227
PSICOLOGIA GERAL
AMÂNCIO DA COSTA PINTO ISBN: 978-972-674-605-8
Amâncio da Costa Pinto
PSICOLOGIA GERAL
Universidade Aberta 2001 © Universidade Aberta
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UNIVERSIDADE ABERTA — 2001 Palácio Ceia • Rua da Escola Politécnica, 147 1269-001 Lisboa – Portugal www.univ-ab.pt e-mail:
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TEXTOS DE BASE; N.o 227 ISBN: 978-972-674-605-8
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AMÂNCIO DA COSTA PINTO Doutorou-se em 1985 na especialidade de Psicologia Experimental e é desde 1993 professor catedrático na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e regente da cadeira de “Aprendizagem e Memória”. É autor de vários artigos publicados em revistas científicas na área da “memória humana” e dos livros Metodologia da Investigação Psicológica, Psicologia Experimental: Temas e Experiências e Temas de Memória Humana.
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Psicologia Geral 13
Prefácio 1. Psicologia: Introdução Geral
19
Definição e âmbito da psicologia
21
Marcos da história da psicologia
25
Psicologia e ciências afins
27
Métodos psicológicos
27
Observação naturalista
28
Estudo de casos
29
Questionários
29
Método correlacional
31
Método dos testes
32
Método diferencial
34
Método experimental
37
Perspectivas de investigação psicológica
38
Perspectiva bio-psicológica
39
Perspectiva evolucionista
42
Perspectiva sócio-cultural
44
Perspectiva cognitiva
45
Áreas de especialização psicológica
46
Psicologia clínica
46
Psicologia educacional
47
Psicologia organizacional
47
Psicologia cognitiva e experimental
47
Psicologia social
48
Psicologia do desenvolvimento
48
Organização e plano da obra
49
Conceitos psicológicos referidos no capítulo
49
Perguntas de auto-avaliação
49
Sugestões de leitura
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5
2. Aprendizagem 53
Âmbito, definição e tipos
55
Habituação
56
Condicionamento clássico
56
Pavlov: procedimento experimental
60
Generalização e discriminação
61
Relação temporal entre EC e o EI
62
Condicionamento de respostas emocionais
66
Explicações do condicionamento de Pavlov
67
Condicionamento operante
68
Thorndike: procedimento experimental
69
Características de aprendizagem
70
Leis de aprendizagem
71
Skinner: procedimento experimental
72
O papel do reforço
73
Tipos e programas de reforço
74
6
Comportamento supersticioso
75
Reforço e punição
76
Reforço ou punição?
79
Condicionamento de fuga e evitação
80
Extinção da resposta de evitação
80
O desamparo aprendido
81
Moldagem do comportamento
82
Limitações biológicas do condicionamento
86
Condicionamento clássico e operante
88
Condicionamento e cognição
93
Aprendizagem por observação
95
Observação e imitação
98
Aprendizagem verbal
99
Materiais e parâmetros de avaliação
100
Tarefas de aprendizagem verbal
102
Tipos de aprendizagem verbal
104
Aprendizagem e cognição
105
Conceitos de aprendizagem
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105
Perguntas de auto-avaliação
106
Sugestões de leitura
3. Memória 109
Âmbito e perspectivas
111
Referências históricas de memória
116
Sistemas e processos de memória
118
Distinções de memória
119
Curva de posição serial
121
Estados de amnésia
122
Memória a curto prazo
123
A capacidade da MCP
125
A codificação na MCP
126
Duração e esquecimento na MCP
130
Memória operatória
132
Memória a longo prazo
132
Modelos de MLP
135
Codificação na MLP
137
Retenção na MLP
138
Categorização e hierarquização
140
Formação de imagens
143
Recuperação da informação na MLP
144
Provas de memória
148
O problema do esquecimento
149
Teoria do desuso
151
Teoria da interferência
154
Incongruência contextual
156
Recalcamento
158
Esquecer é recordar
159
Recordação e reconstrução
163
Conceitos de memória
164
Perguntas de auto-avaliação
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7
164
Sugestões de leitura
4. Inteligência
8
167
Âmbito e definições
170
Medidas de inteligência
170
História breve dos testes de inteligência
173
O significado do QI
175
Inteligência geral: o factor g
175
Características psicométricas de um teste
176
Fidelidade e validade
177
Estabilidade e previsão dos testes de inteligência
179
O efeito Flynn
180
Testes de inteligência: prós e contra
180
Limitações dos testes
181
Vantagens dos testes
182
Teorias e modelos de inteligência
182
Teorias psicométricas
183
Spearman: o factor g
183
Thurstone: habilidades mentais primárias
184
Guilford: o cubo da inteligência
185
Cattell e Horn: inteligência fluida e cristalizada
185
Carroll: a teoria dos estratos de inteligência
186
Jensen: o factor g de inteligência
188
Estrutura de inteligência e análise factorial
189
Teorias de processamento de informação
190
Haier: inteligência e o metabolismo da glucose
190
Nettelbeck: inteligência e tempo de inspecção
191
Jensen: inteligência e tempos de reacção de escolha
191
Hunt: inteligência e acesso lexical
192
Simon: inteligência e resolução de problemas
192
Sternberg: inteligência e analogias
194
Teorias de desenvolvimento cognitivo
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195
Teoria de Piaget
196
Teoria de Vygotsky
196
Teorias contextuais
197
Sternberg: teoria triárquica de inteligência
198
Gardner: teoria das inteligências múltiplas
200
A inteligência emocional
201
O problema da hereditariedade-meio
202
Factores genéticos
204
Adopção de crianças
204
Factores ambientais e sócio-culturais
206
Interacção hereditariedade-meio
208
Observações complementares
209
Conclusão
210
Conceitos de inteligência
211
Perguntas de auto-avaliação
211
Sugestões de leitura
5. Motivação 215
Definição
216
Conceitos motivacionais
218
Teorias da motivação
219
Teorias biológicas
219
Teoria dos instintos
220
Teoria sociobiológica
221
Teoria de Freud
222
Teorias comportamentais
222
Teoria de redução de impulsos
224
Teoria da excitação
226
Teoria do incentivo
227
Teoria humanista de Maslow
229
Teorias cognitivas
230
Teoria da dissonância cognitiva de Festinger
232
Modelos de atribuição causal
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9
233
Teorias da aprendizagem social
234
Teoria da expectativa x valor
234
Teoria de Nuttin
235
Modelo de Bandura
236
Motivação intrínseca e extrínseca
238
Não há uma teoria …
239
Conclusão
240
Conceitos de motivação
240
Perguntas de auto-avaliação
240
Sugestões de leitura
6. Emoção
10
243
Âmbito da emoção
244
Funções da emoção
245
Conceitos emocionais
247
Emoções primárias e secundárias
249
Teorias da emoção
249
Teoria de James-Lange
250
Teoria de Cannon-Bard
251
Teoria de Schachter e Singer
255
Teoria cognitiva de Lazarus
257
Expressão e feedback facial da emoção
259
Perspectiva neurológica
259
Modelo de LeDoux
260
Modelo de Damásio
262
Emoção e cognição
266
Emoção e terapia
267
Cognição e congruência emocional
269
Conclusão
270
Conceitos de emoção
270
Perguntas de auto-avaliação
270
Sugestões de leitura
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7. Personalidade 274
Teorias da personalidade
274
Teorias psicodinâmicas
275
Freud
276
Mecanismos de defesa
277
Erik Erikson
280
Teorias humanistas
280
Carl Rogers
282
Teoria dos tipos e dos traços
282
Tipos de personalidade
283
Traços de personalidade
284
Modelo de Hans Eysenck
286
Modelo de Cattell
287
Modelo dos cinco grandes factores
290
Teorias beavioristas
291
Teorias situacionistas
294
Teorias interaccionistas
296
Teorias e conclusão
297
Instrumentos de medida da personalidade
297
Métodos projectivos
298
Questionários e inventários
301
Avaliação comportamental
301
Origem das diferenças de personalidade
304
Conclusão
305
Conceitos de personalidade
305
Perguntas de auto-avaliação
306
Sugestões de leitura
309
8. Referências
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11
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Prefácio
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Os temas e as áreas de investigação psicológica são muito mais vastas do que pode sugerir uma leitura apressada do Índice deste livro de Psicologia Geral. Há já muitos anos que os conhecimentos psicológicos são de natureza enciclopédica, de modo que um livro desta dimensão terá de ser necessariamente uma selecção de temas que pela sua relevância e diversidade possam ser considerados fundamentais em psicologia. Os temas seleccionados estão incluídos nas principais publicações deste tipo e tentam representar um certo equilíbrio em termos da aprendizagem da psicologia entre as dimensões mais cognitivas do comportamento humano com três capítulos sobre Aprendizagem, Memória e Inteligência e os aspectos mais afectivos e emocionais com capítulos sobre Motivação, Emoção e Personalidade. A redacção deste livro foi para mim uma oportunidade e um desafio. Um desafio porque não sendo eu um especialista em algumas das áreas focadas neste livro (na verdade não há ninguém que o seja actualmente em qualquer parte do mundo em psicologia geral) tive necessidade de actualizar conhecimentos, ganhando assim a oportunidade de obter uma visão mais actualizada e abrangente da investigação psicológica que se pratica actualmente. Na realidade esta tarefa foi mais delicada do que inicialmente julgara, ao verificar a pouco e pouco que escrever uma obra generalista é mais complexo do que escrever uma obra específica sobre um tema da nossa especialidade. Um livro de autor, ao contrário de um livro organizado por um autor-editor, é um livro que permite desenvolver uma perspectiva. Este livro tem subjacente a perspectiva de que a psicologia é uma ciência empírica e o seu objecto não se reduz ao das ciências afins. A psicologia é uma ciência empírica; não é um enlatado de psicologia popular, senso comum, conselhos da avòzinha e especulação de gabinete sob a forma de sugestões, conselhos e horóscopos para revistas e jornais. A psicologia é uma ciência constituída por modelos e teorias, racionalmente desenvolvidas e empiricamente fundamentadas, cuja natureza condiciona a recolha de dados comportamentais que por sua vez vão apoiar ou desconfirmar os modelos e teorias subjacentes sobre o funcionamento da mente humana. É esta perspectiva que está subjacente às apreciações críticas dos vários modelos e explicações psicológicas descritas ao longo do livro. A psicologia é uma ciência autónoma face à biologia e medicina ou à sociologia e antropologia. Neste livro não há capítulos específicos sobre condicionalismos biológicos e sociais do comportamento humano, embora estas variáveis sejam consideradas e às vezes valorizadas em várias secções desta obra. Apesar dos condicionalismos a que o comportamento humano está sujeito, a psicologia é sobre a psique, a mente, as estruturas e processos mentais que ultimamente são os responsáveis pela tomada de decisões humanas no dia a dia. Os seres humanos têm um passado, uma história de desenvolvimento, uma estrutura © Universidade Aberta
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mental, valores, planos e projectos futuros. Não estão agrilhoados a cadeias biológicas ou sociais, mesmo quando em certos casos as pessoas parecem agir ou reagir em função das suas pulsões instintivas ou da sua honra familiar. É a mente humana em toda a sua organização e complexidade que avalia a informação que tem ao dispor para dirigir o comportamento. Sou fortemente crítico em relação às orientações psicológicas que desvalorizam os processos cognitivos em detrimento do papel concedido às influências sociais e biológicas. Se a realidade fosse aquilo que defendem certas orientações psicológicas, as cadeias estavam vazias, porque haveria sempre justificações biológicas e sociais atenuantes para os actos humanos. Do mesmo modo ninguém valorizaria o comportamento pacífico e ordeiro da maior parte das pessoas, assim como os prémios e as recompensas pelas realizações humanas brilhantes. Às vezes até parece que uma concepção humana deste tipo apenas é ensinada e discutida nos cursos de filosofia, direito e economia. Por complexos de saber em relação a outras ciências ou mesmo por ignorância, a redução da psicologia, da mente e do comportamento às influências biológicas e sócio-culturais tem tido uma divulgação exagerada e infeliz, mesmo por parte daqueles que deveriam defender mais de perto a especificidade do conhecimento psicológico. A redacção deste livro tem por objectivo dar a conhecer aos estudantes universitários no início da sua formação um conhecimento fundamentado e actual sobre alguns dos temas mais centrais da psicologia. O livro é o resultado de um convite feito pela Universidade Aberta, por intermédio do meu colega e amigo Félix Neto a quem agradeço especialmente, com restrições específicas no que se refere ao formato e extensão da obra. A ordem dos capítulos do livro não é arbitrária e há alguma vantagem na leitura sequencial para efeitos de aprendizagem escolar. Apesar de tudo, creio que o leitor ocasional interessado apenas num ou noutro capítulo específico não será especialmente afectado em termos de compreensão. Todo o esforço foi feito para expor os temas de forma clara e interessante. Se o consegui ou não, a última palavra pertence naturalmente ao leitor. Um agradecimento especial ao Dr. Nuno Gaspar pela leitura das provas tipográficas e pelas correcções sugeridas. Esta obra foi o resultado de cerca de um ano de trabalho intenso. Foi durante este período que faleceu o meu pai, Manuel Pinto. À memória do meu querido pai e à vida e saúde do meu amado filho João, que me causou tantas interrupções e chamadas de atenção com os seus ternos 5 anos, dedico este livro. Porto, 21 de Junho de 2000
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1. Psicologia: Introdução Geral
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De psicologia todos sabemos um pouco. Pelo tom da voz, pelo aspecto do rosto, pela posição corporal somos capazes de perceber se o nosso interlocutor está feliz ou triste, nos quer ajudar ou fazer mal. O que o comportamento dos outros revela parece ser uma indicação das intenções ou planos que têm para connosco e dessa percepção e interpretação organizamos os nossos comportamentos e respostas para melhor nos adaptarmos e interagimos com as pessoas e o meio. Em geral somos bem sucedidos nestas tarefas, mas às vezes cometemos erros graves. Escolhemos para amigos pessoas que se vêm a revelar falsas e enganadoras, confiamos o nosso voto a dirigentes corruptos, enamorámo-nos da pessoa errada e divorciámo-nos da pessoa que no fundo nos amava de verdade. Podemos desculparmo-nos destes ou de outros erros dizendo que o comportamento humano é em grande parte um mistério, mas rapidamente nos damos conta de que o nosso comportamento não deixa de ser menos misterioso. Assim porque é que esta manhã acordei tão bem disposto e agora à tarde estou tão irritadiço, porque é que ainda não cumpri as intenções do Ano Novo de fazer ginástica, deixar de fumar, estudar mais ou tentar um melhor relacionamento com a família? O conhecimento psicológico que possuímos sobre nós e os outros parece ser paradoxal. Por um lado, temos algum conhecimento de psicologia ao conseguirmos adaptarmo-nos às pessoas e ao meio apesar das adversidades, de contrário a espécie humana teria já sido extinta. Mas, por outro, damo-nos conta rapidamente de que o conhecimento que possuímos é tão escasso e limitado que é uma sorte termos chegado onde chegámos.
1.1
Definição e âmbito da psicologia
A psicologia é o estudo científico do comportamento e da mente em termos de organização e diversidade. A função da psicologia é constituir um corpo coerente de enunciados, empiricamente fundamentados, de forma a explicar o comportamento e a organização mental das pessoas e proporcionar previsões correctas. A psicologia é uma ciência que tem por objectivo descobrir leis e regularidades entre fenómenos de modo semelhante às ciências físicas e biológicas. A psicologia é ainda uma ciência, porque formula modelos e teorias consistentes para compreender, explicar e prever os fenómenos humanos e depois avalia, modifica, retém ou abandona tais modelos explicativos se não forem capazes de resistir às provas empíricas, à replicação dos resultados e ao escrutínio dos especialistas, ao contrário da psicologia popular e do senso comum que apresentam um corpo de saberes praticamente imutável ao longo de gerações. © Universidade Aberta
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A psicologia científica e a psicologia popular podem ter alguns aspectos comuns em termos de conteúdo, mas são saberes de natureza diferente em termos de pesquisa de dados, organização do saber, previsão e controlo da acção. O saber não-científico de natureza popular, que se reclama de psicologia, é contraditório nas suas afirmações, não tem consistência interna, as fronteiras do saber são obscuras e indefinidas, as circunstâncias da sua aplicação são vagas e confusas, e falta-lhe precisão na capacidade preditiva. Nesta perspectiva, a psicologia científica tem uma especificidade própria e não precisa de se preocupar em servir de contraponto à psicologia popular e ao senso comum (e.g., Pinto, 1999). Qual é o âmbito da psicologia científica? Como antes foi dito, a psicologia é o estudo científico do comportamento, das funções da mente e da sua organização mental. O objecto da psicologia é analisado sob diferentes perspectivas com o objectivo de se vir a obter um dia uma perspectiva integradora. Estas perspectivas são a biológica, a comportamental, a cognitiva, a sócio-cultural, a psicanalítica e a fenomenológica. Como exemplo das diferentes perspectivas de investigação psicológica na análise do comportamento humano, considere-se a investigação sobre o comportamento de ira ou cólera. Na perspectiva biológica, a ira pode ser analisada a partir da activação de certos circuitos neuronais do cérebro, lesões cerebrais provocadas pelo parto, alterações cromossomáticas ou genéticas e da presença ou ausência de certo nível hormonal no organismo. Na perspectiva comportamental, a ira pode ser analisada a partir dos gestos e expressões faciais produzidos, do rubor da face e dos estímulos externos que precederam e acompanham a manifestação da ira. Na perspectiva cognitiva, a ira pode ser analisada a partir das experiências passadas vividas, do modo como um indivíduo as organiza, representa e manifesta, e ainda do modo como tais vivências afectam a maneira de pensar e raciocinar em situações específicas. Na perspectiva sócio-cultural, a ira pode ser analisada a partir da pertença a certos grupos sociais, meios residenciais ou ainda em contextos em que há ou não um público presente. Os acessos de ira são raros na ausência de público. Na perspectiva psicanalítica, a ira pode ser analisada a partir de conflitos parentais não resolvidos na infância, de traumatismos de natureza sexual que foram depois reprimidos pela pessoa para evitar a ansiedade daí resultante, podendo no entanto irromper de forma inesperada e abrupta. Na perspectiva fenomenológica, a ira tende a ser analisada a partir da história de vida de uma pessoa, tendo em conta os ultrajes e afrontas vividos e sofridos, da imagem que se tem de si próprio e do controlo que se julga ter sobre as situações. 20
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A ira está associada a guerras, violência e agressões entre pessoas, grupos e nações. É um fenómeno que foi estudado desde a antiguidade clássica por filósofos como Aristóteles na “Ética a Nicómaco” e Séneca em “De Ira”. A ira é um fenómeno comportamental e social de enorme complexidade, cuja análise, compreensão e explicação científica constituiria um avanço considerável para o saber psicológico. Quer em relação a este, quer a outros fenómenos psicológicos, a psicologia fez já bastantes progressos, mas ainda há um longo caminho a percorrer em termos de formulação de teorias integradoras das diversas perspectivas de análise.
1.2
Marcos da História da Psicologia
Nos dias de hoje a psicologia é um ramo do saber bastante popular e um dos cursos universitários mais escolhido pelos estudantes nos países desenvolvidos. É uma ciência que aparece no entanto para muitos estudantes como sendo um produto americano ou anglo-saxónico, tal é o número de referências bibliográficas atribuídas a investigadores destes países nos dias de hoje. No entanto a psicologia, cientificamente falando, é uma construção cultural europeia. Surgiu e desenvolveu-se na Europa, onde se verificaram nos finais do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX algumas contribuições notáveis por parte de muitas figuras da história da psicologia, das quais destaco a seguir as mais importantes. Na Alemanha, Wundt (1832-1920) fundou em 1879 o primeiro laboratório de psicologia experimental, possibilitando a autonomização da psicologia como ciência; Ebbinghaus (1850-1909) realizou importantes estudos experimentais sobre memória e esquecimento. Na Áustria, Freud (1856-1939) atribuiu ao inconsciente um papel fundamental na origem das desordens do comportamento e propôs a psicanálise como método de tratamento. Na Rússia, Pavlov (1849-1936) fez importantes descobertas no domínio do condicionamento com aplicação ao estudo da aprendizagem. Na Inglaterra, Galton (1822-1911) investigou e desenvolveu o importante tema das diferenças individuais. Em França, Binet (1857-1911) elaborou uma escala de medida da actividade intelectual, cujos desenvolvimentos e ramificações posteriores, influenciaram a psicologia aplicada ao longo do século XX. Na Suíça, Piaget (1896-1980) fez descobertas notáveis no domínio do desenvolvimento intelectual da criança e do adolescente. Outros psicólogos e investigadores europeus notáveis poderiam ainda ser referidos, mas tal será feito ao longo dos capítulos do presente livro. Ebbinghaus afirmou que a psicologia tinha um longo passado, mas uma curta história. De facto, o passado da psicologia remonta a algumas questões já © Universidade Aberta
21
reflectidas e pensadas pelos filósofos gregos na antiguidade como o problema da relação entre mente e o corpo, o problema da consciência, o livre arbítrio e a percepção da realidade. Por sua vez, a história da psicologia é mais recente e oficialmente remonta a 1879 com a criação do primeiro laboratório de psicologia experimental por Wundt na cidade de Leipzig na Alemanha. Wundt definiu a psicologia como a ciência da consciência e propôs a introspecção como método de estudo da experiência imediata. Muito do trabalho realizado no laboratório de Wundt foi sobre sensação, percepção e tempos de reacção. Num estudo sensorial, uma pessoa provava um alimento, por exemplo, e depois esta experiência imediata era analisada através da introspecção em elementos simples, como o sabor amargo, doce ou ácido presente na consciência. À maneira do químico, a psicologia partia depois para a síntese dos elementos em compostos e para o estabelecimento de leis e princípios que governavam estes compostos e estruturas psicológicas. Assim a psicologia de Wundt e do seu discípulo americano Titchener (1867-1927) ficou a ser conhecida por psicologia estruturalista. No início do séc. XX a introspecção foi fortemente contestada, enquanto método de observação dos próprios estados da consciência, devido em grande parte ao facto dos dados obtidos por introspecção divergirem bastante entre si, mesmo quando obtidos por observadores treinados. Por volta da segunda e terceira décadas do séc. XX, um grupo de psicólogos alemães, nomeadamente Wertheimer, Köhler e Koffka, questionaram a conclusão dos estruturalistas de que a experiência imediata era elementar e defenderam a posição de que os fenómenos perceptivos eram antes percebidos imediatamente no seu todo (em alemão gestalt) em vez de serem percebidos nos seus elementos constituintes. Este sistema de investigação ficou conhecido por psicologia da forma ou gestaltismo. Os gestaltistas propuseram ainda que o todo era mais do que a soma das suas partes. Este enunciado pode ser melhor entendido, se se olhar para uma série de pontos, onde é possível perceber às vezes linhas, círculos ou outras figuras geométricas, conforme o conhecimento e a atitude da pessoa, em vez de se perceber pontos meramente isolados entre si e carecidos de qualquer organização perceptiva. Paralelamente nos EUA no princípio do séc XX surgiu o beaviorismo, uma perspectiva radicalmente diferente das perspectivas psicológicas europeias da época, proposta por John Watson (1878-1958) num célebre artigo publicado em 1913 com o título “A psicologia vista por um beaviorista” (Watson, 1913). Para o aparecimento do beaviorismo muito contribuíram os estudos pioneiros do americano Thorndike (1874-1949) e do russo Pavlov sobre aprendizagem animal, ao introduzirem um tipo de investigação experimental que apresentava 22
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maior rigor e objectividade na obtenção de dados e revelava grandes similaridades com os métodos usados nas ciências naturais da época. O beaviorismo de Watson rejeitava qualquer recurso à instrospecção e pretendia reduzir a psicologia a uma ciência natural que tinha por objecto apenas e somente o comportamento observável, excluindo do seu âmbito a consciência e os processos mentais que aí tinham lugar, como a atenção, a memória, a inteligência e a vontade. Segundo Watson (1913), a consciência era um fenómeno privado. Só o comportamento da pessoa era uma resposta pública que podia ser observada por outra qualquer pessoa. A ciência analisa dados e fenómenos públicos e observáveis como o comportamento de uma pessoa numa situação. A ciência não se interessa por fenómenos privados, estados de consciência, cujo acesso só é possível através da introspecção. Watson e os beavioristas posteriores como Skinner (1904-1990) concentraram-se apenas na investigação do comportamento observável, fixando-o numa cadeia que se iniciava com um estímulo (E) e terminava com a resposta (R) produzida, dando origem à expressão psicologia do E-R. A maior parte deste tipo de estudos foi realizado com animais, nomeadamente, ratos, pombos, cães e macacos. De acordo com os beavioristas mais radicais, entre o (E) e a (R) há como que um vazio, ou uma caixa-negra. Se há ou não há consciência, atenção e memória para atender, registar e recordar os estímulos, são temas que não interessam. O que interessa é apenas e somente a resposta do organismo a um estímulo ou situação. O beaviorismo e o uso que fez do modelo animal na investigação psicológica propagou-se rapidamente pelas escolas de psicologia americana, tendo dominado a maior parte da psicologia que se produziu nos EUA na primeira metade do séc. XX. Na Europa da primeira metade do séc. XX, o beaviorismo teve uma influência mínima e circunstancial. Havia a desconfiança no dizer de Marx e Hillix (1973) de que “a soma de informação gerada pelos quilómetros percorridos pelo rato [no labirinto ou gaiolas de investigação] durante os últimos 50 anos não era grande”. Embora esta desconfiança fosse exagerada, os estudos de psicologia realizados na Europa até à década de 60 raramente faziam uso do modelo animal, concentrando-se antes em problemas humanos. Em Inglaterra, os problemas de investigação psicológica relacionavam-se com a memória, a cognição e o papel dos factores humanos como a atenção na interacção homem-máquina (Bartlett e Broadbent), assim como o estudo psicológico das diferenças individuais, da inteligência e da personalidade (Spearman, Burt, Hans Eysenck). Na França, os problemas diziam respeito à relação entre cérebro e pensamento (Piéron) e na Bélgica à percepção da causalidade (Michotte) e motivação (Nuttin). Na Suíça, os temas foram a
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memória e as desordens de reconhecimento mnésico (Claparède) e o desenvolvimento intelectual da criança (Piaget). A psicologia da personalidade e o seu desenvolvimento na perspectiva de Freud e do movimento psicanalítico teve também uma aceitação bastante generalizada na Europa deste período. Neste período, em Portugal, a investigação psicológica foi praticamente inexistente, apesar dos esforços pioneiros de Alves dos Santos que em 1913 fundou o primeiro laboratório de psicologia experimental em Portugal na Universidade de Coimbra e de Sílvio Lima que em 1928 publicou uma tese notável de doutoramento no domínio da memória humana e do reconhecimento sob a direcção do suíço Claparède. Em meados do séc. XX, a explicação beaviorista do comportamento passou a ser objecto de contestação crescente e vigorosa. Algumas das críticas vieram do interior do sistema beaviorista, como as objecções feitas por Tolman (18861959) ao introduzir variáveis cognitivas, como expectativas e mapas cognitivos, na explicação da aprendizagem dos ratos em labirintos. Outras críticas foram feitas por jovens investigadores, como o psicolinguista Chomsky (1959) que tentou provar com grande eficácia que a maior parte dos dados sobre a linguagem não podia ser explicada e compreendida em termos de associação entre estímulo e resposta (E-R), como propunham os beavioristas. A visão simplista do ser humano, que o beaviorismo pressupõe, foi substancialmente refutada por George Miller et al. (1960) no influente livro Planos e Estrutura do Comportamento onde defenderam que o ser humano é um processador e um intérprete activo do seu meio ambiente, respondendo em função da própria experiência que tem do meio, em vez de reagir de forma mecânica e irreflectida. As pessoas, longe de serem meros figurantes passivos que reagem ao meio, são antes vistas como organismos activos que no comportamento do dia a dia usam planos, estratégias e regras de acção. Esta nova perspectiva veio a ser cunhada de psicologia cognitiva por Neisser (1967) no livro com o mesmo título, onde define a psicologia cognitiva como “o estudo dos processos pelos quais uma pessoa capta, retém, manipula e recupera a informação”. Os temas que organizam os capítulos deste livro de Neisser foram os temas ignorados pelos beavioristas, como a atenção, a percepção, a memória, a linguagem e o pensamento. A importância central dos processos cognitivos em relação ao comportamento foi-se desenvolvendo nos anos seguintes a ponto de Chomsky numa entrevista dada em 1986 afirmar que “a psicologia não é a ciência do comportamento, mas antes o estudo da mente, da organização mental e das estruturas mentais, servindo-se dos comportamentos enquanto dados de estudo” (Baars, 1986, p. 347). Os cognitivistas não são necessariamente anti-beavioristas, como às vezes se ouve ou lê, antes consideram o beaviorismo um sistema incompleto em termos de explicação do comportamento. O comportamento não pode ser explicado 24
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apenas através das suas características métricas mais salientes, como a frequência, intensidade ou robustez da resposta. A explicação do comportamento tem de ter em conta as explicações ao nível dos processos e representações mentais da pessoa, crenças e intenções. Sem a perspectiva cognitiva em psicologia não seria possível caracterizar e explicar satisfatoriamente os processos mentais como o reconhecimento e a recordação, a atenção, a linguagem, o pensamento, o raciocínio e a tomada de decisões. Para melhor se perceber este aspecto, Chomsky propôs uma analogia com a ciência física. Se a física não é a leitura métrica dos fenómenos, mas antes a compreensão e explicação das forças da matéria, assim também a psicologia não é a leitura métrica do comportamento, mas antes a compreensão das estruturas e processos mentais que afectam o comportamento (in Baars, 1986, p. 347). Desde a década de 60 até ao presente, a psicologia cognitiva alargou progressivamente a sua influência a todos os ramos e actividades da psicologia, de modo que se pode dizer que poucos são hoje os investigadores que não se consideram cognitivistas, pelo menos em sentido lato. Em contraste, a influência do beaviorismo foi diminuindo progressivamente ao longo dos últimos 30 anos. Segundo Robins et al. (1999) o equilíbrio entre estes dois sistemas, em termos de publicações próprias e importância explicativa, terá sido atingido durante a década de 70, altura onde se terá verificado um cruzamento da função ascendente da perspectiva cognitiva com a função descendente da perspectiva beaviorista. Robins et al. (1999) analisaram ainda a influência da psicanálise e das neurociências na literatura psicológica e concluíram existir, no que se refere à psicanálise uma influência diminuta mas constante ao longo dos últimos 30 anos; no que se refere às neurociências, houve um aumento progressivo ascendente nas últimas duas décadas, mas bastante aquém do que se poderia pensar, tendo em conta a popularidade existente em certos círculos académicos.
