A AUTOCONSTRUÇÃO NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO Denise Morado Nascimento
O PAPEL DA AUTOCONSTRUÇÃO NAS ESTRUTURAS DE PROVISÃO HABITACIONAL
A provisão de moradias (produção, uso e distribuição) constitui-se a partir de diversas formas: promoção privada de casas, apartamentos ou loteamentos, promoção pública de casas ou apartamentos, autoconstrução no lote irregular ou na favela, autopromoção da casa unifamiliar de classe média ou média alta, loteamento irregular, entre outros (MARICATO, 2009). Nesse universo, inúmeros pesquisadores tem investigado a habitação visando, em geral, contribuir para a maior eficácia dos processos de distribuição e consumo do ambiente construído, abrangendo temas como déficit, política habitacional, qualidade de projeto, tipologias, formas de ocupação do domicílio e do espaço. Entretanto, concordamos com Maricato (2009, p.34) quando afirma que tal produção intelectual tem auxiliado mais para o “conhecimento da situação de precariedade habitacional existente e dos desvios nas políticas públicas, que se revelaram incapazes de sanar a carência das camadas mais pobres da população”, do que para “desvendar uma leitura mais ampla sobre a produção da habitação ou mais propriamente da estrutura de provisão de habitação, dos interesses e dos agentes envolvidos”. A reorientação temática de pesquisas para a análise da produção per se “tende a ganhar relevância [...] como contribuição à busca de alternativas de provisão de habitação no quadro da crise” (FARAH, 1996, p.41). No Brasil, tal crise tem sido continuamente explicitada pelo déficit habitacional, estimado, no ano de 2008, em 5,8 milhões, sendo que 89,2% estava na faixa de 0 a 3 salários mínimos (FJP, 2010). Em Belo Horizonte, a estimativa das necessidades habitacionais em número de domicílios para 2030 configura-se a partir da: - projeção do déficit habitacional básico no município para 2007 (45.696); - estimativa do número de famílias com “ônus excessivo com aluguel” no m unicípio (26.347); - demanda de remoções (36.965); - demanda demográfica (24.411); - inadequação de domicílios (152.345). 1
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Versão final do Plano Local de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte, apresentada em reunião do Conselho Municipal de Habitação, 14/07/2011 [p.244]. O valor médio do aluguel de habitação de interesse social em Belo Horizonte aproxima-se de 30% do valor correspondente a três salários mínimos em 2010. Sendo assim, optou-se por considerar, neste PLHIS, que o componente “ônus excessivo com aluguel” no Município é constituído pelo número
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Por um lado, o déficit habitacional desvela o não entendimento da moradia como elemento estruturante do espaço urbano e elemento estruturado por nossa formação sócio-econômica. Por outro lado, transformado em problema numérico com perspectiva de uma solução, o déficit habitacional revela não só a má distribuição das moradias mas também a dificuldade dos pobres no acesso ao estoque habitacional adequado, espelhando o fracasso das políticas habitacionais. A literatura publicada sobre as políticas habitacionais brasileiras alicerça as afirmações nas quais os mecanismos públicos e privados estabelecidos para o enfrentamento numérico da questão da moradia vêm historicamente se ancorando e simultaneamente fortalecendo: (1) a prédeterminação do modo de morar dos trabalhadores, apoiada na racionalização do espaço mínimo; (2) a mercantilização da casa própria, associada à produtividade lucrativa da indústria da construção; (3) a expansão do tecido urbano por meio da periferização, assentada em estruturas urbanas pré-determinadas e nos interesses da especulação imobiliária; (4) a negação aos trabalhadores de baixa renda do acesso à terra, aos serviços urbanos, aos espaços públicos e ao crédito, pensados além do assistencialismo ou da doação de produtos; e (5) a exclusão dos cidadãos dos processos de decisão referentes ao espaço urbano (MORADO NASCIMENTO, 2009). Nesse cenário, existe uma significativa fatia da construção habitacional que é representada por usuários que tomam suas decisões relativas à moradia de maneira isolada, sem a interferência ou a participação daqueles que detêm o conhecimento codificado (seja técnico, jurídico, social bem como ambiental, histórico, político, econômico e cultural). Essa fatia, nomeada autoconstrução, é entendida como provisão de moradia onde a família, de posse de um lote urbano, obtido no mercado formal ou informal, decide e constrói por conta própria a sua casa, utilizando seus próprios recursos e, em vários casos, mão-de-obra familiar, de amigos ou ainda contratada. Estudo realizado pela Booz Allen Hamilton, e encomendado pela Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Construção, revela que 84% dos materiais de construção são vendidos para pessoas físicas que constroem e reformam suas casas de maneira autogerida (ABRAMAT, 2005). O mesmo estudo apresenta a estimativa de que do total das unidades habitacionais produzidas, ampliadas ou reformadas no Brasil, sejam formais ou informais, 77%, em média, são em regime de autoconstrução; isto é, sem a participação de profissionais especializados. Em outro estudo, dessa vez coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) e desenvolvido pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP) – O futuro da construção civil no Brasil – a participação da autoconstrução no fluxo de capitais da cadeia produtiva da construção civil, no que se refere à produção de unidades habitacionais, é de modo importante explicitada:
estimado de famílias moradoras de aluguel com renda mensal até três salários mínimos [p.216]. Demanda demográfica significa projeção do acréscimo de número de domicílios de famílias de baixa renda para 2030.
