39º Encontro Anual da Anpocs GT09 De cidades a cidade no Brasil: tempos e/ou espaços
A CONSTRUÇÃO CARIOCA DA CATEGORIA SUBÚRBIO E O BAIRRO DE MADUREIRA
Amanda Cristina Bueno de Castro (Mestranda do PPCIS/UERJ)
RESUMO No Rio de Janeiro, a partir da Reforma Pereira Passos em 1906, foi iniciado um processo de distinção entre os bairros "modernos"/"civilizados" e os considerados "atrasados"/"populares". "atrasados"/"populares". No artigo "Fisionomia e estrutura do Rio de Janeiro"(1965) Maria Therezinha Soares nos recorda que o termo subúrbio designava na Idade Média os lugares afastados da área central, que não eram densamente habitados e que possuíam relações intensas com a cidade. Mas o Rio de Janeiro criou um conceito próprio: o conceito carioca de subúrbio como destaca Soares (1965). A sociedade produz códigos, símbolos, mapas (VELHO, 1978. DAMATTA,1997) que são mobilizados em diversas esferas, por isso devemos refletir sobre a construção da categoria subúrbio como elemento de distinção social. Entendê-la, a partir partir do bairro de Madureira, portador de uma visibilidade social significativa se comparado a outros bairros, nos permitirá demonstrar como o bairro constrói uma história local com raízes no seu passado, modificada constantemente pelas transformações do presente e pelos projetos futuros e pela relação dialógica com outros bairros, moradores e estilos de vida e instâncias específicas do poder público.
QUANDO O BAIRRO É O CAMPO A pesquisa, entendida como processo de geração de conhecimento científico, pode assumir peculiaridades nas ciências sociais, pois ao considerarmos seu objeto de estudo os seres humanos e suas relações e instituições notamos as inúmeras possibilidades que apresenta. Essa variabilidade é decorrente das contingências comportamentais e estados subjetivos que tendem a modificar a estrutura social ou a organizá-la de maneira distinta. Ao investigador cabe encontrar, através dessa construção, o essencial, que por vezes é anulado pelas rotinas, naturalizado e invisibilizado. O discurso do sociólogo é tanto mais fundamentado e melhor entendido quanto mais correspondência correspondência tiver com a realidade que pretende explicar. Nesse sentido, o sociólogo é responsável por desvelar o que é socialmente construído. As transformações da modernidade ocorreram em progressão geométrica, trazendo um novo atributo para área sociológica: sociológica: o urbano. Podemos estar acostumados com uma determinada paisagem social, com atores familiares, que nos permitem fixar categorias mais amplas, mas isso não significa que compreendamos a lógica de constituição das relações, uma vez que os repertórios humanos não são limitados, eles criam surpresas e abrem abismos, por mais familiares que as situações possam parecer. Isso significa que o processo de descoberta e de análise do familiar pode envolver dificuldades, mas não elimina a possibilidade da pesquisa cientifica. O estranhamento continua sendo tão essencial quanto em situações tidas como “exóticas”. O pesquisador deve estar atento para não comprometer a pesquisa por possuir algum conhecimento superficial daquela rotina, de alguns hábitos e estereótipos criados anteriormente aos seus estudos. Na pesquisa feita por Gilberto Velho (2012), somos levados por ele a perceber que, quando ele olha as pessoas de seu prédio, é capaz de categorizá-las, mas não sabe, apesar disso, o ponto de vista delas, como elas entendem a vida, o mundo ao seu redor ou seu ethos. No trabalho de pesquisa na/da cidade o necessariamente como pesquisador pesquisador deve ter um olhar treinado para p ara “ver o familiar não necessariamente exótico, mas como uma realidade bem mais complexa do que aquela representada pelos mapas e códigos básicos nacionais e de classe através dos quais fomos socializados”
(VELHO,2012:131). (VELHO,2012:131). A cidade tem muitas descontinuidades e permite estranhamentos em espaços tidos como familiares.
A literatura sociológica e antropológica nos presenteia com diversos autores que decidiram fazer da e na cidade o seu campo de estudo e estabeleceram alguns padrões de distribuição social e distinção em diversos níveis. Podemos observar nos estudos de ELIAS e SCOTSON (2000); FOOTE WHYTE (2005); FIRMINO DA COSTA (2008); VELHO (2002 e 2012) e O'DONNEL (2013) que há entre eles um ponto em comum: perpassa nos estudos a questão do status e/ou estigma criado a partir das relações sociais intercomunidades. Na teoria weberiana há diferenças entre os grupos sociais sociais quanto à distribuição do poder e a maneira como tal distribuição é operacionalizada. operacionalizada. Tal distribuição pode, assim como em Marx, ser definida de acordo com critérios econômicos, mas não de maneira restrita à propriedade ou não dos bens de produção (Weber, 2009). Para além dessa abordagem ampliada de classe, Max Weber reconheceu a importância dos grupos de status e partidos para a estratificação social. O grupo de status refere-se à divisão de honra e prestígio social conferido pelos membros de dada comunidade; ele está alicerçado no “poder social”, social”, que surge da avaliação que a sociedade faz dos atributos pessoais de um indivíduo, concedendo-lhe concedendo-lhe um certo grau (positivo ou negativo) de “honra”. A nível empírico as formas de poder econômico, social e político podem se relacionar de modo estreito e variado. Assim sendo, as classes, os grupos de status e partidos podem influenciar na construção construção de categorias categorias estruturantes. estruturantes . A distinção na distribuição de honra está apoiada na temporalidade e em práticas culturais que alteram sobremaneira a relação com a urb. São estabelecida estabelecidass então diferenças espaciais, pois o espaço é o “ lugar praticado [...] constituído do efeito produzido produ zido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de progra programas mas conflituais ou de proximidades contratuais.”
(DE CERTEAU, 2009). Quando Gilberto Velho (2002) retoma uma das
principais questões de Roberto DaMatta, a hierarquia da sociedade brasileira, nos ajuda a pensar na construção construção de elementos elementos de identificação que que são gerados gerados por relações de poder e dominação. Precisamos ter consciência da possibilidade de contestação para romper com esse ordenamento, na tentativa de identificar os mecanismos inconscientes e conscientes que mapeiam, criam estereótipos cumprindo o papel de nos familiarizar com o cenário e situações sociais de nosso cotidiano. Ao refletir sobre essas questões
observamos como é necessário fazer pesquisas com “o familiar”. Tenta -se neste espaço elaborar um trabalho sobre categorias familiares, como bairro, subúrbio e zona sul, que constituem um quadro denso de representações sociais mapeadas e hierarquizadas na sociedade carioca. O bairro não reporta ao cercamento do grupo, pensado isolado, quando nunca o foi, pois sempre houve troca com a cidade, ainda que não se tenha impedido de constituir uma representação social local. Essas sobreposições geram dimensões múltiplas dobradas e desdobradas do relacionamento humano, onde são geradas condutas características e formas simbólicas singulares. Dessa forma os mecanismos de distinção social são criados e colaboram para divisão espacial de prestígio, recursos públicos e estilo de vida. Por esta razão o bairro aparece não somente como delimitação administrativa ou elemento territorial urbano, mas como categoria simbólica de referência social e perceptiva de um quadro social denso e multifacetado que dialoga com o interior e o exterior, ainda que encontre moralidades distintas. Segundo a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) os “bairros são subdivisões intra-urbanas legalmente estabelecidas através de leis ordinárias das Câmaras Municipais e sancionadas pelo Prefeito”,
mas o recorte
administrativo, limitado por linhas arbitrárias, às vezes invisíveis, não nos permite adentrar nas feições do bairro que lhes são próprias ou até mesmo na sua alma (MOMBEIG, 2004). Na verdade, o bairro de fato ganha sentido e conteúdo pela identificação e representação que a população residente e a cidade criam por meio de relações. As raízes familiares, histórias similares, relação com e de vizinhança e uso do espaço. Há um processo de construção e distinção na cidade do Rio de Janeiro que está relacionado à dualidade entre subúrbio e Zona Sul .