1.3
Psicologia e ciências afins
A psicologia não é a única ciência a estudar o comportamento humano e animal, nem o cérebro e a mente, o que torna confuso para muita gente perceber quais as áreas de investigação psicológica e as práticas de intervenção. A psicologia apresenta similaridades com outras ciências afins, nomeadamente a sociologia, antropologia e biologia, cujas relações são referidas a seguir. A sociologia estuda o comportamento de grupos de pessoas em larga escala, nomeadamente sociedades, culturas e sub-culturas. A antropologia estuda a espécie humana e o modo como esta forma comunidades, sociedades e nações, © Universidade Aberta
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e como evoluiu ao longo dos tempos em termos somáticos, raciais, étnicos e geográficos. A biologia estuda a origem, o desenvolvimento, as funções, as estruturas e a reprodução dos organismos vivos. A psicologia estuda o comportamento de animais e pessoas, individualmente ou em pequenos grupos. Estuda ainda a organização mental da pessoa, as suas estruturas e funções e o modo como estas afectam o comportamento. Em termos metodológicos, a sociologia usa mais frequentemente métodos observacionais e correlacionais; a antropologia cultural aplica métodos qualitativos e descritivos; a biologia e a psicologia utilizam além destes ainda o método experimental. Psiquiatria e psicologia, nomeadamente a psicologia clínica, são por vezes confundidas pelo público em termos de áreas de intervenção, na medida em que ambas as especialidades diagnosticam e tratam problemas comportamentais e desordens mentais. Mas estas profissões diferem em pontos importantes. A psiquiatria é uma especialidade médica, estuda o comportamento dito anormal, como as desordens comportamentais e mentais e os profissionais estão autorizados a receitar medicamentos para efeitos de tratamento. A psicologia clínica é uma especialidade obtida numa licenciatura e pós-graduação em psicologia, e em princípio estuda, diagnostica e orienta terapias psicológicas específicas em todos os tipos de problemas de comportamento, dito normal ou anormal. Em termos práticos, a diferença mais nítida entre psicologia e as outras especialidades afins é a obtenção de um grau superior a nível universitário e a pertença a uma sociedade científica que torne credível o grau académico obtido. Houve no entanto algumas excepções notáveis no passado. No estudo dos problemas psicológicos houve investigadores brilhantes que não possuíam qualquer grau académico ou pertenciam a qualquer sociedade psicológica. Os pais fundadores da psicologia nos finais do séc. XIX foram filósofos, fisiologistas e físicos, como William James, Wundt e Fechner, cujas contribuições constituiram um avanço notável para a ciência psicológica. No século XX houve ainda fisiologistas como Pavlov, prémio Nobel da medicina em 1904, que marcou profundamente a psicologia da aprendizagem; médicos como Freud que propôs um modelo de organização mental e um tipo de tratamento das desordens mentais que influenciou toda a prática de intervenção psicológica; biólogos e epistemólogos como Jean Piaget, que renovou radicalmente a psicologia do desenvolvimento; economistas como Herbert Simon (n. 1916), prémio Nobel da economia em 1978, que contribuiu de forma marcante para a psicologia cognitiva; grandes analistas e humanistas como Erik Erikson (1902-1994) que nem sequer tinha um grau universitário e no entanto repôs o desenvolvimento da personalidade numa nova perspectiva. Daqui se conclui que ao longo do séc XX, o conhecimento psicológico avançou imenso com a contribuição das investigações realizadas em ciências afins à 26
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psicologia. Tudo leva a crer que no séc. XXI os temas, os problemas e os procedimentos de investigação psicológica continuem a ser arejados e renovados não só com o esforço e a criatividade dos estudantes de psicologia, mas também com as contribuições e o saber dos estudantes das ciências afins.
1.4
Métodos psicológicos
Método refere-se a procedimentos ou técnicas específicas para recolha e análise de dados. A investigação científica não implica um único método ou abordagem de estudo, porque os métodos de investigação variam de problema para problema e de disciplina para disciplina. Para responder cabalmente a uma questão pode haver procedimentos científicos mais apropriados do que outros e a resposta dada está limitada pela natureza do método seguido. No entanto fazer investigação científica significa muitas vezes usar métodos quantitativos e estes métodos incluem de uma maneira geral a observação sistemática, um controlo experimental exigente, instrumentos de medida e recolha de dados fieis e precisos, a aleatoriedade das amostras de sujeitos e uma análise estatística rigorosa (e.g., Pinto, 1990). Os métodos psicológicos de recolha de dados mais usados são a observação naturalista, o estudo de casos, os questionários, o método correlacional, o método dos testes, o método diferencial e o método experimental. Uma descrição abreviada de cada um destes métodos será apresentada a seguir.
1.4.1 Observação naturalista A observação naturalista é um dos métodos mais antigos e refere-se à recolha atenta e cuidada de dados de animais e pessoas no seu ambiente natural. A observação é realizada de modo flexível de forma a tirar partido, não só de todos os comportamentos sob observação, mas também de acontecimentos inesperados, que eventualmente possam ocorrer. Os comportamentos sob observação não estão limitados a quaisquer restrições humanas de movimento e acção e tanto podem ser o comportamento de nidificação e reprodução de uma ave rara, como o comportamento competitivo e agressivo dos rapazes no recreio da escola, ou o comportamento dos condutores de automóvel no meio de um engarrafamento matinal de trânsito. Margaret Mead (1901-1978) foi uma das primeiras investigadoras a aplicar o método da observação naturalista ao estudo do comportamento humano. Esta antropóloga viveu durante algum tempo no meio de uma tribo asiática, observando e registando várias informações sobre o comportamento do dia a © Universidade Aberta
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dia dos membros da tribo e tirando ilações sobre o sistema de organização social, distribuição do poder, divisão do trabalho, sistema de parentesco e valores culturais e religiosos. Os métodos naturalísticos têm sido também usados em psicologia para estudar o comportamento humano em diversas situações. Algumas das observações mais frequentemente efectuadas em psicologia foram o estudo do comportamento social das crianças na sala de aula ou no recreio, o comportamento dos condutores em cruzamentos, estradas e em situações de engarrafamento de trânsito, manifestações de violência em locais desportivos, o impacto psicológico e social causado nas populações por desastres naturais ou industriais, o comportamento de fumar em locais proibidos, entre outros.
1.4.1.1 Estudo de casos O estudo de casos refere-se à descrição detalhada de um único indivíduo em termos de passado e história, usando às vezes a entrevista, efectuando avaliações ou aplicando testes e discutindo os resultados. É um método muito usado em psiquiatria, em psicologia clínica e em neuropsicologia. Freud foi talvez o investigador que inicialmente mais contribuiu para o uso e divulgação deste método. Um exemplo de estudo de casos foi a análise efectuada por Freud em 1909 de uma fobia num rapaz de 5 anos, de nome Hans (Freud, 1909/1955). Mais recentemente, o russo Luria e o inglês Oliver Sacks descreveram alguns casos famosos usando também o método dos casos. Luria (1968) descreveu o caso de S., um homem com uma memória excepcional e Sacks (1990) referiu o caso de um paciente com um problema neurológico grave que o levava a confundir a mulher por um chapéu. Em geral são relatos verídicos e fundamentados, normalmente muito expressivos e de leitura estimulante, sobre aspectos específicos do comportamento de uma pessoa. O estudo de casos tem sido considerado como o menos científico de todos os métodos empíricos usados pelos psicólogos. A justificação apresentada refere que este tipo de método envolve apenas o caso específico de uma pessoa que é única e não pode ser reproduzido; interpreta o comportamento sob uma certa perspectiva teórica; implica em muitos casos uma relação de tipo terapêutico, que pela sua natureza de ajuda dificilmente pode ser objectiva em termos de análise. Há estudo de casos em que a análise é meramente qualitativa sem qualquer tipo de medição ou análise estatística como no caso de Freud ou Sacks. Noutros estudos, como o de Luria, foram feitos registos e medições de natureza quantitativa para se saber até que medida a memória era ou não excepcional em relação a casos considerados normais e estabelecido algum controlo sobre certas variáveis. 28
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1.4.1.2 Questionários Os questionários são formados por um conjunto de perguntas planeadas sobre um certo tema para serem administradas a um grande número de pessoas a fim de se obter informação sobre atitudes, opiniões e comportamentos. Um exemplo destes é o questionário de metamemória de Zelinski et. al. (1980). Estes investigadores estudaram a frequência do esquecimento e a qualidade de recordação em várias situações do dia a dia, como a memória para nomes, faces, encontros, entrevistas, datas, tarefas, direcções e números de telefone, entre outros aspectos. Os questionários têm a vantagem de permitir recolher muita informação em pouco tempo de um grande número de pessoas, mas têm grandes limitações. O investigador parte do pressuposto de que os participantes respondem honestamente a todas as perguntas. Se é possível que a maioria das pessoas o faça, é preciso contar também com a eventualidade de um pequeno número não ser assim tão franco e honesto. Sondagens efectuadas à boca das urnas, depois da votação sobre a escolha política ter sido efectuada, revelaram discrepâncias significativas entre os resultados oficiais da eleição e os resultados da sondagem e cuja explicação pode ser em parte devida à ocultação da verdade por parte dos eleitores. Os questionários estão ainda sujeitos a limitações resultantes do contexto em que são administrados, do sexo do entrevistador e do modo como este obtém a cooperação do entrevistado e formula as perguntas. Mesmo que estes factores sejam devidamente controlados resta ainda a eventualidade do problema em estudo estar sujeito a variações cíclicas ou passageiras, como acontece provavelmente com o caso dos comportamentos sexuais ou de atitudes face ao aborto, pena de morte, imigração e racismo, restringindo assim temporalmente as conclusões obtidas. Os questionários estão ainda sujeitos a um problema que é comum a toda a investigação psicológica: Será que as avaliações feitas são fieis, isto é consistentes, e válidas, isto é precisas? No caso dos questionários de meta-memória, o grau de fidelidade é elevado, quando expresso pelo grau de correlação das avaliações do mesmo instrumento efectuadas entre dois momentos distanciados no tempo, mas apresentam um grau de validade reduzido, quando as avaliações são comparados com provas objectivas de memória a curto prazo (memória de números) ou a longo prazo (evocação de listas de palavras).
1.4.2 Método correlacional Os estudos correlacionais ultrapassam a simples fase de contagem e descrição de dados e representam um nível superior de conhecimento face à observação © Universidade Aberta
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naturalista e ao estudo de casos. Quando um investigador observa que os pais com mais livros em casa têm filhos com melhor rendimento escolar, que as crianças que vêem mais horas de televisão são mais violentas e agressivas, ou que o grau de poluição industrial está relacionado com o declínio cognitivo, e for ainda capaz de efectuar medições quantitativas precisas de cada variável, então o investigador fica em condições de determinar qual o grau de relação e de direcção entre as variáveis observadas. Os estudos correlacionais têm por objectivo determinar uma relação entre duas ou mais variáveis e esta relação pode ser positiva, negativa ou inexistente. O tipo de relação é determinado a partir de uma análise estatística, o teste de correlação. Os valores de correlação variam entre -1 a +1. Quanto mais as variáveis estiverem relacionadas entre si, tanto mais o coeficiente de correlação se aproxima de +1 ou de -1. Se a relação for nula, o coeficiente de correlação aproxima-se do zero. O coeficiente de correlação descreve de forma precisa e quantitativa o grau de relação verificada entre duas variáveis. A direcção do relacionamento é dada pelo tipo de sinal positivo ou negativo que acompanha o coeficiente. Um sinal positivo significa que os valores da grandeza de uma variável estão positivamente relacionados de forma linear com os valores da outra variável e um sinal negativo significa que o relacionamento dos valores das duas variáveis é linearmente negativo. O coeficiente de correlação traduz a força da ligação linear entre duas variáveis. Quando a ligação entre variáveis não é linear mas curvilínea, o coeficiente de correlação pode estar próximo do zero, mas mesmo assim existir uma relação forte entre duas variáveis. O teste estatístico para medir tal relação é que terá de ser outro. O método correlacional é útil no domínio da psicometria, tendo sido possível determinar satisfatoriamente os traços comuns de um determinado estilo de personalidade (por ex., a introversão ou a extroversão) ou de uma habilidade cognitiva (por ex., o raciocínio espacial ou fluência verbal). O método correlacional é ainda usado com frequência em psicologia na determinação dos índices de fidelidade (isto é, a consistência entre várias aplicações do mesmo teste) e de validade (isto é, a medição adequada daquilo a que o teste se destina) dos questionários e testes de inteligência e de personalidade. O método de correlação tem todavia limitações, a maior das quais é a incapacidade de se estabelecer uma relação causal entre variáveis que apresentam um coeficiente de correlação elevado. Neste caso pode-se suspeitar da presença de alguns factores causais comuns, mas não é possível afirmar que uma variável é a causa de outra. Esta dificuldade pode ser ilustrada a partir de uma ocorrência grave verificada na década de 80 em Itália onde se registaram uma série de mortes sem haver uma explicação clara. No entanto as mortes estavam 30
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significativamente relacionadas com o consumo de azeite, o que levou o governo a concluir que o azeite vendido era tóxico. No entanto estudos mais aprofundados indicaram que a causa das mortes tinha sido a ingestão de tomates contaminados com pesticidas e comidos em saladas temperadas com azeite. Numa outra situação verificou-se que o coeficiente de correlação entre o tempo de estudo e o desempenho escolar universitário era baixo e negativo (-0.10). Se o coeficiente fosse interpretado em termos causais, então a conclusão óbvia seria deixar de estudar para se obter um bom desempenho académico! Uma leviandade que nenhum estudante responsável seguirá. Então porque é que o coeficiente de correlação foi tão baixo e negativo? Possivelmente porque muitos alunos tentam compensar através de um maior tempo de estudo algumas das limitações que têm à partida em termos de preparação académica ou de recursos cognitivos. Outros estudantes, que se consideram melhor preparados à partida, usam métodos de estudo mais eficazes, ou fazem uma gestão mais económica do tempo de estudo. Estes dois exemplos, entre muitos outros, mostram que um coeficiente de correlação significativo não prova que uma variável é a causa de outra, antes indica que as variações no valor de uma variável prevêem até certo ponto variações noutra variável. A determinação da causa de um fenómeno só é possível a partir de uma investigação experimental.
1.4.3
Método dos testes
Para ser valorizada ou denegrida, a psicologia é muitas vezes associada aos testes psicológicos. Os testes constituem a única indústria que a psicologia produziu até hoje e estão sujeitos a controvérsias cíclicas. Os testes são porém métodos objectivos de observação e medida de variáveis. Os testes são constituídos por tarefas uniformes administradas individualmente ou em grupo com o objectivo de medir uma ou mais variáveis ou construtos teóricos. Os testes são instrumentos que permitem obter facilmente um grande número de dados sobre as pessoas, sem lhes provocar transtornos de maior em termos de rotina diária ou exigir meios complexos de aplicação como acontece por vezes a nível laboratorial. Historicamente a expressão teste mental surgiu num artigo publicado pelo americano Cattell em 1890, que juntamente com o inglês Galton e o francês Binet são considerados os pioneiros da avaliação mental e psicológica. Em 1905, Binet e Simon publicaram uma escala de inteligência, um instrumento elaborado a pedido do Ministério da Instrução francês a fim de permitir detectar deficiências intelectuais em crianças de idade escolar. A função básica dos
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testes era medir diferenças entre indivíduos de forma a permitir uma classificação de natureza mental e comportamental. Em psicologia há centenas de testes, escalas e medidas que podem dividir-se em vários grupos: Testes de aptidão e inteligência; testes de realização; medidas de personalidade e escalas de valores e atitudes. Através de testes elaborados para o efeito podem ser analisadas variáveis de comportamento, como a ansiedade ou o autoritarismo; a inteligência geral ou aptidões específicas, como a fluência verbal ou o raciocínio espacial; realização escolar, como o nível da leitura ou de aritmética; atitudes, como as crenças e predisposições face à religião, grupos étnicos ou o aborto. Os testes são importantes instrumentos de medida em psicologia, principalmente após terem sido normalizados e aplicados a amostras representativas. A construção e normalização de um teste é uma tarefa muitas vezes longa e complexa em termos de preparação dos itens do teste, aplicação a amostras representativas, aferição e normalização, sendo a descrição das respectivas fases e procedimentos objecto de uma literatura bastante especializada. Desde o começo do século XX, os testes psicológicos são uma área importante da psicologia com aplicações ao nível da selecção e classificação escolar, militar, profissional e organizacional. Porém a importância dos testes não se limita apenas à psicologia aplicada, tendo ainda um papel importante ao nível da investigação. Assim os testes podem esclarecer, quer na medição das diferenças individuais ou nas diferenças de grupo, qual o nível de desenvolvimento intelectual de uma criança desde a infância até à adolescência, ou o eventual declínio cognitivo de uma pessoa durante a vida adulta. Os testes são ainda um meio indispensável para ajudar a esclarecer diferenças de grupo em função de variáveis como a instrução ou o meio sócio-cultural. Quando um investigador pretende saber se um programa de instrução aplicado a um grupo de alunos é melhor do que outro programa alternativo, precisa de estabelecer uma equivalência entre os participantes dos dois grupos em diversas variáveis cognitivas, nomeadamente ao nível da inteligência. Ora o grau de inteligência determina-se com a aplicação de um teste.
1.4.4 Método diferencial O método diferencial tem por objectivo investigar o desempenho de dois ou mais grupos que se distinguem na base de uma variável pre-existente, seja o género, a idade, os anos de escolaridade ou um traço de personalidade como a ansiedade. 32
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Um exemplo de estudo diferencial é a análise dos resultados de uma prova de memória entre dois grupos, um do género masculino e outro do género feminino. O género é a variável independente, isto é, a variável responsável pela definição dos grupos. O desempenho de memória registado é a variável dependente. Um problema com o método diferencial é a dificuldade de controlo das variáveis que concorrem com a variável independente. No exemplo anterior, os grupos podem diferir na base de outras variáveis para além do género, a variável independente medida. Se os grupos diferem à partida numa determinada variável, como o género, é muito provável que também se diferenciem noutras variáveis que possam afectar os resultados, como a idade, o número de anos de escolaridade, o raciocínio, o estilo cognitivo, entre outras. Nesta situação a obtenção de diferenças de memória entre o género masculino e feminino seria um resultado artificioso. Na investigação diferencial, as diferenças entre os grupos pré-existem ao início da investigação propriamente dita. Assim a variável independente não é manipulada pelo investigador como na investigação experimental, mas apenas medida. Sendo a variável independente apenas medida e não manipulada não é possível ir além do grau e direcção de relacionamento das variáveis estudadas, isto é, do grau de correlação registado. Este método torna a investigação diferencial muitas vezes mais difícil de interpretar do que a investigação experimental, pois não é possível usar os controlos típicos da investigação experimental. Na investigação experimental, a distribuição aleatória dos sujeitos pelos diferentes grupos proporciona uma equivalência inicial dos grupos em todas as variáveis (teoricamente falando) que concorrem com a variável independente. Neste sentido a investigação diferencial é, em termos de explicação, conceptualmente semelhante à investigação correlacional. A investigação diferencial substitui por vezes a investigação experimental, como acontece na área da educação. Em educação não é viável distribuir aleatoriamente os estudantes de uma escola, metade pelo método X e a outra metade pelo método Y para se verificar se um método é melhor ou pior do que outro. Se se quiser comparar os efeitos de dois métodos de instrução é habitual comparar duas escolas que adoptaram tais métodos de ensino, e depois esperar que os estudantes que as frequentam sejam equiparáveis nas variáveis mais relevantes, exercendo-se todo o controlo possível ao nível da equivalência de tais variáveis. O método de ensino é a variável independente que diferenciava as escolas e é responsável pela definição dos grupos que existiam antes da experiência começar; os resultados escolares finais dos alunos de cada escola são a variável dependente.
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1.4.5 Método experimental A investigação experimental tem um papel crucial na investigação científica. O método experimental é considerado o único método científico em que é possível estabelecer-se uma relação de causalidade entre duas ou mais variáveis ou fenómenos. A análise dos fenómenos por meio de uma experiência é a aspiração de muitos cientistas.
Caixa 1.1 Um Estudo Experimental Quer a partir da simples observação da relação mãe-bebé, quer a partir do modelo teórico de Freud sobre o desenvolvimento das crianças, é possível formular a hipótese de que a alimentação é o factor crucial no desenvolvimento da ligação afectiva entre a mãe e a criança. Mas será de facto o factor alimentação? Não será antes o contacto corporal que a mãe estabelece com a criança durante a amamentação? Harlow (1959) tentou investigar esta hipótese através de uma experiência científica realizada com oito macacos recémnascidos. Harlow produziu dois modelos de “mães substitutas”, um modelo em que o corpo do animal era formado por uma estrutura de arame, cabeça de madeira e rosto meio tosco e um outro modelo em que uma estrutura semelhante era revestida de tecido aveludado. Os oito macacos foram colocados em gaiolas individuais com acesso igual às “mães substitutas”, recebendo metade deles o leite da “mãe de arame” e a outra metade da “mãe de veludo”, em ambos os casos através do bico de um biberão, parcialmente escondido no corpo de cada modelo. Durante o período de observação, os macacos beberam uma quantidade de leite equivalente e obtiveram um peso semelhante, no entanto passaram a maior parte do tempo agarrados ao modelo de veludo, independentemente de terem sido ou não alimentados por este modelo. Este estudo desconfirmou a hipótese da importância da alimentação no desenvolvimento da ligação afectiva em favor da importância do contacto corporal. Na sequência deste projecto, Harlow verificou ainda que os macacos, quando se sentiam ameaçados pela aproximação de um urso mecânico, refugiavam-se todos no modelo de veludo. Noutra situação quando tinham a oportunidade de pressionar uma alavanca que permitia abrir uma janela para observarem ou um macaco real ou o modelo de veludo, os macacos pressionavam igualmente a alavanca de cada janela, mas não mostravam qualquer interesse 34
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pelo modelo de arame. Estes resultados provaram que o modelo de veludo é capaz de reduzir a ansiedade dos jovens macacos e atrair a atenção de modo equivalente ao de um macaco real. O modelo de veludo mostrou-se no entanto inadequado em termos de desenvolvimento social. Os macacos, “criados” pelo modelo de veludo, mas mantidos isolados, tornaram-se socialmente inaptos ao crescerem. Todavia quando os macacos “criados” pelo modelo de veludo tiveram a oportunidade de brincar uma hora por dia com três outros macacos, o crescimento e desenvolvimento deles tornou-se indiferenciável dos macacos criados pelas mães naturais, provando ainda que um factor importante no desenvolvimento saudável dos macacos era o contacto social.