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Figura n.1 – Diagrama de fluxos – produção de unidades habitacionais. Fonte: MDIC/EPUSP, 2003, p.22.
Os fluxos de capital estão indicados em moeda nacional "reais" e o fluxo de matérias estão indicadas em quantidades de unidades habitacionais, por segmento, conforme: - produção própria/preço de custo: individualizada, alto padrão, construção por administração, venda a preço de custo ou mercado; - produção privada imobiliária: condomínio, incorporação, construção e venda a preço fechado, no mercado imobiliário; - produção e gestão estatal: o estado é o gestor da produção ou gestor do financiamento à produção ou aquisição, com objetivos sociais; - autoconstrução: construção de baixa renda para a própria família ou para venda; construção individualizada, informal e formal (MDIC/EPUSP, 2003, p.20). Outros dados importantes vêm da Pesquisa de Orçamento Familiar 2008-2009, feita pelo IBGE, referentes às despesas com moradia do brasileiro, quais sejam aquisição, reforma, prestação, aluguel. No período de Jul. 2008 a Jun. 2009, as despesas dos brasileiros com moradia atingiram R$ 105,4 bilhões (69% corresponde às despesas de aquisição e 31% às despesas com reformas), o que correspondeu a 3,4% do PIB na média do período. Desse valor, 40,8% foram de responsabilidade de famílias com renda superior a R$6.225, as quais representam apenas 9% da
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sociedade brasileira. As faixas de famílias com renda média, entre R$2.490 e R$6.225, que representam 22,6% da população, responderam por 32,6% do investimento. As famílias de renda média baixa ou renda baixa, representando 68,4% na população brasileira, foram responsáveis por 16,3% do investimento (FGV/ABRAMAT, 2010). Ampliando esse panorama, dados de 2008, levantados pela Associação Nacional dos Comerciantes de Material de Construção (ANAMACO, 2008), revelam que há grande espaço para crescimento da construção civil, já que 77% da população diz ter alguma necessidade em termos de reforma/construção (82% da classe D e E), com destaque para MG, ES e Interior RJ e Rio de Janeiro onde mais de 80% dos domicílios necessitam de algum tipo de reforma. Dos locais indicados para possíveis reformas pela Classe D e E, os destaques são a sala, dormitório, cozinha e banheiro; as famílias apontam que as modificações serão feitas por conta própria (40%) ou pela contratação de pedreiros (36%). Ou seja, autoconstrução, sem a participação de profissionais qualificados. Se considerarmos as famílias de baixa renda, a despesa a ser feita com reforma é extremamente significativa na composição dos gastos familiares, que, ao contrário, deveria ou poderia ser destinada a outras instâncias de direito, como alimentação, educação e saúde. 2 Ainda que todos os dados acima desvelem uma ampla faixa de mercado a ser captada, e esse foi o principal objetivo da pesquisa realizada pela interessada ANAMACO, devemos ler esses mesmos dados com outro olhar. O direito à moradia é pilar básico se quisermos combater a pobreza e minimizarmos a desigualdade socioespacial. Na medida em que os números dizem que as classes D e E destinam importantes recursos financeiros para reformas, percebe-se a urgência em entender os processos produtivos da autoconstrução no sentido de poder transformá-los em resposta à diversidade de estruturas sociais e às contínuas transformações dos ambientes. Sendo inegável assumir que os números são não menos do que significativos, parece-nos urgente entender que nas estruturas de provisão da autoconstrução existem importantes interfaces que precisam ser ainda reconhecidas e analisadas para que efetivas transformações possam ser determinadas.