A CONSTRUÇÃO DO SUBÚRBIO CARIOCA A cidade do Rio de Janeiro apresenta fronteiras simbólicas e geográficas muito expressivas. Podemos observar um processo de distinção social pelo local de moradia ao ser respondida a pergunta, “Onde você mora?” ou “Em qual parte do bairro”. As respostas possíveis a estas perguntas evocam backgrounds de representações e podem ser pautadas pelas dualidades Zonas Norte e Sul, subúrbio e zona sul, periferia e centro, além
de favela e “asfalto” (CAR NEIRO, 2009). O desenvolvimento urbano criou condições para a complexificação das relações sociais, diminuindo sobremaneira a classificação de forma direta pelo contato e interações pessoais. De acordo com Anthony Giddens (2006), “nas sociedades tradicionais, o status era, em geral, determinado com base no conhecimento direto de uma pessoa, adquirido por múltiplas interações em diferentes contextos ao longo de um período de anos” .
Mas na sociedade moderna o estilo de vida das pessoas tornou-se a expressão do status. As formas de usos, os símbolos e sinais passaram a ser indicativos da posição social do indivíduo dentro da cidade. O gosto 1, então, aparece nesse momento como um importante determinante social, indicando através do modo de vestir-se, falar, portar-se em determinadas situações o pertencimento a grupos. Ao ser compartilhado um tipo ideal de morador de determinado bairro o corpo social cria uma representação comum que impacta frontalmente os mecanismos de distinção pelo local da moradia. No alvorecer do século XX a cidade do Rio de Janeiro ainda era o principal portão de entrada para estrangeiros ou migrantes internos no Brasil, aqueles que chegavam ao país pela cidade encontravam um espaço mais cosmopolita se comparado a outras regiões. Segundo Carlos Lessa (2005), no Rio de Janeiro foram sintetizados hábitos, estilos de vida e ideias vindos do exterior, principalmente da Europa e dos Estados Unidos da América, sendo reproduzidos para todo o país. Tentando adequar sua estética à modernidade e ao relevante papel da cidade inúmeras intervenções urbanas foram realizadas alterando de modo significativo as condições sócio-espaciais. Ao sair da noção empirista na qual o bairro é apenas local da pesquisa podemos desvelar os mecanismos de diferenciação dos bairros cariocas considerados como suburbanos. No Rio de Janeiro, a partir da Reforma Pereira Passos em 1906, foi iniciado um processo de distinção entre os bairros “modernos” e “civilizados” e os considerados “atrasados” e “populares”. Essa classificação criou no ideário carioca uma noção própria Na obra seminal A distinção: crítica social do julgamento (2013), Pierre Bourdieu transforma o estudo de classe ao analisar a França de meados do século XX. Quotidianamente elegemos o que gostamos ou não, no entanto tais escolhas não são naturais. Elas foram naturalizadas pelo processo de socialização pelo qual passamos desde a tenra idade no seio familiar. As oposições entre erudito e clássico versus vulgar e comum demarcam as classes através do capital simbólico incorporado e legitimam de forma inconsciente as diferenças. 1
de subúrbio, entendida como local de moradia das camadas menos abastadas, com gosto popular. Tal definição suplantou o sentido clássico da palavra que na etimologia romana, suburbiu,
designava as cercanias de cidade que possuíam relações intensas com a cidade
por sua produção agrícola e serviam como local de vilegiatura e retiro daqueles que podiam ficar recolhidos dos conflitos e condições insalubres da cidade. (FERNANDES, 2011) Há no imaginário carioca a noção de que o subúrbio é o local de moradia das camadas menos favorecidas, com número reduzido de investimentos, cortado pela linha do trem e distante da área central (SOARES, 1965). Os trabalhos acadêmicos sobre a Cidade do Rio de Janeiro e romances, como o do romancista Lima Barreto que tanto escreveu sobre os subúrbios cariocas no início do século passado, corroboram tal definição. Em “Clara dos Anjos”, o escritor coloca em palavras o ar melancólico e carregado que o subúrbio passa a ter nas duas primeiras décadas do século XX: “Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até às (sic) dez horas da manhã e há toda uma população de certo ponto da cidade no número dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes [grifo nosso]. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem (sic) alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.” (BARRETO, 2012: 187-188)
Com o acelerado crescimento populacional 2 os problemas de cidade relacionados à habitação se agravaram. Antigos pontos críticos, como por exemplo, abastecimento de água, saneamento e higiene, foram acompanhados por violentos surtos epidemiológicos. As mazelas e epidemias reforçavam a ideia de atraso, tanto que algumas pessoas evitavam vir ao Rio de Janeiro com receio de contrair alguma doença (malária, varíola ou febre amarela) devido às condições anti-higiênicas. A reforma idealizada pelo prefeito Segundo dados do Recenseamento do Rio de Janeiro (Distrito Federal) realizado em 20 de setembro de 1906 a população carioca passou de 522.651 habitantes para 811.443 habitantes em 1906. 2
Pereira Passos visava romper com essa visão negativa e solidificar a imagem de uma cidade e país “civilizados”. Ao transformar radicalmente o espaço físico do então Distrito Federal, inspirado na famosa reforma urbana de Paris levada a cabo pelo prefeito Barão de Haussmann ao longo de dezessete anos (1853-1870), Passos iniciou um processo de distinção pelo local de moradia criando as condições de possibilidades para o início da dicotomia entre centro histórico/zona sul x zona norte/oeste, entre cidade e subúrbio, que ainda hoje é referendado (ABREU, 2006). Fernandes (2011) destaca que a análise feita por Lewis Mumford a respeito do processo de restruturação da cidade na Era Industrial (século XIX) nos Estados Unidos demonstra como conceituação do subúrbio é socialmente construída. Na lógica de organização do espaço estadunidense Mumford (1961) qualifica o subúrbio como o espaço destinado ao refúgio das elites e classes médias. As condições insalubres das cidades norte americanas e a desordem da metrópole ocasionaram um esforço e uma reação da classe média para produzir soluções privadas para a depressão que a vida citadina causava. O ambiente hostil e industrial da cidade somado à mobilidade proporcionada pelo trem e o bonde concederam os elementos necessários para o êxodo em direção ao subúrbio. Na cidade do Rio de Janeiro a ida de moradores para áreas mais afastadas da região central foi facilitada pela expansão das linhas férrea e bondes, porém a fruição de uma localidade com alto status e destinada a bem-aventurados foi construída ao redor dos ideais de higiene e natureza dos balneários europeus. Distinguem-se assim os moradores que vão povoar a região cortada pela linha férrea e aqueles que irão morar próximo à orla. O geógrafo Nelson da Nóbrega Fernandes em seu livro O rapto ideológico da categoria subúrbio: Rio de Janeiro 1858/1945
(2011) questiona a conceptualização
carioca de subúrbio, realocando a questão no plano de
ressignificação ideológica. Na sua
concepção os processos de transformação social da cidade criaram uma mudança brusca de significado que serviu como ferramenta de “segregação sócio-espacial das classes no Rio de Janeiro”
(FERNANDES, 2011: 53). A forte crítica do autor busca revalorizar os
bairros que são adjetivados pelo termo, demostrando a sua relevância para a sociedade carioca no século XIX e primeiros anos do XX. Nesse período a palavra não possuía nenhum sentido depreciativo, designando, à semelhança do vocábulo “arrabalde”, as
regiões mais afastadas do centro que possuíam grande número de residências de camadas superiores, a exemplo de São Cristóvão no Império. Assim, a conclusão do autor aponta para uma estratégia de desmoralização da classe trabalhadora na cidade do Rio de Janeiro, posto que os bairros populares, servidos por linhas ferroviárias, passaram a ser desprestigiados tanto do ponto de vista social quanto do poder público com o fim do Império. O período de modernização da cidade estigmatizou 3 a categoria subúrbio. A restruturação da cidade derrubou casas, eliminou ruas estreitas e construiu imensos boulevards, como a antiga Avenida Central (atual Rio Branco) elevando às alturas o custo do solo no centro da capital. A expulsão dos pobres para áreas mais afastadas, devido a ordens de despejos e à demolição de cortiços, deslocou a população do centro e desmoralizou a vida no subúrbio. Podemos confirmar a hipótese de Fernandes ao observamos que a interiorização da malha ferroviária viabilizou o deslocamento dentro do município facilitando a interiorização dos habitantes, principalmente quando a Estrada de Ferro Dom Pedro II (atual Central do Brasil), foi levada para áreas suburbanas a partir de 1861. Esse movimento de expansão proporcionou o aumento da densidade populacional, durante os anos de 1872 e 1890, período no qual a população do município quase dobrou, passando de 274.000 para 522.621 habitantes (FERNANDES, 2011), no qual também a Freguesia de Irajá4 teve um dos maiores aumentos populacionais do município. Contudo essas alterações parecem não ter modificado a percepção quanto ao perfil social dos moradores suburbanos e nem de sua moralidade. O subúrbio no início do Para Goffman, o estigma é um processo estabelecido pelo meio social. A partir da relação entre estigmatizados e normais é instituído como as pessoas devem ser, e torna esse dever como algo natural e normal. Um estranho em meio a essa naturalidade não passa despercebido, pois lhe são conferidos atributos que o tornam diferente. Deste modo sinais e estereótipos são criados e diferenciam de modo negativo os estigmatizados (GOFFMAN, 1988). 3
4A
freguesia de Irajá foi a primeira freguesia rural do Rio de Janeiro, fundada no século XVII. Entendemos que a fundação da freguesia se deu associado à construção da capela dedicada à Nossa Senhora da Apresentação de Irajá. Sua área abrangia toda a zona suburbana ao norte do Rio de Janeiro e apesar da sua longa existência ainda são escassos os estudos relativos a esta freguesia, e as freguesias rurais do Rio de Janeiro de uma maneira geral. (SANTOS, 1996). Com as mudanças na estrutura da cidade as freguesias foram se fragmentando, o processo de transformações em bairros faz parte de um percurso longo,que vai dos séculos XVI ao XX. Atualmente a Freguesia de Irajá corresponderia aos bairros da Área de Planejamento 3.
