em-si , Sartre usa conceitos como opacidade, densidade e simples existir, enquanto o para-si consciente é formado pela espontaneidade, liberdade e sentido. Ao contrário de Descartes, Sartre não funda a consciência originariamente no pensar, pois não é um abstrato eu penso, portanto sou. No começo está a facticidade de que homens enfrentam-se em sua
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subjetividade irredutível no espaço social. O em-si e o para-si (mundo e consciência) opõem-se de maneira irreconciliável. O existencialismo sartreano entende-se a si mesmo como humanismo porque deixa em aberto a determinação essencial do homem. A afirmação de Sartre da precedência absoluta da existência sobre a essência alimenta-se, em parte, do repúdio a frases vazias sobre o humanismo. Segundo Sartre, a consciência gera o nada e com isso a liberdade. Explica como, com a consciência, surge a liberdade de construir sua vida através de um projeto. São decisões concretas e não determinações da essência que definem a vida de uma pessoa. Por isso, o homem não é outra coisa que aquilo que faz de si mesmo. Certamente, Sartre foi o pensador mais radical da liberdade no século XX. Ele afirma que homens que escondem sua subjetividade atrás de opiniões prontas, convenções e pontos de vista, permanecendo na má-fé ( la mauvaise foi ), somente merecem desprezo. Fugir da liberdade é covardia, enganar-se a si mesmo. Para ele, nenhuma determinação biológica ou social pode tolher a liberdade da vontade. Nesse contexto, sua análise do olhar adquire grande significação. A presença do outro age em direção a uma alienação de mim mesmo: “O inferno são os outros”. É o olhar do outro que me quer enquadrar em seu mundo. Ser visto é ser atingido em seu ser. Embora o homem seja livre, o outro pode transformá-lo em objeto. Mas não adianta lamentar-se porque “o homem está condenado a ser livre”. Inicialmente, a filosofia de Sartre parece estar ocupada com o indivíduo. Mas seu compromisso com a política da esquerda, seu interesse pela dinâmica dos grupos sociais, numa época de levantes políticos e sociais, ampliou a visão de suas obras iniciais. Em Crítica da razão dialética (1960), tentou uma revisão marxista do existencialismo, enfatizando as restrições históricas e sociais à escolha humana. Na década de 1960, com a popularidade do estruturalismo e do pós-modernismo na Europa continental, sua filosofia existencialista perdeu a atualidade, apesar da defesa que, em 1948, fizera em O existencialismo é um humanismo.
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c) O ateísmo de Sartre A liberdade, segundo Sartre, sempre se encontra ameaçada. Seu maior obstáculo é Deus. Se Deus existe, somente pode criar frente a si um ser determinado, dotado de uma essência, submetido a leis: “O conceito de homem na mente de Deus parece o conceito do corta-papel na mente do industrial”. Aqui aparece a velha tese da predestinação: o homem é previsível até em sua liberdade. Mas, partindo do ato criador de Deus é, segundo ele, impossível salvar a liberdade humana. Antes poderia compreender-se porque o homem criou Deus. O homem está condenado a sempre inventar o sentido. Sua vida é nada antes de receber o sentido da liberdade. Em A náusea, Sartre escreve que há pessoas que tentaram superar a contingência humana, inventando um ser necessário e causa de si mesmo. Recorreram a essa estratégia em vez de assumir, na liberdade, uma existência sem justificação. Isso chama de má-fé. Em vez de suportarem a angústia, prendem-se a Deus, preferindo a ilusão. A verdade é que eu me escolhi a mim mesmo. Outro elemento que leva Sartre a rejeitar Deus é o olhar. Em As Palavras, relata como se sentia “horrivelmente visível”, paralisado em sua vontade de fugir do olhar de Deus: “Deus me vê, sinto seu olhar dentro do meu cérebro”. Ele escolheu a fuga por rebeldia: “Deus nunca mais voltou a olhar -me”. E há, para ele, tudo para rebelar-se contra Deus que reduz o homem à objetividade total. Sua existência significaria o fim de toda relação livre. Sartre desenvolve a negação de Deus, tentando baseá-la na ontologia. Parte da distinção entre o em-si e o para-si , duas maneiras de existência que se excluem mutuamente. O modo próprio da existência humana é o do para-si : ele é um ser deficiente e em projeto. Deus, então, seria a impossível síntese do em-si e do para-si , do Ser e do Nada, da coisa e da consciência, do cheio e do vazio. Se essa síntese é contraditória, contudo ela tem um significado, pois Deus corresponde a um sonho do homem, sonho de totalização: “Ser homem é tender a ser Deus”. Tal crítica sartreana refere-se a duas concepções de Deus: a do Deus como “objeto infinito” e a de Deus como “sujeito solitário”, duas concepções bastante comuns nas teodiceias. Por outro lado, a luta de Sartre contra Deus é apenas o anverso de sua luta em favor do homem. Em O existencialismo é um
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humanismo, ele chegou a afirmar: “O existencialismo não é um ateísmo no sentido de que se esforce para demonstrar que Deus não existe ”. Declara: “Ainda que Deus existisse, nada mudaria”. Trata-se, pois, de um ateísmo postulatório. 3.5 Albert Camus (1913-1960) Albert Camus nasceu na aldeia de Mondovi, na Algéria. Seu pai morreu quando ele tinha um ano. Sua mãe, originária da Espanha, era analfabeta e buscava o sustento da família sem emprego fixo. Albert, seu irmão Lucien, sua mãe, sua avó e um tio paralítico tinham que dividir o espaço de uma moradia de dois quartos, no bairro operário em Belcourt, na Algéria. Na escola fundamental, Camus chamou a atenção de um professor, que o recomendou para uma bolsa de estudos. Com 13 anos de idade já lia obras da literatura francesa contemporânea como Gide e Malraux. Além da leitura, tinha paixão pelo futebol. Em 1930, quando Camus adoeceu pela primeira vez de tuberculose, teve que abandonar temporariamente sua casa, superpovoada, para viver na casa de um tio que era açougueiro. Mais tarde, Camus estudou literatura e filosofia, na Universidade da Algéria. Escreveu seu trabalho de conclusão sobre Relação entre Helenismo e Cristianismo nas obras de Plotino e Agostinho. Para lutar contra o socialismo nacionalista, em 1934, filiou-se ao Partido Comunista que abandonou em 1937. Para sustento da vida, foi vendedor de peças de automóvel, corretor marítimo, empregado de secretaria. O jornalismo atraiu-o, ensaiando-o na Argélia. Também ganhava dinheiro, escrevendo peças teatrais e fazendo teatro. Em 1938 escreveu a peça Calígula e começou um ensaio sobre o absurdo, mais tarde publicado sob o título O mito de Sísifo. Nessa época, também redigiu o romance O estrangeiro. Em 1940 deixou a Algéria, transferindo-se para Paris, mas logo teve que abandonar a cidade por causa da invasão alemã. Passou a integrar a resistência, fundando, com outros, Le Combat e tornando-se seu redator-chefe. Camus fez amizade com Sartre que foi rompida quando publicou sua principal obra filosófica O homem revoltado (1951). Em 1947 lançou o romance A Peste, que consolidou sua fama como escritor, conquistando o Prêmio Nobel de Literatura em 1957. Faleceu em acidente de automóvel.
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Em O mito de Sísifo e O estrangeiro, suas obras mais famosas, Camus explora a noção de absurdo, que descreve alternativamente como sendo a condição humana e, ao mesmo tempo, “uma difusa sensibilidade de nosso tempo”. O absurdo é a confrontação entre nós mesmos com as nossas exigências de racionalidade e justiça e um “universo indiferente”. Sísifo, condenado pelos deuses a uma infindável e fútil tarefa de rolar uma pedra montanha acima, donde ela volta a rolar montanha abaixo pelo seu próprio peso, torna-se um exemplar da condição humana, lutando desesperada mas inutilmente para conseguir algo. O singular
anti-heroi
da
obra
O
estrangeiro
(1942),
por
outro
lado,
inconscientemente aceita o caráter absurdo da vida. Sem fazer qualquer juízo, acolhe, como amigos e vizinhos, os tipos mais repugnantes e permanece impassível diante da morte de sua mãe e do assassinato de um homem, cometido por ele próprio. Diante da condenação à morte, ele “abre seu coração para a benigna indiferença do universo”. O mito de Sísifo (1942), logo no início, apresenta uma das teses mais conhecidas de Camus: somente existe um único problema filosófico realmente sério que é o suicídio. Decidir se vale a pena viver ou não, significa responder à pergunta fundamental da filosofia. Todo resto vem depois. A ideia do suicídio resultaria do sentimento moderno do absurdo da vida. O homem busca um sentido no mundo, mas este cala. Refletindo com clareza sobre tudo, chega-se, segundo ele, à conclusão de que a vida é absurda. A resposta ao absurdo não é o suicídio, nem a esperança, mas a revolta heroica. Em seu romance A queda (1956), Camus apresenta um indivíduo inesquecível e perverso, chamado João Batista Clamence, que resume todas as amarguras e todos os desesperos rejeitados nos seus primeiros ensaios. Clamence, como o personagem típico em O estrangeiro, recusa julgar as pessoas, ao passo que Mersault (o “estrangeiro”) é incapaz de qualquer julgamento. Clamence, que fora advogado, toma isso como assunto de princípios filosóficos “porque quem entre nós é inocente?” Em O homem revoltado (1951), Camus formula uma crítica à filosofia marxista da história, na qual o presente é sacrificado a um f uturo incerto. Segundo Camus, a revolta é possível a qualquer momento, tendo algo a ver com a perda da paciência, com a qual um escravo suportou a opressão até agora. Na filosofia,
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Camus rejeita qualquer ideia de sistema, formulando um pensamento mediterrâneo que, inspirado na beleza e na medida, respeita a finitude da existência. Para ser um homem, segundo Camus, não precisamos de teorias metafísicas. A revolta é um agir consciente que preserva a consciência da inutilidade da vida. A obra de Camus apaixonou a juventude depois da Segunda Guerra Mundial. O radicalismo na exposição do absurdo, aliado ao seu estilo brilhante, granjearam-lhe o interesse das gerações jovens, cansadas de ideologias sofisticadas, cujos frutos eram pobres. O absurdo de Camus, todavia, levou muitos a compartilhar a posição de seus personagens, não admitindo a priori qualquer solução para a vida. Diante da natureza e da vida, o homem com sua inteligência impotente só serve para negar. No romance A peste (1947), Camus reflete sobre a condição humana cujos males a peste simboliza e parece encaminhar-se para a esperança. Nas obras posteriores, abandona o absurdo racial como inviável e atenua a revolta para ocupar-se com o outro. Gabriel Marcel, pouco antes da morte de Camus, conversou com ele e ficou com a impressão de que aos poucos caminharia para a Esperança. Como escritor, Camus tinha um estilo enérgico, sóbrio, adaptado ao leitor para mantê-lo atento. Sempre rejeitou o cristianismo porque, segundo ele, nega os valores da vida terrena e a soberania absoluta da liberdade. 3.6
Gabriel Marcel (1889-1973) As filosofias da existência e o existencialismo têm em comum recolocar
a questão do ser, partindo da existência humana. Fazem isso não só através de reflexões filosóficas, rigorosamente sistemáticas, mas, também, através de obras literárias dirigidas a um grande público. Seus representantes, de modo especial Gabriel Marcel, tentam unir estreitamente pensamento e vida.
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a) Vida e obra Gabriel Marcel nasceu em Paris, em 1889. Sua mãe era judia, morrendo quando ele apenas tinha 4 anos de idade. Sua educação ficou a cargo de sua tia, irmã de sua mãe, com a qual seu pai veio a casar-se. A mãe aceitara o protestantismo na forma mais liberal. Gabriel Marcel estudou filosofia na Sorbonne de Paris e, aos 18 anos de idade, concluiu o curso com uma monografia sobre As ideias metafísicas de Coleridge em suas relações com a filosofia de Schelling . Com 20 anos, fez o concurso do Estado que lhe deu acesso ao magistério. Exerceu-o em diversos colégios, com interrupções, até 1941. No período de 1914-18, Marcel trabalhou no serviço de informação da Cruz Vermelha. Aí viveu a guerra com a missão de “clarear destinos”, experimentando, de maneira concreta, o drama da existência humana. Em 1919, casou-se com Jacqueline Boegner. Seu casamento realizouse na Igreja protestante, mas sua mulher converteu-se ao catolicismo em 1944, morrendo em 1947. Gabriel Marcel convertera-se ao catolicismo em 1929, sendo batizado a 23 de março daquele ano. Para ele, sua opção pelo catolicismo realizou-se no final de um complexo itinerário filosófico. A ocasião foi motivada por François Mauriac, numa carta, na oportunidade em que Marcel escrevera uma crítica à peça Dieu et Mammon. Mauriac observara: “E, finalmente, Monsieur, porque o senhor não é um dos nossos?” Essa pergunta provocou uma profunda reação em Marcel. Gabriel Marcel percorreu os cinco continentes para fazer palestras. Muitos jovens cristãos procuravam nele um contrapeso ao existencialismo de Sartre. Numa de suas viagens, em 1951, também passou por Porto Alegre, pronunciando uma palestra na PUCRS. Sua consagração, como filósofo, foi o convite para proferir as “Gifford Lectures” na Universidade de Aberdeen (Escócia), em 1949 e 1950, mais tarde, publicadas sob o título Le Mystère de l’ Être (vol. I: Reflexão e mistério; vol. II: fé e realidade, Paris: Aubier, 1951). Na verdade, coube a Gabriel Marcel o papel de pioneiro da filosofia da existência. Sua obra fundamental Journal Métaphysique (diário de 1914-23) foi publicada em 1927, antes de Ser e Tempo de Heidegger. Aliás, em 1925, já
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publicara um artigo intitulado Existência e objetividade, no qual ressaltava a importância da existência e da encarnação frente ao idealismo. Sua obra principal Être et Avoir (Ser e Ter ) foi publicada em 1935. Além do francês, Marcel dominava bem as línguas alemã e inglesa, de modo que algumas de suas obras saíram originalmente nessas línguas. b) Ponto de partida e conceitos fundamentais Gabriel Marcel, um pensador original, quer contribuir para a humanização do mundo atual, um mundo fragmentado, do qual a mentalidade objetivista e técnica baniu o mistério. Busca fundamentos no próprio Ser. Para tanto, desenvolveu um método próprio. Ele critica o conhecimento objetivista, mostra possibilidades e limites, reflete sobre a encarnação como dado central da metafísica e elabora dois pares de conceitos básicos: mistério-problema e ser e ter . Ele não escreveu tratados sistemáticos, pois cedo renunciou à ideia de sistema porque tal, segundo ele, apenas nos apresenta um esquema intelectualizado. Ele examina as mais diversas situações concretas, construindo pontes entre nossa vida concreta e o pensamento reflexivo. Ele não busca um pensamento pensado, mas um pensamento pensante, fazendo uma espécie de análise fenomenológica, em estilo sinuoso e, por vezes, desconcertante, com perspectiva ontológica. Seu método de abordagem é socrático, distinguindo o pensador do fanático. O fanático é escravo de suas próprias ideias, que geralmente são poucas. É o ideólogo sistemático que se move no plano do ter. O pensador e o artista são criativos e determinam-se em atos ontológicos essenciais como o amor, a fidelidade, a esperança e outras experiências concretas. O pensador e o artista vivificam a linguagem. O ponto de partida da filosofia marceliana é a encarnação. Em Ser e Ter escreve: A encarnação, dado central da Metafísica. A encarnação, situação d e um ser que aparece a si como ligado a um corpo. Um dado não transparente a si mesmo: oposição ao cogito. Deste corpo não posso dizer que é meu
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eu, nem que não é, nem que é para mim (objeto). A oposição entre sujeito e objeto é transcendida19.
Ser encarnado significa manifestar-se e expressar-se em corpo, como este corpo, sem poder identificar-se totalmente com ele, sem tampouco poder separar-se dele. Meu corpo é meu modo próprio de ser no mundo. Há aqui um imediato que não pode tornar-se objeto para mim, ou seja, não é mediatizável. Contudo, preciso dele para considerar qualquer objeto, sendo não propriamente um instrumento, mas condição para que haja instrumentos. A união eu-corpo é tão íntima e misteriosa que transcende a dialética sujeito-objeto pelo eu encarnado. O homem, que se realiza como existente, é o homem situado concretamente no mundo e na história. Através do corpo não só me comunico, mas estou em comunhão com todo o universo material pelo ar que respiro e pelo alimento que ingiro. O ponto de partida de Gabriel Marcel, portanto, não é o eu penso cartesiano, como é para Sartre, mas o nós somos, pois “eu existo na medida em que me relaciono com o outro”. Somente me dirijo a alguém na segunda pessoa se o considero capaz de responder-me. Por ser corpo, o homem vive relacionado, em comunhão com outros. No encontro, a presença do outro se me oferece de forma imediata. Capto não a ideia, mas a própria pessoa do outro. Por isso Marcel diz: “O ser que amo não tem qualidades para mim; tomo-o como totalidade”. A relação do encontro com o outro é de estrutura diádica, enquanto a do conhecimento objetivo é triádica. Marcel chama de triádica a estrutura que tem três termos: quem pergunta, a quem pergunta e o que pergunta. Esta relação é a do mundo do conhecimento abstrato e das ciências. O objeto é um terceiro com relação ao discurso que faço com x sobre ele. A relação intersubjetiva, entretanto, é de estrutura diádica, imediata. O sujeito da relação diádica não coincide com o eu penso, pois não pode ser substituído por outra pessoa sem destruir a própria relação. Trata-se do tipo de relação que a rigor não se prova, mas se testemunha. Situa-se no campo do mistério e não do problema. Realidades, as mais profundamente humanas como amor, fé, esperança e fidelidade, não se provam, mas se testemunham. 19 MARCEL,
Gabriel. Être et Avoir . Paris: Aubier Montaigne, 1935, p. 11-12.
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A encarnação é a situação fundamental de meu ser-no-mundo. O mundo existe, para mim, enquanto tiver relações com ele do tipo de relações com meu corpo, enquanto sou encarnado. De um lado, este ponto de partida evita a fuga do mundo e, do outro, a redução espiritualista ou materialista. O corpo é o lugar de acesso ao mundo. Mediatiza as coisas do mundo. Une-me ao universo e ameaça-me com a morte. De outro lado, essa ameaça impulsiona minha vida sempre para além do mundo e une-me a uma realidade superior na esperança, na fidelidade e no amor. Partindo do nós somos e não do eu penso, Marcel fundamenta um pensamento realmente social. Para ele, mistério e problema são dois conceitos que se relacionam, mas são diferentes. Diz que: O mistério é alguma coisa a que estou ligado, não parcialmente por algum aspecto determinado e especializado, mas inteiramente, enquanto realizando uma unidade que, por definição, nunca pode apreender-se a si própria e só pode ser objeto de criação e fé. O mistério faz desaparecer a fronteira entre o em mim e o perante mim20.
Em Être et Avoir escreve: “Pertence à essência do mistério ser reconhecido; a reflexão metafísica pressupõe esse reconhecimento, embora não faça parte de seu campo específico” 21. O pensamento metafísico, enquanto reflexão, volta-se ao mistério, que sempre permanece mistério. O mistério pode ser reconhecido, aceito ou rejeitado, mas não conhecido. Sempre será mistério. O problema é algo que se coloca no meu caminho como obstáculo: “Está inteiramente diante de mim. Ao contrário, o mistério é algo no qual me acho engajado; sua essência não está totalmente diante de mim. É como se, nesta zona, a distinção entre em mim e diante de mim perdesse a significação” 22. O problema, em princípio, pode ser resolvido. Pertence à esfera da objetividade impessoal da ciência e da técnica; pode ser detalhado e caraterizado. Definir o mistério seria degradá-lo a problema. O mistério sempre será mistério, pois está situado ao nível do reconhecimento. Somos livres para aceitá -lo ou rejeitá-lo. 20 MARCEL,
Gabriel. Os Homens contra o homem. Porto: Educação Nacional, s.d., p. 81.
21
MARCEL, Être et Avoir , p. 145.
22
Ibidem, p. 145.
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Paralelamente ao par de conceitos mistério-problema, Marcel distingue entre ser e ter . Aliás, sua principal obra filosófica leva esse título. Distingue entre o que se tem e o que se é. O que se tem, manifesta certa exterioridade àqueles que têm. Esta exterioridade não é absoluta. O que se tem, são, em princípio, coisas ou o que a elas se assemelha. Só tenho aquilo de que posso dispor. O ter realiza-se na esfera do problemático, do espaço-temporal. O que tenho pode ser detalhado. O ter pertence a uma ordem na qual a oposição e tensão interior e exterior tem sentido. Eu tenho, por exemplo, um objeto, um instrumento. Posso ter algo por acaso e só exteriormente. O ter pode degenerar e exercer um domínio destruidor sobre o homem quando fonte de alienação. O corpo é a zona-limite entre o ser e o ter. Todo o ter encontra-se, de algum modo, em função do meu corpo. Mas não disponho totalmente sobre meu corpo, pois, a rigor, não posso dizer “eu tenho um corpo”. Quem seria esse sujeito? Diz Marcel que no momento em que penso meu corpo como objeto, deixa de ser meu. O meu corpo enquanto meu não é algo que tenho. Por outro lado, não sou idêntico a meu corpo, pois há uma diferença entre um cadáver e uma pessoa viva. Há realidades, as mais profundamente humanas, que somente nos são acessíveis na experiência ontológica, pois fundam-se no ser. Tais experiências totalizadoras são fidelidade, esperança, fé e amor que permitem achegar-nos do mistério do outro e de Deus. c) Existência intersubjetiva A comunhão ontológica é, para Marcel, a experiência existencial fundamental do metafísico. O ser é um dom a ser acolhido, exige a participação de nossa liberdade e, ao mesmo tempo, é tarefa. A unidade corpo-alma é copresença. Também as outras pessoas tornam-se presentes a nós na relação intersubjetiva e nós a elas, destacando-se a relação eu-tu. Nessa relação, não se aplicam categorias válidas no mundo das coisas. O amor ao próximo é presença, disponibilidade absoluta. O ser que amo deixa de ser um terceiro para mim. Somente o tu permite descobrir-me a mim mesmo. Quanto mais eu amar uma pessoa, mais participo em sua vida, pois amo tanto mais autenticamente quanto menos amar por causa de mim.
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O amor é uma experiência ontológica. O que me faz ser um eu é a presença amorosa do tu, uma presença criadora, pois o amor f az com que o outro se realize, que nós nos realizemos. O diálogo não é apenas uma troca de verdades, mas comunhão na verdade. Declarar a alguém “eu te amo” significa declarar-lhe: “Tu não morrerás. Venha o que vier, permaneceremos juntos”. O amor introduz a dimensão da eternidade nessa vida passageira. Por isso, quando pessoas fazem experiência de verdadeiro amor, gostariam que durasse sempre. Marcel é o filósofo da esperança, da fidelidade, do amor, mas também da fé. Concebe o homem como peregrino (homo viator ), orientado para a transcendência. Para ele, certamente não existe “prova” da existência de Deus. Infelizmente estamos acostumados a falar de Deus em termos de problema, quando se deveria evocá-lo como mistério, que livremente aceitamos ou rejeitamos. Ainda que Deus não se deixe demonstrar, podemos aproximar-nos dele. Deus faz-se ouvir no centro do mistério ontológico. A ele podemos rezar, pois orar a Deus é a única maneira de pensar em Deus, de estar com Ele. A fé que suscita sua presença não é cega, não é simples opinião, embora vivamos num mundo que perdeu o sentido do sagrado. 3.7 Hans Jonas (1903-1993) Nascido em Mönchengladbach, Alemanha, foi discípulo de Husserl, Bultmann e Heidegger. Sua mãe morreu em Auschwitz. Com sangue hebreu, em 1933 emigrou para a Inglaterra; em 1935 para a Palestina, passou pelo Canadá e estabeleceu-se nos EE.UU., onde viveu desde 1955. Primeiro dedicou-se à filosofia da religião e, mais tarde, às questões éticas do mundo moderno. Ele mesmo, no seu discurso sobre Wissenschaft als persönliches Erlebnis (Ciência como experiência pessoal ), proferida em 1986, na celebração dos 600 anos da Universidade de Heidelberg, distinguiu três etapas em sua carreira: Havia o trabalho da gnose da antiguidade tardia sob o signo da análise existencial; veio, depois, o encontro com as ciências naturais no caminho para uma filosofia do organismo; por fim, a virada da filosofia teórica para
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a filosofia prática – isto é, para a ética – em resposta ao desafio da técnica, cada vez mais insistente 23.
Doutorou-se em 1928 em Marburg, sob orientação de Heidegger. Depois de serviços no exército britânico (1940-1945), ensinou filosofia no período de 1946-48 na Universidade Hebraica de Jerusalém; no período de 1949-50 na Universidade Mc-Gill de Ottawa, Canadá e, no período de 1950-54 na Universidade Carleton de Ottawa; no período de 1955-76 na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais de Nova York. Foi professor visitante em diversas universidades americanas e alemãs. Ele próprio considera que, no seu percurso, através da gnose antiga e do pensamento existencialista, há em comum o dualismo entre homem e natureza. Entre os gnósticos, esse dualismo originou-se da perda da visão ordenada do cosmo e, entre os modernos, pela degradação da natureza a mero objeto do pensamento científico. Jonas chegou a essa conclusão através da fenomenologia do orgânico. No surgimento do orgânico, como ato originário de separação da integração geral das coisas da natureza, está contida, em germe, essa separação. Através de uma espécie de “filosofia da vida”, chamada interpretação ontológica de fenômenos biológicos, Jonas tenta romper o antropocentrismo da filosofia idealista e existencialista e do materialismo das ciências naturais. Conceito determinante para a interpretação da vida e seu desenvolvimento gradual é a liberdade. A partir de 1970, o problema da liberdade conduz Jonas para a ética prática da sociedade industrial, determinada pela tecnificação global, acentuando, sobretudo, o conceito de responsabilidade do homem frente à natureza. Entre as obras de Jonas cabe citar: Gnosis und spätantiker Geist ( A gnose e o espírito da alta antiguidade), em 1934; The Phenomenon of Life (Organismo e liberdade: princípios para uma biologia filosófica), em 1973; Technik, Medizin und Ethik (Técnica, medicina e ética, para a prática do princípio responsabilidade), em 1985; Der Gottesbegriff nach Auschwitz (O conceito de Deus depois de Auschwitz ), em 1984 e 1987. Podem considerar-se como
23 Citado
por Heinz JANSOHN em Filósofos da atualidade. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2006, p. 93.
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principais as duas seguintes: O princípio da vida: fundamentos para uma biologia filosófica e O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, ambas traduzidas para o português. Jonas tornou-se um dos principais representantes de uma ética filosófica que coloca a proteção da criatura no ponto central de sua reflexão. É uma voz de alerta que merece ser escutada. Não só tomou consciência de que o aumento desenfreado do poder do homem e a multiplicação de possibilidades de intervir na natureza, por meio da tecnociência, podem colocar em risco a natureza como um todo, questão sobre a qual reflete. O ser humano tem uma responsabilidade sobre os animais e as plantas, sobre o ar e a água para manter nosso planeta habitável, não só no presente, mas, também para a vida de gerações futuras. Por isso ele conclui que as éticas, até hoje, somente se referiam à relação entre os homens porque antropocêntricas. Quer superar o horizonte imediato do presente, através do diálogo com especialistas de outras ciências, para proteger a natureza. Para ele, o modelo de toda a responsabilidade é a criança como seu objeto originário. É preciso manter, para o homem que viverá no futuro, a possibilidade de viver humanamente, em liberdade e dignidade. Para tanto, importa ver na humanidade algo sagrado. Enfim, se temos deveres para com as gerações futuras, devemos estar dispostos a sacrifícios, a uma vida mais austera e renunciar a algo. Jonas não se mostra interessado em uma nova fundamentação de antigas e conhecidas normas de ação, como veracidade ou solicitude, mas nos problemas morais decorrentes da tecnociência moderna. Ele formula as exigências de uma nova ética de responsabilidade perante o futuro. Em Matéria, espírito e criação afirma: Refletir sobre o todo é tarefa da filosofia, mas, intimidada pelas ciências exatas e (com Descartes) exaltando a “certeza”, como principal caraterística do saber, ela renunciou a esse ofício nobre, ainda que inexato, entrincheirando-se em sua própria parte do todo como uma ciência especial. A sobrestimação desmedida (que chega a comicidade da admissão exclusiva) dos temas epistemológicos, lógicos e semânticos demonstra isso, como se o que importasse principalmente fosse como os seres humanos compreendem e não o que deve ser compreendido24.
24 JONAS,
Hans. Matéria, espírito e criação. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 70.
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Pouco mais adiante, prossegue: Mas uma hora ter-se-á que nadar livremente e arriscar o mergulho em águas profundas. Não é certamente seguro apostar que o possamos fazer. Mas a afirmação de que as “questões últimas” ali encontradas, uma vez que não podem esperar uma resposta demonstrável , sejam por isso sem sentido (como se ouve às vezes), não deve ser levada a sério; elas se escondem atrás de todo pensar e, mesmo o agnóstico declarado, as responde com sua metafísica própria, oculta25.
Hans Jonas afirma que o dualismo cartesiano teve como consequência tanto o idealismo quanto o materialismo. Ele alerta para o problema da ameaça do futuro da humanidade, para o problema da autodestruição do planeta. Nas primeiras páginas de O princípio responsabilidade afirma: “A tese de partida deste livro é esta: a promessa da técnica moderna converteu-se em ameaça, ou, a ameaça juntou-se àquela de modo indissolúvel” 26.
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25
Ibidem, p. 71.
26 JONAS,
Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 21.
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IV O PERSONALISMO
O termo personalismo originariamente foi usado para conceituar um Deus pessoal. Com essa significação, o conceito já circula em 1799 no projeto de uma fenomenologia da religião de Schleiermacher, nos discursos Sobre a Religião. Ele distingue o personalismo de uma concepção panteísta. Feuerbach retoma a oposição personalismo/panteísmo, partindo do caráter pessoal do Deus cristão, que se torna a chave de sua crítica da religião. Deus é uma projeção do homem: “A personalidade de Deus é a personal idade do homem livre de todas as determinações e limitações da natureza”. Por personalista entende-se, aqui, a filosofia que centra a reflexão no conceito de pessoa. Para os personalistas, o ser humano em seu princípio é pessoal e, tudo que nele não o é, deriva da pessoa. Faz parte da essência do personalismo afirmar a pessoa racional, livre e espiritual. No século XX surge um personalismo que rejeita o extremo relacionismo, afirmando a pessoa na autonomia e no caráter de fim em si mesma. Para essa filosofia, ser pessoa não se resume a um ser individual para si, nem a uma mera relação social, mas é o ser do homem por e a partir de si mesmo. Assim, de modo geral, designa-se personalismo uma visão e maneira de agir, na filosofia e na política que, do ponto de vista teórico, coloca a pessoa (Deus e/ou homem) como dado ontológico central e, na orientação prática, considera-a critério decisivo para a conduta individual e social. Em sentido genérico, personalismo é a filosofia que reivindica a dignidade ontológica da pessoa contra todas as reduções e/ou negações. Tanto na metafísica como na política, a pessoa humana é o valor fundamental. Antes do movimento personalista europeu, na América do Norte surgiu um personalismo relevante na filosofia. Em fins do século
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XIX havia terreno preparado para J. Royce (1855-1916), W. E. Hocking (18731966), Browne e seu aluno R. T. Flewelling (1871-1960) que foi fundador (1920) e redator da revista The Personalist até a morte, A. C. Knudson (1873-1953), C. Hartshorne (1897-2000) e E. S. Brightman (1884-1953). O movimento personalista norte-americano contém muitos elementos cristãos e escolásticos, embora se inspirasse em Berkeley e Leibniz. Na França constituiu-se um grupo de pensadores que, liderado por Emmanuel Mounier, em 1932 fundou a revista Esprit . Desse grupo faziam parte, entre outros, Jean Lacroix (1900-1986) e Maurice Nédoncelle (1905-1976). Mounier tenta a aventura de uma filosofia não-universitária. O movimento em torno de Esprit tem forte orientação cristã e comunitária. Sob a bandeira do personalismo, desencadeia um confronto com o existencialismo e com o marxismo. Busca uma nova civilização, combatendo todo tipo de alienação, desde o econômico-social, denunciado por K. Marx, até a alienação da pessoa no coletivismo anônimo, no determinismo histórico e no egoísmo vital. O personalismo francês foi preparado por Charles Renouvier (18151903) que integrou, na filosofia kantiana, a filosofia da pessoa. Influenciado por Renouvier, Mounier persegue um interesse mais prático que teórico, assumindo uma orientação de “revolta contra as tiranias de nosso tempo”: a ciência sem sabedoria, a sociedade tecnocrática, a vida privada individualista, a literatura sem preocupações humanistas, a indiferença dos políticos frente aos problemas humanos do mundo. Influenciado pelo pensamento de S. A. Kierkegaard e a ação social proclamada por Marx e pelo trabalho de Charles Péguy, o personalismo francês defendia um solidarismo cristão. Costuma citar-se, entre os filósofos personalistas, alguns pensadores alemães como Peter Wust (1884-1940), Romano Guardini (1885-1968), etc. Os temas mais importantes desses filósofos são a relação do homem com o mundo, a significação da liberdade da pessoa e a vinculação da pessoa com a comunidade. Aqui nos limitaremos a tratar do personalismo francês, cuja atualidade perdura pela maneira como coloca em discussão o diálogo entre filosofia e realidade concreta, entre liberdade e responsabilidade pessoal.
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4.1
Emmanuel Mounier (1905-1950) E. Mounier é um pensador que, fora da filosofia universitária e
acadêmica, marcou uma geração pelo tipo de compromisso, de engajamento e de diálogo, ligados à uma fé cristã aberta. Sua ação está vinculada à tomada de consciência das crises, que a sociedade europeia atravessou, no período de 1930-50; a crise econômica de 1930, a ascensão dos totalitarismos, os desafios marxistas e a segunda guerra mundial. Mounier não pretendia construir um sistema filosófico, mas queria mudar a história. Como pedagogo, desenvolveu um projeto de uma nova civilização, como já manifesta seu livro Revolução personalista e comunitária, no qual reuniu artigos publicados na revista Esprit entre 1932 e 1934. Em 1936 publicou Manifesto a serviço do personalismo e, em 1949, O personalismo. Para Mounier, a pessoa não é o indivíduo. Ela também não se opõe à comunidade: ela é o centro invisível com o qual tudo está em ligação. Desde 1939, em Personalismo e Cristianismo, ele reconhece o que a própria compreensão do conceito de pessoa deve ao mundo cristão, em oposição à herança grega. Em 1943-44 Mounier reflete sobre a presença do trágico na compreensão da existência do crente. Com o marxismo, o personalismo compartilha a convicção de que é necessária uma revolução, que privilegie a formação e a pedagogia da pessoa, com especial atenção aos marginalizados e humilhados. Mas Mounier é contra a violência. Depois da guerra, o personalismo defrontou-se com a problemática do existencialismo, que encontramos no Tratado do caráter e no livro O personalismo. Neste último, faz uma reflexão sobre a pessoa: “A pessoa não é o ser; ela é o movimento de ser para o ser e ela é consistente somente no ser que ela visa”. A filosofia personalista de Mounier gira em torno de uma problemática triangular: liberdade-valores-história. Essa problemática enfrenta os temas do mal e da transcendência. Num primeiro momento surge como o despertar da pessoa e como pedagogia comunitária. Nessa fase tenta: a) refazer a renascença, ou seja, é
obra
do
homem
projetar
uma
civilização
como
empreendimento
verdadeiramente ético, passando por uma crítica dos erros doutrinários e moralistas. O mundo da pessoa deve ser refeito a partir das suas ruínas, que ele
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tipificou no burguês e no fascista. b) O mundo da pessoa. Mounier usa algumas fórmulas da tradição filosófica a respeito da pessoa: “Centro invisível que tudo polariza”, “presença de mim a mim”, “cifra única”, “generosidade”, etc. A pessoa é a figura-limite da verdadeira comunidade, devendo entender-se as fórmulas acima em união com o impulso para um mundo a promover, apesar de Mounier acentuar a interioridade inviolável do “universo pessoal”. Estabelece alguns pares de conceitos inseparáveis: vocação e meditação, encarnação e compromisso, comunhão e despojamento. c) Personalismo e cristianismo. O personalismo de Mounier é um pensamento orientado pelo retorno do espiritual que P. Ricoeur chamou de “tomismo essencial”, cujo humanismo distancia -se tanto do pessimismo luterano quanto do otimismo iluminista. d) Personalismo e marxismo. Para Mounier, o marxismo “é um otimismo do homem coletivo que encobre um pessimismo radical da pessoa”. É inegável a proximidade entre o personalismo e o existencialismo. Para constatar isso, basta analisar a estrutura do universo pessoal: a) a existência encarnada; b) a comunicação; c) a conversão íntima; d) o afrontamento; e) liberdade em condições; f) a eminente dignidade; g) o compromisso. Entretanto, o personalismo diverge do existencialismo na sua intenção inicial quando trata desses temas: os existencialismos sempre conservam uma nota especulativa e teórica quando fazem a leitura da condição humana, aparentando-se, assim, com a filosofia clássica, na tentativa de estabelecer uma nova ontologia. Ora, Mounier interessa-se em promover uma ação pedagógica, acentuando melhor a tensão entre natureza (matéria) e pessoa. Os valores são as significações da ação que vão assinalando e demarcando o movimento para o ser. Mounier lutou pela renovação da sociedade com insistência semelhante à de Marx. Buscava uma filosofia para a ação transformadora do mundo. Sentia a necessidade de agir, de combater as “desordens” de seu tempo, de despertar o mundo adormecido na mediocridade. Postulava uma nova sociedade na qual fosse salvaguardada a dignidade da pessoa humana. Por isso, em sua reflexão, os conceitos prediletos são pessoa, espiritual e valores. Partindo da ideia do homem como pessoa, o personalismo de Mounier apresenta-se como um movimento de libertação do homem.
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Em sua obra O personalismo (1949), Mounier afirma que o personalismo é uma filosofia, porque define estruturas no centro das quais introduz “um princípio de imprevisibilidade, que afasta qualquer desejo de sistematização definitiva” 27. Defende o lugar do espírito da criatividade para opções e rupturas sempre novas e renovadas. Busca uma estrutura aberta para livrar o ser humano de qualquer sistema opressor. Concorda com Marx de que à filosofia não cabe apenas interpretar o mundo, mas transformá-lo, humanizandoo. Contudo, não apresenta um programa concreto e pronto de ação, pois este deve ser construído a partir da situação concreta. O personalismo é, pois, uma filosofia a caminho. Para ele, todavia, existem alguns critérios fundamentais de orientação: a dignidade da pessoa e o bem-estar da sociedade. Por isso, Paul Ricoeur afirma: Sua grande contribuição ao pensamento contemporâneo foi, colocandose acima de uma problemática filosófica no sentido estrito, acima das questões de ponto de partida, de método e de ordem, oferecer aos filósofos de profissão uma matriz filosófica, propor-lhes tonalidades, procedimentos teóricos e práticos capazes de uma e de várias filosofias, acrescidas de uma ou de várias sistematizações filosóficas28.
O pensamento de Mounier recebeu seu sopro vital de Charles Péguy. Conheceu o drama de Nietzsche e de Marx. Inspirou-se em Jacques Maritain, Maurice Blondel, H. Bergson e outros. Por um lado, confronta seu pensamento com as ciências do homem, com seu método positivo, que tudo quer sujeitar à verificabilidade empírica. Por outro, confronta-se com as filosofias da existência, sobretudo com Gabriel Marcel, as quais tematizam a liberdade, a interioridade, a comunicação e a transcendência. De modo semelhante ao movimento de renovação marxista, em França, tentou libertar o pensamento contemporâneo das mistificações idealistas, vinculando-o aos problemas práticos da vida. O termo personalismo, para Mounier, significa: “O universo da pessoa constitui o universo do homem”. A dignidade do homem é ser pessoa. A pessoa humana tem caráter singular, dignidade intocável e uma transcendência que
27 MOUNIER,
Emmanuel. O personalismo. Lisboa: Martins Fontes, 1973, p. 17.
28 RICOEUR,
Paul. Esprit , p. 863, dez., 1950.
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supera o materialismo, o coletivismo e o imanentismo. O homem não é apenas um ser pensante, mas alguém que ama, que valoriza, toma posições e age. Em sua liberdade, a pessoa pode realizar-se ou degradar-se à mera coisa. Na autorrealização, a pessoa sempre está relacionada com outras pessoas, numa existência dialógica, que através delas se orienta para o Deus pessoal. Mounier parte de uma concepção dramática da existência humana. Postula a ação revolucionária, a conversão pessoal, a fidelidade, o diálogo, o engajamento e a aventura como exigências da pessoa encarnada para romper a rotina que a escraviza na história concreta. O valor e a dignidade da pessoa humana só podem ser garantidos onde a sociedade e a pessoa reconhecem um Deus pessoal. Do contrário, a pessoa humana sempre estará ameaçada a ser vítima do poder, seja do Estado, do Capital ou de determinada classe. 4.1.1 Personalismo e marxismo A dignidade da pessoa consiste, em primeiro lugar, na sua liberdade. A tragédia do marxismo é o desprezo e a destruição da liberdade. Contudo, seria ilusão pensar que a sociedade ocidental, como um todo, garante a liberdade do indivíduo. A estrutura dessa sociedade é construída de tal maneira que aquilo que Marx chama de alienação é real. O homem ocidental coloca sua atividade a serviço de fins que ele mesmo rejeita, mas deve submeter-se aos mesmos, se quiser garantir sua existência material. Com razão o marxismo estabelece um vínculo não só entre filosofia, política e economia, mas também entre a filosofia e as ciências. Mounier reconhece esse vínculo como certo, uma vez que tanto a filosofia quanto a sociedade podem desenvolver-se com a ajuda das ciências. O perigo do marxismo, para Mounier, é que ele tem uma concepção prévia tanto da ciência quanto da sociedade, desrespeitando a liberdade de ambos. Ao contrário do marxismo, o personalismo quer manter-se aberto para o desenvolvimento ulterior da ciência. O personalismo ainda diverge do marxismo na sua relação com a religião. Enquanto o marxismo rejeita a religião como ideologia capitalista, o personalismo considera-a uma força impulsora para a formação moral da
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consciência. Estando a formação moral da consciência orientada socialmente, pois pressupõe a convivência humana, reprimir a religião significa reprimir o crescimento livre da responsabilidade moral e, com isso, da atividade humana, que visa a permanente melhora e renovação da comunidade. Não se pode definir a priori , concretamente, o bem-estar da sociedade, pois este realiza-se no trabalho social dos homens. Apenas pode-se dizer que seu bem-estar inclui a vida espiritual e a existência material dessa comunidade. A existência material da sociedade exige, em primeiro lugar, a elevação do nível de vida de grande parte dessa sociedade. Isso postula uma distribuição justa da riqueza do planeta. Além disso, exige paz, pois a guerra ameaça tanto o bemestar material quanto o espiritual da humanidade. O personalismo quer eliminar os últimos resquícios do colonialismo e do imperialismo e, na base da autonomia dos povos, realizar a paz mundial. Segundo o personalismo de Mounier, a vida espiritual da comunidade não só exige a liberdade espiritual dos membros da comunidade, mas também a abertura das diferentes comunidades entre si. Religião e filosofia, arte e ciência somente nascem da liberdade e nela se desenvolvem. Todos podem contribuir para a unidade dos povos, desde que possam desenvolver-se livremente. O bemestar da comunidade, enfim, é o bem-estar do mundo. Enquanto houver escravidão, fome ou miséria em qualquer lugar, é impossível falar do bem-estar do mundo. Para Mounier, há uma dialética entre a vida espiritual do homem e as condições materiais nas quais vive. Se o ser humano se consome nas preocupações materiais de sua existência, morre a vida espiritual. Isso pode ocorrer quando ele é forçado a tal pela estrutura da sociedade. Por isso devemos mudar a sociedade. Por outro lado, o homem pode também entregar-se a essas preocupações por impulso próprio porque não procura apenas o necessário para viver bem, mas persegue o supérfluo ou o poder. Cabe à sociedade vigiar para que a riqueza e o poder não caiam nas mãos de poucos. Nesse sentido, a democracia política deve ser acompanhada da democracia econômica. Despojar-se, livremente, do supérfluo material é condição para chegar à riqueza espiritual.
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4.1.2 A singularidade da pessoa A noção de pessoa resiste à análise do conhecimento objetivo. Também a noção de estrutura não esgota a noção de pessoa, pois a cada momento manifesta-se o não-inventariável, o inverificável, o mistério singular, que cada ser humano é. Mounier afirma que a tentativa de estabelecer a universalidade sem a pessoa, lançou as massas ao furor irracionalista do nazismo, do fascismo, do absurdismo, da psicanálise, do esoterismo, etc. O pensamento só existe e irradia quando enraizado na pessoa. Esta, por definição, é “aquilo que não pode ser repetido” 29, pois é singular. Afirmar a singularidade da pessoa, para Mounier, não significa negar-lhe a essência e toda a estrutura. A pessoa é, no entanto, mais que sua vida. Não é o ser, mas movimento do ser para o ser. O ser pessoal é um ser feito para se ultrapassar: “Tal como a bicicleta ou o avião só se equilibram quando se movem para lá de uma força, o homem só se mantém de pé com um mínimo de força ascensional” 30. 4.1.3 Imanência e transcendência da pessoa Através do corpo estou ligado ao universo material e, através das solicitações dos sentidos, o corpo lança-me no espaço e, através da morte, na eternidade. O corpo “é mediador onipresente da vida do espírito” 31. Mas o homem não se reduz à objetividade. A pessoa volta-se de dentro sobre ela para transformar-se e vencer as forças da inércia e da rotina, pois “aquele que invoca fatalidades naturais para negar as possibilidades do homem, abandona-se a um mito ou tenta justificar uma demissão” 32. A pessoa humana é parte da natureza, e ao mesmo tempo, a transcende: somente o homem “conhece esse universo que o absorve e só ele o pode transformar, ele, o menos armado e o menos poderoso dos grandes 29
MOUNIER, O personalismo, p. 77.
30
Ibidem, p. 129.
31
Ibidem, p. 51.
32
Ibidem, p. 44.
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animais”33. O homem está para além de si mesmo. Mounier dizia com Marx que “um ser que não é objetivo não é um ser”, mas, logo acrescentava, que um ser que só fosse objetivo, nunca atingiria o acabamento da vida pessoal. Para Mounier, o espiritual também é uma estrutura básica. A mais racional estrutura econômica, se negligenciar as desordens psicológicas, éticas ou outras exigências fundamentais da pessoa humana (religião), leva em si o germe da morte. Em outras palavras, todos os fenômenos humanos, mesmo os mais elevados, têm uma explicação pelo instinto (Freud), e pela economia (Marx). Mas, em compensação, nenhum fenômeno humano, mesmo o mais elementar, compreende-se totalmente sem o espírito. O personalismo, para Mounier, não é um espiritualismo, nem um materialismo, mas considera o espírito como valor supremo. Segundo Mounier, a ciência desenvolve a indústria, que pode levar a loucuras semelhantes às do pensamento. Produzir, entretanto, é uma atividade essencial da pessoa humana, desde que se torne uma atividade libertadora, ou seja, modelada a todas as exigências da pessoa, instaurando um mundo de pessoas. Enquanto o poder criador, capaz de imprevisibilidade, a pessoa é liberdade; enquanto sofre as investidas da matéria (biologia ou economia) é “liberdade sob condições”. Na perspectiva personalista, há uma tensão constitutiva e permanente da condição humana entre natureza e pessoa. 4.1.4 Experiências fundamentais da pessoa Mounier aborda a realidade da pessoa em torno de dois grandes polos: a existência encarnada e a comunicação ou comunhão. Sobre a existência encarnada já falamos acima. a) A comunicação A comunicação é a experiência fundamental da pessoa. Essa cresce, na medida em que ela se purifica do individualismo, tornando-se disponível, 33
Ibidem, p. 43.
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transparente a si própria e aos outros. A criança sai da vida vegetativa, descobrindo-se nos outros. Pela experiência interior, a pessoa surge como uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas. Essas “não a limitam, fazem-na crescer pelos outros, não se encontra senão nos outros. A experiência primitiva da pessoa é a experiência da segundo pessoa. O tu e, adentro dele, o nós, precede o eu, ou pelo menos acompanha-o”34. A criança descobre-se como um eu pessoal no “olhar do outro”. A pessoa existe, na medida e m que existe para os outros, pois “ser é amar” 35, mas não existe sem comunidade, nem comunidade sem pessoas. O ser humano, todavia, não é totalmente comunicação. Sempre é tentado a querer possuir e dominar. Alguns se refugiam na solidão. A cultura desenvolve máscaras, que se identificam com o rosto dos indivíduos. O olhar do outro não se torna apenas dádiva e abertura, mas também recusa e ameaça. b) Personalismo e individualismo A fuga para a solidão pode gerar o individualismo, cujo produto é um homem sem laços, sem amor, indiferente ao outro, surdo ao grito das presenças espirituais. É a negação da comunhão humana. O individualismo faz da família um ninho de víboras, da vida em sociedade uma luta de classes, uma guerra permanente e da sociedade um aglomerado de seres isolados, irresponsáveis, proprietários sem deveres e sem tradições. O personalismo quer superar o individualismo, criando comunidade de pessoas. Para isso é preciso acreditar que a pessoa é capaz de doação gratuita, de perdoar e confiar, pois “a economia da pessoa é uma economia de dádiva, não de compensação ou de cálculo” 36. A doação pessoal no amor e na amizade aperfeiçoa-se na comunidade.
34
Ibidem, p. 63.
35
Ibidem, p. 64.
36
Ibidem, p. 66.
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c) Obstáculos à comunicação Na comunicação com o outro sempre encontramos obstáculos. Dessa maneira, “a comunicação é mais rara do que a felicidade, mais frágil que a beleza. Um nada a pode suspender ou quebrar entre duas pessoas; como podemos, pois, esperá-la entre um grande número de pessoas” 37. Ser personalista é ser comunitário, sair de si, compreender, tomar sobre si o destino, a dor, a alegria, a tarefa do outro; dar e ser fiel. É lutar para vencer os obstáculos. d) A conversão íntima A pessoa constrói-se através da conversão íntima. A existência pessoal permanece sempre entre um movimento de exteriorização e um movimento de interiorização. A exclusividade de um ou outro leva à alienação, pois teremos o homem “encerrado fora de si próprio” ou “dentro de si próprio”. Diz Mounier: “É preciso sair da interioridade para alimentar a interioridade” 38. Para sair da vida inautêntica de Heidegger, da má fé de Sartre ou da alienação de Marx, o homem precisa do recolhimento. e) O afrontamento Mounier propõe uma ética para todos, não só para uma suposta aristocracia. Existir é dizer sim, é aderir. Mas, muitas vezes, a pessoa também deve dizer não, protestar, romper. O afrontamento e a ruptura são categorias essenciais da pessoa. Ser é amar e, ao mesmo tempo, afirmar-se. A vida é feita de decisões que nem sempre agradam a todos: A experiência demonstra que não há valor que não nasça da luta, desde a ordem política à justiça social, desde o amor sexual à unidade humana, e para os cristãos, o reino de Deus. É preciso combater a violência, mas
37
Ibidem, p. 70.
38
Ibidem, p. 95.
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fugir dela a qualquer preço é renunciar a qualquer grande tarefa humana39.
f) Liberdade sob condições Mounier afirma que no coração do drama contemporâneo e de todos os tempos está o problema da liberdade. Situa-a dentro da estrutura global da pessoa. Para ele, a ciência é o grande mito dos tempos modernos, pois considera o ser humano e o universo somente do ponto de vista das determinações objetivas. O movimento de objetivação é importante, mas não é tudo: “É a pessoa que se faz livre”40. A liberdade transcende a objetividade científica. Mas a liberdade absoluta é um mito. Construo-me sobre um dado, pois “não sou somente o que faço, o mundo não é somente o que quero. Sou dado a mim próprio e o mundo me antecede” 41. O homem livre é o homem capaz de prometer e de trair. A pessoa livre cria ao seu redor liberdade porque só se torna livre através da liberdade dos outros. Dessa maneira, a pessoa é limitada e condicionada pela situação concreta, embora interiormente sempre possa ser livre. Por isso, ser livre é aceitar, antes de tudo, os condicionamentos biológico, social e político. As liberdades de uns podem ser anuladas pelas de outros. É preciso evitar o totalitarismo e o anarquismo. Para falar em liberdade é preciso assegurar condições comuns, porque ela só terá sentido se for realmente para uma libertação e personalização do mundo. Embora os homens só experimentem liberdades em situações concretas, devem buscar a liberdade, pois “quando já não sonham com catedrais deixam de construir mansardas” 42. O homem livre é responsável. Mounier defende, pois, a liberdade sob condições.
39
Ibidem, p. 133.
40
Ibidem, p. 112.
41
Ibidem, p. 113.
42
Ibidem, p. 120.
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g) Engajamento e compromisso Segundo Mounier, um dos capítulos centrais do personalismo é a teoria da ação. Aceitar a condição humana é aceitar o engajamento nas situações impuras e nos combates duvidosos. O engajamento é uma exigência essencial da vida pessoal. A ação pressupõe liberdade. Somente há engajamento verdadeiro com referência a um absoluto. Segundo ele, a filosofia do engajamento exige uma filosofia do compromisso com o absoluto. Este anima toda ação, protege-a contra a rotina e contra o conformismo. O objetivo da ação é modificar a realidade exterior, formar-nos, aproximar-nos dos outros e enriquecer nosso universo de valores. O homem de ação realizado é aquele que vive no seu íntimo a polaridade do político e do profético. Somente podemos comprometer-nos e engajar-nos em combates discutíveis e em causas imperfeitas. Essa é a condição humana concreta, pois o absoluto não é deste mundo e não é mensurável com os critérios empíricos. 4.2
Jean Lacroix (1900-1986) Lacroix nasceu em Paris. Formado em direito e letras, licenciou-se em
filosofia e dedicou-se, sobretudo, à docência. Suas publicações são, em parte, um prolongamento de seu magistério filosófico. Escrevia uma apreciada crônica filosófica, sucedendo a L. Lavelle, no Le Monde durante longo tempo (1951-1980), revelando-se um interlocutor, comentarista e apresentador de todos os filósofos contemporâneos, o que evidenciava um grande sentido do diálogo. De família tradicional católica, dirigiu, com F. Perroux os Cahiers de recherches et dialogues philosophiques et économiques, colaborando em diversas revistas francesas. Entre seus numerosos escritos filosóficos podem citar-se as seguintes obras: Timidité et adolescence (1936), Itinéraire spirituel (1937), Personne et amour (1942), Marxisme, existencialisme, personnalisme (1950), Les sentiments et la vie morale (1952), Les sens de l’athéisme moderne (1958), Le desir et les desirs (1975).
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Lacroix compartilha com Mounier o conceito geral de personalismo, visando a construção da pessoa em si e nos outros. A pessoa é um espírito encarnado que, através da corporeidade, assume as dimensões vitais do homem carnal, sua biologia, seus instintos, etc., arraigada na comunidade bioafetiva da família e da comunidade. Mas, como espírito, integra todas as atividades humanas sob o primado do espiritual, do logos, ou da racionalidade nas suas múltiplas manifestações. Momento essencial do desenvolvimento do espírito é a dúvida, que revela a interioridade e a prioridade do sujeito, a positividade do espírito e define o homem como liberdade, autonomia e transcendência. Seu personalismo e sua filosofia têm caráter mais reflexivo. Distanciando-se do existencialismo, seu principal interesse filosófico inspira-se na tradição reflexiva de Descartes, Spinoza e Kant, tendo dedicado monografias aos dois últimos. Para Lacroix, a análise filosófica completa-se com a análise histórica e crítica dos pensadores. Nisso distingue-se de Mounier, pois preocupa-se com o estatuto epistemológico do personalismo. Em Marxismo, existencialismo, personalismo afirma que “o personalismo é a filosofia que reintegra ao conhecimento o conjunto da atividade humana”. Lacroix explicita melhor sua peculiar teoria do conhecimento ao tratar do conhecimento de Deus nos ensaios O sentido do ateísmo moderno e em História e mistério. Católico convicto, analisa o ateísmo no humanismo científico, no humanismo político e no humanismo moral. Diz que o ateísmo contribui para purificar a ideia de Deus, libertar a fé de antropomorfismos e mitos. Para ele, a ciência moderna mostra que as provas da existência de Deus não são válidas (provas no sentido atual), uma vez que não podemos usar o conceito de causalidade no sentido transcendente, como já ensinou Kant: “O deísmo de Voltaire é a pior negação de Deus”. Para Lacroix, a ciência dessacralizou o mundo, o tornou profano e instaurou uma maneira de viver e pensar ateia. Para ele, todo o conhecimento de Deus realiza-se por meio de representações inadequadas. Por isso, em toda crença há um aspecto antropomórfico. Qualquer imagem que alguém se forme de Deus já implica antropomorfismo e pode degenerar em idolatria. Daí é importante a dialética negativa que, desde Kierkegaard, mantém-se na teologia e na filosofia: uma dialética de credulidade e incredulidade.