Em termos gerais, uma experiência é um arranjo de condições, procedimentos e equipamento com o objectivo de se avaliar uma hipótese e mantendo sob controlo todos os restantes factores. Em termos específicos, uma experiência é uma observação objectiva de um fenómeno que é forçado a ocorrer numa situação rigorosamente controlada, e em que um ou mais factores são manipulados enquanto os restantes são controlados (Zimney, 1961). As variáveis manipuladas designam-se por variáveis experimentais, independentes ou de tratamento e os resultados da experiência designam-se por variável dependente. É crucial em qualquer experiência estabelecer-se condições de controlo das variáveis concorrentes face à variável independente e ainda uma distribuição aleatória dos diferentes factores. Um exemplo de estudo científico de acordo com o método experimental está descrito na Caixa 1.1, onde se referem vários factores que tiveram de ser controlados para se conseguir descobrir uma relação de causa e efeito sem ambiguidade entre os factores estudados. Estes controlos são necessários para se obter uma conclusão definitiva sobre o tipo de antecedentes que causam e originam um evento subsequente. Além do controlo das variáveis, o experimentador manipulou sistematicamente variáveis no ambiente em que decorria a experiência de forma a observar o efeito desta manipulação em certos tipos de comportamento. A manipulação sistemática dos valores da variável independente tem por objectivo demonstrar um efeito causal directo na variável dependente. Os pontos fortes da investigação experimental são o controlo das variáveis, a precisão das medições obtidas e a possibilidade de se estabelecer uma relação causal entre variáveis. Uma experiência tem validade interna, quando os resultados obtidos resultam única e exclusivamente da manipulação da variável
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independente, conseguindo-se controlar toda a influência de outras variáveis concorrentes. Frequentemente este grau de controlo é apenas conseguido através de recursos laboratoriais com a apresentação das condições da variável independente, controlo das variáveis concorrentes e registo preciso da variável dependente. Mas as circunstâncias que tornam forte a aplicação do método experimental têm a contrapartida de o fragilizar em termos de aplicação dos resultados a outros sujeitos, situações e contextos. Assim quando o método experimental é forte em termos de validade interna costuma ser fraco em termos de validade externa ou validade ecológica. Por exemplo, Ebbinghaus (1885) obteve alguns princípios ou efeitos de memória importantes, como a curva de esquecimento, usando sílabas sem significado. No entanto, Bartlett (1932) sublinhou a falta de validade externa deste tipo de estudos ao usar-se material verbal sem significado. Em contraste, Bartlett usou figuras e contos populares, um tipo de material verbal mais próximo da aprendizagem e memória que ocorre no dia a dia das pessoas. O estudo de Ebbinghaus era forte em termos de validade interna, mas fraco em termos de validade externa; por sua vez, os estudos de Bartlett foram acusados do contrário. A discussão sobre a importância da validade externa da investigação experimental é por vezes mais um problema para certos especialistas de metodologia do que para os investigadores que fazem investigação laboratorial a sério no dia a dia. No caso da investigação efectuada por Harlow (1959), os modelos “mãe de arame” e “mãe de veludo” não têm qualquer representatividade em termos de aplicação dos resultados ao meio ambiente da selva. Na selva não há “mães de arame” ou “mães de veludo”. São situações laboratoriais de uma artificialidade extrema. No entanto este estudo pôs irremediavelmente em causa o factor alimentação considerado até então como o factor essencial no estabelecimento da ligação afectiva entre a mãe e a criança. Noutro aspecto, por exemplo, é altamente improvável que as leis do condicionamento, descobertas por Pavlov e Skinner em situações laboratoriais extremamente artificiais de que falaremos no capítulo seguinte, fossem alguma vez estabelecidas, se estes investigadores se tivessem limitado a observar simplesmente o comportamento do cão do vizinho ou o do rato no sótão da casa de campo. Dito isto, não se pretende insinuar que a investigação experimental deva desinteressar-se da generalização dos resultados a situações reais do dia a dia. Os investigadores estudam propositadamente os comportamentos das pessoas em ambientes simplificados de forma a obter um maior controlo das variáveis e conseguirem testar os princípios gerais que explicam os comportamentos animais e humanos. Os investigadores esforçam-se tenazmente por evitar a 36
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artificialidade na investigação, planeando experiências que simulem o mais possível a natureza e a realidade externa, mas quando têm de sacrificar algo, preferem fazê-lo em termos de validade externa, mesmo sendo acusados de artificialismo, do que em termos de validade interna, para evitar arruinar a experiência e ficarem impossibilitados de testar e avaliar adequadamente as hipóteses experimentais. O estudo experimental ideal será aquele que permite manipular as condições da variável independente e obter resultados em situações de controlo efectivo das variáveis concorrentes e ao mesmo tempo estudar os comportamentos dos sujeitos em situações e contextos quotidianos e reais. Não há nada de errado na aplicação do método experimental à investigação psicológica. O que é preciso é engenho e criatividade no planeamento dos estudos de forma a conciliar o controlo mais elevado e a generalização mais extensa dos resultados. Na literatura psicológica não há muitos estudos que consigam preencher simultaneamente os dois requisitos de validade interna e de validade externa, mas uma excepção notável é o estudo de Sheriff (1956). Sheriff, numa experiência realizado com rapazes de 11 e 12 anos num campo de férias, estudou o aparecimento de conflitos e preconceitos entre-grupos por razões de competição; a seguir estudou a redução desses mesmos conflitos através da participação em objectivos essenciais para a comunidade da colónia de férias. O recurso à investigação experimental nem sempre é o mais adequado. Há razões práticas, éticas e dificuldades de controlo que impedem a aplicação generalizada da metodologia experimental a muitos problemas, alguns deles com um real interesse de investigação. No entanto só a investigação experimental é capaz de reduzir ou eliminar interpretações controversas sobre uma eventual relação causal entre variáveis.
1.5
Perspectivas de investigação psicológica
Ao longo da história da psicologia, o objecto e a definição da psicologia não foi, nem parece ser tão cedo, consensual. Uns concentram-se na análise do comportamento, outros consideram este objectivo limitado se não se tiver em conta a influência dos processos mentais. Outros pensam ainda que o comportamento pode ser explicado, ou em termos genéticos ou em termos sócio-culturais, dando origem a duas perspectivas antagónicas: a biopsicológica e a sócio-cultural. Em contraste, outras perspectivas alternativas foram apresentadas de modo a valorizar o papel da mente e dos processos mentais na génese do comportamento, como a perspectiva evolucionista e sobretudo a perspectiva cognitiva.
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1.5.1 Perspectiva Bio-Psicológica A bio-psicologia é uma área de estudo e investigação psicológica que tenta explicar o comportamento numa base orgânica. Para o efeito, a bio-psicologia procura analisar os factores que iniciam e condicionam os comportamentos individuais a partir da análise do sistema nervoso, sistema glandular, organização e funcionamento do cérebro, genes e bioquímica celular. É uma área também conhecida por psicofisiologia, neuropsicologia e genética comportamental. Neste sentido a bio-psicologia partilha muitas das técnicas de investigação com a fisiologia, a biologia e a genética. A bio-psicologia é uma área importante e muito activa em termos de investigação, tendo o interesse crescido proporcionalmente com os avanços tecnológicos que se foram registando nos últimos 20 anos em termos de exames imagiológicos do cérebro. O recurso crescente e valioso a equipamento altamente sofisticado, como a electroencefalografia (EEG), o microscópio electrónico, a tomografia axial computadorizada (TAC), a obtenção de imagens por ressonância magnética (MRI), a tomografia por emissão de positrões (PET), entre outro equipamento do género, permitiu estudar o corpo e o cérebro das pessoas em estado de vigília e a realizar tarefas específicas. No passado, quando um investigador pretendia estudar o corpo e o cérebro, apenas o podia fazer através da cirurgia ou de uma autópsia. Actualmente o investigador pode observar directamente a actividade do cérebro em descanso ou a realizar uma actividade cognitiva específica sem causar danos ou incómodos de maior à pessoa que está a ser examinada. A importância deste equipamento para a observação biológica do corpo humano é de tal ordem elevada, que o seu papel já foi comparado ao da descoberta do telescópio na revolução do conhecimento em astronomia. O electroencefalograma é o registo da actividade eléctrica do cérebro e é importante para se compreender os estados de vigília e sono e certas doenças como a epilepsia. As imagens obtidas por TAC e MRI permitem uma observação de natureza anatómica e as imagens por PET uma observação mais de natureza neuronal. Assim é possível através de um TAC detectar-se tumores e obstrução de vasos sanguíneos, através de MRI detectar casos de esclerose múltipla e através de PET zonas e níveis de actividade metabólica cerebral específica, como as relacionadas com o reconhecimento da fala ou do reconhecimento de um rosto humano, de memórias recentes e memórias antigas e doenças como a esquizofrenia. Alguns dos temas mais importantes estudados no âmbito dos fundamentos biológicos do comportamento e integrados na área da bio-psicologia são o sistema nervoso central com relevo para a estrutura e a organização do cérebro, o papel das diferentes áreas cerebrais e dos neurotransmissores em relação 38
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com as funções cognitivas de percepção, atenção, memória, linguagem e raciocínio; o sistema nervoso autónomo com funções de controlo sobre diferentes órgãos e sistemas como o digestivo, respiratório, circulatório e as implicações a nível do comportamento emocional; o sistema endócrino e os efeitos das várias hormonas sobre a actividade geral do organismo; o papel dos genes e da hereditariedade, não apenas a nível corporal como a cor e a altura, mas principalmente ao nível das características psicológicas como a inteligência e o raciocínio, ou características de personalidade como a ansiedade, tomada de riscos, felicidade e estabilidade emocional. No estudo dos fundamentos biológicos do comportamento, há duas grandes perspectivas: Uma de natureza correlacional procurando identificar as correspondências ou correlatos fisiológicos do comportamento deixando para a psicologia e para outras ciências humanas, a elaboração de explicações complementares e alternativas; Outra mais extrema, de natureza reducionista, reivindica a explicação final da cognição e do comportamento com base em processos fisiológicos e genéticos. É a corrente que pretende reduzir a psicologia à biologia, prevendo que o futuro da psicologia ficará limitado apenas às explicações que a genética não for capaz de proporcionar. Embora os genes, a produção hormonal, a fisiologia e a organização cerebral tenham uma influência importante no comportamento e na personalidade de cada um, esta influência não é decisiva. Os genes condicionam a altura de uma pessoa, mas não é o facto de um homem ter uma altura de 2,10 metros que o torna um jogador de basquetebol amador ou de elite, ou até mesmo interessar-se por basquetebol. Os genes determinam também a raça, afectam a tomada de riscos e a estabilidade emocional, mas pertencer ou não a uma determinada raça não torna um indivíduo mais agressivo ou pacífico, mais inteligente e empreendedor ou mais socialmente dependente, mais depressivo ou mais feliz. É antes o conjunto das informações internas e externas, assim como a interpretação das experiências passadas, que levam o cérebro e a mente humana a estabelecer um critério de comportamento e de acção e a tentar alcançar o equilíbrio que uma pessoa julga mais adequado para se adaptar ao meio onde habita.
1.5.2 Perspectiva evolucionista Darwin defendeu que as plantas e animais evoluiram ao longo de milhares e milhares de anos, acumulando características que os tornaram mais capazes de sobreviver e de se reproduzir. No final do seu livro A Origem das Espécies publicado em 1859 Darwin afirmou que um dia a psicologia instituir-se-ia sobre uma nova base ou fundação. © Universidade Aberta
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A psicologia evolucionista é uma perspectiva psicológica desenvolvida nos últimos anos que, ao assumir o legado de Darwin, procura integrar as explicações do comportamento na série causal da biologia evolucionista. A psicologia evolucionista defende que os processos psicológicos como a percepção, a memória, a linguagem e o pensamento, e mecanismos como a atracção sexual, relações parentais, a escolha e adaptação aos alimentos, entre muitos outros, evoluiram ao longo de milhões de anos por meio de um processo de selecção natural. A selecção natural é considerada como o único processo causal conhecido capaz de produzir organismos funcionalmente complexos. As características que no passado ancestral da espécie humana se revelaram úteis em termos de resolução de problemas associados com a capacidade de sobrevivência e com o aumento das probabilidades de reprodução foram sendo incorporados no património genético ao longo de milhões de gerações. Em termos globais isto significa que a mente e os processos cognitivos são melhor compreendidos e explicados no âmbito das forças da biologia evolutiva expressas ao nível dos genes. Uma das reacções humanas que foi objecto de uma boa explicação por parte da psicologia evolucionista foi a do mal-estar matinal ou doença das grávidas. Uma grávida sente habitualmente por volta do segundo e terceiro meses de gravidez enjoos frequentes e aversão a certos alimentos. Freud explicou este comportamento dizendo que o mal-estar significava a aversão que a mulher tinha pelo marido e o seu desejo inconsciente de abortar o feto pela boca. Por sua vez a medicina propôs uma explicação de natureza hormonal, mas esta explicação parece insuficiente. Afinal porque é que as hormonas provocam especificamente enjoos e mal-estar em vez de induzir agressividade ou sedução? Margie Profet (1992) propôs uma explicação alternativa, afirmando que este período de mal-estar deveria trazer algum benefício à mãe e ao feto compensando os custos de uma alimentação mais reduzida ou de uma menor produtividade. Segundo Profet, durante o período de mal-estar os vómitos protegiam a mulher de comer alimentos, muitos deles portadores de toxinas, cuja ingestão prejudicaria o desenvolvimento do feto. No passado ancestral humano a alimentação era constituída à base de plantas, mas as plantas para sobreviver produziam toxinas e venenos. Profet apoiou a sua hipótese explicativa numa série de resultados dos quais destaco os seguintes: A mesma dose de vegetais portadoras de toxinas pode ser tolerada por um adulto, mas provocar um aborto ou defeitos no feto; as grávidas evitam alimentos novos e bastante temperados e condimentados, os que têm mais probabilidades de conter toxinas; os vómitos ocorrem mais frequentemente no período em que os órgãos do feto estão a ser criados e desaparece quando os órgãos estão quase formados e aumenta a necessidade de maior quantidade 40
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de ingestão de alimento; o olfacto torna-se hiper-sensível neste período, mas fica menos sensível no período seguinte; as grávidas que sentem um mal-estar mais agudo são as que têm menos probabilidades de abortar ou de ter bebés com defeito; o mal-estar da gravidez ocorre em todas as culturas humanas. O conjunto destas e de outras observações sugerem que o mal-estar nos primeiros meses de gravidez é uma reacção geneticamente programada de forma a aumentar as probabilidades de reprodução humana. Explicações do comportamento humano em termos de psicologia evolucionista foram, entre outras, a preferência por alimentos e o comportamento sexual. Assim a preferência humana por alimentos doces teria origem no passado ancestral em que a procura de frutos com sabor mais doce e maior valor nutritivo faria aumentar as hipóteses de sobrevivência. No que se refere ao comportamento sexual, vários estudos indicaram que dentro da nossa cultura os homens desejam ter em geral uma maior variedade de parceiros sexuais do que as mulheres, verificando-se esta mesma tendência no caso dos homossexuais em relação às lésbicas. Nesta perspectiva psicológica, o comportamento dos homens seria explicado em termos do aumento de disseminação reprodutiva dos seus genes, cujos custos em tempo e gasto de energia seriam reduzidos. Em contraste, o comportamento selectivo das mulheres teria a vantagem reprodutiva de assegurar o parceiro que se revelasse não só como o mais apto, mas também o mais colaborante no longo processo de gestação, nascimento e crescimento dos filhos. Steven Pinker (1997), psicólogo cognitivo e adepto da psicologia evolucionista, defendeu que o que está inscrito nos genes, resultante do nosso passado ancestral, não são comportamentos específicos como o egoísmo, o altruísmo ou o adultério que os genes se encarregariam de manipular à maneira de marionetas. O que estaria efectivamente inscrito nos genes seria antes a organização da mente e dos processos e mecanismos mentais que processam a informação e são responsáveis pela tomada de decisão. A mente é uma adaptação biológica resultante da selecção natural, mas isto não significa que todos os processos cognitivos que ocorrem na mente sejam biologicamente adaptativos. Em termos de propagação e disseminação dos genes, as pessoas cometem muitas “asneiras”: Umas ficam solteiras, outras usam contraceptivos, não querem ter filhos, ou têm o menor número possível. A mente humana foi planeada para gerar comportamentos que no passado ancestral se revelaram, em média, adaptativos, mas qualquer acto realizado no presente é o efeito de dúzias de causas. Analise-se o caso do adultério. Mesmo que o desejo de adultério seja um produto indirecto dos nossos genes, há também outros desejos opostos que também são o produto indirecto dos genes, como ter uma relação matrimonial ou de acasalamento estável. O comportamento adúltero é o resultado de uma série de cálculos e decisões © Universidade Aberta
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mentais que têm a ver com a presença de um parceiro disponível que tenha o mesmo desejo, a conveniência ou não da manutenção de um casamento feliz ou os riscos de um divórcio. Segundo Pinker (1997) o comportamento não evoluiu; o que evoluiu foi a mente. A psicologia evolucionista tem vindo a receber uma grande atenção nos anos mais recentes. Grande parte desta atenção está relacionada com a escolha de certas questões, que além de populares têm um papel importante em termos de sobrevivência e reprodução humana, como a escolha sexual, as relações parentais, as interacções sociais e a escolha de alimentos. Veja-se Crawford e Krebs (1997) para uma revisão actualizada deste tema. No entanto, a psicologia evolucionista não está isenta de apaixonadas controvérsias, sendo a razão de muitas delas a tese de que é o comportamento que está directa ou indirectamente inscrito nos genes. Mas segundo Pinker, não é o comportamento que está inscrito nos genes nem é adaptativo, mas apenas a mente e os programas mentais que processam a informação. Ao privilegiar-se o papel adaptativo da mente sobre o comportamento, torna-se possível incorporar mais facilmente os efeitos da cultura e da sociedade no aumento do grau de sobrevivência e de reprodução bem sucedida da espécie humana. As explicações do comportamento humano em termos evolutivos não estão isentas de dificuldades. Repare-se no caso da alimentação e do vestuário que têm um papel enorme em termos de adaptação humana ao meio, mas não parecem ser programados pelos genes, pelo menos de modo significativo. Antes parecem ser adquiridos em cada geração e sociedade pelo processo de aprendizagem. Por outro lado, a fala, que nos humanos tem uma origem significativamente genética, está quase inteiramente sujeita no seu desenvolvimento ao meio sócio-cultural de pertença da pessoa. A psicologia evolucionista defende, e creio que provavelmente de modo correcto, que a selecção natural moldou a mente humana e o seu modo de funcionar no mundo em que actua de forma a assegurar uma maior capacidade de sobrevivência e reprodução. Durante o processo de evolução, a mente e o mundo evoluíram conjuntamente e em interacção. No entanto se as escolhas comportamentais feitas aqui e agora são ou não adaptativas, quem por último selecciona e é responsável pelas decisões tomadas é a mente e não os genes.
1.5.3 Perspectiva sócio-cultural O comportamento depende do meio sócio-cultural em que a pessoa habita, cresce e se desenvolve. A família, a classe social, a raça, a comunidade religiosa, a organização social e política, a geografia, o país e a cultura são factores 42
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importantes que afectam o comportamento das pessoas e diferenciam não só grupos e comunidades, mas também pessoas que moram no mesmo prédio, irmãos que habitam na mesma casa e gémeos que possuem o mesmo material genético. Assim a perspectiva sócio-cultural ressalta o papel que os factores sociais e culturais têm na origem e permanência do comportamento da pessoa. A perspectiva sócio-cultural em psicologia usa e adapta conceitos e temas das ciências sociais, nomeadamente da sociologia e da antropologia. Um destes conceitos é a socialização, um processo através do qual uma pessoa aprende as regras ou “normas” da sociedade. A aquisição destas regras por parte de uma pessoa e a influência social em geral condicionam a escolha de um grupo, o estabelecimento de relações interpessoais, a aprendizagem da língua materna, a maneira de pensar, o grau de persuasão a que se é receptivo, a expressão de emoções, a criação de atitudes mais individualistas ou mais sociáveis, a formação de estereótipos e crenças em relação a raças, povos e religiões, o desenvolvimento da identidade e a construção da personalidade. Porém a socialização tem um reverso que se chama etnocentrismo, isto é, a tendência para considerar as normas culturais e étnicas do grupo de pertença como base da definição do que é correcto e natural. A atitude etnocêntrica está na origem de comportamentos exacerbados que no passado e no presente têm originado desconfiança, conflito e ataques contra povos, raças, grupos, religiões e até mesmo contra pessoas, cujos comportamentos por vezes específicos ou peculiares são considerados por uma razão ou por outra anormais e repulsivos. O ramo da psicologia que serve de interface entre o comportamento da pessoa e a influência que nele exerce a acção de outras pessoas e grupos é a psicologia social. Segundo Gordon Allport, a psicologia social procura compreender e explicar o modo como o comportamento e o pensamento dos indivíduos é influenciado pela presença real ou implícita de outras pessoas. O comportamento está sujeito a influências do meio-ambiente, que segundo uns pode ser definido como tudo o que não é genético e hereditário na pessoa. É certo que o comportamento humano é afectado pela hereditariedade e pelo meio, mas também é certo que o comportamento não é redutível a estas abordagens científicas. Se o fosse, a psicologia não teria qualquer papel no comportamento ficando este apenas dependente da genética e biologia por um lado e da cultura e sociedade por outro. No entanto, uma coisa são as diferenças entre grupos, onde se revela a presença destas variáveis importantes, outra coisa são as diferenças individuais entre pessoas de cada grupo. Com base em estudos de grupo talvez seja possível afirmar que em média ou em geral os rapazes adolescentes são competitivos, os jovens instáveis e as mulheres passivas, para já não falar em resultados médios que comparam raças e povos em termos de grau de inteligência ou de violência. No entanto todos
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conhecem excepções, ou circunstâncias de excepção a estas médias ou generalidades a começar mesmo na nossa própria casa. Por maior que seja a influência da hereditariedade ou do meio, o comportamento é no final sempre o resultado de uma avaliação e decisão que o cérebro e a mente de uma pessoa individual fazem da situação. É nesta decisão e nos seus condicionalismos que se centra a psicologia.
1.5.4 Perspectiva cognitiva A perspectiva cognitiva está subjacente às objecções referidas nas perspectivas anteriormente apresentadas. A perspectiva cognitiva reivindica a primazia da “psique”, ou da mente humana, na organização do comportamento. As perspectivas anteriores defendem que o comportamento humano é afectado por um lado por variáveis de natureza genética, hormonal e organização cerebral, e por outro lado por variáveis sociais, culturais, económicas e geográficas. É de crer que nenhum psicólogo cognitivo, nem ninguém com uma formação psicológica por mais enviesada que seja, negue a influência conjunta que estas variáveis têm no comportamento. É no teatro da mente que as diversas influências ocorrem, mas o comportamento não está directamente dependente dos genes ou da cultura. O comportamento humano é dependente sobretudo da mente, isto é, da decisão resultante do desenvolvimento e da organização mental da pessoa. A mente gera comportamentos, umas vezes de forma mais autónoma, outras vezes de forma mais condicionada por influências várias, mas a primazia é mental. A primazia da mente nunca é de mais ressaltar. Muitos estudantes de psicologia em Portugal andam tão obcecados com as influências genéticas ou da cultura, que às vezes fica-se com a impressão de que os juristas são os únicos profissionais que acreditam na mente como causa do comportamento e por conseguinte na especificidade da psicologia. Se a mente tivesse um papel tão diminuto na génese do comportamento, os crimes julgados em tribunal seriam quase todos absolvidos em função das atenuantes genéticas ou sócio-culturais. Mas não são e creio que de modo correcto. O panorama é semelhante, se se passar do comportamento desviante para o comportamento normal, que inclui a maior parte dos comportamentos das pessoas no dia a dia. Repare-se no exemplo seguinte: “Onde vais?” – “Vou buscar o carro para ir ao emprego da minha mulher convidá-la para almoçar num restaurante junto ao mar. Lembrei-me agora de lhe fazer uma surpresa!” Os genes, a fisiologia e as hormonas podem “lembrar-me” sobre a necessidade de comer, mas esta necessidade pode ser satisfeita com uma sandes e uma cerveja no bar do 44
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emprego. Por sua vez, a sociedade e a cultura não exercem qualquer pressão para ir a um restaurante à beira mar em vez de ir a um restaurante num centro comercial ou junto a um parque florestal. Se pressão existe, ela vai até nos tempos que correm no sentido de deixar o carro na garagem para não poluir o ambiente. E se esta pressão fosse determinante e o carro tivesse de ficar na garagem, a deslocação até ao emprego teria de ser anulada, porque a esta hora não haveria tempo para ir a pé e fazer a surpresa do convite. A perspectiva cognitiva defende, em síntese, que o comportamento humano no dia a dia depende do modo como a mente humana processa e interpreta a experiência que tem do meio, quer interno quer externo. As pessoas não respondem ao meio ambiente de forma mecânica e irreflectida. Pelo contrário, o comportamento no dia a dia é sobretudo organizado e sujeito a planos e regras de acção, que as pessoas pensam serem as mais adequadas para uma adaptação satisfatória e uma existência digna e autónoma.
1.6
Áreas de especialização psicológica
A organização de um curriculum de estudos superiores de psicologia normalmente compreende um ciclo inicial e um ciclo de especialização numa área para se poder obter a licenciatura em psicologia. No ciclo básico é frequente a leccionação de disciplinas de psicologia cognitiva, social, fisiológica, diferencial, psicologia do desenvolvimento e da personalidade, avaliação psicológica e disciplinas complementares de biologia, genética e estatística. No segundo ciclo, as áreas de especialização variam conforme os recursos de docência e de investigação de cada curso de psicologia. Há cursos superiores de psicologia que se especializam numa única área, como a psicologia clínica ou psicologia educacional, enquanto outros cursos têm possibilidades de oferecer estas ou ainda outras alternativas de especialização. Após a obtenção da licenciatura em psicologia, os diplomados são aconselhados a inscreverem-se em associações profissionais de psicologia. A dimensão e organização interna destas associações profissionais varia de país para país. Em Portugal havia em 1999 cerca de uma dúzia de cursos superiores de psicologia, privados e estatais; um número estimado de cerca de oito mil licenciados em psicologia e várias associações da classe. Nos EUA, o país onde a psicologia está melhor organizada e desenvolvida, a associação americana de psicologia (APA) contava em 1999 com cerca de 160 mil membros, distribuídos por 54 divisões ou áreas de especialidade.
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Um pouco por todo o mundo, a área da psicologia clínica é a área de especialização profissional que costuma atrair o maior número de alunos. As outras áreas a seguir representadas são a psicologia educacional, a psicologia organizacional, a psicologia cognitiva e experimental, a psicologia do desenvolvimento e a psicologia social e da personalidade. O panorama é semelhante em termos de áreas de especialização de doutoramento. Uma breve descrição de cada uma destas áreas ao nível da intervenção profissional e de investigação é a seguir apresentada.
1.6.1 Psicologia clínica O psicólogo clínico tem por função o diagnóstico, tratamento, aconselhamento e ajuda de pessoas com problemas de natureza emocional e comportamental. Os problemas podem variar desde dificuldades simples de ajustamento e relacionamento social até casos mais graves de stress, depressão, ansiedade, disfunções sexuais, paranóia, esquizofrenia e outras doenças mentais. Os adultos são o grupo etário onde a intervenção clínica mais se faz sentir, mas em princípio qualquer pessoa ao longo do ciclo de desenvolvimento humano pode ser cliente do psicólogo clínico. A intervenção clínica pode ocorrer em ambientes tão diferentes como a clínica privada, centros de saúde, hospitais, internatos e prisões. Relacionada com a psicologia clínica existe a área da consulta psicológica voltada especialmente para problemas de jovens e adolescentes no meio escolar.
1.6.2 Psicologia educacional O psicólogo educacional exerce a sua actividade junto do sistema de ensino em geral, embora possa fazê-lo também no âmbito privado de uma clínica. As principais funções incluem o diagnóstico e aconselhamento de crianças e adolescentes e a realização de estudos e investigação sobre problemas ocorridos no meio escolar. Entre estes problemas contam-se a avaliação cognitiva e afectiva dos alunos; o diagnóstico e acompanhamento de alunos com necessidades específicas em termos de aprendizagem e relacionamento social; elaboração e participação em programas de ensino especial; aconselhamento vocacional; levantamento, análise e propostas de resolução de problemas educacionais. 46
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1.6.3 Psicologia organizacional A psicologia organizacional tenta analisar e resolver os problemas que surgem no âmbito de uma organização industrial, militar, escolar ou de serviços. A maior parte dos problemas que o psicólogo organizacional enfrenta são problemas de selecção de pessoal para a ocupação de funções específicas, procurando-se escolher a pessoa mais capaz para uma determinada função, usando-se testes, entrevistas e análise curricular. As organizações enfrentam outros problemas que requerem a atenção do psicólogo organizacional como sejam problemas de motivação e criação de incentivos para uma maior e melhor produtividade, questões de ajustamento das pessoas às funções e das pessoas entre si no grupo de trabalho, estados de fadiga real resultantes do trabalho realizado ou induzido a partir de problemas pessoais e familiares, faltas, alcoolismo, stress, embaraço e perseguição sexual entre colegas de trabalho.