século era percebido por seus moradores apenas como área afastada da região central, parcamente urbanizada, mas que era habitada por classes mais favorecidas que fugiam das condições insalubres da área central da cidade. Segundo EL-KAREH, o centro do Rio de Janeiro, ainda no século XIX, era habitado por classes populares e também pela elite carioca. Era uma região pouco valorizada, com aspecto sujo, ruas estreitas e esburacadas desfavoráveis ao passeio da população nobre que aqui residia. Essas deficiências urbanísticas, somadas à população pobre e escrava que também habitava o centro, com seus hábitos considerados de baixa educação, davam ao centro histórico da cidade uma conotação negativa, não sendo um ambiente adequado para as elites, que viam a necessidade de procurar bairros mais afastados e com um aspecto mais limpo e sadio para moradia e lazer (2010). Podemos observar no periódico Comércio suburbano na coluna intitulada, “Divagando”, como o subúrbio ainda não tinha uma pecha, havia um estigma reverso, pois, o centro da cidade que era desvalorizado, apesar deste jornal não se dedicar à elite carioca: “Ah! Sr. redactor! Que tremendo desanimo se deverá apoderar do nosso espírito quando tenhamos que dirigir nossas visitas para esses bairros ínfimos da Cidade Nova, Gamboa e Sacco (sic) do Alferes, onde, como sardinha em canastra se acumula (sic) numa promiscuidade perigosa a escória social da nossa suja e invita Urb” (FISGÃO,1902 , p. 1)
Reforça essa ideia o primeiro editorial desse periódico, em 15 de maio de 1902, onde notamos que seu público alvo eram os comerciantes locais que apesar das incertezas da profissão eram dignos, trabalhadores incansáveis buscando desenvolver capacidades intelectuais e sociais: “Mais um orgam (sic) de publicidade demanda as generosas mãos do respeitável público. E, como se trata de um jornal, esse público é duplamente respeitável; – respeitável pelas suas qualidades pessoais e respeitável porque está na vereda que conduz à perfectibilidade por meio da leitura e da sua assimilação. Assim como as qualidades morais formam na família e desenvolvem na sociedade. [palavra ilegível] o dia passou da importância social, assim a leitura forma os grandes sábios, os grandes inventores e industrias. Apresentamo-nos, pois a esse público inteligente, independente, particularizando o comércio (sic) essa classe de trabalhadores infatigáveis, cuja posição, por melindrosa em sua natureza, requer o máximo de critério a mais elevada consideração. ” (Comércio Suburbano,1902: 1)
Mas a emblemática Reforma Pereira Passou deslocou os moradores das áreas centrais para o subúrbio e iniciou um processo de estigmatização do subúrbio. A
Freguesia de Irajá apresentou a mais alta taxa de crescimento populacional da cidade do Rio de Janeiro, alcançando, na segunda década do século XX, a impressionante marca de 263% de aumento dos seus habitantes em relação ao ano de 1906 5. Devemos salientar que a progressão da ocupação urbana se deu ao longo da malha ferroviária, e foi ao encontro da ressignificação do conceito subúrbio. É sintomático dessa mudança a coluna “ A perdição do subúrbio”,
escrita por Affonso Cardoso Filho em 1911, no jornal Echo
Suburbano, cuja redação estava localizada na região de Madureira. O comerciante de secos e molhados de Irajá escreve, com saudosismo, sobre como era a vida no subúrbio antes da reforma e como as mudanças trouxeram inúmeras mazelas que iam dos jogos à pilhagem, da prostituição de meninas à embriaguez dos meninos: “Outrora, nos tempos da velha cidade, o subúrbio era uma espécie de remanso feliz do proletário honesto, procurado em geral pelos pacíficos amantes do sossego e da tranqüilidade. Pobre, abandonado, pouco populoso, desprezado como sempre, possuindo apenas construções antigas, ruínas e pardieiros, vestígios de senzalas de extintas fazendas, mas dentro desses muros arruinados, esburacados, reinava a paz honesta e a pobreza sã. E hoje? Depois que o prefeito Passos os lançou por terra a velha cidade abrindo novas ruas e levantando novos edifícios, toda aquela pobre gente emigrou para o subúrbio e ahi (sic), foram vistas da justiça e da repressão, um grande mal que desenvolveu e progrediu. […] E o mal progride, progride sempre horroroso e ameaçador sem que uma providência tenha sido tomada no sentido de evitá-lo ou melhorá-lo” (FILHO, 1911:1)
Em contrapartida, a cidade do Rio de Janeiro viu nesse mesmo período a expansão da classe média/alta pela faixa litorânea da cidade. O antigo bairro aristocrático de Botafogo já não comportava aqueles que desejavam gozar de status, prestígio, serviços públicos e setor comercial desenvolvido, devido aos estrangeiros, diplomatas que ali se fixaram durante o Império. Amparados pelo discurso higienista contra insalubridade da região central, grupos empresariais passaram a investir vultuosas quantias em novas regiões da cidade, transformando o espaço em mercadoria (O'DONNEL,2013:23). Nos bairros atualmente conhecidos como Copacabana, Leme, Ipanema e Lagoa foi observado um processo de ampliação da densidade demográfica quando se tornaram foco de uma lógica de especulação imobiliária. Os novos moradores endossaram o discurso de uma As altas taxas de crescimento populacional do subúrbio carioca entre 1900 e 1930, em particular o alto valor de 263% alcançado na região de Irajá, são destacados no histórico do Plano Estratégico II, elaborado pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 2004, como sendo um dos fatores de geração dos problemas urbanos hoje existentes (MARTINS, 2009). 5
nova localidade para elite republicana e pressionaram o poder público para que investisse na infraestrutura local 6. Os semanários locais demonstraram em suas páginas como estavam sendo criados um padrão de comportamento e uma estética, que devia ser correspondente também às propostas de melhorias urbanísticas. A Zona Sul foi beneficiada por um estilo de vida legitimado por seus moradores como “civilizado” e “moderno”. Podemos observar no livro A invenção de Copacabana: culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro ,
de Julia O'Donnel (2013) a
descrição de um “processo civilizador”7 ocorrido das últimas décadas do século XIX até as primeiras quatro décadas do século XX no qual os moradores do antigo areal de Copacabana tiveram seu estilo de vida transformado em sinônimo de requinte e hodiernidade. Em 1890, o atual bairro ainda não tinha sido incorporado à malha urbana do Rio de Janeiro, porém a expansão dos bondes da Companhia Jardim Botânico, nos anos anteriores, o crescimento populacional somado à degradação da área central, incentivou famílias de “classe média” e “alta” a irem morar no litoral. Em 1940, os cilences8
estavam estabelecidos na cartografia da cidade com um status de “civilidade” e
estilo de vida praiano, cujo modelo se ancorava nas últimas tendências do outro lado do atlântico, na qual os balneários eram expressão de requinte. Os outros bairros deveriam, então, se espelhar no modelo cilence que passou a ser definido como ideal a ser alcançado. O projeto cilence foi tão bem-sucedido que duas décadas depois vimos uma marcha a Oeste, em direção à Barra da Tijuca, São Conrado, Praia da Gávea.