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Em diversas obras, Lacroix ensina que para o reconhecimento de Deus se necessita da fé, unida à razão. Fé e razão andam juntas e inseparáveis no conhecimento de Deus, pois Deus não é simples objeto do pensamento e da experiência. Admitir a Deus é rejeitar o absurdo. Para ele, Deus é mistério, o incognoscível. A fé apenas ilumina espaços limitados. O conhecer enigmático de Deus acontece pela experiência pessoal e interior. Para ele, o mais elementar amor de si implica o amor de Deus. Segundo Lacroix, o princípio da pessoa prolonga-se na comunidade e não há verdadeiro personalismo sem o desenvolvimento do social e do político. Mas sua preocupação é mais teórica. A reflexão, todavia, deve integrar no conhecimento o conjunto da atividade humana e delinear o itinerário pelo qual a natureza se humaniza e o homem se espiritualiza, ou seja, se personaliza. Sendo o princípio da individualidade e o princípio da comunhão essenciais na definição de pessoa, os valores individuais, coletivos e sociais compenetram-se entre si e é necessário que o pessoal inspire as estruturas sociais. A economia deve ser subordinada à moral através da política. A verdadeira política é a ética em ação. Ao Estado compete, por finalidade direta, levar a seu mais alto grau de perfeição a sociabilidade humana, ordenando os projetos econômicos ao bem-comum de toda sociedade e de cada cidadão. Afirma que o coletivismo revolucionário deve conduzir ao personalismo social. 4.3
Maurice Nédoncelle (1905-1976) Nascido em Strasburg, fez seus estudos em Saint-Sulpice e na
Sorbonne. Exerceu a docência desde 1930, ano de sua ordenação sacerdotal, no Collège Albert de Mun, de Nogent-sur-marne. Desde 1943 foi professor de filosofia e de teologia e, em 1943, foi nomeado professor na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Strasburg na qual foi Decano entre 195667. No panorama da Filosofia contemporânea, Maurice Nédoncelle representa o maior promotor do personalismo nas suas perspectivas ética e ontológica. Analisa incansavelmente, ao longo de sua vasta obra (mais de 200 títulos entre artigos, conferências e livros), a relação complexa eu-tu, a que ele
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chamará “reciprocidade de consciências” ou “relação de dialogicidade”, com uma tríplice orientação possível: o amor, a indiferença e o ódio. Seu personalismo pode ser caracterizado como metafísico. A extensa obra A reciprocidade das consciências é sua principal e mais conhecida. Na primeira parte, trata da comunhão das consciências. O ponto de partida é a experiência da consciência de si, percebida em comunhão com outras consciências, que é o aspecto nuclear da pessoa. Claro, não afirma que a pessoa se reduz à consciência de si. Estando a consciência de si ligada indissoluvelmente à pessoa, é também solidária da percepção do outro. Trata de esclarecer isso com sua fenomenologia da consciência. A relação do eu com um tu é a experiência fundamental e fundante, à qual a consciência não se pode subtrair sem tender a suprimir-se. A consciência de si é solidária com outro sujeito, com um tu. Chama isto a díade eu-tu, pressuposta a outra díada sujeito-objeto. Toda percepção da pessoa do outro, enquanto pessoa, implica uma reciprocidade dada e querida. Não há um eu sem nós e este não se constroi ou se personaliza a não ser por meio do tu. Afirmando a reciprocidade como um dado inerente da consciência pessoal, onde o Tu exerce uma função essencial, Nédoncelle evoluirá, sem nunca perder a sua intuição primeira, para a explicitação de que todo o personalismo verdadeiro deve ter um fundamento, sendo a expressão de uma liberdade mútua. Se é certo que a promoção de uma consciência se processa através de uma outra ou na resposta ao chamamento do Criador, não é menos verdade que a autonomia pessoal tem um papel importante no processo intersubjetivo. A relação eu-tu é uma relação respeitosamente restitutiva de cada um a cada um, e só neste sentido ontológica. O amor é o princípio dessa reciprocidade das pessoas e da comunhão das consciências. Amor e pessoa parecem intrinsecamente unidos. Na sua forma complexa, o amor é pessoal e não se pode compreender a pessoa fora de uma rede de amor entre sujeitos. É a vontade de promoção que une as consciências numa comunidade espiritual. É na relação direta entre duas consciências amantes que se experimenta a verdadeira reciprocidade. O eu que ama quer, acima de tudo, a existência e o desenvolvimento autônomo do tu. Ele é uma vontade de promoção. Mas essa relação é perfeitamente reversível. Por isso é indiferente partir do eu ou do tu, na medida em que o tu é um alter-ego. Dessa maneira, o
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amor é uma energia realizadora que aspira a que o outro se torne liberdade infinita e vice-versa. O amor verdadeiro é mútuo e nele nós atingimos a reciprocidade máxima, que contém uma comunhão intersubjetiva. Segundo Nédoncelle, a consolidação das pessoas e de sua reciprocidade de amor somente pode explicar-se em Deus, o Tu por excelência, o único capaz de dar consistência às pessoas e salvar sua continuidade. O Tu criador, único para todas as consciências, e pessoa no sentido eminente, forma com cada pessoa um nós, fundamentado na pessoa divina. Ele pensou, pois, a atitude da reciprocidade e do amor no seio da experiência crente. A sua compreensão de fé recusa um Deus que não seja o Deus da reciprocidade e do diálogo. Por isso sublinha que o sofrimento não deve ser exaltado como dom ou castigo de Deus. A morte é sempre fracasso e ruptura, no fim de contas, incompreensível. Mas a comunhão dos santos permite-nos prolongar, na nossa vida, a presença ausente do outro, pelo fato de vivermos na mesma fonte que já constitui a vida definitiva dele. Na segunda parte de Reciprocidade das consciências prolonga sua análise. A travessia da natureza é a exposição dos esforços da pessoa para aceder a si mesma e personificar-se. Nédoncelle destaca-se como um filósofo original que mereceu respeito, através de seus estudos fenomenológicos e de reflexão racional sobre a intersubjetividade e o amor interpessoal, sob a inspiração de sua teologia católica. Soube ressaltar com vigor o momento essencial da pessoa e sua relação com outras pessoas individuais, antes e acima de qualquer comunitarismo. Personalidade de uma grande riqueza humana e cristã, ele pode ser considerado uma figura exemplar do humanismo cristão que praticou, sempre com fineza e tato, os métodos da filosofia e da teologia.
Conclusão Mounier pretende unir pensamento e ação. Seu pensamento é o de um cristão leigo, sempre em busca do Absoluto, na tensão entre encarnação e transcendência, aberto a todos os valores deste mundo. Vive no presente, pensando no futuro. Apesar das incompreensões, por parte da hierarquia
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eclesiástica, esforça-se, em todo o momento, por viver autenticamente seu cristianismo. Por vezes, apresenta traços dos grandes pensadores místicos. O pensamento de Mounier impõe-se como uma consciência inquieta, crítica e desinstaladora. Durante algum tempo, conseguiu entusiasmar muitos jovens na Europa e, na década de 1960, também no Brasil. O então movimento universitário “Ação Popular”, que tinha como mentor intelectual o jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz, no começo, se inspirava em Mounier e Teilhard de Chardin. Depois de afastado o jesuíta, o movimento passou a inspirar-se diretamente em tendências marxistas. O próprio Mounier já sentira o impasse de sua tentativa de superar o socialismo marxista e o neocapitalismo ocident al, declarando: “É difícil não ser comunista, e é mais difícil ainda ser comunista”. Atualmente a crítica ao personalismo de Mounier pode resumir-se nos seguintes pontos: a) O termo escolhido em “ismo” foi infeliz e vulnerável. b) O mérito indiscutível é centralizar a referência na pessoa. Enquanto o intelectualismo racionaliza a pessoa, o personalismo personaliza a razão. Na ordem moral, a ética da pessoa exige o duplo imperativo de agir segundo a consciência para formar uma boa consciência. Em síntese, o personalismo de Mounier, hoje, por um lado, parece ultrapassado e, por outro, ao mesmo tempo, eminentemente atual. O contexto histórico em que nasceu, o seu diálogo com o cristianismo pré-conciliar, com um marxismo que ainda se apresentava como a grande promessa para muitos, com o existencialismo ainda em desenvolvimento, dão-lhe a marca de um passado já superado. Mas a intenção que o moveu e animou, a força que impulsionava seu pensamento, a coragem de medir forças com todos os grandes desafios de sua época e, sobretudo, sua compreensão de base da pessoa, permanecem atuais, pois sua intuição ainda não esgotou as grandes potencialidades especulativas. Talvez, se pudesse e devesse dizer com Ricoeur, amigo de Mounier: morra o personalismo para que viva a pessoa. Mounier, ao lado de Teilhard de Chardin, ofereceu novas perspectivas a muitos pensadores brasileiros no fim da década de 1950, contribuindo para uma mentalidade mais aberta à colaboração e ao diálogo.
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V FILOSOFIAS DO DIÁLOGO
No século XX surgiu uma constelação de filosofias do diálogo, ou seja, um grupo de pensadores que têm em comum acentuar uma oposição ao essencialismo, realçando a liberdade individual, a corporeidade e o significado da vida pessoal. Opõem-se, outrossim, ao cunho exclusivista do conhecimento científico como único cânon do saber. Esses autores inspiram-se em Kierkegaard, Feuerbach, Marx e Nietzsche e ainda na tradição bíblica. Na vertente dialógica encontramos autores que orbitam em torno de uma preocupação religiosa. Além de Gabriel Marcel, com sua acentuação do mistério ontológico, podemos citar Ferdinand Ebner (1882-1931) com a sua percepção da realidade pneumatológica da linguagem; Martin Buber (1878-1965) com a sua concepção da tríplice relação à realidade (eu-tu-isso); Franz Rosenzweig (1886-1929) com a sua visão do ser como temporalidade, mas no horizonte da criação; Emmanuel Levinas (1906-1996) com sua ética heterônoma centrada no Outro. Esses autores, como parte dos filósofos da existência e do personalismo, geralmente atribuem pouca importância ao ideal da ciência moderna e à reflexão relacionada com ela. Eles pensam a partir da relação com a própria vida, a partir de descobertas existenciais que tentam transmitir a seus leitores numa espécie de consciência de uma missão profética. Muitas vezes também procuram atingir efeitos políticos. Eles tematizam a relação intersubjetiva sob diferentes perspectivas. Para essa filosofia, no século XX, o diálogo é uma relação de excelente qualidade entre homens que, pelo reconhecimento do outro (tu) como pessoa, renuncia à instrumentalização, levando a sério a liberdade do outro.
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5.1
Ferdinand Ebner (1882-1931) Ebner nasceu em Viena. Sofreu não só a solidão e as limitações de um
professor de aldeia, mas foi atordoado por muitas doenças. Em 1916 assumiu a fé cristã, que orientou seu pensamento. Meditou muitas vezes o prólogo do Evangelho segundo João (no começo era a Palavra). A obra de Kierkegaard Doença da morte tornou-se-lhe uma ajuda contra a maneira de, num pensamento teórico, refugiar-se nas estruturas objetivas do ser em vez de esclarecer a própria existência. O título de sua obra principal Das Wort und die geistigen Realitäten (1921) manifesta o objeto de sua preocupação central: A palavra e as realidades espirituais. Para Ebner, “somente há duas realidade s espirituais, ou não há nenhuma: Deus e eu. Entre elas desenvolve-se a verdadeira vida do espírito no homem”. O ato de criação dos seres pessoais é um ato de apelo pessoal , um não à mera produção de uma coisa. Em virtude desse primeiro apelo, o homem desenvolve sua criatividade e sua vida espiritual por relação comunicativa com os outros eu. A existência do eu, diz Ebner, não se funda em sua relação consigo mesmo, mas em sua relação com o tu. A pessoa humana não se realiza plenamente antes de entrar em relação cocriadora com o tu dos demais. Dessa maneira a relação eu-tu é uma relação estrutural da pessoa como ser espiritual, uma condição básica de seu ser. Essa relação interpessoal tem sua expressão essencial na palavra, na comunicação dialógica, através da qual a pessoa desenvolve seu pensamento e sua criatividade. A palavra é o meio pelo qual os homens se encontram e realizam plenamente o seu ser. A palavra e o amor implicam-se mutuamente. A palavra, dita no amor, liberta a pessoa humana de sua solidão e a põe a caminho da plenitude. O amor autêntico dirigese ao tu absoluto e faz participar os seres pessoais no amor de Deus. O ponto de partida de sua filosofia é a solidão de sua existência e o eu carente de sentido. A descoberta é o tu. A filosofia da consciência, que parte da posição do eu por si mesmo, desemboca no idealismo ou no materialismo e, finalmente, no desespero niilista. Os esquemas mentais sujeito-objeto e eu-isso da metafísica perene devem, segundo Ebner, ceder lugar à relação originária eutu. Para ele, não é a consciência egológica fechada em si mesma que detem o
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primado cronológico ou ontológico, mas o encontro eu-tu, fundado e garantido pelo Tu divino, interpelando o homem no ato criador. Para Ebner, dizer que o ser humano foi criado significa que o Deus vivo lhe falou, chamando-o e constituindo-o em existência pessoal. Querendo ou não, o homem está perante Deus cuja existência não se demonstra racionalmente, mas se invoca, respondendo ao seu apelo. Pela protopalavra, o homem é colocado na linguagem, sendo o ser que fala a Deus e ao outro homem. Pela palavra viva no amor comprometido, abre-se o espaço da relação eu-tu e, dessa maneira, o mundo novo de sentido e da vida espiritual autêntica. A palavra interrelacional é a luz na qual se manifesta a verdade da realidade pessoal no mundo infrapessoal. No decurso do tempo, o ser humano pode salvar-se, abrindo-se ao tu, ou perder-se radicalmente pelo fechamento no pensar monológico, coisista e manipulador. Para Ebner, o eu é sempre uma realidade espiritual porque vive do apelo, do ser dotado de linguagem. No seu pensamento, a realidade fundamental da existência humana é a linguagem enquanto falada. Nela eu existo, temporal e dialogicamente, encontrando na palavra e no amor, o tu do outro ser humano e, por esse meio e através dele, o Tu de Deus. O eu é, pois, sempre um tu de outro eu, em última instância do eu divino. De modo semelhante como M. Buber, Ebner afirma que Deus somente pode ser encontrado como tu. Por isso não se deve procurar Deus separadamente do humano. E este apenas é levado a sério em Deus. Por consequência, Ebner, diferentemente de Buber, faz da oração uma forma fundamental da existência. Ocupa-se de temas como a relação entre homem e mulher, a questão do trabalho, a guerra, o aburguesamento da Igreja. O pensamento ebneriano continua a exercer influência tanto na Filosofia quanto na Teologia. Em artigos na revista Der Brenner , Ebner abriu caminho a reflexões teológicas às quais o Concílio Vaticano II viria a dar continuidade. A riqueza da análise que Ebner faz da constituição relacional dos seres pessoais influenciou numerosos autores, tornando comum essa linguagem do diálogo interpessoal em filósofos e teólogos católicos e protestantes.
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5.2
Martin Buber (1878-1965) Martin Buber nasceu em Viena. Com três anos de idade passou a viver
na casa de seus avós, em Lemberg. Seu avô Salomão Buber, além de seus negócios, editava velhos textos midrash, ou seja, comentários atuais ao Antigo Testamento. A familiaridade com o hebraico e a dedicação ao estudo acompanharam-no durante toda a vida. Durante seus estudos interessou-se pela cultura ocidental em toda amplidão. Depois do contato com o movimento sionista (a partir de 1898) começou a refletir sobre sua herança judaica. Esperava uma renovação do judaísmo. Dedicou-se ao estudo das histórias do chassidismo, um movimento do judaísmo oriental. Primeiro interpretava esses textos na perspectiva de uma mística unificadora até publicar sua obra Eu e Tu (1923), quando encontrou sua ideia fundamental: o diálogo. Buber foi professor de Ciências da Religião na Universidade de Frankfurt no período de 1923-1933 e, desde 1938, professor na Universidade Hebraica de Jerusalém. Duas tradições confluem no seu pensamento: a) a tradição filosófica, reconhecida como abstrata e generalizante; b) a tradição religiosa judaica, expressa nos livros bíblicos e na vida comunitária. Esta, sob a forma hassídica, leva a pensar a relação humana e a relação mundo-Deus. Eu e tu, a rigor, é uma obra de filosofia da religião. Dirige-se contra a concepção, anteriormente assumida por ele mesmo, da religião como um integrarse num Uno omniabrangente, ou seja, contra os monismos inspirados pelo hinduísmo e contra todo o quietismo. Sua tese fundamental é: Tu é o nome adequado para Deus. Com isso declara a razão teórica incompetente para questões religiosas, eliminando, assim, a questão da existência ou não-existência de Deus. Deus é aquele a quem falamos e que nos fala, mas não o falado. O tu é aquilo que apela a mim e posso apelar a ele, é capaz de receber doação... Em Eu e tu encontram-se as fases do pensamento da relação. As palavras fundamentais (Grundworte) são correlatas das “vivências primordiais” (Urerlebnisse). Buber distingue três esferas da vida da relação com base nos pares verbais: eu-tu/eu-isso; a vida com a natureza, a relação com os homens e a comunidade com as essências espirituais, sobretudo com Deus.
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Buber, no início de Eu-tu, escreve: As palavras-princípio não são vocábulos isolados, mas pares de vocábulos. Uma palavra-princípio é o par eu-tu. A outra é o par eu-isso no qual, sem que seja alterada a palavra princípio, pode-se substituir isso por ele ou ela. Desse modo, o eu do homem é também duplo. Pois o eu da palavra-princípio eu-tu é diferente daquele da palavra-princípio euisso43.
Mais adiante continua: “O mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio eu-isso. A palavra-princípio eu-tu fundamenta o mundo da relação”44. Explica: “Que experiência pode-se então ter do tu? Nenhuma, pois não se pode experienciá-lo. O que se sabe então a respeito do tu? Somente tudo, pois, não se sabe, a seu respeito, nada de parcial” 45. A palavra-princípio eu-tu só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade. A relação com o tu é imediata. Eu-tu é o par mais apto para oferecer o sentido da relação, pois nele surge a reciprocidade. Eu-isso está na gênese da objetividade que implica cisão e, baseada na lógica sujeito-objeto, suscita o egocentrismo. A oposição dessas duas formas fundamentais, da minha relação orientada para um tu e da minha relação orientada para um isso (um objeto), constitui a arquitetura básica do pensamento de Buber. Em ambos os casos trata-se de uma referência a mim, em frente a mim, de uma espécie de “entre” intencional. Mas em ambas as relações o eu apenas tem uma unidade formal; o preenchimento concreto de sentido do eu depende daquilo a que se refere, ou seja, se o outro é vivenciado como tu ou isso. Com o “mundo do isso” Buber designa o campo da experiência objetiva. “Isso” é tudo que se pode observar, constatar, explicar e, em princípio, dominar. O desenvolvimento da ciência e da técnica, a aquisição de informações e de produtos práticos, que tratam do “isso”, é necessário, mas não proporciona um sentido humano. Tal está vinculado à descoberta do tu. O objeto representa o experimento, o manejável e a continuidade espácio-temporal mensurável. O eu-tu é origem da liberdade, decisão e ação históricas. A pessoa, naquilo que a
43 BUBER,
Martin. Eu-tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 2007, p. 3.
44
Ibidem, p. 6.
45
Ibidem, p. 12.
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distingue do indivíduo, possibilita esses modos da relação. A pessoa, presença a si mesma, define-se como “único” (Einzelne (Einzelne)) aberto à relação pelo tu inato, na singularidade insubstituível. Pressentido nas duas primeiras esferas, o tu eterno dá-se como princípio da presença única, irradiada na revelação. Em cada esfera encontra-se um princípio de unificação: Cosmos, Eros e Logos. No terceiro princípio unificam-se os outros. Ele é o todo, mas o seu símbolo é o diálogo, como ocasião de louvor a Deus e do amor dos homens. No período de 1926-37, Buber traduziu a Bíblia (Antigo Testamento) para o alemão. Em 1938 esboçou uma antropologia filosófica. O homem não é objeto recortado entre outros. Como o homem não é mera substância, mas relação, relação, a noção do “entre” capta a a vida dialógica sem deformar a alteridade e mostra a reciprocidade interpessoal. O “entre” chama a antropologia para a superação dos modelos egotistas religiosos e filosóficos. Buber publicou obras importantes não só para a filosofia como também para a teologia. Em 1951, Urdistanz und Beziehung (Distância primordial e relação) e Gottesfinsternis (Eclipse de Deus), em 1953. Mas a mensagem principal de sua obra filosófica é Ich und Du. Du. Foi incansável lutador pela reconciliação
entre
judeus
e
árabes
na
Palestina.
Reconhecido
internacionalmente, em sua casa, entretanto, era discutido, quando morreu em Jerusalém. 5.3
Franz Rosenzweig (1886-1929) Franz Rosenzweig nasceu em Kassel (Alemanha), de família judia.
Estudou história e filosofia com o neokantiano Hermann Cohen. Doutorou-se em filosofia com a tese sobre Hegel, Hegel und der Staat (Hegel e o Estado), publicada em 1920. Durante a primeira guerra mundial, na frente balcânica, redigiu, em 1917, a sua obra fundamental Der Stern der Erlösung (A (A estrela da redenção). Após uma tentativa de conversão ao Cristianismo, redescobriu dramaticamente o seu judaísmo. Atacado de paralisia progressiva, nos últimos anos de vida dedicou-se à tradução do hebraico para o alemão da obra de Yehuda Halevi e da Bíblia, em colaboração com M. Buber.
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A obra Der Stern der Erlösung é é um estudo sistemático de filosofia que assume motivos centrais da Bíblia, criticando a ideia de identidade do idealismo, o sistema da totalidade de Hegel. Antes que Heidegger falasse da diferença ontológica, Rosenzweig distinguiu no ser, Deus, o homem e o mundo como realidades infinitivas e diferenciadas, cujos princípios estão claramente expostos no triplo movimento da criação, da revelação e da redenção. A filosofia, desde a “Jô “Jônia até Jena”, Jena” , deriva aquilo que aparece daquilo que não aparece (da essência). Em Thales é a água e em Hegel, o espírito. Nos dois casos uma totalidade absorve em si a diferença. Para Rosenzweig interessa, sobretudo, a irredutibilidade mútua do mundo, do homem e de Deus, cuja relação mútua situase em diferente modo de ser, como condição a priori que fundamenta toda a experiência e toda construção ontológica. A irredutibilidade dessas grandezas discretas, para ele, está vinculada à experiência de que o indivíduo pensante não se pode dissolver na totalidade pensada. O seu medo da morte, que tenta absorver e superar no sistema universal, permanece e, da mesma maneira, permanece a possibilidade de entreter-se com outros sobre o sentido prático do sistema. Permanece o eu individual, mesmo depois que a mediação da ideia absoluta chegou ao fim. Com isso manifesta-se o limite dos projetos idealistas e também a possibilidade de concordar com a autocompreensão de Hegel, pois representaria o fim da filosofia. Depois do fim da filosofia da identidade deverá começar a da diferença, ou seja, a filosofia do individual e da experiência irredutível e do tempo aberto. Rosenzweig pensa o ser como temporalidade. O nome concreto para aquilo que todo o pensar e agir deve pressupor – – Deus, mundo e homem – é criação. A ideia da criação fundamenta a diferença e protege contra a tentação de absorver um no outro. A diferença entre Deus e mundo e entre Deus e homem é a superação das tentações modernas de ou absorver o mundo em sua concepção ou o eu no mundo. Nosso autor ainda reflete sobre a existência, inspirando-se em Hegel e em Kierkegaard. A trilogia criação-revelação-redenção criação-revelação-redenção inclui os pontos básicos de sua trajetória. Designa os arcos da abóbada do homem concreto, a ponte lançada entre a natureza e a fé, desde o sopro inicial até a luz do espírito que salva. Aparece um horizonte de sentido no fundo da existência ou reside numa consciência anterior.
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No mundo da cultura filosófica e teológica do Ocidente, Rosenzweig nega o caráter primordial da racionalidade t al como se desenvolveu “desde as ilhas Jônicas até Jena”. A importância dada à personalidade quanto à originalidade acontece em detrimento de uma solidariedade cósmica. Para salvaguardar esta última, Rosenzweig toma de Schelling, de modo particular, o abundante material de um mundo imaginário, de uma mitologia e de uma cosmogonia próximas a sua própria gênese. Apesar de sua tendência mística, alimentada na cabala, e de sua inclinação ao lirismo, não sucumbiu em imersões abismais nem em visionarismos. Usou os instrumentos de análise do pensamento mútuo propostos por E. Cassirer. Para o filósofo alemão, a cultura alcança seu ápice, mediante a palavra, que faz chegar a esse estado em que o homem atinge uma profunda harmonia. Então as portas da sabedoria, da razão e a política deixam de prometer uma totalidade que são incapazes de conferir. A antropologia de Rosenzweig está inspirada na Bíblia e retorna a ela , depois de enfrentar as encruzilhadas da crença e da incredulidade. Existe uma antropologia judia, embora imprecisa e pareça fracassar no limiar da alma, da razão e da religião. O sucesso da obra de Rosenzweig deve-se, em parte, ao desenvolvimento de um pensamento figurativo. Através do jogo das imagens e do verbo mental que essas favorecem, transbordam as potências da alma. Um “coração” maior que tudo que abarca afirma-se através de símbolos, mitos e temas existenciais (0 nada, o trágico, a angústia, a morte, o sagrado, a festa, a palavra). O homem possui um fundamento perpétuo. Mas a arte dessas composições anteriores responde, desde o começo, à força de uma inspiração proveniente da existência judia. judia. Essa existência está configurada pela espera do messias e se orienta para a figura figura daquele que ainda não coroou a história. Rosenzweig anuncia aos homens e às religiões uma salvação universal, objeto de um pensamento novo novo que se extingue quando o espírito quer conhecer o que ainda não chegou no tempo. A vida cotidiana e a vida de fé dificilmente coincidem quando privadas da substância habitual do acontecimento realizador. Uma e outra necessitam de ritos. Por isso é importante o recurso ao sossego da oração e da liturgia. Na água e no fogo da festa do Yom Kippur (dia (dia do perdão: festa máxima dos judeus), Rosenzweig reforça a espera de uma presença plena, incessante
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nascimento da alma e eternidade do reino. A verdade verdade do próximo e a visão do rosto são rosto são também, para ele, as estrelas de uma revelação cotidiana do rosto de Deus, Deus, em sua alteridade indefinível. A melhor ilustração de um pensamento figurativo, f igurativo, que contém a força do discurso e do concreto, procede do símbolo que dá seu título à obra principal de Rosenzweig. Trata-se do símbolo da estrela. A estrela da redenção, imagem cósmica da luz e fonte pontual da vida, de sentido e de caminho, desenvolve sua lógica até servir de suporte ao conjunto dos produtos da consciência, das objetivações da razão e dos mirabília da mirabília da história sagrada. Um símbolo recolhe e irradia uma antropologia judia do ser e do vir-a-ser. Organiza intimamente seu corpus e corpus e rege seu espírito em uma espécie de respeito soberano. Os temas da criação, revelação e redenção animam-se e compõem sua unidade na unidade de uma eclosão, de um acontecimento. O primeiro tema está representado pelo triângulo invertido da estrela de Davi. A dinâmica criacional tem um caráter separacional, de corrupção, de morte. É a parte confiada à filosofia (Deus, mundo, homem). Está transpassada pelo triângulo que aponta para cima, na mesma estrela. A dinâmica da revelação é ascensional. Corrige, muda, transforma a criação ferida. É tarefa da teologia dar conta da revelação (caminho, verdade e vida), mas há uma forte tensão entre uma e outra dinâmica. Manifesta-se um conflito que postula a redenção. Esta aparece representada por um círculo inscrito na superfície comum aos dois triângulos. É o raio da luz messiânica na história da salvação. Os judeus, irredutíveis e estrangeiros, possuem seu princípio. Eles garantem sua permanência no centro de uma experiência de eternidade que basta para trazer a redenção. Os cristãos vivem do mesmo princípio universal, mas de outro modo, com uma missão histórica entre as nações, no centro do Ocidente. Os muçulmanos o desejam, embora a ele se oponham. Os pagãos percebem alguns reflexos, pois existe, em definitivo, para uns e outros, a fim de se poderem encontrar em sua linguagem e em sua mensagem. Enfim, o pensamento de Rosenzweig é ecumênico. Consagrou-se à filosofia da religião. Foi precursor, sob muitos aspectos. Alguns anos antes de Heidegger, sublinhou o aspecto temporal e o tema da morte. Sublinhou, outrossim, a importância da experiência, desenvolveu uma filosofia da palavra (semelhante à de Ebner), dialogal, que
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valoriza os temas da linguagem (mas numa linha muito diferente da do positivismo lógico). É, sem dúvida, um dos maiores pensadores judaicos de todos os tempos, desde Filon e Maimônides. A sua obra Der Stern der Erlösung extrapola a problemática hebraica, convertendo-se num manancial de inspiração e referência não só do diálogo judaico-cristão e do messianismo sionista, mas também como fonte de uma filosofia dialogal. Rosenzweig deu uma grande contribuição para a história da filosofia contemporânea, através de sua crítica ao idealismo e ao totalitarismo do Estado. 5.4
Emmanuel Levinas (1906-1995) Levinas nasceu em Kaunas (Lituânia). Estudou na Lituânia e na Rússia
e cursou filosofia em Strasburg (1923-1930). Viveu em Freiburg (1928-29), assistindo cursos de E. Husserl e M. Heidegger. Foi professor de filosofia, diretor da Escola normal israelita oriental, professor de filosofia na Universidade de Poitiers (1964), na Paris-Nanterre (1967) e finalmente na Sorbonne (1973). Oficial do exército francês durante o nazismo, foi prisioneiro num campo de concentração alemão, aí escrevendo parte significativa de De L’existence à L’existant e e Le temps et L’autre. L’autre. Sua tese de doutoramento sobre La théorie de L’intuition dans la phénomenologie de Husserl (A (A teoria da intuição na fenomenologia de Husserl), foi premiada, em 1930. Levinas criticou a interpretação husserliana da consciência do ponto de vista teórico. Mas em seus primeiros escritos pessoais De L’évasion L’évasion (1935) e De L’existence à L’existant (1947) desenvolve uma teoria da subjetividade contra o pensamento de Heidegger sobre o ser. Em De L’évasion, L’évasion, pela primeira vez, apresenta um pensamento mais pessoal e mostra o peso de ser e a necessidade de sair da ontologia. As conferências Le temps et L’autre, L’autre, indicam o rumo de seu pensamento. A questão do outro e da relação intersubjetiva será o tema de toda obra posterior. Por um lado, Levinas encontra-se na tradição do judaísmo crente e, por outro, como Buber, coloca o tu, tu, o próximo singular, o outro, no ponto central, podendo caraterizar-se caraterizar- se sua filosofia como uma “filosofia do encontro”. Há duas obras que sintetizam o pensamento do autor: Totalité et Infini. (1961) e Autrement e Autrement qu’être ou Au del á de L’essence (1974). Essai sur L’extérioté L’extérioté (1961) L’essence (1974).
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Para Levinas, a relação do homem com o mundo e a relação do homem com o outro homem não são do mesmo tipo. A relação homem-mundo não é originariamente conhecimento, mas fruição; estar no mundo não é primariamente conhecê-lo, mas fruí-lo, banhar-se nele, estar imerso nele e, por isso, a relação eu-mundo é ambígua. Por um lado, implica separação (só um ser separado pode fruir) e, por outro, imersão (fruir é impregnar-se). O ponto de intersecção do homem no mundo é a casa, tornada morada pela presença do feminino, onde ele se refugia e a partir da qual, pelo trabalho, conquista o mundo, precavendo-se da incerteza do amanhã. Segundo Levinas, no gozo constitui-se o sujeito, que, como parte do ser, desprende-se do todo, existindo separadamente, distante do todo, e pode sujeitar o mundo. A constituição do sujeito é independente, acontece no gozo e nas necessidades correlativas a ele. Ele é a premissa para poder abrir-se à outra coisa. O outro depara-se com meu eu, como rosto, que olha para mim, encara o meu olhar e se apresenta como alteridade por inversão da direção do olhar, como exterioridade radical, da qual o eu não pode apropriar-se como parte de seu mundo. O olhar do outro acontece como linguagem. A relação eu-outro é de outro tipo que a relação eu-mundo. A partir do outro, da diferença entre ele e mim, vem à tona para mim uma interrelação, uma interpelação que requer uma tomada de conhecimento e uma resposta. Construir uma imagem pronta do outro significa degradá-lo numa coisa. Levinas descreve essa relação com o outro a partir do face à face. Estar perante o outro é estar perante a altura, o mestre, o superior , e isto acontece porque do rosto do outro não temos uma representação; o rosto é epifania. Há nele uma presença ausente, a ideia do Infinito, que me ordena e que o torna indominável. Ao mandamento anarquicamente presente no rosto do outro só posso dar uma resposta: “eis -me aqui!” Dessa maneira, o que, segundo Levinas , carateriza a subjetividade não é a sua atividade, ou seja, a sua racionalidade, o ser sujeito do conhecimento, mas a sua passividade, a moralidade, o ser sujeito de obrigações. O eu é, pois, sensibilidade, vulnerabilidade, sujeição, porque sujeito ao outro; refém, porque sua vítima. Dessa maneira, originariamente, o eu não é senhor mas sujeito no sentido etimológico do termo, subordinado ao outro porque ser eu é anarquicamente “ser para o outro” até a substituição . Em oposição a Descartes,
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para quem o eu aparece como o ponto de partida, para Levinas, o ponto de partida é o outro, cujo rosto brilha no rastro do Infinito e perante o qual eu sou anárquica e infinitamente responsável, indo a minha responsabilidade até a responsabilidade que o outro possa ter por mim. A alteridade absoluta do outro questiona a segurança e a radicalidade da minha subjetividade. O pensamento de Levinas está relacionado com a fenomenologia husserliana e com a filosofia do primeiro Heidegger, embora ele transforme ambas as heranças. De Husserl, Levinas retem a exigência da concretude fenomenológica e a descoberta da intencionalidade. Mas leva a ideia da intencionaldade às últimas consequências e tropeça com o não tematizável. Sua relação com Heidegger é conflitiva, apesar de admitir sua dívida para com ele. Onde o pensamento heideggeriano deriva do sendo ( Seiend ) a primeira doação do ser, Levinas postula a necessidade de romper com o anonimato do “há” ( es gibt ) que constitui o horizonte de todo o pensamento ontológico. Julga que, debaixo de suas diferentes formas, o pensamento ocidental continua sendo um pensamento da totalidade. A única superação desse pensamento é a metafísica que se organiza em torno da ideia do Infinito, uma ideia que se encontra dentro de nós. Levinas pergunta como o mesmo pode entrar em relação com outra coisa, sem privá-la de sua alteridade. Outra coisa acontece a partir do outro concreto que rompe a totalidade do mesmo. Segundo ele, a ontologia, como filosofia primeira, procura a verdade na adaequatio intellectus ad rem, desprezando fundamentalmente a alteridade do outro e, com isso, apresenta-se como filosofia do poder, pois o eu constituído pelo gozo é determinado pelo egoísmo. Ora, o outro não se sujeita à tendência egoísta. Para Levinas, a metafísica precede a ontologia, referindo-se à outra coisa como infinito que não se deixa integrar. Em Levinas a doutrina do infinito conheceu uma expressão original, enraizada numa reflexão sobre a alteridade. A consciência ocidental, em sua perspectiva epistemológica, sempre teve a tendência a reduzir o outro ao mesmo. A ideia cartesiana do infinito, na Meditação III, é notável porque seu ideatum ultrapassa sua ideia. Pensando o infinito, eu penso mais do que penso. A experiência do infinito é a de uma alteridade irredutível, e o seu paradigma é
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revelado a mim na face do outro e na resistência que ele opõe a meu desejo de assimilação. A única superação possível do pensamento ocidental da totalidade é a metafísica que se organiza em torno da ideia de infinito, depositada em nós. A metafísica do infinito permite pensar em uma relação com o outro sem objetivar ou tematizar uma totalidade. Que essa ideia não é apenas uma ideia, demonstra-o a experiência da escatologia bíblica e, em outro nível, a experiência do rosto humano. O verdadeiro trabalho do filósofo, segundo Levinas, situa-se nesse mesmo nível. Ele deve abstrair da significação do rosto, que, em absoluto, não é apenas uma manifestação (uma vez que o essencial é imperceptível). Surge o princípio de uma ética. Todas as demais relações humanas, tanto a do Eros como a da filiação, são modalidades dessa relação ética, filosofia primeira, origem an-árquica de toda a significação. O significado é o cara a cara de “um para o outro”, contrariamente às filosofias personalistas, que evocam a reciprocidade das consciências, ou as filosofias do diálogo, que insistem na relação do eu com o tu. Levinas salienta o caráter assimétrico da relação: esta põe o eu no acusativo, mas ao mesmo tempo funda o humanismo do outro . Neste sentido, a “metafísica do infinito” desloca a articulação habitual do próprio e do outro , permitindo pensar numa relação com o outro sem objetivar ou tematizar uma totalidade. A fenomenologia do rosto é um dos temas mais interessantes e estimulantes da obra de Levinas. Ele usa terminologia bíblica e ética, porque, não sendo fenônemo, o rosto não pode ser descrito com a terminologia da filosofia ocidental, que é uma filosofia da representação. A par deste vocabulário, a concepção do eu como responsabilidade anárquica é, sem dúvida, uma das ideias originais desse autor. Que essa experiência de si e do outro esteja de acordo com a tradição bíblica, em nada diminui sua pertinência filosófica. Pelo contrário, Levinas opõese às formas místicas de uma participação que seriam as expressões religiosas de um pensamento da totalidade. Postula um “ateísmo da vontade”, uma “ alma naturalmente ateia”, que viva fora de Deus antes de começar a análise da religião. Essa análise baseia-se na oposição irredutível do sagrado e do profano. Toda a fenomenologia da transcendência, que esquecesse a “altura” da santidade para perder-se no anonimato do numinoso, trairia o infinito. Nesse sentido, a fé
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monoteísta inaugura uma humanidade sem mitos. Fora da relação ética, que nos une ao próximo, não pode haver conhecimento de Deus. A relação ética, segundo Levinas, é decisiva no acesso à ideia de Deus. Ela é que permite pensar como Deus “vem à nossa mente” e define sua transcendência específica, inspirada na mística judaica. Isto quer dizer que Deus não pode ser abordado como outro tu, tampouco ele se manifesta na percepção ou representação ordinária. A glória do Infinito glorifica-se na doação absoluta do sujeito ao próximo e nunca é tematizável. A verdade do Infinito realiza-se através do testemunho. A hermenêutica do testemunho implica uma compreensão que considera o dizer como mais originário que o dito. Neste sentido, toda linguagem é testemunho e prova da glória do Infinito. O eu que dá testemunho no aqui estou é único, carrega a identidade de uma pura eleição para além de toda identificação. O sujeito que glorifica o Infinito na sua dimensão não tematizável, é sujeito inspirado. A inspiração é a linguagem captada pela sintonia do próximo. É a verdadeira significação do profetismo. Este é o fenômeno mais conhecido da história das religiões; define uma estrutura universal. Toda linguagem é virtualmente profética na medida em que é capaz de dizer, explícita ou implicitamente, aqui estou em nome de Deus. Deus nos orienta ao próximo; o profeta é aquele que situa seu dizer na esfera de influência dessa ordem. A dimensão que se subtrai à tematização leva-nos, sem dúvida, pelos caminhos de uma teologia negativa, no sentido tradicional. O Deus dito deixa transluzir o Infinito em nome de uma presença, reduz o dizer ao dito, mas inversamente, a negação do presente remete à positividade do testemunho. A transcendência do Infinito marca uma distância irreversível com relação ao presente, mas, a este propósito, remete à revelação para além do ser, que nenhum dito, por poderoso que seja, poderia reter. O Deus único deste pensamento não é um objeto, nem um tu, mas o outro, o totalmente Outro. A fenomenologia de Levinas renova o problema da relação entre o texto sagrado e o texto profano. Todo texto profano é virtualmente um texto sagrado na medida em que atesta sua fidelidade ao outro. A ética realiza o religioso. Realiza, igualmente, o sentido das Escrituras. O homem, animal dotado de razão, mas também animal capaz de inspiração, animal profético, é convidado,
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na sua relação com o livro sagrado, a superar o dogmatismo das crenças para conhecer a glória do Infinito, inseparável da exigência ética. Para Levinas, religião e ética coincidem porque a única maneira de encontrar-se com Deus é praticar a nossa responsabilidade pelo outro humano, que está “no vestígio de Deus”. A tematização e a objetificação sistemática, embora sempre em perigo de reduzir toda a alteridade, têm sua própria verdade relativa e subordinada, especialmente com relação às condições econômicas e políticas da justiça universal para todos os indivíduos que eu não posso encontrar pessoalmente. Com e através do outro, encontro todos os humanos. Nessa experiência está a origem da igualdade e dos direitos humanos. Mais que desejo de sabedoria teórica, para Levinas, a filosofia é a sabedoria do amor. O projeto de Levinas visa descobrir, na exterioridade metafísica, a origem das verdadeiras relações humanas. Tal relação opera-se entre seres mais separados que os homens na guerra e que, longe de opor-se, unem-se na e por sua própria separação. Sua meditação contraria o conceito heideggeriano de ser, admitindo a superioridade do existente sobre o ser. A metafísica, ciência do infinito, deve recolocar a ontologia, ciência do ser. O infinito reflete-se na totalidade e na história, é o absolutamente Outro e funda, por sua vez, a autonomia da sociedade dos seres, tanto mais unidos quanto mais separados e autônomos. A exterioridade do outro é um apelo ao eu. A relação fundamental que se estabelece entre ambos é a de falar, do diálogo, e implica o ensinar. O ensinar é a marca da exterioridade que penetra em mim e eleva à transcendência da linguagem. O próprio Deus ensina-me através de sua revelação gratuita. A relação que se constitui entre o eu-tu, segundo Levinas, está aberta ao transcendente, ao Outro que ultrapassa infinitamente a medida de nosso conhecimento.
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VI O ESPIRITUALISMO
Na filosofia, no final do século XIX e começo do século XX, na Europa e nos Estados Unidos, predominava uma forte tendência positivista e cientificista. Somente se considerava legítimo o conhecimento de dados empírica e diretamente observáveis, passíveis de mensuração e capazes de serem situados numa cadeia rigorosa de causas e efeitos. O mundo da ciência parecia regido por um férreo determinismo, eliminando qualquer arbítrio (divino ou humano) e qualquer imponderável. O determinismo e o materialismo pareciam ter vencido. Clássicas questões metafísicas pareciam definitivamente superadas. No período entre as duas guerras mundiais agravaram-se os ataques à metafísica tradicional, de um lado, pelo neopositivismo lógico e, de outro, pelas ciências humanas. O primeiro negava todo conteúdo próprio ao saber filosófico, reduzindo a filosofia à função de “clarear a linguagem” ou a questões de método; em certos setores das ciências humanas eliminava-se simplesmente o significado da interioridade do homem, reduzindo-o ao seu comportamento. Contra esse positivismo, na Europa, reagiu um grupo de pensadores que pode reunir-se sob o nome de espiritualistas. Esses pensadores não se conformam com uma concepção cientificista do homem. Sua preocupação primeira é mostrar que o ser humano não se reduz simplesmente à natureza material. O mundo do espírito constitui-se, também, por valores éticos, estéticos, liberdade da pessoa, transcendência de Deus... A realidade não se reduz aos fatos. Sem dúvida, os fatos são reais, mas nem toda a realidade se reduz aos fatos. Mostrar essa realidade é a tarefa primeira que esses pensadores se propõem em sua filosofia. Para isso afirmam que, ao contrário das ciências empíricas, a filosofia deve tematizar a especificidade humana em relação à toda a
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natureza: o ser humano é interioridade e liberdade, consciência e reflexão. Para isso ela precisa de método próprio, precisa ouvir a voz da consciência, e delinear os limites do conhecimento científico “propriamente” dito. Portanto, o espiritualismo reage contra o positivismo das ciências em nome de interesses morais e religiosos. É certo que as ciências multiplicam nossos meios para agir, mas não nos ensinam como agir ... Elas servem ao crime da mesma maneira como à virtude. Nessa época, percebem-se monstruosas alianças da ciência ao totalitarismo político de Estados, fortalecendo-lhes o poder, ocupando o lugar do Absoluto. Os espiritualistas franceses reagem, pois, contra a tentativa de uma concepção puramente cientificista do homem. Defendem a interioridade que confere significado a ele e às coisas. Por interioridade entendem a capacidade de recolher-se em si mesmo. A interioridade é a sede da iniciativa, da liberdade. Diante do mundo, o homem não se reduz à mera passividade. O que, segundo esses pensadores, constitui a pessoa é a interioridade e a liberdade. Tudo isso é expresso pelo termo francês esprit . O espírito é concebido não como a almasubstância, mas como atividade por excelência, que se justifica a si mesma ao por-se. Para afirmar as realidades espirituais, esses filósofos desenvolvem um método a partir da experiência interior, pela percepção da realidade espiritual em seu próprio exercício e, posteriormente, pela reflexão para traduzir tal experiência em categorias filosóficas. Por outro lado, o espiritualismo também reage contra certo idealismo romântico que identifica o Infinito com o finito; enfatiza a transcendência do Absoluto ou de Deus em relação às consciências individuais e em relação à natureza. Com o termo espiritualismo designa-se, pois, uma atitude própria e um método que tem precedentes na história da filosofia. Basta pensar em Plotino e em Agostinho, quando este afirma que “a verdade habita no interior do homem”, no “cogito” de Descartes, no “esprit de fine sse” de Pascal etc. Para os chamados filósofos espiritualistas, Deus é o espírito absoluto e o homem espírito finito. A teologia católica também foi levada a rever instrumentos apologéticos com os quais tentava realizar o encontro do cristianismo com a cultura da época. Nessa tentativa, a teologia sofreu a influência do pensamento do Cardeal Newman (1801-1890) e da teologia liberal protestante. Na sua obra An Essay on
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the Development of Christian Doctrine (Um ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã), em 1876, mostrou que o cristianismo, para ser coerente consigo mesmo, passou por uma contínua evolução de ideias e de práticas durante sua história, justamente como um princípio vital, para gerar vitalidade nos cristãos. Por outro lado, o teólogo August Sabatier (1839-1901), professor na Faculdade de Teologia protestante de Estrasburgo, apresentou a fé como uma experiência pessoal, intransmissível, com base em critérios externos, como os milagres. Portanto, o objetivo da fé não seria o de instruir-nos a respeito daquilo que Deus é em si, mas de despertar sentimentos capazes de constituir novas relações concretas entre Deus e o homem. Sobre esse pano de fundo, o espiritualismo de Blondel se destaca, e seu pensamento influencia a teologia católica durante cerca de 50 anos. O espiritualismo obteve mais êxito na França, onde já havia uma tradição da “filosofia da consciência”. Mas ele configurou-se como um fenômeno europeu. Assim desenvolveu-se, na Inglaterra, com Arthur James Balfour (18481930), Andrew Seth Pringle Pattison (1856-1931) e outros. O citado por último polemizou, por exemplo, contra a abstr ação lógica da “consciência absoluta” dos neo-idealistas como Bradley. Clement C. J. Webb (1865-1954) criticou o absoluto impessoal dos idealistas, afirmando que somente um Deus pessoal satisfaz as exigências mais profundas da experiência religiosa autêntica. O espiritualismo também encontrou sua expressão na Alemanha, em autores como Rudolf Eucken (1846-1926), prêmio Nobel da Literatura em 1908. Na Itália desenvolveu-se depois por autores como Pedro Martinetti, Bernardino Varisco e outros. Na França o caminho foi preparado, no século XIX, por pensadores como Maine de Biran (1766-1824), Jules Lequier (1814-1862), Felix Ravaisson-Mollien (1813-1900) e Émile Boutroux (1845-1921). No século XX, destacamos dois grandes expoentes do espiritualismo: Maurice Blondel e Henri Bergson. 6.1
Maurice Blondel (1861-1949) Blondel abre a filosofia moderna ao diálogo com o espírito cristão, pois
os enigmas da razão e os da revelação se esclarecem mutuamente em sua obra. Ele nasceu em Aix-en-Provence. Frequentou a Escola Normal Superior, tendo
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como professores Oilé-Laprune e Boutroux. Desde 1882, sob inspiração do primeiro, projetou uma tese sobre a Ação, que só foi admitida graças à intervenção do segundo. Defendida em 1893, teve uma repercussão extraordinária, provocando grandes e longas discussões a favor e contra por parte de católicos e não-católicos. Por parte da Academia, Blondel foi acusado de negar à filosofia o caráter racional e autônomo, subordinando-a à fé e, por parte dos católicos, de negar a gratuidade sobrenatural. Em 1896, Blondel foi nomeado professor de filosofia na Faculdade de Aix. Cego, retirou-se em 1927. Abandonando a longa polêmica em torno de A ação, preparou a trilogia La pensée, L’Être et les Êtres, L’Action para explicitar sua intuição original. Em sua obra principal A ação: Ensaio de uma crítica da vida e de uma ciência prática (1893), coloca inicialmente a pergunta: “A vida humana tem ou não tem sentido? O homem tem ou não tem d estino?” Para Blondel, a ação é o centro da vida. Por isso o centro da filosofia, segundo ele, deve ser transferido para a ação. O que tipifica a experiência humana não é a razão, mas a ação. É na ação que o homem expressa o mais profundo de si mesmo, a sua vontade. Portanto, a filosofia deve orientar-se na ação. A dialética da vida não é a dialética da razão, mas da vontade. A escolha do tema parece ter surgido em circunstâncias particulares e bem cedo. Quando ainda aluno da Escola Normal, seu catolicismo era desafiado diariamente. Na época predominava a filosofia idealista, baseada na autonomia da razão e no princípio da imanência. Esse idealismo opunha-se a qualquer doutrina revelada por lhe parecer extrínseca e necessariamente autoritária. Reinava amplamente a ideia de que crer num Deus revelado seria abdicar da dignidade humana. Blondel queria mostrar que a verdade sobrenatural não é qualquer coisa extrínseca e arbitrária que ofenda à consciência ou à razão. Buscou um caminho, tomando a ação como ponto de partida. Entendia essa como dinamismo espiritual propulsor de toda a atividade especificamente humana: prática, estética, moral, científica, metafísica e religiosa. Portanto, o projeto de Blondel é claro. Quer responder ao desafio que, para o cristianismo, representa a filosofia moderna, positivista e neokantiana. A resposta somente pode ser dada no terreno da filosofia.
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Para fazer justiça à exigência positivista, Blondel quer apoiar-se num fato indiscutível e explorá-lo com os métodos exclusivos da razão. Este fato é a ação. Agir é uma necessidade. Recorre à análise reflexiva para acompanhar e esclarecer, por dentro, o dinamismo da ação através de todos os seus caminhos e de suas realizações. Tendo mostrado que o problema da ação é inevitável e que se impõe uma solução positiva contra toda a pretensa vontade niilista, percorre o desenrolar da ação desde os níveis mais rudimentares até a ação social na família, na prática e na humanidade, passando pela ação individual e voluntária da consciência. Blondel pretende elaborar uma “ciência da prática” através do método que aplica ao fato para competir com as exigências da ciência do seu tempo. Sem concessão à alguma verdade fora da razão, apoiando-se na autonomia desta e analisando a ação em seus detalhes, chega a inferir uma lei do agir: há uma inadequação entre a vontade querida (volonté voulue) e a vontade querente (volonté voulante). A realização da vontade querida nunca chega a exaurir o projeto mais fundamental que subjaz à vontade querente do homem. Ora, no fundo da ação humana manifesta-se a abertura espontânea ao fato cristão. Em cada uma de suas conquistas, a vontade descobre certas aspirações que a impulsionam para outras conquistas. Num movimento de expansão cada vez mais amplo (família, pátria, humanidade) e de abertura aos valores superiores, a vontade pode percorrer todos os círculos da ação humana sem alcançar seu objetivo. Dessa maneira, cada realização desperta “a promessa de algo desconhecido que mobiliza a vontade para conquistá- lo”. Blondel conclui que é impossível deixar de reconhecer a insuficiência de toda ordem natural sem experimentar uma necessidade ulterior; é impossível encontrar dentro de si algo que satisfaça essa necessidade religiosa. É algo necessário, mas algo inatingível. Tais são, em suma, as caraterísticas inexoráveis da ação humana. Para Blondel, essa experiência é fundamental. O homem sabe que é finito e quer ser infinito: quer o infinito. Mas compreende que sua exigência somente é possível se o infinito se dá gratuitamente. Deve compreender, pois, não só que seu desejo profundo é o desejo de Deus, mas também que a condição de realizar seu desejo está somente em Deus. Isto significa que, quando Deus se dá, o homem pode reconhecê-lo e acolhê-lo. Dessarte, quando a religião cristã
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oferece o sobrenatural, tal dom não cai em terra estranha, mas corresponde ao anseio secreto do próprio homem. Partindo do fato natural da ação, Blondel crê poder chegar, por simples lógica interna, ao dado sobrenatural proposto pelo catolicismo. Tal processo, para ele, é totalmente de índole filosófica, uma afirmação que logo provocou objeções, começando pela própria universidade. Já no dia da defesa da tese, Émile Boutroux rejeitou seu “misticismo”. Isso equivalia a questionar a autonomia da razão, que devia conferir toda sua força à tese de Blondel. Este respondeu: “N ão há um método mais positivo que o meu”. Mostrou, efetivamente, que o finito exige sua própria superação no infinito: tal é a lógica da vida e da prática. Maurice Blondel faz ver que a vontade, no seu ponto de chegada, anela o infinito. Não se trata, pois, de um postulado, mas de uma conclusão. Em todo o caso, poderia perguntar-se: não é este um trabalho teológico? Não mistura ele a ordem sobrenatural com a ordem natural? Blondel está convicto de que seu trabalho é obra da pura razão. O método da imanência situa-se no campo da filosofia da religião, pois busca as condições para pensar a religião. Esse método baseia-se numa distinção fundamental: a distinção entre a ordem da reflexão, cujo caráter é hipotético, e a ordem ontológica ou da realidade. Tudo que pensamos é imanente ao homem e entra na ordem da lógica, que é própria de nossa razão. Também a ideia do sobrenatural o é. O filósofo apenas coloca sua realidade entre parênteses e examina as condições para sua noção ser aceita. Blondel apresenta não só um método, mas também um projeto filosófico. Por isso sua conclusão é filosófica, pois nada deduz da revelação. Somente define as condições de realização da existência humana: a acolhida de uma heteronomia como aperfeiçoamento da autonomia. Busca um conhecimento explícito daquilo que somos implicitamente. Entre os católicos, a crítica logo tomou outra direção. Muitos objetaram que Blondel tinha “naturalizado” o sobrenatural da revelação divina, descrevendoo como uma necessidade inscrita no homem. Desse modo punha em perigo sua gratuidade, mas ele nunca pretendeu que o dom do sobrenatural seria uma necessidade da parte de Deus e, sim da parte do homem. Limitou-se a mostrar que sua hipótese implicava uma necessidade no agir do homem. Pelo fato de descobrir, em nossa própria ação, a necessidade do sobrenatural da revelação, a
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própria ação não possui a capacidade para satisfazer essa necessidade, apropriando-se do sobrenatural. A ação apenas pode compreender que deve despojar-se de sua autossuficiência e acolher o Outro. Se a filosofia pode conhecer a possibilidade do sobrenatural, é, todavia, incapaz de dizer algo sobre sua natureza. Para esclarecer o debate, Blondel distinguiu entre método da imanência (que afirma praticar por fidelidade à exigência filosófica) e doutrina da imanência (que rejeita por causa de sua pretensão de descobrir o sobrenatural como dimensão intrínseca da natureza humana que é incompatível com o catolicismo). Em vez de falar de determinismo da ação, prefere o termo mais flexível de “implicação”: seu método consiste em “desimplicar” (explicitar) o dinamismo da ação. Blondel fez os católicos compreenderem que, sem filosofia, o cristianismo seria impensável. Se o cristianismo não encontra uma íntima correspondência no homem, permanece alheio à própria estrutura do ser humano e, portanto, ao pensamento. Ele lutou contra todo o extrinsecismo, desenvolvendo uma filosofia da espera e da aspiração humana. Por isso, suas ideias sempre circulam nos debates teológicos da primeira metade do século XX. O método da imanência de Blondel consiste, por outras palavras, em reconhecer na natureza finita do homem a exigência de Deus. Trata-se de um método que, da indigência da ordem natural, deriva a necessidade do sobrenatural. Entretanto, ele não afirma uma simples continuidade entre o natural e o sobrenatural, mas reconhece a insuficiência da ordem natural no homem. E este reconhecimento permite-lhe acolher (e não produzir) o sobrenatural. Na França surgiu um movimento ligado à filosofia da ação e ao método da imanência de Maurice Blondel, no começo do século XX, um movimento religioso que foi condenado pelo papa Pio X através da encíclica Pascendi (1907). Este movimento foi chamado de modernismo e seus principais representantes foram o abade Lucien Laberthonnière (1860-1932) e Alfred Loisy (1857-1940). Essas ideias modernistas foram difundidas na Inglaterra por George Tyrrell (18611909) e na Itália, sobretudo, por Ernesto Bonaiuti (1881-1946). Loisy defendia a ideia de que o dogma tem uma história e, aquilo que conta, não é tanto a defesa de definições historicamente datadas, mas importa mais o significado moral da religião. Alfred Loisy, lecionando no Instituto Católico de Paris, desde 1882, tentou
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aplicar à Bíblia os conhecimentos adquiridos sobre o Orientalismo com o método das religiões comparadas. Logo esbarrou com a estreiteza, então reinante entre os católicos, sobre o conceito de inspiração e de inerrância. Chocando o público despreparado com o seu método crítico, produziu uma crise de fé. O modernismo procurou, na verdade, uma mediação do dogma com a subjetividade humana e uma mediação da verdade revelada com a evolução histórica da humanidade. E nisso apenas se antecipou ao concílio Vaticano II. Por outro lado, os modernistas rejeitaram a filosofia grega e tomista como chave para a leitura e interpretação dos textos sagrados; defenderam a ideia de que a verdade se constitui na história, o privilégio da vontade e da ação em detrimento da razão, a ideia de que a essência da vida religiosa se deve buscar na experiência moral em uma áspera polêmica contra a Igreja (Dizia Loisy: “Jesus anunciava o reino de Deus, mas veio a Igreja”). Por esses exageros, na época, a Igreja condenou o movimento modernista, o que certamente aumentou o abismo entre a hierarquia da Igreja e a ciência moderna, que não precisa de condenação, mas de orientação. E isso exige competência como mostra a Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, mas na época faltava tal competência à hierarquia e aos teólogos. A ideia fundamental de Blondel é que nosso pensamento conceitual representa apenas uma parte, surgida em fase tardia, de nossa vida e de nossa ação, do todo de nosso pensamento, de nossa vontade e de nossa percepção e esclarecer nossa vida espiritual exige esclarecer as estruturas dessa vida e ação pré-conceitual. A ação é pré-conceitual, mas não incompreensível. Dela deriva o pensamento, que também pode compreendê-la. Enfim, o conceito de ação resume toda a filosofia de Blondel. 6.2
Henri Bergson (1859-1941) Bergson exerceu influência no mundo da literatura e na filosofia.