1.6.4 Psicologia cognitiva e experimental A psicologia cognitiva é considerada por muitos psicólogos como o núcleo da psicologia e uma das áreas centrais da investigação psicológica ao focar as actividades mentais de nível superior como a percepção, a aprendizagem, a memória, o uso da linguagem, o raciocínio e resolução de problemas. No estudo destas actividades ou processos mentais, a metodologia experimental e o recurso à investigação laboratorial são procedimentos frequentes e comuns. A psicologia cognitiva assumiu os temas e métodos de investigação que no passado constituiram o âmbito da psicologia experimental. Presentemente outras áreas da psicologia, além da psicologia cognitiva, reclamam e aplicam o método experimental, como acontece com a psicologia social, a psicologia do desenvolvimento e a psicologia da educação.
1.6.5 Psicologia social A psicologia social estuda o modo como o comportamento individual é afectado no contexto das interacções com outras pessoas e grupos. A maior parte do comportamento humano tem lugar num contexto social e a nossa personalidade é influenciada a diversos níveis pelas pessoas que nos rodeiam. Os grupos e as pessoas constituem uma das mais importantes classes de estímulos que a mente humana tem de processar para agir e adaptar-se com eficácia ao meio onde
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vive. Alguns dos problemas mais importantes estudados pela psicologia social são a formação e mudança de atitudes, estereótipos e preconceitos, a persuasão, obediência, imitação e conformidade social, a agressão, formação de grupos, coesão e conflitos.
1.6.6 Psicologia do desenvolvimento A psicologia do desenvolvimento estuda o comportamento humano ao longo do ciclo da vida desde o nascimento até à morte, tendo em conta os factores físicos, cognitivos, afectivos e sociais que afectam as diversas fases de crescimento, maturação e declínio. Como estes factores não actuam isoladamente, um problema importante é a análise da interacção dos factores biológicos com os factores cognitivos e sociais na génese dos comportamentos, como a aquisição da linguagem e o desenvolvimento cognitivo, social e afectivo. Houve um tempo em que a infância e a adolescência constituiram o principal período de estudo, porque neste período ocorria a fase mais acentuada do desenvolvimento humano. No entanto o âmbito da psicologia do desenvolvimento inclui actualmente todo o ciclo da vida humana, agrupando-se em áreas mais específicas como a psicologia da infância, a psicologia dos adultos e a psicologia do idoso, cada uma com os seus problemas próprios que requerem respostas específicas.
1.7
Organização e Plano da Obra
Uma obra de Psicologia Geral deveria em princípio abordar todas as questões referidas nas diversas áreas de especialização psicológica acima mencionadas. Todavia se tal projecto fosse concretizado, o resultado seria uma enciclopédia da psicologia em vários volumes. Justifica-se portanto uma selecção de temas. Os temas seleccionados para esta publicação foram alguns dos mais importantes temas da psicologia, que são habitualmente incluídos em obras similares publicadas no estrangeiro e constituem os próximos capítulos deste livro: a aprendizagem, a memória, a inteligência, a motivação, a emoção e a personalidade.
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1.8
Conceitos psicológicos referidos no capítulo
Psicologia científica, psicologia popular, psicologia estruturalista, psicologia da forma, psicologia beaviorista, psicologia cognitiva, métodos psicológicos, observação naturalista, estudo de casos, questionários, método correlacional, método dos testes, método diferencial, método experimental, variável independente, variável dependente, validade interna, validade externa, perspectiva bio-psicológica, perspectiva evolucionista, perspectiva sóciocultural, perspectiva cognitiva, psicologia clínica, psicologia educacional, psicologia organizacional, psicologia cognitiva, psicologia experimental, psicologia social, psicologia do desenvolvimento.
1.9
Perguntas de auto-avaliação 1. Qual é o objecto da psicologia científica? Justifique a perspectiva que adoptar. 2. Como foi historicamente abordado o objecto da psicologia pelas várias escolas? 3. Como diferencia a psicologia da psiquiatria, sociologia, antropologia e biologia? 4. Justifique a diversidade de métodos de investigação psicológica. 5. Refira e comente uma explicação de tipo correlacional e uma explicação de tipo causal. 6. Analise a natureza pretensamente artificial da investigação experimental. 7. Avalie o papel crucial da mente humana na explicação do comportamento em contraste com outras perspectivas concorrentes.
1.10 Sugestões de leitura O livro de Gleitman (1986/1993) é uma tradução para português de uma obra extensa, de qualidade e muito bem organizada sobre psicologia geral. Os leitores familiarizados com a língua inglesa poderão preferir as edições inglesas mais recentes deste mesmo autor, ou em alternativa os livros de Atkinson et al (1996) e de Malim e Birch (1998). © Universidade Aberta
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2. Aprendizagem
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O que se quer dizer quando se fala de aprendizagem? Para a maioria das pessoas, aprendizagem significa adquirir novos conhecimentos e comportamentos, como acontece com a criança quando aprende o nome das cores, a cantar uma canção, a guiar uma bicicleta, a ser simpática com as amigas da mamã e a resolver operações de aritmética. Mas para os psicólogos, a aprendi-zagem não é apenas isto. A aprendizagem compreende a descoberta de leis e princípios e a análise dos factores e processos próprios dos diversos actos de aprender. Assim os psicólogos estão mais interessados em investigar “como é que a aprendizagem funciona”, do que em analisar “os conteúdos ou resultados da aprendizagem”.
Âmbito, definição e tipos O âmbito da aprendizagem é bastante mais vasto do que habitualmente se supõe. A aprendizagem está envolvida em qualquer área do conhecimento e comportamento. Ao longo da vida uma pessoa aprende conhecimentos factuais, habilidades motoras, expressões emocionais, regras sociais, valores morais e até mesmo aprende a saber morrer com dignidade. A aprendizagem nem sempre é correcta e adequada. A criança pode aprender erros na escola, ou por distracção confundindo o que o professor diz, ou lendo informações erradas nos livros que os autores inadvertidamente julgavam correctas e fundamentadas. Pode ainda aprender a ser egoísta, violenta e agressiva, ou a ter medo da escola, ou porque foi castigada, ou porque os colegas não a aceitam. E os adultos podem aprender de forma inadequada a sentar-se ou a levantar volumes pesados produzindo com o passar do tempo roturas na coluna e dores de costas. A maior parte das vezes, aprender não é um acto deliberado e intencional, como acontece com o estudante na escola ou com o adulto num curso de formação. A maior parte da aprendizagem no dia a dia resulta da observação acidental de acontecimentos e pessoas que mesmo sem saberem que estão a ser observadas, atraíram por uma razão ou por outra a nossa atenção e constituem temas eventuais de conversa posterior, se a ocasião se proporcionar. Todas estas informações ocasionais diariamente obtidas permitem uma actualização permanente do nosso meio ambiente e por conseguinte uma melhor adaptação. A aprendizagem não se observa directamente, é antes inferida indirectamente através do desempenho numa tarefa. Se a tarefa escolhida for adequada e sensível, o desempenho na tarefa traduz aproximadamente o valor da aprendizagem subjacente. Mas há circunstâncias em que o valor do desempenho subavalia o valor da aprendizagem, como acontece nas situações de cansaço, fadiga, stress e doença, e ocasiões em que a aprendizagem é sobreavaliada, © Universidade Aberta
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como ocorre quando um estudante copia as respostas de exame pelo colega do lado. Em termos gerais, a aprendizagem define-se como “uma mudança relativamente permanente no comportamento e no conhecimento devido à prática ou experiência”. As mudanças operadas na aprendizagem ocorrem devido à prática anterior ou experiência passada e distinguem-se de outros tipos de mudanças comportamentais resultantes da maturação dos organismos, de doenças, estados de ansiedade e tomada de drogas. A aprendizagem verifica-se quer ao nível do comportamento, como acontece quando o pombo dá uma bicada num círculo em vez de um quadrado para obter alimento numa experiência de condicionamento, quer ao nível do conhecimento, como se verifica quando a criança aprende que o vermelho do semáforo significa obrigatoriamente parar. Historicamente foi a escola beaviorista que primeiro analisou de forma sistemática a aprendizagem. Esta investigação foi realizada na primeira metade do séc. XX preferencialmente com organismos não-humanos, quer por razões de controlo experimental, quer devido à crença de que as principais leis de aprendizagem eram comuns a todos os organismos. As teorias de aprendizagem elaboradas no âmbito da escola beaviorista focaram principalmente as mudanças no comportamento, isto é, as mudanças naquilo que os organismos fazem. Na segunda metade do séc XX, a perspectiva cognitiva passou a ter uma aceitação crescente entre os investigadores em detrimento da perspectiva beaviorista. Assim a investigação em aprendizagem passou a considerar cada vez mais as mudanças no conteúdo e estrutura do conhecimento representado na memória, isto é, as mudanças naquilo que os sujeitos sabem. As pessoas passam a ser os sujeitos preferenciais da análise do processo de aprendizagem, procurando os investigadores examinar o modo como o conhecimento é adquirido, organizado e integrado no conhecimento prévio do sujeito. Com a psicologia cognitiva, o comportamento deixa de ser o objectivo final da aprendizagem para ser um meio ou índice para se inferir a organização do conhecimento de que os seres humanos são portadores. Na perspectiva cognitiva, a aprendizagem torna-se num acto de aquisição de conhecimento. O conhecimento é a informação construída pelo sujeito a partir da sua estrutura cognitiva. Na natureza não há conhecimento, há apenas informação. As investigações sobre aprendizagem costumam organizar-se segundo quatro tipos diferentes de acordo com o grau de complexidade: (1) A habituação; (2) O condicionamento clássico; (3) O condicionamento operante; (4) A aprendizagem observacional; (5) A aprendizagem verbal.
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A habituação é a tendência para ignorar um estímulo que se tornou familiar e cujo aparecimento não apresenta consequências de maior. O condicionamento clássico envolve a aquisição de uma nova resposta face a um estímulo que inicialmente não a produzia. O condicionamento operante abrange um tipo de resposta voluntária, seleccionada em função dos efeitos ou consequências produzidas e observadas. A aprendizagem observacional consiste na observação e imitação posterior do comportamento de um modelo. A aprendizagem verbal refere-se à aquisição e recordação de itens verbais.
2.1
A habituação
Quando um estímulo novo ocorre no meio ambiente é vantajoso do ponto de vista evolutivo um organismo prestar-lhe atenção ou reagir imediatamente, sob pena de perder vantagem e ser eventualmente destruído. Mas quando o mesmo estímulo aparece com alguma frequência sem apresentar consequências negativas de maior, o organismo passa a habituar-se, a tolerar a sua presença e por fim a ignorá-lo. Esta diminuição de frequência de resposta a um estímulo familiar caracteriza a habituação, um fenómeno que é considerado uma das expressões mais simples de aprendizagem. É um fenómeno que ocorre com grande frequência nas mais diversas espécies de animais desde os moluscos marinhos até aos seres humanos. A aplysia, um molusco marinho, contrai fortemente as guelras para dentro da concha quando se toca numa das suas partes chamada sifão. Mas ao fim de 10 a 15 toques, o reflexo, que inicialmente é bastante forte, praticamente desaparece. O processo de habituação observa-se também nas pessoas. Ao fim de algumas horas, dias ou semanas as pessoas ignoram o tic-tac do relógio de sala, o bater de horas no relógio da igreja, o tráfego da rua e a passagem do comboio nocturno, o chilreio dos pássaros às primeiras horas da madrugada na primavera. O organismo tende ainda a responder cada vez mais em menor grau ao cigarro, vinho ou calmantes que em pequenas doses inicialmente surtem um grande efeito, mas com o tempo e a repetição passam a exigir doses maiores para atingir um efeito equivalente. Nos recém-nascidos verifica-se também que na primeira vez que um rosto ou um objecto novo é visto há uma fixação do olhar por um período de tempo maior do que nas ocasiões posteriores, sendo o tempo de fixação um índice de familiaridade e por consequência de habituação (e.g., Bornstein e Benasich, 1986). A habituação nem sempre foi considerada uma forma de aprendizagem. Por um lado a aprendizagem requer a permanência da mudança de comportamento
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e a habituação não parece ser permanente. Por outro lado, a aprendizagem envolve uma associação entre dois eventos e a habituação parece envolver apenas a repetição sucessiva de um único estímulo. Pode-se argumentar no entanto que a permanência da mudança no organismo refere-se à tolerância cada vez maior deste face a um estímulo específico. As pessoas habituam-se ao ruído tolerando-o cada vez mais a ponto das reacções estabilizarem até certo grau. Quanto à associação inerente ao processo de aprendizagem, a habituação implicaria uma associação, não tanto entre dois estímulos ou acontecimentos, mas antes entre o organismo e o ambiente ou contexto em que se insere. A habituação parece de facto ser específica do ambiente experimental ou do contexto em que ocorre.
2.2
Condicionamento clássico
Condicionamento clássico é um procedimento de investigação experimental estudado por Pavlov (1849-1936), na sequência dos estudos realizados sobre secreções digestivas nos cães e que lhe valeram o prémio Nobel da medicina em 1904. Durante os estudos que vinha a efectuar sobre secreções digestivas, Pavlov observou que os cães salivavam muitas vezes quando não parecia haver qualquer razão fisiológica para o fazer. Quando Pavlov trabalhava com o mesmo cão repetidamente verificou que o cão salivava aos estímulos associados ao alimento como a visão do prato ou a presença da pessoa que regularmente o trazia. Pavlov decidiu efectuar uma análise experimental sistemática sobre estas secreções psíquicas, isto é, sobre os factores psicológicos que levavam a produzir a salivação, elaborando um projecto de investigação que o tornou ainda mais conhecido do que os estudos iniciais sobre secreções digestivas (e.g., Windholz, 1997). Este projecto de investigação levado a cabo por Pavlov e pelos seus colaboradores entre 1903-1908 permitiu definir e estabelecer os principais conceitos do condicionamento, como o reflexo condicionado, a extinção, a generalização e a discriminação (e.g., Todes, 1997; Windholz, 1992).
2.2.1 Pavlov: procedimento experimental O elemento que Pavlov seleccionou para efeitos de investigação e que se revelou crucial em termos de aprendizagem foi o facto do cão aprender uma associação entre alimento e um sinal casual que precedia imediatamente o alimento. Na 56
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experiência de Pavlov, o cão era imobilizado por arreios e colocado numa sala à prova de som e com temperatura e iluminação constantes a fim de garantir que variações acidentais nas condições ambientais não viessem a afectar o curso da experiência. O cão era ainda sujeito a uma pequena operação cirúrgica às glândulas salivares introduzindo-se aí um pequeno tubo por onde passava a saliva, tornando possível medir de forma exacta a quantidade produzida. Vejase uma ilustração do procedimento experimental na Figura 2.1, feita em 1907 por Nicolai, discípulo de Pavlov. Uma vez o cão familiarizado com o dispositivo experimental, introduz-se a seguinte sequência de acontecimentos: Emite-se um som produzido por uma campaínha ou pelo clic de um metrónomo e com o som ainda presente, fornecese carne em pó ao cão. A sequência som-carne é repetida durante vários ensaios. Após cerca de 20 ensaios de emparelhamento entre o som e a carne, o cão começa a salivar logo que ouve o som, dando origem àquilo que Pavlov chamou um reflexo condicionado. A partir de um certo número de ensaios, o cão saliva ao aparecimento do som, quando no início da experiência não o fazia.
Figura 2.1 - Procedimento experimental do condicionamento de Pavlov. Ilustração do discípulo G. F. Nicolai da Universidade de Berlim.
Pavlov chamou estímulo incondicionado [EI] à apresentação do alimento e à salivação por ela provocada o reflexo incondicionado [RI]. O EI é um estímulo que evoca uma resposta específica. O RI é uma resposta reflexa ou involuntariamente produzida por um estímulo. Estímulos como o cheiro a cânfora, uma luz, o som de uma campaínha ou o clic de um metrónomo são designados por estímulos neutros [EN], porque © Universidade Aberta
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não produzem respostas específicas antes da experiência ou logo no seu início, quando muito uma resposta de orientação para a origem do sinal. Embora o som da campaínha esteja associado historicamente ao condicionamento de Pavlov, é curioso notar que Pavlov (1906) ao referir-se pela primeira vez à campaínha em língua inglesa tenha afirmado que este som não era muito eficaz na produção da resposta condicionada porque tendia a espantar o cão e a alterar-lhe o comportamento. A associação repetida entre o som e o alimento transformou o estímulo inicialmente neutro num estímulo condicionado [EC] passando a produzir uma resposta de salivação sob a forma de resposta condicionada [RC]. A totalidade do processo experimental acabado de descrever recebeu o nome de condicionamento de Pavlov, mais tarde denominado condicionamento clássico por Hilgard e Marquis (1940). O condicionamento de Pavlov consiste portanto na aquisição e estabelecimento de uma associação entre um estímulo inicialmente neutro com um estímulo incondicionado, que ao fim de vários ensaios adquire o poder de produzir uma resposta condicionada. No início da experiência o cão não reage por meio da salivação ao som da campaínha. No fim da experiência o cão produz uma resposta de salivação ao som da campaínha. No repertório de respostas, o cão adquiriu portanto uma nova resposta, mudando de comportamento em função da experiência a que fora submetido. Trata-se da aquisição de uma nova aprendizagem pelo processo de associação. Suponhamos que após a aquisição e estabilização da resposta condicionada, o som do metrónomo deixa de ser acompanhado de alimento. Neste caso observase uma diminuição progressiva da quantidade da resposta salivar, dando origem ao fim de alguns ensaios ao desaparecimento e extinção experimental da RC. A extinção é uma diminuição na grandeza da resposta com a repetição de ensaios não reforçados. Veja-se uma ilustração na Figura 2.2. Quando o cão é liberto do dispositivo experimental para um período de descanso, verifica-se, no regresso posterior do animal à situação experimental, que a emissão do som é suficiente para recuperar a resposta condicionada em cerca de 70%. O reaparecimento da RC recebeu o nome de recuperação espontânea. Durante o período de extinção e de recuperação espontânea, o EC não é seguido do EI. A recuperação é um processo em que uma resposta considerada extinta volta a readquirir algum do seu valor após um período de descanso. Durante o processo de extinção, a associação entre EC e EI não é totalmente abolida, ocorrendo antes uma inibição transitória da resposta condicionada, podendo esta associação ser reactivada após um intervalo de tempo.
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Figura 2.2 - Funções de aquisição, extinção e recuperação espontânea, típicas da resposta condicionada de Pavlov.
No procedimento típico de condicionamento de Pavlov, as respostas incondicionadas e respostas condicionadas são respostas de salivação nominalmente idênticas, mas substancialmente diferentes. Investigações recentes, usando instrumentos mais sensíveis e registos de resposta mais variados, indicaram que a RC não é uma imagem ou réplica fiel da RI. A RC é menos intensa e mais limitada na sua amplitude do que a RI. Face a uma porção de carne de livre acesso, a resposta típica de um cão faminto é salivar, aproximar a boca do prato, abocanhar rapidamente uma porção ou a totalidade da carne, mastigá-la e depois engoli-la. A quantidade de saliva é mais abundante e rica em enzimas digestivas. Porém a RC de salivação produzida pelo clic de um metrónomo após umas dezenas de ensaios de associação entre som e carne inclui apenas um ou dois destes componentes de resposta. Na RC, o cão saliva, mas não mastiga ou engole uma porção de carne imaginária. A diferença entre RI e RC é ainda mais nítida no condicionamento de medo. Quando um rato ou cão recebe choques eléctricos numa gaiola precedidos por uma luz, a resposta ao choque (RI) é saltar, observando-se ainda um aumento do ritmo cardíaco. Mas quando o animal vê a luz (EC) que precede o choque (EI), a RC é bastante diferente. Em vez de saltar, o animal para, encolhe-se, contrai-se e o ritmo cardíaco baixa. Isto faz sentido na medida em que o animal reage como se se preparasse para fugir, enquanto na RI o animal tenta escapar e fugir.
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2.2.1.1
Generalização e discriminação
Durante o processo de aquisição de uma RC, o EC permanece idêntico nas suas características físicas ao longo dos ensaios da experiência. No entanto quando a RC a um EC tiver sido adquirida, é possível que outros EC similares ao EC original sejam capazes de produzir a mesma RC. Assim se um cão aprende a salivar a um som com uma frequência de 1000 cps, o cão também salivará a sons um pouco mais graves (900, 800, 700 cps) ou mais agudos (1500, 2000, 2500) sem necessidade de qualquer condicionamento suplementar. Quanto mais semelhantes forem os novos estímulos com o EC original, mais fácil será a generalização condicionada e por conseguinte a substituição dos novos estímulos pelo EC original. A generalização condicionada é o processo pelo qual uma resposta condicionada a um estímulo tende a ser emitida também com outros estímulos similares. A generalização representa a habilidade de reagir a novos estímulos e situações na medida em que são similares a situações passadas. As investigações revelaram que o grau de generalização decresce de modo ordenado à medida que o novo estímulo se torna cada vez mais dissimilar relativamente ao EC inicial, produzindo uma função de intensidade de RC para os novos estímulos com um formato de sino. Esta função é conhecida por gradiente de generalização. A discriminação, ou diferenciação, é um processo complementar da generalização. Enquanto a generalização é uma resposta a similaridades, a discriminação é uma resposta a diferenças. Pavlov descobriu que podia usar praticamente qualquer estímulo como EC. Chegou mesmo a treinar um cão a salivar perante um metrónomo, regulado para 100 batimentos por minuto (EC+). Como seria de esperar, e graças ao processo de generalização, o cão também salivou ao metrónomo regulado para 80 batimentos por minuto. Então, Pavlov continuou a fornecer carne (EI) com o estímulo positivo de 100 batimentos (EC+), mas não com o estímulo comparativo (EC-) de 80 batimentos. Após dar algumas RC ao estímulo de 80 batimentos, o cão parou. O cão mostrou ser capaz de discriminar entre os sons de 100 e de 80 batimentos produzidos pelo metrónomo. Prosseguindo no treino, a marcação de 100 batimentos foi sempre acompanhada de carne, mas nos ensaios sem alimento, Pavlov alterou o metrónomo para 85 batimentos. Após alguns ensaios o cão voltou a salivar apenas ao som de 100 batimentos. A discriminação do cão foi ainda testada com a mudança para 90 e finalmente para 96 batimentos. Mesmo com uma diferença tão reduzida de quatro batimentos por minuto, o cão foi ainda capaz de distinguir entre as duas marcações. A discriminação é o processo que leva a responder a certos estímulos que são reforçados e a não responder a estímulos similares que não foram reforçados. 60
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A discriminação é portanto a habilidade para reagir a pequenas diferenças entre os estímulos apresentados, quer se trate de sons, cores, grandezas ou distâncias. Quando a discriminação exigida se torna excessivamente subtil, o cão parece sofrer de uma “perturbação ou colapso nervoso”, que Pavlov denominou neurose experimental. Pavlov descreve como treinou um cão a discriminar um círculo de uma elipse. O círculo era seguido de carne (EI+), a elipse não. A proporção entre os diâmetros horizontal e vertical da elipse começou em 9:5 e tornou-se cada vez mais semelhante ao círculo à medida que a experiência de discriminação prosseguia. Quando a proporção entre os diâmetros da elipse chegou a 9:8, os cães mostraram-se agitados, perturbados e com o comportamento desorganizado. Perderam todas as vantagens do treino anterior e passaram a reagir ao acaso quer ao círculo quer à elipse, mesmo face às discriminações iniciais mais diferenciadas.
2.2.1.2
Relação Temporal entre EC e o EI
Nas experiências de condicionamento clássico, o EC (campainha) precede normalmente o EI (alimento). Este é considerado o procedimento padrão, embora outras sequências temporais tenham sido investigadas. Nas experiências realizadas com animais verificou-se que o intervalo óptimo entre o aparecimento do som e o aparecimento do alimento para se obter uma resposta condicionada mais forte situa-se em torno de 0,5 segundo. Se o intervalo for maior, a resposta condicionada é mais fraca. Se o som aparece depois do alimento, a resposta condicionada não se estabelece. Este intervalo óptimo verifica-se também com pessoas em experiências de condicionamento da resposta palpebral, a ponto de um intervalo de dois segundos já não possibilitar qualquer RC. A proximidade temporal entre o EC-EI na ordem de 0,5 segundo foi considerado uma prova do princípio de contiguidade temporal e a condição mais determinante para a ocorrência do condicionamento de Pavlov até à década de 1960, provando de certo modo experimentalmente o princípio de contiguidade de aprendizagem formulado por Aristóteles. A importância do intervalo temporal entre EC-EI como determinante do condicionamento foi no entanto posta em causa pelas investigações de Garcia e colaboradores (e.g., Garcia et al. 1966), ao verificarem que a resposta condicionada podia ser obtido com intervalos temporais de várias horas, em vez de minutos ou segundos, em experiências de condicionamento aversivo relacionadas com o sabor. A partir da década de 1960, considerou-se que,
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mais importante do que o intervalo de tempo em si, era o significado que os animais atribuíam à proximidade temporal entre os estímulos.
2.2.2 Condicionamento de respostas emocionais O procedimento de condicionamento usado por Pavlov não se restringe ao cão ou a outros organismos não-humanos, mas aplica-se também a pessoas, onde se efectuaram estudos relacionados com o reflexo palpebrar, o reflexo rotular, salivação, náusea e aversão ao álcool e tabaco. Os resultados obtidos em muitos casos foram satisfatórios a ponto de o procedimento experimental de Pavlov ser por vezes adoptado em psicologia clínica com o objectivo de modificar o comportamento das pessoas numa determinada direcção (e.g., Wolpe e Plaud, 1997). O primeiro estudo de aplicação do paradigma do condicionamento de Pavlov a seres humanos foi realizado por Watson e Raynor durante o inverno de 1919-1920. Watson e Raynor (1920) planearam uma experiência para verificar se seria possível condicionar uma criança a ter medo de um rato, que à primeira vista não despertasse qualquer receio. Tentaram ainda determinar a duração da reacção de medo e o grau de generalização a outros animais ou objectos inanimados. Watson e Raynor escolheram uma criança saudável de 9 meses, chamada Albert. Nesta idade não revelou qualquer medo quando lhe foi mostrado sucessivamente animais vivos (rato, coelho, cão e um macaco), ou alguns objectos inanimados (algodão, máscaras humanas, papel de jornal a arder). Todavia a criança assustava-se e sentia medo quando um martelo batia inesperadamente numa barra de aço por trás da cabeça. Dois meses após esta observação, Watson e Raynor tentaram condicionar a criança a ter medo de um rato branco. No primeiro ensaio aproximaram o rato da criança e no momento em que a criança lhe tocava, produziram com um martelo uma forte pancada numa barra de aço por trás da cabeça da criança. Após 7 associações do rato e do som do martelo, o pequeno Albert tremia, agitava-se, chorava e gritava logo que o rato era apresentado mesmo quando já não era acompanhado pela presença do som. Cinco dias após a sessão anterior, rato foi apresentado à criança juntamente com alguns animais e objectos familiares como um coelho, um cão, blocos de madeira, novelos de algodão, um casaco de pele de foca, as cabeças invertidas de Watson e de duas assistentes (de forma que a criança pudesse tocar-lhes no cabelo) e uma máscara do Pai Natal com barbas. 62
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A criança sentiu um medo intenso em relação ao rato, coelho, cão e casaco de pele de foca; uma ligeira resposta de medo ao algodão; uma resposta negativa (ausência de medo) ao cabelo de Watson e das assistentes, aos blocos de madeira e à máscara do Pai Natal. Estes resultados revelaram a capacidade da criança para generalizar e discriminar. Embora o medo do rato se tenha generalizado a outros animais e objectos, a criança no entanto foi capaz de discriminar entre objectos geradores e não geradores de medo.