Em 1906 durante a gestão do Prefeito Pereira Passos foi construída a Avenida Beira Mar. Segundo O’DONNEL (2013) o prefeito deseja expandir a cidade para Zona Sul e “oferecer aos cariocas uma via que fizesse jus aos sonhos de civilização”. 6
7ELIAS,
N. O processo civilizador: Uma história dos costumes . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, v I. Nesta obra, Norbert Elias faz um estudo aprofundado das transformações dos costumes, desde as maneiras à mesa ao controle das funções corporais. A história das boas maneiras do educado está diretamente relacionada às regras de comportamento social que para além da etiqueta, também dizem respeito à moral, à ética, ao valor interno dos indivíduos e aos aspectos externos que se revelam nas suas relações com os outros. O que ocorre é uma naturalização dos hábitos e costumes, num processo de mudança que se constitui em longo prazo na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica, à época, um padrão europeu/francês. Da interdependência pessoal nasce um ordenamento sui generis, uma ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem. 8Segundo
O'DONEEL (2013) os moradores de Copacabana, Ipanema, Leme e Leblon se auto intitulavam de cilences em função da sigla CIL, forma abreviada utilizada pelos periódicos locais para retratar os bairros de Copacabana, Ipanema, Leme e, posteriormente o Leblon.
Décadas após décadas a oposição entre zona sul e subúrbio foi sendo reificada. Em 1960, Soares identificou frações da urbs por meio da investigação da fisionomia e da paisagem carioca. Ao traçar o perfil da cidade do Rio de Janeiro ela considerou a heterogeneidade arquitetônica, construída ao longo dos 400 anos de história da cidade e as características geográficas (principalmente, a topografia, que impôs alguns limites para habitação enquanto não se dispunha de técnicas adequadas de construção ou mobilidade para uma cidade que foi habitada entre morros e pântanos). Dando seguimento ao estudo fisionômico, a autora atenta para a horizontalidade e verticalidade das edificações da cidade, que nos permitem inferir que a direção da construção está diretamente vinculada à especulação imobiliária. Um espaço valorizado deve ter máxima rentabilidade, e como dois corpos não ocupam o mesmo espaço segundo as leis newtonianas, erguer prédios e arranha-céus foi a solução encontrada, mas nos espaços menos estimados, em sua maioria, predominaram as edificações de casas térreas ou prédios com poucos andares. Segundo Soares (1990), a fisionomia da cidade também deve ser pensada de acordo com multiplicidade de funções que a compõeor meio das idiossincrasias dos bairros podemos identificar a(s) funcionalidade(s) predominante(s), como: o trabalho portuário, funções administrativas, polos industriais, comerciais, turísticos e culturais que ajudam a moldar conferindo atributos a determinados espaços. A cidade do Rio de Janeiro apresentava uma conjuntura multíplice dessas tipificações, por isso, segundo Soares, poderíamos dividi-la, em meados do século XX, em Zona Urbana, composta pelo Centro, Bairros e Bairros Suburbanos com calçamentos, luz, água, transporte público, alta densidade habitacional, e a Zona Suburbana que
englobava o Subúrbio da Guanabara e o Subúrbio periférico, como
mostra o mapa abaixo da área metropolitana do Estado do Rio de Janeiro :
Mapa 1 – Estrutura Metrópole do Rio de Janeiro
Fonte: FERNANDES, 2011, p. 41
Entretanto, na cidade do Rio de Janeiro - o então Distrito Federal (até a mudança da capital para Brasília em 1960) -, não havia uma denominação para os bairros, situação análoga a que Antonio Firmino da Costa descreveu para Portugal 9. A palavra bairro denominava as zonas mais antigas de ocupação da cidade, ocupadas horizontalmente em sua quase totalidade. As localidades enquadradas nesse conceito deviam ser planejadas com traços regulares, ter como função social, primordialmente, residencial e contar com investimentos do poder público com vistas aos melhoramentos urbanos. Na concepção de Soares os bairros comportavam uma heterogeneidade de estilos arquitetônicos de moradias, com ressalvas aos bairros da Urca, Grajaú, Leblon e Ipanema, uma diferenciação daqueles que estavam localizados na Zona Sul e na Zona Norte. Na Zona Norte o edifício era a exceção, com construções em sua maioria térreas, que ainda não tinham sido “renovadas e modernizadas” (com ressalva a Tijuca). Mantinha a estética do
COSTA, António Firmino. Sociedade de Bairro: Dinâmicas Sociais da Identidade Cultural . Portugal, Celta Editora, 2008, p.79. O bairro de Alfama, em Lisboa – Portugal, do ponto de vista administrativo, não existia. A cidade lisbonense está dividida em cinquenta e três freguesias, e nenhuma delas faz menção oficial ao bairro, mesmo assim ele é um espaço social urbano muito conhecido e referenciado. 9
final do século XIX, composta predominantemente por “classe média”. Podemos citar como exemplos os bairros da Tijuca, Andaraí, Grajaú, Maracanã, Rio Comprido, Vila Isabel e São Cristóvão. Ao sul das rosas dos ventos, era observável o crescimento vertical que demostrava ação da especulação imobiliária e o interesse da população em habitar em áreas próximas ao litoral e adotar práticas de lazer hoje tidas como próprias para uma vida saudável, natural e tipicamente carioca, como por exemplo, praia, banho de sol, corrida no calçadão, passeios à beira mar. As construções da localidade em sua vasta maioria eram recentes e modernas ou tinham passado por reformas, com foi visto nos bairros do Flamengo, de Botafogo e de Copacabana. As famílias que compunham a paisagem local, em sua maioria, eram de classe média, abastadas ou ricas. Mas não se trata de homogeneidade absoluta, uma vez que havia uma população com nível socioeconômico abaixo das características opulentas da região, que ocupava os morros e fazia deles local de moradia, aumentando o contingente de moradores da favela. O mais emblemático nessa construção é Soares considerar esse ordenamento espacial como “seleção natural baseada na capacidade aquisitiva”
(1965:38), quando na verdade o que verificamos é
uma seleção social, pois sendo o espaço urbano um espaço construído pela sociedade ele acaba cristalizando algumas distinções geradas pela posição relativa dos agentes sociais e pelas capacidades díspares de apropriação dos recursos, tanto de caráter econômico quanto simbólico. Nas palavras de Pierre Bourdieu, é possível desvendar uma hierarquia social e a apropriação desigual dos recursos urbanos reprodutora da diferenciação social que está naturalizada nas estruturas mentais (Bourdieu,1997). Em contrapartida ao status dos bairros da Zona Sul, é possível observar as características medianas da Zona Norte, composta por Bairros Suburbanos que não se desvencilharam do estigma criado durante as primeiras décadas do século XX com a reforma Pereira Passos. Os bairros que outrora eram os antigos subúrbios do Rio de Janeiro com características geográficas bem definidas (parcamente habitados, longe do centro) se modificaram. À época do estudo realizado por Soares (1965) os bairros já eram dotados de todas as características urbanas, como por exemplo, densa população (com 9912.074 habitantes), ampla rede de transportes, heterogeneidade na composição social. No entanto, não tinham se desvinculado da palavra subúrbio. Soares indica que isso