Distingue entre conhecimento adquirido através do intelecto e conhecimento da mente através da intuição. Ele encontra-se na encruzilhada do Ocidente. Confronta a filosofia com o transformismo, o evolucionismo e as ciências experimentais no início do século XX. Suas propostas conduziram a novas
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reflexões no campo da metafísica, da moral e da religião. Sua filosofia baseia-se em duas teses fundamentais: a realidade é duração e o órgão que permite percebê-la é a intuição. Bergson nasceu em Paris. Iniciou seus estudos no Liceu Condorcet, sendo aluno brilhante tanto nas letras como nas ciências. Posteriormente, na Escola Normal Superior, seguiu os cursos de Filosofia de Oilé-Laprune e Boutroux. Em 1889 publicou sua tese de doutorado na Sorbonne: Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Obteve grande sucesso com esse livro. Igualmente bem-sucedida foi sua segunda obra intitulada Matéria e memória (1896). Em 1900 assumiu a cátedra de filosofia no Collège de France, que manteria até 1924. Em 1900 publicou uma coletânea de ensaios com o título O riso. Nesse livro sustenta que “não há nada de cômico fora do que é propriamente humano”. Diz Bergson que alguns definem o homem como “animal que sabe rir”, mas também poderiam defini-lo como animal que faz rir. Em 1903 publicou sua Introdução à metafísica e, em 1907, A evolução criadora, sua obra mais sistemática e mais relevante. Eleito membro da Academia Francesa, em 1928, recebeu o prêmio Nobel de Literatura. Sua última obra foi publicada em 1932: As duas fontes da moral e da religião. Bergson era de origem judaica, mas nos últimos anos de sua vida aproximou-se muito do catolicismo, que, para ele, completava o judaísmo. No dia 08/02/1937 anotou no seu testamento: “As minhas reflexões levaram-me cada vez mais perto do Catolicismo, onde vejo o acabamento completo do Judaísmo. Terme-ia convertido, se não tivesse visto preparar-se desde há anos (em grande parte, infelizmente, pela culpa de um certo número de judeus inteiramente desprovidos de senso moral) a formidável onda de anti-semitismo que vai desabar sobre o mundo. Quis ficar entre os que serão amanhã perseguidos”. Bergson exerceu grande influência, no mundo das ideias em sua época, e deve-se a ele a volta do espiritualismo. No início do século XX ele conheceu William James, célebre psicólogo e filósofo de Harvard. Apesar das diferentes
perspectivas
filosóficas,
estabeleceu-se
uma
amizade
e
correspondência entre ambos. Na sua tese doutoral Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Bergson estuda o tempo interior, ou a duração
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concreta, e a liberdade. A noção de duração é central em seu pensamento, designando o tempo imediatamente experimentado em oposição ao tempo objetivo, medido pelo relógio. Temos consciência da duração através de um modo imediato que ele chama de intuição. A intuição é, em primeiro lugar, o conhecimento do espírito pelo espírito, mas é também o conhecimento da matéria e da vida por sermos matéria e vida. A metafísica é esse contato interior imediato com a realidade. Para ele, a consciência ou vida espiritual é irredutível à matéria. Ela é uma energia criadora e finita. Enfim, Bergson propõe uma filosofia que pretende ser fiel à realidade, mas uma realidade não concebida como reduzida a fatos no sentido dos positivistas. G. Reale e D. Antiseri definem a filosofia de Bergson como “evolucionismo espiritualista” 46. Para Bergson, há dois conceitos de tempo. No Ensaio sobre os dados imediatos da consciência diz que, para a mecânica, o tempo é uma série de instantes, um ao lado do outro, como se vê nas sucessivas posições dos ponteiros do relógio. O tempo mecânico é um tempo espacializado. Medir o tempo então significa comprovar que o movimento de certo objeto em espaço determinado coincide com o movimento dos ponteiros dentro daquele espaço que é quadrante do relógio. Por outro lado, a consciência capta o tempo como duração. E duração significa que o eu vive o presente com a memória do passado e a antecipação do futuro. Para a consciência, o passado já não é mais e o futuro ainda não é. Passado e futuro não podem viver em uma consciência que os liga ao presente. Portanto, a duração vivida não é o tempo espacializado da mecânica. No tempo da mecânica, os instantes diferem quantitativamente, mas no tempo da consciência um instante pode valer a eternidade, ou seja, pode ser decisivo para a vida. Há dias e anos que voam, mas há instantes que não passam nunca. No tempo da mecânica, os momentos são externos um ao outro, mas, na vida interior, no fluir que é a duração da consciência, um momento penetra no outro, funde-se com o outro. O tempo da mecânica é reversível, mas, para a consciência e a vida, é inútil buscar o tempo perdido. O hoje é diferente do ontem, o instante
46
REALE, G. e ANTISERI, D. História da Filosofia. v. III. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 708.
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seguinte pressupõe e cresce sobre a experiência do instante anterior e de todo o passado. Para Bergson, o tempo concreto é duração (durée) vivida, irreversível e nova a cada instante. O tempo espacializado funciona bem para as finalidades práticas da ciência, cuja função é construir teorias úteis porque ricas de previsões, as quais tornam-se instrumentos eficazes para controlar as situações que devem ser confrontadas, mas não servem para o exame dos dados imediatos da consciência. A dificuldade, segundo ele, em se apreender a consciência interna, enquanto imediata e enquanto pura qualidade mutante, reside na própria natureza da inteligência. O que a inteligência faz é medir, mas medir supõe a existência de unidades homogêneas e comparáveis, como as do espaço geométrico. Por isso espacializa o que é puro fluxo qualitativo, pura duração. Ao elaborar conceitos e ao trabalhar analiticamente, a inteligência fragmenta, espacializa e fixa a realidade que, em si mesma, é contínua mudança qualitativa, puro tornar-se. Mas é essa atividade intelectual que possibilita a ciência e a própria sobrevivência. Segundo Bergson, o positivismo falha na concepção da natureza dos fatos, querendo julgar todos os fatos com o mesmo método. O mundo da consciência é diferenciado do mundo das coisas no espaço. As investigações propostas tiveram um efeito renovador da reflexão no terreno da metafísica, da moral e da religião. Para Bergson, na Introdução à Metafísica (em O pensamento e o movente), o conceito “só pode simbolizar uma propriedade esp acial, tornando-a comum a uma infinidade de coi sas”, pois o conceito “retém do objeto apenas o que é comum a esse e a outros objetos”. É a abstração e a generalização da inteligência do eu superficial, que não capta o próprio e essencial de cada objeto. Exatamente este interessa à metafísica. Para chegar a este essencial e próprio na abordagem, é preciso que a intimidade do sujeito, o “eu profundo”, que é duração pura, se comunique com a intimidade do objeto concreto e singular, também pura duração. Essa forma de contato ou de simpatia é que Bergson chama de intuição. Por intuição, temos consciência da liberdade do arbítrio. Ela também revela que o movimento de duração é impelido por uma força vital o u “elã vital”; permite a apreensão do que é vida, dinamismo, mudança qualitativa, duração, criação. Por isso o método da metafísica é a intuição. Embora os conceitos sejam necessários para as outras ciências, a metafísica deve libertar-se dos conceitos já prontos e já
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consagrados pelo hábito para criar representações flexíveis, sempre prontas a se moldarem. Consequentemente a linguagem da metafísica deve apelar para o poder sugestivo das metáforas. Em sua obra A evolução criadora (1907), Bergson subordina a inteligência do homem ao elã vital . A inteligência, fabricadora de instrumentos (homo faber ) e, posteriormente, de ideias e de conceitos (homo sapiens) é, como o instinto, um meio para servir às grandes finalidades da vida. Difere, sem dúvida, do instinto animal, pois a inteligência implica a vacilação e a imperfeição prática. É o fator da instabilidade e sua lei é abertura ao risco. O destino dos homens em sociedade está, assim, ligado aleatoriamente com os êxitos e fracassos da inteligência. E este é o tema que Bergson desenvolve na obra As duas fontes da moral e da religião (1932). A acertada intuição dos dinamismos evolutivos pode levar o homem às grandes criações do espírito. Esta intuição é capaz de superar as inércias, as formas fechadas da sociedade, a rigidez da moral e as intolerâncias da religião, porque extrai a energia de uma experiência de duração que aviva a memória, anima o gesto e nutre a palavra. Os deuses nascem na alma do homem e esta energia do divino é particularmente evidente na experiência dos místicos, que expõem manifestamente e de modo admirável o ponto vivo da evolução criadora. Bergson aponta o herói e o místico como modelos de abertura e de liberdade no campo da moral e da religião. Em A evolução criadora, Bergson volta-se à biologia. Tenta manter-se “o mais próximo possível dos fatos”. Projeta uma especulação metafísica sobre o passado remoto e o futuro distante, organizando uma ofensiva ampla contra os pressupostos e as técnicas da filosofia tradicional. Defende a tese de que a abordagem materialista e mecanicista, dominante em seu tempo, trabalha com uma representação equivocada e grosseira da realidade porque trabalha com conceitos e categorias fixas, que não conseguem captar a realidade fluida. Para ele, o que carateriza nosso interior é a mudança incessante de pensamentos, sentimentos, percepções e volições. A abordagem de As duas fontes da moral e da religião é genética. Pesquisa se os fenômenos da moral e da religião são solicitados pelo impulso evolucionário. Conclui que não podem ser entendidos em termos de uma única explicação como queriam Comte e Marx.
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Quais são as duas fontes da moral para Bergson? Se, para o positivismo, a única fonte da moral é a pressão social , Bergson reconhece que esta é uma fonte, mas não a única. A vida social apresenta-se, a nós, como um sistema de hábitos que respondem às necessidades da comunidade, pois cada um de nós pertence tanto à sociedade quanto a si mesmo. Mas a pressão social não explica toda a vida moral do homem. Na medida em que entramos em nós mesmos, encontramos uma personalidade cada vez mais original. Por isso, a obra dos herois morais, como Sócrates e Jesus, não se explica pela pressão social. O amor à humanidade não se reduz a uma obrigação social. Para Bergson, a moral social tem como fundamento a sociedade fechada (família, pátria) e como fim a sua preservação, mas a moral criadora fundamenta-se na pessoa criadora: seu fim é a humanidade, que é uma sociedade aberta. A moral criadora fundamenta-se em uma emoção, um sentimento de participação, no impulso vital. Sua caraterística é o amor para com todos os homens. A moral aberta tem origens místicas e obedece à inspiração ou atende a um chamado como é o caso dos grandes místicos. É a moral de quem segue a inspiração. Na visão de Bergson, a natureza da matéria e do espírito, da evolução criadora e de Deus, nos é dada em função da intuição. A percepção, para ele, é uma condensação pelos seres vivos do quantitativo no qualitativo. Se a percepção é uma síntese feita pela memória, basta suprimir a memória “para passar da percepção à matéria, do sujeito ao objeto”. Bergson liga sua defesa da liberdade à ideia de duração. Da mesma maneira fundamenta sua critica ao determinismo quando este presume explicar a vida da consciência. A vida da consciência é indivisível em estados distintos e o eu é unidade sempre em devir. Não se podem aplicar à consciência as categorias típicas do que é externo à ela. No fundo, para Bergson, o espírito e a matéria, assim como a alma e o corpo, são dois aspectos da mesma realidade e não duas realidades diferentes. Na sua obra A evolução criadora, passa da análise dos dados imediatos da consciência para a elaboração de uma visão global da vida e da realidade, propondo a ideia de um evolucionismo cosmológico. Rejeita os evolucionismos mecanicista e o finalista porque são deterministas. Para ele, a exemplo da vida da consciência, a vida biológica não é máquina que se repete, sempre idêntica a si mesma, pois cria permanentemente novidade, é imprevisível, englobando e
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conservando todo o passado, cresce sobre si mesma. A vida é evolução criadora, criação livre e imprevisível. É “impulso vital”. A evolução é, pois, um processo permanente e não se desenvolve numa única direção. Em As duas fontes da moral e da religião, Bergson distingue a sociedade fechada e a sociedade aberta. Todas as sociedades existentes até agora foram sociedades fechadas, mas a sociedade aberta, constituída por toda humanidade, é o lugar da moral aberta. A distinção bergsoniana entre sociedade aberta e fechada foi popularizada por Karl Popper em sua obra A sociedade aberta e seus inimigos. Para Bergson há continuidade entre a moral da família ou da nação e a moral que institui os deveres para com a humanidade. O fundamento da moral aberta é a pessoa criadora. O seu fim é a humanidade. O seu conteúdo é o amor para com todos os homens. A sua caraterística é a inovação moral, capaz de romper com os esquemas fixos das sociedades fechadas. É a moral dos grandes místicos, através dos quais a história exibe a abertura do espírito humano para toda a humanidade. Como Bergson o fez na vida moral, também na vida religiosa distingue entre religião estática e religião dinâmica. A religião estática, tecida de mitos e fábulas, é o resultado do que chama função fabuladora, que se desenvolve durante a evolução por objetivos eminentemente vitais. Com suas fábulas, seus mitos e suas superstições, a religião fortalece os laços sociais entre os homens. A esperança na imortalidade dá o sentido de proteção sobrenatural e de poder influir sobre a realidade. Por outro lado, há também a religião supra-intelectual, a religião dinâmica, para a qual os dogmas são apenas cristalizações imersas no elã vital. Expressão da religião dinâmica é o misticismo. O resultado dessa, segundo Bergson, “é a tomada de contato e, consequentemente, a coincidência parcial com o esforço criador que a vida manifesta. Esse esforço é de Deus, se não for o próprio Deus”. Bergson vê o misticismo adequado naqueles místicos (como São Paulo, São Francisco de Assis, S. Joana D’Arc) para os quais o êxtase constitui ponto superior de impulso para a ação no mundo. Neles o amor a Deus torna-se amor pela humanidade. Para Bergson, a humanidade necessita de gênios místicos nos dias de hoje.
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Em síntese, numa civilização ameaçada pela máquina, esse pensador judeu, solidário com seu povo e sua tradição, despertou os homens de sua época para a dimensão do espírito, devolvendo a alma ao progresso técnico-científico. Na França, o espiritualismo encontrou expressão significativa em Louis Lavelle (1883-1951) e René Le Senne (1882-1954), entre outros. O vitalismo de Bergson, a ideia de que a evolução biológica é impulsionada por um élan vital , influenciou pensadores como Alexis Carrel e Pierre Teilhard de Chardin.
Referências Bibliográficas
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VII O PRAGMATISMO
Embora alguns países americanos tenham declarado cedo sua independência política, durante muito tempo continuam dependentes da Europa em relação à arte, à ciência e à filosofia. Na história da filosofia, a primeira contribuição mais consciente e original em solo americano surgiu na virada para o século XX com o pragmatismo. Os fundadores do pragmatismo americano Charles Sanders Peirce, William James e John Dewey tinham em comum o pressuposto de que teorias devem ser examinadas segundo o critério de sua aplicabilidade prática. Peirce tinha como máxima a unidade entre conhecimento racional e fim racional. Para ele, conceitos são instrumentos que se compreendem a partir de suas funções. Questões metafísicas sobre as últimas coisas, segundo ele, devem ceder lugar às questões práticas da vida. A ideia de Peirce de que um procedimento crítico aproximar-nos-á da verdade, desde que perseveremos na investigação, influenciou a formação da ideia da comunidade ideal de comunicação dos europeus Karl-Otto Apel e de Jürgen Habermas. Enquanto Peirce ainda defendia critérios objetivos na busca da verdade, William James fala apenas do valor prático, ou seja, em moeda da experiência. Como Nietzsche, James também perguntava pela utilidade das teorias, mas, ao contrário de Nietzsche, que proclamou “Deus está morto”, James continua a acreditar no sentido das convicções religiosas, procurando fontes de energia espiritual em narrativas sobre experiências religiosas. James considerava as experiências religiosas uma fonte para elevar o homem a um nível superior, enquanto John Dewey defendia a opinião de que conversas intensas e experiências artísticas podem produzir efeitos semelhantes. Ora, o pragmatismo de Dewey exerceu influência profunda e prolongada na educação brasileira
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através da obra de Anísio Spinola Teixeira (1900-1971), teórico da educação, diretor do INEP e primeiro Reitor da Universidade de Brasília. Depois que filósofos europeus como Karl-Otto Apel, Jürgen Habermas e pelo norte-americano Hilary Putnam, este vindo da filosofia analítica, se interessaram por Dewey e William James passou a considerar-se, na Europa, o pragmatismo não apenas como uma filosofia utilitarista, mas via intermediária entre o dogmatismo da razão e o ceticismo radical. Atualmente autores como o canadense Charles Margrave Taylor, cientista político, e Richard Rorty, filósofo de Nova York, referem-se ao pragmatismo norte-americano, que reconhece o primado da ação sobre a teoria; defende as liberdades individuais, sobretudo de expressão, de crítica, aceitando o pluralismo de concepções; tem como critério o resultado; defende a democracia porque favorece as liberdades; valoriza a ciência, a técnica e as religiões enquanto comunidades com funções sociais; cultiva a exploração pela pesquisa, desafiando sempre novas fronteiras. 7.1
Charles Sanders Peirce (1830-1914) Peirce foi, antes de tudo, um cientista profissional. Seu pensamento
sempre foi marcado fortemente por sua experiência de laboratório. Tornou-se conhecido por sua teoria do significado que ele mesmo chamou de semiótica. Na filosofia foi influenciado por Kant. Contribuiu para os avanços modernos na lógica. Ele, um pensador original, exerceu uma influência profunda e duradoura sobre filósofos norte-americanos de seu tempo como Josiah Royce (1855-1916), William James, John Dewey e outros. Filho de um destacado matemático, Charles Sanders Peirce licenciouse em ciências e doutorou-se em química, em Harvard, em 1863. Durante anos trabalhou em geodésia e astronomia, como físico, em um órgão federal de pesquisa geodésica. Daí resultou o único livro que publicou em vida: Photometric Researches (1879). O interesse pelos fundamentos levou-o a adquirir uma boa formação filosófica. Ensinou, apenas, ocasionalmente filosofia em Harvard (18641865 e 1869-70) e lógica na universidade John Hopkins (1879-1884). Foi editor da revista Studies in logic . Deixou um segundo livro terminado The grand logic e publicou uma série de artigos. Suas obras, em geral breves, foram selecionadas
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na edição póstuma sob o título Collected Papers of Ch. S. Peirce, em oito volumes, publicados pela Harvard University Press (1931-1958). Charles Sanders Peirce foi o primeiro a usar o termo pragmatismo, em 1878. Segundo ele, o pragmatismo é um método para decidir a respeito de termos difíceis e de conceitos abstratos. Afirma que o conhecimento não é intuição, mas pesquisa. E a pesquisa começa com a dúvida. A irritação da dúvida causa a luta para obter o estado de crença. No ensaio The fixation of belief (1877), ele sustenta que os métodos para fixar a crença são, essencialmente, quatro: a) o método da tenacidade; b) o método da autoridade; c) o método a priori ; d) o método científico. Segundo ele, os três primeiros não se sustentam. Se quisermos estabelecer nossas crenças validamente, o método correto é o científico. Por outro lado, Peirce rejeita a dúvida radical de Descartes: Não podemos começar com tal dúvida. É mister começar com todos os preconceitos que possuímos no momento em que começamos a estudar filosofia. Os preconceitos não podem ser banidos por uma máxima; no fundo, nem nos passa pela cabeça que possamos duvidar deles. O ceticismo acaba por ser autoilusão, não sendo uma dúvida real; e nenhum seguidor do método cartesiano descansa enquanto não recuperar as crenças que pôs de lado apenas formalmente (...). Uma pessoa pode no curso de seus estudos encontrar razão para duvidar daquilo em que começou por acreditar; mas nesse caso duvida porque tem uma razão positiva para fazê-lo e não por ordem da máxima cartesiana. Não vamos duvidar em filosofia daquilo que não duvidamos em nossos corações47.
O método científico, segundo Peirce, procede por três modos fundamentais de raciocínio: dedução, indução e abdução. A dedução é o raciocínio que não pode levar de premissas verdadeiras a conclusões falsas. A indução argumenta a partir do conhecimento de que os membros de uma classe, escolhidos ao acaso, possuindo certas propriedades, todos os membros da mesma classe as possuirão igualmente. A indução classifica e não explica. A abdução, por sua vez, é a tentativa de explicar um fato problemático, inventar uma hipótese da qual se deduza consequências que, por sua vez, possam ser verificadas indutiva ou experimentalmente. A abdução mostra-se inteiramente
PEIRCE, Charles Sanders. Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1980 (Col. “Os Pensadores”), p. 39. 47
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relacionada com a dedução e a indução. Mas a abdução também mostra que as crenças científicas são falíveis, pois as provas experimentais sempre poderão desmentir as consequências de nossas conjeturas. Em Textos Escolhidos lemos: As três espécies de raciocínio são: abdução, indução e dedução. O único raciocínio necessário é a dedução. É o da matemática. Parte de uma hipótese, cuja verdade ou falsidade nada tem a ver com o raciocínio, e cujas conclusões são igualmente ideais (...). Indução é fazer o teste experimental de uma teoria. A sua justificação é que embora a conclusão num certo estágio de investigação possa ser mais ou menos errônea, a aplicação seguinte do mesmo método deve corrigir o erro. A indução determina o valor de uma quantidade. Acompanha uma teoria e mede o grau de concordância dessa teoria com os fatos. Não poderá nunca dar origem a uma nova ideia, nem à dedução. Todas as ideias da ciência vêm através da abdução. Abdução consiste em estudar fatos e inventar uma teoria para explicá-los. Sua única justificação é que, se for para entender as coisas, deve fazer-se assim...48
Mais adiante Peirce afirma: Abdução é o processo para formar hipóteses explicativas. É a única operação lógica a introduzir ideias novas; pois que a indução não faz mais que determinar um valor, e a dedução envolve apenas as consequências necessárias de uma pura hipótese49.
O conjunto da produção de Peirce revela um pensador rigoroso, que antecipou a problemática do Círculo de Viena em 50 anos, com a vantagem de não cair nas mesmas estreitezas. Para fundamentar o conhecimento científico e a filosofia, valoriza o componente empírico sem desprezar o papel da hipótese. Na trilogia dedução-indução-abdução, que ele propõe, a abdução é a criação da hipótese e a indução do processo que a consolida ou invalida. Por outro lado, reconhece que a teoria do conhecimento é inseparável de uma análise da linguagem. Estuda o significado das expressões linguísticas, propondo uma semiótica. Na semiótica, Peirce desenvolve uma teoria dos sinais. A semiótica ou teoria geral dos signos, segundo ele, deve abordar os fenômenos linguísticos, ao
48
Ibidem, p. 9.
49
Ibidem, p. 14.
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mesmo tempo, sob a perspectiva sintática, semântica e pragmática. Peirce tornou-se mais conhecido por sua teoria do significado (semiótica). O sinal ou representamen é algo que está para alguém no lugar de alguma outra coisa sob algum aspecto ou capacidade. Na situação de comunicação, a estrutura é de três termos: o sinal está em função do objeto em relação ao intérprete. Evidenciada a natureza triádica do sinal, Peirce analisa-o em si mesmo, em relação ao objeto e em relação ao intérprete. Considerado em si mesmo, o sinal pode ser: a) qualisigno, como, por exemplo, a percepção de uma cor; b) signisigno, que poderia ser qualquer objeto; c) legisigno, como, por exemplo, uma lei ou uma convenção. Considerado em relação ao próprio objeto, o sinal pode ser: a) ícone, como, por exemplo, uma imagem especular, um desenho ou diagrama; b) índice, como um sinal ou uma escala graduada; c) símbolo, no sentido que constitui símbolo um relato, substantivo, livro... Considerando o sinal em relação ao intérprete, segundo Peirce, pode ser: a) rema, como, por exemplo, uma proposição com objeto indeterminado e com predicado indicando caraterísticas possíveis (X é vermelho); b) dicisigno, ou seja, uma proposição com o sujeito indicando objeto ou acontecimento e com predicado indicando sua qualidade (a rosa é vermelha); c) argumento: qualquer silogismo é caso de argumento. Peirce responde a questão se podemos pensar sem signos da seguinte maneira: À luz dos fatos externos, os únicos casos de pensamento que podem encontrar-se, são de pensamento-em-signos. Nenhum outro pensamento pode ser mostrado através de fatos externos. Vimos que o pensamento só pode ser conhecido através de fatos externos. O único pensamento que pode conhecer-se é o pensamento-dentro-de-signos. Mas pensamento que não se possa conhecer não existe. Todo o pensamento, portanto, deve necessariamente existir em signos50.
Propondo uma explicação falibilista do progresso científico, Peirce, como cientista, tinha consciência de que as verdades científicas são necessariamente provisórias. Argumentava que não nos devemos comprometer 50
Ibidem, p. 36.
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com a verdade da opinião científica em voga, mas aceitá-la apenas como um estágio no caminho em busca da verdade. Atribui-se a Peirce o título de “Pai do pragmatismo” norte-americano por causa de seu texto de 1878, intitulado Como tornar claras nossas ideias. Nele Peirce afirma que é preciso considerar quais efeitos nossas ideias poderiam ter sobre a conduta prática, objeto de nossa concepção. Para o pragmatismo americano, existe o primado da ação sobre a teoria; aceita o pluralismo de concepções, desde que se defendam as liberdades individuais; defende a democracia por favorecer as liberdades individuais; seu critério é que vença o melhor, desde que a prova não seja falsa; valoriza a ciência, a técnica e as religiões como comunidades com funções sociais. Peirce considerava seu pragmatismo metodológico, ou seja, em sua concepção, o significado de uma palavra ou de uma outra expressão, consiste exclusivamente no seu alcance concebível para a vida prática. Ele considerava o pragmatismo de W. James um pragmatismo metafísico, ou seja, uma teoria da verdade e da realidade. Peirce proporcionou contribuições notáveis para a lógica simbólica, para a metodologia científica e à semiótica ou semiologia. Talvez seja por isso e, sobretudo, por seu indeterminismo e seu falibilismo que obteve grande sucesso, exercendo significativa influência sobre o pensamento contemporâneo. 7.2
William James (1842-1910) William James fez toda a sua carreira em Harvard, começando na
medicina, passou à psicologia e depois para a filosofia. Manifestou uma grande atração pelo estudo da crença religiosa, como já revela seu artigo de 1897 A vontade de crer . Em Peirce encontramos a versão lógica do pragmatismo americano. William James escreveu como humanista, ou seja, desenvolveu a versão moral e religiosa ou metafísica do pragmatismo. Ampliou a teoria do significado de Peirce para uma teoria da verdade pelo uso prático a que se presta. William James formou-se em medicina. Primeiro foi professor de fisiologia e anatomia, em Harvard, e depois titular de filosofia (1885). Foi ele quem lançou o pragmatismo como filosofia. Deu cursos em outras instituições, entre as quais se destacam as Gifford Lectures, em Edingburgo (1901-1902), publicadas
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com o título The varieties of religious experience (1902). Pronunciou palestras sobre o pragmatismo no Instituto Lowell e na Univ. Columbia (1906-1907), publicadas no livro Pragmatism (1907), em Oxford (1908-1909), editadas com o título A pluralistic universe (1909). James define o pragmatismo como uma “postura que prescinde de causas primeiras, de princípios, categorias e supostas necessidades para dirigirse às causas últimas, consequências e fatos”. O conceito de verdade, para o pragmatismo, é próprio. Os critérios de verdade são utilidade, valor e resultado. Por isso o pragmatismo não pergunta pela essência das co isas “em si”, mas qual seu valor para mim. Peirce já dizia que “verdadeiro é aquilo que se ratifica através de suas consequências práticas”. Essa atitude voltada não para princípios, mas para as consequências práticas, James também aplica à religião. Para James, mais importante que a doutrina sobre a religião é a experiência religiosa. Central, para ele, é o problema da reconciliação da ciência com a fé em Deus e com a liberdade humana. Busca o sentido da fé em Deus e da moral e tenta justificá-lo perante a modernidade. Por isso defende a tese segundo a qual a história das práticas e dos conteúdos religiosos não esclarece a dignidade espiritual e o significado profundo dos fenômenos que acontecem no interior da pessoa. Nesse sentido, critica a dogmática tradicional quando essa apela para a revelação. Como qualquer outra coisa, a religião deve ser avaliada pela sua utilidade no contexto de nossas necessidades afetivas e intelectuais, em vista do futuro. James não foi um apologeta da Igreja, mas sentia que nas narrativas sobre experiências religiosas brotavam fontes de força espiritual. Chamou a atenção para energias espirituais da fé, que estimulam à ação criativa, para a espiritualidade como um pressuposto de uma ação sucedida: um mundo sem valores, sem fé, seria um mundo morto. Valores atraem os sujeitos e incorporam uma espécie de obrigatoriedade ou necessidade, que o eu não sente como repressão. Ele julgou poder basear seu teísmo na experiência religiosa, entendida como experiência de oração, de confiança em Deus, comum a tantos homens, e como experiência mística. Em As variedades da experiência religiosa (1902), James propõe uma rica fenomenologia da experiência religiosa. Para ele, a vida religiosa é
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inconfundível. Ela põe os homens em contato com uma ordem invisível e muda a sua existência. O estado místico é o momento mais intenso da vida religiosa e age como se ampliasse o campo perceptivo, oferecendo possibilidades desconhecidas ao controle racional. Para James, a filosofia deve defender a experiência mística. Nela abre-se o acesso ao Deus que potencializa as nossas ações e que é “a alma e a razão interior do universo”. No universo pluralista, Deus é conhecido como pessoa espiritual, que nos transcende e nos convoca a colaborar com ele. James está convencido de que as ciências são incompetentes em matéria de crenças. Encontra a justificação das crenças religiosas na própria natureza humana, que, para ele, é muito mais rica do que aquilo que a ciência convencional, em geral, reconhece. Defende a ideia, que não é nova, segundo a qual a religião, como crença, parte de uma situação de mal-estar, que exige uma salvação, a identificação com algo maior. Na conferência A vontade de crer empenha seu talento para conciliar uma “mente científica” com a inquietação espiritual do homem no século XX, defendendo a tese: Nossa natureza passional não só pode, como deve, licitamente decidirse por uma opção entre proposições sempre que esta for uma opção genuína que não possa, por sua natureza, ser decidida sobre bases intelectuais; pois dizer nessas circunstâncias: “não decida, deixe a questão em aberto”, é por si só, uma decisão passional – assim como decidir sim ou não – e acompanha-se do mesmo risco de perder a verdade51.
E o autor do ensaio procede a unir sua ciência e sua filosofia numa afirmação positiva da fé religiosa. Afirma, neste contexto, que a filosofia não foi criada para fundamentar a crença, mas, ao contrário, a crença e as suas necessidades fizeram surgir a filosofia. Para ele, o homem é um ser que vive entre dois mundos: o consciente, que habitualmente está apoiado naquilo que se chama real, e o inconsciente, mergulhado na divindade. Por isso, a religião, ocupando-se com o destino das pessoas e mantendo contacto com a única realidade absoluta, desempenha um papel eterno na história da humanidade. 51
JAMES, W. A vontade de crer . São Paulo: Loyola, 2001, p. 22.
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Numa obra posterior Human Immortality (1898) expõe objeções contra a aceitação da imortalidade individual. W. James divulgou o pragmatismo através de conferências. Em 19061907 deu uma série de conferências em Nova York e Boston que reuniu sob o título Pragmatism: a new name for some old ways of thinking (Pragmatismo). Diz que inspirou-se em Peirce, na sua obra Como tornar as nossas ideias claras (1878). Transformou o pragmatismo num movimento filosófico. O termo pragmatismo, introduzido pela primeira vez em filosofia por Charles Peirce, em 1878, em um artigo intitulado “Como tornar claras nossas ideias”, em Popular Science Monthly de janeiro daquele ano. Peirce, após salientar que nossas crenças são, realmente, regras de ações, dizia que, “para desenvolver o significado de um pensamento, necessitamos apenas determinar que conduta está apta a produzir: aquilo é para nós seu único significado” 52. Na visão de James, o pragmatismo deve buscar no racionalismo e no empirismo o que for aceitável de uma ou outra corrente. Mas, na prática aproxima-se mais do empirismo porque se distancia de abstrações, das soluções verbais, de princípios fixos, de sistemas fechados, de pretensos absolutos, voltando-se para o concreto, para os fatos, para a ação e para o poder. As teorias são instrumentos de investigação e não respostas feitas. Enfim, o pragmatismo de James concorda com Peirce no sentido de tratar-se de um método para obter perfeita clareza nos nossos pensamentos sobre determinado objeto, considerando apenas os efeitos de ordem prática. Para o pragmatismo, como para o racionalismo, a verdade de uma ideia mede-se pela concordância com a realidade. Entretanto, quando os pragmatistas falam de verdade, designam exclusivamente alguma coisa sobre as ideias, enquanto outros referem alguma coisa sobre os objetos. E, para os pragmatistas, uma ideia é verdadeira porque é útil e é útil porque verdadeira. Depois de ler a obra de Charles-Bernard Renouvier, James escreveu sua obra Os princípios da psicologia (1890), que exerceu influência imediata e duradoura. Mostra como a vida mental e a vida corporal são relacionadas entre si.
JAMES, W. Pragmatismo. São Paulo: Nova Cultural, 1989 (Col. “Os Pensadores”. Textos escolhidos), p. 18 52
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Carateriza a consciência como “o fluxo do pensamento”. Mas, depois da publicação do livro, James perdeu o interesse pela psicologia, voltando-se para a filosofia. Tentou reconciliar a tensão entre o impulso religioso e as desafiadoras demandas da pesquisa científica. Pergunta: admitindo que uma crença seja verdadeira, que diferença faz o fato de ela ser verdadeira para a vida real de alguém? Que experiências serão diferentes daquelas que ocorreriam se a crença fosse falsa? Enfim, o pragmatismo de James é empirista, mas seu empirismo é humanista. Pretende ser uma filosofia honesta, não afirmando mais do que aquilo que parece razoável, sempre aberta a uma revisão posterior. Em outras palavras, caracteriza-se: a) pelo dinamismo. Nada está pronto, tudo encontra-se em devir. Também nosso pensamento encontra-se num fluxo permanente; b) pelo pluralismo. O mundo não pode ser explicado por um princípio. Nele há muitos âmbitos com relativa autonomia, a liberdade humana, etc. Por isso também não se explica o mundo por simples determinismos; c) por um ceticismo crítico aberto a tudo que é possível. 7.3
John Dewey (1859-1952) John Dewey foi um crítico social e teórico da educação. As duas
noções fundamentais de sua filosofia são experiência e natureza. Natural de Vermont, nos EE.UU. ele estudou filosofia na cidade natal. Nessa época leu Th. H. Huxley, impressionando-se com o conceito da unidade orgânica como modelo de apreensão real. Doutorou-se em 1884 com uma tese intitulada The psychology of Kant na recém-fundada Universidade J. Hopkins, de Baltimore. Aí teve oportunidade de assistir aos cursos de lógica de Ch. S. Peirce. No período de 1884-1894 ensinou na Universidade de Michigan. Se inicialmente fora marcado pelo idealismo hegeliano, a leitura da obra Principles of Psychology de W. James e a consideração da doutrina evolucionista de Darwin provocaram nele uma viragem crítica em relação às teses idealistas. Transferiu-se para Chicago, onde permaneceu até 1904 como responsável pelo Departamento de Filosofia, Psicologia e Pedagogia da Universidade. Aí dedicou-se mais à pesquisa no campo da pedagogia sob uma perspectiva behaviorista e publicou o
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livro The school and society (1900), que veio a ser seu livro mais influente nessa área. Publicou Studies in logical theory (1903), refletindo no sentido do instrumentalismo, sua versão própria do pragmatismo. Os conceitos são instrumentos para lidarmos com a nossa experiência do mundo. No período de 1904-1929 lecionou na Colúmbia (Nova York), época em que publicou obras de maior fôlego. Seu tratado de metafísica Experience and Nature (1925) apresenta “o estudo descritivo dos traços genéricos da existência”. Conceito central é o de experiência, para ele, essencialmente tão plural como os contextos vitais. Sua lógica, na teoria da investigação em Logic: the theory of inquiry (1938), defende um experimentalismo efetivo e o pensar como um processo natural e prático, um instrumento de ajustar-se ao meio. Embora admita a distinção entre bem e mal, virtude e vício, sua moral resume-se na moral pragmática do bem-viver em sociedade. Dewey supera a moral de Hobbes e a moral equilibrista de Bentham ao fazer do altruísmo uma das virtudes fundamentais do indivíduo. A melhor sociedade, para Dewey, é a que melhor condiz com a natureza livre do homem, ou seja, é a democracia assente nos princípios liberais, que atribuem, ao exercício da própria liberdade os limites que dimanam do exercício da liberdade alheia. Sua pedagogia traçada em Democracy and Education (1916), pode ser excelente introdução ao seu pensamento. É a obra que o tornou destacado nessa área. Para ele, educação, democracia e crescimento são conceitos convertíveis entre si. A experiência estética, ética e religiosa são formas de alargamento do campo da experiência como o é igualmente a filosofia. Segundo Dewey, experiência religiosa e experiência estética identificam-se no ato emocional e representam o ponto culminante da natureza, da experiência estética e da pesquisa. Somente a arte pode oferecer o sentido vivencial de plenitude, princípio e fim de toda a teoria de Dewey. Quanto ao fenômeno religioso, ao contrário de W. James, dá a entender discretamente a sua posição de agnóstico em metafísica, julgando que a ideia de transcendência surge no homem quando lhe falta a coragem de aceitar sua própria finitude temporal. Dewey chamou sua filosofia de instrumentalismo, diferenciando-a do empirismo clássico quanto ao conceito fundamental de experiência. Os empiristas clássicos, segundo ele, trabalham com uma experiência simplificada, reduzida a
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estados de consciência claros e distintos, enquanto Dewey, em Experiência e natureza (1925) afirma que “a experiência não é consciência, mas sim história”. A experiência é história voltada para o futuro. O homem vive neste mundo. A natureza não existe sem o homem, nem o homem existe sem a natureza. Imerso na natureza, ele é uma natureza capaz de mudar a própria natureza e dar-lhe significado. Na visão de Dewey, a luta para enfrentar o mundo e a existência exige um comportamento e operações humanos inteligentes e responsáveis. Nisso insere-se seu instrumentalismo e sua teoria da pesquisa. Em sua grande obra Lógica: teoria da investigação (1938) define a investigação como “a transformação controlada ou direta de uma situação indeterminada em situação determinada por suas distinções e relações constitutivas, a ponto de converter os elementos da situação originária em totalid ade unificada”. O pragmatismo norte-americano carateriza-se por inverter a hierarquia de pares de conceitos da filosofia tradicional, passando o primado da eternidade para a temporalidade, do passado para o futuro, do dualismo para o continuísmo, da substância para o acontecimento, da contemplação para a ação, do sistema para o método, da ordem para o processo, etc. 7.4
Richard Rorty (1931-2007) Richard Rorty elaborou uma versão atualizada do pragmatismo
americano. Ele rejeita o representacionismo, segundo o qual a filosofia postula um papel cognitivo privilegiado para determinar os critérios de julgar se nossas representações são adequadas à realidade ou não. Carateriza sua filosofia como ironismo liberal. Richard Rorty nasceu em Nova York. Depois de seus estudos de filosofia em Chicago, onde frequentou aulas de Rudolf Carnap, e Yale, onde teve aulas com Carl Hempel, doutorou-se em 1956. Lecionou em Wellesley, em Princeton, na Universidade de Virgínia e Stanford. Seus primeiros trabalhos os f ez na área da filosofia analítica. Em 1979 publicou Philosophy and the mirror of nature (Filosofia e o espelho da natureza), obra que alguns interpretaram como uma crítica radical da filosofia analítica.
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Com a expressão “espelho da natureza”, Rorty refere -se às filosofias como a de Descartes e Kant que se compreendem como fundamento do saber de uma cultura, ou ainda, seu juiz. A consciência humana apresenta-se como um grande espelho, que contém diversas representações do mundo. Tenta mostrar que as filosofias modernas, como a fenomenologia e a filosofia analítica, no fundo, orientam-se por essa imagem do espelho, cujo modelo foi e continua sendo o saber. A filosofia que ele busca é a filosofia terapêutica e formadora. Os representantes dessa não construíram sistemas, mas, apenas reagiram de maneira crítica, com aforismos, como Kierkegaard, Wittgenstein, Nietzsche e Heidegger. O ideal da nova cultura seria o “desenvolvimento estético”, ou seja, a formação de todas as faculdades do homem. A posição de Rorty na filosofia não é analítica, mas pragmática. É uma filosofia tipicamente norte-americana como a de Peirce, James e Dewey. É notável pela amplitude dos seus interesses filosóficos e culturais, mas elaborou progressivamente um pragmatismo pós-moderno original, centrando-se mais sobre a filosofia moral, social, jurídica e política, e sobre a filosofia da arte. Para Rorty, inexiste um conhecimento seguro. Já a procura da verdade é falha porque desvia do essencial. Segundo ele, a tarefa da filosofia e da literatura é fortalecer a fantasia e a empatia dos homens. Diz que filósofos são intelectuais que leram apaixonadamente as obras de Platão e de Kant. No caso ideal, importa descobrir aspectos novos e interessantes nos textos clássicos. Libertar-nos de uma terminologia envelhecida torna-nos mais receptivos para a vida. Em 1989, publicou o livro Contingency, Irony and Solidarity (Contingência, ironia e solidariedade) na linha do pensamento de James e Dewey. Afirma que, na teoria do conhecimento e na ética, não existem verdades absolutas, mas apenas acordos humanos sobre os melhores meios e caminhos para alcançar determinados fins. Diz que, em assuntos de ética, a literatura é mais útil que a filosofia moral de Kant baseada em princípios. No exemplo de romances de Proust e Orwell percebe-se, segundo Rorty, que apaixonantes narrativas sobre injustiças e miséria obtem mais compaixão e clareza ética que muitos tratados filosóficos.
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No seu livro Filosofia e o espelho da natureza critica tentativas de forçar a realidade dentro dos estreitos limites da teoria do conhecimento ou da lógica. Encontrar um fundamento firme para o pensamento foi o objetivo da filosofia desde Platão. Da mesma maneira, o empenho da gnosiologia moderna, desde Descartes, baseou-se na busca da coincidência entre representação e realidade. Diz, ainda, que também o criticismo de Kant entre o racionalismo e o empirismo situa-se na categoria daquela filosofia que afirma ter encontrado um paradigma seguro na teoria do conhecimento. Para Rorty, o valor de manifestações com sentido é determinado menos pela concordância com a realidade externa ou com uma lógica interna que pela decisão da práxis social. A busca da verdade, que para Rorty não existe, é pouco importante para o progresso humano. As ciências naturais são uma atividade cultural como outras práticas: política, arte, filosofia. Também na física buscam-se determinados fins pragmáticos. De modo algum deve admitir-se que seus conceitos são mais verdadeiros que as proposições da literatura ou da f ilosofia. Rorty questiona postulados tradicionais da filosofia ocidental, como o primado do conhecimento, identificado com um projeto de representação adequada do real; a determinação da filosofia como ciência das ciências, que define as normas e os critérios da cientificidade e da verdade; a descrição da faculdade humana de conhecer, como uma espécie de espelho. Tudo isso, para ele, não passa de mito. Por outro lado, afirma o primado da vontade e da liberdade sobre a razão. Apesar de sair da escola analítica, os pontos de referência da filosofia de Rorty são a filosofia de John Dewey, Ludwig Wittgenstein e a filosofia do Ser de Martin Heidegger tardio. Cultivou relações de amizade com Georg Gadamer. Ora, para todos esses pensadores, a filosofia não pertence à uma determinada esfera do saber, mas é uma atividade a ser desenvolvida para progredir na vida pessoal e da sociedade. Filósofos como Descartes, Kant, Hegel e Nietzsche contribuíram para aumentar o vocabulário filosófico. Em relação aos dogmas religiosos e metafísicos, as estratégias seculares dos tempos modernos, para ele, significam um grande progresso, mas alguns aspectos da filosofia moderna merecem crítica radical. Rorty considera ridícula a teoria do conhecimento de Descartes, pois segundo ela, no espírito do homem espelhar-se-ia fielmente o
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mundo real, desde que se obedeça a certas regras metódicas. Para ele, trata-se do teatro cartesiano. Segundo Rorty, a atividade filosófica deve ser compreendida como uma espécie de descrição e de narração entre as outras, diferente, mas não superior. Para promover uma filosofia criativa e perspectivista é preciso desconstruir os privilégios da palavra filosófica. Os filósofos podem e devem contribuir para o diálogo dos homens entre si. Mas a discussão deve prorrogar-se até chegar a um consenso. Para a filosofia, a pulsão para o absoluto ou a transcendência, através de enunciados indiscutíveis, é ilusória, perigosa e inútil. Por isso, descreve-a como desejo de “sair da linguagem” ou de “sair da condição humana”. O pragmatismo ou neopragmatismo de Rorty afirma que alguma coisa somente é verdadeira, válida e útil, pela relação com determinado contexto, no quadro particular das relações que nele se estabelecem. Trata-se de um pragmatismo relativista, no sentido de relacionalismo, considerando a complexidade relacional e evolutiva das situações. Ao mesmo tempo, é universalista enquanto tenta incluir, em sua avaliação, um máximo de perspectivas e de relações. Rorty quer promover as sociedades abertas e inclusivas, dentro de uma tradição americana, ampliando a sociedade democrática e liberal para toda a humanidade. Para ele, a solidariedade é mais significativa que a objetividade, a esperança é mais importante que o conhecimento. Considera fracassadas as tentativas dos positivistas de distinguir a ciência da metafísica através de um critério de sentido. Para ele, a ciência é um instrumento, um meio, para atingir certos fins, que são metas fixadas pelo próprio homem. Se não tivéssemos determinadas metas ou fins técnicos, dificilmente nos ocuparíamos com a física moderna. Por isso, critica uma supervalorização da física, pois é uma entre outras ciências. Rorty afirma que com os meios da física não se consegue esclarecer uma poesia. As ciências do espírito são tão importantes como as ciências da matéria. Toda ciência humana é limitada porque perspectivista. Para melhorar o respeito universal pelos direitos humanos, segundo ele, deve confiar-se mais na literatura que na filosofia, pois eles não necessitam de fundamentação, mas de propagação. A dignidade, a igualdade e a fraternidade
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não se enraízam numa essência humana universal (razão ou natureza), mas dependem da boa vontade dos homens, da capacidade de abertura e integração, da diversidade plural. Em 1985, em Guadalajara, Rorty afirmou que a filosofia deveria manter-se tão distante da política quanto a religião. Afirmou, outrossim, a prioridade da democracia sobre a filosofia. Esta última deve ser considerada uma atividade privada, da mesma forma que a pintura ou a poesia. Para ele, a função pública do Estado liberal é dupla: diminuir o sofrimento e garantir a liberdade da conversação. A humanidade nada mais é que o produto local, totalmente contingente e precário, de forças cósmicas em relação às quais sua ação é quase nula.
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VIII O NOVO UTILITARISMO
Em sua história da filosofia Do Renascimento à pós-modernidade, Gilbert Hottois afirma: A riqueza e a complexidade do utilitarismo com demasiada frequência ignoradas pelos pensadores “continentais” que fazem dessa quase “nãofilosofia anglo-saxônica” uma imagem simplista, caricatural, fácil de criticar e de desprezar. É assim que o próprio espírito do utilitarismo se encontra, tão inteiramente quanto abusivamente, reduzido a seus desvios53.
Nasce a pergunta: o que se entende por utilitarismo filosófico? Pouco mais adiante Hottois explica: O utilitarismo exige, sem dúvida, ser criticado particularmente por seus abusos. Contudo, seus méritos, sua eficácia prática e suas contribuições para nossa civilização, deveriam ser reconhecidos também. O pensamento “continental” ganharia muito em melhor conhecê-lo 54.
Em geral, na filosofia, por utilitarismo entende-se uma corrente que engloba diversas doutrinas, predominantemente de autores anglo-saxônicos, que têm em comum avaliar moralmente as ações apenas segundo o caráter vantajoso ou não, das suas consequências. Trata-se de uma ética teleológica e consequencialista, considerando a moralidade dos atos tão somente pelo critério extrínseco dos seus efeitos. Historicamente designa, outrossim, um movimento de reforma social. Consideram-se seus fundadores Jeremy Bentham (1774-1832) e HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à pós-modernidade. Aparecida: Ideias e Letras, 2008, p. 257. 53
54
Ibidem, p. 258.
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John Stuart Mill (1806-1873), que pretendem unir economia, política, filosofia e ética. Já, na antiguidade, encontram-se elementos singulares de uma ética utilitarista, mas Bentham foi o primeiro a dar-lhe uma forma sistemática. Ele parte de três premissas: a) o hedonismo psicológico, segundo o qual todos os homens buscam, por natureza, o prazer e evitam a dor. As leis e a política devem considerar essa inclinação natural do homem; b) a aceitação de uma teoria de valores segundo a qual a busca do prazer é racional e a renúncia ao mesmo deve ser rejeitada como irracional. Bentham propõe um cálculo hedonista para obter um máximo de prazer e um mínimo de sofrimento para cada ação. Uma ação, então, é moralmente boa quando o prazer for maior que o sofrimento; c) nesse cálculo deve mostrar-se a norma da imparcialidade, segundo a qual o bem de cada indivíduo conta igualmente. Essa premissa serve de base para criticar discriminações, por exemplo, entre homens e mulheres. Em Uma introdução aos princípios da moral e da legislação , Bentham começa com o célebre parágrafo: A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer . Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores estão vinculadas, por uma parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado e, por outra, a cadeia das causas e dos efeitos. Os dois senhores de que falamos nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer tentativa que façamos para sacudir este senhorio, outra coisa não faz senão demonstrá-lo e confirmá-lo55.
Para Bentham as únicas forças motivadoras do ser humano são: buscar o prazer e evitar a dor. A isso chamou princípio de utilidade. Para ele, maximizar a felicidade é o mesmo que maximizar o prazer. Antes de tomar uma decisão é preciso quantificar o prazer e a dor. O hedonismo psicológico é o prazer da pessoa individual e o prazer no hedonismo ético é o prazer da comunidade moral. Tudo que maximiza a felicidade para o maior número de pessoas é
BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 3. 55
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moralmente bom. Ele também defendeu reformas políticas e jurídicas que beneficiariam a população como um todo. O empirista John Stuart Mill corrigiu o utilitarismo, substituindo o hedonismo quantitativo de Bentham pelo hedonismo qualitativo, valorizando o prazer espiritual mais que o prazer corporal. Ele afirma que maximizar a felicidade para o maior número de pessoas, deveria ser a nossa meta. Mas a única evidência que temos do que é bom é o que desejamos. Todos desejam a felicidade. Ela é o melhor objetivo para a ação humana, pois a felicidade é seu único fim. O que sempre está em foco são as consequências, os desdobramentos de um ato, não a posição interior do agente (a intenção). O utilitarismo de Mill é consequencialista, avaliando os resultados observáveis de uma ação para determinar o seu valor moral. A tradição iniciada por Bentham e Mill foi levada adiante por Henry Sidgwick (1839-1900) e, depois, por George E. Moore (1873-1958). Para o utilitarismo clássico, as ações são moralmente boas quando favorecem a felicidade. Do contrário, são más. Não se trata da felicidade total. Segundo Bentham, a felicidade é o prazer. Mill tentou corrigir, introduzindo distinções qualitativas entre os prazeres. A maioria dos utilitaristas contemporâneos abandonou o critério do prazer. O utilitarismo nasce e se desenvolve na grande tradição do empirismo inglês. Não busca fundamentação na religião, na metafísica ou no mito. Através do tempo, sofreu importantes correções. John Rawls introduziu uma nova correção, acrescentando-lhe um princípio de justiça. Mas, a correção contratualista, introduzida por ele, expõe a incapacidade de fornecer critérios para a justa distribuição do bem-estar e a salvaguarda dos direitos legítimos das pessoas. A influência do utilitarismo é sinalizada em nossos dias pela ampla difusão da obra de Peter Singer e John Rawls. É claro, também encontra muitas críticas como a de poder justificar atos habitualmente considerados maus, como o assassinato. Pode perguntar-se: porque é necessário construir a felicidade dos outros? A insatisfação com as teorias utilitaristas levou John Rawls e outros a tentar substituí-las por outras. O utilitarismo filosófico é um consequencialismo, pois avalia o ato com base nas consequências. As questões de valor dependem da experiência
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sensível, verificável, comunicável e discutível. O que é bom ou mau é questão de experiência individual e coletiva. Portanto, a ética é uma disciplina a ser exercida a posteriori . Os critérios da ciência moral são simples. Identifica-se o bem com o prazer, com o útil e o mal com a dor. O bom é o que favorece os prazeres e diminui os sofrimentos. A experiência da dor e do prazer é antropocêntrica, pois bem e mal não existem em si, nem são transcendentes, mas referem-se ao ser humano. Portanto, não é a razão o critério de legitimidade do ponto de vista ético, nem a capacidade racional, mas a faculdade de sentir, de ter interesses. Com esse critério, não há motivo de restringir a comunidade moral apenas aos seres humanos. Portanto, se os animais ou outros seres vivos podem sofrer, também têm direitos. O australiano Peter Singer escreveu Animal liberation (1975) e Practical ethics (1993) nessa perspectiva. 8.1 Peter Singer (1946) Peter Singer desenvolveu a abordagem utilitarista introduzida por Bentham e Mill para tratar de uma série de questões contemporâneas como aborto, eutanásia e igualitarismo social. Ele nasceu em Melbourne, na Austrália. É um dos filósofos mais controversos da atualidade no campo da ética aplicada. Doutorou-se em Filosofia, com uma tese na área política, sobre o direito à desobediência civil. Entretanto, tornou-se conhecido como representante destacado da ética utilitarista. É professor de filosofia, co-diretor do Institut of Ethics and Public Affairs e diretor do Centre of Human Bioethics da Universidade de Monash, Melbourne. Tornou-se famoso com a primeira edição de Ética Prática e Animal Liberation. Na Ética Prática pergunta: Quais são as nossas responsabilidades para com os pobres? Justifica-se que tratemos os animais como nada, além de máquinas que produzem carne para a nossa alimentação? Devemos continuar usando papel nãoreciclado? E por que, afinal, devemos preocupar-nos em agir de acordo com princípios morais?56
56 SINGER,
Peter. Ética Prática. 2. ed. Sâo Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 1.