Caixa 2.1 Dessensibilização sistemática A dessensibilização sistemática é uma técnica frequentemente usada no tratamento de estados de forte ansiedade associados a determinados situações ou estímulos fóbicos. Esta técnica envolve a associação de um estado agradável de relaxamento com uma série gradual de estímulos que desencadeiam o comportamento a modificar. Ansiedade e relaxamento são estados incompatíveis, que não é possível experienciar ao mesmo tempo. Numa fase inicial o terapeuta treina progressivamente o cliente nas técnicas de relaxamento corporal e estabelece uma hierarquia de estímulos desencadeadores de ansiedade, por exemplo, o medo das alturas que pode levar uma pessoa a recusar-se a andar de avião, atravessar uma ponte ou a viver em prédios altos. Uma hierarquia de estímulos inclui primeiro um grupo de situações imagináveis e depois um grupo de situações reais. Uma hierarquia simplificada pode incluir as situações seguintes: 1. Olhar para fotografias de um parque tiradas de um prédio alto e depois de avião. 2. Ver um vídeo do parque ou da cidade tirado de avião. 3. Subir ao primeiro andar de um arranha céus e olhar pela janela; depois ao terceiro, décimo e vigésimo andar. 4. Subir ao cimo da torre mais alta da cidade e olhar para baixo. 5. Atravessar uma ponte alta. 6. Entrar num avião, sentar-se e apertar o cinto. 7. Sentir o avião a levantar voo e ganhar altitude. O terapeuta começa por treinar o cliente a aprender a relaxar os vários músculos do corpo até sentir um estado de sonolência, conforto e bem-estar. Em seguida o terapeuta mostra a primeira fotografia da hierarquia de estímulos ao cliente. Se o cliente não sentir qualquer ansiedade, o terapeuta passa à situação seguinte na mesma sessão; se porém o cliente sentir ansiedade, o terapeuta retira a fotografia e regressa à situação de relaxamento profundo. A fotografia é
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repetidamente emparelhada com o estado de relaxamento até o cliente conseguir observá-la sem sentir ansiedade. O terapeuta avança na hierarquia de estímulos e situações ansiosas, usando o estado de relaxamento para dessensibilizar cada situação imaginada e cada uma das situações experienciadas. O terapeuta pode ainda complementar esta técnica com a aprendizagem observacional, apresentando ao cliente em cada fase da hierarquia de estímulos, videos de pessoas a passar por cada uma das situações geradoras de ansiedade.
A fim de determinar o tempo de permanência da resposta de medo na criança, Watson e Raynor realizaram provas similares passado um mês. Nestas provas a criança ainda sentiu medo quando tocou na máscara do Pai Natal, no casaco de pele de foca, no rato, coelho e cão. Às vezes a tensão da criança era visível entre afastar-se ou aproximar-se do coelho e do casaco. Ao contrário do que referem algumas descrições desta experiência, Watson e Raynor não procederam à extinção ou descondicionamento da resposta de medo do pequeno Albert e pelos 12 meses, a mãe retirou a criança do hospital onde se realizara a experiência (e.g., Harris, 1979). A extinção da resposta de medo foi pela primeira vez realizada por Jones (1924) numa criança de nome Peter de 2 anos e a viver numa instituição de caridade. Peter sentia um medo intenso, acompanhado por choro e convulsões quando via ratos, coelhos, rãs e peixes, casacos de pele, penas, algodão. Em relação a outros seres e objectos parecia ser uma criança bem ajustada. O modo como Peter tinha adquirido este tipo de medo não é conhecido. A fim de remover o comportamento de medo, Mary Cover Jones pôs o coelho dentro de uma gaiola de arame em frente de Peter na altura da tomada de alimento. Ao longo das primeiras 17 sessões, o coelho, preso na gaiola, era trazido cada dia um pouco mais próximo para junto de Peter, enquanto tomava a refeição preferida. Nas sessões posteriores o coelho era solto da gaiola e deixado livre na sala. Nas últimas sessões, o coelho era colocado no colo de Peter e até no tabuleiro da refeição. Ao fim de 40 sessões, que decorreram ao longo de dois meses, Jones conseguiu que Peter tomasse a refeição com uma mão e acariciasse o coelho com a outra. Apesar do procedimento seguido por Watson e Raynor ser considerado reprovável nos nossos dias do ponto de vista ético e não terem sido bem sucedidas algumas tentativas para o replicar, acontece no entanto que as 64
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experiências de Watson e Raynor (1920) e Jones (1924) foram consideradas marcos importantes nos estudos de aprendizagem emocional e da aplicação do condicionamento de Pavlov. A técnica de Jones de remoção e extinção do medo representa uma forma inicial do método que mais tarde Wolpe (1958) designou por dessensibilização sistemática. É um método usado com alguma frequência em terapia comportamental com o objectivo de reduzir a ansiedade gerada por certos estímulos e situações e extinguir se possível os medos e fobias inerentes. Vejase a Caixa 2.1. O condicionamento de Pavlov é um procedimento que explica satisfatoriamente o modo como os medos são espontaneamente adquiridos na vida diária, como o medo do dentista, medo de ir à escola, medo de exames, medo de falar em público, medo das alturas, medo de andar de elevador, medo dos ratos, aranhas, baratas e cobras. Veja-se o caso do medo do dentista. Para algumas crianças e adultos a ida ao dentista é uma situação geradora de medo e ansiedade. Este medo foi adquirido nas sessões passadas de ida ao dentista para tratamento dos dentes. Durante o tratamento, o dentista usou a broca, que ao tocar no nervo do dente produziu dor e como consequência comportamentos de evitação, medo e rejeição por parte do doente. Nas sessões posteriores de tratamento dos dentes, o som específico produzido pelo broca, mesmo sem haver ainda contacto da broca com o dente, pode ser suficiente para provocar no paciente comportamentos de evitação e medo. Em certas circunstâncias e com certos pacientes, sair de casa para ir ao dentista ou até mesmo a simples audição da palavra dentista provoca imediatamente ansiedade e calafrios. Os conceitos usados por Pavlov aplicam-se a esta situação. Assim a broca do dentista ao tocar no nervo do dente funciona como estímulo incondicionado e a dor, evitação e medo gerado são respostas incondicionadas. O som da broca, que na primeira sessão e antes de qualquer contacto da broca com o dente não produzia qualquer medo (estímulo neutro), quando precedeu e foi associado à dor produzida durante o tratamento, converteu-se em estimulo condicionado capaz de produzir uma resposta condicionada de evitação, ansiedade e medo similar em vários aspectos à resposta incondicionada. Muitos dos medos que as pessoas sentem, mantêm-se por tempo indeterminado, porque as pessoas evitam enfrentar as situações geradoras de ansiedade. Por exemplo, quem tem medo de andar de elevador evita a todo o custo e por todos os meios andar de elevador, suprimindo a oportunidade de desencadear o processo de extinção deste tipo de medo.
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2.2.3 Explicações do condicionamento de Pavlov Desde a sua descoberta por volta de 1903, Pavlov considerou os reflexos condicionados como um processo de adaptação do organismo ao meio. O EC era considerado um sinal de que o alimento, um factor de sobrevivência, estava prestes a ocorrer. Assim o cão ficava na expectativa do aparecimento de alimento. O condicionamento de Pavlov foi observado em moluscos marinhos, abelhas, moscas da fruta, peixes, pombos, gatos, ratos, cães, macacos e pessoas, o que sugere tratar-se de um mecanismo ou processo adoptado por praticamente todos os organismos na tarefa vital de adaptação ao meio ambiente. Pavlov descobriu que a aprendizagem podia afectar os comportamentos reflexos e involuntários, como a salivação. Outros investigadores revelaram depois que muitos comportamentos reflexos como os medos e fobias, supostamente considerados inatos, podiam ser explicados pela acção do mecanismo de condicionamento de Pavlov. As investigações de Pavlov tiveram um enorme impacto na investigação psicológica, nomeadamente ao nível da aprendizagem e ao contrário do que possam pensar alguns estudantes de psicologia mal informados, o procedimento de Pavlov é um método de investigação bem actual (Hollis, 1997). O condicionamento de Pavlov tem sido explicado de forma diferente pelas grandes teorias psicológicas, como o beaviorismo, a teoria da informação e a psicologia cognitiva. Para o beaviorismo, a aprendizagem ocorria devido à associação mecânica entre o EN e o EI (som e alimento) e esta associação fortalecia-se e tornava-se mais robusta à medida que o número de ensaios aumentava. A teoria da informação defende que o condicionamento de Pavlov é mais eficaz nas situações em que o EN prevê ou assinala a chegada do EI, ou fornece informação sobre os próximos acontecimentos (Mackintosh, 1983). Assim no condicionamento da resposta palpebral, a pessoa começa a pestanejar (RC) em resposta a um som (EN), quando este proporciona informação de que uma corrente de ar (EI) está prestes a atingir o olho. Nas situações em que o EI tanto aparece como não aparece associado ao EN, verifica-se que o ENEC não produz uma RC. Para que a RC ocorra é preciso que o EI surja mais de metade das vezes associado ao EN-EC. Nestas circunstâncias o EC passa a ter valor informativo. Isto é, informa o sujeito de que um EI vai ocorrer em breve e assim a pessoa pestaneja. Segundo a teoria informacional, o EC deve prever a ocorrência próxima do EI, caso contrário é pouco provável que ocorra qualquer tipo de condicionamento. O modelo cognitivo explica a associação entre os dois estímulos (EN e EI) pela mediação e intervenção dos processos cognitivos de percepção, memória, 66
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reconhecimento e categorização, que ocorrem logo no primeiro ensaio de condicionamento (Schwartz e Reisberg, 1991). Assim no primeiro ensaio de condicionamento, ouve-se o som e meio segundo depois surge o alimento. Para que haja algum efeito de condicionamento neste ensaio, o cão tem de identificar e perceber os dois estímulos, o som e o alimento. Assim um processo cognitivo mediador é a percepção. Além disto, para que o cão forme uma associação entre o som e o alimento, quando o alimento surge, é preciso que o cão se recorde que o som precedeu o alimento. Assim o segundo processo cognitivo mediador é a memória. No segundo ensaio de condicionamento, o som é uma vez mais emitido. Do mesmo modo que no primeiro ensaio, o animal deve perceber o som. No entanto, deve fazer algo mais; deve reconhecer que este som é muito semelhante ao som do primeiro ensaio. Isto é, deve enquadrar as suas experiências perceptivas, passadas e presentes, em categorias. Para o conseguir deve recordar-se dos estímulos do primeiro ensaio (som e alimento) e compará-los com os actuais estímulos. Assim um outro processo cognitivo mediador é a categorização. Para a teoria cognitiva, os estímulos externos são identificados e reconhecidos, depois processados em função das experiências passadas, associados e integrados com outras experiências e por último activam respostas apropriadas de adaptação ao meio. O método de investigação de Pavlov constituiu um passo importante no avanço científico do estudo da aprendizagem ao descobrir um importante mecanismo pelo qual um estímulo neutro passa a obter um novo significado.
2.3
O condicionamento operante
O condicionamento operante é uma expressão introduzida por Skinner (1938) para caracterizar um tipo de procedimento experimental, usado nos estudos de aprendizagem associativa de respostas, que considerava ser diferente do usado por Pavlov. O condicionamento operante envolve a aprendizagem entre uma resposta e as suas consequências, ao contrário de Pavlov, em que a aprendizagem envolvia uma associação entre dois estímulos. O condicionamento operante, por vezes chamado skineriano, relaciona-se de perto com os estudos de psicologia animal realizados por Thorndike (1874-1949) e que ficaram conhecidos por condicionamento instrumental. Embora o condicionamento instrumental seja considerado um caso especial do condicionamento operante, as diferenças são bastante subtis a ponto dos investigadores incluírem os dois tipos de condicionamento no âmbito do condicionamento operante.
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2.3.1 Thorndike: Procedimento experimental Os estudos de Thorndike sobre a aprendizagem foram iniciados com o seu projecto de doutoramento concluído em 1898. O tema relacionava-se com a inteligência animal, tendo estudado o modo como cães, gatos e mais tarde macacos aprendiam a sair de uma caixa-problema para obter alimento, através da manipulação de dispositivos mecânicos, como roldanas, fechos, ganchos ou pedais. O procedimento experimental típico usado por Thorndike foi o seguinte:
Figura 2.3 - Caixa-problema usada por Thorndike nas experiências de aprendizagem com gatos em 1898. Dentro pode ver-se o pedal que o gato usa para sair da gaiola.
Um gato faminto é encarcerado dentro de uma gaiola fechada. A porta pode ser aberta se o gato puxar um fio, suspenso do tecto da gaiola, ligado ao fecho da porta, conforme a Figura 2.3. Numa situação destas, o gato manifesta no início reacções diversas de tipo exploratório. Corre na gaiola, arranha as paredes, tenta infiltrar-se entre as tábuas, fareja, ergue-se nas patas traseiras e depois, um pouco por acaso, puxa o fio que move o fecho, sai da gaiola e apodera-se do alimento. O acto, que foi bem sucedido e levou à abertura da porta, passa a ser efectuado cada vez mais rapidamente e de forma precisa ao longo dos próximos ensaios. Quando se repete a experiência, o tempo que o gato leva para sair da gaiola diminui progressivamente. Ao fim de um certo número de ensaios, o gato maneja o trinco da porta logo que volta a ser colocado na gaiola. Nesta altura, o tempo de realização da tarefa é o mínimo possível, sendo difícil verificarem-se ganhos de tempo com a realização de novos ensaios. Diz-se que a aprendizagem da caixa-problema foi concluída. 68
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2.3.1.1
Características de aprendizagem
Thorndike (1911) efectuou vários estudos em amostras de cães, gatos e macacos em situações de controle laboratorial, com problemas padronizados, fazendo observações e registos precisos e quantitativos sobre o desempenho dos animais. Em cada ensaio media o tempo entre o momento em que o gato entrava na gaiola e a altura em que se apoderava do alimento. Registando depois os valores na ordenada de um gráfico, é possível representar o processo de aprendizagem por uma função semelhante à da Figura 2.4, que representa a curva de aprendizagem de um gato de Thorndike. Thorndike ressaltou três aspectos deste procedimento experimental que estariam relacionados com situações de aprendizagem:
Figura 2.4 - Curva de aprendizagem de um gato de Thorndike, representando o tempo em segundos que um gato leva para escapar de uma gaiola ao longo de vários ensaios.
A aprendizagem efectuava-se por ensaios e erros: O gato parece agir por ensaios e erros, ou ensaios e êxitos, ou simplesmente tentativas, antes de encontrar a solução para o problema criado. O gato não se encosta a um canto da gaiola a pensar na elaboração de uma estratégia de fuga. A aprendizagem é gradual: A aprendizagem desenvolve-se no decorrer dos ensaios, ao verificar-se uma diminuição progressiva do tempo necessário para soltar o fecho da porta. Os animais não resolvem problemas por instinto ou raciocínio, mas através de uma aprendizagem gradual da resposta correcta. © Universidade Aberta
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A aprendizagem é motivada. Nesta situação experimental, o gato está enjaulado e faminto e fora da gaiola existe alimento. Nestas circunstâncias, a necessidade forte de alimento gera um impulso ou motivação para sair da gaiola.
2.3.1.2
Leis de Aprendizagem
Para Thorndike a aprendizagem é o resultado de ensaios e erros seguidos por um sucesso acidental. O gato aprendeu a sair da gaiola cada vez mais rapidamente, repetindo os comportamentos ou respostas que antes levaram à saída e a não repetir aqueles que se revelaram ineficazes. A aprendizagem estabelece-se quando ocorre uma conexão ou ligação entre um estímulo (ou situação) e uma determinada resposta. Trata-se de um processo simples de conexionismo, isto é, da conecção de uma resposta com uma situação. Neste sentido Thorndike (1911) formulou duas leis de aprendizagem: • A lei do exercício: As conexões entre uma situação e uma resposta são reforçadas pelo exercício e enfraquecidas quando o exercício é suspenso. Por outras palavras, quanto maior for o número de ensaios ou repetição, maior é a força da conexão; quanto menor for o número de ensaios ou repetições, menor será o vínculo da conexão. • A lei do efeito: Numa dada situação, todo o acto que produz um estado de coisas satisfatório é mantido ou reforçado. O acto que produz um estado de coisas desagradável ou sem efeito ficará cada vez mais enfraquecido. Assim se um estímulo for seguido por uma resposta e o resultado for satisfatório, a conexão entre o estímulo e a resposta será fortalecida. Se o resultado for nulo ou desagradável, a conexão será enfraquecida. “Quanto maior a satisfação ou o desconforto, maior o fortalecimento ou o enfraquecimento da conexão” (Thorndike, 1911, p. 244). Na concepção de aprendizagem de Thorndike, será que todo o acto de aprendizagem está dependente simultaneamente da lei do exercício e da lei do efeito, ou a lei do efeito será suficiente? Isto é, a repetição será suficiente ou é necessário que o acto leve a um fim satisfatório? Inicialmente Thorndike considerou que a lei do exercício e a lei do efeito exprimiam duas condições necessárias e interdependentes de toda a aprendizagem. Por alturas de 1931, Thorndike abandonou a lei do exercício, considerando que esta só favorecia a aprendizagem nas situações que permitiam a lei do efeito. Thorndike verificou que a repetição de uma resposta que não fosse acompanhada da acção selectiva do resultado não provocava o seu aperfeiçoamento. 70
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Este argumento pode ser melhor entendido se um experimentador pedir a uma pessoa de olhos vendados para traçar linhas de 15 cm numa folha de papel. O simples tracejar de novas linhas (repetição) não melhora o desempenho da pessoa, a menos que haja da parte do experimentador uma informação sobre o bom ou mau desempenho obtido em cada traçado. A partir de 1931 com a publicação do livro Human Learning, Thorndike afirmou que a lei do efeito passa a constituir a única lei explicativa da aprendizagem. Thorndike modificou ainda ligeiramente por esta altura a lei do efeito, ressaltando a importância maior dos resultados satisfatórios em relação aos resultados desagradáveis em termos de conexão do E-R. Os mecanismos do reforço e da punição seriam de natureza diferente. O reforço fortalece a conexão, mas o castigo não a enfraquece directamente. Se o castigo for efectivo no enfraquecimento de uma resposta é porque produz maior diversidade de respostas, aumentando a probabilidade de uma nova resposta surgida ser reforçada satisfatoriamente. Em resumo, o modelo de aprendizagem de Thorndike vai um pouco mais longe do que o modelo de Pavlov ao demonstrar que os estímulos que ocorrem depois de uma resposta ser dada têm influência nos comportamentos futuros. Ao ressaltar a formação de uma conexão entre um estímulo e uma resposta através do resultado do reforço, este modelo converteu-se na perspectiva dominante da psicologia da aprendizagem americana, tornando-se o ponto de partida para qualquer discussão sobre aprendizagem (Hill, 1997, p. 36).
2.3.2 Skinner: procedimento experimental O psicólogo americano Skinner (1904-1990) foi um ilustre investigador do século XX. Foi porém um autor controverso, ao manter-se fiel ao sistema beaviorista, defendendo-o mesmo quando este sistema perdera grande parte da sua mística e atracção e os investigadores começaram a voltar-se cada vez mais na direcção da psicologia cognitiva (Skinner, 1990). Skinner é autor de uma vasta obra científica e de divulgação, estando alguns dos seus livros traduzidos em Português. Skinner elaborou e desenvolveu um procedimento de investigação de aprendizagem em animais, nomeadamente em ratos e pombos, usando uma caixa ou gaiola, que ficou conhecida por gaiola de Skinner. Veja-se a Figura 2.5. A gaiola de Skinner é um instrumento adaptado aos animais para estes responder e agir em vez de aprender a fugir como num labirinto. É no entanto um instrumento que, à semelhança das caixas-problema de Thorndike e dos labirintos de outros investigadores, representa uma forma do experimentador exercer um controlo sobre a situação onde o animal se move e que não é possível obter no meio natural. © Universidade Aberta
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Figura 2.5 - Exemplos de gaiolas de Skinner: à esquerda para estudar o condicionamento operante em ratos com indicação da alavanca para carregar e do tabuleiro onde cai o alimento; à direita para pombos com indicação do disco de bicar e tabuleiro.
Numa experiência típica com ratos, Skinner coloca o animal faminto na gaiola, no interior da qual existe uma barra e um tabuleiro. Quando o rato pressiona a barra, movimenta-se um mecanismo que liberta uma das bolas de alimento armazenadas num recipiente no exterior da gaiola para o tabuleiro situado dentro da gaiola. Após o rato ter pressionado a barra uma vez por acaso, o número de pressões na barra vai aumentando progressivamente por unidade de tempo. Skinner (1938) distinguiu este tipo de condicionamento, a que chamou operante, do condicionamento de Pavlov, a que chamou respondente ou reflexo. No procedimento de Skinner, é o próprio animal que por sua actividade (pressão na barra) obtém o alimento, ao passo que no procedimento de Pavlov, o animal responde por uma actividade reflexa de salivação ao alimento que lhe é apresentado. O condicionamento operante exprime e descreve o aumento da probabilidade de uma resposta ser emitida num determinado meio ambiente devido ao reforço. Na sequência da lei do efeito de Thorndike, o condicionamento operante defende que uma resposta é seleccionada por um organismo em função das consequências que produz. Assim a aprendizagem consiste na modificação das probabilidades de uma resposta ser dada a partir da manipulação dos seus efeitos através de um sistema de reforço. O estímulo, a resposta e as suas consequências constituem os três conceitos principais do sistema de Skinner.
2.3.3 O Papel do Reforço A frequência de uma resposta pode aumentar ou diminuir se for ou não reforçada. O reforço é um conceito central no condicionamento operante. Em 72
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termos gerais, o reforço é uma situação satisfatória e gratificante. No entanto para Skinner, reforço é definido operacionalmente e refere-se a qualquer estímulo cuja presença ou afastamento aumenta a probabilidade de uma resposta. O reforço pode ser positivo como na situação em que um rato obtém alimento após pressionar uma barra; ou negativo, como numa situação em que a pressão na barra pode evitar o aparecimento próximo de um choque eléctrico. O reforço pode ainda ser contínuo, quando todas as respostas são reforçadas ou intermitente, nas situações em que apenas algumas respostas são reforçadas. O reforço intermitente (ou parcial) pode-se organizar de acordo com diferentes programas de reforço e é mais interessante do que o reforço contínuo do ponto de vista teórico e prático.
2.3.3.1 Tipos e Programas de Reforço A aquisição de uma resposta condicionada (pressão na barra) é gradual e progressiva, se a resposta for seguida de reforço. A extinção desta resposta ocorre também gradualmente quando deixa de ser reforçada. O reforço contínuo é necessário para se estabelecer um comportamento inicial, mas o comportamento aprendido é mantido por mais tempo se ficar sujeito a um programa de reforço intermitente. Na situação de reforço intermitente, a frequência de respostas é bastante mais elevada. Além de uma frequência maior, a resposta é também mais resistente à extinção, na medida em que o número de respostas realizadas depois da suspensão de todo e qualquer reforço é muito maior do que na situação em que o reforço é constante. Um animal ou uma pessoa nunca sabem quando vão ser, ou se ainda vão ser, novamente reforçados. Ferster e Skinner (1957) efectuaram uma análise sistemática do reforço intermitente e descobriram quatro situações de reforço, que se poderão dividir em dois tipos diferentes com duas variáveis cada: Programas de proporção (fixo e variável) e programas de intervalo de tempo (fixo e variável). Segue-se uma breve descrição destes quatro programas: Intervalo fixo: O reforço só é ministrado quando o animal responde correctamente após um intervalo fixo, por exemplo, um intervalo de 20 segundos. Intervalo variável: Estabelece-se um intervalo médio, de 20 segundos por exemplo, variável de ensaio para ensaio e imprevisível (5 ou 30 segundos) no fim do qual uma resposta correcta é reforçada.
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Proporção fixa: O reforço só é atribuído após se ter produzido um número fixo de respostas, por exemplo após 10 pressões na barra. Proporção variável: Estabelece-se uma proporção média de respostas, por exemplo 10 pressões, mas o número de respostas necessárias para obter um reforço varia e é imprevisível, num caso pode ser cinco noutro quinze. Os programas de proporção produzem uma taxa mais elevada de respostas em relação aos programas de intervalo de tempo, e são ainda mais resistentes à extinção. A extinção pode ser bastante longa e demorada nos dois tipos de programas de reforço variáveis. Nos programas fixos, a ausência de reforço na altura prevista pode ser informativa, mas nos programas variáveis, a atribuição do reforço é bastante mais imprevisível. Skinner verificou num programa de intervalo variável que um pombo chegou a bicar um disco 10 mil vezes sem retribuição de qualquer reforço. Estes programas de reforço intermitente analisados com animais no laboratório apresentam similaridades com o comportamento humano em situações do dia a dia. Assim as situações humanas que se assemelham ao programa de intervalo fixo são o pagamento à hora ou o teste trimestral. O programa de intervalo variável assemelha-se à prática da pesca, ou ao pagamento irregular que os trabalhadores por conta própria recebem dos clientes, como as costureiras e alfaiates; ao programa de proporção fixa corresponde o pagamento à peça ou por meio de comissões; o programa de proporção variável compara-se aos jogos de sorte e azar, como a roleta.
Comportamento Supersticioso Skinner (1948) demonstrou no laboratório o estabelecimento de um comportamento arbitrário em seis pombos, num total de oito, que apelidou de supersticioso. Na experiência, cada pombo recebia uma porção de alimento após intervalos de 15 segundos, independentemente da resposta dada. Na altura do aparecimento do reforço, os pombos apresentavam comportamentos comuns, entre outros estar de pé a olhar numa certa direcção, levantar uma perna ou virar-se para o lado. Provavelmente um ou outro destes comportamentos esteve presente passados 15 segundos na altura da atribuição de um novo reforço. Com o decorrer da experiência, um destes comportamentos passa a aumentar de frequência, apesar do reforço ser atribuído em função do tempo e não em função da resposta seleccionada pelo experimentador. Skinner observou que os pombos “fixavam-se” em comportamentos arbitrários, como voltar-se subitamente para uma lado, saltar de um pé para o outro, inclinar-se para a frente ou levantar a cabeça. Eram comportamentos de natureza supersticiosa, 74
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porque não existia uma associação entre comportamento e alimento, mas antes uma associação entre tempo e alimento. O comportamento supersticioso é uma resposta arbitrária comum do animal reforçada pelo alimento e contrasta com a resposta seleccionada pelo experimentador que é invocada pelo alimento. Estudos mais recentes revelaram no entanto que o pombo apenas se “fixa” numa resposta quando esta se relaciona com a evocação do alimento, como bicar a parede da gaiola acima do tabuleiro (e.g., Timberlake e Lucas, 1985).