OS AUTOCONSTRUTORES E O SABER-FAZER A MORADIA
De uma maneira geral, a autoconstrução é motivada por vários aspectos, desde a falta de acesso à moradia, passando pelo alto custo na contratação de profissionais até os trâmites burocráticos de aprovação de projeto em órgãos legais. Mas, podemos inferir que a autoconstrução é
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O IBGE divide as categorias das classes sociais de acordo com a renda familiar mensal. Classe E - renda de até R$ 751. Classe D – renda entre R$ 751 e R$ 1.200 por mês. Classe C - renda entre R$ 1.200 e R$ 5.174. Classe B - renda familiar entre R$ 5.174 e R$ 6.745. Classe A – mais de R$ 6.745. Dados de 2011.
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geralmente associada às populações pobres. Esse argumento é externado, por exemplo, em estudos como O futuro da construção civil no Brasil , citado anteriormente, onde a autoconstrução é definida como construção de famílias de baixa renda. O cenário da informalidade e do baixo desempenho sempre associado à autoconstrução deve ser questionado na medida em que, não sendo a autoconstrução exclusividade dos pobres, representando um universo majoritário da provisão habitacional, não pode ser vista como resultado direto da falta de acesso à legislação ou ao conhecimento técnico.
Na contra-mão, há o reconhecimento da grande capacidade das pessoas encontrarem soluções para o morar, incluindo os importantes estudos de John Turner ao longo dos anos 1970. Parte dos estudos, entretanto, categorizam os autoconstrutores, essencialmente os pobres, como aqueles que não dispõem de conhecimento suficiente para construir moradias com planejamento, sem desperdícios e de boa qualidade. 3 Autores apontam a ausência de assistência técnica e a contratação de mão de obra desqualificada como responsáveis pelo baixo desempenho de grande parte das moradias autoconstruídas (VIDAL, 2008). Uma das razões para esse entendimento, segundo Maricato (2000, p.122), é a desinformação sobre a “gigantesca ocupação ilegal do solo urbano” por parte não só de órgãos municipais de aprovação de projeto e equipes de urbanistas dos governos municipais mas também de universidades. Também Abiko, em entrevista a Construção Mercado (MENDES, 2006) alerta: “acredito que muitas polêmicas sobre a autoconstrução aconteçam por desconhecimento, pois se começa a ideologizar o tema por falta de informações mais precisas” ( on-line). Contudo, pesquisadores tem sugerido a elaboração do projeto alinhado com sistema de gestão, a pré-definição do sistema construtivo, a transferência de tecnologia e o treinamento técnico das famílias como garantias de resultados mais eficazes. 4 Mas, de uma forma geral, há “muita divergência quanto á eficácia e oportunidade do apoio à auto-construção, havendo opiniões favoráveis e contrárias a este” (MDIC/EPUSP, 2003, p.46). Nesse cenário, a Lei Nº 11.888/2008, Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social, veio para assegurar às famílias de baixa renda (até 3 salários mínimos) assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção da moradia - trabalhos de projeto, acompanhamento e execução da obra a cargo dos profissionais das áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia necessários para a edificação, reforma, ampliação ou regularização fundiária da habitação. 5 Entretanto, a aplicação da lei está atrelada a dispositivos não criados, revelando preocupações, em sua maioria, relacionadas à ordem financeira, mas, também, à qualidade e à estética das habitações além da necessidade da capacitação de engenheiros e arquitetos.