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O que provocou a rejeição da Ética prática por muitos moralistas são afirmações como: Matar bebês, (...) portanto, não é coisa que se possa comparar a matar seres humanos normais, ou quaisquer outros seres que tenham consciência de si. Esta conclusão não se limita aos bebês que, devido a deficiências mentais irreversíveis, jamais se tornarão seres racionais e conscientes de si57.
Ou, dentro de seu utilitarismo preferencial: Devemos rejeitar a doutrina que coloca as vidas de membros da nossa espécie acima das vidas de membros de outras espécies. Alguns membros de outras espécies são pessoas; alguns membros de nossa espécie não o são (...). Assim, parece que o fato de, digamos, matarmos um chimpanzé é pior do que o de matarmos um ser humano que, devido a uma deficiência mental congênere, não é e jamais será uma pessoa 58.
A afirmação de que a eutanásia ativa é, em certos casos, aceitável e não tem o peso do assassinato de uma pessoa, não representando, por isso, uma injustiça provocou ondas de indignação e impediu a entrada de Peter Singer na Alemanha, com um protesto público. Entretanto, ele não é um outsider , pois retoma e aplica conceitos éticos utilitaristas que ocorrem na filosofia analítica de matiz anglo-saxão. Por outro lado, na sua Ética Prática discute a tese do direito de matar animais. 8.1.1 Utilitarismo preferencial A filosofia de Singer foi influenciada pelos utilitaristas clássicos: Bentham, Mill e Henry Sidgwick (1838-1900). Mill distinguiu entre prazeres superiores e inferiores. Defendeu a tese de que as pessoas devem escolher e maximizar os prazeres superiores. Sidgwick introduziu mais uma distinção: o que o utilitarista deve maximizar é, para ele, a “consciência desejável”, ou seja, a experiência de ter satisfeito um desejo que, de fato, se queria satisfazer.
57
Ibidem, p. 192.
58
Ibidem, p. 126-127.
152
Segundo Singer, devemos considerar as consequências de nossa ação, e a contabilidade exige que interesses iguais sejam tratados igualmente. Seres sensitivos têm interesse de experimentarem o prazer e evitarem dores. Como a maioria dos animais, humanos e não-humanos, é sensitiva, capaz de sentir prazer e dor, todos devem ser levados em conta. Singer preocupa-se não apenas com os interesses de evitar dor e experimentar o prazer, mas, também, com os interesses e desejos projetados para o futuro. Contrariar interesses futuros causa sofrimento. Esse enfoque é importante para a questão controvertida de matar. Na versão do utilitarismo da preferência de Singer, julgam-se as ações não apenas por suas tendências a maximizarem o prazer e minimizarem o sofrimento, mas também por seus papéis na promoção da satisfação das preferências. De acordo com o utilitarismo da preferência, seria condenável matar um ser que tem uma preferência explícita por continuar vivendo, e até pode ser errado matar um ser que tem desejos e preferências para o futuro, mesmo quando não expressas. Por isso, considera pessoas aqueles seres que têm capacidade de formular preferências por uma existência continuada, de ver a si existindo ao longo do tempo. Pessoas são, pois, autoconscientes e automotivadas, seres que se reconhecem como indivíduos que perduram no tempo. Seu critério é uma teoria de valores da satisfação de p referências. Dentro da perspectiva de seu “utilitarismo da preferência”, Singer trata problemas polêmicos sem preocupação com o fundamento racional ou ontológico. Seu objetivo parece ser o de agradar a gregos e troianos, ou seja, satisfazendo o maior número de desejos e interesses. Por isso, a qualidade moral das ações depende da ponderação de interesses. O critério moral é a utilidade ou satisfação dos interesses da maioria dos envolvidos. A concepção utilitarista de Singer, segundo afirma em sua obra Vida ética, fundamenta-se em quatro proposições: a) A dor é ruim e, não importa quem a sente, quantidades semelhantes de dor são igualmente ruins. Por “dor” entende todos os tipos de sofrimento e de aflição. Por outro lado, prazer e felicidade são bons, não importa de quem sejam; b) Os seres humanos não são os únicos seres capazes de sentir dor ou aflição. A maioria dos animais também sente dor ; c) Quando avaliamos a gravidade do ato de tirar a vida, não devemos levar em
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conta a raça, o sexo ou a espécie a que pertence o indivíduo, mas as caraterísticas do ser individual a ser morto como, por exemplo, o desejo de continuar a viver ; d) Somos responsáveis não só pelo que fazemos, mas também pelo que poderíamos ter impedido. Devemos pensar nas consequências do que fazemos ou deixamos de fazer 59. Tornou-se conhecida a posição polêmica de Singer a respeito da eutanásia e da matança de animais. Em sua posição, parte da distinção entre “vida pessoal” e “vida não-pessoal”. Para Singer, o valor da pessoa consiste em ter consciência de si, abrangendo o próprio passado, e projetar seu futuro, ou seja, a capacidade de ter desejos referentes ao próprio futuro. Ora, de acordo com essa definição, nem todos os seres humanos são pessoas e há animais que o são. Crianças recém-nascidas ainda não satisfazem, totalmente, esse critério de ser pessoa. Daí Singer conclui que o assassinato de crianças recém-nascidas é menos condenável que o assassinato de chimpanzés ou golfinhos considerados, por ele, seres pessoais. Com tal argumentação, Singer não defende a tese de que se mate arbitrariamente “não-pessoas”, mas, sua morte é permitida somente nos casos em que a vida que as aguarda não é digna de ser vivida. Por outro lado, a matança de animais “pessoais” é injustificável. Enfim, trata-se de um pensamento estranho, no mínimo, para a sociedade tradicional e, sobretudo, provocante. Segundo a tradição cristã e kantiana, matar crianças deficientes fere a dignidade humana. Quando se tenta justificar “alguns casos” para legitimar o assassinato de seres humanos, abrir-se-ão novas brechas para assassinatos “legítimos” e pena de morte. Singer substitui o conceito tradicional do ser humano como ser de razão pelo conceito de pessoa. Na sua visão, nem todos os seres humanos são pessoas e não somente humanos são pessoas. Por isso, nem todos os seres humanos e não somente os humanos têm direito moral a uma proteção especial da sua vida. Segundo ele, o status moral de um ser humano não decorre do fato de pertencer à espécie biológica do homo sapiens, mas unicamente do fato de ser pessoa. A capacidade de memória e elevada orientação para o futuro habilita pessoas a vivenciar alegria e sofrimento. Ora, há seres humanos que não atingem 59
Cf. SINGER, Peter. Vida e ética. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 11-12.
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esse status de pessoa e, por isso, não podem exigir proteção especial para sua vida. Em Ética Prática afirma: As pessoas costumam dizer que a vida é sagrada, o que, quase sempre, não passa de força de expressão. Não querem dizer, como as suas palavras parecem indicar, que em si, a vida é sagrada. Se quisessem, considerariam igualmente abominável matar um porco, arrancar um repolho ou assassinar um ser humano. Quando as pessoas afirmam que a vida é sagrada, estão pensando na vida humana. Mas por que a vida humana deveria ter um valor especial?60
O filósofo australiano diz que, embora pertençam à espécie biológica homo sapiens, “o embrião, o feto, a criança, com profundas deficiências mentais, e o próprio bebê recém-nascido, nenhum deles é autoconsciente, têm senso de futuro ou capacidade de se relacionar com os outros” 61. Por isso, para ele, pessoa não é sinônimo de ser humano. Afirma, em páginas adiante: Talvez o melhor que se possa dizer – mesmo não sendo muito satisfatório – é que não há nada de diretamente errado em se conceber uma criança que será infeliz, mas que, uma vez que tal criança existe e já que a sua vida não pode ter nada além de infelicidade, deveríamos reduzir a quantidade de sofrimento no mundo, através da eutanásia 62.
Ao restringir o conceito de pessoa, de modo a excluir dele seres humanos e, ao mesmo tempo, incluir nele outros animais desenvolvidos, Singer evidencia seu interesse em defender os direitos dos animais e que a vida humana com sofrimento é indigna de ser vivida. Ele fundamenta sua doutrina de restrição à proteção especial da vida humana em sua doutrina da personalidade e no valor da vida individual com suas chances de ser feliz. A pergunta a ser feita a Singer parece ser: Abandonando a doutrina de que toda a vida humana é sagrada, ainda se pode resolver o problema do valor da vida de modo interno? Qual o critério para afirmar, simplesmente, que uma criança, com síndrome de Down, tem perspectivas essencialmente piores de levar uma vida feliz do que uma criança normal? Introduzir exceções, na defesa da dignidade da vida humana, não seria
60 SINGER,
Peter. Ética Prática. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 93-94.
61
Ibidem, p. 96.
62
Ibidem, p. 114.
155
como explodir o dique de uma grande represa de água? O conceito de pessoa refere-se a determinadas propriedades ou ao seu portador? 8.1.2 Ética Prática A obra de Singer causou grande impacto, sobretudo em três áreas da ética prática: animais, eutanásia e pobreza. a) Animais Dentro do utilitarismo das preferências, Singer quer promover a máxima satisfação de preferências a todos aqueles que podem ter preferências, incluindo os animais não-humanos, sobretudo, grandes macacos, golfinhos e elefantes, porque, segundo ele, esses animais têm percepção de si mesmos como existindo ao longo do tempo. Têm preferências que se estendem para o futuro e, quando mortos, são frustradas. Em Ética Prática cita um texto clássico de Bentham sobre esse tema: Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda a comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim: que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar , ou se conseguem falar , mas sim, se são passíveis de sofrimento63.
Singer parte para a defesa dos animais, pois, para ele, o massacre dessas pessoas não-humanas é tão rejeitável, eticamente, quanto seria o massacre de pessoas humanas, se realizado para satisfazer gostos exóticos ou
63
Ibidem, p. 66-67.
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buscar lucros. A bilhões de animais, que vivem sob alguma forma em cativeiro humano, são impingidas frustrações e sofrimentos, privando-os de sua liberdade. Nesse sentido, propõe direitos dos animais e para os humanos o dever de respeitá-los. Entretanto, as posições de Singer a respeito de nosso tratamento dos animais não-humanos nunca levam a conclusões definitivas. Ele opõe-se aos experimentos em humanos e não-humanos, mas, em alguns casos, podem ser justificáveis. Para avaliar, se um experimento com um animal não-humano é justificável, defende o “teste utilitarista não especista” ou TUNE. Segundo o TUNE, um experimento seria justificável se, e somente se: 1. De todas as opções em aberto, o experimento gera mais prazer ou benefício que dor ou custo, no cômputo geral, para todos os afetados. 2. A justificação do experimento deve excluir preconceitos irrelevantes de espécies ou o que chama de “especismo”. Embora Singer se tenha tornado vegetariano, não exige que sempre se evite comer carne de animais, mas quer que evitemos consumir produtos que causam sofrimentos aos animais. Defende os animais não-humanos contra maustratos que ocorrem na maioria das sociedades. Usos de não-humanos e humanos, em alguns casos, segundo ele, podem ser eticamente permitidos, sempre dependendo das alternativas disponíveis e das consequências boas produzidas. b) Eutanásia A posição de Singer mais provocante e discutível é, sem dúvida, em relação à eutanásia. Defende a tese de que, no caso de crianças seriamente incapacitadas, ou seja, aquelas que nunca se desenvolverão em pessoas, segundo sua definição, e cujas breves vidas serão miseráveis, seria melhor, de um ponto de vista ético, matá-las, sem dor, para evitar-lhes um sofrimento desnecessário. O imperativo moral de evitar sofrimento desnecessário poderia justificar a eutanásia em muitas situações: de adultos, com danos cerebrais
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graves; de doentes terminais, que querem morrer; bem como de crianças com séria deficiência. Entretanto, para Singer, seria errado tirar a vida daqueles que podem expressar um desejo pela existência continuada. É claro, na prática será difícil que os humanos, nessas condições, como os animais não-humanos possam expressar sua vontade de continuar vivendo ou não, como propõe o utilitarismo preferencial. Singer pressupõe que a qualidade de vida é mais importante, do ponto de vista ético, que defender, a todo custo a sacralidade da vida humana, porque essa crença, segundo ele, causou e ainda causa, sofrimento desnecessário. Segundo seu utilitarismo, é preferível a morte de alguns para contribuir para a qualidade de vida de outros. Neste ponto, na leitura da obra de Singer, o leitor, por vezes, pode ter a impressão de arrogância de atitude, de quem queira usurpar o lugar de Deus para ser senhor sobre a vida. c) Pobreza Para o utilitarista Singer, o objetivo da ação ética é reduzir o sofrimento e promover o bem-estar. Mas, a pobreza impede o bem-estar de muitos. Em Ética Prática começa o capítulo sobre “ricos e pobres”, com as seguintes estimativas: 400 milhões de pessoas não têm as calorias, as vitaminas e os sais minerais necessários para manter os seus corpos e as suas mentes em condições saudáveis. Milhões de seres humanos estão constantemente famintos; outros sofrem de doenças, causadas por carências e de infecções, às quais poderiam muito bem resistir se tivessem uma alimentação melhor. As crianças são as mais atingidas. Segundo um dos estudos, 14 milhões de crianças, com menos de cinco anos, morrem, todos os anos, em consequência de uma combinação de má alimentação e infecções. Em alguns lugares a expectativa é que a metade das crianças que nascem morram antes de completar cinco anos64.
Ora, contrapondo à pobreza a riqueza de muitos em nosso planeta, conclui que a postura, de fato, de permitir que alguém morra, não é intrinsecamente diferente de matar alguém. Propõe que o dinheiro gasto no supérfluo pelos ricos, seja dado aos pobres para diminuir seu sofrimento. 64
Ibidem, p. 229.
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Podemos fazer muito mais, sem grande sacrifício, para diminuir o sofrimento de muitos por causas relacionadas à pobreza. O pensamento de Singer é, certamente, positivo no sentido de sensibilizar para problemas reais da atualidade: a injusta distribuição dos bens, no âmbito da humanidade, a destruição do ambiente natural, sobretudo, a questão de interesses pela vida de animais. Por outro lado, como determinar o limite entre a vida humana, que vale a pena ser vivida, e aquela que não vale? A felicidade resulta, exclusivamente, da ausência de sofrimento? É possível separar vida e sofrimento? Quem decide sobre a felicidade ou infelicidade de outro? Restringir a proteção da vida às pessoas não resolve o problema do ambiente, pois o futuro do homem não depende apenas de animais mais desenvolvidos, mas também das plantas, da água e do ar. Da mesma maneira, não cabe falar apenas da ética no trato dos animais, mas de uma ética mundial, pois os deveres do homem não se restringem à sua relação aos semelhantes e aos animais, mas estende-se à natureza e às próprias conquistas da tecnociência. A doutrina sobre a eutanásia expõe-nos ao perigo de romper o dique de uma represa nos moldes do nazismo. Por utilitarismo, na ética, designa-se uma concepção segundo a qual deve fundar-se a retidão moral do agir na utilidade das consequências. Nesse sentido é consequencialismo. De acordo com a maneira como se define essa utilidade, ou seja, segundo quais critérios ela deverá ser constatada e o que se deve entender por esse agir a ser fundamentado, podem distinguir-se diferentes formas de utilitarismo. J. Bentham, seu fundador, no seu utilitarismo hedonista, reduz a utilidade à alegria e ao sofrimento. Partindo de um catálogo de alegrias e sofrimentos simples, avança para um cálculo hedonista de categorias (intensidade, duração, certeza, proximidade), segundo as quais devem medir-se os graus dessas alegrias e sofrimentos. De acordo com esse método, primeiro deve constituir-se o grau ou a forma da felicidade a superar o sofrimento que se espera da ação do indivíduo. Depois, deve deduzir-se dessa quantidade de felicidade para os indivíduos a soma de felicidade para todos os envolvidos. No utilitarismo das preferências de Peter Singer a questão é a seguinte: qual o prazer ou a felicidade a ser maximizada, com cuja ajuda se expressa o lugar de uma preferência, dentro de uma ordem de preferências ou na comparação com outras? Dessa maneira, velhos problemas permaneceram e
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novos surgiram. Nova é a questão de quais tipos de preferências devem entrar no novo cálculo: preferências de conteúdo ou somente preferências vividas? Outra questão é se se trata simplesmente de um conjunto de preferências ou da média. Uma das principais críticas feitas contra o novo utilitarismo diz respeito à justiça. Objeta-se que Singer somente se preocupa com a maximização do conjunto de utilidade, mas não da justa partilha e, por isso, não daria conta do princípio da justiça. Segundo críticos, como D. Lyons, não se pode fundamentar a fairness, baseada na justa divisão entre vantagens e desvantagens, com o princípio da utilidade. Relaciona-se, antes, imediatamente com o conceito de conduta social. J. Rawls considera sua teoria da justiça como fairness um desenvolvimento do utilitarismo no espírito kantiano, que mostra que o utilitarismo também dispõe de um conceito de justiça. Em sua Teoria da justiça tenta conciliar a ética kantiana do dever e o utilitarismo. 8.2 John Rawls (1921-2002) John Rawls talvez tenha sido o filósofo mais importante da última metade do século XX, na área da política. Sua principal obra, Uma teoria da justiça (1971), deu um novo ímpeto à filosofia política, oferecendo um novo tratamento, que alterou os debates familiares. Depois de Kant, foi a primeira tentativa vigorosa de produzir uma alternativa à ética utilitarista. Embora, por vezes, acusado de consequencialismo, insere-se, antes, na tradição do contrato social como princípio de legitimação política (Locke, Rousseau e Kant). No plano metodológico, socorre-se dos modelos teóricos da decisão racional e dos jogos utilizados pelos economistas neoclássicos. Com sua concepção deontológica da justiça como equidade (fairness), busca uma alternativa ao utilitarismo, tanto na sua versão clássica de Bentham e Stuart Mill, como na moderna, contestada pela inconsistência formal e insuficiência teórica na ordenação ética e política da vida social. No prefácio de Uma teoria da justiça, Rawls afirma: “Minha tentativa foi de generalizar e elevar a uma ordem mais alta de abstração a teoria tradicional do
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contrato social representada por Locke, Rousseau e Kant” 65. Pouco adiante acrescenta: “A teoria resultante é altamente kantiana em sua natureza” 66. Rawls nasceu em Baltimore e ingressou na Universidade de Princeton em 1939. Graduou-se em 1943 e ingressou nas Forças Armadas, servindo no Pacífico até 1945. Depois da segunda guerra mundial retornou a Princeton, concluindo seu doutorado em Filosofia, em 1950. Tendo sido bolsista pela Fullbright em Oxford, durante o ano de 1952, voltou aos EE.UU. Lecionou em Cornell de 1953-1959. Em 1959 transferiu-se para Harvard, onde permaneceu para o resto de sua carreira. A obra fundamental de Rawls é Uma teoria da justiça (1971), que confere forma sistemática à mais de uma década de investigação: “Ao apresentar Uma teoria da justiça, tentei reunir em uma visão coerente as ideias veiculadas nos artigos que escrevi ao longo dos últimos doze anos aproximadamente” 67. Outras obras importantes são: The basic liberties and their priority (1982)); Justice as fairness (1985); Liberalismo político (1993) e O direito dos povos (1999). a) Justiça como equidade A atitude geral de Rawls frente à vida parece bem expressa nessa passagem de Uma teoria da justiça: É um erro acreditar que uma sociedade boa e justa deve aguardar a vinda de um alto padrão de vida material. O que os homens querem é um trabalho significativo em livre associação com os outros, essas associações regulando suas relações mútuas dentro de uma estrutura de instituições básicas justas. Para que se atinja esse estado de coisas, não se requer grande riqueza. De fato, além de um certo ponto, ela tende mais a ser um verdadeiro obstáculo, na melhor das hipóteses uma distração, senão uma tentação a que nos entreguemos ao vício e ao vazio68.
65
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XXII.
66
Ibidem, p. XXII.
67
Ibidem, p. XXI.
68
Ibidem, 322-323.
161
No primeiro capítulo de Uma teoria da justiça afirma: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais” 69. Ela é a condição fundamental para atribuir-lhes valor. Para Rawls, uma teoria da justiça é uma teoria da justiça social. O seu ponto de partida é um contrato fictício em um “estado original”. Nisso lembra o Contrato Social de Rousseau. Nesse estado, as pessoas, pensando e agindo racionalmente, devem decidir quanto aos princípios corretos para construir uma sociedade bem-ordenada. Apoiado no caráter absoluto de uma dupla afirmação, a inviolabilidade fundada na justiça de todo o ser humano, e a prioridade do justo em relação ao bem, Rawls está convicto de que as pessoas se decidirão por dois princípios: 1) Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para os outros. 2) As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites razoáveis, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos 70.
O primeiro princípio, referente a direitos políticos e de cidadania, tem prioridade absoluta sobre o segundo, referente a interesses materiais e nãomateriais, de modo que liberdade somente pode ser causada por liberdade limitada. Depois o princípio da igualdade de chances tem prioridade sobre o princípio da diferença. Esses princípios, com a hierarquia que determina as regras da prioridade, desenvolvem o conteúdo fundamental do conceito de justiça em relação à estrutura fundamental de uma sociedade que se queira justa. De acordo com Rawls, uma sociedade assim estruturada, corresponde ao nosso sentimento moral quanto a princípios racionalmente fundamentáveis. Para Rawls, a justiça não é apenas a primeira virtude de sociedades políticas, mas também uma virtude moral. O Prof. Nythamar Fernandes de Oliveira, no seu verbete sobre Rawls, no Dicionário de Filosofia do Direito, escreve: “A elaboração de uma teoria política da justiça por Rawls se dá, ao longo de seus escritos, mas, sobretudo, na sua trilogia, em função de três ideias 69
Ibidem, p. 3.
70
Ibidem,p. 64.
162
diretrizes, a saber, a posição original , a sociedade bem-ordenada e o equilíbrio reflexivo”71. Por posição original entende a situação hipotética, na qual as partes contratantes (representando pessoas racionais e morais, isto é, livres e iguais) escolhem, sob um véu de ignorância, os princípios que devem governar a estrutura básica da sociedade. Por “véu de ignorância”, Rawls entende a situação particular de os membros, na “posição ou situação original”, possuírem, na verdade, representações de problemas e conexões sociais, mas não sabem em que posição entrarão na sociedade. Devem ter consciência do fato de começarem em uma posição privilegiada ou, então, intensamente prejudicada. Por sociedade bem-ordenada entende aquela que é efetivamente regulada por uma concepção política e pública de justiça, na qual cada indivíduo aceita os mesmos princípios de justiça e, portanto, os termos equitativos da cooperação social, assim como as suas instituições políticas, sociais e econômicas, por todos reconhecidas publicamente como justas. Por equilíbrio reflexivo entende um método adaptado da epistemologia analítica para a argumentação moral, com o objetivo de estabelecer uma coerência entre os juízos ponderados, sobre casos particulares, e o conjunto de princípios éticos e de seus pressupostos teóricos. A partir da concepção da posição original, Rawls pode desenvolver seu conceito de justiça como equidade. Numa sociedade injusta, por exemplo, é improvável que alguém, oriundo das camadas mais pobres, de uma favela, possa aspirar a um cargo de juiz, prefeito ou médico. Para Rawls, a questão da equidade surge quando pessoas livres, que não têm autoridade umas sobre as outras, estão engajadas em uma atividade conjunta, estabelecem e reconhecem entre elas, as regras que definem a atividade e determinam as respectivas parcelas em seus benefícios e custos. Uma prática afetará as partes como equânime se ninguém sentir que, ao participar dela, ele, ou qualquer um dos outros, será explorado ou forçado a ceder a reivindicações que não têm como legítimas. Diz: Na justiça como equidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento cooperativo para a vantagem de todos. A estrutura
DE OLIVEIRA, Nythamar Fernandes. Verbete. RAWLS, J. In: Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2006, p. 688. 71
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básica é um sistema público de regras, que definem um esquema de atividades, que conduz os homens a agirem juntos, no intuito de produzir uma quantidade maior de benefícios, e atribuindo a cada um certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos. O que uma pessoa faz, depende do que as regras públicas determinam a respeito do que ela tem direito de fazer, e os direitos de uma pessoa dependem do que ela faz. Alcança-se a distribuição que resulta desses princípios honrando os direitos determinados pelo que as pessoas se comprometem a fazer à luz dessas expectativas legítimas72.
É fundamental que as exigências da justiça sejam tais que todos os envolvidos, submetidos a elas, possam ver como coletivamente autoimpostas por meio de um procedimento equânime. Para isso pressupõe o reconhecimento mútuo de cada um como “livre e igual”. Nesse contexto inclui -se o conceito de reciprocidade. Por liberdade, Rawls entende a liberdade de alguém com a capacidade de construir uma vida significativa por si mesmo. b) O primeiro princípio: liberdades básicas Em Uma teoria da justiça, Rawls formula seu primeiro princípio fundamental da justiça, segundo o qual cada pessoa tem direito a um esquema inteiramente adequado de liberdades básicas, compatível com o direito e as liberdades similares de qualquer outro membro de sua sociedade. O leitor atento logo percebe que sua teoria da justiça não estabelece quais direitos e liberdades são fundamentais. Em Liberalismo político tenta suprir essa lacuna, afirmando duas liberdades fundamentais: a liberdade de consciência e a liberdade de associação. A exposição de Rawls dá a impressão de que a área de direito, liberdade e política tem a primazia perante a esfera da produção de bens. Pressupõe que os seres humanos, em seu estado primitivo, reconheçam sempre uma prioridade absoluta a esse primeiro princípio. O pressuposto de que os constituintes idealizados sempre e em qualquer situação deem prioridade às liberdades fundamentais acima dos bens econômicos não parece nada evidente. O que observamos, na verdade, é que a valorização da liberdade também depende de condições socioeconômicas. 72
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 90.
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c) O segundo princípio: desigualdades sociais e econômicas O segundo princípio de distribuição é um princípio da justiça socioeconômica. Exige que se administrem desigualdades econômicas e sociais de tal modo que seria de esperar que serão vantajosas para todos. Rawls interpreta este princípio distributivo pelo da diferença. Segundo Rawls, as desigualdades sociais e econômicas devem ser organizadas de tal modo que posições de mando e de status sejam acessíveis a todos, e diferenças de riqueza e renda surjam apenas pelos sistemas distributivos que operem a favor, se não de todos, pelo menos, em favor dos desfavorecidos da sociedade. A justiça exige igualdade equitativa de oportunidades ou chances iguais na vida. Por isso o sistema escolar deve eliminar as barreiras de classes. A cláusula econômica do segundo princípio de justiça de Rawls tornouse mais conhecida como “princípio da diferença”, significando que diferenças sistemáticas de riqueza e renda são justificadas somente quando operam em favor do setor social mais desprovido. O princípio da diferença significa, pois, que as melhores expectativas dos favorecidos são justas somente se elas e as circunstâncias socioeconômicas, que as possibilitam, contribuem para a melhoria das expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade. A sociedade também pode e deve instituir e garantir a alguns de seus membros expectativas mais favoráveis para privilegiados, se isso beneficia os menos favorecidos. Também essa solução parece problemática. Diz-nos a experiência que a melhoria da situação dos que se encontram nas piores situações, de modo algum garante melhorar a situação de toda a sociedade. No princípio da diferença sempre atuam dois componentes: a orientação da igualdade e a legitimação da desigualdade. Pode acontecer que o princípio da diferença exija a diminuição da desigualdade e redistribuição. Por isso é compreensível que o princípio da diferença de Rawls é objeto de muita crítica. Rawls designa a ordem caraterizada pelo princípio da diferença como sistema da igualdade democrática, em oposição aos sistemas da liberdade natural e da liberdade liberal, os quais ele rejeita. Rejeita esses, porque os efeitos de natureza e de história não obedecem a regras morais. As vantagens e desvantagens por elas causadas são, moralmente, arbitrárias. Por isso também
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os estados distributivos, resultantes de seus efeitos, são moralmente arbitrários e devem ser submetidos a uma correção em termos de justiça moral. O Estado, segundo Rawls, deve promover ativamente a igualdade de oportunidades nas áreas de educação, emprego, etc. Segundo Wolfgang Kersting, sem dar-se conta, Rawls introduz dois princípios princípios de diferença. O primeiro, “desenvolvido no contexto da argumentação fundamentadora contratualista e que pode ser chamado de princípio da diferença contratualista”. contratualista”. Para Kersting, ao longo da explicação semântica e da interpretação igualitarista, surge um segundo “e que pode ser denominado de princípio da diferença igualitarista” igualitarista”73. Conclui Kersting: Pois é evidente que existe uma grande diferença entre um princípio que condiciona a desigualdade socioeconômica à vantagem para os menos favorecidos, e uma concepção de justiça que encarrega a justiça distributiva com a tarefa de uma compensação de causas de desigualdade, de origem natural, e da socialização74.
Será difícil aceitar (...) uma argumentação que, por um lado, transfere o conceito da arbitrariedade para a natureza e, por outro, carateriza as equipagens naturais com aptidões, como moralmente arbitrárias, e que, por isso, em terceiro lugar, encarrega a sociedade com a tarefa de neutralizar esses favorecimentos e desfavorecimentos, moralmente arbitrários, por meio de apropriadas regras de distribuição legalmente instituídas 75.
Depois de 1988, Rawls reconhece o “fato do pluralismo razoável”, que motiva discordâncias insolúveis entre kantianos, utilitaristas, intuicionistas e seguidores de diferentes credos religiosos. Diante desse pluralismo, é improvável que possa surgir um consenso duradouro em questões filosóficas e religiosas. Por isso, a unidade somente será possível sob as condições do pluralismo. Portanto, uma concepção de justiça deverá ser formulada de tal modo que se possa concordar com ela, na base de doutrinas abrangentes muito diversas. Foi, então,
KERSTING, W. Rawls. In: HENNIGFELD, Jochem Jochem e JANSOHN, JANSOHN, Heinz (Org.). Filósofos da atualidade. atualidade. São Leopoldo: UNISINOS, 2006, p. 204-205. 73
74
Ibidem, Ibidem, p. 205.
75
Ibidem, Ibidem, p. 208.
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levado à conclusão de que a filosofia política exige separar uma “concepção política da justiça” de qualquer teoria ética subjacente, em sua se gunda grande obra intitulada Liberalismo político político (1993). Aí mantém a concepção de justiça como “concepção moral” aplicável a instituições sociais, mas conclui que as exigências morais em questão são as implicações de valores essencialmente políticos. Substitui Substitui seu construtivismo kantiano pelo “construtivismo político”. Sua tese passa a ser de que as exigências da justiça podem ser baseadas na “razão pública”. O critério para a justiça, no “pluralismo razoável”, considerando razoável o que é defensável à luz das evidências, admite que mais de uma teoria ética é razoável, sempre mantendo o valor da reciprocidade. Em 1999, em seu último grande livro, O direito dos povos, povos , apresenta uma longa discussão em torno da justiça entre os povos, aplicando aplicando o critério da reciprocidade à lei dos povos. povos. Rawls tem o mérito de obrigar-nos a repensar, em novos termos, a justificação da ética e a legitimação do direito direito e da política, provocando uma maior atenção à problemática da razão prática. Seu tema central é a justiça social. Formulou princípios que visam à estrutura básica de uma sociedade, resultantes de um consenso hipotético e não-histórico, entre os membros de uma sociedade, considerados como pessoas racionais, livres e iguais, pensados em situação original (original (original position), position), situação heurística de um estado primitivo, no qual uma falta de informação sobre o estatuto e as condições reais de cada um (véu da ignorância), possibilita a opção racional ou prático-universal pelos princípios da equidade. Com seu projeto Rawls quer alcançar um “equilíbrio refletido”, síntese real e eficaz das convicções sobre a justiça, de modo a estabelecer uma “sociedade bembem -ordenada”, identificável com as democracias contemporâneas em perspectiva dinâmica. Objeções críticas são levantadas à obra de Rawls como um todo ou a aspectos parciais. A crítica utilitarista é utilitarista é do tipo radical quanto à teoria do contrato social e das regras de preferência; a crítica da filosofia moral concentra-se no ponto de partida do egoísmo dos parceiros do contrato, de modo que seu consenso se baseia não em princípios de decisão moral, mas de escolha inteligente, bem como contra o uso de jogos no procedimento para determinar esses princípios. Com isso sua escolha apareceria como resultado de um cálculo estratégico; a crítica da lógica lógica formula restrições à circularidade do conjunto de
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seus procedimentos, que, ao construir os princípios a partir da situação inicial, não resolve o problema de sua justificação. O próprio Rawls, impulsionado por críticas procedentes, fez correções ao projeto inicial. Outras ainda deverão seguir. Seu mérito indiscutível foi o ressurgimento da filosofia política, no final do século XX.
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IX FILOSOFIA HERMENÊUTICA
Historicamente o termo hermenêutica hermenêutica tem sua origem no tratado de Aristóteles sobre a verdade e não-verdade de proposições intitulado Peri Hermeneias. Hermeneias. Deriva do verbo grego hermeneuein hermeneuein e, na prática, adquiriu vários significados: declarar, anunciar, interpretar, esclarecer e traduzir. Essa multiplicidade de acepções coincide no sentido de tornar algo compreensível. Originariamente é a tentativa de traduzir algo incompreensível para uma linguagem acessível. Segundo a tradição, o mensageiro divino Hermes anuncia a mensagem dos deuses aos mortais e as torna compreensíveis. compreensíveis. Os homens nunca souberam o que os deuses disseram, mas tão somente o que Hermes, a quem se atribui a origem da linguagem e da escrita, disse sobre o que os deuses disseram. Como se trata de uma mediação, a metáfora de Hermes indica toda a complexidade do problema hermenêutico. É como um oráculo de Delfos que precisa de uma interpretação adequada. Uma teoria da interpretação pressupõe uma reflexão sobre as condições e normas da compreensão e sua expressão linguística. A ideia da hermenêutica como a “arte de interpretar” predomina até os tempos modernos. Somente a partir do século XVII desenvolve-se uma teoria da interpretação. No século XIX chega-se à conclusão de que, em princípio, todas as expressões da vida podem ser objeto da hermenêutica, embora se reconheça certa prioridade ao discurso verbal ou escrito. Os esforços hermenêuticos concentram-se de maneira especial sobre textos proféticos, legais e das Escrituras Sagradas. A palavra hermenêutica foi formada e empregada primeiramente no campo da filosofia da linguagem dos antigos (alegoria) e na interpretação da
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Bíblia, depois no jurídico. Portanto, o problema da interpretação não se restringe a textos sacros, mas também abrange os textos profanos: obras literárias, testemunhos históricos, velhos textos legislativos, etc. A hermenêutica bíblica assemelha-se com a jurídica, enquanto ambas lidam com textos que falam normativamente com a pretensão de validez e obrigatoriedade. Dessa maneira, o problema bíblico, enquanto trata da Palavra de Deus, insere-se num contexto histórico mais amplo porque a Palavra de Deus foi transmitida numa palavra humana e histórica. Por isso, segundo E. Coreth, surge a questão: “Como é possível uma compreensão histórica, desde que cada um tem seu horizonte de compreensão, histórica e linguisticamente concreto, que o antecede e ao qual se acha preso, condicionando uma determinada pré-compreensão do objeto?”76. Essa pergunta transcende o horizonte teológico, pois é uma questão filosófica. Orígenes
(185-253)
empreendeu
uma
primeira
investigação
sistemática, do ponto de vista cristão, sobre a questão da hermenêutica da Bíblia. Por analogia à constituição do homem de corpo, psique e espírito, distingue um sentido literal (corpo), um sentido psíquico (moral) e um sentido peneumático (alegórico, místico ou espiritual). Esta distinção de Orígenes sofre variantes em Tertuliano, Agostinho e outros, mas vigorou, em grandes linhas, na teologia até a Reforma. A concepção agostiniana da Bíblia permitiu à Reforma substituir a tradição dogmática, como critério da interpretação da Bíblia, pelo princípio da sola scriptura, scriptura, segundo o qual a Bíblia interpreta-se a si mesma. No começo dos tempos modernos houve uma mudança profunda. A teologia abandonou a doutrina da inspiração verbal, iniciando a historização da Bíblia que desemboca no método histórico-crítico na ciência bíblica do século XIX e XX. Conforme a etimologia grega, hermenêutica é, pois, a arte ou ciência da interpretação. Ela adquiriu atualidade por causa das distâncias culturais e cronológicas que hoje dificultam a interpretação de textos e monumentos antigos, de modo especial de textos teológicos e jurídicos. Neste sentido, P. Ricoeur afirma que é “filha da distância”. O acesso O acesso tornou-se um problema, em primeiro lugar, na teologia: como interpretar os textos sagrados (Bíblia) que nasceram num 76
CORETH, E. Questões fundamentais de hermenêutica. hermenêutica. São Paulo: EPU, 1969, p. 3.
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contexto histórico-cultural muito diferente do nosso? Como a teologia não atinge seu “conteúdo” – Deus – a não ser pela mediação de objetos textuais, marcados por uma cultura e um mundo que não é o nosso, é preciso interpretá-los: qual a mensagem para nós hoje? Cedo, os cristãos já fizeram uma releitura dos textos judaicos da Bíblia. Qual seria o sentido do Antigo Testamento para os cristãos, autorizados a nãoobservar os mandamentos da Torá? Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (17681834), teólogo protestante e filósofo alemão, elaborou o primeiro projeto geral de uma hermenêutica capaz de interpretar todo o objeto significante. A primeira tarefa, para ele, era conhecer a cultura de um autor e a língua que falava para perceber o sentido de suas palavras. Se a primeira tarefa é gramatical , a segunda consiste em praticar uma intropatia próxima da adivinhação. Funda a possibilidade de interpretar numa conaturalidade entre autor e intérprete. Schleiermacher dá uma contribuição importante para a compreensão, sobretudo de textos e testemunhos, mas em sua teoria também se percebem limitações. Depois de Schleiermacher, com Wilhelm Dilthey (1833-1911), a ciência histórica atingiu um apogeu. Dilthey empenhou-se em construir uma crítica da razão histórica. Tinha a ambição de fundar um conhecimento tão válido quanto o científico. Distinguia: o próprio das ciências da natureza é “explicar” e o das “ciências do espírito” é “compreender ”. Dilthey reagiu contra o imperialismo das ciências empíricas modernas. Define a hermenêutica numa perspectiva moderna, metódica, científica e objetiva para preservar o status das ciências do espírito. O termo hermenêutica, como o conhecemos hoje, foi cunhado nos tempos modernos sob o impulso da Aufklärung . No século XIX, a hermenêutica tornou-se um dos grandes temas na filosofia, no campo epistemológico e metodológico. Mas, em meados do século XX, sob o impulso de Heidegger e de Gadamer, completa-se o encontro entre hermenêutica e filosofia. A viragem hermenêutico-ontológica foi provocada pelo Ser e tempo (1927) de Heidegger e, anos depois, pela obra Verdade e método de Hans-Georg Gadamer. Para Heidegger, hermenêutica torna-se interpretação da primitiva compreensão do homem em si e do ser. Na
filosofia,
distingue-se
uma
disciplina
especial
chamada
Hermenêutica filosófica, que estuda a prática e a teoria da interpretação de textos
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filosóficos, de uma orientação ou corrente de filosofia hermenêutica como reflexão sobre os fundamentos das condições e possibilidades da compreensão em geral. Nesse segundo sentido, aqui trataremos de dois representantes expressivos: Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur. 9.1 Hans-Georg Gadamer (1900-2002) No século XX a hermenêutica transformou-se numa escola de filosofia, sobretudo através do trabalho de Gadamer. Ele foi aluno de Heidegger e de Nicolai Hartmann, ocupando-se também com artes plásticas e poesia. Para ele, a compreensão é um fenômeno universal porque é fundamental não só para os textos tradicionais e produtos espirituais, mas para todo e qualquer saber humano. De Heidegger herdou a ideia de que a todo o saber precede uma “pré compreensão”, ou seja, uma estrutura antecipadora do conhecer. Sob orientação de Paul Natorp, Gadamer doutorou-se em filosofia com seu trabalho sobre a essência do prazer nos diálogos de Platão e defendeu a livre-docência, em 1928. Em 1960, publicou Verdade e método. Portanto, já tinha 60 anos quando publicou sua principal obra que consta entre as principais obras de filosofia do século XX. Para Gadamer, o processo de compreender um texto envolve, necessariamente, duas perspectivas: a do autor e a do intérprete. Para ele, compreender significa que o ser humano, ao compreender algo, sempre também se compreende a si mesmo. Nisso segue a hermenêutica ontológicoexistencial de Heidegger do ser-no-mundo humano. Compreender não se restringe ao modo de conhecer científico espiritual, mas, abrange, sobretudo, o acontecimento do compreender a si mesmo e o mundo da existência humana. Gadamer reinterpreta o círculo hermenêutico. A pré-compreensão torna-se o ponto de partida de toda a interpretação como expectativa de sentido. Refletindo sobre a pré-compreensão do intérprete, ele consegue determinar a distância e a diferença entre texto e intérprete. O intérprete deve estar aberto à opinião do outro ou do texto. Quem quer entender um texto deve estar disposto a permitir que ele lhe diga algo. Uma consciência hermenêutica, de antemão, deve ser receptiva para a alteridade do texto.
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Para Gadamer, a linguagem ocupa posição central. Todo o conhecimento é mediado pela linguagem. O caráter linguístico de nosso ser-nomundo articula todo o âmbito da linguagem. A hermenêutica não requer um método científico, suspeito de estabelecer entre o sujeito e o objeto uma distância alienante (Verfremdung ), mas antes requer uma relação de pertença (Zugehörigkeit ) na qual os horizontes próprios à obra poderão fundir-se com os horizontes próprios do leitor. A fusão dos horizontes permite que a relação do leitor e da obra desemboque num diálogo. Desse diálogo jamais nascerá a última palavra da interpretação, mas uma outra interpretação, na qual o texto falará na intenção do leitor e do mundo que o habita. Gadamer foi figura importante da hermenêutica filosófica na segunda metade do século XX. A tradição vinda de Schleiermacher influenciou a questão da interpretação da Bíblia e da compreensão da fé na teologia luterana. Contra o domínio da escola histórico-crítica, da qual era destacado representante Adolf von Harnack (1851-1930), posicionou-se Karl Barth (1886-1968). Ele não condena o princípio do método histórico-crítico, mas, segundo ele, este apenas prepara o terreno para a tarefa da compreensão: cabe-nos procurar compreender, nos escritos bíblicos, a Palavra de Deus, sua revelação e mensagem salvífica. A questão hermenêutica assume nova perspectiva a partir de Heidegger, com Rudolf Bultmann (1884-1976) e sua escola. Bultmann, com o mesmo objetivo de Barth, acha que as narrativas bíblicas se originaram dentro de uma concepção mitológica do mundo. Por isso quer a “desmitologização” radical da Bíblia para tornar a mensagem propriamente dita compreensível ao homem de hoje. Para essa tarefa recorre à interpretação existencial de Heidegger. Tais discussões contribuíram para que a hermenêutica se tornasse um dos grandes problemas da filosofia no século XX. Gadamer transformou-a na hermenêutica filosófica. Para Gadamer também vale o princípio fundamental, como já o fora para Schleiermacher, Dilthey e Heidegger, de que deve compreender-se a parte no todo e o todo a partir das partes. Recorre ao “círculo hermenêutico”, no sentido de Heidegger, para elaborar um conceito positivo do preconceito, pois tornara-se pejorativo a partir do Iluminismo, que queria elaborar uma ciência sem pressupostos, isto é, sem preconceitos. Para Gadamer, o preconceito é uma pré-
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compreensão historicamente transmitida e cientificamente ainda irrefletida, mas já permite um primeiro acesso à compreensão. O aprofundamento hermenêutico do sentido de um texto realiza-se, não só por um vaivém em forma de espiral ascensional, entre as partes que o compõem e a totalidade que ele é, mas também entre ele mesmo e a totalidade maior, da qual ele próprio é uma parte. Interpretar é fazer hipóteses de leitura e corrigi-las continuamente para chegar a uma compreensão mais profunda e objetiva. Sempre começamos por compreender mal e superficialmente. Gadamer
desenvolve
uma
hermenêutica
simplesmente
fenomenológica, ou seja, procura apontar o que na compreensão histórica acontece realmente, sem preocupar-se com o que deve acontecer na interpretação. Enquanto Heidegger transfere o centro de gravidade do seu pensamento do homem para o ser, ou seja, o ser não é mais entendido a partir do homem, mas este a partir do ser, Gadamer desenvolve uma hermenêutica fenomenológica. Também o mundo não mais é o projeto do poder-ser humano no tempo, mas “a abertura do ser”. O mundo origina-se do ser que se revela a nós e, ao mesmo tempo, se oculta. E este acontecimento do ser, para o Heidegger maduro, é visto sempre mais como um acontecimento linguístico, pois a “clareira do ser” dá-se na linguagem. Decisivo para a hermenêutica é o ponto de partida dado por Husserl e Heidegger, que E. Coreth em seu livro Questões fundamentais de hermenêutica, obra clássica sobre o assunto, desenvolve escrevendo: O homem já sempre se encontra previamente em seu mundo, como na totalidade de um horizonte, no qual experimenta cada coisa particular e a compreende em seu sentido no qual também se experimenta e se compreende a si mesmo77.
Aprendemos a conhecer outros homens, outros povos ou línguas, outras épocas históricas ou situações, ao compreender todos eles em seu próprio modo de pensar, ampliando os limites de nosso mundo atual. A isso Gadamer chama de “fusão” dos horizontes, o que alarga e enriquece nosso pr óprio horizonte do mundo.
77
Ibidem, p. 43.
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O que Gadamer chama uma “fusão” de horizontes, somente é possível de maneira aproximada, mas nunca perfeita, pois cada um tem seu mundo próprio de experiência e de compreensão, não idêntico ao mundo do outro. O “mundo vital” de cada pessoa abrange perspectivas diversas, intenções teóricas, interesses práticos, valorizações afetivas, decisões e modos de agir que somente podem ser investigados através de enunciados ou eventos particulares. O que Heidegger chamava “pré-compreensão”, Gadamer entende como “pré - juízo” ou “preconceito”, isto é, um juízo ou conceito preconcebido. A partir do círculo hermenêutico, ele mostra a historicidade da compreensão. A palavra historicamente falada e escrita entra na tradição, continua a operar nela e se interpreta, penetrando, assim, também no horizonte de nossa compreensão. Para Gadamer, a subjetividade hermenêutica não é transcendente nem transcendental. O sujeito está na tradição. Somos chamados a encontrar as obras do passado e a entrar em diálogo com elas, a partir de nosso horizonte histórico, de nosso mundo de linguagem. Nesse diálogo, o leitor-intérprete traz consigo seu próprio fundo de sentido: seus pressupostos, sua pré-compreensão. Não há necessidade de que o leitor-intérprete, no diálogo com o passado, se aniquile ou se imponha, com surdez, para a alteridade, a distância temporal. No encontro com a tradição também surgirá um novo sentido para o presente. O sentido da obra é inesgotável e, por isso, sua interpretação nunca será definitiva. A questão hermenêutica é, pois: Como compreender o outro à distância? Desde Schleiermacher valia a norma da intropatia, ou seja, de colocarse na visão e concepção do autor. Ora, isso nem sempre é possível, nem necessário. Gadamer discorda desse procedimento, mostrando a função hermenêutica da distância. Para ele, é justamente a partir da distância que um texto escrito ou um acontecimento histórico, num horizonte mais amplo, no qual se expressa, pode ser compreendido melhor em sua significação. Nessa perspectiva da distância poderia compreender-se melhor um autor do passado. Em lugar da intropatia, Gadamer coloca o que ele chama de “fusão de horizontes”. Os diferentes mundos, distantes entre si, no sentido histórico e cultural, devem encontrar-se, apesar dos diferentes horizontes de experiência e de compreensão. Isso exige que eu, para compreender o outro, sem renunciar a mim e ao meu mundo de compreensão, assuma o horizonte distante e alheio em
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minha compreensão, fundindo, assim, os horizontes, ampliando e enriquecendo o meu próprio horizonte de compreensão. A função hermenêutica da distância e a fusão de horizontes, segundo Gadamer, pressupõem uma história de ação que se prolonga. No desenvolvimento dessa história da ação manifesta-se o sentido mais pleno do dito e acontecido. O ponto mais crítico, na hermenêutica de Gadamer, é a questão da verdade. Ele pergunta se algo é verdade, porque atuou historicamente e teve força de convencer, ou simplesmente, porque é assim. Em outras palavras, existe uma compreensão ontológica da verdade? Gadamer, através da visão de certo historicismo, relativiza a verdade. Para ele, a compreensão nas ciências do espírito, postulando a atualização do dado através da tradição, exige que a hermenêutica esteja ligada à consciência histórica. Nesta perspectiva, discute criticamente aspectos do pensamento hermenêutico de Schleiermacher e Dilthey, salientando o papel da fenomenologia. O homem, na finitude do seu ser histórico, encontra o meio da experiência hermenêutica na linguagem. 9.2 Paul Ricoeur (1913-2005) Ricoeur é o principal representante da hermenêutica na França. Ensinou nas universidades de Estrasburgo, Sorbonne e Nanterre, onde foi reitor. Na década de 1930 esteve engajado no movimento Esprit , liderado por Emmanuel Mounier. Durante a segunda guerra mundial foi prisioneiro dos alemães. Recebeu forte influência de Husserl, Jaspers e Marcel. Sua obra filosófica começou por uma filosofia da vontade que, posteriormente, se define como uma filosofia da ação. Na sua tese de habilitação, publicada em 1950, projetou uma antítese, sob certo aspecto, à Fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty, sob o título Fenomenologia do voluntário e involuntário. Dez anos depois, na época em que Gadamer publicava Verdade e método, Ricoeur publica Finitude e culpabilidade, contendo dois ensaios sobre o simbolismo do mal. Com essa obra ingressou no questionamento da hermenêutica. Ao distinguir, na sua filosofia da vontade, a finitude e a culpabilidade, Ricoeur foi conduzido, progressivamente, a refletir sobre a linguagem simbólica e
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hermenêutica. Considera, como filósofo da reflexão, que os dados da consciência imediata somente são acessíveis a nós mediante expressões empíricas, os sinais pelos quais eles se manifestam, individual e coletivamente. Entre esses sinais destacam-se os símbolos, que são signos cuja significação literal não coincide com aquilo que eles querem dizer, pois remetem de um sentido primeiro a um sentido segundo. Eles exigem interpretação. As expressões simbólicas encontram-se em textos (mitológicos, religiosos, literários, etc.) como na vida cotidiana (sonhos, etc.). Ricoeur é formado na escola fenomenológica de Husserl, discute com o estruturalismo francês e com a psicanálise de Freud, como evidencia seu “ensaio sobre Freud”, intitulado Da interpretação (1965). Nesse contexto, chega ao problema hermenêutico nos “ensaios de hermenêutica” em O conflito das interpretações (1969). Coloca, em primeiro plano, não tanto a linguagem e a compreensão histórica, mas a interpretação compreensiva de expressões simbólicas. Os símbolos podem servir para ocultar ou para revelar. A função dissimuladora requer uma hermenêutica desmistificadora, mantendo a suspeita em relação a toda a expressão simbólica, percebida sempre como a máscara de um desejo, de uma intenção ou de um interesse não-explícito. Ricoeur vê a hermenêutica desmistificadora exemplificada na psicanálise freudiana e nos três grandes “mestres da suspeita”, que são, além de Freud, Nietzsche e Marx. A função reveladora dos símbolos requer uma hermenêutica de desvelamento progressivo, que tenta traduzir um sentido profundo, inefável. Essa hermenêutica nutre-se do sagrado. Remete à fenomenologia das religiões. É interpretação da simbólica sagrada. Para Ricoeur, a hermenêutica da suspeita é apenas uma etapa, pois se nos limitássemos a ela, terminaríamos numa atitude niilista. Segundo ele, a hermenêutica indica para uma ontologia, para um sentido do Ser, que é Espírito. A reflexão filosófica, que se queira concreta, terá que passar pela hermenêutica dos símbolos, que dão que pensar quanto à imersão do homem no ser. A estrutura de duplo sentido do símbolo exige uma teoria interpretativa capaz de o decifrar. A preocupação de salvaguardar a integralidade da experiência e da linguagem levou Ricoeur a repensar o papel da metáfora, em sua obra Metáfora viva (1975), como exploração linguística do mundo.
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Diferentemente de Gadamer, na teoria da hermenêutica, não divorcia os métodos das ciências humanas da verdade ontológica. A evolução do pensamento de Ricoeur numa primeira fase caraterizase pela apropriação da fenomenologia de Husserl e da filosofia da existência, é determinada pela filosofia da religião e pela filosofia moral e projeta uma filosofia da vontade que visa a uma análise da estrutura geral da consciência. Formula uma antropologia filosófica, cujo conceito-chave é a falibilidade moral do homem. A partir de 1960 transfere o acento da fenomenologia para a hermenêutica e elabora uma hermenêutica dos mitos e pesquisa a mediação das experiências do mal, através da linguagem simbólica do mito. Mais tarde, essa é ampliada por uma hermenêutica de si e uma hermenêutica do texto. Como vimos, distingue uma hermenêutica da suspeita, que descobre uma significação latente dos signos, que foge da intenção dos produtores, e uma hermenêutica do desvelamento. Para Ricoeur vale a máxima: “Explicar mais significa compreender melhor”. Ele tem interesse em manter vivo o diálogo entre a filosofia e as ciências, sobretudo as chamadas humanas. Depois da Metáfora viva (1975), a tônica de sua hermenêutica deslocou-se, aos poucos, dos sinais e símbolos, para os textos, alargando os horizontes. A metáfora está a serviço da descoberta da realidade. Ele define a dinâmica dos textos como “transcendência imanente” porque a obra literária tem a capacidade de projetar-se para fora e de projetar um mundo “humano”, isto é, um mundo habitável. Nos três volumes de Tempo e narrativa (1982-1984) desenvolve uma hermenêutica do narrar, inspirando-se na poética de Aristóteles e no livro XI das Confissões de Santo Agostinho. O agir humano é narrável e digno de ser narrado. Na exposição de Ricoeur, o processo de narrar recebe sua perfeição, primeiro no ato da leitura (e do ouvir) que, por sua vez, deve ser entendido como um ato de apropriação produtiva ou da refiguração. No segundo volume de Tempo e narrativa ocupa-se com problemas de configuração, específicos da narrativa literária. Defende a tese de que os modos de narrar sofrem uma constante transformação, sem que se possa falar de uma “morte do narrador”. Mostra que os processos de configuração narrativos não dão as costas à realidade, mas capacitam o leitor a entender melhor suas próprias
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experiências de tempo, sob a perspectiva da ficção literária. No terceiro volume, constata que os grandes pensadores testemunham o caráter aporético do conceito filosófico de tempo. Cada nova aporia proporciona oportunidade para penetrar mais profundamente no mistério da temporalidade. Em Soi-même comme un autre (1990), resultado das Gifford-Lectures, proferidas em Edinburgh, em 1986, faz uma hermenêutica do si-mesmo, desenvolvendo uma dialética entre “mesmidade” e “ipseidade” para elaborar um novo conceito de ética. Define o conceito do si-mesmo perguntando: Quem fala? Quem age? Quem narra a si? Quem é o sujeito da imputação moral? A hermenêutica do si-mesmo, baseia-se no tripé: passividade do corpo próprio, na alteridade do outro e na forma mais íntima da consciência. Em Penser la Bible (1998), depois de uma descrição fenomenológica da memória e do esquecer, em Memória, história e esquecer (2000), defende a ideia de que a Bíblia “dá o que pensar”. Para Ricoeur, a filosofia não deve perder de vista as formas de pensamento extrafilosóficas. Enfim, descreve a si mesmo, ao longo de toda a sua obra, como um “espírito curioso e inquieto”, numa visão crítica e abrangente.