2.3.3.2 Reforço e Punição A tese central de Skinner e do condicionamento operante é de que o comportamento depende das suas consequências. Animais e pessoas comportam-se de modo a obter satisfação e tentam afastar-se de situações desagradáveis e punitivas. Qual é a relação e a eficácia do reforço e da punição? O comportamento seguido de reforço é fortalecido e a frequência de respostas aumenta. Em contraste, o comportamento seguido de punição é enfraquecido e a frequência de respostas diminui. A relação entre reforço e punição é complexa e depende quer dos efeitos da resposta quer do grau de atracção do estímulo apresentado ou removido. Reforço e punição apresentam duas modalidades cada: O reforço pode ser positivo ou negativo e a punição pode ser física ou psicológica. O reforço positivo refere-se à situação em que se atribui um estímulo agradável e satisfatório após ser dada uma resposta. Nesta situação a resposta tende a ser repetida. Exemplos de reforço positivo são o alimento na caixa de Skinner, dinheiro, louvor e presentes. O reforço negativo refere-se à situação em que um estímulo desagradável ou aversivo é suspenso ou removido, após a emissão de uma resposta. A resposta tende a ser repetida como acontece na situação de condicionamento de evitação em que a pressão na alavanca provoca a suspensão do choque eléctrico, evitando o seu aparecimento. Situações humanas que podem servir de exemplo são o caso de universitários que estudam para passar de exame a fim de não perderem a bolsa de estudos, ou para evitarem ser incorporados no serviço militar; crianças que se portam bem para não serem espancadas; adultos que bebem para “afogar as mágoas” e esquecer as agruras da vida. A punição directa ou física acontece quando se atribui um estímulo aversivo ou negativo após ser emitida uma resposta, produzindo uma diminuição da © Universidade Aberta
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sua frequência. Exemplos são os castigos, a dor causada quando se põe a mão no fogo ou em água quente ou se metem pregos nas tomadas eléctricas. A punição indirecta ou psicológica ocorre na situação em que se suspende um estímulo agradável após ser emitida uma dada resposta, causando uma diminuição da sua frequência. Genericamente consiste na retirada de privilégios adquiridos, como a suspensão do recreio ou do programa de televisão pelo mau comportamento e multas por infracções de trânsito. A punição indirecta é socialmente mais aceitável e constitui em geral uma alternativa recomendável à punição física. Mas punição é punição e a punição indirecta pode até ser mais dolorosa do que a punição física quando envolve chantagem emocional, um procedimento às vezes adoptado pelos adolescentes, namorados, famílias e pais entre outros.
2.3.3.3 Reforço ou Punição? A punição, o castigo e a violência estão espalhados na nossa sociedade quer a nível individual quer institucional. As infracções e crimes são punidos com multas, prisão, brutalidade, maus tratos, insultos, humilhações e ofensas à dignidade em doses variadas. Acontece por vezes infelizmente que os comportamentos rudes, irritantes e insolentes das crianças e adolescentes são punidos com sovas, tareias, bofetadas, pontapés e espancamentos. A punição é uma forma controversa de controlar o comportamento e há objecções de natureza ética e cultural cada vez maiores na nossa sociedade. Porque será que a punição física é um situação tão frequente? A razão óbvia é que a punição física é eficaz, pelo menos a curto prazo, para suspender um comportamento desagradável. Quando educadores gritam à criança para deixar de fazer asneiras, é provável que a criança interrompa a asneira por momentos. Como a situação costuma ser bem sucedida, o resultado serve de reforço para o educador que tende a repeti-lo. Certos educadores alegam ainda que uma palmada nunca fez mal a ninguém; que se pode compensar mais tarde a criança com um beijo ou um mimo para não se sentir rejeitada e ainda que punir é um sinal de quem manda e assume a responsabilidade pela educação. Há uma convicção crescente e fundamentada de que o castigo é desumano, eticamente reprovável e viola os direitos humanos. É impossível estabelecer um critério entre o bom e mau castigo, aplicá-lo de forma proporcional a crianças sem defesa e numa relação de forças desigual. O castigo envia um sinal à criança de que o uso da violência é legítimo e aceitável e modela as relações humanas com base na força. Há estudos que referem que as crianças, vítimas de prepotência e crueldade, são mais agressivas, têm uma menor auto76
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estima, revelam problemas na adolescência, conservam memórias de violência pela vida fora e quando assumem o papel de educadores estão mais inclinadas a usar o castigo e a violência, gerando-se assim um círculo vicioso. Outras justificações são ainda acrescentadas contra o uso da punição. A punição não surte frequentemente o efeito desejado e pode ser contraproducente. Portarse mal e ser rude pode ser uma forma de chamar atenção dos educadores. Em vez de remover o comportamento indesejável, o castigo reforça antes o seu aparecimento. A punição mesmo quando reduz ou elimina o comportamento indesejável, não assinala qual é o comportamento alternativo desejado. Os maus tratos na família, o abuso sexual de menores, os roubos cometidos na adolescência são reincidentes, mesmo quando punidos, porque raramente são ensinadas as respostas alternativas aceitáveis. A punição pode originar efeitos secundários inesperados e indesejáveis. Castigar uma criança quando é insolente e atrevida suprime o comportamento no imediato, mas a médio prazo pode originar, como efeitos secundários, timidez, dificuldades de relacionamento, medo dos educadores, fuga de casa e até suicídio. A punição é uma experiência que fica associada ao contexto onde ocorreu e às pessoas mais representativas que nele figuraram, originando por vezes actos de retaliação. Quando a pessoa punida se confronta mais tarde com sinais de ambientes similares àqueles em que foi vítima ou subitamente os recorda, provavelmente sentirá fortes reacções emotivas e desejará “vingar-se do sistema” e das pessoas que aí actuaram. A punição como forma de regular o comportamento é reprovável, mas quando administrada em certas circunstâncias e até certo grau poderá ser considerada uma opção. Há situações de risco que rodeiam uma criança, como pôr a mão no disco do fogão ou numa panela com água a ferver, brincar com facas, fósforos, armas de fogo, introduzir pregos nas tomadas eléctricas, andar de bicicleta ou jogar futebol na rua. Quando se grita à criança para parar, ou mesmo quando se dá uma palmada na mão ou nas nádegas para assinalar ou prevenir uma ocasião de perigo, está-se a punir efectivamente a criança para que estes comportamentos diminuam de frequência. Todavia se, por laxismo ou preconceito, a criança não for avisada do perigo eminente, as consequências que poderá vir a sofrer serão muito mais dolorosas e nocivas.
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Caixa 2.2 A punição dos reforços O título desta secção é a tradução livre do livro de Kohn (1993), cuja tese principal refere que o reforço tem um efeito prejudicial na acção educativa e nos negócios. Vários têm sido os investigadores que defenderam que o reforço reduz a criatividade e o pensamento divergente, baixa a qualidade do trabalho e diminui o interesse nas tarefas a desempenhar, tornando-as estereotipadas. E neste sentido avisam os pais, educadores e empresários do falhanço dos programas de modificação de comportamento de pessoas sujeitos a sistemas de incentivo em condições em que se pretende obter um desempenho elevado e criativo numa tarefa. Recentemente Eisenberger e Cameron (1996) efectuaram uma revisão da literatura científica neste domínio e concluíram entre outros aspectos que os efeitos negativos do reforço observados ocorrem em condições experimentais muito específicas, havendo provas sobre o papel positivo do reforço na criatividade. Neste sentido o estudo de Eisenberger e Selbst (1994) poderá ser indicativo. Estes investigadores solicitaram a seis grupos de crianças pré-adolescentes a tarefa de formar palavras a partir de uma sequência de letras ao acaso. Metade das crianças formava apenas uma palavra (pensamento divergente baixo), e a outra metade formava seis palavras diferentes (pensamento divergente alto). Quando as crianças completavam cada tarefa, obtinham todas a informação “correcto”. Além disto, um terço das crianças recebia uma soma elevada de dinheiro, outro terço uma pequena soma e as restantes não recebiam qualquer quantia. A fim de se analisar o grau de generalização do pensamento divergente em função do tipo de reforço, as crianças foram solicitadas depois a realizar uma tarefa que consistia em desenhar figuras a partir de pequenos círculos em branco que preenchiam a totalidade das folhas que lhes eram entregues. As figuras feitas foram avaliadas por um júri em termos de criatividade, expressa pela originalidade da figura no conjunto das figuras produzidas. Em geral os resultados indicaram que a criatividade foi por um lado maior nas crianças que tinham realizado a tarefa de pensamento divergente alto em relação à tarefa de pensamento divergente baixo; por outro lado, a criatividade foi maior no grupo que realizou a tarefa de pensamento divergente alto e recebeu um pequeno reforço. A partir desta e de outras experiências similares, Eisenberger e Selbst (1994) concluiram que o reforço facilita a transferência do processo criativo de uma tarefa para outra diferente.
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Para se mudar o comportamento na direcção desejada, a sabedoria popular sugere o “pau e a cenoura”, isto é, conseguir dosear a administração dos estímulos agradáveis com os estímulos aversivos. Em contraste, os investigadores defendem que o reforço positivo é a técnica melhor e mais eficaz em termos de mudança e regulação dos comportamentos, ao estabelecer regras e atribuir prémios e reconhecimento pelos comportamentos dados. Ao reforçar a resposta desejada, indica-se a direcção certa e evitam-se reacções defensivas. O reforço positivo tem também as suas limitações em termos de modificação do comportamento. O condicionamento operante é considerado um sistema de selecção de respostas e não um sistema de produção de novas respostas. As respostas pretendidas e inovadoras não são espontâneas, demoram algum tempo a estabelecer-se e em certas espécies nem sequer chegam a ocorrer por contrariarem predisposições genéticas. Veja-se o tempo que demora e os fracassos que ocorrem quando se pretende ensinar uma criança a dizer “se faz favor” quando pede qualquer coisa, ou as dificuldades verificadas por Breland e Breland (1961) para treinar um porco a depositar moedas num mealheiro, um estudo descrito mais adiante. Há até mesmo investigadores que consideram que reforçar as pessoas por aquilo que já fazem com prazer pode até desfavorecer o interesse investida numa tal tarefa. Veja-se a Caixa 2.2.
2.3.4 Condicionamento de Fuga e Evitação O condicionamento de fuga e evitação foi estudado num procedimento experimental, usado inicialmente por Miller (1948) com ratos e Solomon e Wynne (1953) com cães e é constituído por uma gaiola de dois compartimentos, separados por uma barreira transponível. Quando o soalho do compartimento A é electrificado, o animal aí colocado aprende a refugiar-se no compartimento B. Solomon e Wynne (1953) colocaram um cão num gaiola de dois compartimentos iguais. A divisória entre os compartimentos tinha uma abertura superior que permitia ao cão saltar para o outro lado. Colocado num dos lados da gaiola, o cão ouvia um som e 10 segundos depois sofria um choque eléctrico. Se o cão saltasse para o outro lado da gaiola fugia ao choque e sentia-se seguro. Em cada um dos primeiros 7 ensaios o cão não saltou a divisória durante o período de segurança após ouvir o som e sofreu um choque eléctrico. Mas a partir do oitavo ensaio, o cão conseguiu evitar o choque saltando a barreira dentro do período de segurança de 10 segundos. Com o decorrer dos ensaios a resposta de evitação foi cada vez mais rápida fixando-se em torno dos 2 segundos após a emissão do sinal. Chama-se condicionamento de fuga ou escape (por ex., saltar a divisória) quando uma resposta interrompe o efeito © Universidade Aberta
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de uma situação aversiva; e condicionamento de evitação quando o animal previne e se antecipa ao aparecimento do estímulo aversivo ou adia o seu início.
2.3.4.1 Extinção da Resposta de Evitação O tempo necessário para a extinção de uma resposta varia de acordo com a frequência e programa de reforço usado na fase de aquisição. Assim quanto maior for o condicionamento, maior será também a dificuldade de extinção. É mais difícil extinguir o comportamento adquirido por meio de reforço negativo do que através de reforço positivo. O medo da situação aversiva torna a aprendizagem de evitação muito difícil de extinguir. Como se processa a extinção da resposta de evitação, mesmo se o choque já tiver sido removido? O animal continua a saltar logo a seguir ao sinal durante um longo período, mesmo quando já não há qualquer razão para o fazer. O animal nunca espera o tempo suficiente para verificar que o choque já foi removido. Na experiência de Solomon e Wynne (1953), alguns dos cães deixados no procedimento experimental continuaram a realizar centenas de saltos. A única maneira de os impedir de saltar foi subir a barreira ou fechar a divisória. Este é aliás um dos procedimentos mais usados para assegurar a extinção da resposta de evitação. Assim o animal é forçado a permanecer no compartimento anteriormente aversivo para verificar o fim dos choques eléctricos. Inicialmente o animal agita-se ou comporta-se de forma rígida, mas a pouco e pouco começa a acalmar-se indicando que a resposta de evitação foi extinta. O Desamparo Aprendido Um fenómeno importante associado ao condicionamento de evitação foi a descoberta da aprendizagem do desamparo aprendido por Maier, Seligman e Solomon (1969). Nesta experiência, em que foram usados dois grupos de cães, os animais de um grupo sofriam uma série de choques, mas podiam interromper a situação aversiva se pressionassem um painel com o nariz. Os cães do segundo grupo sofriam um choque da mesma intensidade e duração, mas não tinham qualquer controlo sobre a extinção do choque. Mais tarde os animais dos dois grupos foram colocados numa nova situação onde podiam escapar e evitar o choque saltando uma barreira entre dois compartimentos. Apesar da fuga e evitação serem agora possíveis para todos os cães, os investigadores verificaram que só os cães, que antes eram capazes de interromper a situação aversiva e tinham controlo sobre a situação, conseguiram aprender a saltar a barreira e a fugir à estimulação aversiva durante o 80
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período de segurança de 10 segundos. Os cães do segundo grupo saltavam, corriam e latiam quando sofriam o choque nos ensaios iniciais, mas a pouco e pouco deixaram de o fazer, permanecendo sentados ou encostados e recebendo passivamente qualquer choque que lhes era infligido. Após receberem choques inevitáveis, os animais comportavam-se como se qualquer resposta fosse inútil. Maier, Seligman e Solomon (1969) classificaram esta situação experimental de efeito de desamparo aprendido. Este efeito verificou-se porque os cães tinham sido expostos a choques inevitáveis, cujo termo não podiam controlar, aprendendo que a produção de qualquer resposta era independente do decurso da estimulação aversiva. Esta aprendizagem reduziu a motivação do animal para escapar mais tarde a uma estimulação aversiva numa nova situação. Verificou-se também que a exposição a estímulos aversivos incontroláveis tem repercussões fisiológicas, como o aparecimento de úlceras no estômago em pessoas e animais (e.g., Overmier e Murison, 1997). Casos de desamparo aprendido observam-se também em seres humanos (e.g., Miller e Norman, 1979), nomeadamente em pessoas sem grandes meios para agir, como os pobres, os doentes, os drogados, os idosos, os deprimidos e os prisioneiros de guerra. Strassman, Thaler e Schein (1956) estudaram casos de prisioneiros de guerra que adoptaram posições opostas face à situação em que se encontravam. Enquanto uns adoptavam uma posição agressiva, esforçandose por subverter os planos dos captores, outros tornavam-se apáticos e sem qualquer desejo de fuga ou resistência. A diferença entre os dois tipos estava na atitude face à eficácia das respectivas acções. Os activos acreditavam que podiam melhorar a situação se agissem, enquanto que os passivos acreditavam que não havia qualquer esperança e que toda e qualquer acção da parte deles seria inútil e perigosa.
2.3.5 Moldagem do Comportamento Quando se coloca um rato pela primeira vez na gaiola de Skinner é pouco provável que o rato pressione espontaneamente a barra durante os primeiros 30 minutos. No entanto o rato está activo ao longo deste período de tempo, umas vezes corre, outras toca com a pata ou fareja as paredes. A resposta de pressão na barra pode ser apressada se se reforçarem as respostas que se aproximem progressivamente da resposta final desejada. Para tal o reforço é atribuído no início quando o rato se volta na direcção da barra; nas ocasiões seguintes somente quando se aproxima da barra e finalmente quando o animal apenas toca e pressiona a barra.
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A moldagem é uma técnica de condicionamento operante e consiste na recompensa de respostas ocasionais que se aproximam do comportamento final desejado, utilizando uma mudança gradual nas condições do reforço. Esta técnica deve necessariamente utilizar os comportamentos que tenham uma probabilidade razoável de ocorrer. Por analogia com o oleiro que molda progressivamente um pedaço de barro numa peça de olaria, assim o investigador aplica a moldagem com o objectivo de modificar o comportamento numa determinada direcção. Para modificar o comportamento de animais e crianças, Skinner propôs um método de três etapas: (1) Definir o objectivo ou habilidade a adquirir; (2) definir o comportamento inicial a reforçar; (3) reforçar positivamente as respostas dadas em cada etapa para atingir o objectivo desejado. A moldagem funciona ao converter segmentos simples de comportamento emitidos espontaneamente em habilidades ou padrões de resposta complexos através do reforço selectivo. A moldagem não se restringe ao laboratório e é a técnica adoptada para ensinar a maior parte das habilidades que os animais de circo exibem. Breland e Breland (1961) referem ter treinado dezenas de animais de várias espécies para espectáculos de circo, feiras, teatros e anúncios televisivos, algumas vezes com bastante sucesso. Reconhecem porém que não é um processo seguro, como se verá adiante. Os cães podem ser treinados para guiar cegos ou descobrir droga e explosivos e Skinner conseguiu mesmo treinar pombos a jogar uma forma modificada de ping-pong. Na aplicação ao comportamento humano, a moldagem é uma técnica bem sucedida sempre que comportamentos e habilidades humanas têm de ser aprendidas de forma gradual, umas vezes de forma voluntária como nadar ou andar de bicicleta, outras de forma mais implícita como expressões linguísticas de deferência, tipo “obrigado” ou “se faz favor”. Em situações clínicas, a técnica de moldagem foi ainda usada com algum sucesso em crianças autistas que ao fim de várias sessões conseguiram articular algumas palavras inteligíveis, quando no início eram incapazes de o fazer.
2.3.6 Limitações biológicas do condicionamento Mark Twain uma vez afirmou que não se deve ensinar um porco a cantar. É uma perda de tempo e incomoda o porco! Os investigadores descobriram limitações biológicas que restringem o processo de condicionamento e moldagem. Umas são óbvias como ensinar um porco a cantar, outras são uma surpresa como ensinar um porco a depositar uma moeda num mealheiro. 82
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Breland e Breland (1961) publicaram um artigo intitulado O Mau Comportamento dos Animais, cujo título pretendeu ser uma paródia ao livro famoso de Skinner (1938) O Comportamento dos Animais. Neste artigo referem o caso de uma falha no condicionamento de um porco para depositar moedas num mealheiro. As coisas correram bem durante as primeiras semanas de treino. Sendo os porcos animais de grande apetite, são fáceis de trabalhar e de condicionar, excepto neste caso, em que a falha não ocorreu só com um porco mas com vários. Segundo Breland e Breland (1961) verificou-se a situação seguinte: O porco corria ansiosamente para buscar a moeda de dólar, mas no regresso em vez de a segurar e depositar simplesmente no mealheiro, o porco deixava-a cair, foçava a terra, deixava-a cair novamente, levantava-a, atirava-a ao ar, voltava a deixá-la cair, foçava novamente a terra e assim por aí adiante. Breland e Breland notaram que neste caso de mau comportamento, o porco derivava para um comportamento típico da sua espécie, que era foçar a terra para obter alimento. O porco revelou uma inclinação instintiva na direcção de um comportamento típico da espécie ao relacionar-se com um objecto que tinha adquirido o significado de alimento. Breland e Breland (1961) referiram outros fracassos ocorridos com galinhas, gatos, coelhos, baleias e um guaxinim e explicaram o insucesso devido a interferências instintivas próprias da espécie na obtenção natural de alimento. Assim o reforço e a moldagem nem sempre são bem sucedidos em situações de condicionamento operante. Alguns anos depois, Garcia e Koelling (1966) provaram, numa experiência notável, que o sistema nervoso dos animais estaria enviesado a formar certo tipo de associações em vez de outras e que a associação poderia estabelecer-se mesmo com intervalos de várias horas! O procedimento experimental deste estudo foi constituído pelas três fases seguintes: (1) A um grupo de ratos sequiosos era fornecido um soluto de água misturada com sacarina para beberem através de um tubo. No momento do contacto da língua com o tubo era activado um clic sonoro e uma luz. (2) Após intervalos de uma ou mais horas, os ratos eram injectados com um produto que lhes provocava náusea. Após esta única experiência, os ratos irão associar a náusea com a bebida, a náusea com som e a luz, ou a náusea com os três estímulos? Qual destes estímulos irá ser considerado precursor ou causador do estado de náusea pelos ratos?
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Caixa 2.3 Pode um doce tornar-se num bode expiatório? Broberg e Bernstein (1987) aplicaram o procedimento do condicionamento clássico para reduzir os efeitos secundários da aplicação da quimioterapia no tratamento do cancro em crianças. Vómitos e náuseas costumam ser os efeitos secundários mais incómodos referidos pelos doentes quando tomam medicamentos e que associam em geral aos alimentos ingeridos na refeição anterior. A fim de evitar a associação típica da náusea com alimentos da refeição, os investigadores tentaram desenvolver uma nova associação com o sabor de um doce tomado no final da refeição e que se apresentava com um sabor bastante intenso. A experiência ocorreu num só ensaio. O objectivo da tomada do doce era funcionar como uma espécie de bode expiatório em relação aos alimentos que constituíam a dieta habitual. Os resultados obtidos indicaram que as crianças do grupo experimental que comeram o doce, tomaram em média mais alimentos da sua dieta habitual nas refeições seguintes do que as crianças do grupo de controle que não comeram bolo nenhum. Esta experiência provou que é possível redireccionar a aversão aos alimentos da refeição para um alimento específico e de menor importância, que passaria a agir como bode expiatório.
(3) A fim de verificarem se uma associação se tinha formado entre a bebida aromatizada e náusea, Garcia e Koelling estabeleceram duas condições: Numa condição deram aos ratos a beber o soluto sem o som e a luz a acompanhar; os ratos recusaram bebê-lo. Na outra condição foi fornecida água acompanhada do som e da luz; os ratos beberam-na. Nesta experiência foram incluídas ainda outras condições na segunda fase. Metade dos ratos foi injectado com um tóxico e a outra metade sofreu um choque eléctrico na pata. Na terceira fase da experiência, os ratos que sofreram o choque beberam o soluto numa quantidade muito maior do que a água acompanhada de som e luz. Em síntese, os ratos aprenderam facilmente a associar o sabor novo do líquido com mal-estar e náusea, e o som e a luz com o choque eléctrico. 84
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A experiência de Garcia e Koelling e outras que se seguiram sobre o condicionamento de aversão a sabores (veja-se a Caixa 2.3), pôs em causa algumas conclusões estabelecidas. Primeiro, provou que a aprendizagem pode ocorrer definitivamente num único ensaio; não é apenas progressiva. Segundo, provou que não é qualquer estímulo neutro que se torna num estímulo condicionado (EC). Terceiro, a associação entre um EC-EI pode ocorrer com intervalos de várias horas. Estas conclusões vieram a ficar conhecidas na literatura científica por efeito Garcia. As experiências de condicionamento aversivo revelaram ainda que é praticamente impossível condicionar os ratos a associar o sabor com o choque, ou o som e a luz com mal-estar e náusea. Verificou-se também que os pombos aprendem facilmente a bicar um disco para obter alimento ou a bater as asas para fugir ao choque, mas revelam grandes dificuldades em aprender a bicar um disco para fugir ao choque ou a bater as asas para obter alimento. Tudo isto faz sentido. Na vida selvagem os pombos bicam a terra para obter alimento e batem as asas para fugir ao perigo. E os ratos, sendo animais nocturnos com visão limitada, avaliam os alimentos em termos de sabor. Se o sabor é comum como a água, provam sem dificuldades, o que torna difícil condicionar os ratos a rejeitarem a água. Se o sabor é novo, os ratos provam uma pequena porção, aguardam para ver os efeitos e só mais tarde retomam ou não o alimento em função dos resultados observados. Talvez por isto o extermínio dos ratos por envenenamento seja tão difícil de conseguir. A série destes e de outros estudos prova que os princípios básicos de condicionamento não se aplicam igualmente a todas as espécies e em todas as situações. Há uma inclinação biológica bem definida para desenvolver uma aversão condicionada a certos estímulos, o que leva a que só alguns comportamentos de certas espécies de animais possam ser moldados pelas técnicas do condicionamento e não todo e qualquer comportamento de qualquer animal. Apesar das predisposições biológicas limitarem a generalidade das leis da aprendizagem a todos os animais, pode-se mesmo assim defender a um nível mais profundo que toda a aprendizagem consiste numa adaptação do animal ao seu meio ambiente. No processo de adaptação ao meio, os animais aprendem rapidamente tanto os sinais que conduzem ao alimento como aqueles que indicam perigo ou ameaça.
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2.3.7 Condicionamento clássico e operante O condicionamento clássico e o condicionamento operante foram considerados durante muito tempo dois tipos distintos de aprendizagem (e.g., Hearst, 1975). As principais diferenças ou critérios apresentados para justificar esta distinção foram os seguintes: 1. O condicionamento clássico é um sistema mais simples de aprendizagem, associado a respostas de tipo reflexo ou involuntário como a salivação, o reflexo palpebral e o aumento ou diminuição do ritmo cardíaco. O condicionamento operante está associado a respostas mais complexas de tipo voluntário como a pressão na alavanca, bicar um disco ou saltar uma divisória. 2. O condicionamento clássico parece ser mais apropriado para a aprendizagem que envolve um condicionamento emocional, como a ansiedade e o medo e onde intervém o sistema nervoso autónomo. Por outro lado, o condicionamento operante aplica-se mais às respostas voluntárias do esqueleto e dos músculos sob a influência do sistema nervoso central. 3. A associação principal é de natureza diferente nos dois tipos de condicionamento. No clássico, a associação é feita entre dois estímulos (EN-EI) e a resposta não tem um papel relevante. Se num ensaio o cão não salivar, mesmo assim obtém alimento. No condicionamento operante, a associação é feita entre uma resposta e o reforço (RC-EI). A resposta tem um papel relevante, porque o rato só recebe alimento (EI) se pressionar a barra (EC). 4. A relação entre RC e reforço é diferente nos condicionamentos clássico e operante. No clássico, a RC depende directamente do EI (reforço) escolhido pelo experimentador. O alimento (EI) determina o tipo de resposta que será dada (salivação). No condicionamento operante, a escolha da RC é independente do reforço. Se por exemplo o reforço for alimento, a RC pode ser pressionar uma barra, bicar um disco ou apoiar-se num pé. A primeira diferença ou critério, baseado nas respostas produzidas por cada tipo de condicionamento, foi durante algum tempo contestado ao provar-se a implicação do condicionamento operante no funcionamento do sistema nervoso autónomo. Numa revisão científica, Miller (1978) revelou que é possível modificar, por meio do condicionamento operante, as respostas viscerais de animais de forma a aumentar ou diminuir a pressão sanguínea, ritmo cardíaco, a salivação e contracções intestinais. No entanto, uma revisão posterior da literatura no domínio da aprendizagem animal indicou que o controlo operante 86
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de respostas involuntárias raramente era bem sucedido e o efeito era incerto (e.g., Dworkin e Miller, 1986). A importância deste critério em termos da distinção tradicional mantêm-se portanto em aberto. Nos seres humanos, o controlo operante de respostas involuntárias teve maior sucesso, originando mesmo uma nova indústria, chamada biofeedback (veja-se a Caixa 2.4)
Caixa 2.4 Biofeedback Numa situação de biofeedback as pessoas são ligadas a aparelhos que indicam de forma precisa o ritmo cardíaco, o estado da pressão sanguínea, a conductibilidade da pele ou a frequência de ondas cerebrais alfa. Habitualmente uma pessoa não tem um controlo directo sobre estas respostas “involuntárias”, mas é capaz de fazer aumentar ou diminuir a frequência deste tipo de respostas, e com o treino estabilizá-las num certo valor recorrendo à formação de imagens ou a contracções e relaxamentos musculares. Por exemplo, o ritmo cardíaco aumenta se uma pessoa se deixa envolver em fantasias sexuais ou se concentra em situações de ameaça e de perigo eminente, ou diminui se fizer exercícios de relaxamento ou imagina situações de conforto e bem-estar. O povo até tem uma expressão adequado para este efeito, quando diz “Só de imaginar a situação, fico com os cabelos em pé”. O biofeedback é uma técnica ou procedimento psicofisiológico que permite às pessoas aprender a controlar certas respostas fisiológicas observando o seu estado por meio de aparelhos próprios.