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Ver Grassiotto, Grassiotto, 2003; MDIC/EPUSP, 2003. Ver Silva et al, 2004; Braga, 2001; Kowaltowski, Ruschel, 1995. 5 Relatório da Comissão de Desenvolvimento Urbano. Fonte: http://www.camara.gov.br. 4
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Inegavelmente, a melhoria dos padrões construtivos é o objetivo principal dos programas vinculados à assistência técnica. 6 Mas, cabe lembrar que “o padrão habitacional ‘ótimo’ ou ‘certo’ ou ‘ideal’ é aquele que a classe trabalhadora acha que pode conquistar através do avanço possível dentro das condições políticas, sociais e econômicas em que se encontra” (VILLAÇA, 1986, p.31). Além disso, a provisão de habitação por meio de processos controlados, próprios da produção em massa, e da intensa injeção de capital dos governos e da indústria da construção já se provou historicamente ineficaz (HAMDI, 1995). Ao fim, a lei tem sido vista como um nicho de mercado a ser alcançado por arquitetos, engenheiros e instituições. 7 Não há de ser a imposição do “saber científico” dos campos da arquitetura e engenharia frente às condições de provisão e aos processos produtivos dos autoconstrutores, garantia para a moradia autoconstruída eficaz . Entendemos que o alcance da Lei de Assistência Técnica somente poderá ser positivo se, e somente se, os processos produtivos da moradia forem compartilhados. Também não há como negar a capacidade das famílias pobres, historicamente desatendidas pela construção habitacional formal, de desenvolverem meios de superar suas demandas através de seus próprios recursos (seja de qualquer natureza). A autoconstrução em favelas e loteamentos periféricos está presente no Brasil desde os anos 1940 e 1970, respectivamente. O morador “adquire ou ocupa o terreno; traça, sem apoio técnico, um esquema de construção; viabiliza a obtenção dos materiais; agencia a mão-de-obra, gratuita e/ou remunerada informalmente; e em seguida ergue a casa” – uma produção doméstica não-capitalista (BONDUKI, 1998, p.281). Contudo, autores como Rod Burgess e Pradilla Cobos têm defendido que a autoconstrução não deva ser encorajada já que o trabalhador, sendo incapaz de alugar ou adquirir uma casa adequada, explora a si mesmo em seu horário de folga. No Brasil, Francisco de Oliveira (2006, p.74) ampliou esse ponto de vista – “o mutirão é uma espécie de apelo aos náufragos: ’salvem-se pendurando-se nos próprios cabelos’". Porém, muito além desse paradoxo, está a realidade da provisão habitacional e o fracasso dos acordos internacionais e das políticas públicas municipais e federais em prover moradia adequada às famílias de baixa renda. A mera existência de recomendações e leis tem sido insuficiente no processo de negociação entre associações de moradores, movimentos sociais, proprietários de
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A Prefeitura Municipal de Belo Horizonte estabeleceu o Programa de Assistência Técnica visando a promover a assistência técnica em arquitetura e engenharia, acompanhada de apoio social e jurídico, para o planejamento e a execução de melhorias habitacionais ou regularização de imóveis residenciais edificados em Assentamentos de Interesse Social ou pertencentes a famílias de baixa renda na cidade como um todo, regularizados ou passíveis de regularização. O Programa apresenta duas modalidades. A primeira delas é a de Apoio à Melhoria Habitacional, que atenderá todos os domicílios contemplados pela modalidade Reforma e Ampliação de Domicílios do Programa de Melhorias Habitacionais. O custo unitário definido para esta modalidade é de R$ 2.500,00. A segunda modalidade prevista é a de Apoio à Regularização de Edificações, que atenderá imóveis localizados nos Assentamentos de Interesse Social que terão seus parcelamentos regularizados. O custo unitário definido para esta modalidade é de R$ 100,00. PLHIS, 2011 . 7 Ver reportagem: Autoconstrução poderá receber assistência técnica gratuita: projeto de Lei aprovado no Senado deve gerar entre 10 e 15 mil novas vagas de emprego para engenheiros e arquitetos. [http://www.piniweb.com.br/construcao/carreira-exercicio-profissional-entidades/autoconstrucao-podera-receberassistencia-tecnica-gratuita-103296-1.asp]