Referências Bibliográficas
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X O ESTRUTURALISMO
Na década de 1960, na França, surgiu uma reação contra o predomínio da fenomenologia e do existencialismo. Um grupo de pensadores partiu das teorias linguísticas de Ferdinand de Saussure, suíço, da Escola de Kopenhagen (Louis Hjelmslev) e da Escola de Praga (Roman Jakobson), desencadeando o movimento estruturalista. Saussure, considerado seu fundador, defendeu a tese de que o signo linguístico singular adquire seu significado em um sistema linguístico por sua relação e oposição a outros signos, ou seja, dentro de uma estrutura. Por estruturalismo entende-se, pois, um movimento complexo e difuso no domínio das ciências sociais e humanas que, a partir de 1960, desenvolveu, sobretudo na França, um modelo em busca de formalização dos dados reais, na sua plural diversidade, e um método de análise da organização lógica subjacente aos fenômenos, para evidenciar o modelo inconsciente (estrutura) capaz de dar a lei desses fenômenos. Para os representantes desse movimento, somente as estruturas têm existência real. Os indivíduos são mera aparência ou suporte da estrutura. Pensadores como o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o semiólogo e crítico literário Roland Barthes, o psicanalista Jacques Lacan, o filósofo Michel Foucault e o marxista Louis Althusser tentaram esclarecer a sociedade, sua cultura e história, aplicando o novo método estruturalista, desenvolvido por Ferdinand de Saussure na linguística, em outras áreas. Os estruturalistas queriam mostrar a ordem por detrás dos elementos e sistemas de relações. Para eles, não existe dado social, nem acontecimento cultural, nem documento escrito que, em princípio, não possa ser comparado. Homem e cultura tornam-se compreensíveis numa rede (estrutura) a ser
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pesquisada por seus nexos. Na visão estruturalista f ragiliza-se o sujeito. Define-se o homem através de categorias de poder, de desejos, da disciplina e de estruturas e não como projeto, liberdade e sujeito. No começo considerou-se o estruturalismo como um método científico rigoroso, mas, na década de 1970, tornou-se uma moda. Cedo perceberam-se os limites desse método. Claude Lévi-Strauss transportou o estruturalismo linguístico para as ciências humanas e sociais. Segundo ele, em sistemas culturais e sociais, normas adquirem sua relevância através de dicotomias articuladas. Descobriu estruturas nas relações de parentesco de povos primitivos (indígenas), que determinam particularidades, de tal modo, que o sujeito se reduza apenas a uma variável de um código cultural. O estruturalismo é a-histórico e formal. Reconhece a prioridade ao sistema, à sincronia, à lógica, à axiomática. Separa o sistema de suas referências empíricas. Considera as estruturas permanentes, independentemente dos conteúdos particulares que os concretizam. O sentido de um termo não é seu referido (o objeto extralinguístico), mas é estrutural, imanente à linguagem, como produto das relações de oposição, de diferença ou de proximidade. Diminui e, por vezes, elimina a importância do sujeito e da consciência. As estruturas impõem-se ao homem e determinam sua conduta de maneira inconsciente. A liberdade, em nossas decisões e ações é, praticamente, ilusória. Michel Foucault, considerando mais os fatores histórico-culturais, afirmou que nossa cultura moderna se baseia em mecanismos dicotômicos de exclusão, como saudável/doente, louco/racional, normal/anormal, forçando os indivíduos ao desempenho de certos papéis. Na sua crítica do sujeito e do humanismo, mostrou que não há critérios fixos para o humano. Esses devem ser buscados dentro de determinado desenvolvimento cultural, pois na modernidade o discurso do poder e da disciplina determinam a vida social. Desenvolve sua obra em torno da dualidade saber/poder. O estruturalismo introduz o corte epistemológico. O sujeito, individual e coletivo, deve objetivar-se para se conhecer. Ele introduz descontinuidades sincrônicas e diacrônicas, não havendo passagem de uma estrutura para outra, pois estruturas são totalidades autárquicas e autorreferenciais justapostas. Inspira-se no Curso de linguística geral de Ferdinand de Saussure (1857-1913),
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somente publicado em 1916. Dessa maneira, a linguística tornou-se o novo paradigma das ciências humanas. Claude Lévi-Strauss desenvolveu e aplicou, em sua obra O pensamento selvagem (1962), o método estruturalista. Passou-o à antropologia e à etnologia. O estruturalismo propagou-se, na filosofia, através de Luis Althusser e Michel Foucault; na psicanálise, através de Jacques Lacan, e na crítica literária, através de Roland Barthes. Na psicanálise, Jacques Lacan apropriou-se, com sua tese do caráter linguístico do inconsciente, de categorias da linguística de Saussure e R. Jakobson para reinterpretar estruturalisticamente Freud. Segundo ele, cada criança, ao aprender uma língua, entra numa ordem simbólica, nunca totalmente adequada a seus desejos. Por isso, esses nunca serão satisfeitos totalmente. 10.1 Ferdinand de Saussure (1857-1913) Ferdinand de Saussure, nascido em Genebra, na Suíça, estudou física e química na sua cidade natal e depois filologia em Leipzig (1876-1877) e Berlim (1878-1879). Foi professor de Gramática Comparada na Escola de Altos Estudos em Paris (1881-1891), de Linguística Indo-europeia e Sânscrito em Genebra (1891-1906) e de Linguística (1906-1912). Tornou-se fundador do movimento estruturalista por suas distinções dicotômicas entre língua e fala, sincronia e diacronia, significado e significante, etc. Seu princípio básico é o de que a língua constitui um sistema no qual todas as partes estão unidas entre si, por laços de solidariedade e dependência. O sistema organiza unidades, signos articulados, que se diferenciam e se delimitam mutuamente. O sistema predomina, pois, sobre os elementos. O Curso de linguística geral , publicado depois de sua morte, na base das anotações de dois de seus alunos na Universidade de Genebra, opôs-se às abordagens
filológicas,
históricas
e
comparativas
das
línguas,
como
predominantes em sua época. Saussure pretendeu apresentar um modelo científico de linguística, tendo como objeto o “fato social” da língua, distinguindo -o da variedade de eventos individuais de fala. Tratou a linguística em termos da dimensão sintática ou sincrônica, e não na sua dimensão histórica ou diacrônica.
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O signo, unidade básica da língua, é como uma moeda de duas faces: significante e significado. O significante é o componente fenomênico. É a imagem acústica ou sonora, que pode ser representada graficamente. O conceito ou significado, por sua vez, é dado pela combinação ou sintagma. Para Saussure, o significante é uma representação de sons linguísticos na imaginação ou memória. Portanto, um fenômeno psíquico, fixado por convenção social. O signo adquire o seu valor linguístico por sua posição no sistema da língua como um todo. Os significantes são associados arbitrariamente com seus conceitos ou significados. Os signos assumem a determinação somente através da sua configuração dentro do sistema da língua como um todo. Assim o estudo da língua é regido, antes de tudo, pelas suas determinações estruturais autônomas. Sendo a língua uma instituição social, a linguística é apenas uma parte do estudo de sistemas de signos sociais em geral, ou seja, a ciência mais abrangente que Saussure chamou de semiologia. No sistema, o locutor individual tem a possibilidade de escolher palavras da variação de uso, mas essa liberdade tem seus limites, pois as limitações próprias e as diferenças são pré-dadas pela estrutura da língua. 10.2 Claude Lévi-Strauss (1908-2009) Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, na Bélgica. Passou a infância e a juventude em Paris. Doutorou-se, em 1931, em Filosofia. No período de 1935 a 1939 lecionou sociologia na USP, em São Paulo, dedicando-se à antropologia e realizando expedições etnológicas entre os indígenas do Mato Grosso e da Amazônia. Durante 1942 lecionou no Instituto de Pesquisa Social de Nova Iorque. Em 1948, doutorou-se em Letras com a tese sobre Estruturas de parentesco. Em 1973 foi eleito para a Academia Francesa. Dedicou-se à análise dos mitos em Mitológicas (1964-1971), em quatro alentados volumes. Ele propõe “redigir um inventário dos recintos mentais”, ordenar dados aparentemente desordena dos. Para ele, o mito apresenta-se como uma estrutura essencialmente lógico-formal. Recorre aos mitos em busca de um acesso à atividade estruturadora do espírito, estudando o mito no plano de sua mera organização sintática.
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Na linguística houve mudanças profundas. Pela análise estrutural, os elementos de uma língua são concebidos interdependentes, isto é, em sistemas. Substitui-se a linguística filosófica pela análise dos sistemas linguísticos, através dos trabalhos de F. de Saussure, N. Troubetzkoy e de R. Jakobson. Lévi-Strauss aplicou o método da linguística saussuriana às ciências da cultura. A antropologia estrutural (1958) de Claude Lévi-Strauss fundamenta-se no postulado da interdependência dos elementos das sociedades. A noção de estrutura, enquanto conceito científico, é uma categoria do pensamento discursivo abstrato. O estruturalismo como método de análise, introduzido e desenvolvido na linguística, foi aplicado sistematicamente em outras áreas de conhecimento: pela influência de R. Jakobson, com quem se encontrou em 1942, quando lecionava em New York, Lévi-Strauss aplicou-o na antropologia. Enquanto ele, com sua antropologia estrutural, quis dar novo fundamento às ciências humanas como um todo e com o pressuposto de superar a filosofia da consciência, deve ser considerado filósofo. Lévi-Strauss
inspirou-se
na
linguística.
Para
compreender
o
estruturalismo é fundamental o conceito de signo. Saussure, no seu Curso de linguística geral , deu uma série de definições e distinções fundamentais: a) não partir da história, mas considerar a língua um sistema de signos; b) não partir da fala, mas da lingua como uma totalidade, como um sistema suprapessoal, cujas regras são aplicadas inconscientemente pelos falantes; c) distinguir, no signo, o conceito e a imagem fonética da palavra, ou seja, significante e significado. O objeto de pesquisa de Lévi-Strauss foi, em primeiro lugar, a estrutura da sociedade, a arte, os mitos e os sistemas de classificação dos povos sem escrita. Por trás de todo esse pluralismo confuso e estranho de produções culturais, tentou encontrar uma estrutura racional, através da análise de relações de parentesco. Concentrou-se, sobretudo, na análise estrutural dos mitos dos índios da América do Sul e do Norte. Em sua obra O pensamento selvagem (1962) usou o estruturalismo para a pesquisa de mitologias e relações sociais. Segundo ele, sob a consciência manifestam-se estruturas de pensamentos inconscientes que proporcionam a base para cada cultura. Constata que a liberdade da narrativa mítica, por um lado, está vinculada a animais conhecidos, plantas, costumes, etc., que fornecem o vocabulário dos mitos e, por outro, a
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certas regras lógicas de oposição de qualidade e relações. Cada mito pode ser considerado um feixe de relações e oposições, mas somente tem seu sentido como um elemento discreto dentro de um conjunto de mitos aparentados entre si. Lévi-Strauss procurou ler todas as manifestações e formas de comportamento humano como signo inserido num sistema de comunicação. Ele pensa que, por detrás dos mais variados mitos e manifestações do espírito, se encontra uma espécie de modelo fundamental de relações, delimitações e exclusões. Sob esse aspecto, as diferenças entre nossas sociedades complexas e as sociedades primitivas dos indígenas brasileiros são menores que muitas vezes imaginamos. Como toda outra cultura, também a ocidental estaria profundamente arraigada na natureza e deve ser descrita como uma rede de estruturas de possíveis objetos. Segundo Lévi-Strauss, um olhar objetivo para as culturas não se orienta em critérios europeus, mas examina as relações internas, por exemplo, nas sociedades tribais. Interessou-se, sobretudo, nos mitos que proíbem o incesto (mito de Édipo), nas diferentes culturas que sempre manifestam a mesma estrutura enquanto neles se t rata de um enigma. Saussure chegara a postular uma ciência que investigasse a vida dos signos, no contexto da sociedade, que chamou de semiologia (estudo dos signos). Barthes foi titular da recém-criada cátedra de semiologia literária no célebre Colégio de França, em Paris. Muitas de suas ideias, apresentadas em estilo brilhante, contribuíram para que o estruturalismo se tornasse moda, em boa parte da Europa, na década de 1970, como também em algumas universidades brasileiras. 10.3 Louis Althusser (1918-1990) A onda estruturalista, na França, influenciou o pensamento marxista de Althusser e sua escola, que tentou uma releitura de Marx. Ele afirmou que havia uma diferença radical, uma ruptura epistemológica, entre os primeiros escritos de Marx e o período científico de O capital . Quis ler a análise marxista da sociedade capitalista à base do conceito de estrutura e ver, nas relações de produção, a estrutura (invisível), segundo a qual se articulam as relações humanas visíveis. O homem funciona dentro das relações de produção, que são os “verdadeiros
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sujeitos”. Com isso contrariou a versão oficial do Partido Comunista da França, que, por isso, lhe causou muitas dificuldades. Althusser foi professor na Escola Normal de Paris. Propôs-se a elaborar a filosofia genuinamente marxista, da qual Karl Marx apenas teria lançado os fundamentos e muitos autores teriam deturpado. Tais fundamentos encontrou em O Capital , na obra do Marx maduro. Para ele, o jovem Marx, com seu humanismo, ainda não era realmente “marxista”, pois ainda estava muito marcado por Hegel e Feuerbach. Afirma que há ruptura, não continuidade, entre Hegel e Marx, entre a dialética hegeliana e a marxista. Para Althusser, a filosofia é a “luta de classes na teoria”, que traça o limite entre o científico e o ideológico. Ele quer redefinir a filosofia marxista ortodoxa, recuperando, simultaneamente, a eficácia teórica e prática. 10.4 Jaques Lacan (1901-1981) Lacan, em sua época, abalou a ortodoxia estabelecida pela prática psicanalítica. Por isso foi idolatrado por uns e anatematizado por outros. Estudou medicina, especializando-se em psiquiatria. Em 1932 defendeu tese de doutoramento em medicina, sobre a psicose paranoica. Em 1953 foi excluído da sociedade psicanalítica de Paris; em 1964 fundou sua própria escola: Escola Freudiana de Paris. Essa foi frequentada por grandes filósofos como Jean Hyppolite e Maurice Merleau-Ponty. Lacan tornou-se célebre por seu livro, com o título, Escritos (1966) que reúne 34 artigos resultantes de um período de três décadas de pesquisa. Em Zürich, na Suíça, Lacan conheceu o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) e engajou-se na união Evolução Psiquiátrica, uma organização aberta a novas ideias na Psiquiatria. Trocava ideias com artistas e pensadores do surrealismo, como George Bataille e Salvador Dali. No período de 1933-38 assistiu às aulas de Kojèves sobre Hegel, com interesse particular na dialética do “senhor e do escr avo”. Lacan propõe um “retorno a Freud”, pois julga que as interpretações vigentes de Freud não passam de reducionismos. Queria ater-se, de preferência, às obras teóricas de Freud porque a fundação de uma teoria na casuística não seria, segundo Lacan, o caminho da ciência, pois conduziria
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apenas a mistificações. Entretanto, ele mesmo nunca separou a teoria da prática analítica. Lacan recusou uma visão simplista do psiquismo, ou seja, a concepção do inconsciente como zona profunda. Tentou uma releitura estruturalista de Freud. Partiu da linguagem como condição do inconsciente. Nisso manifesta-se a influência de Saussure, pois tenta conceituar o inconsciente enquanto “estruturado como uma linguagem”. Ao contrário de Freud, Lacan não quer reduzir tudo à sexualidade e à repressão de desejos, mas salienta a força do simbólico e da língua na formação do sujeito. Distingue duas maneiras de falar: a do moi , que se articula na superfície e a do je, própria do inconsciente. Escreveu num estilo complicado e difícil, mas influenciou fortemente o pensamento francês contemporâneo. Como psiquiatra de formação, formulou o conceito de sujeito, a partir de dentro, falando em um sujeito “descentralizado”. Na tradição europeia, o sujeito ou eu sempre esteve vinculado à consciência e ao controle, ou seja, à autonomia. Mas o conceito de inconsciente de Sigmund Freud questiona esse conceito tradicional do eu, pois o inconsciente escapa ao controle, ou seja, à autonomia. Lacan censura os psicanalistas por nunca terem levado a sério o inconsciente, desfigurando a visão de Freud a tal ponto que o harmonizam com o antigo sistema filosófico. Lacan afirma que antes que eu fale, é o id ou a linguagem que falam em mim, julgando que sou eu que falo. O sujeito não está no centro, mas está descentrado. Em outras palavras, a autonomia do sujeito é mera ilusão. A tese fundamental da obra de Lacan é que a linguagem inconsciente é um discurso formado por uma “cadeia significante” que, em virtude das leis de combinação e substituição, elabora um texto fragmentado e descontínuo, cujo significado se decifra na sua dimensão sincrônica. A passagem da existência, meramente natural para a cultura, como em Lévi-Strauss, instaura-se através da ordem simbólica. Esta não permite um acesso direto do sujeito a si mesmo. Portanto, Lacan sobrepõe a ordem do simbólico à ordem do real e à ordem do imaginário. Nisso segue o estruturalismo e se distingue de Freud, pois, no simbólico de Lacan, o que decide não é a relação entre o símbolo e o que é simbolizado, mas a articulação de um sistema de símbolos entre si. A linguagem é mediadora entre duas estruturas, pois o eu do discurso e o Outro do sujeito
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(inconsciente) estão separados, mas não incomunicáveis. Por isso, o sujeito propriamente não fala, mas é falado. 10.5 Michel Foucault (1926-1984) Gilbert Hottois, em sua obra Do Renascimento a pós-modernidade, trata de Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida sob o título “três filósofos franceses da diferença”. Justifica dizendo que, em grau diverso, foram assimilados ao pensamento estruturalista “no qual, entretanto, não se reconheciam ou se reconheciam pouco”. Aqui não entramos nessa questão, pois interessa-nos a contribuição de Foucault à filosofia contemporânea. Ele mesmo se apresenta como arqueólogo dos fundamentos de nossa cultura humanística. Filho de um renomado médico de Poitiers, Foucault frequentou a Escola Normal Superior de Paris. Contrariou a vontade do pai ao interessar-se, cada vez mais, pela filosofia e pela psicologia. Talvez, em virtude de sua homossexualidade reprimida, tentou várias vezes o suicídio. Foucault foi professor de filosofia em Clermont-Ferrand de 1964-68; em 1968 passou a lecionar na Universidade de Vincennes e, em 1970, foi nomeado professor do Colégio da França, onde proferiu a célebre aula inaugural sobre A ordem do discurso. Entre suas muitas obras destacam-se: História da loucura na idade clássica (1961); O nascimento da clínica – uma arqueologia do olhar clínico (1963); As palavras e as coisas (1966); Arqueologia do saber (1969); Vigiar e punir (1975); História da sexualidade (1977). O objeto de sua pesquisa é a maneira como, no decurso da nossa história ocidental, se estabeleceram certos modos de saber sobre o homem e qual o preço a pagar por isso. Investiga o complexo de crenças que carateriza diferentes práticas culturais, em diferentes épocas. Está convicto de que as estruturas que organizam essas crenças são historicamente condicionadas. Primeiro, o homem não é um objeto de saber organizado. Foucault ocupa-se menos com teorias do passado, mas com a origem de instituições excludentes que possibilitaram a transformação de muitos semelhantes em objeto: hospícios, clínicas e prisões. A opressão dirige-se diretamente contra todas as formas do desvio da conduta considerada normal. Segundo Foucault, a emergência das
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ciências humanas no século XVIII, submetendo o ser humano ao olhar científico, coincidiu com o desenvolvimento de sistemas de controle disciplinar, uma ordem controladora. Por isso, segundo ele, ciência tem a ver muito com poder. Foucault estudou sistemas de regras sociais que determinam nossa vida cotidiana. Como um arqueólogo tentou descobrir o fundamento dessas normas em diferentes épocas. Chamou-lhe atenção que a maioria de reformas no campo da saúde, da educação e no sistema prisional justifica-se com a finalidade de tornar a vida mais humana. Mas, ele desconfia dessa fundamentação e suspeita que muitas práticas, nas chamadas “ciências humanas”, apenas são outras formas de controle e de poder. Para ele, um exército de profissionais elaborou critérios para classificar os homens em normais/anormais. Esses critérios não são neutros, mas servem aos interesses do poder dos dominadores e de seus “expertos sociais”. Esses pretendem analisar o poder, que não é somente repressivo, mas consegue motivar os indivíduos para seus fins. E é o poder que constitui o sujeito, ou seja, instituições como família, escola e justiça formam o homem. Já nos seus primeiros trabalhos sobre doença e loucura, tenta mostrar como, a partir do século XIX, fenômenos da vida cotidiana tornaram-se condição suficiente para a constituição de um objeto científico. Assume a posição metódica de um observador, que olha de fora. Através da história do internamento, tenta explicar, em profundidade, as ilusões da ciência psiquiátríca e as mistificações da medicina mental moderna; mostra como no tempo de Descartes e no século das luzes se internavam os loucos, eliminando toda e qualquer ameaça à Razão. A obra de Foucault é movida por uma tendência ao anarquismo. Num volume enorme recolheu dados históricos, recorrendo aos arquivos de prisões e administrações públicas, clínicas e bibliotecas, a decretos monárquicos e inúmeras discussões de criminalistas, pedagogos, médicos, etc. A filosofia de Foucault pode caracterizar-se como arqueologia dos saberes/poderes. Ele analisa o subsolo de nossa racionalidade por um método arqueológico, investigando o que carateriza a sociedade ocidental. Para ele, o poder é algo invisível, mas está em toda parte: na estrutura da sociedade, na administração dos institutos de previdência médica e hospitalar, nos tabus morais, na linguagem, na família e, isso, em toda a parte do mundo.
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Opera não só através de proibições e punições, mas chega a ser extremamente criativo porque dispõe de saber. Este não é neutro. Um hospital, por exemplo, tem sua hierarquia, que vai do chefe clínico à faxineira, personificando o poder. O próprio saber clínico significa poder. Define o que é válido ou não como saber clínico. Foucault examina a história do saber dominante, na qual encontra a separação entre “loucura” e “razão”, ocorrida no começo dos tempos modernos. A sociedade ou a razão moderna declara a loucura uma doença do espírito e o louco passa a ser encarcerado, transformado em objeto da medicina. Ocorre uma separação para que a razão possa reinar sozinha. A loucura deve ser reprimida para que seja possível o reino da razão, o reino da ciência. Michel Foucault é um dos pensadores franceses contemporâneos mais conhecidos, pois suas obras foram traduzidas para outras línguas. Faz uma análise crítica do sujeito pensante (eu penso, logo sou) de Descartes. Para ele, o sujeito neutro, capaz de ver, conhecer e comparar o que acontece no mundo exterior, como suposto pelos teóricos do conhecimento, é mero produto histórico. Afirma que o sujeito é produção medieval, surgido sob a “compulsão à confissão” no sacramento da penitência, no âmbito eclesiástico, no processo inquisitorial e na justiça penal, tendo a confissão como principal meio de prova. Por isso propõe a destronação ou dissolução do sujeito. Isso é-lhe comum aos estruturalistas, já no ponto de partida de seu pensamento. A obra de Foucault assumiu um caráter quase popular, não só na Europa, mas também entre nós. São numerosas as obras já traduzidas para o português. E algumas (História da sexualidade e Vigiar e punir ) cada qual com dezenas de edições em português. O que atrai nela tantos leitores? O mundo cada vez mais depende do saber, das ciências, que cada vez mais determinam nossa cultura e nossa conduta. Saber é poder. A vontade de controlar, segundo Foucault, toma a forma de vontade de saber. Dessa maneira, a autoridade científica, na sua visão, muda radicalmente: a) ela não parece subjetiva, portanto, diferente da autoridade do governante, do sacerdote; d) ela pretende a objetividade. Os sujeitos devem obedecer às leis objetivas a partir do momento em que se tornam conhecidas.
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Original é a concepção de Foucault de que o saber é o modo como o poder se impõe aos sujeitos, sem ter o ar de emanar de sujeitos. Estratégias de poder são imanentes à vontade de saber. O saber-poder está em todo lugar, mas de modo nenhum é propriedade do Estado. O poder é menos a propriedade de uma classe que uma estratégia. Não é propriamente uma instituição, um aparelho que se impõe aos indivíduos, mas é tecido por uma rede de relações invisíveis. A modernidade carateriza-se por uma mutação das modalidades de ação de poder, cuja forma privilegiada é o saber. Estamos sob o controle da ciência que não tem dono. O poder do saber está concentrado na verdade dos enunciados científicos. Para ele, as ciências humanas surgiram na base de instituições que reuniram os homens para possibilitar o levantamento empírico dos desvios de conduta. Por isso designou as ciências humanas de ciências da normalização, pois medem, comparam e valorizam todas as coisas humanas segundo critérios. Para Foucault, não são as estruturas eternas, mas as ações sociais que conduzem a novas visões do mundo e aos resultados científicos. A obra de Foucault vincula história e filosofia, investigando o complexo de crenças próprias e caraterísticas de diferentes práticas culturais em diferentes épocas. Ele tematiza seu uso no controle social, mostrando a natureza historicamente condicionada das relações de poder.
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XI O MARXISMO
Por marxismo entende-se, em primeiro lugar, o pensamento (científico e ideológico) de Karl Marx e, depois, uma corrente ampla de pensamento no mundo acadêmico e cultural, inspiradora de lutas sociais. A grande revolução bolchevista na Rússia (1917) e a de Mão-tse-tung na China (1949) foram de caráter marxista. O marxismo tem, em sua origem, por núcleo o pensamento e a obra de Karl Marx (1818-1883), completados por Friedrich Engels (1820-1895). Antes de mais nada, o marxismo é uma visão do mundo. Como filosofia pretende explicar o homem, a história e a sociedade (até certo ponto também a natureza), mas centra-se na evolução social (socialismo científico) e propõe-se lutar por essa evolução. Não se contenta em explicar a realidade, mas quer transformá-la. Por um lado, há um marxismo dogmático, também chamado ortodoxo e, por outro, vários marxismos heterodoxos. O pensamento de Marx causou um impacto não só na história da filosofia, mas na sociedade, semelhantemente a uma grande religião. Esse impacto deve-se não somente às particulares condições sócio-históricas de sua época, mas também à natureza da filosofia marxista, cujo conteúdo é, antes de tudo, político e orienta sua teoria para a ação. Em meados do século XX, cerca de um terço da população do nosso planeta vivia sob regimes que se diziam fiéis à sua doutrina. Obras e personalidades de referência mitificadas, proselitismo e ampliação cada vez maior o caraterizam. Mas as tendências heterodoxas divergentes multiplicam-se até final do século XX. O impacto sobre a sociedade ocorre em todos os níveis: econômico, político, cultural, etc. Surge, todavia, a pergunta: qual o verdadeiro marxismo?
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11.1 Karl Marx (1818-1883) Karl Marx descende de uma família de rabinos, mas seus pais converteram-se ao luteranismo. Ele próprio, desde jovem, tornou -se antirreligioso. Na vida de Karl Marx pode distinguir-se: a) período de formação (18181841). Estudou Direito, na Universidade de Bonn, transferindo-se para Berlim, em 1836, onde frequentou os cursos de Direito e Filosofia. Participou do Doktorklub (hegelianos de esquerda), fazendo amizade com os irmãos Edgar e Bruno Bauer. Em 1841 obteve o grau de doutor na Universidade de Jena, apresentando sua tese sobre os atomistas antigos, Demócrito e Epicuro; b) período de transição (1841-1848). Exerceu o jornalismo em Bonn e Köln. Primeiro aderiu a uma concepção humanístico-liberal, ateia e racionalista, da qual evolui para o socialismo comunista. Sofre a influência da versão materialista do hegelianismo de Feuerbach. Em 1843 partiu para Paris, permanecendo aí em contato com os meios revolucionários até 1845. Em Paris conheceu e vinculou-se a Friedrich Engels. Em 1845 foi expulso pelo governo de Guizot. Instalou-se, então, em Bruxelas, exercendo a atividade de escritor revolucionário; c) período de maturidade. A partir de 1848, já possui todos os elementos de sua visão do mundo e traça seu projeto de ação. Esse período inicia com o Manifesto do Partido Comunista. Participou ativamente nas agitações da Bélgica, França e Alemanha. Em 1849 refugiou-se em Londres, onde permaneceu até o fim da vida. A obra de Marx é enorme e, em boa parte, formada por escritos de ocasião, mas toda ela tem como constante uma crítica da sociedade burguesa e do regime capitalista. A amplidão de sua obra dificultou a elaboração de um corpo coerente de sua visão de mundo. Por isso compreende-se que as interpretações resultassem num pluralismo de marxismos. Louis Althusser e sua escola afirmaram haver uma ruptura epistemológica entre uma primeira fase humanista (teoria da alienação) e uma segunda fase científica (crítica da economia política). A primeira é a fase do Marx filósofo e crítico da filosofia; o Marx da maturidade é o economista, o politólogo revolucionário. Sua filosofia, metodologicamente, trabalha com a dialética de Hegel invertida. O absoluto, para Marx, não é o espírito, mas a história articulada pela luta de classes, na oposição entre indivíduo e natureza (trabalho) e como grupo
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(sociedade). Tematiza a história como luta de classes e essa luta, na sociedade capitalista, geraria, como agente histórico universal, o proletariado que, por sua vez, instalaria uma sociedade sem classes. Sua crítica da sociedade burguesa é animada pelo mito de uma sociedade de puros produtores que satisfazem as necessidades materiais, superando a alienação. Em sua obra literária podemos salientar: Manuscritos econômicofilosóficos (escritos em 1844, mas somente publicados em 1932), que são os escritos de Paris. São fragmentos de filosofia e economia, onde aparecem as primeiras ideias sobre alienação; Ideologia alemã (1846) que escreveu com Friedrich Engels, expondo a doutrina do materialismo histórico. Manifesto comunista (1848), em colaboração com Engels, um texto revolucionário da história de Marx, no qual tira as consequências políticas do fato de que “a história de todas as sociedades existentes até hoje é a história da luta de classes”; O capital (3 volumes: 1867-1893), é a obra mais famosa de Marx e faz dele um dos fundadores da economia política. Trata-se de uma análise crítica do funcionamento e das falhas da sociedade capitalista da época. Os dois últimos volumes foram publicados, depois de sua morte, por Friedrich Engels. Há quem considere Marx não propriamente um filósofo, mas um teórico social ou político. Em todo caso, sua obra está cheia de filosofia e influenciou muitos filósofos do século XX. Ela abrange uma área muito ampla de estudo em diferentes campos de conhecimento e boa parte foi escrita, a quatro mãos, com F. Engels. Por isso é difícil fazer uma síntese de seu pensamento, mas seria impossível compreender a história do século XX sem Karl Marx. Ele quis mudar o mundo, rejeitando o idealismo de Hegel. Entretanto, como Hegel, faz uma filosofia histórica. Dele ainda assume a noção de dialética, isto é, o dinamismo da negação, da contradição e do conflito. Transpõe o conceito hegeliano de alienação do plano metafísico e teórico para o plano sociológico e prático. Do ponto de vista marxista, Hegel é um filósofo burguês, que faz o jogo da classe dominante, sem mudar nada. Por isso, Marx afirma na sua 11ª tese contra Feuerbach: “Até agora os f ilósofos contemplaram o mundo, mas é preciso transformá-lo”. A imagem de homem, na visão filosófica tradicional, é passiva, pois o ideal filosófico é a vida teorética ou contemplativa. Para Marx, a vocação do homem é transformar-se, transformando as condições materiais de sua
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existência. E isso apenas pode ser feito pelo trabalho. A dialética hegeliana fornece-lhe um princípio revolucionário, pois o mundo não é um conjunto de coisas prontas, mas um processo histórico. A filosofia de Marx baseia-se no materialismo dialético, cujo dinamismo é marcado pelas contradições e oposições fundamentais do indivíduo com a natureza (trabalho) e o grupo (sociedade). Inspirado em L. Feuerbach, Marx admite uma dialética materialista determinada pela realidade material do homem e de suas condições de vida, onde Hegel via a história como a evolução dialética do espírito. Dessa maneira surge, em Marx, a questão do determinismo: até que ponto os indivíduos e grupos são livres para decidir e influenciar o curso dos acontecimentos? O homem aparece como um elemento da natureza em constante movimento, sujeito a leis naturais da realidade em constante mudança. Marx substitui o monismo idealista de Hegel pelo monismo materialista. Para Marx, a prática dá o critério de saber, sendo a base e o objeto do conhecimento científico. O ser humano torna-se livre pelo conhecimento das leis da natureza e da sociedade. Do materialismo dialético decorre o materialismo histórico. O modo de ser de cada sociedade e de sua evolução é determinado pelo trabalho humano, como forma de domínio da natureza pelo homem. Este, por sua vez, tem como quadro estruturante o modo de produção, constituído pelas forças de produção (meios e técnicas de produção, qualidades dos que os utilizam) e pelas relações de produção que definem o regime econômico, formas de propriedade dos meios de produção. Segundo Marx, as forças produtivas determinam as relações de produção, formando a infraestrutura de cada modo de produção. A infraestrutura (material) é a base que determina a consciência social, ou seja, as ideias políticas, jurídicas, filosóficas, artísticas, religiosas, etc. e as instituições sociais (Estado, Igreja, partido, sindicato, etc.). Cada sociedade é um todo, formado historicamente como um modo de produção e uma infraestrutura, determinantes do econômico (relações do homem com a natureza) e do social (conjunto das relações dos homens entre si). Para Marx, o espírito depende da matéria. Essa determina tudo. As estruturas materiais constituem o que ele chama de infraestrutura. As estruturas culturais, intelectuais, religiosas ou artísticas da sociedade são superestruturas. As primeiras compreendem as forças, os meios e as relações de produção, ou
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seja, o que condiciona a produção dos bens. As superestruturas compreendem todas as produções simbólicas da sociedade. Segundo ele, essas últimas apenas são o reflexo enganador das primeiras. As artes servem para o sustento da ideologia da classe dominante. A religião serve para manter o status quo que oprime os trabalhadores. Por isso afirma que ela “é o ópio do povo”. Em outras palavras, o modo de produção material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual. A existência social, por sua vez, determina a consciência dos homens. A consciência social é apenas um reflexo da realidade. O que propulsiona uma sociedade não são as ideias e teorias, pois essas são apenas reflexo ou “superestrutura ideológica” da realidade, mas a base material da vida social. A afirmação de Marx de que a infraestrutura determina sempre a superestrutura foi alvo de muitas críticas. A relação entre a economia material e a organização sociocultural e política é de interação e interdependência, não simples determinação de uma pela outra, e não simplesmente unilateral, como queria Marx. A história, segundo Marx, é o estudo da sucessão e do desenvolvimento das formações econômicas e sociais. O elemento determinante é o modo de produção dos bens materiais. Segundo ele, no passado houve a fase do comunismo primitivo, a escravidão e o feudalismo; o presente é a fase crítica do capitalismo, que entrará em colapso inevitável e, depois, surgirá primeiro o socialismo e, por fim, retornará o comunismo. A evolução histórica obedece a uma incessante dialética social. No capitalismo, a burguesia é a proprietária do capital e explora o povo, sobretudo os proletários ou trabalhadores da indústria. As sociedades, segundo Marx, evoluem pela luta de classes, pois o proletariado, como sujeito da história universal, conduzirá ao socialismo. Marx estava convicto de que a sociedade capitalista, na qual vivia, tinha entrado em crise, que a oposição entre a burguesia e o proletariado se fortaleceria a tal ponto que surgiria uma mudança revolucionária, pela qual toda a propriedade passaria ao Estado. Acreditava que essa mudança seria provocada pela própria natureza do capitalismo. Para isso, baseou-se numa análise do valor econômico. Ele dizia que o valor da capacidade de trabalho é estabelecido, no capitalismo, pelo custo de manter o trabalhador vivo, capaz de trabalhar. O
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capitalismo explora o trabalhador da seguinte maneira: supondo que, para manter os meios de subsistência do trabalhador por uma semana, são necessárias apenas dez horas semanais de trabalho, mas ele vendeu quarenta horas, ele trabalha as outras trinta e o produto desse trabalho constitui a mais-valia que produz o lucro do capitalista. A exploração sistemática conduzirá o proletariado a um ponto em que se tornará intolerável e, por isso, revoltar-se-á e o capitalismo será substituído pela ditadura do proletariado, que abolirá a propriedade privada. A predição de Marx a respeito do capitalismo falhou, em primeiro lugar, porque não contou com a possibilidade de o capitalista pagar ao trabalhador mais que um mero salário de subsistência. Em segundo lugar, se a previsão de Marx estivesse tão certa, a revolução socialista deveria ter ocorrido nos países de maior desenvolvimento industrial. Paradoxalmente, a primeira grande revolução comunista ocorreu na Rússia agrária, não conduzindo ao comunismo, mas a uma situação econômica e política nada invejável. Dessa maneira, o marxismo marcou uma presença ímpar na cultura do século XX, com sua espantosa capacidade de inspirar movimentos sociais e sistemas de poder, sobretudo, a partir da revolução bolchevista de 1917, que implodiu com a derrubada do muro de Berlim, em 1989, sem cumprir suas promessas de uma sociedade reconciliada com a natureza. Depois da morte de Marx, dentro das fileiras dos seus seguidores, começaram a surgir dúvidas a respeito da confiabilidade de suas previsões: o proletariado necessariamente empobreceria a ponto de surgir um confronto tal que redundaria no colapso do capitalismo? Eduard Bernstein (1850-1932), que estivera no exílio com F. Engels, já constatou que a economia alemã se desenvolvia de maneira diferente do previsto por Marx. O padrão de vida dos trabalhadores melhorava e que a condescendência de Marx e Engels em relação à dialética teria comprometido a cientificidade de suas análises. Por outro lado, surgiu logo uma oposição forte à tendência revisionista de Bernstein, liderada por Karl Kautsky (1854-1938), que defendia a ortodoxia literal da previsão de Marx. À luz do evolucionismo biológico de Darwin, Kautsky fez uma interpretação literal e fundamentalista do marxismo, reduzindo-o a um social-darwinismo. Se a queda do capitalismo e a revolução socialista são inevitáveis, somente resta esperar o momento em que o proletariado substituirá a burguesia.
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Para tentar superar a antítese entre ortodoxia-revisionismo empenhouse Rosa Luxemburg (1871-1919). Para ela, ser marxista não significa aceitar passivamente todas as afirmações de Marx, mas apropriar-se de seu método dialético-materialista de análise da sociedade. Somente a ação de um proletariado consciente pode traduzir em atos, no socialismo, a tendência imanente ao capitalismo em crise. O proletariado precisa ir à luta para conquistar o poder, segundo ela, pois “o socialismo não cai do céu como um fato”. 11.2 Lênin (1870-1924) O desenvolvimento do marxismo que, politicamente, foi mai s eficiente é o de Lênin (1870-1924), cujo verdadeiro nome era Vladimir Ilitch Ulianov. Ele deu nova versão às ideias de Marx para a situação da Rússia, que ainda não era uma sociedade industrial. Ele fez observações na Europa ocidental e central que o convenceram de que o proletariado não estava mais interessado numa revolução comunista universal. Contentava-se com uma política sindical reformista. Seu ódio desmedido contra o czarismo e seus aliados, levou-o a buscar um novo sujeito para a revolução e um partido de novo tipo que com consciência revolucionária decide e age pelo proletariado e pelas massas de maneira representativa. Lênin fez uma reforma revolucionária do marxismo. O proletariado, segundo ele, permaneceu no passado, tornando-se incapaz de reconhecer, por si mesmo, seus próprios interesses e criticar o partido na percepção dos mesmos. Dá nova valorização ao Estado como instrumento para executar a vontade do partido e educar o proletariado. A distinção real entre vanguarda e massa, entre chefes e chefiados, que Marx considerava caraterística da alienação, para Lênin torna-se uma caraterística permanente da nova sociedade. Os escritos de Lênin sobre temas filosóficos, como o problema da teoria do conhecimento, em Materialismo e Empiriocriticismo (1909), orientam-se para fins políticos. Ao contrário de Marx, Lênin não acredita que a economia capitalista necessariamente está destinada à autodestruição e, segundo ele, o imperialismo mundial deve ser derrubado a partir da Rússia. Para isso busca uma aliança entre os operários e os camponeses russos. Abandona, pois, a convicção dos marxistas ortodoxos de que a história avança, por conta própria, à revolução
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e ao socialismo. Propõe a iniciativa revolucionária do proletariado, mas crê que a consciência revolucionária somente pode ser introduzida no proletariado “de fora”. Por isso o proletariado deve subordinar-se ao partido. O pensamento de Lênin, muitas vezes, é considerado uma síntese da tradição revolucionária russa e do marxismo ocidental. O marxismo-lenismo acentua o aspecto voluntarista para a obtenção dos objetivos revolucionários. Lênin afirma a necessidade da ideologia revolucionária como arma decisiva de combate: “Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”. Segundo ele, o partido é a consciência da classe operária e o marxismo-lenismo tornou-se a forma mais agressiva do ateísmo militante, no século XX. Depois da revolução de outubro de 1917, o Partido Comunista da União Soviética, como os demais partidos comunistas, orientavam-se no marxismo leninista, que passou a ser considerado ortodoxo. O mérito de Lênin foi, por um lado, adaptar e aplicar o marxismo à situação peculiar da Rússia e, por outro, desenvolver a teoria e a tática da revolução proletária. Após a revolução de 1917, até 1924, Lênin ocupou a função de presidente do Conselho dos Comissários do Povo. Na prática, isso correspondeu a ser o ditador absoluto da Rússia até morrer. Lênin considera-se a si mesmo como único intérprete e porta-voz do partido e do proletariado. Na sua consciência manifesta-se a realidade social. Por isso somente a ele cabe decidir sobre a realidade e mudá-la objetivamente. Em vista da vitória bolchevique, as ideias de Lênin foram tidas como a pedra angular da cultura intelectual soviética, acima de qualquer crítica, até o advento da glasnost , no final da década de 1980. Quando terminou o regime comunista, depois da dissolução da União Soviética, em 1991, o prestígio e a influência de Lênin diminuíram rapidamente. 11.3 Georg Lukács (1885-1971) Lukács foi influenciado por Max Weber, E. Bloch e W. Dilthey, pelo idealismo alemão e, sobretudo, por Marx. Em 1918 filiou-se ao recém-fundado partido comunista da Hungria. Foi Comissário do Povo para a Educação. Em 1923, quando o marxismo-leninismo estava para tornar-se doutrina de Estado na Rússia, Lukács publicou o livro História e consciência de classe. Pergunta: Como
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pode o terror exercido pelo proletariado ser justificado eticamente? Encontra a justificativa e o critério da tática socialista na filosofia da história. A obra História e consciência de classes valeu-lhe críticas nos diferentes meios marxistas. Em 1925 foi condenado a submeter-se à autocrítica. Refugiou-se em Moscou durante o regime nazista (1933-1945). Depois de retornar à Hungria, tornou-se membro do parlamento. Suas obras de crítica literária A alma e as formas (1911), e a Teoria do romance (1920), O romance histórico (1937), Goethe e seu tempo (1946), Ensaio sobre o realismo (1948) e Contribuições para a história da estética (1953) foram muito lidas também no Ocidente. No campo da historiografia filosófica, Lukács destacou-se por seus estudos do jovem Marx e da filosofia alemã, depois de Hegel. Entre os marxistas repercutiu sua percepção de que a teoria materialista da história de Marx e o resultante domínio do econômico, só poderiam ser entendidos, de maneira adequada, caso se admitisse tanto a necessidade quanto a liberdade da espécie. Antes da descoberta dos Manuscritos econômicos e filosóficos (1932), Lukács, em História e consciência de classe, já salientara a dívida de Marx para com a dialética hegeliana. Enfatizou o conceito de totalidade. Pelo uso que Marx faz da dialética, segundo ele, a sociedade capitalista pode ser vista como, essencialmente, reificada (coisificada) e o proletariado como o verdadeiro sujeito da história e a única salvação possível da humanidade. Toda a verdade deve ser relacionada à missão histórica do proletariado. A verdade manifesta-se na totalidade das relações sociais, no processo do desenvolvimento da união real entre teoria e práxis. Essa união não é estática, mas dinâmica, captada pela consciência proletária e pela ação do partido em que o sujeito e o objeto são um. Com o conceito de “consciência de classe” que , juntamente com os conceitos de “totalidade” e de “reificação”, é central em História e consciência de classe, Lukács tenta definir melhor o que se deve entender por “lógica” da história. O método do marxismo permite reconhecer os acontecimentos singulares, aparentemente desconexos, como “os momentos dia lético-dinâmicos de um todo igualmente dialético-dinâmico”. Esse método não é um método científico que se aplica ao estudo de algum objeto, mas é a maneira segundo a qual a coisa se desenvolve no próprio processo. É o processo histórico consciente
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no proletariado, o sujeito da presente transformação social, e, ao mesmo tempo, representante da totalidade humana como consciência de classe. Apropriada pelo proletariado, é autoconhecimento da realidade. O proletariado é o sujeito-objeto desse processo. Como na consciência de classe do proletariado a totalidade histórica chegou ao seu conceito, as leis da história não constituem normas para sua ação, porque são idênticas com sua própria dialética. Mas, o proletariado concreto é incapaz de compreender sua missão porque reificado pela sociedade capitalista. Por isso cabe apelar ao partido comunista para conduzir a revolução como representante do proletariado. Lukács contribuiu à filosofia marxista pela formulação de questões de uma ética revolucionária, restaurando a identidade dialética. A verdade de fatos singulares somente se manifesta na totalidade social. Lukács desconhece direitos humanos do indivíduo acima do partido. 11.4 Ernst Bloch (1885-1977) Ernst Bloch, depois de estudar música, física, germanística e filosofia, doutorou-se em 1908 com uma tese sobre H. Rickert. De descendência judaica, relacionou-se com K. Jaspers, M. Weber, G. Lukács, entre outros. Impressionouse, em suas numerosas viagens, com a decadência da burguesia e filiou-se ao partido comunista. Depois de iniciar uma vida de jornalista e escritor, político, desenvolveu uma teoria da revolução e da crítica da cultura. Em 1934 deixou a Alemanha, peregrinando pela Suíça, Paris, Viena, Praga e, finalmente, chegou aos EE.UU. Em 1949 retornou à Europa, assumindo a docência de filosofia, na Universidade de Leipzig, na então Alemanha Oriental. Entrando em conflito com a ideologia oficial do partido, depois do massacre soviético na Hungria, em 1956, e condenado como “revisionista”, desde 1961, tornou -se professor de filosofia marxista em Tübingen. Em sua obra filosófica tentou fazer uma síntese entre utopia e marxismo. Publicou Espírito da utopia (1918), Thomás Münzer como teólogo da revolução (1921), e, em três volumes, sua obra principal Das Prinzip Hoffnung (O princípio esperança) entre 1954-59. Desde cedo expressa o anseio por um mundo
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melhor no presente. Publica, ainda, Direito natural e dignidade humana (1961), Para uma ontologia do ainda-não-ser (1961), Ateísmo no cristianismo (1968). Bloch parte da autoexperiência humana. Expressou sua posição filosófica na aula inaugural em Tübingen: “Eu sou, mas não me tenho”. Responde: “Por isso nos tornamos”. A experiência dolorosa da limitação espacial e temporal, que penetra o momento feliz, também na dor, abre a possibilidade de uma plenitude sem limites. No escuro do momento mostra-se simultaneamente o brilho de uma luz permanente. Segundo Bloch, em todos os níveis da realidade está presente um impulso originário que impele para frente, para além do dado e a realização do possível, para a novidade do futuro. Fala de esperança quando se refere à forma como se expressa esse impulso na vida humana. O princípio esperança é, para ele, um verdadeiro princípio ontológico, a ontologia do ainda-não-ser. O futuro é a verdadeira dimensão do homem e do mundo. Para que a novidade se torne real, precisa do impulso dinâmico do princípio esperança. O ser humano precisa superar a angústia e o medo. O presente é o reino da escuridão. O futuro é a dimensão autêntica do ser. O presente sempre é vivido como prolongamento do passado ou antecipação do futuro. A tendência do homem ocidental é refugiar-se no passado. No eros platônico, entretanto, Bloch encontra traços de uma filosofia da esperança, como também na concepção aristotélica de matéria como potência de ser. O princípio esperança começa com os sonhos diurnos de um homem simples, refletindo sobre a consciência antecipadora do ser humano, resultante de sua estrutura de necessidades. O objeto dessa e de toda obra de Bloch é a investigação das utopias e esperanças concretas, que se escondem nas concepções diárias do ser humano, conscientes ou ainda não, nos produtos históricos de seus sonhos e fantasias, como nas objetivações da arte, da técnica, da ciência, da religião e da filosofia. Quer penetrar filosoficamente o conceito do ainda-não-consciente com o instrumental do materialismo dialético. O socialismo seria, segundo ele, a práxis da utopia concreta. Bloch descreve, narra, rompendo os limites da argumentação científica, por vezes, em estilo de profeta. Em Ateísmo no cristianismo interpreta documentos e tradições das religiões mundiais, sobretudo da Bíblia, sob o
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aspecto do prolongamento de sua história herética contra o texto bíblico redigido e transmitido pelos sacerdotes. Em Herança desse tempo (1935) analisa a situação da consciência na época pré-nazista. Em Direito natural e dignidade humana (1961) estuda a história da filosofia do direito natural, desde a Stoá, para mostrar a “herança socialista”, nas intenções e ideias d o antigo direito natural. Nesse contexto, O princípio esperança pode ser considerado o resumo de seus esforços de levar a filosofia “à esperança, como um lugar do mundo que é habitável como a terra da melhor cultura, mas está inexplorada como a Antártica”. Vê os seres humanos como essencialmente inacabados, movidos por um dinamismo, a esperança, em busca do ainda-não-realizado, ou seja, que se manifesta como utopia. Entre os neomarxistas do Ocidente, caberia citar Antonio Gramsci (1891-1937) na Itália, Henri Lefebvre (1901-1979) e Roger Garaudy (1913-2012) na França. Apesar de seu ateísmo, Bloch queria recuperar o senso de autotranscendência que via nas tradições religiosas e míticas da humanidade. Por isso suas ideias influenciaram não só a filosofia, mas também a teologia, por exemplo, a Teologia da esperança de Jürgen Moltmann, a Teologia da Libertação de Leonardo Boff e a Teologia Política de Johann Baptist Metz. Em vista da leitura que Louis Althusser fez de Marx, alguns teólogos latino-americanos julgavam que as teorias marxistas da transformação social deveriam ser aceitas por considerálas científicas, enquanto o ateísmo a elas vinculado poderia ser rejeitado como ideologia desacreditada.
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XII ESCOLA DA TEORIA CRÍTICA
No século XX, após a primeira guerra mundial, surgiu um pluralismo de escolas e tendências filosóficas, ao lado de um movimento de restauração de filosofias tradicionais, como o neotomismo, o neokantismo, o neo-hegelianismo e o marxismo. Assim, em torno de 1930, começaram a predominar as filosofias da existência; na França, nasce o personalismo; constitui-se o Círculo de Viena, com seu neopositivismo. Na mesma época, nasce a Escola de Frankfurt ou Escola da Teoria Crítica. Pelo nome “Escola de Frankfurt” designa-se um círculo de intelectuais, filósofos e cientistas sociais, ligados ao Instituto de Pesquisa Social, fundado em 1922, na cidade de Frankfurt. Seus princípios teóricos tornaram-se importantes para a discussão do marxismo e do socialismo, para a crítica da ciência moderna e do iluminismo. O primeiro diretor do Instituto foi Karl Grünberg, marxista austríaco, historiador da classe operária. Sucedeu-o o economista Friedrich Pollock e, em 1931, Max Horkheimer. Com a nomeação de Horkheimer, o Instituto adquiriu grande importância, elaborando o programa que passou para a história com o nome de “teoria crítica da sociedade”. Em 1937, Horkheimer publicou o escrito programático Teoria tradicional e teoria crítica. Na primeira geração, destacam-se os nomes de Theodor W. Adorno (1903-1969), musicólogo e sociólogo; Walter Benjamin (1892-1940), filósofo e crítico literário; Erich Fromm (1900-1980), sociólogo e psicanalista; Max Horkheimer (1895-1973), filósofo; Herbert Marcuse (1898-1979), filósofo; F. J. Weil e o sociólogo da literatura L. Löwenthal; na segunda geração, sobressai o filósofo Jürgen Habermas, considerado herdeiro espiritual dos fundadores.
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Primeiro, o Instituto tinha como órgão de divulgação de suas ideias o Arquivo de história do socialismo e do movimento operário. Em 1932, Horkheimer deu impulso à Revista de Pesquisa Social , com postura socialista e materialista, ressaltando a totalidade e a dialética. Por pesquisa social entende- se, pois, “a teoria da sociedade como um todo”. Nessa perspectiva, instaura -se um laço entre hegelianismo, marxismo e freudismo, que passou a ser uma referência característica da teoria crítica da sociedade, nas diversas variantes dos diferentes pensadores da Escola. Quando Hitler assumiu o poder, na Alemanha, o Instituto foi fechado, o grupo foi obrigado a emigrar, primeiro para Genebra e, por fim, para Nova Iorque. Adorno e Horkheimer trabalharam no International Institute of Social Research vinculado à Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. Depois da guerra, Adorno, Horkheimer e Pollock voltaram a Frankfurt e, em 1950, renasceu o “Instituto de Pesquisa Social”. Jürgen Habermas conduziu a Escola a uma nova fase. A teoria crítica passou a ser considerada uma alternativa ao neopositivismo, à filosofia analítica e à teoria da ciência. Marcuse, Fromm e Löwenthal permaneceram longo tempo nos Estados Unidos. Os pensadores desse grupo eram independentes, e seus interesses abrangiam diversos campos do saber. O que, inicialmente, os congregava era o projeto filosófico e político de elaborar uma ampla teoria crítica da sociedade, de tal maneira que “Escola da Teoria Crítica” tornou-se sinônimo de “Escola de Frankfurt”. Considerado o pai da “teoria crítica”, Horkheimer, em coautoria com Adorno, publicou a Dialética da razão (1944); depois Eclipse da razão (1947); Teoria crítica (1968). Adorno, desenvolvendo obra original no campo da estética e da filosofia da arte em relação com a crítica da sociedade, publicou Filosofia da nova música (1949); Minima moralia (1951); Dialética negativa (1966). Entre outras obras Marcuse publicou Eros e civilização (1955) e o Homem unidimensional (1964). Erich Fromm, em Ter e ser (1976) recorreu a motivos místicos do Mestre Eckhart como meio contra a autodestruição materialista pelo lucro e pelo poder. Os fundadores da teoria crítica associam ciência e filosofia no estudo teórico e crítico da sociedade. Segundo eles, a teoria social deve avaliar
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criticamente a sociedade, em função de certos valores, que são os da razão universal e livre. Em outras palavras, deve julgar o grau de liberdade que uma determinada sociedade reconhece aos seus membros. 12.1 Max Horkheimer (1895-1973) No começo, a ideologia do Instituto inseriu-se no movimento prómarxista da década de 1920, cujos principais representantes eram George Lukács (1885-1971), em Viena; Antônio Gramsci (1891-1937), em Roma; Karl Korsch, em Leipzig, e Karl Mannheim (1893-1947), com o seu marxismo burguês, em Frankfurt. Em 1930, Horkheimer ainda pensava que o marxismo seria a arma adequada contra o nazismo nascente para a transformação radical da sociedade dentro da ética judaica de justiça social. A Escola de Frankfurt nasce, pois, como uma forma de interpretação do revisionismo marxista, como uma tentativa de repensar e reformular a tradicional doutrina marxista e sua tradição, submetendo o marxismo a uma reconstrução crítica, que considerasse a nova situação do processo revolucionário e as novas condições do chamado capitalismo tardio, frente ao capitalismo originário. Karl-Heinz Weger, em La crítica religiosa en los tres últimos siglos, afirma que: A nova concepção da teoria marxista deve responder às experiências do século XX; à experiência do stalinismo, à do fascismo e à capacidade de integração num sistema de capitalismo tardio, que assumiu a vontade revolucionária das massas e as manipula com tal êxito, segundo a teoria crítica, que as acomoda ao sistema78.
Os integrantes dessa escola trataram de um leque de assuntos, desde os processos civilizatórios modernos até ao destino humano, na era da técnica; trataram da arte, da música, da literatura e da vida cotidiana, da mídia e da cultura que molda a vida de seus contemporâneos. Eles dedicaram-se à análise crítica
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WEGER, Karl-Heinz. La crítica religiosa en los tres últimos siglos. Barcelona: Herder, 1986, p.