ocorreu por conta da presença da linha do trem em seu território e da predominância da classe “média baixa/pobre” na composição social. Contemporaneamente bairros como Madureira, Engenho Novo, Méier e Inhaúma, Piedade, Penha e Irajá ainda são socialmente chamados de subúrbio. Na perspectiva analítica de Soares a denominação de bairros suburbanos quer
reconciliar a fisionomia desses bairros com características
urbanas mais desenvolvidas à presença do transporte ferroviário, um dos elementos mais característicos em sua concepção e as origens suburbanas. Mesmo que não haja nenhuma propriedade que os ligue ao sentido mais original do conceito. A ligação é feita pelo conceito carioca de subúrbio no qual estão ancoradas distinções sociais muito sintomáticas da distribuição de classe, de prestígio social e a densidade populacional, quantidade de serviços não foi suficiente para dar-lhes o nome de bairro: “O Méier é chamado, ainda de capital dos subúrbios, pois é, sem dúvida, depois de Copacabana, o maior subcentro da cidade, estando aparelhado para atender quase tôdas (sic) as necessidades da população dos bairros suburbanos e do subúrbio. Madureira, situada nos limites dos bairros suburbanos é uma verdadeira 'boca de sertão', pois não só é importante subcentro para os subúrbios que lhe seguem, como seu grande mercado concentra parte da produção da zona rural do estado da Guanabara e municípios vizinhos. É Madureira que serve à numerosa população urbana e rural de Jacarepaguá” (SOARES, 1965: 44)
A Zona Suburbana era composta pelo Subúrbio da Guanabara, que atualmente são os bairros de Pavuna, Anchieta, Realengo, parte de Jacarepaguá, Campo Grande, Santa Cruz, considerados subúrbio no sentido denotativo do termo, dentro dos limites do Distrito Federal. E os Subúrbios Periféricos estavam fora dos limites guanabarinos, como era o caso de Nilópolis, São João de Meriti, Nova Iguaçu, Duque de Caxias. Os subúrbios, então, foram caracterizados para além das descontinuidades das construções e vazios, como locais de habitação das classes pobres, mas que podiam possuir parcelas reduzidas da classe média. Sua principal função era residencial, mas podia coexistir com áreas militares, como é o caso do bairro de Marechal Hermes e Deodoro, ou industrial 10, OLIVEIRA, Márcio Piñon de. A trajetória de um subúrbio industrial chamado Bangu . P.95-137 In: OLIVEIRA, Márcio Piñon de; FERNANDES, Nelson da Nobrega [et al.]. 150 ans de subúrbio carioca . Rio de Janeiro: Lamparina: Faperj: EdUFF, 2010. 10
podendo ser exemplificado pela fábrica de tecidos em Del Castilho e Bangu, uma sensação de improviso e até descuido dos gestores da cidade. As linhas até aqui escritas apontam para a complexidade das relações entre os bairros cariocas. Quando olhamos para o ainda estigmatizado subúrbio ao traçarmos um comparativo da forma de crescimento dos suburbs norte-americanos e dos banlieus franceses é possível notar a disparidade entre nomenclaturas que deveriam ser sinônimas. Nos Estados Unidos da América e na França o conceito é utilizado para designar espaços que estão fora dos limites administrativos da cidade, enquanto que no Rio de Janeiro ele está circunscrito à mesma área administrativa da cidade, contudo ainda possui características que lhe são muito peculiares. Dado relevante é o fato de que a falta do trem descaracterizava na linguagem popular nas décadas de 1950 e 1960 o bairro como suburbano, como é o caso do bairro de Jacarepaguá – fato valioso já que esse foi um bairro caracterizado, como vimos anteriormente como suburbano, mas que não carrega no imaginário carioca essa conotação. Áreas como Madureira, Cascadura, Méier que nas mesmas décadas já estavam totalmente urbanizadas, consideradas até como subcentros ainda eram e são consideradas como bairros de/do subúrbio. Isso demonstra uma situação muito específica da consolidação de um modelo na consciência coletiva do carioca. É interessante notarmos que o Censo de 1950 utilizava o termo subúrbio para definir áreas que não tinham alta concentração predial nem espaço ininterruptos além de possuir indícios de transição dos elementos agrícolas para características de zona urbana. Atualmente, o Censo não utiliza o termo para realizar suas análises, uma vez que o Brasil já fez a transição de país rural pra urbano. Continuar utilizando o conceito num país que na década de 1950 possuía 44,67% de taxa de urbanização, mas que no ano de 2010 apresentou 84,36% 11,e em uma das principais cidades do país, o Rio de Janeiro, a taxa de quase 100%,parece não fazer sentido.
FERNANDES, Nelson da Nobrega; OLIVEIRA, Alfredo César Tavares de. Marechal Hermes e as (des)conhecidas origens da habitação social no Brasil: o paradoxo da vitrine não vista. p.57-94 In: OLIVEIRA, Márcio Piñon de; FERNANDES, Nelson da Nobrega [et al.]. 150 anos de subúrbio carioca . Rio de Janeiro: Lamparina: Faperj: EdUFF, 2010. 11
Dados disponíveis no site do IBGE http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=POP122
Atualmente a administração municipal do Rio de Janeiro também não utiliza de forma oficial o conceito subúrbio. A cidade é pensada e planejada desde 1981 por uma divisão setorial por cinco grandes Áreas de Planejamento - “AP” (AP1, AP2, AP3, AP 4 e AP), subdivisões com grupos de bairros adjacentes que formam trinta e cinco Regiões Administrativas, conhecidas por “RA”, e os Bairros, que foram oficializados somente nesse ano, sendo atualmente 161. Mas esta categoria ainda é muito utilizada na fala dos habitantes, noticiários, demonstrando a ressignificação pela qual o conceito subúrbio passou. A título de breve exemplificação vemos o bairro suburbano ser constantemente cantado a partir de uma perceptiva acabrunhada, como na música “Subúrbio” (2006) de Chico Buarque, na qual uma antítese da Zona Sul é estabelecida, destacando a opulência e as normas dos bairros oceânicos e a “falta de” nos bairros do subúrbio, como pode ser observado no trecho abaixo: “Lá
não tem brisa/ Não tem verde-azuis / Não tem frescura nem atrevimento/ Lá não figura no mapa /No avesso da montanha, é labirinto/ É contra-senha, é cara a tapa […]/ Casas sem cor/ Ruas de pó, cidade/ Que não se pinta/ Que é sem vaidade/ Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção/ Traz as cabrochas e a roda de samba/ Dança funk, o rock, forró, pagode, reggae/ Teu hip-hop/ Fala na língua do rap/ Desbanca a outra/ A tal que abusa/ De ser tão maravilhosa/ Lá não tem moças douradas/ Expostas, andam nus/ Pelas quebradas teus exus/ Não tem turistas/ Não sai foto nas revistas/ Lá tem Jesus/ E está de costas […]” S e
por um lado, o bairro é, e sempre foi, uma realidade social urbana, é a partir
das relações e do conjunto de bairros do Rio de Janeiro que se realiza o processo de distinção e contraponto ao outro por práticas culturais. Sendo assim não é possível chamar Madureira de Copacabana. Há inúmeros elementos que os diferenciam, que envolvem sentimentos, valores e categorias socialmente cultivadas que precisam ser questionados, pois há cor, vaidade e atrevimento para além das praias de água gelada e as garotas bronzeadas de Ipanema.