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terra e agentes públicos, essencialmente no que se refere ao acesso da terra urbana. Preconceito e discriminação contra os pobres, alinhados com a aniquilação de seus interesses, confundem-se às razões para a existência ampliada da autoconstrução. 8 A autoconstrução, quando promovida pelo Estado, no exercício do poder de normalização, fiscalização e controle de recursos, ou quando institucionalizada pelo Estado, a conduzir o acesso das camadas mais pobres à moradia (por exemplo, em programas de mutirões), reforça a crítica de Burgess, Pradilla Cobos e Oliveira. Por outro lado, a autoconstrução legitimada pelas decisões autônomas das famílias pobres constitui-se como resposta possível, vinculada aos seus direitos, frente às condições políticas, sociais e econômicas que enfrentam. a total autonomia para realizar a obra, tanto nos aspectos físicos e construtivos, na administração e gestão, na contratação de mão-de-obra, como na aquisição de material e na definição do tempo para a realização do trabalho. Além do que a autoconstrução agrega um somatório de economias incorporadas à unidade habitacional, tais como: a ausência de remuneração do trabalho, do pagamento de encargos sociais, dos impostos, da taxa de administração, dos lucros repassados aos agentes e empresas imobiliárias. Ao mesmo tempo, já instalado na moradia em construção, o proprietário elimina o custo com aluguel. (LIMA, 2005, p.126).
A falta de revestimentos, cobertura ou piso bem como o eventual desconforto térmico e a articulação inadequada dos ambientes certamente não podem ser entendidos como resultado do emprego de baixa tecnologia ou da dificuldade de organização espacial. Ou seja, a autoconstrução vincula-se à maneira em que as práticas sociais próprias do cotidiano e da realidade sociofinanceira, se estabelecem. Muito além do objeto-abrigo, sustentado por paredes e cobertura, funcionando como elemento de proteção contra chuva, sol, vento, animais e intrusos, a moradia insere-se na realidade da vida cotidiana das famílias. A grande vantagem [da autoconstrução] reside em escapar do aluguel, gasto inútil. Sair dele é um alívio. É também ter mais segurança, pois ‘hoje se está empregado e o amanhã é incerto’. Permite fazer a casa aos poucos, paga tudo si mesmo. O que sustenta o sacrifício de construí-la e morar longe de tudo é produzir um bem que é um abrigo contra as intempéries da vida e uma garantia para os dias de velhice. É tudo isto e também o empenho de ser dono de seu espaço, de morar naquela que é sua e deixá-la para os filhos. Significa, enfim, ‘construir um futuro’, confeccionado com o esforço conjunto da família, que despende suas energias para atingir uma meta de grande valor material e simbólico (KOWARICK, 2009 p.220).
Ao longo do tempo, as famílias apreendem um corpo de conhecimento substancial sobre como melhor construir e conectarem-se à infraestrutura e aos serviços urbanos bem como se
beneficiarem ou se esquivarem das autoridades públicas; é um processo de fazer e aprender através de experiências individuais, repassadas a outros de maneira formal e informal (HAMDI,
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Ver Lima, 2005.
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1991). Assim, o saber-fazer a moradia (como, quando, onde e a que custo) é transferido pelas práticas sociais.