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dos fenômenos em relação ao todo social, à luz do processo histórico global da sociedade. Partindo de teses de Marx, Freud e Nietzsche, esses pensadores provocaram uma profunda mudança em nossa maneira de ver o homem, a cultura e a sociedade, empenhados em esclarecer criticamente as novas realidades surgidas com o capitalismo do século XX. Desde Teoria tradicional e teoria crítica (1970), o conjunto das concepções da Escola de Frankfurt passou a caracterizar-se com a expressão “teoria crítica”. Horkheimer toma como ponto de partida o marxismo, opondo -se ao que ele designa com o nome genérico de “teoria tradicional”. Segundo ele, a teoria crítica surge para “encorajar uma teoria da sociedade existente, considerada como um todo”. Propõe-se oferecer uma compreensão global da sociedade. Tal teoria deve ser crítica, ou seja, capaz de mostrar a contradição fundamental da sociedade capitalista. O papel do teórico- crítico é “o teórico cuja única preocupação consiste no desenvolvimento que conduza à sociedade sem exploração”. A teoria crítica não se contenta em oferecer uma descrição do estado atual da sociedade, mas propõe-se denunciar distorções, injustiças, enfim, os males que a afligem. Horkheimer não só critica situações sociais, mas também suas interpretações. Ele critica uma razão simplesmente abstrata que desconsidera os condicionamentos concretos do próprio pensamento filosófico. Ele mostra que uma sociologia positiva, calcada no modelo das ciências naturais, limitando-se à constatação dos fatos, à sua classificação e à definição de leis objetivas é insuf iciente para abranger a “totalidade” dos fenômenos soc iais, sobretudo, incapaz de projetar uma nova sociedade mais justa e mais livre que a atual. Para Horkheimer, a teoria marxista, por um lado, não pretende qualquer visão concludente da totalidade e, por outro, não se preocupa apenas com o desenvolvimento concreto do pensamento, mas, sobretudo, com a promoção do progresso da sociedade. Desse modo, as categorias marxistas não são entendidas como conceitos definitivos, mas como indicações para investigações posteriores, cujos resultados retroajam sobre elas próprias. Assim Horkheimer usa a expressão “materialismo” em sentido diferenciado do codificado
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por Marx e Engels, refletindo o materialismo na perspectiva subjetiva e objetiva para interpretar esses autores. A teoria crítica “persegue de modo inteiramente consciente o interesse da organização racional da atividade humana”. Busca uma compreensão totalizante e dialética da sociedade humana, em seu conjunto, para promover sua transformação racional, levando em conta o homem, sua liberdade, sua criatividade, seu desenvolvimento harmonioso em colaboração aberta e fecunda com os outros. Visa à emancipação do homem de relações que o escravizam. Essa teoria foi formulada depois da segunda guerra mundial, no contexto da experiência do fascismo e do nazismo, no Ocidente, e do stalinismo, na Rússia. Por “teoria tradicional”, Horkheimer entende certa concepção de ciência resultante do longo processo histórico que remonta ao Discurso do Método de R. Descartes, o qual considerava o ideal de ciência como sistema dedutivo de princípios. O ideal cartesiano era uma teoria na qual todos os elementos estão interligados num puro sistema matemático de signos. A vantagem de tal sistema é sua aptidão para a utilização operativa. Horkheimer reconhece que tal concepção contribuiu para o controle técnico da natureza, mas o trabalho do especialista realiza-se desvinculado do todo. O pensamento cientificista limita-se à organização da experiência, esquecendo o que esta significa para o todo social. Melhor dito, a teoria tradicional, segundo Horkheimer, negligencia a gênese social dos problemas, das situações reais nas quais se usa a ciência e os fins para os quais é usada. Pretendendo o maior rigor, a ciência tradicional torna-se abstrata, estranha à realidade. A vontade de dominar a natureza, de compreender suas “leis”, para submetê-la, exigiu uma organização burocrática e impessoal, reduzindo o próprio ser humano a simples instrumento. Assim o progresso da tecnociência vai acompanhado por um processo de desumanização. A teoria crítica, ao contrário, pretende dar relevância social à ciência, favorecendo a reflexão autônoma, diferenciando a verificação prática de uma ideia e sua verdade. Através da teoria crítica, Horkheimer pretende ultrapassar o subjetivismo e o realismo da concepção positivista que, segundo ele, é a expressão mais acabada da teoria tradicional. Seu objetivo são aquelas teorias que afirmam como dada uma identidade entre razão e realidade. Vê o
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subjetivismo na preponderância que os positivistas concedem ao método, desprezando os dados em favor de uma estrutura anterior que os enquadraria. Mesmo quando os positivistas atribuem maior peso aos dados, esses acabam sendo selecionados pela metodologia escolhida e utilizada, conferindo maior destaque a determinados aspectos em detrimento de outros. Numa palestra de 1951, Sobre o conceito de razão, Horkheimer afirma que o positivismo se caracteriza por conceber uma razão subjetiva, formal e instrumental, cujo único critério é seu valor operativo, ou seja, seu desempenho na dominação da natureza pelo homem. Os conceitos passam a ser ficções destinadas a melhor sujeitar as coisas, que são explicadas de maneira abstrata. Com isso a razão torna-se incapaz de criticar um sistema político. Diz Horkheimer: “O indivíduo deixou de ter um pensamento próprio. O conteúdo da crença das massas, no qual ninguém acredita muito, é o produto direto da burocracia que domina a economia e o Estado. Os adeptos dessa crença seguem em segredo, apenas os seus interesses atomizados e por isso não-verdadeiros; eles agem como meras funções do mecanismo econômico” 79. Mas, de acordo com Marx, reconhece prioridade da sociedade sobre o indivíduo, que é o que é, em decorrência de determinadas relações sociais variadas. O indivíduo é determinado pela dinâmica da sociedade em seu todo. Horkheimer quer que os homens protestem contra a ordem totalitária. A razão crítica opõe-se à razão instrumental e subjetiva dos positivistas. Tenta superar a razão formal positivista através da práxis histórica. A Escola de Frankfurt não se limita a criticar as democracias estruturadas no sistema capitalista, mas também critica as totalitárias, de modo especial as burocráticas, que são formas aparentes do socialismo. Distancia-se decididamente do socialismo da política do partido comunista, o qual considera um obstáculo para conseguir justiça social e liberdade. Um dos aspectos mais relevantes da “teoria crítica” é a crítica da ciência, desenvolvida, sobretudo, no contexto da discussão sobre o juízo de valores nas ciências sociais, a partir do encontro com os cientistas sociais de
HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria crítica. São Paulo: Nova Cultural, 1989 (Col. “Os Pensadores”), p. 65. 79
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Tübingen, em 1961, entre o racionalismo crítico e a Escola de Frankfurt. Antes da segunda grande guerra, Horkheimer já opunha uma teoria crítica à teoria tradicional, derivada de uma compreensão racional cientificista e técnica. A teoria crítica reflete o vínculo da práxis científica com as condições sociais nas quais se encontra, reconhecendo o caráter normativo dos métodos e das tarefas científicas. A partir da década de 1960, a teoria crítica passa a apoiar-se, em grande parte, em bases elaboradas por Habermas. Este deixou o Instituto em 1971, dois anos depois da morte de Adorno. Desde então, o impacto da Escola decresceu, pertencendo ao passado recente. Os representantes dessa Escola tratam das mais importantes questões políticas e dos problemas teóricos da época: o fascismo, o nazismo, o stalinismo, a guerra fria, a sociedade opulenta, as principais filosofias contemporâneas, como também a arte de vanguarda, a tecnologia, a indústria cultural, a psicanálise e o problema do indivíduo na sociedade moderna. Para alguns, a teoria crítica da Escola de Frankfurt é um marxismo intelectualizado. Distingue dois tipos de razão: uma esclarece, emancipa e liberta; outra, instrumental, apenas proporciona meios e conduz à tecnocracia, dominante na indústria e na administração. Enquanto Kant submete a metafísica e a religião ao tribunal da razão, Horkheimer aplica o crivo crítico à sociedade. Os dois, Horkheimer e Adorno, são os protagonistas principais da teoria crítica, tendo, como Marx e Engels, publicado obras em conjunto. 12.2 Theodor W. Adorno (1903-1969) A produção intelectual de Adorno não constitui uma obra rigorosamente sistemática, tratando de muitos temas, desde a filosofia da história à teoria social e crítica do conhecimento. Ele era considerado o representante líder da teoria crítica que, em suas análises, apontava para as contradições do progresso técnico-industrial. Em 1947, Horkheimer e Adorno publicaram Dialética do Esclarecimento, empregando, pela primeira vez, o termo “indústria cultural”. Em 1962, Adorno explicou o significado desse termo, usado em substituição ao de “cultura de massa”, termo que engana. Os defe nsores da expressão “cultura de massa” querem dar a entender que se trata de algo como uma cultura, surgindo
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espontaneamente das próprias massas. Para Adorno, a indústria cultural adapta seus produtos ao consumo das massas e, mais ainda, determina o próprio consumo. Os detentores dessa indústria apenas se interessam pelo povo enquanto consumidor. Reduzem a humanidade e cada pessoa às condições que representam seus interesses. Dessa maneira, a indústria cultural é portadora da ideologia dominante que dá sentido a todo o sistema. Para Horkheimer, o conceito de racionalidade, que fundamenta a civilização industrial, está podre. A vontade de dominar a natureza, de compreender suas “leis”, para submetê-la, produziu uma organização burocrática e impessoal. Em nome do triunfo da razão sobre a natureza, reduziu o próprio ser humano a simples instrumento. Mas o homem continua tendo a sensação de medo, e sua autonomia como indivíduo diminui: “Antes, os fetiches estavam sob a lei da igualdade. Agora, a própria igualdade se converte em fetiche. A venda sobre os olhos da Justitia não significa somente a proibição de intervir no direito; ela diz ainda que o direito não provém da liberdade” 80. Vivemos num processo de desumanização. Os fins são substituídos pelos meios. O sistema decide o que é bom ou mau para a vida dos indivíduos. A razão foi reduzida a simples instrumento: “A unidade do coletivo manipulado consiste na negação de qualquer indivíduo, zomba-se de toda a espécie de sociedade que pudesse querer fazer do indivíduo um indivíduo” 81. A crítica de Horkheimer volta-se contra uma dupla frente de teorias afirmativas: contra o positivismo e contra a metafísica. Por positivismo entende a ciência que, com pretensão de conhecimento efetivo, reduz toda a realidade ao fáctico; contra a metafísica, porque, desconsiderando todas as contradições reais, considera a realidade do dado respectivo, definitivamente verdadeira, razoável e plena de sentido. Em Dialética do Iluminismo, Adorno e Horkheimer elaboraram o seguinte diagnóstico de seu tempo:
80 ADORNO,
Th. W. e HORKHEIMER, Max. O conceito de Iluminismo. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Col. “Os Pensadores”), p. 13. 81
Ibidem, p. 10.
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a) A esperança iluminista de que o homem empenhará sua razão para conhecer a verdade permanece. O homem pode transformar o mundo com suas condições de vida, de acordo com a vontade orientada pela razão. A constituição do sujeito autônomo, da pessoa esclarecida, representa um progresso essencial a ser mantido no futuro. b) Mas a fé de que, com isso, aumentará a dignidade, a virtude ou a felicidade do homem, deve ser relativizada e questionada. c) O iluminismo deve ser visto em sua ambivalência, pois o homem pode, e sua razão o permite, abusar do mundo, destruindo a natureza. Aliada à ideologia capitalista, a indústria cultural, segundo Adorno, contribui eficazmente para falsificar as relações entre os homens e dos homens com a natureza. O iluminismo, desde a Antiguidade, tem como finalidade libertar os homens do medo, tornando-os senhores, livrando o mundo da magia e do mito, e admite que pode alcançar-se esse objetivo por meio da ciência e da técnica. Se isso fosse verdade, poder-se-ia crer que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a ciência e a técnica. Mas o que observamos é o contrário. O progresso transformou-se em poderoso instrumento usado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento da consciência crítica das massas, pois, segundo Adorno, “impede a formação de indivíduos autô nomos, independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente”. Horkheimer e Adorno não só criaram o conceito de indústria cultural , mas também propuseram as linhas gerais de sua crítica, através da Dialética do Esclarecimento. Segundo eles, os tempos modernos criaram, por um lado, a ideia de que somos seres livres e distintos, e, por outro, poderemos criar uma sociedade mais justa na qual todos se realizem individualmente. Esse projeto, entretanto, contém contradições que produzem conflitos políticos, crises econômicas, angústias coletivas e sofrimentos existenciais. O progresso científico e tecnológico produziu novas relações de dominação. O aparecimento de uma série de patologias culturais faz vítimas em amplas camadas dessa sociedade. Os interesses sistêmicos tornam-se mais fortes e passam a predominar socialmente em desfavor dos mais fracos. Prova disso é a indústria cultural que mostra como os meios do esclarecimento progressista se podem transformar em barbárie tecnológica para os indivíduos.
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Horkheimer e Adorno afirmam que hoje o aumento da produtividade econômica cria as condições para um mundo mais justo, conferindo aos que controlam o aparelho técnico e aos grupos sociais uma superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo anula-se completamente em face dos poderes econômicos. Enquanto cresce o poder da sociedade sobre a natureza, o indivíduo desaparece diante do aparelho a que serve, embora bem servido. Numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados. Mas a enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo. Adorno cita uma observação de G. Simmel de que “é estranho quão pouco a história da filosofia registra os sofr imentos dos homens”. Essa ideia tornou-se um tema que acompanhou seu pensamento durante toda a vida. Reflete sobre o sofrimento do indivíduo, muitas vezes fragmentado por forças anônimas brutais. Certamente é a marca de Auschwitz, símbolo da barbárie do nazismo, mostrando o máximo da miséria humana. Adorno pergunta: Como pode a história degenerar naquilo que é o fascismo? Para responder essa pergunta, Adorno e Horkheimer fundamentaram a dialética do esclarecimento na préhistória mítica do Ocidente, interpretando-a a partir da vivência da história contemporânea. De maneira semelhante como para Marx, também para Adorno e Horkheimer, a história é a história da dominação humana. Entretanto, não esclarecem a história da dominação a partir das relações de produção. Reconduzem esta também a uma vontade originária de poder. Por isso, sua crítica volta-se, para além da ordem da propriedade, ao pensamento no qual reconhecem o órgão decisivo do senhorio. Com o uso da razão e de seus “instrumentos ideais”, os conceitos, o sujeito eleva-se acima da natureza, ao senhorio, e assim experimenta-se como sujeito. Mas essa maneira de autorrealização baseia-se no reconhecimento do poder como princípio de todas as relações. Ambos, Adorno e Horkheimer, nesse ato reconhecem a origem da dialética da história, pois “os homens pagam o aumento de seu poder com a alienação daquilo sobre que exercem o poder”. A tentativa de dominar a natureza já começa no mito, mas somente a superação iluminista do mito conduz ao triunfo do sujeito sobre o objeto. O
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iluminismo pretende o domínio da matéria sem a ilusão de forças ocultas. Consegue isso ao colocar a pluralidade da natureza sob um conceito lógico universal, para efeitos de análise, cálculo, manipulação e domínio. O racionalismo iluminista, que tudo subjuga, torna-se ele mesmo dominação, retornando ao mito. O positivismo, ou o “mito daquilo que é o caso”, é a forma mais recente da dominação da razão iluminista, eliminando o único e singular através de conceitos gerais, sistemas e ordem na ciência, na técnica e na administração. No iluminismo, o paradigma da subjugação é o astuto Ulisses da Odisséia, modelo originário do indivíduo burguês. A racionalidade da astúcia, com a qual se livra do poder das forças míticas da natureza, possibilita-lhe chegar à autoconsciência e à liberdade, mas indagado por seu nome chama- se “ninguém”. Com isso, o sujeito Ulisses nega a própria identidade que o torna sujeito e vive como amorfo. Na astúcia, que caracteriza os sacrifícios humanos em relação à divindade, Adorno vê o princípio originário da sociedade burguesa, na qual tudo acontece dentro da ordem, e o parceiro é iludido. Para que o sistema funcione, a sociedade tecnológica contemporânea construiu e opera, entre seus principais instrumentos, a poderosa máquina da indústria cultural, constituída essencialmente pelos massmedia. Através desses meios impõem valores e modelos de comportamento, cria necessidades e estabelece a linguagem, de maneira uniforme, para alcançar a todos. Esses meios bloqueiam a criatividade, conduzindo os consumidores à passividade. Por outro lado, o atual predomínio do funcional priva a pessoa da espontaneidade e da liberdade. Segundo Adorno, um processo de identidade forçada domina o mundo moderno. Adorno não é inimigo da modernidade, mas quer mostrar seus limites. Na atitude questionadora da arte via um corretivo necessário ao pensamento utilitário predominante. Na sua dialética negativa queria salvar o individual e o não-idêntico da absorção por conceitos abstratos. Em O conceito de iluminismo, escrito em parceria com Horkheimer, começou com as palavras: Desde sempre o iluminismo, no sentido mais abrangente de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores. Mas completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal. O programa do iluminismo
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era o de livrar o mundo do feitiço. Sua pretensão, a de dissolver os mitos e anular a imaginação, por meio do saber 82.
Ambos os pensadores indagaram como foi possível o extermínio de Ausschwitz. Concluíram que o nazismo não constituía um desvio total da cultura ocidental. A história da humanidade carateriza-se por uma espécie de enfermidade da razão no esforço de dominar, através de conceitos abstratos, a natureza, abstraindo das peculiaridades singulares e individuais. Adorno e Horkheimer afirmam que a indústria cultural construiu perfidamente o homem como ser genérico. Cada qual é substituível pelo outro. O ser humano, como indivíduo, é substituível. O divertimento deixou de ser o lugar da recreação, da liberdade, da genialidade, da verdadeira alegria. A indústria cultural fixa lugar e horário da diversão. Se o indivíduo quiser participar, deve submeter-se às regras e ao tempo programado. A ideologia, a rigor, é a ideologia dos fins estabelecidos por outros, ou seja, pelo sistema. Em vez de eliminar os mitos, o iluminismo criou novos. O indivíduo voltou à minoridade. Seu destino é fixado pelo sistema. Segundo Marx e Adorno, na troca de mercadorias, os bens não são avaliados pelo valor de seu uso concreto, mas por um valor abstrato do mercado. Com isso dá-se o modelo de toda a conduta social. Tudo é medido por um valor abstrato de mercado e, por isso, os bens podem ser comparados entre si e trocados. Na troca, coisas singulares não-idênticas tornam-se mensuráveis e idênticas. A propagação do princípio relaciona todo o mundo com o idêntico, com a totalidade. Sacrifica-se o valor específico de cada coisa, surgindo uma falsa identidade entre o universal e o singular, através de um nivelamento do princípio de troca. Esse procedimento impede o sujeito de ser sujeito, reduzindo a subjetividade a simples objeto. O eu é absorvido pela sociedade. Adorno pode inverter Hegel, dizendo que “o todo é o falso”, pois, enquanto, para Hegel, o verdadeiro aparece no todo, para Adorno o todo somente se pode conhecer como contexto social irreconciliado. O verdadeiro, se possível, primeiro teria que ser criado. A Dialética negativa (1966) opõe-se à dialética da síntese e da conciliação, negando a identidade entre realidade e pensamento e as pretensões 82
Ibidem, p. 17.
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da filosofia de captar a totalidade do real. Em outras palavras, é falsa a afirmação hegeliana de que pensar e ser são idênticos. Segundo Adorno, somente quando se afirma a não-identidade entre ser e pensamento pode-se evitar a camuflagem da realidade e libertar-se dos bloqueios que impedem a ação transformadora. A dialética é luta dos particulares contra o domínio do idêntico, do universal. A razão é impotente para captar o real, porque o real não é razão. Adorno quer trazer à luz o não-idêntico, a alteridade. Em Dialética negativa, ele afirma que “o singular é tanto mais como menos do que a sua determinação universal”. O singular não se deixa prender pelas redes do sistema. Segundo ele, a filosofia tradicional ilude-se ao dizer que está conhecendo o dissemelhante ao torná-lo semelhante. Contra a dialética da síntese e da conciliação, Adorno baseia-se na dialética da negação, que nega a identidade entre realidade e pensamento, desbaratando as pretensões da filosofia de captar a totalidade do real, revelando-lhe o sentido oculto e profundo. As filosofias tradicionais, segundo ele, são totalitaristas. As contradições da realidade social prolongam-se no pensamento. O próprio pensamento tornou-se um ato de dominação. O pensamento conceitual não se identifica com a realidade colocada em conceito. Subsumindo o objeto num conceito universal, mutila sua singularidade e tende a igualá-la idealisticamente a si mesmo. Adorno afirma a não-identidade do objeto com o conceito. Quando o pensamento filosófico tematiza esse problema, torna-se dialético, pois a dialética é a consciência da não-identidade. Em relação à tentativa do sujeito de assumir o objeto no pensamento, Adorno postula a permanente não-identidade do objeto. Quando o pensamento filosófico assume tal postura, torna-se dialético: “Dialética é a consciência da não-identidade”. Mas tal dialética pode parecer impossível. Como poderia expressar-se o não-idêntico a não ser em conceitos? É possível superar o conceito através de conceitos? O pensamento dialético, segundo Adorno, tende a considerar o outro como outro. Por isso reconciliação não significa encurtar a distância das coisas e dos homens para unir-se a eles, pois seria imperialismo filosófico sobre o estranho. A essa meta da dialética negativa correspondem o postulado da preferência do objeto e da rejeição do pensamento sistemático. A manutenção da não-identidade frente à tendência a identificar, o pensamento deve dar preferência ao objeto na mediação dialética sujeito-objeto. Adorno fundamenta a
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preferência do objeto com a indicação de que o sujeito sempre necessita da mediação, através do objeto, para ser sujeito. Apesar disso, este permanece em sua alteridade em relação ao sujeito, pois o objeto só pode ser pensado pelo sujeito. A tentação do sistema filosófico é querer possuir o todo, forçando tudo num conceito. Enquanto o sistema social é uma totalidade de contradições, o pensamento que busca a verdade deve manifestar a contraditoriedade, evitando uma síntese harmonizante e acabada. O pensamento deve evitar a tentação de sucumbir ao sistema, falsificando a ordem do mundo. A dialética negativa é antissistêmica, opondo-se ao pensamento sistêmico de todo tipo de idealismo, como também do positivismo das ciências sociais. Adorno objeta que as ciências sociais, ao tentarem captar o dado com uma exatidão quase igual à das ciências naturais, entregam-se a ela e a confirmam numa ideologia forçada. Não só as formas e os conteúdos do pensamento assumem caráter ideológico, mas também as necessidades sociais em busca de segurança. Ora, onde uma filosofia promete algo seguro em que a gente se possa apoiar, no meio das contradições sociais, apenas oferece a sujeição à dominação social. Segundo Adorno, o indicador do primado do objeto é a impotência do espírito em todos os seus juízos, assim como na organização da realidade. Com o primado do objeto, a dialética torna-se materialista. Ele diz que os idealistas fazem calar a realidade pela prepotência do sistema abstrato, já quando decidem o que é ou não é importante. A esquematização em importante e secundário repete formalmente a hierarquia dos valores da práxis dominante. Enfim, a dialética negativa quer salvaguardar as diferenças do individual e do qualitativo e ser uma defesa contra uma cultura “culpada e miserável”. O próprio pensamento dialético de Adorno reduz-se a uma resistência heroica, pois também depende de conceitos e de lógica. Com isso também a dialética negativa é suspeita de ideologia. O que permite justificar a afirmação de que o dado fáctico não é tudo? Seria preciso admitir a transcendência como possibilidade de superar o impasse? Não se dá isso com a obra de arte? Nesse caso, Adorno se declara solidário com a metafísica a qual nega que o nada tenha a última palavra no momento de sua queda.
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Adorno afirma que “as experiências da história proíbem perder tempo para pensar em alguma redenção”. As promessas do “outro” são ilusórias. Se este fosse realmente o lugar da salvação, teria que tornar-se real na história sensível, algo como “ressurreição da carne”. Segundo ele, ao conceito de salvação não corresponde nenhuma realidade. Mas não poderia ser pensada, se na realidade não houvesse algo que impulsionasse para ela. Diz que “a possibilidade para a qual está o nome di vino, é mantida por aquele que não crê”. A ideia, segundo ele, desemboca numa transcendência na qual não desaparece o sofrimento atual. Ele vê tal transcendência na obra de arte, sobretudo na m úsica. Depois de entender a meta da dialética negativa, é mais fácil entender o modo como Adorno se defronta com as correntes da filosofia moderna e contemporânea e com as concepções políticas, os movimentos artísticos e as mudanças sociais de sua época. Entre suas obras principais podem citar-se: Dialética do esclarecimento (1947), Filosofia da música moderna (1949), Minima moralia (1951) e Dialética negativa (1966). 12.3 Walter Benjamin (1892-1940) W. Benjamin, de família judia, frequentou um ginásio humanista em Berlim. A partir de 1912 estudou filosofia, germanística e história da arte nas universidades de Freiburg i. Br., Berlim, München e Berna. Em Freiburg conheceu o neokantismo. Doutorou-se, em 1919, em Berna, Suíça, com uma tese sobre o Conceito de crítica da arte no romantismo alemão. Infeliz no casamento, separou-se, em 1930, de Dora Sofia Pollack, com quem teve um filho. Apesar das dificuldades materiais, andou por Frankfurt, Moscou, Capri, Paris, etc. No exílio, em Paris, sustentava-se escrevendo críticas, recensões e ensaios para a Revista de Pesquisa Social de Horkheimer e Adorno. Seu interesse filosófico voltou-se para Platão, Kant e Husserl e, sobretudo, a questões estético-literárias. Em 1924, depois de ler História e consciência de classe de G. Lukács, começou a interessar-se pelo marxismo. Em 1926 fez amizade com Adorno e Horkheimer. Em 1940, depois da invasão da França pelo nazismo, tentou emigrar para os EE.UU. através da Espanha. Foi retido na
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fronteira espanhola. Cansado e desiludido, envenenou-se na noite de 26 de setembro. Benjamin queria superar o conceito moderno de experiência empírica fundado no experimento e na observação. Afirma que da experiência também faz parte o místico. Isso levou-o a buscar o ponto de partida da filosofia numa espécie de linguagem originária e não nas condições do conhecimento. Concebia a linguagem menos como instrumento para a troca de informações e mais nos seus aspectos mágicos. Segundo Benjamin, na linguagem encontramos elementos místicos, racionais e poéticos. De maneira original concebeu uma teoria da linguagem fundada na metafísica e na mística. Ao contrário de uma concepção que instrumentaliza a linguagem em vista de objetivos, Benjamin pensa a função original da linguagem como expressão do “espírito comunicável”, tanto das coisas como dos homens. Enquanto o homem nomeia as coisas, comunica-lhes seu próprio espírito. A coincidência da linguagem das coisas e da tradição nomeadora é garantida pela palavra criadora de Deus, que residualmente habita as coisas. Antes da Dialética do esclarecimento de Horkheimer e Adorno, Benjamin submeteu a cultura ocidental a uma crítica radical. Na sua Dialética do repouso enfocou o sofrimento e as vítimas da história. Ele foi uma das grandes figuras da estética marxista numa linha de pesquisa independente. Seu estudo sobre A obra de arte na era da reprodução técnica (1936) define a autenticidade como aquilo que não se pode reproduzir. A reprodução técnica, segundo ele, tira o reproduzido do campo da tradição, destruindo-lhe a aura. Com isso liquida-se a dimensão histórica, eliminando sua singularidade única. O mundo técnico reduz a singularidade pela multiplicação igualitária, realizando no campo da arte o que na economia já ocorreu na forma do fetichismo das mercadorias. 12.4 Herbert Marcuse (1898-1979) Marcuse estudou sob a orientação de M. Heidegger antes de aderir ao marxismo e integrar-se à Escola de Frankfurt. Em Frankfurt fazia parte do grupo de pensadores que se propôs reformular o marxismo em termos filosóficos e sociológicos. Por ser de família judia, em 1934 emigrou para os EE.UU., onde
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permaneceu até a morte. Tornou-se o filósofo da contestação radical da revolução estudantil de Berlim, em 1968. As obras mais representativas de Marcuse são: Eros e civilização (1955) e O homem unidimensional : estudo sobre a ideologia da sociedade industrial (1964). O objetivo de Marcuse é garantir ao homem “uma existência pacífica, ou seja, liberta de todas as repressões que o oprimem ”. Constata que para sobreviver no mundo, o ser humano deve respeitar o princípio da realidade e, quase sempre, renunciar à satisfação imediata de suas necessidades e de seus prazeres. O indivíduo deve dominar instintos e desejos para a luta, dedicar-se ao trabalho e à organização, que são necessários. Assim, na história, o ser humano subordinou o princípio do prazer ao princípio da realidade. Ora, as sociedades industriais, que avançaram no campo tecnológico, deveriam acabar com essa subordinação, com a repressão dos instintos e dos desejos. A máquina dispensa grande parte do trabalho humano e deveria desembocar numa sociedade de lazer, sem repressão. Ele critica a sociedade capitalista por ter desviado a tecnologia de sua finalidade autêntica, que é a libertação do ser humano. Mas, o capitalismo tecnocrático, segundo Marcuse, continua o caminho da exploração da natureza e do ser humano, buscando o lucro e o poder de um pequeno número. Para ele, a democracia norte-americana do Welfare State é apenas um “totalitarismo doce e sutil”. A razão tecnológica, todavia, reina sobre a sociedade industrial sob aparência s democráticas. Essa é a nova identidade da razão instrumental, pois as novas técnicas consolidam o sistema capitalista, permanecendo a serviço da dominação e da exploração em vez de ser libertadora. Em O homem unidimensional afirma que a democracia tecnológica e capitalista alimenta-se do pensamento conformista, reconhecendo apenas problemas tecnicamente solúveis, pois é um pensamento sem distância nem transcendência, carecendo da dimensão vertical para romper e contestar radicalmente a situação presente. Para Marcuse, as filosofias que se desenvolveram no mundo angloamericano do século XX correspondem ao espírito de continuísmo. Em sua crítica visa ao neopositivismo, à filosofia analítica e linguística como também ao operacionalismo de Bridgman, pois todas essas filosofias carecem de força
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crítica. Elas partilham o espírito funcionalista e tecnocrático, sem propor mudanças. Ele vê a expressão dominante dessa miséria filosófica em Wittgenstein, que se limita a descrever simplesmente o que existe. Segundo Marcuse, esse sistema, que tudo aceita como está, é profundamente desumano. O espírito que anima esse sistema é técnico e unidimensional. Por isso é preciso rejeitá-lo globalmente. Tal recusa é um apelo à revolução contra o regime tecnopolítico reinante, que visa à dominação, em busca de uma mudança qualitativa, dando chance à uma outra razão. Postula lugar para o princípio do prazer sem freio, para uma existência lúdica e criativa, valorizando o sonho, a imaginação, o jogo, a arte, enfim, tudo que se opõe ao racionalismo instrumental. Mas sua utopia é vaga. Permanece fiel à teoria crítica, defendendo apenas o pensamento negativo. Uma leitura atenta de sua obra dá a impressão de ele pleitear a ideologia do mais absoluto naturalismo e do total relativismo. Baseia-se na ilusão de que uma existência vivida no sabor dos instintos traz a liberdade sonhada. É ilusão pensar, como ele, que a espontaneidade lúdica resolva o problema da fome, da miséria e da ignorância. 12.5 Teoria crítica: o homem e a religião Horkheimer, ao contrário de Marx, assumiu uma atitude de interesse e apreço em relação à religião. Manifesta certa abertura teológica em seu escrito A nostalgia do totalmente outro, publicado em 1970. Alguns intérpretes querem ver aí uma teologia negativa. Mas trata-se de um sentimento, que não pode ser justificado racionalmente: “Não podemos apelar para Deus. Podemos somente agir com sentimento interior da presença de Deus em nós”. Marx e Engels partiram do pressuposto de que o aumento das forças produtivas necessitaria máquinas sempre maiores e mais desenvolvidas e que a posse de fábricas seria concentrada nas mãos de um número sempre menor de capitalistas. Consequentemente, cresceria o número dos proletários, cuja miséria e exploração aumentaria cada vez mais. Assim a revolução e o aniquilamento do capitalismo seriam inevitáveis. Eles esperavam, para breve, o salto qualitativo para uma sociedade melhor e mais humana. Mas a passagem do século XIX para o século XX caracterizou-se por um crescimento econômico ímpar, acompanhada
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de numerosas descobertas técnicas que ajudaram a elevar muito o nível de vida, diminuindo, em países europeus, a miséria do proletariado. Em alguns, o Estado começou a intervir na política social e econômica, com a organização da seguridade social, e na política do comércio, com vistas a uma distribuição mais equitativa dos bens produzidos. No século XX, houve novas intervenções, por parte do Estado, superando as análises das condições históricas descritas por Marx. Se alguém quisesse defender as teorias fundamentais de Marx, teria que considerar essas mudanças. A relação entre filosofia e práxis, teoria e mudanças sociais, crítica da religião e crítica da sociedade formam uma unidade. O objetivo de libertar o homem de todas as formas de opressão e realizar sua autonomia plena, numa nova ordem social, permanece. A teoria que projeta essa emancipação não trabalha a serviço de uma realidade já disponível, mas expressa a possibilidade da liberdade do ser humano em uma sociedade nova a ser construída. Nesse contexto, a crítica da religião, que não se limita à discussão dos dogmas e de sua irracionalidade, volta-se à análise das funções que refletem a religião no contexto da vida política e social. Importa, pois, ver a religião em sua significação para a estabilidade dos sistemas e para a legitimação das relações de domínio. K. Marx não tratara, propriamente, da miséria social do século XIX como o problema específico do capitalismo, mas das condições desumanas de produção e a consequente “coisificação” do ser humano, despido de sua dignidade. Nesse ponto entra a teoria crítica. Seus representantes reconhecem os progressos técnicos e o domínio da natureza pelo homem, orientado racionalmente para um fim. A racionalidade técnica permite aumentar a produção de bens de maneira ilimitada. O indivíduo, também o operário, é tratado melhor. A sociedade orienta-se pela produção, venda e consumo de bens. Mas esse progresso é unidimensional, porque renuncia às transformações político-morais e nega a realização da verdadeira liberdade e igualdade. O pensamento, como uma superestrutura e um fenômeno dessa civilização técnica, limita-se a aceitar a situação dada, a elogia e fortalece. Ele perdeu o elemento específico da reflexão, do questionamento crítico. Omite-se, assim, em sua tarefa de iniciar mudanças que conduzam a uma cultura mais humana, através da crítica e transformação do sistema. A razão torna-se simples
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instrumento do aparelho econômico que abrange tudo. Com isso ela torna-se cega para todas as fraquezas e deficiências desse mundo técnico, transformandose em instrumento de acomodação, da minoridade, da estabilização do sistema. Contrariando Marx, segundo Adorno, não se deve esperar a emancipação da luta de classes, sob condução do proletariado. Também o proletariado está dominado por esse pensamento pragmático. Por isso é preciso procurar novo ponto de partida. A nova teoria socialista deverá atacar o problema de maneira mais geral que o movimento operário, na teoria marxista. É a hora de perguntar por que a humanidade, apesar dos progressos técnico-científicos do século XX, ainda não conseguiu emancipar-se de todas as forças opressoras, da exploração, da infelicidade e do sofrimento. Ao contrário, vive numa nova forma de opressão. Nesse processo, a crueldade do nazismo e do stalinismo apenas são sintomas destacados, mas não os únicos. Por isso faz-se necessária uma análise da sociedade que não se limite a muitos fatos antagônicos, isolados. Da mesma maneira, não basta reformar alguns elementos. Antes, é preciso partir da superfície das constatações singulares para penetrar no cerne daquilo que fundamenta essa sociedade, ou seja, é preciso levantar o tapete e varrer a sujeira que ele esconde. Segundo Horkheimer e Adorno, desde o começo da humanidade, o homem é determinado pelo medo da natureza, das ameaças de forças desconhecidas e incontroláveis. Luta pela conservação de sua pessoa e de sua espécie. Emprega a razão, que ele possui, para a luta da sobrevivência. Mas também poderá sucumbir. Determina essa razão, embora ela também seja natureza, como o oposto à natureza, como o outro, o separado. Nisso realiza a divisão entre sujeito e objeto, entre homem e natureza: o homem torna-se senhor; o mundo torna-se objeto irreconciliado ou natureza desencantada, objeto do ter e do querer ter. Nessa perspectiva, a história torna-se a história da dominação do homem sobre a natureza exterior. Esta é objeto de disposições racionais, é subjugada. Assim, progresso é a realidade do permanente desenvolvimento da aplicação instrumental do espírito humano, da opressão progressiva da natureza. Mas, ao mesmo tempo, a natureza interna do sujeito racional penetra no campo de domínio dessa razão instrumental. O próprio criador dessa dominação
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tecnológica torna-se sua vítima, pois, torna-se apenas uma peça, numa grande máquina, à qual dispensa o interesse pelo humano e liquida o indivíduo. A pura racionalidade desenvolve sempre mais o domínio dos aparelhos técnicos, exigindo o pensamento técnico operativo para funcionar. Instrumentos criados pelo homem administram não só o mundo, mas também o homem, a fim de tornálo rentável para o capital. Dessa maneira surgem pressões e exigências às quais o homem se submete. A instância opressora – o sujeito – torna-se objeto e vítima. Segundo H. Marcuse, o produto dessa sociedade tecnicamente sucedida é o homem unidimensional, ou seja, o homem que somente vive, pensa e sente, na dimensão de produção e valorização do capital. O crescimento da produção de bens satisfaz necessidades, como realização de desejos, que o sistema industrial garante, mas permanece repressivo, tornando-se um elemento importante de opressão. Essa sociedade define o que é felicidade, liberdade e necessidade, de tal modo que os indivíduos perdem a liberdade interior para pensar em outra dimensão. Contentam-se com aquilo que a sociedade lhes oferece e impõe. Para conservar a vida biológica, o homem renuncia à possibilidade que sua razão lhe oferece: a busca da autonomia e da emancipação. A civilização amplia o domínio dos aparelhos técnicos e impessoais e exige um pensamento técnico operativo. Com isso não só é alienada a natureza externa, mas também são perturbadas as relações com os semelhantes e do homem para consigo mesmo. Esse processo manifesta suas consequências no desinteresse pelo humano, na liquidação do indivíduo, como exemplificam os campos de concentração do nazismo. Nessa sociedade, a liberdade permanece um puro conceito. Somente é realizável como peça, funcionando na engrenagem de uma grande máquina. O homem não age de acordo com sua vontade autônoma, mas conforme a pressão social. O que é liberdade, felicidade e necessidade é ditado e imposto pelo sistema. Todos os desejos de emancipação, contrários ao sistema, são eliminados. Perdendo a liberdade interior, as pessoas são forçadas a pensar na dimensão material do que é dado. E os homens passam a contentar-se com aquilo que a sociedade lhes oferece. A crítica de Marx foi transferida da base para a superestrutura. A teoria crítica é essencialmente crítica da cultura. Desaparece o otimismo materialista de
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transformar as condições sociais, melhorando-as. A tarefa da teoria crítica é conhecer e tornar manifesto que o homem e sua razão pertencem à natureza, que a dominação sobre a natureza é autodestrutiva. É preciso buscar o restabelecimento de relações de sentido com a vida. O homem precisa encontrar uma nova relação com a natureza. Por isso devemos rever a concepção do mundo com a qual trabalhamos na tecnociência, pois a realidade não corresponde a ela. O mundo, no qual a natureza e o homem estão reconciliados, não passa de uma ideia reguladora, ou seja, uma concepção que não corresponde à realidade. Nesta sociedade não há mais espaço para metafísica, seja na forma filosófica do idealismo ou na forma religiosa. A verdade do ser é ocultada de modo que não haja mais espaço para ela. Uma humanidade dividida dentro de si mesma e separada da natureza não pode conhecer a totalidade da verdade. O espírito, como reflexo de relações coisificadas, está fechado para a transcendência. Por isso a transcendência sequer pode ser expressa. Cada expressão, cada conceito, que visa a verdade, tornam-na objeto. Segundo Horkheimer e Adorno, o judaísmo acertou ao dizer que a verdade só pode ser conhecida sem conceitos. Por essa razão é proibido dizer o nome de Deus ou representá-lo em imagens deste mundo. Deus não se expressa com conceitos que transcendem este mundo. Somente a arte, de modo especial a música, é capaz de indicar para o não-ser. Sem conceitos, somente a arte é capaz, em sua distância das coisas, de expressar mais que o pensamento preso nos conceitos. Obras de arte são autênticos meios do pensar filosófico. Quando se tenta uma aproximação da verdade, palavras só devem ser entendidas como signos. É preciso ter consciência da falsidade dos conceitos e das imagens. Na poesia é possível uma aproximação da verdade, desde que se separe a língua de sua significação. Do ponto de vista do conteúdo, Adorno descreve a metafísica como questão do sentido. Mas a proposição “há sentido” e a outra “não há sentido” transcendem o sensível. São afirmações metafísicas. Apenas constatamos que na sociedade dividida ainda não apareceu sentido. Toda reivindicação, também a da religião, de valor objetivo está destruída e caracterizada como absurda. Nessa sociedade, por um lado, não se pode pensar nem expressar a verdade
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concretamente. Por outro, toda expressão de sentido para o além confirma esse mundo, aumenta seu sofrimento e, com isso, facilita a acomodação dos homens à essa sociedade. Evitando a possibilidade de questioná-la, permanecem os clãs no poder. Ao mesmo tempo encontramos descrições positivas da religião quanto à sua função. Horkheimer define o sentido originário de r eligião como “anseio pelo totalmente outro”, como oposição ao que existe, pois a id eia de um reino de Deus contém a concepção de uma justiça, de uma bondade e verdade plenas; a ideia de um juízo final aponta para a discrepância entre o existente e o possível. A ideia de um absoluto, contida na tradição religiosa, por vezes, sobretudo na maturidade, parece-lhe importante. Com isso o antagonismo da religião, sua força produtiva, consiste, pois, em criticar este mundo em vista da ideia de um mundo justo e mais perfeito. Sob esse aspecto, a teologia marca o anseio de superar a injustiça do mundo presente, e o homicida não triunfará sobre a vítima. Embora nas últimas obras, considerando a mudança de circunstâncias, para Horkheimer, a religião desempenhe um papel diferente, chega a qualificar sua teoria e a de Adorno como “teologia negativa” 83. Analisando o contexto, não se constata uma renúncia ao pensamento materialista-crítico, mas vê-se, na religião, uma alternativa radical ao universo desamparado da dor, de um embrutecimento. Nesse sentido, a política, sem religião e sem metafísica, reduz-se a um mero negócio de expertos. Entretanto, uma moral que não se funda na transcendência, permanece, segundo Horkheimer, indiferente ao conteúdo das exigências morais. A distinção entre disposição de ajudar e ganância, bondade e crueldade, ganância e autodoação, nela não encontra base. De uma moral imanente não se podem deduzir critérios correspondentes para diferenciar essas maneiras de conduta. Sem a teologia, o amor ao próximo perde seu fundamento. Sem a ideia de um Deus, a concepção da verdade e da justiça torna-se insustentável. Horkheimer, contudo, permanece dentro dos limites da análise materialista, na qual a religião é percebida como ilusão. Por isso, depois do iluminismo, não pode ser justificada historicamente. Ela deixa de ser 83 Entrevista
em Der Spiegel , n. 33, 1969, p. 109.
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compreendida a partir de seus dogmas para ser compreendida a partir de sua função social. Portanto, a crítica da religião de Horkheimer é ambivalente. Se a religião parte da ideia de Deus, pode transcender o mundo, sem que o anseio ou o desejo pelo totalmente outro tenha como base uma verdade objetiva, um conhecimento fundado. Mas, o reconhecimento de um Ser transcendente condiciona a insatisfação com o destino terreno e o desejo de que este mundo não seja a resposta última ao anseio de justiça plena e de sentido. De outra parte, a religião pode colocar-se do lado dos dominadores para legitimar a situação existente neste mundo. Segundo Horkheimer, este é, sobretudo, o perigo daquela teologia que renunciou à ideia da transcendência de Deus, pois, sem Deus, a esperança permanece infundada. Tal teologia perde seu caráter antagônico em relação ao sofrimento e à injustiça. Enfim, a religião continua sendo uma ilusão, pois, o conceito de verdade eterna “sem Deus, carece de fundamento e apoio”. Para Horkheimer, todos os desejos de eternidade e da implantação de uma justiça e de uma bondade universais são comuns ao pensador materialista e ao religioso, em contraste com a estupidez da atitude positivista. A fé num juiz celeste foi uma forma produtiva da crítica ao existente. Horkheimer assume os motivos essenciais da crítica marxista: a religião é essencialmente ideologia, consciência falsa que, por necessidade histórica, desconhece seu condicionamento social. Os impulsos humanistas da tradição religiosa desaparecem na luta por um mundo melhor. Na medida em que este se realiza, desaparece o fundamento para a convicção religiosa. Isso mostra-se, segundo ele, no pacto das igrejas com os poderes governantes. 12.6 A segunda geração da teoria crítica A teoria crítica encontra continuidade na obra de Karl-Otto Apel (1922) e Jürgen Habermas (1929). Ambos atenuam sua importância negativa e acentuam os aspectos positivos e fundadores da razão. Karl-Otto Apel, docente em Frankfurt a partir de 1972, reuniu grande número de artigos em um livro sob o título Transformação da Filosofia (1973). Cabe destacar ainda, entre suas obras, A controvérsia esclarecer/compreender (1979), Discurso e responsabilidade
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(1988). Depois de ter sido assistente de Adorno, foi professor em Heidelberg, junto a H. G. Gadamer e, a partir de 1964, titular em Frankfurt. Durante algum tempo afastou-se de Frankfurt para dirigir o Max Planck Institut . Habermas concentra-se na crítica das ideologias, em obras como Conhecimento e interesse (1968) e A e A técnica e a ciência como ideologia (1968). ideologia (1968). Depois de 1970, ele se dedica a uma filosofia da comunicação, sob os aspectos epistemológico e ético. Publica, em dois volumes, sua obra Teoria do agir comunicativo (1981). comunicativo (1981). A teoria crítica crítica denuncia o conservadorismo acrítico da tradição no presente. A filosofia tradicional, segundo Habermas, erra quando parte do pensamento de uma verdade eterna, universal e definitiva, ignorando as condições reais na sociedade histórica e concreta. Nas condições sociais reais da comunicação, a filosofia tradicional não se interessa em progredir, refletindo uma verdade superior e universal a ser buscada espiritualmente. Na filosofia contemporânea, Habermas critica, por um lado, as implicações conservadoras do objetivismo científico e, por outro, o subjetivismo filosófico, contextualista e historicista. Critica o objetivismo das ciências exatas, pela negação do sujeito em favor do objeto e da objetivação. O positivismo e o cientificismo querem regular a sociedade como uma grande máquina, desconsiderando a liberdade de consciência e a consciência de liberdade. Para a teoria crítica, a sociedade tecnocrática é repressiva, dominadora e conservadora. Habermas acusa de conservadorismo as filosofias contemporâneas da fenomenologia, da hermenêutica e da analítica da linguagem, visando, sobretudo, Heidegger e Wittgenstein. Para ele, a fenomenologia de Heidegger e Gadamer apenas se preocupa com a preservação e o enriquecimento da diversidade das interpretações do mundo e da história. Falta à ética da hermenêutica pósmoderna a capacidade de julgar e não simplesmente compreender. E essa capacidade somente pode vir da razão. Da mesma maneira, segundo ele, a filosofia analítica da linguagem dissolve as exigências críticas da razão na descrição dos “jogos de linguagem”. Desde o início, J. Habermas aprofunda a crítica da Escola de Frankfurt de reduzir toda a razão unicamente à razão instrumental, gerada pela tecnocracia. Afirma que a razão tecnocientífica não é neutra, nem desinteressada. Toda a
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razão é linguística e toda a linguagem, segundo Habermas, é racional. E a racionalidade é comunicacional. Baseado na tese de que não existe pensamento, nem verdade, nem valor sem linguagem, Habermas propõe sua ética da discussão ou ética do discurso. Diz que a linguagem é interação, intersubjetividade, comunicação. A racionalidade tecnocientífica é operativa e eficaz, mas tem sentido e legitimidade humana apenas em função de acordos e orientações simbólicos. A solidariedade simbólica de uma sociedade é fundamental. Também a legitimidade política está enraizada no entendimento comunicacional. Do ponto de vista da ética do discurso, somente o regime democrático é aceitável porque somente nele pratica-se a legitimação pelo entendimento comunicacional e pelo debate argumentativo e público em busca do consenso. Há teólogos que se interessam pela dialética negativa. negativa. Eles acreditam poder encontrar uma herança veterotestamentária, sobretudo, quanto à corporeidade da existência do homem e da materialidade das coisas, em contraste com o pensamento grego. A questão da teodiceia e a mortalidade do homem levaram Horkheimer, já com idade avançada, a retomar o tema da verdade. Da constatação negativa da finitude não conseguiu passar à abertura ao Infinito. Apenas recorre a um messianismo judaico com elementos gnósticos. A visão da finitude oportunizou-lhe a esperança de que pode haver “um totalmente outro”, outro”, como afirma Horkheimer em Nostalgia do inteiramente outro (1970). Diz que “sobre Deus nada podemos dizer”, e esta afirmação é um princípio da teoria crítica. Quando falamos do absoluto, segundo se gundo ele, só podemos concluir: “O mundo, no qual vivemos, é relativo”. Referindo-se Referindo -se à proibição judaica de imagens, diz crer que esse mandamento existe, porque na religião judaica não interessa tanto como é Deus quanto como é o homem. Adorno e Horkheimer conservam a ideia do simplesmente outro, porque a dialética di alética negativa não pode prescindir dela. Depois do exílio, no segundo período da “teoria crítica”, a qual se apresenta como uma crítica da realidade burguesa, enquanto contradição entre ideal e ação, critica igualmente a razão instrumental, que cada vez se torna mais irracional e decadente. Descobre no próprio iluminismo as raízes dessa decadência. À medida que Horkheimer se distancia do marxismo, isola-se cada
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vez mais. A “teoria crítica” transformou-se transformou -se numa filosofia negativa, inspirando-se na ideia bíblica da proibição do culto das imagens. Alguns conceitos básicos da Escola de Frankfurt podem pode m ser úteis para uma análise da sociedade, desde que não-absolutizados, como teoria crítica, indústria cultural, dialética negativa, entre outros. Mas a teoria crítica dessa Escola também necessita de uma leitura crítica, pois sua estrutura é complexa e frágil. Constitui um vínculo entre a crítica das ciências e a crítica da sociedade em vista do possível.
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XIII TEORIA DA CIÊNCIA
Com a palavra teoria expressamos teoria expressamos o interesse especulativo que o ser humano dispensa ao mundo que o cerca: a admiração pela sua beleza, o esforço por conhecer seu segredo e, a partir daí, elaborar um conhecimento mais universal. Enquanto, para o filósofo Platão, a teoria significa a contemplação das ideias livres das falácias e da mudança de sentidos, o mundo inteligível da verdade, a teoria ou contemplação dos filósofos constitui, para Aristóteles, a atividade mais nobre do homem. Aristóteles considera a teoria como a ciência filosófica de natureza divina. Mas, para ele, a teoria deixou de ser a contemplação das ideias para ser a contemplação da verdade, a ciência em ato, o estudo da realidade, dos princípios, das causas primeiras que presidem ao seu devir. De modo geral, a teoria é a atividade cognitiva do espírito que, não se limitando às aparências sensíveis, tenta penetrar na realidade inteligível das coisas. A partir dos tempos modernos, sobretudo a partir de Kant, predomina a questão de subordinar, ou não, a teoria à prática. Bastaria citar, nesse sentido, o marxismo e o pragmatismo. Quando se define a ciência moderna como teoria da realidade, pensa-se numa teoria pura, isenta de toda finalidade prática. Mas, a ciência moderna, enquanto teoria, é simples elaboração mental da realidade que serve de instrumento para dominar e aperfeiçoar a realidade de acordo com os caprichos de uma vontade insaciável do homem. Hoje, ao falarmos em teoria da ciência, na filosofia, referimo-nos à reflexão sobre os fundamentos e os pressupostos do conhecimento científico. Na sua obra principal Lógica da descoberta científica (1934), científica (1934), Karl R. Popper afirma que a ciência se define essencialmente pela possível refutabilidade de suas hipóteses (princípio da falseabilidade). Sua obra de crítica a Platão, Hegel e Marx,
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A sociedade aberta e seus inimigos, tornou-se referência para a filosofia política liberal. Popper afirma que a ciência não avança fazendo generalizações, a partir de observações, mas fazendo conjeturas ousadas que devem ser testadas. Para ele, a verificabilidade dá força a uma teoria científica. Ao contrário do objetivismo de Popper e da crença no progresso científico, o historiador americano da ciência Thomas S. Kuhn, no seu livro A estrutura
das
revoluções
científicas
(1962),
defende
a
tese
da
incomensurabilidade de diferentes paradigmas, por exemplo, da visão copernicana e da visão ptolomaica de mundo. Segundo ele, o desenvolvimento da pesquisa, de modo algum, se realiza de maneira cumulativa, mas, de tempos em tempos, entra em crise até ocorrer uma revolução espiritual que conduza a novos critérios, novas ideias e concepções. De maneira diferente do falsificacionismo de Popper, o filósofo húngaro Imre Lakatos assumiu o ponto de vista de que uma teoria comprovada, em caso de contradições, somente deveria ser abandonada quando houver uma alternativa melhor. Nos programas científicos distinguiu entre um núcleo teórico, que somente deveria ser abandonado em caso de desvios extremos e pequenas mudanças na teoria. Superando Kuhn e Lakatos, o professor austríaco Paul K. Feyerabend, no exercício da docência nos EE.UU., em sua obra Anything goes, na metodologia científica, defende a tese de que a ciência se desenvolve como a arte pela força da inovação dos artistas e dos cientistas. 13.1 Karl Raimund Popper (1902-1994) Nascido em Viena, naturalizado britânico, Karl Popper conviveu com o Círculo de Viena, sem nunca aderir a ele. Como era de origem judaica, emigrou, em 1937, para a Nova Zelândia, onde, no período de 1937-1945 foi professor de filosofia em Christchurch. Convidado pela London School of Economics, aí exerceu a docência até ser jubilado, em 1969. Durante a estada na Nova Zelândia escreveu A miséria do historicismo (1944) e os dois volumes de A sociedade aberta e seus inimigos (1945); em 1963 publicou Conjeturas e refutações e, em 1972, Conhecimento objetivo.
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Popper colocou a teoria da ciência em novo patamar. Enquanto os adeptos da concepção positivista e empirista da ciência achavam que u ma ciência poderia descobrir sempre mais leis da natureza, através de observações mais exatas, Popper criticou o princípio da universalização indutiva. Em sua Lógica da descoberta científica explica que de observações singulares não se podem concluir proposições universalmente válidas. Em Conhecimento objetivo Popper afirma que “temos expectativas e fortemente acreditamos em certas regularidades (leis da natureza, teorias). Isto leva ao problema de senso comum da indução” 84. Prossegue: “A resposta do senso comum é: Por meio de observações repetidas, feitas no passado, acreditamos que o sol nascerá amanhã porque ele assim tem feito no passado”. Afirma: “A ideia de indução por repetição deve ser produto de um erro, uma espécie de ilusão ótica. Em suma: isto de indução por repetição não existe”85. Se até o momento apenas se observaram cisnes brancos não se pode concluir que todos os cisnes são brancos, pois já o próximo cisne poderia ser de outra cor. Se não se podem demonstrar proposições universais, contudo se podem falsificá-las. Na falsificação, Popper encontra o critério que pode esclarecer o progresso nas modernas ciências da natureza. Uma conjetura ou hipótese nunca se pode verificar totalmente, através de observações, mas pode ser falsificada por exemplos contrários. Segundo ele, o progresso nas ciências consiste em escolher as hipóteses que até o momento resistem ao teste da falseabilidade, pois “devemos encarar todas as leis ou teorias como hipotéticas ou conjecturais”86. Popper é enfático ao afirmar o real, mas entende que os enunciados científicos (e todos os enunciados cognitivos) têm o estatuto de hipótese. E uma hipótese é um enunciado de forma universal que pode ser falsificada, mas não verificada. Um enunciado somente pode ser considerado científico, se passível de falsificação, o que não acontece com os enunciados metafísicos. Para Popper, “toda ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido” 87. 84 POPPER, 85
Karl. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975, p. 15.