O BAIRRO DE MADUREIRA: CAPITAL DO SUBÚRBIO DA CENTRAL 12 O bairro de Madureira é interpretado, mimetizado, noticiado com certa frequência no Rio de Janeiro por ser portador de uma visibilidade social significativa, se comparado a outros bairros. Abarca marcas populares fortes que fazem dele um tipo ideal para 12
Madureira, Eterna Capital do Samba. Samba-enredo da Escola de Samba União de Vaz Lobo, 1972
abordarmos o conceito carioca de subúrbio. Quando consideramos os atributos utilizadas por Nelson Fernandes (2001) e Maria Therezinha Soares (1965) podemos identificar os elementos necessários, como a presença do trem e a predominância de uma classe média e pobre de moradores para caracterizar o bairro de Madureira como suburbano, além de ser frequentemente representado e identificado pelos cariocas como um bairro de subúrbio. O universo de pesquisa que elegi me é familiar em alguns sentidos: 1) psicológico, pois nasci e cresci em uma família que é considerada “tipicamente” como de classe média; 2) geográfico, pois morei toda a minha vida em bairros da zona norte, em bairros que são tidos como suburbanos, e já visitei inúmeras vezes o bairro de Madureira, mas na situação de consumidora e transeunte do seu centro comercial. Mas nunca me propus a entender as relações que cercam o bairro, por meio de um processo hermenêutico que visa compreender sociologicamente o sentido da categorização. Boa parte da Zona Norte do Rio de Janeiro tem mais informações disponíveis a partir da colonização portuguesa. Usualmente essa parte da cidade era composta por grandes fazendas da Freguesia de Irajá. O período colonial brasileiro foi fortemente marcado pela plantation da cana-de-açúcar, mas a posição estratégica da área central da cidade do Rio de Janeiro não fornecia as condições ideais para o plantio dessa cultura, nem suas cercanias mais próximas (atualmente os bairros de Botafogo, Flamengo, Catete, Laranjeira, Copacabana, Leblon), pois como sua topografia impossibilitava totalmente ou em grande proporção o plantio por ser formada por morros, lagoas salobras, baixios alagados e manguezais. Apesar da distância, para a época, o cultivo da cana-de-açúcar foi feito nas baixadas de Santa Cruz – Campo Grande, Jacarepaguá e Irajá. A baixada de Irajá possuía acesso e escoamento facilitados por um rio de águas tranquilas até a baía de Guanabara, onde estava localizado o porto da cidade. Devido a essa particularidade, a região contribuiu para sustentabilidade econômica da cidade, além de se tornar o primeiro polo de produção de açúcar em escala. A região cresceu e transformou-se em uma importante localidade para o comércio e, progressivamente, deu origem a um ponto de parada próximo à interseção entre as três baixadas. A constituição de uma centralidade possibilitou um aldeamento maior, bem como a existência de uma elite de comerciantes locais. Com a vinda da Família Real a economia ficou aquecida em diversas localidades e setores, beneficiando em particular a região da baixada de Irajá. Outro fator relevante para o adensamento populacional foi a
construção do Forte de N. Sr.ª da Glória, na região hoje conhecida como Campinho, pois os militares arregimentados foram acompanhados de suas famílias. Esse evento contribuiu para o crescimento do aldeamento, mas a região ainda era composta por grandes propriedades rurais. Próximo ao forte existia a Fazenda de Campinho, oriunda do engenho de mesmo nome (datado do século XVII aproximadamente), propriedade do capitão Francisco Inácio do Canto, situada na Freguesia do Irajá. A propriedade do capitão foi arrendada pelo boiadeiro Lourenço Madureira. Com a morte de Inácio Canto, Lourenço Madureira deteve a propriedade do imóvel, após uma disputa judicial com a viúva do fazendeiro, Rosa Maria dos Santos, no século XIX. O desenvolvimento da fazenda foi o prelúdio do que viria a se tornar no bairro de Madureira. Afastado da área urbana passou a ser mais ocupado após a promulgação da Lei de Terra (1850) que permitiu a posseiros a compra de pequenos lotes facilitando a divisão das grandes fazendas. Somando-se a este fato ocorreu também a explosão demográfica e interiorização das linhas dos trens, entre os anos de 1872 e 1890, como foi mencionado nas linhas acima escritas. Ao mesmo tempo em que se dava a construção do estigma do conceito subúrbio, Madureira ia se consolidando como centro comercial da região com a construção do Mercado de Madureira (1914), que, durante boa parte do século XX, foi o maior centro de distribuição de alimentos da região, conhecido pelo preço módico. Havia opções de lazer para os moradores que não iam ao Centro da cidade passear na Rua do Ouvidor ou não frequentavam o Teatro Municipal e cinemas do centro. Em 1914 surgiu o primeiro clube de futebol da região, o Fidalgo Futebol Clube, que mais tarde deu origem ao Madureira Esporte Clube (1933), com sede até hoje ao lado do recente Mercadão de Madureira. Possuíam também como alternativa de entretenimento os cinemas, que proliferavam no Méier e em Madureira, como o cinema Beija-Flor inaugurado em 1914. O ritual carnavalesco tem também grande relevância para o bairro. O clube de carnaval “Vai como pode” (1923), anos mais tarde, daria origem ao Grêmio Recreativo Escola da Portela, fundado por Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela. Apesar de não fazer parte dos limites geográficos, pois a quadra está localizada na rua Clara Nunes, no bairro vizinho de Oswaldo Cruz, a Escola de Samba Portela (1935), é referência na localidade e no imaginário carioca quando falamos de samba. Tanto que neste ano o samba da Portela prestigiou o aniversário de 450 anos do Rio de Janeiro
falando da relação do bairro com a cidade “Sou carioca, sou de Madureira/A tabajara levanta poeira/Pra essa festa maneira meu bem me chamou/Lá vem Portela malandro, o samba chegou” (PORTELA, 2015).
Em meados do século XX, é possível notar por intermédio do trabalho geográfico de análise fisionômica desenvolvido por Maria Therezinha Soares em 1965, que o bairro está inserido na categoria bairro-subúrbio. Contudo uma matéria de 1964 do jornal O Globo, com duas páginas destinadas à Madureira, demonstra como o conceito não está ligado à urbanização, mas faz parte de uma construção social do espaço. Ao cristalizar a imagem de uma paisagem composta pela presença da linha férrea e população menos abastada, a reportagem liga o “bairro suburbano” mais uma vez, de forma indissociável, à presença da linha férrea. Os elementos destacados poderiam servir como elementos de contestação caso fosse considerado o conceito etimológico, pois demonstra a relevância industrial (o CENSO de 1959 diz que no bairro estão contidos 248 estabelecimentos industriais), do setor comercial e de serviços e social do bairro, e, no entanto, ainda assim era percebido como suburbano: “O desenvolvimento de ocorrido nestes últimos cinco anos em Madureira deu uma vitalidade extraordinária à sua economia, possibilitando ali o abastecimento de 73% dos madureirenses. Isto tornou possível um grande movimento de compras, o estabelecimento de bancos e uma valorização dos imóveis. O elevado índice de poder aquisitivo e uma fôrça (sic) consumidora notável dão ao meio milhão de moradores de Madureira uma renda familiar mensal superior a Santos. Tais disponibilidades financeiras somam cinco bilhões e uma renda mensal familiar superior a 46 mil cruzeiros. [...] O importante subúrbio de Madureira conquistou na Zona Norte o mesmo lugar de proeminência que o bairro de Copacabana conquistou, desde há muito, na Zona Sul”. (O Globo, 1963: 2)
A paisagem do bairro foi passando por transformações constantes e até os nossos dias é modificada pela atuação do poder público ou construções da iniciativa privada, mas manteve sempre atrelado ao seu nome a categoria subúrbio. Atualmente, o bairro está na Área de Planejamento 3 13, e nomeia a XV Região Administrativa 14 (fato que demonstra sua centralidade em relação aos bairros adjacentes).