UM BREVE OLHAR SOBRE OS LOTEAMENTOS PERIFÉRICOS EM RIBEIRÃO DA S NEVES
Considerando a grande expansão de loteamentos periféricos na década de 70 e 80 em Belo Horizonte, o município de Ribeirão das Neves é importante universo representativo da autoconstrução. O intenso crescimento de Ribeirão das Neves “é expressão de um processo nacional de segregação nas metrópoles brasileiras, em um momento de grande fragilidade das políticas de regulação do solo. Entre os seus principais sujeitos estão os agentes imobiliário [...] agindo diretamente na criação de loteamentos precários, nas periferias mais distantes, muitos deles clandestinos e sem nenhuma infraestrutura. Ao processo de parcelamento do solo seguiuse a autoconstrução e a construção por “ajuda mútua”, reunindo família e amigos nos finais de semana” (ANDRADE, MENDONÇA, 2010, p.174). A autoconstrução em loteamentos periféricos, regulares ou não, também diferencia-se da autoconstrução em favelas (movimento espontâneo) ou em ocupações organizadas (movimento organizado), sob três aspectos. Primeiro, em razão da maior segurança na posse da terra (ainda que irregular), fazendo com que os investimentos na moradia sejam diluídos ao longo do tempo. Segundo, por ser opção consciente das famílias, entendida como ágil contraponto ao assistencialismo do Estado, às inseguranças do aluguel e às normativas financeiras do mercado além de instrumento de pressão social na conquista de outros direitos, como serviços urbanos, educação, transporte, etc. Terceiro, a autoconstrução realiza-se como ação individual, familiar, pois trata-se de construção de moradias em áreas sem laços sociais estabelecidos a priori, mas que serão construídos ao longo do tempo. Uma pergunta central sobre a autoconstrução emerge: de onde e/ou de quem os autoconstrutores obtém informações sobre como construir a moradia? Para investigarmos os processos produtivos da autoconstrução em Ribeirão das Neves, partimos do argumento que qualquer prática social, própria do cotidiano, é uma prática informacional já que qualquer relação entre sujeitos pressupõe transferência e comunicação da informação. Quando se realiza uma transferência de informação, ocorre a efetiva comunicação de informação e a, conseqüente tradução desta em conhecimento (quando se dá a incorporação da mesma ao mundo do usuário). Como produto deste processo, temos a transformação da informação em conhecimento e deste em ação – o que possibilita a autoconstrução da moradia. As ações capazes de transformar a realidade do cotidiano podem ser tomadas porque o indivíduo, movido pela sua presença no mundo e pela sua curiosidade pelo mundo, inventa e se reinventa (FREIRE, 1977). Sendo assim, como instrumento de transformação das relações entre
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homem/mundo estabelecida pelo sujeito, seus sistemas de conhecimento são constituídos e podem ser melhorados a partir de uma problematização crítica dessas mesmas relações. Esse ponto de vista também é reforçado pela teoria social de Pierre Bourdieu (1999): a informação, e o conhecimento resultante, é manifestação social e cultural de sujeitos posicionados pela estrutura do espaço social ( campo), atrelados à posse e à possibilidade de acesso ao conhecimento (capital ) e à biografia social e cultural ( habitus ) de cada sujeito. Resultados provindos de pesquisa 9 sobre a autoconstrução em Ribeirão das Neves revelam que os autoconstrutores estão inseridos em uma rede social constituída de operários da construção civil e donos de depósito de materiais de construção. Demonstram existir um conhecimento implícito de como fazer a construção, ou em outras palavras, há presente o “gosto pelo ofício”. Além disso, a ação de construir é socialmente possível somente em razão da vivência próxima (direta ou indireta) com o setor da construção civil, da cumplicidade de amigos que “ajudam para (eventualmente) serem ajudados”, e, essencialmente, da força da família erguida em base de valores como cooperação, solidariedade, cumplicidade, segurança. Em razão da capacidade dos autoconstrutores observarem outros operários da construção civil e de aprenderem com amigos o ofício da construção civil, a autoconstrução da moradia é possível. Nesse sentido, conhecimento não vem de um processo no qual o sujeito passivamente recebe informação de outro sujeito. Isso quer dizer que a informação construída é conseqüência de processos coletivos, de estruturas de conhecimento e de instituições de memória dos sujeitos (autoconstrutores), devendo ser pensada em sua dimensão comunicativa, que por sua vez não se atém à mera eficácia de transmissão, mas implica em um processo compartilhado de construção e constituição.