As diferenças entre os dois tipos de condicionamento têm sido frequentemente questionadas e os investigadores sentem dificuldades acrescidas em manter esta distinção baseada nos critérios tradicionalmente aceites. As fronteiras são fluidas. Há respostas, como a resposta palpebral, que podem ser sujeitas aos dois tipos de condicionamento e tarefas de aprendizagem, como o condicionamento de evitação que envolvem processos quer ao nível do condicionamento clássico quer ao nível do condicionamento operante. É controverso afirmar portanto se as diferenças tradicionalmente apontadas são essenciais ou acessórias. Houston (1991) interroga-se mesmo se estes tipos de aprendizagem não serão o resultado de um processo comum ainda por descobrir. © Universidade Aberta
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Quanto às similaridades entre condicionamento clássico e condicionamento operante, os dois tipos de aprendizagem apresentam características análogas ao nível dos processos de aquisição, extinção, recuperação espontânea, generalização e discriminação, entre outros. Na aquisição, o desempenho aumenta progressivamente com o número de ensaios ou a prática e é expresso num formato de curva de desempenho aceleradamente negativa. Isto significa que no início o aumento é maior e mais rápido nos valores da RC, passando depois a diminuir até atingir um patamar onde já não se observa quaisquer ganhos suplementares. A extinção da RC é em geral similar, nomeadamente num procedimento de aquisição de reforço contínuo. Assim o número de respostas diminui bastante no início passando a ser mais lento posteriormente. O processo de recuperação espontânea observado no condicionamento clássico também se verifica no condicionamento operante. Assim se a resposta de bicar o disco para obter alimento for extinta, verifica-se no regresso do pombo à gaiola após um período de descanso a recuperação espontânea desta resposta. No condicionamento clássico o cão generaliza a RC obtida com um som de certa frequência para novos sons com frequências próximas do original constituindo um gradiente de generalização. Também no condicionamento operante, um pombo treinado a bicar um disco de determinada cor para obter alimento generaliza as bicadas para discos com cores similares. No que se refere à discriminação, no condicionamento clássico o cão é capaz de responder diferencialmente a dois sons similares ou duas figuras geométricas. Do mesmo modo no condicionamento operante um pombo é capaz de aprender a discriminar entre dois discos coloridos independentemente da posição, se o disco colorido A for reforçado com alimento e o disco colorido B não for seguido de alimento. Na comparação entre o condicionamento clássico e operante podem-se ressaltar mais as similaridades ou mais as diferenças. As diferenças parecem ser mais relevantes ao nível dos procedimentos de investigação adoptados por cada tipo, enquanto as semelhanças verificam-se mais em termos substanciais em relação aos processos comuns.
2.3.8 Condicionamento e Cognição Segundo Skinner, o condicionamento é redutível ao robustecimento de uma associação pela acção automática de um processo chamado reforço (Skinner, 1981). O reforço e a punição aumentam ou enfraquecem o comportamento de 88
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forma mecânica e automática. O organismo é considerado como uma máquina cujo funcionamento organizado pode ser previsto apenas em função das forças externas a que está sujeito. As teorias beavioristas da aprendizagem ressaltam apenas a associação entre estímulos ambientais e respostas, e uma vez a associação formada, os estímulos desencadeiam as respostas apropriadas de forma mecânica e automática. Assim o papel do organismo é reduzido ou nulo. Skinner insistiu repetidamente que o comportamento é influenciado por factores externos e não por sentimentos ou pensamentos internos ao sujeito. Os factores mentais e cognitivos são irrelevantes para explicar a associação entre a resposta dada e as consequências observadas. Entre a resposta e a sua consequência há como que uma “caixa negra” que não é possível iluminar cientificamente. As teorias cognitivas da aprendizagem defendem o papel activo do sujeito na formação de expectativas entre acontecimentos. Pessoas e animais formam preferências, expectativas e relações causais entre acontecimentos associados em maior ou menor grau. Um organismo aprende por exemplo que um acontecimento X produz o resultado A e que o acontecimento Y produz o resultado B, e que face a estes acontecimentos prefere o resultado A ao B. O organismo escolhe a resposta que prefere e não a resposta que é forçado a escolher face à situação. Assim em vez de um mecanismo automático, os animais têm expectativas, aprendem relações causais, ou pelo menos previsíveis entre acontecimentos e o que leva a quê. A interpretação cognitiva do condicionamento é recente em relação aos estudos de aprendizagem animal, mas tem em Tolman (1856-1959) um percursor ilustre nas décadas de 1930 e 1940. Tolman foi um dos primeiros investigadores a provar que a aprendizagem no condicionamento operante pode ocorrer na ausência de reforço. Tolman e Honzik (1930) manipularam o momento de fornecimento de reforço na aprendizagem de um labirinto usando três grupos de ratos. Um grupo nunca foi recompensado com alimento ao longo da experiência (sem reforço); Outro grupo foi sempre reforçado (reforço) e o terceiro grupo apenas foi reforçado a partir do 11º dia (reforço-11º dia). O resultado mais interessante verificou-se no Grupo “Reforço-11º dia”. Nos primeiros 10 dias, este Grupo revelou um desempenho semelhante ao Grupo “Sem reforço”, mas após a introdução do reforço produziu um desempenho tão eficiente como o Grupo que foi sempre reforçado desde o início. Veja-se o resultado na Figura 2.6.
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Figura 2.6 - Número médio de erros num labirinto (entrada em alas sem saída) dados por três Grupos de ratos, onde um Grupo foi sempre reforçado (c/ alim), o outro Grupo nunca foi reforçado (s/ alim) e o terceiro Grupo foi reforçado a partir do 11º dia (11º dia), segundo Tolman e Honzik (1930).
O reforço só foi importante na medida em que tornou manifesta e observável a aprendizagem latente. A aprendizagem chama-se latente porque não se manifestou nos primeiros dez dias no comportamento actual, isto é, no desempenho. Com o aparecimento do reforço no 11º dia, a aprendizagem previamente implícita do Grupo 3 revelou-se, permitindo a este Grupo conseguir alcançar rapidamente o desempenho do Grupo que foi sempre recompensado. Esta experiência mostrou que os animais adquirem informação em situações em que nenhum reforço é administrado, provando que a aprendizagem está para além da simples associação entre uma resposta e um estímulo reforçador. Além desta mera associação está a cognição. Tolman propôs ainda que um animal ao explorar um labirinto aprende, além de respostas a estímulos, expectativas e configurações de sinais. Colocado num labirinto, o rato tem a expectativa de encontrar uma saída e obter alimento. O rato adquire também uma espécie de representação mental do labirinto, ou mapa cognitivo, que lhe permite encontrar um caminho alternativo quando um caminho previamente usado e preferido estiver bloqueado. Os estudos de Tolman demonstraram que um factor importante no condicionamento é aquilo que o animal conhece ou sabe. Assim em vez de se considerar o condicionamento como uma mera associação mecânica entre dois estímulos, ou entre uma resposta e um estímulo, seria preferível considerar factores 90
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cognitivos, como expectativas e conhecimento memorizado. No condicionamento clássico o animal cria a expectativa de que após o sinal (EC) segue-se o alimento e no condicionamento operante o animal tem a expectativa de que a pressão da barra será seguida por alimento. Tolman estava correcto nas conjecturas formuladas sobre o papel da expectativa e a formação de mapas cognitivos no condicionamento animal. Numa série de estudos realizados a partir da década de 1960, Rescorla (1967, 1988) provou que o factor crucial no condicionamento clássico não era o número de emparelhamentos entre o EC-EI, mas antes o grau de probabilidade com que o EC previa a chegada do EI. Numa das experiências realizadas, Rescorla (1967) submeteu dois grupos de cães ao mesmo número de choques eléctricos, que eram precedidos em exclusivo ou não por um sinal sonoro. Cada um dos Grupos A e B recebeu o mesmo número de sinais sonoros (EC) e também o mesmo número de pares EC-EI nos mesmos ensaios da série de 1 a 16. No entanto os cães do Grupo 2 sofreram alguns choques adicionais na série de 16 ensaios. Veja-se a série na Figura 2.7. A principal diferença entre os dois Grupos foi a seguinte. Enquanto no Grupo A o sinal precedia o aparecimento de todos os choques, no Grupo B o choque ocorria tanto na presença como na ausência de sinal. Assim no Grupo A o sinal tinha valor preditivo, embora parcial, em relação ao aparecimento do choque, enquanto no Grupo B o valor preditivo do sinal era nulo.
Figura 2.7 - Representação da sequência dos estímulos condicionados (EC som) e incondicionados (EI - choque) apresentados aos Grupos A e B na experiência de Rescorla (1967).
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Em termos do condicionamento de evitação do medo, qual é o procedimento mais eficaz, o do Grupo A ou o do Grupo B? Se se considerar que o condicionamento depende do processo de contiguidade, então o grau de condicionamento seria equivalente, porque o número de pares EC-EI foi idêntico nos dois Grupos. Todavia se se considerar o condicionamento em termos de previsão ou contingência, isto é, a probabilidade de que um acontecimento se segue a outro, então o grau de previsão é maior no Grupo A do que no Grupo B. De facto a experiência demonstrou que o factor crucial era o grau de previsão e não a contiguidade. Assim os cães do Grupo A aprenderam rapidamente a evitar o choque, enquanto os do Grupo B falharam o desenvolvimento de uma RC de evitação ao aparecimento do sinal sonoro. Estudos posteriores realizados por Rescorla e colaboradores comprovaram que a relação preditiva entre ECEI é um factor mais importante do que a contiguidade temporal ou o número de emparelhamentos entre EI-EC. O condicionamento clássico, segundo Rescorla (1988), aplica-se tanto a animais como pessoas e envolve a escolha do EC que melhor prevê o aparecimento do EI. Esta conclusão baseia-se nas provas seguintes: (1) o EC deve preceder o EI para o condicionamento ser efectivo; (2) o EC deve ser um preditor seguro do aparecimento do EI; (3) o condicionamento é difícil de ocorrer se já existir no meio um bom preditor. Este último aspecto é conhecido pelo efeito bloqueador e significa que, se um EC (som) for capaz de prever com eficácia um EI, e mais tarde for acrescentado um outro EC’ (por ex., uma luz), a associação entre o novo EC’ e o EI não será aprendida. A força associativa da luz com o EI foi bloqueada pela prévia associação entre o som e o EI. Os estudos de Rescorla revelaram que o condicionamento apenas tem lugar se o EC for informativo em termos de previsão. Assim, um estímulo neutro como a luz, som ou outro estímulo do género só se tornará num EC eficaz se conseguir prever a ocorrência próxima de um estímulo (EI), como alimento, água, choque, que seja importante em termos de sobrevivência para o organismo se aproximar ou evitar. Além dos conceitos de aprendizagem latente, mapas cognitivos e previsão propostos para explicar o condicionamento em termos cognitivos, foram ainda referidos os conceitos cognitivos de preparação, representação interna e relação causal. Seligman (1970) propôs o conceito de preparação para referir que os animais estão biologicamente preparados a aprender acções relacionadas de perto com a sobrevivência da sua espécie (por ex., aversão a alimentos) e que estas reacções preparatórias seriam aprendidos depressa e com pouco treino. Bolles (1972) acrescenta que os animais ao entrarem no procedimento laboratorial 92
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trazem com eles as expectativas formadas a partir das respostas específicas da espécie dadas no passado e que estas expectativas guiam as respostas no laboratório. Assim um animal recorre ao seu próprio comportamento passado como fonte de informação sobre o provável relacionamento de uma resposta com um acontecimento. A psicologia evolucionista chamou de facto a atenção para as predisposições biológicas próprias de cada espécie animal, ressaltando que os animais aprendem melhor as associações entre estímulos e respostas que são semelhantes aos comportamentos dados no meio natural. Mackintosh (1983) afirmou por sua vez que seria mais adequado pensar o condicionamento em termos de detecção de relações entre acontecimentos, por meio dos quais o animal tipicamente descobre o sinal ou a pista que assinala ou causa os acontecimentos que são importantes na vida selvagem, como alimento, água, perigo ou segurança. Em vez de se tratar a salivação, a pressão na barra ou a fuga e evitação como respostas aprendidas, seria preferível considerá-las antes como um índice importante detectado pelo organismo a respeito de certas relações no seu meio ambiente. O condicionamento envolveria a formação de uma representação interna de relações causais (ou pelo menos de relações previsíveis) entre acontecimentos, em que por exemplo o acontecimento A prevê ou assinala a chegada do acontecimento B. A ideia de que os animais descobrem relações causais entre acontecimentos é repudiada pelo beaviorismo, controversa mas não é implausível. O rato que associa a náusea ao sabor da bebida, ou o choque sofrido na pata ao som e à luz, pode estar a estabelecer eventualmente uma relação causal, já que aquilo que se come pode causar mal-estar e as situações de ameaça e perigo têm normalmente origem em estímulos externos. Em termos de psicologia evolucionista e de sobrevivência da espécie, os organismos têm uma vantagem acrescida se forem capazes de distinguir entre a simples proximidade temporal entre estímulos por um lado, e a relação temporal de causa e efeito por outro, que é uma relação mais útil e vital.
2.4
Aprendizagem por observação
O condicionamento clássico e operante são tipos importantes de aprendizagem, mas não descrevem e explicam adequadamente o aparecimento de comportamentos novos, isto é, comportamentos ainda não revelados pelos sujeitos. Muito do que as pessoas aprendem de novo ocorre simplesmente através da observação de outras pessoas e não através de reforços ou punições em relação àquilo que fazem. Assim as crianças aprendem a estar à mesa
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imitando o comportamento dos pais e os pais aprendem a lidar mais adequadamente com as bizarrias dos filhos imitando outros pais ou os actores de um filme educativo que para eles actuam como modelos. A aprendizagem seria um processo incerto e arriscado se as pessoas contassem apenas com o efeito dos seus actos para as guiar no comportamento do dia a dia, como sugere o condicionamento operante. A aprendizagem observacional, também chamada aprendizagem social, é um tipo de aprendizagem distinto do condicionamento, e parte da observação do comportamento que as outras pessoas manifestam individualmente ou nas interacções sociais. A aprendizagem seria mais afectada por aquilo que observámos, percebemos e sabemos do que pelo condicionamento ou reforço recebido. O que uma pessoa é capaz de fazer depende mais dos conhecimentos e competências próprias do que de reforços e incentivos. A aprendizagem observacional é uma teoria para cuja formulação e desenvolvimento muito contribuíram os estudos de Rotter (1954) e Bandura (1977, 1986). Desde a década de 1960, Bandura tem sido o principal responsável pela investigação na área da teoria da aprendizagem observacional, defendendo que uma parte importante da aprendizagem humana ocorre através da observação, desde a aquisição da linguagem na criança até muitas das respostas dadas no dia a dia. A aprendizagem observacional funciona a partir da observação de modelos e entre os seus principais postulados contam-se os seguintes: 1. Modelo seria a pessoa cujo comportamento é observado, e a modelagem representaria o processo da aprendizagem observacional. 2. A aprendizagem ocorreria espontaneamente sem qualquer esforço deliberado do observador ou intenção de ensinar da parte do modelo. 3. Para que a aprendizagem observacional tenha lugar é suficiente a exposição ao modelo. Uma pessoa olha e aprende, e aprende observando. A aprendizagem acontece sem o reforço, mas o reforço fornece o incentivo para a expressão do comportamento aprendido. O observador não revela, no entanto, a aprendizagem adquirida se desconhecer as consequências do comportamento a imitar. Na sequência de Tolman, o reforço, assim como os incentivos e consequências das respostas, apenas são importantes se facilitarem a passagem do saber ao fazer, isto é, da aprendizagem para o desempenho, ajudando a seleccionar uma resposta de entre o repertório de respostas possíveis. O reforço passa a ser uma variável de desempenho em vez de uma variável de aprendizagem. Segundo Bandura, a teoria da aprendizagem social explicaria o comportamento humano em termos da interacção recíproca dos factores cognitivos, 94
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comportamentais e ambientais. Para que a aprendizagem por observação ocorra, seria preciso o funcionamento dos quatro processos seguintes: Atenção: A simples exposição ao modelo não é suficiente, se não se prestar atenção aos elementos distintivos, afectivos e funcionais representados pelo modelo. São ainda elementos a ter em conta da parte do observador a sua sensibilidade sensorial, o grau de excitação corporal, a tendência ou enviesamento perceptivo e os reforços passados. Retenção: O comportamento observado e desejado deve ser adequadamente retido e memorizado, tendo em conta as operações de codificação, repetição verbal e motora e organização cognitiva. Reprodução motora: O comportamento a imitar deve ser preciso e de fácil repetição sem limitações de maior ao nível das capacidades físicas. Motivação: Os novos comportamentos adquiridos voltarão a ser reproduzidos mais facilmente se estiverem disponíveis os incentivos apropriados, quer sejam de natureza interna ou externa. Satisfeitas estas quatro condições, e estando o observador na presença do modelo que emite o comportamento desejado, a aprendizagem ocorre por observação, mesmo que de momento não tenha oportunidade de imitar e executar as respostas.
2.4.1 Observação e Imitação Na sua forma mais simples, as primeiras experiências de Bandura sobre aprendizagem observacional, foram realizadas com crianças de 3 a 5 anos divididas num grupo experimental e num grupo de controlo (Bandura, Ross e Ross, 1961). As crianças do grupo experimental observaram durante 10 minutos um adulto a agredir violentamente um boneco de borracha num canto da sala de brinquedos, pronunciando ao mesmo tempo expressões agressivas tais como “dou-te um murro no nariz”, “atiro-te ao chão” ou “dou-te um pontapé”. As crianças do grupo de controlo observaram o adulto a brincar com o boneco de forma não-violenta. Cada criança foi depois levada sozinha para o quarto de brinquedos onde estava o boneco de borracha previamente agredido e os seus comportamentos foram registados. Os resultados indicaram que as crianças do grupo experimental cometeram um número significativamente maior de actos agressivos do que as crianças do grupo de controlo. Estas e outras experiências efectuadas
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por Bandura e colaboradores na década de 1960 provaram que as crianças imitam espontaneamente o comportamento de um modelo, na ausência de qualquer reforço manifesto. Estudos posteriores procuraram analisar quais os factores que determinavam o comportamento imitativo das crianças, tendo-se verificado que o factor mais importante era a observação do modelo a ser reforçado ou punido pelo comportamento expresso. Além deste factor, foram ainda identificados a similaridade existente entre o modelo e o observador, o valor funcional do comportamento a imitar e o grau de simpatia que o modelo inspirava. No conjunto estes factores sugerem que uma pessoa tende a imitar os modelos que considera bem sucedidos, por quem tem respeito e admiração e que aparentam ser semelhantes a nós e por outro recusa imitar aqueles modelos inconsistentes que dizem uma coisa e fazem outra. Os estudos sistemáticos de aprendizagem por observação são difíceis de realizar, quer por razões de ordem ética, quer devido às múltiplas influências a que o comportamento humano está sujeito. Embora os estudos laboratoriais apresentem provas claras sobre o efeito da observação do modelo no comportamento humano, é possível ainda referir casos do dia a dia de inegável dramatismo, nomeadamente ao nível da influência da televisão e dos meios de comunicação social. A representação que a televisão faz do comportamento humano fornece às pessoas um conjunto de modelos que afectam em maior ou menor grau os espectadores, nomeadamente os mais jovens que têm mais dificuldades em distinguir a violência real da violência simbólica. A nível laboratorial, os estudos realizados indicam claramente que a visão de filmes ou vídeos têm um forte impacto no comportamento das crianças. Bandura (1973) descreveu uma experiência em que grupos de crianças observaram o mesmo tipo de comportamentos agressivos de um adulto em relação a um boneco, em condições experimentais em que as cenas de agressão eram vistas numa situação com o modelo ao vivo e noutras situações eram vistas sob a forma de filme ou de desenhos animados. Houve ainda dois grupos de controlo, um que via o modelo a agir de forma não agressiva e o outro grupo não observava modelo algum. Os resultados indicaram que os grupos experimentais que observaram as cenas agressivas produziram mais comportamentos agressivos (cerca de 30 a 40% em média) do que os dois grupos de controlo. Os resultados revelaram também que o número de respostas agressivas imitadas foi maior no grupo que observou o modelo ao vivo em comparação com o modelo filmado ou representado sob a forma de desenho animado. Um resultado curioso observado neste estudo foi o valor de respostas agressivas na ordem dos 50% dado pelo grupo de controlo que não tinha presenciado 96
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qualquer violência. Embora este resultado fique bastante aquém do valor médio de cerca de 90% dos grupos que observaram as cenas violentas, não deixa no entanto de ser um valor considerável e sugere a hipótese de que a violência não resulta apenas de imitação, mas deve ter em conta também a personalidade de cada criança. Se os meios de comunicação social influenciam as crianças, não deixam de influenciar também os adultos, quer em termos positivos quer negativos. Por exemplo, o assalto e desvio de aviões era praticamente desconhecido nos EUA até ao início da década de 1960. Quando a imprensa e televisão começaram a noticiar os primeiros casos de desvio bem sucedidos, verificou-se uma onda de assaltos e desvios de aviões que atingiu no final da década de 1960 uma média de sete aviões por mês! Este número diminuiu drasticamente logo que as autoridades passaram a usar medidas de segurança reforçadas nos aeroportos. Uma onda de imitação semelhante aconteceu com raptos e sequestros de pessoas. Depois do rapto bem sucedido de Patricia Hearst em 1974 nos EUA verificou-se no espaço de um mês um aumento súbito de raptos de pessoas em diversos países e continentes. Esta onda voltou a observar-se após o rapto e assassinato do ex-primeiro ministro italiano Aldo Moro em 1978. Os vários casos recentes de mortícínios em série em escolas americanas podem ser também o resultado do comportamento imitativo. Indivíduos que praticaram crimes violentos reconheceram mais tarde que a ideia do crime resultou da informação obtida nos meios de comunicação social sobre crimes anteriormente praticados por outros. Wharton e Mandell (1985) descreveram o caso de duas crianças que deram entrada no hospital depois de terem sido vítimas de sufocação por parte das mães. As mães usaram uma almofada para fazer calar os gritos incessantes das crianças, imitando de certo modo a cena de um filme que tinham visto na televisão nos últimos dois dias. Há porém efeitos positivos na aprendizagem observacional e imitação. A aprendizagem observacional permite não só reduzir medos e outras reacções emocionais fortes, mas também transmite e ensina comportamentos positivos, ou comportamentos pro-sociais. Basicamente é este um dos papeis mais importantes dos pais, dos educadores e da sociedade em geral em relação à educação dos mais novos. A observação de figuras célebres nacionais e internacionais funciona como um modelo bastante poderoso quer em termos de compra de produtos de consumo, quer em termos de imitação de actos e comportamentos. Os anúncios comerciais veiculam a informação implícita de que comprando determinado produto torna a pessoa tão popular, admirada e atractiva como a do modelo do anúncio. Na área da informação, as notícias e os programas transmitidos sobre personalidades de valor moral elevado como Gandi, Luther King e Nelson Mandela, ou sobre associações religiosas e civis como a Amnistia Internacional, © Universidade Aberta
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contribuíram bastante para fazer da não-violência uma força poderosa de mudança social. A observação influencia as emoções que uma pessoa experiencia. Há pessoas, que apesar de nunca terem visto cobras directamente na vida, têm pavor às cobras depois de observarem o medo expresso por outras pessoas em relação a cobras. Há pessoas ainda que se recusam a andar de avião, apesar de nunca terem tido qualquer experiência de aviação, simplesmente por terem observado ou lido experiências negativas ocorridas com outros. É um medo por substituição ou delegação de outrem, ou em termos técnicos, um condicionamento vicariante. Uma pessoa torna-se condicionada de modo vicariante observando simplesmente uma sequência repetida entre um estímulo e uma resposta emocional expressa por outra pessoa, mesmo sem receber qualquer estimulação directa de natureza positiva ou aversiva. A aprendizagem por observação foi usada no tratamento de desordens psicológicas, tendo sido bem sucedida em casos de redução de ansiedade e medo. Crianças com medo de cães passaram a sentir-se melhor em comparação com um grupo de controlo depois de verem uma criança da mesma idade a brincar alegremente com um cão ao longo de oito curtas sessões (Bandura, Grusec e Menlove, 1967). Noutro estudo, crianças e adolescentes sentiram menos ansiedade face a uma operação cirúrgica após terem visto um filme em que uma criança representava um papel sereno e confiante ao longo de todo o processo cirúrgico. Em síntese, a teoria da aprendizagem por observação ou aprendizagem social é uma importante teoria alternativa ao condicionamento para explicar o funcionamento da aprendizagem. No seu início na década de 1950 e 1960 esta teoria pretendeu chamar a atenção para variáveis de natureza mais cognitiva no âmbito do sistema beaviorista prevalecente na época, mas com o tempo tornou-se uma teoria cada vez mais cognitiva ao incluir na sua estrutura o papel dos processos cognitivos de atenção, percepção, memória, pensamento, além da acção e motivação (Bandura, 1986).
2.5
Aprendizagem verbal
Uma parte importante da aprendizagem do ser humano consiste na aquisição de itens verbais sob a forma escrita ou falada, estando esta aquisição relacionada com a grande maioria das tarefas realizadas no dia a dia, já que a escrita e a fala são componentes importante destas tarefas. A aprendizagem verbal tem um passado que remonta aos primórdios da psicologia científica, nomeadamente aos trabalhos pioneiros realizados por Ebbinghaus (1885) e publicados no livro Sobre Memória. Neste livro Ebbinghaus procurou estudar 98
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o modo como se formavam as associações entre estímulos verbais e o tempo durante o qual permaneciam na memória das pessoas. Na continuação dos estudos de Ebbinghaus, outros investigadores procuraram desenvolver o paradigma de aprendizagem verbal usando como materiais de estudo estímulos verbais que eram objecto de uma resposta verbal. A aprendizagem verbal referese à capacidade humana para adquirir e recordar itens verbais. O âmbito da aprendizagem verbal engloba a aquisição de itens verbais seguidos de uma prova de memória, previamente conhecida ou não. Os itens verbais podem variar conforme o tipo (por ex., sílabas com ou sem-significado, palavras, frases, texto, figuras); o significado (por ex., fácil ou difícil; concreto ou abstracto); o ritmo e frequência de apresentação (por ex., cada 1, 2, ou 5 segundos; uma vez ou várias vezes); a modalidade (visual ou auditiva). A prova de memória pode ser por evocação, reconhecimento, reaprendizagem ou reconstrução. O intervalo de retenção, que se situa entre o final da apresen-tação do material verbal e o início da prova de memória, pode ser nulo (imediato) ou diferido no tempo por vários segundos, minutos, horas, dias ou períodos mais longos.