A Área de Planejamento 3 possui 80 bairros distribuídos em 13 Regiões Administrativas, que correspondem a 16,6% do território municipal - 203,47 km² - e 37,9% do total da população residente no Rio de Janeiro - 2.395.449 habitantes, segundo o Censo 2010. 13
Uma característica local importante é a divisão que a linha auxiliar, Estação do Mercadão (antiga estação Magno), e a linha principal, Estação Madureira, fazem no bairro, criando três áreas distintas. A faixa central, entre as linhas principal e auxiliar, tem um pujante centro comercial, vasto setor de serviços (consultórios, laboratórios, bancos, entre outros), além de uma das principais vias de acesso ao bairro: Estrado do Portela, e recentemente foi construído um importante espaço de lazer, o Parque de Madureira. Na faixa central a parte residencial está entrelaçada com as zonas de comércio, mas indo em direção ao bairro de Oswaldo Cruz vemos aumentar nas ruas transversais o número de logradouros que possuem somente casas. A porção que fica à esquerda da linha principal é majoritariamente residencial, uma das ruas mais conhecidas é a Dona Clara. Essa parte conta ainda com dois importantes equipamentos do Sistema S, o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) que forma profissionais através de cursos técnicos e o SESC (Serviço Social do Comércio) que desenvolve atividades voltadas para as áreas educacional e cultural. O quinhão à direita da linha auxiliar é mais heterogêneo, apresentando na via principal Av. Ministro Edgard Romero (importantíssima para bairro) o conhecido Mercadão de Madureira e outras lojas criando uma faixa de grande circulação de pessoas e comércio popular. Entretanto nas ruas transversais à avenida podemos observar residências, compostas predominantemente por casas. Essa região também apresenta uma população mais carente por conta das comunidades da Serrinha, Congonhas e Cajueiro. Em entrevistas preliminares com cinco moradores foi observada a percepção quanto à constituição por classe, há um consenso de que ele é habitado por uma de classe média e pobre. Uma professora aposentada, da área central, se auto-identificou como sendo de classe média, mas relatou as dificuldades que não ter um plano de saúde lhe trazia. Por ser um serviço caro não tinha como arcar com os custos, e por isso recorria ao hospital público da Barra, por considerar o atendimento melhor, já que acreditava que seus moradores faziam cobranças quanto à qualidade, com maior potencialidade de pressão do que os moradores de Madureira. Outra moradora, Elaine da Serrinha se
14A
Região Administrativa de Madureira compreende os bairros de Madureira, Honório Gurgel, Rocha Miranda, Turiaçu, Vaz Lobo, Engenheiro Leal, Cavalcanti, Quintino Bocaiúva, Cascadura, Campinho, Osvaldo Cruz, Bento Ribeiro e Marechal Hermes.
acredita ser da “nova classe média” 15, afirmando que suas conquistas no campo educacional e profissional foram interligadas ao grande esforço da família, pois só assim pode concluir a graduação de Assistência Social. Apesar de não ser populoso, em incursões periódicas, iniciadas em 2014 e feitas ao longo do ano de 2015, ficou perceptível como o bairro é movimentado. Durante o horário comercial parece só aumentar o número de transeuntes, uma característica que talvez se explique pela sua importância como subcentro da cidade. Tal fato confere uma dinâmica de centro comercial e de serviços ao longo do dia. Os moradores, aproximadamente 50 mil, contam com a presença de uma população flutuante muito expressiva16, segundo especialistas ultrapassa a quantidade de moradores que ali vivem. Mas em todas as entrevistas preliminares a questão de vínculos sociais fortes com os vizinhos foi mencionada. Como não podem dispor de muitos recursos econômicos a rede social é importante para solucionar problemas cotidianos. Entretanto a ideia de que todos se conhecem, que muitas vezes é reforçada nos discursos, perde força. A divisão criada pela linha do trem cria algumas barreiras simbólicas de convívio e fazem que os moradores tenham experiências distintas com o bairro. Há um jogo entre desconhecido e conhecido que reforça a ideia de familiaridade com os espaços e possibilidade de reconhecimento entre os membros de dado grupo e com o próprio espaço. Quanto ao prestígio do bairro, em relação aos bairros vizinhos, vemos que há uma valorização e reconhecimento da centralidade de Madureira, sendo assentida pelos seus transeuntes. Apesar de serem assinaladas no mapa suas delimitações estendem-se para bairros vizinhos, a exemplo de Oswaldo Cruz. Em alguns momentos os bairros limítrofes são confundidos com Madureira, principalmente quando nos referimos ao samba. Durante uma entrevista preliminar com transeuntes do bairro, conversei com uma senhora No Brasil a questão ganhou destaque com estudo do economista Marcelo Neri (2008). Do ponto de vista estatístico essa parcela representa a média da sociedade, e esse segmento da população tem sido denominado usualmente como “classe C” ou “Nova Classe média”. Mas o critério puramente economicista fez surgir inúmeras críticas ao modelo: questionamentos sobre sustentabilidade das pessoas que ascenderam a Classe C (LAMOUNIER e SOUZA, 2010), se essas pessoas tinham os mesmos habitus de uma classe média estabelecida e se o consumo de determinados bens lhes dava estabilidade e um estilo de vida com menos privações e imprevistos e na verdade seriam a nova classe trabalhadora (SOUZA, 2012) ou se teve algum impacto e causou algum impacto significativo na estrutura de classe do nosso país (SCALON e SALATA, 2012). 15
16 Segundo
dado fornecido pelo Mercadão de Madureira, só no seu espaço, passam mais de 80 mil pessoas por dia.
que frequenta o Parque de Madureira e perguntei se ela era do bairro, pois estávamos interessados na relação dos moradores com o bairro. Ela prontamente respondeu: “Não, sou de Oswaldo Cruz, mas é a mesma coisa”.
O Parque de Madureira se tornou em pouco tempo em referência para as adjacências e constitui outro caso exemplar da pujança simbólica do bairro. Apesar da maior área do parque estar nos limites de Oswaldo Cruz e Turiaçu , não é nenhum deles que nomeia a extensa área verde. Quando visitamos analisamos as estruturas internas e externas do bairro e conhecemos o seu microcosmo tornando possível tratarmos de questões mais amplas da cidade do Rio de Janeiro e perceber que o bairro é uma unidade de análise muito rica com rupturas e continuidades da representação criada. Vemos então que Madureira não é feita apenas por ruas empoeiradas, ou é a parte sem a vivacidade das cores de uma cidade. Na verdade, existe no bairro uma outra cor, outra beleza que durante um longo período da história brasileira foi menosprezado, estigmatizado e perseguido. (CRUZ, 2007 e FERNANDEZ, 2015) O esforço de pesquisadores e de muitos de seus moradores é de resgatar a dimensão positiva também atribuída ao bairro em sua história. A Zona Norte, em especial o subúrbio carioca, ainda carece de mais estudos para entendermos as dinâmicas culturais, porém é de grande relevância que pesquisadores contestem a hegemonia da zona sul como representante do “verdadeiro” carioca. Há um movimento de valorização daquilo que é midiatizado como tradicional na região (samba, comércio, cultura afro-brasileira), sendo constantemente reforçado por alguns moradores. As trocas entre agentes externos e internos são significativas para os discursos sociais que se desdobram ajudando-nos a refletir sobre as práticas do bairro. Conhecido como lar da cultura afrodescendente, as religiões afro-brasileiras têm um papel de destaque na localidade. Desde 2003, o Mercadão de Madureira promove anualmente a Festa de Iemanjá do Mercadão de Madureira, que tem por objetivo promover a Cultura Afro-brasileira e agradecer aos Orixás pela reconstrução do espaço após o incêndio ocorrido em janeiro de 2000, como consta na página da festa. A promoção da festa está diretamente relacionada ao mercado por ter em seu interior mais de 25 lojas dedicadas a este universo. Os processos de produção e reprodução social têm como interlocutores os que não vivem no bairro, porém repercute na população, assim como o inverso é verdadeiro,
gerando marcas de afirmação da cultura negra, de valorização do samba, por meio de iniciativas das escolas de samba locais (Portela, Império Serrano e Tradição), da ONG Grupo Cultural Jongo da Serrinha 17 e o Baile Charme que acontecem religiosamente todos os sábados do mês embaixo do viaduto Negrão de Lima. É notória a importância do bairro para o desenvolvimento de atividades recreativas e culturais, tanto que no Rio Guia Oficial é um dos pouquíssimos bairros da zona norte referenciado, sendo retratado como “ Berço do samba e polo comercial da zona norte carioca, o bairro de Madureira conta com boas atrações culturais que são um chamado à diversão. Festas, feiras, sambas e o Parque Madureira fazem parte desse breve roteiro”.