Ibidem, p. 18.
86
Ibidem, p. 20.
87
Ibidem, p. 42.
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Segundo Popper, o conhecimento sempre é imperfeito, mas perfectível. A verdade absoluta, todavia, está fora de nosso alcance e, se a alcançássemos, não poderíamos sabê-lo. Popper afirma que a verificação é o falso caminho para fazer ciência. Segundo ele, João Kepler, Galileo Galilei e Isaac Newton foram bem-sucedidos porque submetiam suas hipóteses a sempre novos exames críticos. Uma teoria científica carateriza-se por conjeturas que, em princípio, podem ser negadas. Teorias que escapam a tal exame, ele designa de pseudociência como no caso do “marxismo científico”. Cada hipótese encontra-se, desde logo, dentro de uma teoria, transcendendo o meramente factual. Os fatos, que observamos, admitem muitas e diferentes interpretações. A veracidade de uma teoria sempre é provisória, ou seja, vale até argumento sólido em contrário. Para o racionalismo crítico, todas as nossas teorias científicas apenas são tentativas de aproximação da verdade da qual ninguém dispõe. Em Conhecimento Objetivo escreve: Há excelentes razões para dizer que o que tentamos em ciência é descrever e (até onde possível) explicar a realidade. Fazemo-lo com a ajuda de teorias conjeturais; isto é, teorias que esperamos sejam verdadeiras (ou próximas da verdade), mas que não podemos firmar como certas, ou mesmo como prováveis (no sentido do cálculo de probabilidade), ainda que sejam as melhores teorias que somos capazes de produzir, podendo assim ser chamadas ‘prováveis’ enquanto este termo se mantiver fora de qualquer associação com o cálculo de probabilidade88.
Karl Popper, na sua concepção de uma razão crítica e autocrítica, cita os antigos gregos, como Sócrates, Xenófanes, Tales de Mileto, o grande Nicolau de Cusa e Kant, para justificar sua tese da falibilidade e limitação da capacidade humana de conhecimento. Diversas vezes cita a seguinte passagem de Xenófanes: “Verdade segura nenhum ser humano conheceu e ninguém a conhecerá sobre deuses e todas as coisas das quais falo. Mesmo quando alguém conseguir anunciar a verdade mais perfeita, jamais ele poderá sabê-la. Tudo está permeado por suposição”. Popper não nega a existência de conhecimentos absolutamente verdadeiros, mas o conhecimento absolutamente seguro. Todo o conhecimento científico, no futuro, pode ser revisado ou relativizado. Portanto, ele 88
Ibidem, p. 48.
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rejeita a ideia de um conhecimento da verdade, absolutamente garantido e a possibilidade de fundamentação última do saber, sem, todavia, abandonar o ideal da verdade em geral. A verdade absoluta representa, segundo ele, uma ideia reguladora. Na visão de Popper, muitas concepções científicas e de conhecimento, tanto na tradição do empirismo quanto no racionalismo clássicos, são superadas, referindo-se ao modelo de justificação e fundamentação do conhecimento, baseadas na convicção de que exista um fundamento absolutamente seguro, uma instância última a partir da qual se pudesse justificá-lo de maneira definitiva. No empirismo, tal instância é a observação pelos sentidos e, no racionalismo, é a intuição racional, independente da experiência sensível. Mas tal recurso é insustentável, pois, para a ciência, não existe a última garantia inquestionável da verdade, porque não existe uma revelação da verdade e, consequentemente, nem uma dogmatização do conhecimento. Popper acredita ter resolvido o problema da indução de David Hume. Ela simplesmente não existe. O que parece indução é raciocínio hipotético. Do ponto de vista lógico, enunciados como “todos os cisnes são brancos”, nunca se verificaram totalmente, mas podem ser falseados. Para isso basta encontrar um único cisne que não seja branco. Nossas observações sempre acontecem à luz desta ou daquela teoria. Segundo Popper, toda conduta, em relação ao meio que nos cerca, é movida por expectativas e preconceitos, cuja metodologia geral é a da tentativa do acerto e do erro. Esse princípio carateriza toda evolução que chegou ao ápice no homem. A principal diferença entre Einstein e uma ameba é que Einstein, conscientemente, procura eliminar erros. Popper expressa a evolução do conhecimento científico na seguinte fórmula P 1 – HH – EE – P2, sendo P = problema, HH = hipóteses, EE = eliminação de erro. A pesquisa começa pelos problemas. Para ele, é preciso elaborar hipóteses como tentativa de solução. As hipóteses propostas devem ser testadas. Existe uma assimetria entre verificação e falseação. Muitas confirmações não tornam uma teoria certa (todos os cisnes que vi, são brancos), mas um único fato, negativo falseia a teoria (na Austrália há cisnes pretos) do ponto de vista lógico.
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Dessa maneira, teorias científicas são colocadas à prova. Indicam as condições sob as quais devem ser consideradas falsas. Numa sociedade científica deveriam privilegiar-se as teorias mais testadas. Em sociedades totalitárias, nas quais não há sociedades livres de pesquisadores, imunizam-se ideologias como o marxismo e o facismo contra uma possível falsificação. No seu livro A sociedade aberta e seus inimigos, critica os sistemas totalitários porque não permitem oposição ou crítica, fechando-se ao progresso. Segundo Popper, a discussão com o mundo que nos cerca não começa com observações e percepções, mas, desde o começo, é orientada por interesses. Como crianças nos encontramos com o mundo, com certas expectativas inatas. Mas a realidade não coincide com os próprios desejos e, por isso, inicia um processo de aprendizagem para resolver problemas, cujo esquema geral é o da tentativa e do erro. Esse esquema, que carateriza toda a natureza viva, está mais desenvolvido no homem, na formação de teorias científicas. A solução científica de problemas tem a vantagem, como no caso da biologia, por tratar-se somente de teorias e conjeturas a serem corrigidas, pois, o que se mostra como insucesso, deixamos para trás: enquanto um vivente morre, podemos reformular em pouco tempo uma teoria científica. Popper critica a teoria essencialista da verdade, segundo a qual se possa chegar a uma verdade absoluta. Ele entende o progresso científico como resultado do exame de hipóteses disponíveis. Teorias sempre estão sujeitas a correções. Justamente, essa abertura para possíveis correções e não a defesa dogmática de posições encontradas, caraterizam o pensamento racional. Substitui, assim, a certeza científica pelo progresso científico na procura da verdade. Em outras palavras, teorias não passam de hipóteses ainda não-falsificadas. A teoria do racionalismo crítico de Popper não se exaure na teoria da falseabilidade, mas descreve teorias sucedidas com conceitos livres de contradições, grau de probabilidade, conteúdo, profundidade, a teoria mais sólida no momento ou ousadia de uma teoria. Tais formulações orientam-se no sentido de se privilegiar uma teoria submetida a muitos critérios de exame racional rigoroso. Sobretudo, em sua obra mais recente, Popper concede às teorias, assim testadas, uma maior aproximação da verdade.
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Na Lógica da pesquisa Popper posiciona-se, por um lado, em relação ao empirismo lógico ou neopositivismo do Círculo de Viena e, por outro, em relação à filosofia transcendental de Kant. Entende sua teoria do conhecimento como doutrina do método. Os dois problemas básicos da teoria do conhecimento, para ele, são o problema da indução e o problema da delimitação. O primeiro significa: com que direito, em vista de um número limitado de observações, formulamos juízos universais? O segundo: com que critérios se distinguem proposições da ciência empírica de outras da metafísica? Para Popper, ao afirmar enunciados universais a partir da indução, conclui-se um conteúdo mais amplo que logicamente permitido. Por isso ele substitui o método indutivo, como um procedimento de verificação de proposições científicas gerais a partir de observações pelo método dedutivo hipotético da comprovação de teorias, submetendo hipóteses científicas ao exame crítico da falseabilidade. Popper coloca, pois, o princípio da comprovação em lugar da indução. Para privilegiar teorias ou hipóteses ainda não-falseadas em relação a outras também ainda não-falseadas, o critério é simplesmente pragmático, ou seja, sem fundamento lógico nem empírico. A comprovação de uma hipótese apenas se refere ao procedimento dos exames feitos até o momento. Vejamos um texto que carateriza o caminho prático da ciência: Como surge uma trilha de animal na selva? Algum animal pode romper entre as moitas a fim de alcançar um lugar para beber. Outros animais acham mais fácil usar a mesma trilha. Assim ela pode ser alargada e melhorada pelo uso. Não é planejada – é uma consequência nãopretendida da necessidade de movimento fácil ou rápido. É assim que originariamente se faz um caminho – talvez mesmo por homens, e como podem surgir a linguagem e quaisquer outras instituições que são úteis; e eis como podem dever sua existência e desenvolvimento à sua utilidade. Não são planejadas ou pretendidas e talvez não houvesse necessidade delas antes de começarem a existir. Mas podem criar uma nova necessidade, ou um novo conjunto de alvos: a estrutura-alvo de animais ou homens não é ‘dada’, mas se desenvolve com o auxílio de certo tipo de mecanismo de retrocarga, saído de alvos antigos e de resultados que eram visados ou não89.
O princípio da falseabilidade é, ao mesmo tempo, o limite entre as ciências empíricas e a metafísica. Na ciência empírica, um enunciado é confiável
89
Ibidem, p. 119.
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se pode ser submetido a exame de falseabilidade. Esse critério de delimitação é uma alternativa para o fracassado princípio da verificação empírica do problema da indução. Ao contrário dos positivistas do Círculo de Viena, Popper admite que proposições e teorias metafísicas podem ser fecundas para as ciências empíricas e, com isso, têm sentido. Ele desenvolve o método hipotético-dedutivo. Em relação à base da experiência de hipóteses científicas, essas comprovam-se no decurso do exame e são fixadas convencionalmente pela comunidade científica. Em princípio podem ser revisadas, pois nunca são definitivas. Ele critica, pois, a tese do Círculo de Viena que busca uma base nas proposições protocolares da observação. Para Popper não existe uma base absoluta da observação para as ciências empíricas. Popper aconselha os cientistas a que somente abandonem uma teoria depois de disporem de um paradigma de esclarecimento melhor e se o novo modelo possuir maior profundidade que o anterior, ou seja, quando estiver em condições de explicar melhor as contradições que surgem nas diferentes teorias. Uma teoria é profunda quando: a) esclarece teorias anteriores que foram falseadas; b) consegue esclarecer porque a teoria antiga era válida em certas áreas e em outras não; c) ultrapassa a antiga teoria em muito. Como exemplo Popper cita a teoria da gravitação de Newton que eliminou, com sucesso, as contradições entre as teorias de Kepler e Galilei, integrando seus fundados resultados de pesquisa num plano superior. O grau de comprovação de uma teoria, segundo Popper, diferentemente dos lógicos da indução, não se orienta no grau de probabilidade, mas é reservado à descrição do exame segundo critérios racionais de uma comunidade de pesquisa aberta e livre. Segundo ele, deve considerar-se sempre que, com uma nova teoria, surgem novos problemas a resolver, sendo a ideia da verdade ou probabilidade reguladora. O pensamento de Popper orienta-se na possibilidade do conhecimento objetivo, racional e relacional, sem prender a objetividade do conhecido em critérios antigos e fixos, em modelos ou essências. Ele é um teórico do conhecimento, um idealista, adepto da teoria da correspondência da verdade. São os fatos que contradizem uma teoria. Diferentemente das exigências do Círculo de Viena, não pertence à meta do seu programa de pesquisa examinar as
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hipóteses contraditas pelos fatos, pelo grau de sua própria verificabilidade. Para Popper, conhecimento é uma atividade global que compreende construção e crítica. Seu racionalismo crítico carateriza uma maneira de viver que se interessa mais por apreender que ter razão. Segundo Popper, o espírito humano não se desenvolve apenas no confronto com a natureza, mas confronta-se com as próprias produções, com a linguagem, com problemas objetivos, somente solúveis no sistema linguístico. Ele recorreu à teoria semântica de Tarski, ou seja, à teoria da verdade dependente da linguagem. Em Conhecimento Objetivo escreve: “Assim, a ideia da verdade é absolutista, mas não se pode fazer qualquer alegação de certeza absoluta: somos buscadores da verdade, mas não somos seus possuidores” 90. O matemático polonês Alfred Tarski (1902-1983) mostrou-lhe o caminho de como fatos chegam ao reino das proposições, uma vez que somente existe verdade em relação a proposições. Para Popper, como para Tarski, uma teoria é verdadeira quando corresponde aos fatos. Mas não temos um critério de verdade. O progresso da ciência consiste em eliminar os erros das teorias anteriores e substituí-las por outras mais verossímeis, aproximando-nos da verdade. Popper distingue as funções da linguagem: As linguagens humanas compartilham com as linguagens animais as duas funções inferiores da linguagem: autoexpressão e a sinalização (...). As duas funções superiores mais importantes das linguagens humanas são a função descritiva e a função argumentativa91.
Esta última é a função crítica e pressupõe a descritiva. Distingue, outrossim, três mundos: a) o mundo 1 compreende o mundo dos objetos físicos; b) o mundo 2, abrange os estados de consciência, sentimentos e atos da vontade; c) o mundo 3 é o mundo próprio da lógica, da matemática, o espaço da possibilidade da argumentação racional e da comunicação. É o reino das plausibilidades e das obras de arte. Os três mundos influenciam-se mutuamente.
90
Ibidem, p. 53.
91
Ibidem, p. 121.
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O mundo 3, o das teorias e argumentações, é criado pela consciência humana, adquirindo uma dinâmica própria em possibilidades de combinações, que transcendem a capacidade do indivíduo ou de uma geração. Com o pensamento, o espírito humano abriu-se para um mundo do qual mal se consegue reapropriar. Importante, nesse contexto, é que os problemas que surgem na linguagem, na ciência e na arte, ou seja, no mundo 3 e suas soluções não são de natureza subjetiva, mas objetiva. Se, por exemplo, durante a noite a humanidade fosse privada das máquinas e do conhecimento subjetivo, mas não dos planos de aplicação objetivados nos livros, seria apenas uma questão de tempo para recuperar o conhecimento perdido. O mundo 3 e 2 não só são corrigidos pelo mundo 1, mas, o mundo 3, através de suas teorias e ações, transforma o mundo físico. A teoria do falibilismo de Popper deve ser compreendida como unidade de teoria da ciência e teoria política. Na sua obra de filosofia social A sociedade aberta e seus inimigos postula uma atitude autocrítica que permite que não eu, mas o outro tenha razão e que juntos talvez possamos aproximar-nos mais da verdade. A sociedade pode ser corrigida e melhorada aos poucos, não aos saltos. No pensamento de Popper, o curso do mundo não está rigorosamente (pre)determinado e, por isso, não é plenamente cognoscível. Nosso conhecimento sempre manterá um caráter provisório, hipotético. Sua filosofia carateriza-se, em relação ao Círculo de Viena, pela substituição do princípio de verificação pelo critério da falseabilidade; a substituição da tradicional teoria da indução pelo método dedutivo da comprovação; rejeitou a natureza absoluta dos protocolos a respeito dos fundamentos empíricos da ciência; não compartilhou a postura radicalmente antimetafísica dos neopositivistas, pois defendeu a metafísica como progenitora de teorias científicas; em relação à linguagem, afirma que é hora de se preocupar menos com as palavras para dedicar-nos mais às teorias criticáveis. Segundo Popper, a ciência progride eliminando teorias que se mostram falsas. A visão de um único cisne negro, refuta a teoria de que todos os cisnes são brancos.
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13.2 Imre Lakatos (1922-1974) De origem húngara, ainda jovem, emigrou para a Inglaterra. Foi aluno de Popper, que o ajudou a libertar-se do idealismo hegeliano. Em 1961 apresentou e defendeu sua tese de doutoramento sobre o tema Essais in the Logic of Mathematical Discovery , na Universidade de Cambridge. Lakatos propõe uma revisão do racionalismo crítico de Popper, reconhecendo mais espaço ao princípio da indução. Teorias que se comprovaram em relação a experiências, às observações e aos numerosos experimentos, mesmo contrariados por um experimento decisivo, não deveriam ser logo abandonadas. Diz que, se a gente observa o que realmente ocorre no desenvolvimento científico, chama atenção que a rejeição de teorias singulares é menos importante que Popper julga. Para Lakatos, a história da ciência é e deve ser a história de programas de pesquisa em competição. A concorrência de diferentes programas de pesquisa (descoberta científica) é mais decisiva. Por isso, propõe que certas proposições universais sejam concebidas como núcleo central de um programa de pesquisa. Enquanto, segundo ele, um programa se encontra em ímpeto progressivo, os cientistas integrantes, em grande parte, ignoram contradições que surgem. Somente quando diminui esse ímpeto começa a dar-se mais atenção às anomalias. O núcleo central da reflexão epistemológica de Lakatos é a ideia de programa de pesquisa científica. Por programa de pesquisa ele entende o processo pelo qual o progresso científico consistirá na aceitação paulatina de teorias que, embora tendo níveis crescentes de universalização, hão de provar a sua validade, deduzindo hipóteses de menor universalidade já previamente aceitas. Atribui ao conceito de prova um significado essencialmente heurístico. Não só teorias podem ser superadas, mas também os argumentos contra elas nem sempre se mostram tão consistentes com o passar do tempo. Por isso sugere falar de rejeição, em vez de falsificação, de uma teoria. Para Lakatos, a ciência é um campo de batalha para programas de pesquisa em vez de teorias isoladas.
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13.3 Thomas Samuel Kuhn (1922-1996) Nascido em Cincinnati, EE.UU., Thomas Kuhn tornou-se conhecido depois da publicação de A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), livro que marcou época na teoria da ciência. Formado em física e especializado em história da ciência, não concebia a ciência como imagem fiel da realidade, mas, à maneira da biologia, como surgimento de espécies sempre novas. Um único conceito não conseguiria explicar o mundo. Por isso cabe desenvolver modelos sempre novos. Diferentemente de Popper, com sua tese do progresso do conhecimento objetivo, Kuhn rejeita o tipo de realismo e racionalismo, baseado na noção de verdade como correspondência e como conceito limite. Segundo ele, a cosmovisão da Antiguidade, da Idade Média e da Modernidade são incomparáveis
entre
si
porque
incomensuráveis.
Ele
afirma
que
no
desenvolvimento científico opõem-se, de maneira incompatível, diferentes paradigmas ou diferentes formas da razão, pois uma comunidade científica constitui-se através da aceitação de paradigmas como, por exemplo, a teoria da evolução de Darwin, a teoria da relatividade de Einstein, etc. Como comunidades religiosas se reconhecem pelos dogmas específicos, uma teoria paradigmática institui uma comunidade científica para o exercício do que Kuhn chama de ciência normal. Fazer ciência normal significa resolver quebra-cabeças. O cientista normal não procura a verdade, mas a novidade aparece necessariamente porque a articulação teórica e empírica do paradigma aumenta o conteúdo informativo da teoria. A imposição de um ou outro paradigma é uma questão discutida entre os pesquisadores. Nem sempre eles recorrem a argumentos racionais, mas muitas vezes procedem de modo retórico ou sofista. Servem-se, não raro, de intrigas, truques e até calúnias para conseguir impor uma teoria. As principais teses de Kuhn podem resumir-se: a) A ciência distingue-se da arte e da filosofia, essencialmente, pelo fato de pesquisadores poderem concordar sobre determinado paradigma (modelo), em vista dos fundamentos de sua disciplina. Sob esse aspeto, a economia seria mais ciência que a sociologia porque os economistas chegaram a um acordo sobre alguns parâmetros de sua área, ao contrário dos sociólogos.
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b) A ciência não começa com a consciente eliminação de erros, como queria Popper, mas pesquisadores sempre realizaram coisas relevantes, sem que se chamasse sua atividade de ciência. Primeiro, pessoas singulares elaboram projetos criativos. Somente quando um desses projetos se impõe e é reconhecido pela comunidade de pesquisadores, pode falar-se de ciência. c) Encontrado o paradigma, começa a ciência normal, ou seja, agora cientistas trabalham os problemas que surgem sobre uma base firme. Kuhn chama este trabalho uma espécie de solução de enigma. d) Quando a ciência normal é questionada por outro paradigma, começa a fase da revolução científica ou da ciência extraordinária. Também não é certo que se imponha o melhor paradigma, embora os vencedores afirmem que a sua argumentação é a mais certa. Diante de anomalias, os cientistas perdem a confiança na teoria que haviam abraçado e emerge um novo paradigma. e) Kuhn elabora seu conceito de ciência sem recurso aos conceitos de verdade e verosemelhança. Segundo ele, a ciência e a evolução progridem não de maneira cumulativa, mas sem plano nem meta preestabelecida por Deus ou pela natureza. Por ciência normal Kuhn entende a aplicação estável de um paradigma. A descoberta de uma anomalia, fenômeno que o paradigma tradicional não consegue explicar, inicia uma revolução científica, ou seja, a busca de um novo paradigma. Quando esse é adotado por uma comunidade científica, fala-se de progresso científico. Normalmente o novo e o velho paradigmas são incomensuráveis por corresponderem a diferentes visões de mundo. Quando um paradigma se afirma, seus defensores o consideram um progresso. As teses de Kuhn motivaram abundante literatura, o que mostra sua relevância no debate contemporâneo da história e da filosofia da ciência. Acentuando a provisoriedade e o convencionalismo das teorias científicas, Kuhn parece ter tocado naquilo que, atualmente, corresponde à prática científica. 13.4 Paul Karl Feyerabend (1924-1994) Entre os teóricos da ciência, Feyerabend, austríaco americanizado, aparece como um anarquista porque considera o anarquismo um excelente
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remédio para a epistemologia e a filosofia da ciência. Para ele, nem a filosofia nem as ciências são algo claramente definido, como afirma em seu livro Contra o método. Kuhn comparou velhos e novos paradigmas e, ao contrário de Popper, apontou para a incomensurabilidade de teorias novas, sem formular objeções contra a ciência moderna como tal. Paul Feyerabend, por sua vez, afirma que na moderna sociedade do Ocidente se supervaloriza a ciência e que o Estado as estimula exageradamente. Em toda parte aposta-se nas capacidades cognitivas e metódicas, enquanto se negligenciam as capacidades artísticas. Não se percebe que na pesquisa não existe um método de validade geral e quase todas as inovações resultaram de transgressões das regras em vigor por se terem apoiado em argumentos extracientíficos. Tais violações, segundo ele, são necessárias para o progresso científico. Feyerabend formula objeções contra o ideal da racionalidade e da objetividade da ciência moderna: a) De modo algum a ciência moderna segue um método claramente definido ou uma lógica de pesquisa. Diz que, se aplicássemos rigorosamente o falsificacionismo de Popper, acabaríamos com a ciência como a conhecemos hoje. b) Em algumas passagens, como no caso da substituição da cosmovisão ptolomaica pela copernicana, diferentes paradigmas criaram uma nova situação ontológica. Em tais discussões não se trata da pura ciência, mas da busca de adeptos a diferentes projetos do mundo. c) Popper afirmou que o ponto de partida para a busca de conhecimento é determinado problema que atordoa o homem. E os problemas são vistos de diferentes maneiras. Mas, a ciência, segundo Feyerabend, desenvolve-se de maneira semelhante à arte, em vista da força inovadora de cientistas e artistas, e, em ambos os casos, carecemos de um critério objetivo para privilegiar determinados projetos em relação a outros. Além disso, teses antigas, hoje abandonadas, como o atomismo de Demócrito, no futuro podem desenvolver nova força, de modo que não temos segurança de que um projeto ousado foi refutado definitivamente. Em vista do exposto, Feyerabend postula um pluralismo teórico na metodologia científica – anything goes – para não limitar a fantasia do pensamento, pois não existe apenas um único método científico. Sob o aspecto da racionalidade não se pode distinguir mito e ciência.
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Referências Bibliográficas
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XIV FILOSOFIA ANALÍTICA DA LINGUAGEM
No século XX surgiram diversas correntes que tomaram a análise da linguagem como ponto de partida e objeto da filosofia. Quando tratamos da verdade de enunciados com a fundamentação de exigências, regras, valores e cosmovisões, fazemos isso na forma de argumentos linguísticos. Por isso, manifestações linguísticas devem ser examinadas por seu valor exato de expressão. Quais as diferentes afirmações e ideias que estão contidas numa única proposição? Além disso, deve indagar-se como expressões linguísticas podem significar algo (semântica) a ser compreendido. A meta de Gottlob Frege, Bertrand Russell, George Edward Moore, como do primeiro Wittgenstein, era reconduzir a linguagem à lógica para, através da construção de uma linguagem ideal, evitar possíveis mal-entendidos. Alguns pensadores atribuíam os dissensos, na história da filosofia, ao fato de, muitas vezes, se responder a uma pergunta sem esclarecer o que exatamente se pergunta. Postula-se, em geral, um modo de pensar mais científico, uma postura científica. Considera-se a atitude do filósofo tradicional “mais a de um poeta”, que prefere edificar a alma em vez de tratar do conhecimento real. Com isso, evidentemente, não se nega a alma, mas, na filosofia, busca-se a clareza dos conceitos, a pureza dos métodos, a responsabilidade pelas teses. Nessas novas correntes filosóficas considera-se que a verdadeira tarefa consiste em investigar a linguagem humana, ou melhor, “clarear a linguagem”. A filosofia analítica não constitui uma frente monolítica e dogmática, mas surgiu como um panorama de investigação, na sua rica diversidade, de variada inspiração, sobretudo no mundo de língua inglesa. Parte das obras de
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Frege, B. Russell, G. Moore e L. Wittgenstein. Pode subdividir-se em duas frentes. Uma dedica-se à pesquisa da linguagem lógico-matemática, como linguagem perfeita, e outra aplica-se ao estudo da linguagem cotidiana ou ordinária como objeto de análise, de modo especial nas Escolas de Oxford e Cambridge. O elemento comum é a concepção da filosofia como atividade linguística ou conceitual. A filosofia da linguagem, no século XX, tornou-se uma espécie de “filosofia primeira”. Tudo indica que o século XX entra rá na história da filosofia como o século da linguagem, do linquistic turn, e da fenomenologia. A filosofia do século XX atribui uma importância extraordinária à questão da linguagem nas mais diversas correntes (analítica, estruturalismo, hermenêutica, neopositivismo, etc.). Desde a Idade Média, na Inglaterra, a questão da linguagem acompanha o empirismo. Outra é a maneira de filosofar centrada sobre a linguagem do empirismo lógico do Círculo de Viena. O pragmatismo americano aborda a linguagem de maneira moderada. Marcante, nesse campo, é a obra do austríaco L. Wittgenstein que expressou grande parte de suas ideias originais na Inglaterra. Esse interesse quase universal pela linguagem deve-se, em parte, ao desenvolvimento da tecnociência. As ciências ocupam-se com a descrição e a explicação da realidade extralinguística. O que resta ao filósofo, nesse caso, é clarear a linguagem. Por outro lado, em vez de se perguntar sobre a percepção ou sobre o espírito, pergunta-se sobre o modo como usamos os termos e as expressões referentes ao campo semântico, uma vez que palavras e símbolos são mediadores da consciência e da experiência humana das coisas. Ao nível da explicação, o homem da tecnociência estabelece com o mundo real uma relação operativa e não apenas simbólica. O homo loquens cede lugar ao homo faber . A linguagem passa a ser vista como uma forma de vida. Na análise, essas filosofias não partem das palavras singulares, como até então o fazia a filosofia da linguagem, na sua relação com o objeto, mas do simples enunciado singular nas suas reivindicações de afirmação. O princípio do contexto significa que o significado linguístico decorre da relação das palavras no enunciado e no uso que dela fazemos.
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14.1 Gottlob Frege (1848-1925) Gottlob Frege pode ser considerado o fundador da moderna lógicamatemática e da filosofia analítica da linguagem. Com sua obra Begriffsschrift (1879) acentuou o aspecto lógico em relação ao gramatical na linguagem. Em Conceitografia, juntamente com Die Grundlagen der Arithmetik (1884) e Grundgesetze der Arithmetik , em dois volumes (1893 e 1903), dedica-se ao seu programa lógico. Friedrich Ludwig Gottlob Frege nasceu em Wismar, na Alemanha. Foi professor de matemática na Universidade de Jena (1896-1918). A. Tarski o considera o maior lógico do século XIX. Por causa da alta abstração de suas considerações lógicas e da sua notação simbólica obscura, seu gênio foi pouco percebido pelos seus contemporâneos. Pensadores como Husserl, Russell, Carnap e Quine inspiraram-se nas novas ideias de seu sistema lógico. Wittgenstein visitou-o mais vezes. Passou a ser reconhecido quando B. Russell e A. N. Whitehead, em sua obra conjunta Principia Mathematica, uma obra que fez época, afirmaram, no prefácio, que deviam a ideia básica do livro à obra de Frege. Ele fez a distinção semântica entre significado (Bedeutung ), sentido (Sinn) e representação (Vorstellung ) do sinal ou símbolo. Frege interessou-se pela crítica da linguagem quando percebeu que alguns problemas básicos da matemática e da lógica decorrem de conceituação linguística imprecisa. Concluiu que se deveria examinar a maneira como funciona a lógica da linguagem antes de passar à filosofia, à lógica e à matemática. Na verdade, Frege, em sua pesquisa, tinha como alvo a solução de um problema de filosofia da matemática. Para cumprir seu objetivo constatou que a lógica clássica era duplamente insuficiente. Era incompleta, pois as relações e propriedades aritméticas seriam relações lógicas mais complexas do que aquelas que a lógica clássica era capaz de representar e, por outro lado, também sua formalização era insuficiente, deixando-se contaminar pela imprecisão da linguagem comum. Por isso seu projeto exigia a elaboração de uma nova lógica, coisa que tentou na sua obra Begriffsschrift (Conceitografia) e nos artigos: Função e conceito, Conceito e objeto e Sentido e significado.
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A nova lógica, elaborada por Frege, expressa-se através de uma linguagem simbólica ideal. A linguagem comum é inadequada para exprimir, com exatidão, propriedades e relações lógicas. Frege estava convencido de que não se pode basear toda a matemática em observações a priori , como queria Kant, mas numa lógica objetiva. Todos os conceitos matemáticos e todas as leis matemáticas decorreriam de proposições lógicas fundamentais. Afirma que o erro da lógica tradicional foi vincular as conclusões por demais à gramática das proposições (sujeito e predicado). Por isso ele analisa proposições com um modelo matemático de função, argumento e valor. Concebe conceitos como funções especiais que, com argumentos correspondentes, formam enunciados. Uma função com a variável x altera seu valor de acordo com o argumento (número) colocado no vazio. Assim, por exemplo, a função “a capital de x” pode ser formulada ao introduzir o argumento “Alemanha” resultando daí o valor “Berlim”. Segundo Frege, uma linguagem reformulada tem a vantagem de suas proposições, de acordo com o princípio lógico do duplo valor, poderem ser examinadas claramente como verdadeiras ou falsas. Sua preocupação era, pois, uma linguagem lógica ideal. Mas ele não entendia essa linguagem ideal como substituta da linguagem cotidiana. Queria atingir o rigor lógico, na condução do pensamento, através da crítica da linguagem. Para entender a que se refere determinada expressão linguística, segundo ele, deve distinguir-se entre representação, significado e sentido. O significado de um nome próprio é o próprio objeto que designamos; a representação que temos ao fazê-lo é totalmente subjetiva; entre ambos, situa-se o sentido que não é tão subjetivo, como a representação, mas ainda não é o próprio objeto, explica Frege no artigo sobre Sentido e significado. Para Frege, expressões linguísticas, como termos singulares, predicados e proposições, possuem um sentido e um significado. Determinar o sentido de uma expressão significa determinar o caminho do locutor/ouvinte à referência. Ele afirma que verdade e falsidade somente se podem distinguir no plano das proposições. Tornou-se célebre seu princípio do contexto de que um enunciado somente pode ser examinado na vinculação (sintaxe) de palavras. A unidade lógica deixa de ser o conceito e passa a ser a proposição. O sentido de
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uma proposição também designa o pensamento. Pensamentos não seriam entidades subjetivas e psíquicas (representação de uma casa, de um cachorro, etc.), mas essências intersubjetivas e objetivas. Um pensamento é uma essência inteligível (invisível) que se expressa na língua. Se o conteúdo da proposição 2 + 3 = 5 é o mesmo para todas as pessoas que a reconhecem como verdadeira. Com isso se diz que não é o produto da alma desse ou daquele, mas é apreendida como tal por todos. Muitas vezes a linguagem obscurece a pureza do pensamento, como triângulos e quadrados na natureza não correspondem à exata situação geométrica. Segundo Frege, maneiras obscuras de expressão linguística conduzem a mal-entendidos que ele quer eliminar, na ciência, através do uso mais perfeito da linguagem. O sentido de um nome próprio como Aristóteles é uma caraterística, por exemplo, “aluno de Platão”. Na linguagem comum um nome próprio, geralmente, está ligado com diferentes caraterísticas e, por isso, tem diferentes sentidos. Na Conceitografia quer eliminar tais ambiguidades através de definições, para evitar os mal-entendidos na mediação de pensamentos e, assim, poder examinar exatamente o valor de verdade ou significado da proposição em questão. Dessa maneira, Frege criou o que hoje se costuma chamar lógica matemática ou simbólica (logística). 14.2 Bertrand Russell (1872-1970) Bertrand Arthur William Russell foi um importante matemático, lógico e analista da linguagem e, ao mesmo tempo, um grande reformador social, político e pedagogo. Pertencente a uma família aristocrática inglesa, doou muito dinheiro a universidades e para projetos educacionais. Politicamente, lutou pelo direito do voto das mulheres nas eleições e pelo pacifismo, razão pela qual foi privado da docência em Cambridge durante a primeira guerra mundial. Combateu o puritanismo na moral sexual. Por sua obra Marriage and Morals (Casamento e moral), de 1929, conquistou o prêmio Nobel, em 1950, para literatura. Na sua autobiografia, Russell escreve: “Três paixões, simples, mas extremamente poderosas, governaram a minha vida: a sede de amor, a procura de conhecimento e uma infinita compaixão pelos sofrimentos da humanidade”.
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Ateu, sua vida apresenta aspectos desconcertantes e discutíveis, mas digna de admiração. Com linguagem elegante e rigorosa, mas cáustica, questiona todas as certezas estabelecidas. É inimigo de todos os totalitarismos. Rejeita a metafísica e todas as religiões pela falta de fundamentos sólidos como os das ciências. É avesso a todo o dogmatismo e a toda a ideologia. Foi um ativista dos direitos humanos, pacifista, lutando pelo desarmamento nuclear até a morte. Russell tornou-se conhecido no mundo inteiro pela publicação de mais de 70 livros e muitos artigos. Entre eles destacam-se Os princípios matemáticos (1903) e História da filosofia ocidental (1945). Defensor da liberdade humana, foi um crítico das instituições sociais opressoras. Produziu, além disso, uma obra rigorosamente técnica que o coloca entre os principais representantes da filosofia no século XX. Na filosofia, sua preocupação situa-se no campo da lógica, da epistemologia e da metafísica. Depois de abandonar a filosofia de Hegel e de Kant, Russell tentou resolver seus problemas filosóficos através da análise. O método da análise lógica das teorias científicas e dos discursos sobre as coisas ocupa um lugar central na sua filosofia. Esse método produziu efeitos, sobretudo, na análise da linguagem, à qual dedicou-se depois de Principles. Propõe a chamada teoria das descrições, que são símbolos incompletos. Russell é considerado um dos pais do movimento filosófico analítico. No período de 1950-57 manteve um debate em torno da teoria das descrições com Strawson. Este não compartilhava do pressuposto fundamental de Russell, segundo o qual o significado de um nome é o objeto ao qual se refere e que proposições formadas por sujeito-predicado, ou seja, formadas pelos nomes próprios lógicos, necessariamente são verdadeiras ou falsas. Strawson afirma que frases podem ser significativas sem possuir referência e em si não são necessariamente verdadeiras ou falsas. Para Russell, não existe um conhecimento especial que se possa obter do filósofo, pois, o conhecimento científico, o filosófico e aquele que é próprio do senso comum, têm a mesma fonte, as mesmas regras e a mesma atribuição de substituir opiniões comuns por algo mais preciso. O método para chegar a isso é o analítico e lógico, exposto na obra Principia Mathematica, em coautoria com A. N. Whitehead, 3 volumes, (1910-1913) e o da análise da linguagem. Mas, o senso comum é o ponto de partida da ciência e da filosofia. As fraquezas do
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conhecimento do senso comum são: é demasiado seguro de si, vago e contraditório. A filosofia deve lançar uma ponte entre o mundo dos sentidos e o mundo das ciências. Depois de libertar-se do idealismo, Russell passou do realismo extremo à teoria do significado em contexto. Tal passagem ocorre, naturalmente, como consequência de não reconhecer qualquer relevância lógica às categorias de sujeito e predicado. Segundo ele, uma expressão denotativa pode ocorrer em proposições significativas, sem denotar algo. Tais expressões designam símbolos incompletos, ou seja, expressões sem significado, independentes, mas apenas em contexto. Se tais expressões aparecem como elementos independentes da estrutura gramatical da proposição, a elas não corresponde, necessariamente, algo independente de seu significado: “O atual rei da França não existe”, pois nada corresponde ao “atual rei da França”. Na proposição “o atual rei da França é calvo” há um correspondente gramatical, mas na estrutura lógica nada corresponde ao “atual rei da França”. Nessa proposição nada indica um objeto determinado que seria o atual rei da França. A expressão denotativa, no caso, é parte gramatical, mas logicamente irrelevante. Nos trabalhos iniciais dedicou-se ao estudo dos fundamentos da matemática, tentando reduzir a aritmética à lógica. Essa concepção tornou-se conhecida como logicismo. Depois, a filosofia de Russell tornou-se conhecida por seu atomismo lógico. Em 1918, em sua obra A filosofia do atomismo lógico escrevia que “a razão pela qual chamo minha doutrina de atomismo lógico é que os átomos, aos quais desejo chegar como resíduos últimos da análise, são átomos lógicos e não átomos físicos”. Afirma que enunciados complexos podem ser decompostos em suas partes “atômicas”. Para realizar uma tal análise , tem prioridade a frase básica que deve partir de fatos absolutamente indiscutíveis. Neste ponto, critica, sobretudo, a afirmação de Hegel de que a verdade somente se pode apresentar no sistema. Segundo Russell, o mundo consiste de pequenas partes (átomos). As últimas unidades (átomos lógicos) seriam ou coisas (indivíduos) ou predicados, ou seja, relações. No mundo encontramos coisas que tentamos captar com ajuda de proposições. A proposição “chove” é verdadeira ou falsa num determinado estado do tempo. A proposição atômica descreve um fato, afirma que uma coisa tem certa qualidade ou certas relações. Um fato atômico
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torna uma proposição atômica verdadeira ou falsa. Por exemplo: “Sócrates é ateniense” é uma proposição atômica que expressa o fato de Sócrates ser cidadão ateniense. Combinando mais fatos atômicos surgem proposições complexas e moleculares. Dessa maneira, a realidade consta de fatos atômicos que numa linguagem ideal podem ser representados em proposições funcionais da verdade. A finalidade de uma linguagem ideal é colocar a linguagem comum em um sistema lógico, no qual se possa discernir, com precisão, entre verdade e falsidade. Russell, como Frege, admite que o conteúdo de verdade de uma afirmação não está na correspondência entre um conceito e um objeto, mas na relação de um enunciado (proposição) com a rede de relações existentes na realidade. Esta, talvez, seja a diferença essencial entre a filosofia analítica da linguagem de Russell e a fenomenologia de Husserl. Nesse sentido, pode dizerse que Russell desenvolveu a verdadeira filosofia lógico-analítica. Em sua visão, o conhecimento é relação, descreve redes de relações e não uma substância. Por outro lado, rejeita a filosofia analítica da linguagem ordinária do segundo Wittgenstein porque, segundo ele, pratica o culto ao uso comum da linguagem, apesar da linguagem técnica e, em vez de buscar o sentido das coisas e da realidade, ocupa-se com o sentido das palavras. Para Russell, os valores não se deduzem logicamente do conhecimento. Ele foi um defensor da liberdade do indivíduo e do pacifismo, ideias que defendeu coerentemente e o levaram à prisão. Da mesma maneira defendeu o amor livre. Casou-se quatro vezes. Era rigoroso na lógica e na matemática e liberal na vida. Para ele, no fundo, somente as afirmações tautológicas da matemática e as afirmações sintéticas das ciências empíricas têm sentido. Consequentemente, rejeitou toda religião e toda visão metafísica do mundo. Dizia que o mundo não precisa de dogmas, mas de pesquisa livre. No livro Por que não sou cristão, no qual registra o debate com o padre Copleston, jesuíta, na BBC, critica o cristianismo por julgar sua moral desumana e obscurantista. No livrinho No que acredito, publicado em 1925, refletindo sobre a influência que a religião exerce nas pessoas, afirma:
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Não pretendo provar que Deus não existe. Tampouco posso provar que o diabo seja uma ficção. É possível que exista o Deus cristão, assim como é possível que existam os deuses do Olimpo, do Egito antigo ou da Babilônia, mas nenhuma dessas hipóteses é mais provável do que a outra: residem fora da região do conhecimento provável e, portanto, não há razão para considerar qualquer uma delas 92.
Russell afirma que “o medo é a base do dogma religioso” , é “o medo da natureza que dá origem à religião” 93. Para ele “a vida virtuosa é aquela inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento” 94. Segundo Russell, nem o amor sem o conhecimento nem o conhecimento sem o amor podem produzir uma vida virtuosa. 14.3 Ludwig Wittgenstein (1889-1951) Em Wittgenstein encontramos um dos maiores inovadores na maneira de fazer filosofia e uma das personalidades mais interessantes do século XX. Filho de família rica no ramo metalúrgico, durante um tempo foi professor no ensino fundamental. Exerceu, sucessivamente, as funções de engenheiro, arquiteto, jardineiro e professor de filosofia em Cambridge. Sempre agiu com muita dedicação e exatidão. Nascido em Viena, desde criança mostrava grande talento musical e, ao mesmo tempo, para a técnica. Em 1906, iniciou os estudos de Engenharia em Berlim. Em 1908, trabalhou em Manchester, projetando um motor a jato para aviões. Começou a interessar-se sempre mais pela filosofia, lógica e matemática puras. Depois de um encontro com G. Frege em Jena e, por recomendação dele, em 1912, iniciou o estudo da filosofia em Cambridge com B. Russell e G. E. Moore. Mandou construir, para ele, uma cabana em Skolden, na Noruega, para refletir problemas de lógica em lugar tranquilo. Em 1914, criou uma fundação anônima para apoiar artistas como o poeta Rainer Rilke.
92 RUSSELL,
Bertrand. No que acredito. Porto Alegre, L&PM, 2004, p. 32-33.
93
Ibidem, p. 36-37.
94
Ibidem, p. 44.
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Na obra Retratos de Memória, o filósofo B. Russell conta que, por volta de 1911, entre seus alunos, na Universidade de Cambridge, havia um, tão exquisito, que durante todo o semestre não sabia se era apenas um excêntrico ou um gênio. Esse aluno procurou-o com uma pergunta muito estranha: “O senhor poderia fazer a fineza de dizer-me se sou ou não um completo idiota”. Russell respondeu que não sabia e perguntou por que tinha dúvidas. Wittgenstein respondeu-lhe: “Caso seja completo idiota, dedicar -me-ei à aeronáutica; caso contrário, tornar-me-ei filósofo”. Para livrar -se da situação embaraçosa, Russell pediu-lhe que escrevesse sobre um assunto filosófico qualquer. Passado algum tempo, entregou-lhe um trabalho e, depois de ler uma linha sentenciou: “Não, você não deve tornar-se aeronauta”. Em 1918, fez a redação final de seu Tractatus logico-philosophicus. Na prisão de Monte Christo, influenciado pela guerra e pela doutrina cristã, leu obras do escritor russo Leo Tolstoi e decidiu mudar de vida para tornar-se simples professor de escola primária. Renunciou a sua parte de herança do pai, falecido em 1913, a favor de sua irmã, e depois de um curso de formação (1919-1920) foi professor num povoado austríaco até 1926. Durante este período compartilhou a vida com os habitantes do povoado, sempre atento à maneira como as crianças aprendiam a língua e elaborou um dicionário para escolas primárias. Depois foi trabalhar, por algum tempo, como jardineiro num mosteiro, pensando em tornar-se monge. Construiu, em Viena, uma casa para sua irmã. Nesse período (1926-28), encontrava-se com membros do Círculo de Viena para discussões com R. Carnap e M. Schlick. Em 1929, Wittgenstein retornou à sua atividade filosófica. Voltou a Cambridge, onde ministrou seminários sobre linguagem, lógica e matemática. Depois da invasão da Áustria por Hitler, assumiu a cidadania britânica e, em 1939, tornou-se sucessor de Moore na cátedra. Passou, então, a desenvolver sua filosofia tardia na obra Investigações filosóficas (publicação póstuma). Durante a segunda guerra trabalhou no laboratório de um hospital de Londres. Com as palavras de que teve uma vida maravilhosa, morreu de câncer em 1951. Wittgenstein distinguiu entre o mundo do dizível e o mundo do místico, que se pode admirar, mas não comunicar no sentido da lógica da linguagem. Para ele, a filosofia não era doutrina, mas crítica da linguagem com a função de clarear
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os pensamentos. A desconfiança contra a gramática é o primeiro pressuposto da filosofia, pois é a doutrina sobre a forma lógica das proposições científicas. A maioria dos problemas filosóficos é fictícia, pois origina-se do enfeitiçamento da razão, quando a linguagem entra em férias, afastando-se de seu uso comum. Somente sobre fatos se pode julgar objetivamente. Por outro lado, não se pode provar logicamente o que torna uma obra de arte bela e um ato eticamente valioso: “Do que não se pode falar se deve calar ”. Entretanto, Wittgenstein não despreza juízos de valor, considerando-os significativos. Salienta o místico, que não se consegue expressar em proposições lógicas. Diz no Tractatus: Sentimos que, mesmo que todas as possíveis questões científicas fossem respondidas, nossos problemas vitais não teriam sido tocados. Sem dúvida, não cabe mais pergunta alguma, e esta é precisamente a resposta95.
Há uma grande diferença entre quem vê os mesmos fatos positivamente e, outro, que os vê negativamente: “O mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes” 96. Questões de valor dizem respeito ao mundo como um todo, fornecendo a luz, na qual alguém vê sua vida. No Tractatus, escrito em 1918, elaborou os princípios de sua linguagem ideal: O mundo é tudo que ocorre. O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas (...). O mundo se resolve em fatos (...). O que ocorre, o fato, é o subsistir dos estados de coisas. O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas). (...) Fazemo-nos figurações dos fatos (...). Na figuração, seus elementos correspondem aos objetos97.
O Tractatus é uma obra curta (cerca de 50 páginas), composta de aforismos, numerados de modo decimal. Cada aforismo principal é desenvolvido desse modo. O último, de número 7, encerra o livro e, ao mesmo tempo, a linguagem e a filosofia: “O que não se pode dizer, deve -se calar”. Para
95 WITTGENSTEIN,
Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1968 (Tradução de José A. Giannotti), 6.52. 96
Ibidem, 6.43.
97
Ibidem, 1.2.
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Wittgenstein, o indizível era o mais importante por relacionar-se com os valores (religiosos, éticos, artísticos) e extrapolar o discurso puramente lógico e científico: “Pensamento é a figuração lógica dos fatos” 98 e “os limites de minha linguagem denotam os limites do meu mundo” 99. Diz, mais adiante, que “o sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo tudo é do modo como é, e tudo ocorre do modo como ocorre; não há nenhum valor nele” 100. O jovem Wittgenstein pensava que linguagem e mundo se relacionam, no sentido de uma figuração ( Abbildung ), tendo a forma lógica em comum. Proposições com sentido devem poder relacionar-se com estados de coisas. Se não for o caso, são proposições absurdas, tais como as éticas, estéticas, metafísicas, como as da própria lógica, pois não se relacionam a estados de coisas da realidade, mas referem-se ao mistério do próprio ser humano. O problema geral de Wittgenstein é a linguagem, ou seja, como o pensamento e a realidade se relacionam mutuamente. A proposição é um modelo da realidade tal como pensamos que seja. De início, Wittgenstein achava poder reduzir a linguagem à lógica, de modo que se deveriam examinar proposições pelo seu valor de verdade ou pela lógica interna. Aos poucos, superou este ponto de partida para desenvolver uma teoria da linguagem mais pluralista. Concluiu que não se consegue exaurir a linguagem com a análise lógica, tendendo a abandonar o critério da teoria da correspondência e substituí-la pelo critério do valor de uso. No Tractatus, Wittgenstein ainda acha que não existem problemas filosóficos, que a linguagem “figura” o mundo em sua construção lógica: “Dar a essência da proposição, quer dizer dar a essência de todas as descrições e, por conseguinte, a essência do mundo” 101. Depois, nas Investigações filosóficas, não é mais a lógica que ordena o mundo, mas a compreensão prática, concreta dos homens, com suas regras específicas. Em lugar da lógica cristalina, coloca os conceitos de “jogos de linguagem” e “semelhança de família”. Segundo ele, 98
Ibidem, 3.
99
Ibidem, 5.6.
100 101
Ibidem, 6.41. Ibidem, 5.47.11.
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queremos libertar a linguagem de sua imprecisão através de um instrumento que também é impreciso, ou seja, através da própria linguagem. Ele diz: Neste ponto é difícil manter a cabeça erguida, ver que precisamos nos ater às coisas do pensamento cotidiano e não cair no mau caminho onde parece que devemos descrever as últimas sutilezas, o que não podemos fazer com os meios que possuímos. Parece-nos como se devêssemos reconstruir com nossas mãos uma teia de aranha destruída 102.
No Tractatus, Tractatus, Wittgenstein apresenta o pensamento identificado com um processo espiritual interior. Posteriormente rejeita essa ideia. Diz que pensar é uma capacidade a ser considerada como um todo. Quem pensa corretamente, numa determinada situação, em relação a um determinado problema, consegue agir de maneira adequada. Volta-se, então, ao uso da linguagem: Nossa linguagem pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas em diferentes épocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de novos subúrbios, com ruas retas e regulares e com casas uniformes 103.
Para Wittgenstein, falar e agir estão vinculados entre si. Cabe à filosofia clarear as regras de diferentes “jogos de linguagem”. Diz que : O termo jogo termo jogo de linguagem deve, linguagem deve, aqui, salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida. Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem, por meio destes exemplos e outros: comandar e agir segundo comandos, descrever um objeto (...). É interessante comparar a multiplicidade das ferramentas da linguagem e seus modos de emprego, a multiplicidade das espécies de palavras e frases com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem”104.
Segundo Wittgenstein, o significado de uma palavra está no modo de uso. Para mostrar isso ele usa a imagem da caixa de ferramentas:
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1989 (Col. “Os Pensadores”), § 106. 102
103
Ibidem, § Ibidem, § 18.
104
Ibidem, Ibidem, § 23.
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Pense nas ferramentas em sua caixa apropriada: lá estão um martelo, uma tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, um vidro de cola, cola, pregos e parafusos. Assim como são diferentes as funções desses objetos, assim são diferentes as funções das palavras105.
A significação das palavras relaciona-se com a prática social dominante. Aplicar uma regra linguística tem pouco a ver com cálculo matemático. m atemático. Portanto, não cabe reduzir a linguagem à lógica, mas olhar para a multiplicidade de “jogos de linguagem”, que muitas vezes não se conseguem distinguir com precisão, pois formam uma rede de “semelhanças de família” que é complexa. compl exa. Nas Investigações, Investigações, a linguagem é muito mais flexível, sutil e multiforme, tornando-se impossível definir com rigor o que pode ser dito e o que não, pois há muitas lógicas da linguagem cotidiana. Enquanto, no Tractatus, Tractatus, o significado de uma proposição reside na possibilidade de ser verdadeira ou falsa, nas Investigações, Investigações, as palavras somente adquirem sentido pelo uso. Esse pode variar de acordo com as regras das diversas atividades da vida: os jogos de linguagem. Enquanto o Tractatus Tractatus inspirou o Círculo de Viena, as Investigações serviram de apoio à filosofia analítica da linguagem ordinária. Poderia objetar-se a Wittgenstein que, no Tractatus, Tractatus, diz muitas coisas sobre as quais, segundo sua teoria, deveria calar. Sob este aspecto, parece ter sido mais coerente nas Investigações. Investigações. Entretanto, não há dúvida de que, para ele, o mais importante era o indizível, ou seja, o místico.
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105
Ibidem, Ibidem, § 11.