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Resultados da pesquisa “Os processos produtivos da autoprodução de moradias: a abordagem da prática informacional”, apoiada pelo CNPq, coordenada pela autora. Disponível em
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Figura n.2 – Casas autoconstruídas em Ribeirão das Neves. Notas da legenda: 1 a fase - vermelho, 2 a fase - verde, 3 a fase - amarelo, 4 a fase - azul. Fonte: Grupo de pesquisa Praxis
A realidade sócio-econômica surge como balizador no atendimento de demandas imediatas dos autoconstrutores mas também das possibilidades de mudança futura (estrutura e composição familiar além das expectativas de conforto e eficiência). Há, inegavelmente, lucidez e capacidade crítica por parte dos autoconstrutores na escolha e avaliação das opções que possam atender, com flexibilidade, suas necessidades e aspirações individuais, sejam em relação à construção, financiamento, propriedade ou gerenciamento. Nesse sentido, em busca da casa própria, os autoconstrutores afastam-se naturalmente das instâncias políticas e financeiras (de qualquer natureza) e suas “armadilhas” de prestações e contração de dívidas, especialmente a Caixa Econômica Federal, na medida em que eles não confiam em seus procedimentos. Muitos moradores constroem suas casas visando ampliação de cômodos para geração de renda (aluguel para outrem). A transformação da moradia, ao longo do tempo, torna-se pré-requisito para o crescimento e a consolidação das famílias no lugar, promovendo uma autoconstrução natural e coerente com as adaptações necessárias e a funcionalidade permanente. Assim, a autoconstrução reflete a capacidade dos moradores decidirem sobre o espaço, muito além do mero atendimento aos seus desejos. Os processos produtivos da autoconstrução revelam que a informação produzida, transferida e usada gera conhecimento sobre o saber-fazer a moradia, motivando, capacitando e
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transformando os moradores, sendo, acima de tudo, uma escolha consciente na contra-mão do aluguel e da casa subsidiada pelo Estado. A moradia autoconstruída é erguida a partir de respostas construtivas bastante similares e, de forma geral, assim constituídas: - o projeto da moradia não é estabelecido a priori ou, quando o caso, resume-se ao esboço único de planta; - o canteiro de obras é permanente; - a estrutura é executada em pilares e vigas de concreto armado, possibilitando a eventual ampliação do segundo pavimento, apoiada em fundações usualmente em sapata corrida ou tubulões de concreto; - a cobertura é feita com laje pré-moldada de lajotas cerâmicas, servindo de apoio para estrutura de madeira e telhas cerâmicas; - as vedações são erguidas em blocos cerâmicos rebocados e pintados, recebendo esquadrias de ferro e de madeira; - todas as instalações hidro-sanitárias e elétricas são embutidas em PVC, com caixa d’água préfabricada; - o piso da casa é em cerâmica e as paredes de áreas molhadas revestidas até a meia altura também em cerâmica; - os equipamentos de construção são todos domésticos; - a mão-de-obra é sempre familiar e, quando necessário, contratada.
FINALIZANDO...
A quem interessaria informações sobre a autoconstrução? Observar a autoconstrução permite a análise crítica da dinâmica social e econômica do lugar, passível de promover a transformação das políticas habitacionais vigentes no país. As diretrizes e/ou premissas dos programas habitacionais brasileiros, desde o BNH até o Minha Casa Minha Vida, demonstrando a limitação de seus alcances às famílias de 0 a 3 salários mínimos, servem para indicar a opacidade da realidade, o desconhecimento desse universo e a pouca atenção dispensada pelo poder público. Por um lado, a autoconstrução é, desde 1940, mecanismo importante de provisão habitacional não mercantilizada, de acesso à moradia e à propriedade (ainda que vinculado à precariedade física e ao sacrifício corpóreo de trabalhadores) e de estabilidade familiar. Por outro lado, uma análise mais próxima revela que as atuais políticas estão distante de promover autonomia dos moradores para que possam efetivamente participar dos processos de decisão da produção
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habitacional. Modelos tipológicos rígidos, resultantes de determinações formais, construtivas e técnicas do setor da indústria da construção ou do Estado, são ainda apresentados como solução para o déficit habitacional. Não há o entendimento, nesses casos, de que os moradores não desejem produtos prontos sem possibilidades de absorver mudanças sociais e físicas ao longo do tempo. Além disso, a capacidade dos usuários de lidar e avaliar suas demandas de modo que a casa seja expressão do cotidiano familiar é completamente desprezada. Acreditamos, nesse sentido, que investimentos graduais, contínuos e adequados devam ser feitos para que as reais contribuições da autoconstrução sejam ampliadas tendo em vista o pressuposto do necessário diálogo entre todos os participantes dos processos produtivos habitacionais.
Denise Morado Nascimento: Arquiteta Urbanista, Doutora em Ciência da Informação (UFMG). Professora
Adjunta da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. [email protected]
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