No caso de Madureira observamos a centralidade do Parque de Madureira, do Mercadão de Madureira, da musicalidade por conta das escolas de samba presentes no bairro e a relevante participação de alguns moradores para a valorização do samba (o bairro é considerado berço do samba). Paulo da Portela (1901-1942) e a artista Clara Nunes (1942-1983), por exemplo, tiveram seus nomes transformados em logradouro: Estrada do Portela e Rua Clara Nunes. No período pré-carnavalesco o bairro fica ainda mais movimentado aos finais de semana em decorrência das feijoadas realizadas pelas escolas de samba e principalmente pelas apresentações do samba enredo (música usada no desfile realizado na Sapucaí). Madureira então é autenticamente invadida por apaixonados pelo samba e sua bateria ou/e torcedores carnavalescos. A sociabilidade intensifica-se e o consumo de bebidas também, as pessoas passam a vestir roupas com as cores da escola, a quadra da Portela ganha um mar de pessoas de azul e branco, a quadra da Império Serrano ganha vida em verde e branco. Esse momento também aumenta a visibilidade do bairro na mídia, que com frequência exibe reportagens sobre todas as escolas, conversam com seus presidentes, vão filmar quadros com as rainhas de bateria e passistas das escolas. Entretanto, a música “O meu lugar” (2009) do cantor e compositor de samba, Arlindo Cruz, que tem uma vivência no bairro, retrata como os moradores vislumbram um mundo melhor, a religiosidade relacionada à cultura afro-brasileira e outras práticas 17 Organização
social criada no bairro de Madureira, com cerca de 50 anos, que promove ações integradas
entre cultura, arte, memória, a partir do jongo, dança afrodescendente que é considerada patrimônio imaterial do Sudeste.
cotidianas que são tratadas de forma amável e dotadas de um sentido de pertencimento, apesar de não serem consideradas modernas. A letra da música vai ao encontro da maneira como os moradores lidam e enfrentam os problemas locais: “O meu lugar,/é caminho de Ogum e Iansã,/lá tem samba até de manhã,/ uma ginga em cada andar./O meu lugar,/é cercado de luta e suor,/esperança num mundo melhor,/e cerveja pra comemorar./O meu lugar,/tem seus mitos e seres de luz,/é bem perto de Oswaldo Cruz,/Cascadura, Vaz Lobo, Irajá./O meu lugar,/é sorriso é paz e prazer,/o seu nome é doce dizer,/Madureira, lá, laiá./[...]/Ah que lugar,/a saudade me faz relembrar,/os amores que eu tive por lá,/é difícil esquecer./Doce lugar,/que é eterno no meu coração,/e aos poetas traz inspiração,/pra cantar e escrever./Ah meu lugar,/quem não viu a Tia Eulália dançar,/Vó Maria o terreiro benzer,/e ainda tem jongo à luz do luar./Ah meu lugar,/tem mil coisas pra gente dizer,/o difícil é saber terminar,/Madureira, lá, laiá././Em cada esquina um pagode um bar,/em Madureira./Império e Por tela também são de lá,/Em Madureira./E no Mercadão você pode comprar,/por uma pechincha você vai levar,/um dengo, um sonho pra quem quer sonhar,/Em Madureira./e quem se habilita até pode chegar,/tem jogo de ronda, caipira e bilhar,/buraco sueca pro tempo passar,/Em Madureira./E uma fezinha até posso fazer,/no grupo dezena, centena e milhar,/pelos setes lados eu vou te cercar,/Em Madureira. [...]” (CRUZ,2009)
Viver no subúrbio da cidade é diferente de habitar no Centro ou na Zona Sul. Os entrevistados, se consideram suburbanos e valorizam esse modo de vista distinto. Ainda que alguns depois de vivências mais intensas com outras áreas da cidade percebam carências, sobretudo em aparelhos culturais menos massificados e opções de transporte. Ao buscar as singularidades da vida no subúrbio, foi impossível identificá-las sem relacioná-las ao que ocorria no âmbito do Rio de Janeiro. Tais especificidades só saltaram aos olhos ao atentar, concomitantemente, para o as relações estabelecidas no interior do bairro e por sua construção histórica. Entretanto, cabem reflexões mais acuradas da ligação dos moradores com o conceito de subúrbio que serão desenvolvidas em outro momento.
CONCLUSÃO
Ao aguçar o olhar para a desnaturalização da categoria subúrbio, neste trabalho, é possível referir-se a relações sociais, hierarquias e condições de exercício de poder que contribuíram na transformação da percepção dos espaços. Se o espaço é o lugar praticado como afirma DECERTAU (2009) há meio de materializar estas práticas, em um processo que denota os territórios, assim como os sujeitos . “Refúgio dos infelizes”, “Atraso”, por exemplo, eram as expressões que após as primeiras décadas do século XX explicitavam que o subúrbio era pensado como antítese da modernidade e do progresso. Quando o então Distrito Federal rompeu com o modelo de urb do Império para se tornar civilizado, observamos o processo de urbanização de não foi neutro, nem tampouco uniforme à cidade. Consideramos que não ocorreu de modo mecânico e imediato, como um ato mágico. Contudo foram sendo paulatinamente sedimentados, delimitando deste modo fronteiras simbólicas e tangíveis. A maneira como representamos a nós e aos outros implica num ordenamento hierárquico, que não é dado pelo mundo sensível nem pela consciência individual. É, antes, uma construção coletiva, não espontânea que obedece à sociedade em sua totalidade. Quando fazemos um trabalho de campo devemos compreender que a dimensão espacial dos fenômenos emerge da condição humana e tende à naturalização. Sendo assim, a categoria subúrbio carioca é objeto da abordagem sociológica, pois não é dada naturalmente, mas por uma ordem social da qual os habitantes do Rio de Janeiro partilham. Os sentidos mantidos e associados pelos processos de classificações dizem respeito a um sistema único, totalizado, uma vez que a sociedade é compreendida como um todo. Construído com base em um processo relacional no qual o resultante é a definição do “nós/eu”, que só é possível quando há delimitação de quem são “eles”/ outros” sendo dado de forma cultural, porque envolve categorias e imagens do mundo social, sentimentos e valorações a respeito dos seus componentes, linguagem, fabricação de memórias e de projetos, que servem como símbolos ou práticas para identificação (MAUSS; DURKHREIM, 1981). Como as interações quotidianas, rituais comunitários, ações estratégicas, mobilizações coletivas, ou outras não se dão igualmente em todos os bairros, seus resultados são peculiares. No conjunto de peculiar sobreposição local estas dimensões de estruturação social emprestam ao Rio de Janeiro e aos seus bairros um ordenamento
singular, uma vez que possui um tipo específico de configuração cultural, demográfica e sócio-espacial, composto por um complexo conjunto de processos exógenos, endógenos e entre localidades que compartilham e agem de forma participativa para da constituição de uma percepção do que significa morar na Zona Sul ou no subúrbio carioca.
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