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XV FILOSOFIA DA LINGUAGEM ORDINÁRIA
A filosofia da linguagem de Wittgenstein, segundo a qual não existem “problemas” filosóficos, mas tão somente “perplexidades” da linguagem, influenciou a ordinary language philosophy de Oxford. O programa kantiano da crítica da razão, na filosofia analítica, transformou-se em crítica da linguagem. Enquanto Russell se propunha uma análise de enunciados em vista de uma sintaxe correta, a estrutura do mundo refletida na estrutura da linguagem, G. E. Moore realiza a análise com o objetivo de identificar o significado em vista de uma semântica correta. Esta diferença de interesses conduz Russell à construção de uma linguagem científica, primeiro para a matemática e a física, a partir da linguagem comum, enquanto Moore se concentra totalmente na linguagem tradicional da filosofia e tenta reduzir essa à significação da linguagem ordinária. A filosofia da linguagem, no mundo de fala inglesa, também é designada simplesmente de filosofia analítica. Desenvolveu-se, sobretudo, na Inglaterra, em Cambridge e Oxford. A Escola de Cambridge apresenta uma sucessão de grandes nomes: B. Russell, G. Moore, L. Wittgenstein, J. Wisdom. Na Escola de Oxford destacam-se nomes como G. Ryle, J. L. Austin, P. F. Strawson, A. J. Ayer. Os representantes dessa filosofia não constituem uma escola, pois carecem de um corpo doutrinário comum. O que existe é uma mentalidade, um modo de trabalhar na investigação sobre como funciona a linguagem. Filosofia analítica, diz o Dicionário de Filosofia de Cambridge, Cambridge , “é um termo genérico usado, atualmente, para incluir um diversificado agrupamento de técnicas e tendências filosóficas” filosóficas ”. Até certo ponto, os filósofos analíticos são os herdeiros intelectuais de Frege, Russell e Wittgenstein e G. E. Moore. Grande
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número de defensores da análise, influenciados por Wittgenstein, começaram o que passou a ser chamado filosofia da linguagem comum. Esses filósofos focalizavam o papel das palavras na vida dos falantes comuns, para evitar confusões geradas pela forma gramatical das proposições, nas quais eram apresentadas as teses filosóficas. Comum a esses pensadores parece ser a convicção de que a filosofia está, de alguma forma, em continuidade à ciência. A filosofia analítica, de Cambridge e Oxford, desenvolveu-se em torno de uma série de grandes problemas que vão desde a linguagem religiosa à linguagem metafísica, da ética e da política à estética e à percepção. Foi acusada de praticar o culto do uso da linguagem comum em prejuízo das linguagens técnicas, uma acusação improcedente. Procura compreender melhor o funcionamento da linguagem comum para compreender melhor o mundo dos fatos, ao qual a linguagem se refere. Por isso consideram-na a primeira, mas não a última palavra, pois seus representantes também se dedicam à linguagem da matemática, da lógica, da física, do direito, da psicologia e da teologia. Estudam a riqueza da linguagem comum porque nela estão memorizadas experiências feitas pelo homem ao longo de milhares de anos, nela se expressam as verdades do senso comum. 15.1 Gilbert Ryle (1900-1976) Ryle estudou e lecionou na Universidade de Oxford. Formado e influenciado pela fenomenologia, tematizou uma forma de filosofia da “linguagem comum”, a qual dominou em Oxford nas décadas de 1940 e 1950. Durante a guerra de 1914-18, trabalhou no serviço secreto e, depois, veio a ser professor de Metafísica em Oxford. Editou a revista Mind de 1948 a 1971. Entre suas obras destacam-se O conceito de mente (1949), Collected papers (1971), Dilemas (1954) e Platos Progress (1966). Em sua obra principal O conceito de mente, mente, Gilbert Ryle questiona, sobretudo, o dualismo corpo/mundo do pensamento cartesiano. Ele considera essa uma distinção baseada num erro categorial ou numa confusão categorial. Tais erros ocorrem onde se toma um conceito abstrato como realmente existente, podendo ser pensado como objeto ou coisa. Quando se substantivam verbos
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como pensar, sentir e crer facilmente se é induzido a pensar que algo como um pensamento ou um sentimento ou uma crença exista na forma de substrato espiritual ou físico. Na verdade, segundo Ryle, apenas existe a disposição para pensar, sentir e crer que se expressa em ações correspondentes. Por isso, palavras que designam os sentimentos e os pensamentos não se referem a objetos, mas à conduta humana. Diz que a res cogitans de Descartes, na verdade, é um fantasma existente na máquina. Ryle tornou-se conhecido por suas críticas ao cartesianismo e pelas suas contribuições à filosofia da mente. Chama o dualismo cartesiano de “o dogma do espírito na máquina”, sendo o corpo a máquina. Ele serve-se da análise da linguagem cotidiana. Se alguém é designado como sujeito com “força de vontade”, isto não significa que no seu corpo haja um homúnculo escondido – o Eu, o Espírito, a essência – que o impulsiona, mas apenas se trata de uma conjetura confirmada pela experiência de que esse homem, em determinadas situações, se comporta de determinada maneira. Por isso, Ryle empenhou-se em examinar a linguagem que nos induz, através de palavras e construção de frases, a admitir substâncias espirituais ou, como dizia Wittgenstein, nos enfeitiça para a especulação metafísica. 15.2 George Edward Moore (1873-1958) Moore formou-se na Universidade de Cambridge e nela atuou como professor. Durante seus estudos em Cambridge, Moore foi influenciado por seus professores Mc Taggart, um dos grandes neoidealistas ingleses, e por Sidgwick, que se dedicava ao estudo da moral, admitindo, por um lado, uma forma de intuicionismo na ética e, por outro, reconhecendo no senso comum uma referência constante para análises. Estimulado por esses pensadores, centrou seu interesse em problemas de conhecimento e moral. Em 1903 publicou Principia Ethica, considerada sua obra principal, e Refutação do idealismo no qual se posiciona, afirmando que em todo ato de percepção há dois elementos: o objeto conhecido e o ato de consciência que o percebe. Rejeitou o idealismo em defesa da veracidade do senso comum. Dessa maneira, o ato de conhecimento
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insere-nos na realidade, pondo-nos em contato com algo que não faz parte de nossa consciência. Muito ligado a B. Russell, com ele reagiu contra o idealismo dominante na Inglaterra, no final do século XIX, sendo considerado um dos fundadores da analítica, que praticou. As obras de Moore marcaram o surgimento de uma nova corrente de pensamento que, por um lado, exprimia um tipo de realismo, pois como Russell, sustentava que o mundo consiste numa grande pluralidade de coisas, de espécies radicalmente diferentes, independentes e logicamente distintas e, por outro, retomou e elevou o tradicional empirismo britânico a um desenvolvimento original em conexão com a lógica matemática e o desenvolvimento das ciências no século XX, concluindo que a tarefa do filósofo deve ser, sobretudo, a analítica. G. E. Moore transformou Cambridge num grande centro do novo realismo e da filosofia analítica, formando toda uma geração de pensadores. Dedicou-se à análise da significação de expressões, usadas na linguagem ordinária, e à investigação das principais proposições dos filósofos. Seu método analítico consiste mais numa prática do que num método rigorosamente elaborado. Não constrói um sistema de regras. Aceita como verdadeiros os significados da linguagem corrente porque os acha suficientemente claros, mas, no caso da linguagem dos filósofos, julga necessário investigar o significado das proposições. Faz interessante aplicação do método analítico no seu livro Principia Ethica, elaborando uma doutrina objetivista da natureza moral. Primeiro analisa as coisas boas e, depois, a palavra “bom”, que, para ele, designa uma qualidade irredutível. Por seu recorrente apelo ao senso comum, Moore foi considerado, por alguns, o filósofo do senso comum. Julga não dever incluir, entre as convicções do senso comum, a existência de Deus criador do mundo, nem a sobrevivência da alma depois da morte. Nos Escritos filosóficos afirma que: Se se devesse dar um nome a este primeiro ponto de minha posição filosófica, a saber, minha crença em um nome que tenha sido realmente usado pelos filósofos, na classificação das posições de outros filósofos, penso que se deveria expressá-lo dizendo que sou um desses filósofos
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que sustentaram que a ‘visão do mundo do senso comum’ é, em certas características fundamentais, totalmente verdadeira106.
Através de sua obra Principia Ethica, Moore influenciou profundamente o modo como o problema moral é tratado na filosofia analítica. Seu objetivo é esclarecer “o que entendemos quando perguntamos se uma coisa deve existir como fim em si mesma, é boa em si ou tem um v alor intrínseco”. Segundo ele, o conceito de “bem” é totalmente indefinível a partir de um ponto de vista filosófico. Em Principia Ethica defende que “bom” é noção simples como “amarelo” é noção simples. Como não há meio para explicar a alguém que ainda não sabe o que é amarelo, também não há modo de explicar o que é o bem. Para ele, o bem é algo que se intui. 15.3 Willard van Orman Quine (1908-2000) Quine doutorou-se em Harvard. Seu interesse centrou-se em lógica e, para se aperfeiçoar nesse campo, visitou Viena, Varsóvia, encontrando-se com Carnap. Em 1936 tornou-se professor em Harvard até aposentar-se em 1978. Visitou, depois, vários países proferindo cursos em São Paulo, Tóquio, Adelaide e Oxford. Depois de um tratamento de saúde, na ilha de Madeira, passou vários anos em São Paulo, onde ministrou o primeiro curso de lógica matemática numa universidade brasileira. Desse curso, resultou o livro O sentido da nova lógica, publicado em 1944, originalmente em língua portuguesa. Quine dedicou-se à filosofia da lógica, à epistemologia e à filosofia da linguagem. Afirma que não há linha divisória exata entre verdades analíticas e sintéticas. Entre proposições analíticas (este solteiro não está casado) e proposições sintéticas, que dependem da experiência (este solteiro mora em Porto Alegre), não se consegue distinguir claramente. Verdade linguística (analítica) e verdade de fato (sintética) não se podem diferenciar claramente uma da outra. Na proposição “este solteiro é um homem não -casado”, cremos poder substituir o conceito de solteiro por “homem não-casado” porque são sinônimos.
106 MOORE,
p. 253.
George E. Escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1989 (Col. “Os Pensadores”)
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Mas, na proposição, o termo “solteir o tem menos de dez letras”, tal substituição é impossível porque “homem não-casado” tem mais letras. Se observarmos proposições como “vermelho é uma qualidade”, “todos os solteiros são não casados” e “todas as baleias são mamíferos”, torna -se difícil uma delimitação clara entre analítico e sintético. Para Quine, nenhuma proposição pode ser verdadeira independentemente da experiência e uma rede de outras proposições. O argumento de Quine, de abandonar a distinção entre analítico e sintético, tem consequências filosóficas muito amplas, pois desfaz o limite entre metafísico especulativo e ciência, reforçando a concepção pragmatista como expõe em sua obra mais famosa Palavra e objeto (1960). 15.4 John Langshaw Austin (1911-1960) Austin é considerado o maior expoente da escola da filosofia da linguagem ordinária de Oxford, embora também haja críticos que preferem falar de “ciência” da linguagem, quando se referem à sua filosofia ou linguística. Fez toda a sua carreira acadêmica na Universidade de Oxford. Aí foi titular da cátedra de filosofia moral, morrendo prematuramente. Era especialista em Aristóteles e Leibniz. Conhecia o grego e o latim. Não considera a linguagem ordinária errônea e julga que a pesquisa filosófica deve partir dela porque as palavras e expressões, do uso comum de várias gerações, contêm distinções subtis merecedoras de atenção na reflexão filosófica, para evitar generalizações e abstrações. Segundo ele, o filósofo deve levar a fala comum a sério. Austin descobriu o caráter ativo da linguagem. Toda fala é ação. Criticou a concepção do empirismo lógico da linguagem como uma simplificação, por sempre examinar as proposições para saber se descrevem um estado de coisas ou se constatam um fato, pois quer saber se são verdadeiras ou falsas. Para ele, há proposições que não descrevem, nem relatam ou afirmam nada, ou seja, não são verdadeiras nem falsas como “aposto que você nunca mais voltará a estudar história da filosofia” ou “eu te batizo com o nome de Francisco”. Em tais proposições, todavia, manifesta-se a execução de uma ação que não pode ser caraterizada normalmente como “dizer algo”. Austin chama tais proposições de performativas. O termo inglês to perform significa executar.
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Num curso, ministrado em 1955 e, posteriormente, publicado sob o título Quando dizer é fazer (1962), aprofunda sua distinção na análise do ato de fala, caraterizando três realidades: a) um ato locutório; b) um ato ilocutório, e c) um ato perlocutório. Quando dizemos algo, realizamos, em primeiro lugar, um ato locutório, composto de sons, pertencentes a uma linguagem, dotado de certo sentido e uma determinada relação com a realidade. No ato ilocutório, que depende das circunstâncias em que ele ocorre, o locutor usa a sentença para obter, diretamente, certos efeitos sobre os pensamentos, os sentimentos ou o agir daquele que o escuta. No ato perlocutório é necessário que algo se siga às nossas palavras. A distinção entre o ato ilocutório e o perlocutório não é fácil de ser mantida. John R. Searle (1932), filósofo norte-americano, retoma esta descrição do ato linguístico na sua obra Speech acts (1969). Tomando o uso como critério e guiando-se pelo consenso comunitário, Austin realizou pesquisas dentre as quais se destaca, sem dúvida, a teoria das forças ilocucionárias do ato linguístico. Nela reconheceu o caráter ativo da linguagem, distinguindo os enunciados performativos dos enunciados descritivos. Os primeiros caraterizam-se por realizarem o que designam. Quando, por exemplo, digo prometo está implicado o compromisso de agir. Enquanto os enunciados descritivos são verdadeiros ou falsos, os enunciados performativos executam determinada ação. Ao dizer “eu te batizo”, “peço desculpas” não descrevemos um fato, mas o realizamos e a proposição será feliz ou infeliz, mas não verdadeira ou falsa. Assim, para Austin, a linguagem comum “é a primeira palavra”, mas ela não deve ser mitificada , nem constituir um fundamento irrefutável para a atividade filosófica porque, em princípio, sempre pode ser integrada, melhorada e superada. Em sua estrutura, a linguagem comum é menos incoerente do que pode parecer. Além disso, segundo Austin, ela é o resultado da contribuição de muitas gerações e sua sobrevivência, até hoje, atesta sua capacidade de responder às exigências expressivas das diferentes situações, explica ele em suas obras How to do things with words (1955) e nos Philosophical papers (1961).
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15.5 Peter Frederick Strawson (1919-2006) Pertencendo ao grupo de Oxford, Strawson dedicou-se principalmente à filosofia da lógica e à reconstrução da metafísica. Em sua primeira obra (artigo) “On referring” (sobre referência), em 1950, afirma que a teoria das descrições de Russell não trata de maneira adequada do papel das descrições, como “expressões referentes”, pois pressupõe a falsa tricotomia de que as frases são verdadeiras, falsas ou carentes de sentido. Para Strawson, frases com descrições vazias têm sentido, mas não são verdadeiras nem falsas. Para ele, uma declaração como “o atual rei da França é calvo” não é o mesmo que afirmar sua existência e, por isso, não se aplica a questão da verdade ou falsidade da proposição nesse caso. Em seu primeiro livro Introduction to logical theory (1952) trata de maneira sistemática o problema da relação entre a linguagem corrente e a lógica formal. A partir de 1959, com Individuals (Indivíduos), Strawson passou a preocupar-se com o que chamou de metafísica descritiva, ou seja, elucidação dos aspectos básicos do nosso esquema conceitual como refletidos na linguagem comum. Em 1966, no livro Bounds of sense (Os limites dos sentidos) faz uma leitura crítica de Kant. Tenta mostrar as verdades profundas, referentes às pressuposições da experiência objetiva e do juízo que os argumentos transcendentais de Kant estabelecem, da misteriosa metafísica do idealismo transcendental. Mas essa interpretação de Strawson também recebeu críticas, pois se abandonarmos o idealismo de Kant, que se limita às coisas como aparecem, só poderemos compreender a maneira como o mundo em si deve ser, pois de acordo com a tese verificacionista tais suposições somente têm sentido se puderem ser verificadas. No livro Ceticismo e naturalismo: algumas variedades (1985) afirma que os argumentos transcendentais têm seu lugar dentro da metafísica descritiva, mas não devem ser considerados como tentativas de fornecer uma justificação externa do nosso esquema conceitual.
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15.6 Donald Davidson (1917-2003) Davidson estudou com Quine, na Universidade de Harvard. Fez brilhante carreira acadêmica em várias universidades norte-americanas. Produziu artigos curtos e incisivos. Em suas obras Ensaios sobre ações e eventos (1980) e Ensaios sobre verdade e interpretação (1984) D. Davidson tenta repensar a relação entre linguagem e mundo. A linguagem não é um instrumento com o qual se pode dominar o mundo, mas, ao contrário, somente quem conhece bem o mundo está em condições de falar e compreender. Para o autor, compreensão da linguagem, compreensão dos outros e conhecimento do mundo são, até certo ponto, da mesma origem. Neste sentido, a questão da análise da linguagem, para Davidson, não tem prioridade, mas é parte de um método abrangente e de uma disciplina. A questão da compreensão de expressões linguísticas é parte de uma filosofia abrangente da interpretação, em cujo centro encontra-se o homem com suas ações e convicções para agir. Contra a tese da incomensurabilidade (Thomas Kuhn), Davidson argumenta que quem afirma que A não compreende o que B pensa ou pensou, também afirma possuir uma linguagem na qual pode compreender o que ambos pensam. As opiniões de Davidson, como metafísico, filósofo da mente e da linguagem, sobre as concepções de nós mesmos como pessoas e como objetos físicos complexos tiveram grande impacto sobre a filosofia contemporânea. Considera as relações entre o corpo e a mente como sendo o problema da relação entre eventos físicos e mentais. Discute a explicação e as entidades explicadas como eventos. A causalidade, para ele, é uma relação entre eventos de modo que os eventos são a verdadeira matéria de estudo da teoria da ação. Afirma que os eventos são particulares, concretos, entidades que não se podem repetir, situados no espaço e no tempo. Davidson distancia-se, de um lado, do ceticismo, e, de outro, do fisicalismo de seu professor Quine. Central, na sua filosofia, é a teoria da interpretação radical. Quando imaginamos um linguista que deve interpretar uma língua totalmente desconhecida, somente terá sucesso, segundo Davidson, se se apoiar em manifestações nas quais aquele que fala a língua estrangeira expressa
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o que ele considera como verdadeiro e do que está convencido. Independentemente de suas percepções e ideias, o pesquisador deve considerar em que condições o falante é motivado a tais expressões para poder compreendê-lo melhor. Reúne o maior número possível de proposições, consideradas como verdadeiras para, aos poucos, traduzir para sua língua as expressões incompreensíveis. Se conseguir isso com uma língua nova, chega a conhecer um novo mundo. O “princípio de caridade” ou de benevolência, segundo o qual devemos aceitar que a opinião dos outros em geral está certa, para Davidson exerce um papel importante para compreender e dialogar com outros. Se partíssemos da opinião de que as convicções dos outros são totalmente falsas, não teria sentido qualquer conversa. Comparado com isso, o conhecimento de regras no uso linguístico tem menor significação. 15.7 John Roger Searle (1932) Searle lecionou na Universidade de Berkeley, na Califórnia. É um dos filósofos contemporâneos mais produtivos e combativos. Ele doutorou-se em Oxford, influenciado por Frege, Wittgenstein e J. L. Austin, um dos fundadores da teoria do ato de fala, de quem Searle foi aluno. Inicialmente tornou-se conhecido com obras lógico-linguísticas, ampliando, em alguns pontos, a teoria do ato de fala de Austin, em Atos de fala: ensaio de filosofia da linguagem (1969). Depois, com sua concepção de que a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente, afirma que toda resposta à pergunta sobre o que é significado linguístico ou como a linguagem se relaciona com o mundo remete para fenômenos espirituais como ser de opinião, crer, compreender, ou seja, para estados intencionais do espírito. No centro de sua filosofia está a teoria da intencionalidade. O ponto de partida de Searle é a língua como instrumento de comunicação. Com a obra Atos de fala começa o estudo das formas e tipos de relações possíveis entre comunicantes. Em 1983, na obra Intencionalidade: ensaio de filosofia da mente, assume postura de certa convergência com o pensamento de E. Husserl, enquanto aproxima a ordem da significação de um
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plano de intencionalidade. Considera a semântica de uma linguagem natural como resultado da mente (intencionalidade intrínseca). A intencionalidade é uma caraterística apresentada por muitos estados de espírito, direcionados à alguma coisa, pois tratam de algo. Mas nem todos os estados de espírito são intencionais como os emocionais: desânimo, euforia, etc. Em sua teoria da intencionalidade, Searle está interessado nas propriedades lógicas de estados intencionais, não em seu status ontológico. Em A redescoberta da mente (1992) ataca, mais uma vez, a tese de que o cérebro é um computador digital, desenvolvendo um “naturalismo biológico” não-redutivo, no qual a intencionalidade é um aspecto de alto nível, causado pelo cérebro e nele realizado. Em A construção da realidade social (1995) desenvolve sua visão realista do mundo, começando com um mundo independente de partículas e forças, através de sistemas biológicos evolutivos, capazes de consciência e intencionalidade, até instituições e fatos sociais criados, quando pessoas impõem caraterísticas de status a coisas coletivamente reconhecidas e aceitas. Enfim, a filosofia analítica tem antecedentes longínquos, pois desde os antigos gregos a linguagem foi objeto de estudo. Os sofistas e Platão contribuíram para maior rigor linguístico e conceitual. Aristóteles tratou da relação entre palavras, conceitos e coisas. Na Idade Média desenvolveu-se longa discussão sobre nominalismo e a questão dos universais. A filosofia analítica do século XX considera a linguagem como a realidade sobre a qual incide a análise. O método da análise baseia-se na confluência do tradicional empirismo (inglês) e da análise lógico-matemática. Podem considerar-se seus iniciadores G. Frege, B. Russell, L. Wittgenstein e G. E. Moore. A análise de uma linguagem ideal marca o positivismo lógico e o Círculo de Viena. A filosofia da linguagem comum desenvolveu-se, sobretudo, em Oxford e Cambridge. Inicialmente predominava uma
tendência
antimetafísica,
mas,
hoje,
manifesta
certo
realismo.
Evidentemente, a filosofia não se reduz à analítica, que é um método para esclarecer com rigor o pensamento e a linguagem. A transformação da filosofia ocorre, no século XX, na junção da filosofia analítica com a vertente hermenêutica.
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XVI NEOPOSITIVISMO OU POSITIVISMO LÓGICO
Depois de Descartes e, sobretudo, depois de Kant, a teoria do conhecimento passou a ser o ponto de partida e o centro da filosofia, durante mais de um século. Aos poucos, o interesse deslocou-se para a linguagem, em particular, para seu papel no conhecimento e na ciência, surgindo, ao lado da teoria do conhecimento, a(s) teoria(s) da ciência. Nesse contexto nasce o positivismo lógico, na primeira metade do século XX, muito diferente daquele positivismo do século XIX (A. Comte). Comum a ambos é a valorização da ciência e a vontade de tornar a filosofia “científica”. Mas a abordagem do positivismo ou empirismo lógico carateriza-se, sobretudo, pela importância dada à análise lógica e à linguagem. Entretanto, nessa filosofia, desaparece quase completamente a dimensão política e social. Com o adjetivo “lógico” afirma-se que a lógica exerce um papel fundamental em todos os representantes dessa escola. Inicialmente, o positivismo lógico é a filosofia do Círculo de Viena. A universidade de Viena, com tradicional mentalidade escolástica, tornou-se o terreno para a abordagem lógica das questões filosóficas. 16.1 O Círculo de Viena O positivismo lógico dominou o chamado Círculo de Viena que, inicialmente, se caraterizou por uma aversão radical à metafísica e uma valorização extrema das ciências e da lógica formal. Em Viena, já na primeira década do século XX, reuniam-se, semanalmente, o matemático Hans Hahn e Otto Neurath, entre outros, para discutir as obras de Ernst Mach (1838-1916) e Poincaré (1854-1912) sobre o caráter científico da filosofia. Essas reuniões
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resultaram numa corrente filosófica mais definida, em 1922, quando o alemão Moritz Schlick foi chamado à Universidade de Viena para ocupar a cátedra que era de Ernst Mach. Schlick reuniu um grupo de estudiosos, além de Hahn e Neurath, e, em 1928, fundou a associação Ernst Mach, em torno da qual se constituiu o Círculo de Viena, formado por um grupo de cientistas e filósofos, preocupados com a filosofia da ciência. Em 1929, o grupo de Berlim, que formara a Sociedade pela filosofia científica, liderado por Hans Reichenbach, juntou-se ao grupo de Viena, para desenvolver uma reflexão sobre os fundamentos da ciência. Entre os principais membros do Wiener Kreis (Círculo de Viena) figuravam Moritz Schlick (físico, 1882-1936), Rudolf Carnap (matemático, 18911970), Friedrich Waismann (lógico, matemático, 1896-1959), Otto Neurath (sociólogo, 1882-1945) e outros. Esse grupo mantinha contato com personalidades destacadas como Karl Popper e Alfred Ayer (1910-1989). Inicialmente discutiu o Tractatus logico-philosophicus de L. Wittgenstein, publicado em 1921, considerado uma espécie de bíblia do movimento. Em 1930, Carnap e Reichenbach assumiram a direção da revista Erkenntnis (conhecimento) que se tornou o órgão do neopositivismo. A ascensão de Hitler ao poder e a anexação da Áustria pela Alemanha, em 1938, dispersou os membros do grupo, perseguidos por motivos políticos e raciais. A maioria dos membros emigrou para a Inglaterra e para os Estados Unidos, onde obteve considerável sucesso, pois nos Estados Unidos encontrou clima favorável por semelhanças com o pragmatismo e, na Inglaterra, pelo empirismo dominante, articulando problemas entre a filosofia, as ciências e a linguagem. Os neopositivistas deram uma atenção especial à linguagem. A partir dela tentaram refletir as diferenças entre a ciência e a filosofia. Tinham em comum sua formação científica e queriam tornar científica a filosofia. Partiam do pressuposto de que somente a ciência fala de modo sensato da realidade extralinguística e à filosofia cabe a tarefa de clarear, unificar, sistematizar e analisar a linguagem científica. Cabe à filosofia a função de produzir, numa linguagem científica, a totalidade do discurso verdadeiro. Sua atividade é secundária, metalinguística, tendo como objeto o discurso da ciência. Excluem da filosofia a ambição ontológica ou metafísica. Com o instrumento da lógica formal propõem uma análise rigorosa da linguagem. A filosofia reduz-se a uma análise
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lógica do discurso da ciência para falar das coisas materiais. Inicialmente, os membros do Círculo de Viena estavam convictos de que a lógica, a matemática e as ciências empíricas esgotam o domínio do conhecimento possível. Fortaleceram essa convicção, através de uma leitura empirista do Tractatus de Wittgenstein. Para os neopositivistas, a função da linguagem reduz-se à descrição do real. O enunciado linguístico tem sentido se verificável empiricamente. Os enunciados não-verificáveis, como enunciados metafísicos, religiosos ou estéticos, carecem de sentido. Os enunciados das linguagens formais, lógicas e matemáticas, demonstram-se sem recurso à experiência. Os outros enunciados exigem a verificação pela experiência empírica. Tais são os enunciados das ciências empíricas. Os enunciados formais não oferecem nenhuma informação verdadeiramente nova. Todos os enunciados pertencem a um ou outro t ipo. Segundo os neopositivistas, todo o enunciado tem conteúdos, pois fala de alguma coisa. Mas a distinção entre as coisas e as palavras, entre os objetos e suas designações, para eles, não é problemática. Todos os enunciados linguísticos são reduzidos a descritivos, objetivos, menosprezando a expressão da subjetividade. Enquanto cientista ou filósofo, não há porque posicionar-se no campo moral e político. Quanto muito, podem descrever-se morais e políticas existentes. Nesse sentido, o neopositivismo foi criticado pelo seu nãoengajamento ético-político, pois nutre-se da fé cientificista. Os representantes do Círculo de Viena creem que nenhuma ciência deve falar sua própria linguagem. Por isso reivindicam a unidade da nova ciência que consiste no conjunto das proposições providas de sentido. Tais proposições são enunciadas numa linguagem que podemos analisar do ponto de vista de seu vocabulário, de sua sintaxe, de sua semântica, como sugere o Tractatus de Wittgenstein. Nisso todas as ciências têm um ponto comum porque usam uma linguagem, embora seus objetos sejam diferentes. Deve superar-se a diversidade das ciências através da construção de uma linguagem universal , unificando as ciências. Esta linguagem deve ser fenomênica, ou seja, seus enunciados de base devem referir-se a experiências e sensações, e não a objetos físicos que transcendem a experiência sensível. Com este objetivo R. Carnap escreveu A
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estrutura lógica do mundo (1928). Os críticos logo objetaram que isso não garantiria a objetividade da ciência, pois a experiência é subjetiva. Otto Neurath propõe que se busque a linguagem universal da ciência na física, para unificar as ciências pela unificação de suas linguagens, um projeto que não foi concluído. Mas o positivismo lógico reduziu a metafísica a um conjunto de confusões linguísticas. O metafísico passa a ser considerado “um músico sem talento”. O ataque à metafísica culminou com o artigo de Carnap sobre A ciência e a metafísica diante da análise lógica da linguagem (1931). Os enunciados metafísicos, analisados logicamente, carecem de sentido. Para os neopositivistas, a atitude metafísica baseia-se numa confusão de palavras e coisas. Em outros termos, a metafísica é um discurso sem objeto e, por isso, carente de sentido. Entretanto, o neopositivismo baseia-se ele próprio em proposições metafísicas, como é o caso do princípio de verificabilidade e o postulado da correspondência entre o termo e a coisa. A atitude antimetafísica decorre do núcleo fundamental do positivismo lógico, ou seja, do princípio da verificabilidade, segundo o qual somente têm sentido as proposições que podem ser verificadas empiricamente, de maneira direta ou indireta, pelo recurso aos fatos da experiência. Por isso, também teologia e normas éticas reduzem-se a simples expressão de emoções. Segundo Schlick, tudo que se pode dizer sobre o mundo real é o que as ciências singulares têm a dizer. O Círculo de Viena desfez-se, como tal, em 1938, pela anexação da Áustria ao Reich, por causa da perseguição nazista. Com a emigração de seus membros, o positivismo lógico desenvolveu-se nos EE.UU., na Inglaterra e em outros países. 16.2 Moritz Schlick (1882-1936) Schlick estudou física em Berlim, sob orientação de Max Planck (18581947). Doutorado em física, passou a interessar-se pela filosofia. Começou a refletir sobre o que é conhecimento científico. Em 1918 publicou uma Teoria geral do conhecimento. Chega à conclusão de que o empirismo nega a possibilidade de juízos sintéticos a priori como queria Kant. Segundo Schlick, as proposições às quais Kant conferira caráter sintético a priori podem ser formuladas com precisão
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ou como verdade logicamente necessária – nesse caso é analítica, não-sintética – ou como dotadas de conteúdo empírico. Para Schlick, a maioria das teses metafísicas carece de significado cognitivo, pois são proposições construídas em desacordo com as regras lógicas da linguagem e, por isso, não são falsas nem verdadeiras, mas absurdas. Ele estava convencido de que a lógica, a matemática e as ciências empíricas esgotam o domínio do conhecimento possível. Segundo ele, o conhecimento é relação, coordenação unívoca entre um signo e um dado. Em Positivismo e realismo escreve: O objetivo propriamente dito da filosofia reside em procurar e esclarecer o sentido de afirmações e perguntas. O estado caótico em que se encontrou a Filosofia, durante a maior parte da sua história, deve ser atribuído à circunstância adversa de que, primeiramente, considerou, de maneira excessivamente ingênua, certas formulações como autênticos problemas, sem antes examinar, diligentemente, se tinham realmente sentido; em segundo lugar, julgou que seria possível encontrar as respostas para todas as questões, mediante métodos filosóficos especiais, diferentes dos métodos usados pelas diversas ciências. Ora, pela análise filosófica não logramos decidir se uma coisa é real, mas somente descobrir o que se quer dizer ao afirmar que a coisa é real. Se é este o caso ou não, só podemos descobri-lo através dos métodos habituais da vida diária e da ciência, pela experiência107.
Em artigo sobre O fundamento do conhecimento, publicado na revista Erkenntnis, em 1934, Schlick escreve: Em se tratando de juízos analíticos, a questão da sua validade não oferece problema algum, como é notório. Valem a priori . Não há necessidade nem possibilidade de convencer-se da sua retidão pela experiência, visto que não dizem respeito aos objetos da experiência. Compete-lhes, apenas ‘certeza formal’, ou seja: não são verdadeiras por exprimirem com retidão certos fatos, senão que a sua verdade consiste em serem formadas com retidão formal, isto é, estão em consonância com as definições formuladas por nós espontaneamente108.
Em 1922, Schlick foi convidado para ocupar a cátedra de filosofia das ciências indutivas na Universidade de Viena. Reuniu, ao seu redor, um grupo de
107
SCHLICK, Moritz. Positivismo realismo. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Col. “Os Pensadores”), p. 43. 108 SCHLICK,
Moritz. O fundamento do conhecimento. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Col. “Os Pensadores”), p. 78.
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filósofos e cientistas ligados por interesse comum. Esse grupo fez uma leitura empirista do Tractatus de Wittgenstein, que levou o Círculo de Viena a formular o princípio da verificabilidade, segundo o qual uma proposição restringe-se ao conjunto de dados empíricos imediatos, que, ocorrendo, dão veracidade à proposição e não ocorrendo a falsificam, ou seja, o significado de uma proposição são suas condições empíricas de verdade. Como Wittgenstein, também o Círculo de Viena, retira o significado factual de proposições lógicas e matemáticas, que são tautologias. 16.3 Rudolf Carnap (1881-1970) Carnap foi aluno de Frege, em Jena, dedicando-se ao estudo da lógica. Com suas ideias e sua produção exerceu um papel intelectual decisivo na formação do Círculo de Viena. Em 1935 transferiu-se para os Estados Unidos, lecionando em Chicago e em Los Angeles até 1961. Em 1926 Schlick convidou Carnap para o cargo de professor assistente, na Universidade de Viena. Em pouco tempo tornou-se um dos membros mais destacados. Nessa época, além de numerosos artigos, escreveu duas obras que impulsionaram o empirismo lógico adiante: A construção lógica do mundo (1928) e A sintaxe lógica da linguagem (1934). As duas obras contribuíram para que o Círculo de Viena se apresentasse como um movimento organizado. Em 1929 Carnap, Hahn e Neurath redigiram um manifesto sob o título A concepção científica do mundo: o Círculo de Viena, esboçando o programa básico do empirismo lógico. Em A construção lógica do mundo, Carnap tentou aplicar a nova lógica, desenvolvida por Frege, Russell, Wittgenstein e Whitehead, aos problemas da filosofia e da ciência. Essa obra significou uma afirmação inequívoca de que o trabalho muito importante da filosofia diz respeito à estrutura lógica. Em A sintaxe lógica da linguagem propõe determinar, por um lado, o verdadeiro estatuto teórico da filosofia e, por outro, mostrar a impertinência dos projetos filosóficos tradicionais.
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Em vista das críticas pertinentes de K. Popper e de muitos outros, Carnap amenizou o princípio da verificabilidade pelo da confirmação. Num ensaio publicado sob o título Pseudoproblemas na filosofia, em 1961, escreveu: Se por verificação se entende um estabelecimento completo e definitivo da verdade, então uma sentença universal, por exemplo, uma assim chamada lei da física ou da biologia, nunca pode ser verificada; fato este frequentemente sublinhado. Mesmo se supõe que cada instância particular da lei é verificável, o número de instâncias às quais a lei se refere –, por exemplo, os ponto-espaço-temporais – é infinito e, portanto, nunca poderia ser esgotado por nossas observações, que sempre são em número finito. Não podemos verificar a lei, mas podemos testá-la, testando suas instâncias particulares, isto é, as sentenças particulares que deduzimos da lei e de outras sentenças previamente estabelecidas. Se na série contínua de tais experimentos de teste não se encontrar nenhuma instância negativa, mas o número de instâncias positivas aumentar, então nossa confiança na lei aumentará passo a passo. Deste modo, ao invés de verificação, podemos falar aqui de confirmação gradativamente crescente da lei109.
No processo de confirmação há dois componentes: um subjetivo (as observações) e um convencional. Entretanto, não parece lógico estabelecer quando as observações são suficientes. Portanto, o grau de confirmação também não é um critério lógico, mas pragmático. No famoso artigo sob o título Pseudoproblemas da filosofia, Carnap critica o uso irrefletido da linguagem da filosofia tradicional. Segundo ele, é absurdo ocupar-se com temas como o Ser ou o Nada uma vez que palavras como ser e nada são palavras que só têm sentido quando usadas com o verbo auxiliar e advérbio. Dessarte, a palavra nada somente tem sentido lógico quando se quer negar a existência de uma coisa ou de um conteúdo. Para ele, substantivar palavras como ser e nada apenas conduz a pseudoproblemas. Dois pesquisadores, independentemente de aceitarem ou negarem filosoficamente a existência de um mundo exterior à consciência, escalando uma montanha da África, podem chegar a dados concordes como, por exemplo, a montanha situase num determinado sistema de coordenadas, tem uma altura mensurável, nela brota uma fonte, etc. Tais questões podem ser verificadas enquanto a questão da realidade do mundo exterior (realismo ou idealismo), em princípio, escapa à CARNAP, RUDOLF. Testabilidade e significado. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Col. “Os Pensadores”), p. 172. 109
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verificação e, por isso, é absurda. Carnap queria reduzir todos os conceitos ao fundamento imediato da experiência. Acreditava numa linguagem científica universal (linguagem ideal) construída logicamente para eliminar frases carentes de sentido. Na visão de Carnap, enunciados somente são significativos quando: a) correspondem a uma lógica interna; b) podem ser verificados empiricamente. Questões como “existe um Deus?” ou “qual o sentido do mundo”, porque não podem ser testadas lógica nem empiricamente, são manifestações subjetivas de poetas e místicos. Proposições empíricas são verdadeiras ou falsas, de acordo com a realidade a que se referem.
Referências Bibliográficas
CARNAP, Rudolf. Coletânea de textos. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Col. “Os Pensadores”). ___. The logical structure of the world and pseudoproblems in philosophy . Chicago: Open Court, 2003. ___. The logical syntax of language. Chicago: Open Court, 2002. ___. Testabilidade e significado. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Col. “Os Pensadores”). REALE, Giovanni; ANTISERI, Dário. História da filosofia contemporânea. v. 3. São Paulo: Paulinas, 1991. RUFFING, Reiner. Einführung in die Philosophie der Gegenwart . Paderborn: Wilhelm Fink, 2005. SCHLICK, Moritz. Coletânea de textos. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Col. “Os Pensadores”). ___. Positivismo realismo. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Col. “Os Pensadores”). ___. O fundamento do conhecimento. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Col. “Os Pensadores”).
XVII O NEOTOMISMO
No
século
XX,
na
filosofia,
também
ocorreram
tendências
restauradoras que, diante dos novos problemas, apoiam-se em pensadores do passado para encontrar instrumentos categoriais e conceitos para solucioná-los. Entre as filosofias restauradoras destacam-se o neokantismo, o neo-hegelianismo e o neotomismo. Com o Humanismo e o Renascimento muitas universidades deixaram de estar sujeitas às autoridades eclesiásticas. O estudo da natureza conduziu, mais tarde, à revolução científica. Quando as universidades se abriram às novas correntes de pensamento, pouco a pouco, constata-se que as escolas superiores católicas se tinham isolado da cultura moderna, ensinando, nos cursos de filosofia, uma filosofia eclética, sem um suficiente vigor especulativo próprio para a nova situação. Alguns docentes dos seminários e das faculdades eclesiásticas, então buscaram uma linha especulativa mais sólida. Na Alemanha, a Faculdade de Teologia católica de Tübingen conseguiu dialogar com o idealismo. O jesuíta J. Kleutgen (1811-1883) e Albert Stöckle (1823-1895) tentaram recorrer ao tomismo. Na Itália, o cônego Vincenzo Buzzetti (1777-1824), em seus estudos de filosofia, retornou aos textos de Santo Tomás de Aquino e, em 1850, em Nápolis, jesuítas, fundaram a famosa revista La Civiltá Cattólica. Agostinho Gemelli, socialista convertido, em Milão, fundou a Rivista di filosofia neoescolástica (1909) e, a seguir, a Universidade Católica Sagrado Coração (1921). Também na França desencadeou-se um movimento forte pela restauração do tomismo, através do padre Henrique Domingo Lacordaire (18021872). Ele exerceu forte influência sobre o espiritualismo cristão e foi um inspirador de pensadores como Xavier Zubiri (1898-1983) e outros. Na Espanha,
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a tradição escolástica não chegara a ser interrompida totalmente. Entre os representantes mais significativos do tomismo espanhol pode citar-se Jaime Balmes (1810-1848). 17.1 Caraterísticas do neotomismo Por neotomismo entende-se o movimento filosófico que começa no século XIX como “retorno à doutrina de Tomás de Aquino”, ou seja, à revalorização do aristotelismo através de Tomás de Aquino. Mas nem todos os neoescolásticos são neotomistas, nem todos os filósofos cristãos são neoescolásticos. A neoescolástca é um movimento que abrange, além do tomismo, o escotismo (Duns Escotus). O neotomismo, por sua extensão e prática, muitas vezes torna-se sinônimo de neoescolástica. Há pensadores que se vinculam a Santo Agostinho, outros a Duns Scotus... Por isso neoescolástica e filosofia cristã também não são idênticas. Nos séculos XII e XIII realizou-se uma mudança profunda na sociedade europeia ocidental. As obras de Platão haviam sido assimiladas à doutrina cristã a ponto de, por vezes, o próprio Cristianismo se tornar uma espécie de platonismo, menosprezando a vida neste mundo em vista do mundo ideal ao qual aspiramos. Mas se o corpo é apenas uma morada transitória para a alma, esta somente encontrará o verdadeiro conhecimento quando retornar ao mundo espiritual. Nessa época, no Ocidente surgiram as primeiras traduções islâmicas dos textos gregos de Aristóteles e outros escritos originais, até então desconhecidos. Esses foram trazidos depois que a quarta Cruzada (1202-1204) saqueou Contantinopla. No começo, a hierarquia eclesiástica proibiu a leitura das obras de Aristóteles nas ecolas e recém-fundadas universidades. Mas o frade dominicano Tomás de Aquino, oriundo do Norte da Itália e professor em Paris, deu-lhes uma interpretação cristã. Sua tentativa de conciliar a filosofia de Aristóteles com o Cristianismo platonizado foi tão bem-sucedida que o tomismo veio a ser uma linha de pensamento oficial da Igreja. Nenhuma filosofia de um indivíduo, talvez excetuando Karl Marx, moldou a cultura ocidental, da qual vivemos hoje, mais que Tomás de Aquino.
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Nas obras de Platão e de Aristóteles, sopra um sentimento da liberdade que ainda animava as discussões acadêmicas medievais no tempo de Tomás e Boaventura. Mas no século XIX, o retorno ao tomismo ocorre em circunstâncias totalmente diferentes. Na neoescolástica, as conclusões de qualquer debate filosófico devem conformar-se com a linha de pensamento oficial da hierarquia eclesiástica. O que, em grande parte, garantiu um relativo sucesso ao neotomismo foi, por um lado, sua capacidade de assumir novos problemas, de dialogar não só com outras correntes filosóficas, mas também com a racionalidade científica. O neotomismo carateriza-se como um conjunto de disciplinas: a) uma gnosiologia (teoria do conhecimento) fundada, simultaneamente, na razão e na experiência; b) uma antropologia que harmoniza metafisicamente, no homem, a alma e o corpo, o espírito e a matéria como espírito encarnado; c) uma cosmologia relacionada com a metafísica, mas aberta às descobertas da ciência; d) uma teodiceia que parte da experiência para chegar a existência e transcendência de Deus; e) uma moral racional, baseada na metafísica, que constitui um fundamento para a política e todo o valor humano. Por um lado, trata-se de uma filosofia totalmente aberta, mas por outro, finaliza naturalmente no cristianismo. Se tal identificação pode ser vista como uma força, por outro, pode degenerar em fraqueza. Quando se declarou a morte da metafísica, para muitos todo o edifício desmoronou, carecendo de competência especulativa para fazer a crítica da crítica. Ora, no centro da filosofia tomista está a metafísica ou ontologia, cujo objeto é o estudo do ser enquanto ser. O conceito de ser, por sua vez, é análogo; nele distingue-se um ser atual (ato) e um ser potencial (potência). Todo o ser, com exceção de Deus, é ato e potência. O ato é determinação e a potência determinabilidade. O vir-a-ser ou devir é a passagem da potência ao ato. A substância é a categoria fundamental, o único ser ao qual cabe o ser-em-si. As determinações da substância são acidentes. Ligada à teoria do ato e da potência está a doutrina aristotélica das quatro causas: a matéria (aquilo de que alguma coisa é constituída), a forma (a determinação da matéria), a causa eficiente que age em vista a um fim ou causa final.
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Partindo do suposto de que em todo o ente existente empírico a essência difere da existência, ascende-se a um ente no qual existência e essência coincidem. Este ser é ato puro, chamado Deus. É ente diferente de todo o ente criado. O ente finito, por sua essência, participa da essência de Deus, da mesma forma, a existência dos entes finitos é participação na existência de Deus. O neotomismo é a explicação, em forma de um sistema orgânico, de algumas teses fundamentais, como, por exemplo, a tese aristotélica da potência e do ato, da qual derivam outras, como a do vir-a-ser, da matéria e da forma, da individuação, etc. A doutrina do ato e da potência, por sua vez, depende dos primeiros princípios: o princípio da contradição, de razão suficiente e de causa. 17.2 Desenvolvimento do neotomismo O neotomismo nasce e desenvolve-se, sobretudo, na Igreja católica. Entretanto, nem todos os neotomistas são católicos, nem todos os filósofos católicos são tomistas. O movimento de restauração da tradição escolástica recebeu um grande apoio do papa Leão XIII. Através da encíclica Aeterni Patris (1879) ele impunha o ensino da filosofia de Santo Tomás de Aquino nas escolas eclesiásticas. Havia um clima favorável para a difusão de ideias medievais formadas espontaneamente na Igreja católica, pois o romantismo criara um sentimento de simpatia pela Idade Média. Por outro lado, o iluminismo questionara todo o tipo de autoridade e o neotomismo parecia satisfazer a vontade de restaurar a autoridade. E este aspecto, sem dúvida, também causoulhe dificuldades porque, na filosofia, depois do iluminismo, é difícil reconhecer uma autoridade fora da razão. A encíclica Aeterni Patris de Leão XIII reconhece que a filosofia ajuda a superar obstáculos da fé, reconhecendo um papel especial à filosofia de Tomás de Aquino. O papa distingue duas funções da filosofia: a) como instrumento da Teologia; b) como saber autônomo. Enquanto instrumento da Teologia ou ancilla Theologiae deve ser usada na argumentação teológica. A velha expressão philosophia ancilla theologiae foi deturpada quando se reduziu seu papel a serviço da teologia, em prejuízo de sua razão própria, como saber autônomo.
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Os primeiros neotomistas defrontaram-se com dois grandes problemas: o do conhecimento e o do homem. São dois problemas típicos da modernidade. A gnoseologia neotomista propõe um realismo fundado nas evidências sensíveis e intelectuais e um empirismo equilibrado, afirmando que todo o nosso conhecimento tem origem nos sentidos. Busca uma análise crítica de nossa consciência do conhecimento. O ponto chave é, sem dúvida, a doutrina da abstração segundo a qual o intelecto capta, no sensível concreto, as noções e os princípios universais, válidos para todas as essências materiais e imateriais. Mas essa gnoseologia, a rigor, é um capítulo da metafísica, pois, o conhecimento baseia-se no ser ou é uma atividade do ser. Quanto à antropologia, o neotomismo concebe a alma humana como forma substancial do corpo, afirmando a unidade substancial do homem. As recomendações insistentes de Leão XIII produziram efeito. Em Roma fundou-se a Academia San Tomaso (1880) e fez-se uma edição crítica das obras do Aquinate (editio leonina). Na Universidade de Lovaina (Bélgica) erigiu-se uma cátedra especial para o tomismo (1882), sendo seu primeiro titular Desiré Joseph Mercier (1851-1926), que, mais tarde, veio a ser cardeal. Pelo fato de essa cátedra ser criada numa universidade conferiu-lhe um caráter mais aberto do que o das cátedras romanas. Mercier granjeou à nova cátedra uma repercussão notável, pois cercou-se de um grupo de docentes e o recém-fundado Instituto Superior de Filosofia (1889) logo passou a ter como órgão a Revue neoescolastique de Philosophie (1894). Mercier e seu grupo não somente mostraram maior abertura em relação à filosofia moderna, mas também envolveram-se com os novos problemas postos pela ciência. Ele, pessoalmente, na época, estava muito ligado à psicologia experimental. O neotomismo expandiu-se com a criação da Universidade católica de Nimega (Holanda), os institutos católicos de Paris, Tolouse, as universidades católicas de Quebec, Ottawa, Montreal, Washington, Manila e o Instituto de Estudos Medievais de Toronto. Em 1890 criou-se em Fribourg, na Suíça, a Universidade Católica. Aí o ensino da filosofia e da teologia foi confiado aos padres dominicanos, que fizeram na instituição um grande centro de irradiação do tomismo. Em 1893 fundaram a Revue Thomiste. Nesses e em muitos outros
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centros tentou-se o estudo do pensamento do Aquinate sob os mais diversos aspectos. Enquanto Leão XIII elogiara Santo Tomás e sugeria que se buscasse a sabedoria do Aquinate, Pio X amordaçou, até certo ponto, o pensamento católico através da encíclica Pascendi (1907) ao condenar sumariamente o modernismo como “a síntese de todas as heresias”. Em relação ao clero, determinou, através do Motu Proprio Sacrorum Antistites (1910), que todos os clérigos fizessem o juramento antimodernista antes de receber as ordens maiores. Com isso boa parte do clero ficou à margem do pensamento contemporâneo e do desenvolvimento das ciências. O Concílio Vaticano II (1962-1965) tentou superar o abismo que separava a formação do clero da evolução do conhecimento da humanidade, oferecendo aos pensadores cristãos de todo o mundo novos espaços para a pesquisa e para o diálogo, dispensando especial atenção ao pensamento contemporâneo na fidelidade à mensagem revelada. Afirma o Concílio: (...) que os fiéis vivam em estreita união com os homens de seu tempo e se esforcem por penetrar perfeitamente em seu modo de pensar e de sentir, de que a cultura é expressão. Que saibam harmonizar o conhecimento das novas ciências, das novas doutrinas e das mais recentes descobertas com a moral e o pensamento cristãos 110.
O pensador cristão é, pois, convidado a investigar e expressar as suas próprias teorias com liberdade e coragem, mas com responsabilidade. 17.3 Principais representantes Entre os neotomistas, no campo da filosofia, que se tornaram mais conhecidos na América Latina, no século XX, figura, sem dúvida, o nome de Jacques Maritain.
110
CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et Spes, n. 62.
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a) Jacques Maritain (1882-1975) J. Maritain cursou ciências e letras na Sorbonne de Paris. Entre seus mestres constam Le Dantec, Emile Durkheim, Lucien Lévy-Bruhl, H. Bergson. Convertendo-se ao catolicismo, aos 24 anos de idade, chegou à filosofia tomista. A obra de J. Maritain é muito ampla (60 títulos de livros). Entre elas cabe enunciar: Introdução Geral à Filosofia (1921), Lógica Menor, Arte e Poesia (1953), Os direitos do homem e a lei natural (1942), Os graus do saber (1932), Sobre a filosofia da história (1957), Humanismo integral (1936), O homem e o Estado (1951). Em sua reflexão alia ao rigor metafísico uma grande sensibilidade aos problemas de seu tempo, de modo especial à filosofia social e política, ao problema da educação e da moral, da arte e da poesia. Batista Mondin o caraterizou: Conseguiu dar às doutrinas tomistas uma veste de tal atualidade, mostrando a sua extraordinária correspondência com todos os problemas da filosofia moderna, que as tornou dignas de apreço e fê-las penetrar também em ambientes laicos e protestantes que lhes eram tradicionalmente desfavoráveis111.
Na Introdução Geral à Filosofia estabelece como princípios para relacionar a Filosofia com as ciências particulares: a) cabe à Filosofia julgar todas as outras ciências humanas; b) cabe à Filosofia dirigir as outras ciências, pois seus princípios são absolutamente primeiros dos quais derivam todos os outros; c) cabe à Filosofia defender os princípios de todas as ciências humanas, pois essas os pressupõem; d) a Filosofia, entretanto, é independente das ciências particulares, pois é a ciência livre por excelência. A obra de Maritain inspira-se em Tomás de Aquino, levando a marca de cristã. Por isso seu tomismo tornou-o suspeito para muitos de seus contemporâneos que desejavam maior abertura dos cristãos para a modernidade. Orgulhava-se de ser “antimoderno”, embora sensível aos problemas de sua época. Pensava que a verdade não tinha tempo. Para ele, o tomismo “não era o
111 MONDIN,
João Batista. Curso de Filosofia. São Paulo: Paulinas, 1983, v. III, p. 141.
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pensamento de um século ou de uma seita”. Sua causa principal era a da inteligência da fé. Pode perguntar-se: Não subordinou demasiadamente sua filosofia à teologia? O núcleo de sua filosofia é constituído pela intuição do ser. Confia na inteligência humana. Em Os graus do saber , sua obra principal, distingue o saber racional do saber suprarracional. No primeiro distingue o universo da quantidade, a esfera da ciência físico-matemática e o universo especulativo, a esfera do ser enquanto ser, objeto da metafísica. O conhecimento por conaturalidade, suprarracional, encontra sua expressão mais perfeita na experiência mística, uma vivência das realidades sobrenaturais, como dom de Deus. Aponta a recuperação da dimensão religiosa como caminho para sair da grave crise do pensamento moderno. J. Maritain foi, durante longo tempo, o guia espiritual de muitos cristãos não só no campo da metafísica, mas também no campo político, superando a alternativa do comunismo e do facismo, através do humanismo integral e através da ideia de uma democracia baseada nos princípios da sabedoria cristã. Segundo ele, “a razão não basta para a razão”. b) Martin Grabmann (1875-1949) e Etienne Gilson (1884-1978) M. Grabmann, medievalista alemão, sacerdote, foi professor de teologia dogmática no seminário de Eichstätt (1906-1913), de filosofia na Universidade de Viena (1913-1918) e de teologia na Universidade de Munique (1918-1939). Seu maior mérito decorre dos estudos notáveis que publicou sobre a Escolástica medieval e, mais concretamente, sobre Tomás de Aquino e sua época, lançando uma nova perspectiva de luz sobre o até então cantado “milênio das trevas”. Etienne Gilson, francês, foi professor de Filosofia em Lille, Estrasburgo, Paris e Toronto (Canadá). Entrou na Academia Francesa em 1946. Criou os Archives d’histoire doctrinale et litteraire du moyen age e o Institute of Medieval Studies de Toronto. Como historiador da filosofia traçou o panorama da Idade Média, salientando a originalidade de cada um dos grandes escolásticos e sua influência sobre os modernos, de modo especial sobre Descartes. Fez estudos
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monográficos sobre pensadores como Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Agostinho, Duns Scot que ainda são atuais. Escreveu estudos sobre O espírito da filosofia medieval e A filosofia na Idade Média que ainda hoje merecem toda a atenção dos medievalistas. Segundo ele, o essencialismo, ou seja, a concepção do real como essência, é uma falha na qual incorrem muitas filosofias medievais, com exceção de Tomás de Aquino, e filosofias modernas. Para Gilson, o ser não se reduz à essência. A metafísica do ser é a metafísica do Êxodo 3,14, da revelação de Deus a Moisés como Aquele que é/será. Ressalta a inspiração bíblica da metafísica medieval. Gilson retoma a metafísica tomista, distinguindo entre a essência e a existência, primado da existência, e desenvolve sua gnosiologia em coerência com sua metafísica. Nesta perspectiva defende a ideia de que o cristianismo influenciou a filosofia não só externamente, defendendo a tese da “filosofia cristã”, uma tese evidentemente discutida na época e ainda hoje discutível. c) Joseph Maréchal (1878-1944) J. Maréchal, jesuíta belga, provocou uma verdadeira revolução no campo da escolástica, abrindo-a para o diálogo com a filosofia moderna. Através de sua vasta obra Le point de départ de la métaphysique (5 volumes, quatro de caráter histórico e no quinto expõe suas teorias) deu nova direção ao pensamento filosófico da Escolástica. Estimulados pelo pensamento de Maréchal, autores como J. B. Lotz, K. Rahner, J. de Finance, A. Marc, E. Coreth, B. J. F. Lonergan, entre outros, abriram a filosofia e a teologia ao diálogo com a filosofia crítica do kantismo, com o idealismo alemão, com as correntes fenomenológicas e com as filosofias da existência para revigorar a reflexão cristã. A obra de Maréchal passou a formar uma verdadeira escola. Maréchal foi um dos primeiros neotomistas que se serviu da filosofia transcendental de Kant e Fichte para formular temas de conteúdo da tradição metafísica aristotélico-tomista, superando, com isso, a postura apologética da filosofia escolástica em relação ao idealismo de maneira positiva. O ponto de partida de Maréchal levou a uma reviravolta radical no âmbito da filosofia
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neoescolástica quanto à concepção tradicional de metafísica. Segundo ele, o método transcendental, descoberto por Kant, consiste na elaboração redutiva e dedutiva daquelas condições de possibilidade, sem as quais é impossível a compreensão do conhecer e do querer humanos. No entanto, segundo ele, Kant apenas teria considerado as condições lógicas do conhecimento. A compreensão reflexiva do juízo e de seus conteúdos imanentes é possibilitada por uma ação ontológica fundamental do espírito humano em direção ao ser como tal e, finalmente, em direção ao ser absoluto. Essa concepção do dinamismo do espírito, Maréchal crê encontrar, parcialmente, elaborada na doutrina do inteleto de Tomás de Aquino. Pode discutir-se até que ponto o sistema marechaliano, historicamente, se baseia em Tomás de Aquino. Em todo o caso, parece que o realismo da crítica metafísica de Maréchal se fundamenta em bases sólidas e faz uma leitura apta a unificar ideias da forte síntese medieval e exigências da crítica moderna. Cabe-lhe o mérito de interpretar a metafísica escolástica, no confronto com Kant e com o idealismo alemão, a partir de um ponto de vista transcendental. Com isso, em Le Point de Départ de la Métaphysique criou uma nova modalidade de tomismo, uma versão mais dinâmica. Trata-se de uma filosofia transcendental no sentido de investigar as condições da compreensão e do conhecimento. Ao mesmo tempo, é uma filosofia da transcendência, ou seja, reconhece a natureza aberta do homem. O método transcendental propõe-se a busca da verdade através da reflexão sobre as condições subjetivas do conhecimento. Reflete sobre a estrutura do conhecimento. Isto é possível no ato de conhecimento, no qual o sujeito está conscientemente consigo mesmo, não conhecendo apenas objetos, mas o próprio ato do conhecimento, enquanto implica aspectos não-objetiváveis que a reflexão transcendental tematiza. O termo “transcendental” é tirado de Kant: “Chamo de transcendental a todo o conhecimento que se ocupa não com objetos, mas com a nossa maneira de conhecer objetos. Um sistema de tais conceitos chamar-se-ia filosofia transcendental”. E. Coreth (1919-2006), professor jesuíta na Universidade de Innsbruck (Áustria), elaborou este método, de maneira significativa, para demonstrar a existência de Deus. Ele parte do pressuposto de que todo o homem vive orientado para o mistério absoluto, para Deus, de que no coração de sua
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experiência é atingido por um incondicionado. O indivíduo, em sua liberdade, pode aceitar ou rejeitar o fundamento transcendental de sua existência. Por isso, pode ser crente ou descrente, pode apresentar-se como descrente e ser crente. Karl Rahner, discípulo de Heidegger, assumiu este método e o tornou fecundo para a teologia católica. O neotomismo surgiu e desenvolveu-se, sobretudo, no meio eclesiástico. Tornou-se grande quando competente para dialogar com o pensamento contemporâneo, oferecendo uma síntese ampla e profunda, que contribuiu para superar a estagnação do pensamento católico da época. Entretanto, distanciou-o do mundo quando fechado às novas conquistas da tecnociência.
Referências Bibliográficas
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