2.5.1 Materiais e parâmetros de avaliação Os materiais usados em estudos sobre aprendizagem verbal são de dois tipos: (1) Materiais não-significativos constituídos por sílabas sem significado, formadas por uma consoante, uma vogal e uma consoante como DEN, COF e XUG e por trigramas de consoantes, formados por siglas de três consoantes como DTN, LXB e CZF; (2) Materiais significativos formados por palavras de uma ou mais sílabas como Par, Trenó, Frenético e Dissolubilidade; por frases, provérbios e texto; e ainda por materiais pictóricos, como desenhos e gravuras. Os parâmetros mais usados na avaliação dos itens verbais significativos são: • O significado, uma medida obtida em termos do número médio de associações de uma palavra que uma pessoa é capaz de produzir durante 30 segundos. • A frequência, uma medida objectiva, obtida a partir do número de vezes num milhão que uma palavra aparece em várias publicações. • O índice de concreteza-abstracção, definido a partir da maior ou menor referência directa à experiência sensorial. Assim Mesa e Banco seriam itens verbais mais concretos e Facto e Virtude mais abstractos. • O índice de formação-de-imagens representaria a maior ou menor facilidade das palavras sugerirem imagens mentais, nuns casos mais
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facilmente como Laranja e Casa e noutros mais dificilmente como Zelo e Razão. • A idade-de-aquisição de palavras, um índice estabelecido a partir da estimativa feita sobre a idade em que uma palavra terá sido pela primeira vez adquirida. Supõe-se que palavras como Casa e Bola tenham sido adquiridos nos primeiros três anos de vida e que outras palavras como Cone e Benzeno tenham sido adquiridas vários anos mais tarde. Uma das conclusões mais sólidas dos estudos de aprendizagem verbal estabelece que listas formadas por itens verbais bastante significativos são mais fáceis de aprender e de evocar do que listas compostas por itens menos significativos. Este resultado obtem-se quer o grau de significado seja determinado pelo número de associações de uma palavra, pelo valor de frequência da palavra num texto ou na linguagem falada, ou pela maior ou menor facilidade de produzir imagens rapidamente. Será equivalente ou diferenciada a contribuição destes três factores para uma aprendizagem verbal bem sucedida? Para certos investigadores, nomeadamente Paivio (1971), o valor de formação-de-imagens seria o factor principal.
2.5.2 Tarefas de aprendizagem verbal No estudo da aprendizagem verbal, há certas tarefas que foram objecto de um grande número de estudos experimentais e que se supõe estar relacionadas com a aprendizagem de todos os dias. Estas tarefas são a aprendizagem seriada, a aprendizagem de pares associados e a aprendizagem por evocação livre. Na aprendizagem seriada apresenta-se uma sequência de itens verbais, um de cada vez, e a tarefa dos sujeitos é evocar correctamente os itens de acordo com a ordem apresentada. As situações quotidianas e escolares representativas das tarefas de aprendizagem serial são a aprendizagem de um número de telefone ou de um código, o alfabeto e os números, meses do ano, dias da semana e estações, nome completo de uma pessoa, entre outros. Ebbinghaus (1885) foi o investigador que primeiro estudou a aprendizagem seriada de forma sistemática, tendo observado que a aprendizagem de uma série até sete itens exigia em média uma única apresentação para ser evocada correctamente e por ordem, mas se a série tivesse uma extensão superior a sete itens exigia normalmente duas ou mais apresentações. Esta descontinuidade em torno dos sete itens foi objecto de um grande número de estudos ao longo do séc. XX (e.g., Miller, 1956), tendo-se verificado que a maior parte dos adultos só conseguem evocar uma série correctamente, após um único ensaio de apresentação, se o número de itens estiver compreendido entre 4 e 7. 100
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Na aprendizagem de pares associados apresenta-se uma sequência de pares de itens que o sujeito deverá relacionar e associar entre si. O primeiro membro do par é designado por estímulo e o segundo membro é designado por resposta. Numa segunda apresentação dos itens, são apresentados apenas os itensestímulos e a tarefa do sujeito consiste em evocar a resposta emparelhada. As situações quotidianas representativas deste tipo de tarefas são a aprendizagem de vocabulário de uma língua estrangeira, a associação entre países e capitais, nomes e símbolos; a associação entre caras e nomes de pessoas, nomes e telefones, entre outros. No âmbito desta tarefa foram investigados factores que fortaleciam a associação entre pares de palavras (por ex., água-vinho) como a repetição e o número de ensaios, além de factores que favoreciam a desaprendizagem dos pares a fim de permitir o estabelecimento de novas associações (por ex., água-azeite). Nesta área foram ainda estudados os importantes fenómenos de interferência verbal e o âmbito e limitações da transferência em aprendizagem. Na aprendizagem por evocação livre apresenta-se uma lista de itens verbais, um de cada vez, e no final da apresentação solicita-se aos sujeitos para recordarem os itens numa ordem qualquer. Situações representativas deste tipo de tarefas podem ser a nomeação de exemplares das mais diversas categorias desde frutos, animais, países ou cidades, a elaboração de listas de compras ou tarefas a realizar. Numa tarefa de aprendizagem por evocação livre, a pessoa é livre de evocar (recordar) os itens na ordem que melhor lhe convier, tornando-se possível analisar os agrupamentos evocativos de itens formados pelo sujeito ao longo de vários ensaios. Esta tarefa de aprendizagem por evocação livre permite analisar de forma quantitativa as actividades organizacionais da pessoa, expressa em termos de número de agrupamentos e do número de itens em cada agrupamento evocativo (e.g., Bousfield, 1953; Tulving, 1962). Considere-se a experiência seguinte: Apresenta-se uma lista de 20 palavras, provenientes de diferentes categorias como animais, flores, metais, profissões e edifícios, em que os exemplares de cada categoria são distribuídos ao acaso ao longo da lista. No final da apresentação da lista solicita-se uma evocação livre do maior número de palavras da lista. A análise dos resultados revela que a evocação das palavras não é feita tendo em conta a ordem em que foram apresentadas, mas antes de acordo com agrupamentos baseados nas categorias seleccionadas. Neste caso o participante na experiência usa de forma activa processos organizacionais mais ou menos complexos de forma a simplificar o mais possível a tarefa de evocação ou recordação. As tarefas de aprendizagem seriada e de pares associados foram objecto de estudos sistemáticos durante a primeira metade do séc. XX, período em que a
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explicação associacionista foi predominante na aprendizagem verbal. Em contraste, a tarefa de aprendizagem por evocação livre é mais representativa dos estudos realizados na segunda metade do século XX no âmbito da psicologia cognitiva, que fez ressaltar o papel activo da pessoa no acto de aprendizagem e recordação e de que os agrupamentos são um indicativo do modo como a mente humana organiza e estrutura os elementos do mundo que nos rodeia. Apesar de cada tarefa de aprendizagem se prestar melhor a um tipo de explicação do que outro, tal não significa que tanto os processos associativos como os processos organizacionais não sejam importantes e necessários para explicar conjuntamente o desempenho nas tarefas de aprendizagem deste tipo.
2.5.3 Tipos de aprendizagem verbal Perante uma sequência de itens verbais, as pessoas adoptam procedimentos diferentes de aprendizagem ou são orientadas na direcção de um tipo de procedimento em detrimento de outro. A opção que é feita tem consequências diferentes em termos de desempenho nas tarefas a realizar. No âmbito da aprendizagem verbal foram estudadas as vantagens e inconvenientes de alguns procedimentos, nomeadamente a aprendizagem intencional versus aprendizagem acidental, a aprendizagem global versus parcial e a aprendizagem compacta versus distribuída. Na aprendizagem intencional a aquisição de itens verbais é feita em função de uma prova de memória inicialmente prevista, enquanto que na aprendizagem acidental a aquisição é realizada na ausência de informações explícitas sobre a presença de uma prova de memória posterior. Ao contrário do que habitualmente se supõe, o desempenho na aprendizagem acidental é em determinadas condições tão bom ou até superior em relação ao obtido na aprendizagem intencional. Considere-se a experiência seguinte: Apresenta-se a um Grupo A uma lista de 45 adjectivos com instruções para evocar o maior número no final; A mesma lista é apresentada a um Grupo B com instruções para aplicar cada adjectivo à pessoa de cada um para efeitos de caracterização da personalidade, sendo este Grupo inesperadamente solicitado no final a evocar também o maior número de adjectivos. O desempenho de evocação do Grupo B é frequentemente igual ou superior ao do Grupo A (e.g., Symons e Johnson, 1997; Pinto, 1998b). A aprendizagem acidental é responsável por muitas das informações adquiridas no dia a dia, apesar desta aquisição não ser efectuada em termos de uma eventual recordação futura. Uma pessoa consegue recordar e descrever razoavelmente bem como passou o fim de semana, onde esteve, as pessoas com quem falou, 102
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onde estacionou o carro ou onde terá deixado o guarda-chuva. Uma parte importante da informação quotidiana permanece na memória para além do momento em que foi adquirida e representa uma papel importante de adaptação ao meio. Por sua vez, a aprendizagem intencional, cujo desempenho se julga superior, aplica-se normalmente a situações escolares, onde o grau de recordação envolvido exige maior rigor e precisão, o qual para ser atingido requer um tempo acrescido de estudo e prática. Quando um estudante está perante materiais verbais extensos e complexos, como um longo poema ou texto, os conteúdos de um livro ou um programa escolar, a abordagem mais indicada será efectuar uma aprendizagem global de toda a informação, repetindo-a uma, duas ou mais vezes até a aprendizagem estar completa, ou será antes preferível dividir o todo em partes e começar a aprender cada uma das partes de modo individual e sequencial? Em síntese, a aprendizagem de itens verbais deverá ser efectuada globalmente ou por partes? Os resultados experimentais não indicaram uma posição consensual. Há situações em que a aprendizagem global é mais eficiente, porque a leitura e o conhecimento do todo dá sentido às partes e por outro facilita a obtenção de um plano de aprendizagem mais adequado. A aprendizagem parcial, no entanto, requer menos tempo para se conseguir adquirir uma parte dos materiais verbais e uma vez conseguida uma parte, este resultado pode servir de reforço para se estudar e aprender o material restante. Em geral, as vantagens da aprendizagem parcial são maiores, quanto maior for a quantidade de material a memorizar e quanto mais diferenciadas forem as partes entre si. A aprendizagem de materiais verbais extensos e complexos deverá ser distribuída por várias sessões ou compactada numa única sessão? Desde os primórdios da psicologia científica, os investigadores são unânimes em afirmar que a aprendizagem distribuída é mais eficaz do que a aprendizagem maciça ou compacta. Ebbinghaus (1885) verificou que estudar uma lista de sílabassem-significado uma vez por dia durante seis dias consecutivos resultava num desempenho superior de aprendizagem do que estudar a mesma lista seis vezes no mesmo dia. Embora o tempo total de aprendizagem nas duas condições fosse igual, verificou-se que a condição de prática distribuída originava um desempenho superior em relação à condição de prática compacta ou maciça. A superioridade da aprendizagem distribuída tem sido verificada com diversos tipos de materiais desde sílabas-sem-significado, competências motoras como dactilografia (e.g., Baddeley e Longman, 1978), até materiais complexos como aulas de estatística (e.g., Smith e Rothkopf, 1984). Smith e Rothkopf (1984) efectuaram um estudo em que apresentaram vídeos de estatística a estudantes de acordo com duas condições: Numa condição os vídeos de estatística foram concentrados num dia; noutra condição foram distribuídos por quatro dias. Os resultados obtidos indicaram que o número médio de conceitos de estatística © Universidade Aberta
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correctamente evocados foi superior na condição de espaçamento (4 dias) em relação à condição compacta (1 dia). Em termos de aquisição, a aprendizagem distribuída é mais eficaz porque evita a fadiga e o aborrecimento, reduz o desenvolvimento da interferência proactiva e facilita a concentração que em geral não pode ser mantida por muito tempo numa situação de aprendizagem compacta. Em termos de recordação, a aprendizagem distribuída é efectuada numa maior diversidade de contextos orgânicos, emocionais, psicológicos, ambientais e temporais do que a aprendizagem compacta, que é normalmente realizada no mesmo contexto. Esta diversidade contextual permite que os itens verbais fiquem associados a uma rede associativa mais extensa e diversificada, servindo de pistas ou índices facilitadores na altura da recordação.
2.5.4 Aprendizagem e cognição Os estudos de aprendizagem verbal realizados desde Ebbinghaus (1885) até aos anos da década de 1950 enquadravam-se predominantemente no sistema associacionista, onde as tarefas de investigação mais usadas foram a aprendizagem seriada ou a aprendizagem de pares de itens. Neste tipo de estudos, as variáveis que mais interessavam aos investigadores eram a extensão das listas, a frequência, o grau de repetição, o intervalo de retenção e o modo como estes factores afectavam o desempenho de aprendizagem. Em geral eram factores externos ao sujeito e relacionados com a natureza, ritmo e tipo de apresentação do material. A aprendizagem verbal sofreu um forte impulso a partir da segunda metade do séc. XX com o surgimento da psicologia cognitiva, ao conceber o ser humano como um processador e um intérprete activo do seu meio ambiente. Esta perspectiva levou os investigadores a interessarem-se por novas variáveis no âmbito da aprendizagem verbal, nomeadamente a estrutura cognitiva do aprendiz humano, o conhecimento prévio da pessoa e o contexto em que a informação é apresentada e recordada. Neste período, a aprendizagem verbal foi objecto de um desenvolvimento tal que os investigadores passaram a agruparse progressivamente em áreas cada vez mais diferenciadas como a psicologia da aprendizagem, a psicologia da memória e a psicologia da linguagem. Numa perspectiva cognitiva em que a informação é processada ao longo das fases de aquisição, retenção e recuperação, pode-se afirmar que a aprendizagem e a memória estão intimamente relacionadas. A aprendizagem seria mais responsável pelos processos de aquisição e organização de conhecimento, enquanto que a memória seria mais responsável pelos processos de retenção e recuperação 104
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(ou recordação). No entanto, o conhecimento actualmente retido na memória influencia a aquisição e aprendizagem de novas informações, quer pelo modo como as identifica, interpreta e selecciona de entre as várias alternativas quer pelo modo como as organiza para retenção e recuperação futura. É portanto natural que o próximo capítulo seja dedicado à análise da memória humana.
2.6
Conceitos de aprendizagem
Aprendizagem, desempenho, comportamento, habituação, condicionamento, estímulo incondicionado, estímulo condicionado, reflexo incondicionado, resposta condicionada, estímulo neutro, aquisição, extinção, recuperação espontânea, generalização, discriminação, neurose experimental, contiguidade temporal, resposta emocional, dessensibilização sistemática; condicionamento operante, ensaios e erros, conexionismo, lei do exercício, lei do efeito, reforço positivo, reforço negativo, reforço contínuo, reforço intermitente, programas de reforço, comportamento supersticioso, punição directa, punição indirecta, reforço e criatividade, moldagem, condicionamento de fuga, condicionamento de evitação, desamparo aprendido, limitações biológicas, condicionamento aversivo, efeito Garcia, biofeedback, condicionamento e cognição, aprendizagem latente, efeito bloqueador; aprendizagem observacional, modelo, modelagem, condicionamento vicariante; aprendizagem verbal, sílabas sem significado, trigramas de consoantes, intervalo de retenção, significado, frequência, concreteza-abstracção, formação-de-imagens, idadede-aquisição, aprendizagem seriada, aprendizagem de pares associados, aprendizagem por evocação livre, agrupamentos evocativos, aprendizagem intencional, aprendizagem acidental, aprendizagem global, aprendizagem parcial, aprendizagem distribuída, aprendizagem compacta.
2.7
Perguntas de auto-avaliação 1. O que é a aprendizagem? Comente os principais aspectos referidos na definição. 2. Descreva o procedimento de Pavlov de obtenção de uma resposta condicionada de salivação no cão, referindo expressamente os elementos essenciais do procedimento experimental. 3. Descreva os processos de generalização e discriminação no âmbito do condicionamento de Pavlov.
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4. Como é que a psicologia cognitiva explica a aquisição da resposta condicionada? 5. Descreva as leis do exercício e do efeito de Thorndike e indique a principal diferença entre o condicionamento de Pavlov e o de Thorndike? 6. Refira as principais semelhanças e diferenças entre o condicionamento clássico e o condicionamento operante e comente alguns aspectos focados tendo em consideração o efeito Garcia. 7. Descreva o processo de moldagem usado no condicionamento operante e comente a sua importância e limitações. 8. Comente a eficácia do reforço e da punição em termos de controlo do comportamento. 9. Descreva e comente os mecanismos de funcionamento da aprendizagem observacional segundo Bandura? 10 Descreva resumidamente, dando exemplos, as tarefas de aprendizagem serial, pares associados e de evocação livre. 11. Explique porque é que a tarefa de aprendizagem por evocação livre se adequa bastante bem à perspectiva cognitiva de estudo da aprendizagem verbal?
2.8
Sugestões de leitura
Informação geral sobre aprendizagem pode ser lida em Schwartz e Reisberg (1991); Sobre condicionamento clássico, em Pavlov (1976) e Graham Davey (1987); Sobre condicionamento operante, em Mackintosh (1983); Sobre aprendizagem observacional, em Bandura (1986); Sobre a aprendizagem verbal, em Gordon (1989).
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3. Memória
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A memória é um dos processos mentais mais importantes que o ser humano tem para se adaptar ao meio, porque está directa ou indirectamente envolvida em qualquer aspecto do comportamento humano. Sem memória não seria possível ver, ouvir e pensar no sentido mais global do termo. Talvez fosse possível ver e ouvir sem memória, mas os conteúdos da visão ou audição careciam de significado, do mesmo modo que carece de significado a visão dos caracteres chineses ou a audição da fala chinesa por alguém completamente desconhecedor desta língua. Sem memória o comportamento inteligente não seria possível. Não seria possível recordar ou usar o conhecimento do passado para dar sentido às acções do presente. E sem este conhecimento do passado o mundo seria um lugar assustador e perigoso. Sem memória não seria possível haver comunicação nem linguagem para exprimir os nossos interesses, necessidades e estados emocionais, provocando uma solidão total. Mesmo que um amnésico com uma desordem profunda de memória seja capaz de usar a linguagem, a fala tem uma densidade informativa quase nula. Mais importante ainda, sem memória a pessoa não teria qualquer identidade e personalidade própria. Como apropriadamente referiu Alves dos Santos (1923) a personalidade humana “nem sequer se poderá conceber independentemente da memória, porque seria a memória que tornaria possível e inteligível a unidade e a identidade do eu”.
Âmbito e perspectivas A memória é um sistema suficientemente amplo para reter e armazenar estímulos, acontecimentos, experiências e conhecimentos de uma vida inteira. Uma parte significativa desta informação é mais tarde recordada e usada nas actividades do dia a dia. A memória representa a permanência e o uso que fazemos das experiências passadas e dos projectos futuros. O conhecimento de nós próprios e do mundo que nos rodeia é adquirido através da aprendizagem e retido na memória para mais tarde ser recordado. A aprendizagem e a memória tem sido estudadas e apresentadas separadamente nos manuais escolares devido aos diversos tipos que a aprendizagem e a memória implicam. Mas a aprendizagem e memória são interdependentes. Esta interdependência ocorre porque a estrutura e significado do “material-aser-aprendido” está em grande parte dependente do conhecimento actualmente retido na memória, isto é, daquilo que a pessoa já sabe e é capaz de recordar. O actual conhecimento de uma pessoa não só influencia a aprendizagem de novos conhecimentos e informações, mas também o modo como o material será organizado para retenção e recuperação futura. © Universidade Aberta
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A memória não é um sistema único e unitário, mas é formada provavelmente por vários sistemas ou sub-sistemas, cada um com funções próprias e diferenciadas. Alguns destes sistemas poderão ser susceptíveis de se deteriorarem mais do que outros, como acontece quando alguém afirma “a minha memória já não é o que era”, mas é improvável que todos fiquem inutilizados ao mesmo tempo, como sugere a expressão “eu perdi a memória”. Se todos os sistemas e mecanismos de memória estivessem realmente danificados e destruídos, a pessoa ficaria em estado de coma e nem sequer era capaz de pronunciar a expressão “eu perdi a memória”. Porém uma deficiência num ou noutro sistema ou mecanismo de memória pode ocasionar muitas vezes dificuldades graves e permanentes de memória. A memória é um sistema que armazena grandes quantidades de informação para ser usada no futuro, tendo sido comparada a uma grande biblioteca ou computador. Estas analogias permitiram conceber a memória como um sistema complexo de funcionamento, onde operam os mecanismos, ou processos mentais, de aquisição, retenção, processamento e recuperação. Na analogia entre a memória e biblioteca, podem-se detectar as seguintes similaridades de processos: Os livros dão entrada na biblioteca, são catalogados e uma ficha é elaborada (aquisição e codificação da informação na memória), depois são colocados na prateleira de uma estante (processo de armazenamento, retenção e consolidação na memória) e posteriormente são requisitados e usados pelo leitor (processo de recuperação e recordação na memória). A analogia com o computador é mais extensa. No computador a informação dá entrada no sistema através do teclado, disquetes e modem, e é codificada de acordo com uma linguagem própria (aquisição e codificação). A informação codificada pode ficar armazenada no sistema durante períodos de tempo breves ou longos (retenção) e depois ser recuperada de forma integral (recordação). A informação armazenada pode ainda ser objecto de diversos tipos de processamento e os produtos deste processamento serem também armazenados. Apesar das similaridades entre a memória humana e o computador, há diferenças notáveis. No computador o acesso à informação é integral, enquanto que na memória o acesso é muitas vezes parcial e imperfeito. Na memória a aquisição de novas informações depende bastante das informações anteriormente armazenadas, mas no computador esta dependência é praticamente nula. A investigação sobre memória humana segue frequentemente uma perspectiva estrutural ou uma perspectiva processual. Na perspectiva estrutural, a memória é constituída por vários sistemas responsáveis pelo armazenamento e retenção da informação, como a memória a curto prazo (MCP) e a memória a longo prazo (MLP). Segundo a perspectiva processual, a informação dá entrada na memória (aquisição), é objecto de diversos tipos de análise (processamento), 110
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os resultados são armazenados durante certo tempo (retenção) e por fim a informação é usada e recordada (recuperação). Estas duas perspectivas vão guiar a apresentação e análise dos principais resultados obtidos no âmbito dos estudos de memória humana de que uma parte serão apresentados a seguir.
3.1
Referências históricas de memória
O estudo científico da memória humana foi iniciado pelo alemão Ebbinghaus (1885/1964) que em 1885 publicou uma monografia de grande influência intitulada Sobre Memória. Ebbinghaus aplicou o método experimental usado nas ciências naturais ao estudo da memória, tendo obtido um grau de controlo e de rigor muito elevado nas experiências realizadas a ponto de alguns dos seus estudos serem ainda hoje citados nos manuais de memória. Na preparação dos estudos de memória, Ebbinghaus teve de superar duas grandes dificuldades respeitantes quer ao tipo de material a usar nas experiências, quer ao modo de medir a retenção do material aprendido. Materiais formados por palavras, frases e textos parecem ser à partida bastante adequados, tendo em conta a sua variedade e disponibilidade. No entanto as palavras, sendo as unidades aparentemente mais simples, apresentam um número de significados e associações que é diferente de pessoa para pessoa, tendo em conta a sua formação e experiência passada. Assim, se numa experiência se quiser estabelecer situações homogéneas e equivalentes entre pessoas, a unidade verbal não deveria ser significativa. Pensando assim, Ebbinghaus decidiu remover o significado verbal inventando a sílaba-sem-significado, composta por uma consoante, uma vogal e uma consoante, como por exemplo LOP, XIB e NEJ. Seguindo esta regra, Ebbinghaus construiu cerca de 2300 sílabas, seleccionando para cada experiência um número de sílabas ao acaso. O segundo problema dizia respeito ao método de medição da memória. Se Ebbinghaus aplicasse o método introspectivo vigente na época ao estudo da memória, verificava que os estados de consciência relacionados com a memória se sucediam e modificavam com tanta frequência, que se tornava improvável estabelecer uma medição quantitativa do que tinha sido aprendido. A solução encontrada foi estudar a memória, não directamente a partir dos estados de consciência, mas indirectamente a partir dos resultados em provas de reaprendizagem, dando origem à prova de memória, conhecida por método de reaprendizagem. A medição da memória através do método de reaprendizagem é obtida através da seguinte sequência de procedimentos. Ebbinghaus seleccionava uma lista de 16 sílabas, cada uma impressa num cartão diferente. Em seguida lia cada © Universidade Aberta
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sílaba ao ritmo de um cartão cada 2 segundos medido pelo bater de um metrónomo. No final da apresentação tentava recordar as sílabas na ordem em que tinham sido apresentadas (aprendizagem seriada). Ebbinghaus efectuou tantas apresentações e leituras da lista de sílabas quantas as necessárias para uma reprodução perfeita, fixando no final o número total de ensaios feitos. Algum tempo depois, que podia ser uma hora ou um dia, tentou reaprender a mesma lista de sílabas segundo o mesmo procedimento e verificou o número de ensaios necessários da segunda vez para obter uma reaprendizagem perfeita. Normalmente o número de ensaios necessários na segunda vez é menor do que na primeira, indicando uma poupança no tempo de aprendizagem e revelando um certo grau de retenção que se mantém de uma sessão para outra. O cálculo numérico da percentagem do grau de retenção foi obtido pela fórmula Retenção = [(O-R) /O] x 100, em que “O” representa o número de ensaios na primeira sessão e “R” o número de ensaios na segunda sessão. Se na primeira sessão Ebbinghaus precisou de 10 ensaios para aprender a lista de 16 sílabas sem erros e na segunda sessão realizada 24 horas depois precisou apenas de 6 ensaios para obter o mesmo desempenho perfeito, verifica-se de acordo com a fórmula precedente uma poupança de 40% no grau de retenção, {[(10-6) /10] x 100} = 40. O método de reaprendizagem de Ebbinghaus, apesar de medir a memória de forma precisa e quantitativa, foi considerado um método moroso e pouco prático pelas gerações seguintes de estudiosos de memória, sendo substituído por outros métodos de medição quantitativa como a evocação e o reconhecimento, que são de aplicação mais fácil em situações escolares ou outras no dia a dia. No entanto o método de reaprendizagem de Ebbinghaus foi reabilitado com o desenvolvimento dos estudos de memória implícita a partir da década de 80, sendo considerado o método mais sensível para se avaliar a recordação de materiais há muito tempo aprendidos e de que actualmente já não se tem consciência, como acontece com a maior parte dos materiais escolares aprendidos há 10 ou 30 anos atrás. Dos estudos experimentais realizados por Ebbinghaus, há dois que merecem ser ressaltados. Um refere-se ao papel da repetição na formação e fortalecimento das associações e o outro tem a ver com o grau de esquecimento em função do tempo. Para os pensadores associacionistas do séc. XIX a memória era considerada uma rede complexa de associações entre ideias mais simples. A fim de testar esta hipótese, Ebbinghaus aprendeu uma lista de 16 de sílabas, repetindo-a um número variável de vezes que podia ir de 8 a 64 vezes conforme as condições. Um dia após a aprendizagem inicial, Ebbinghaus voltou a reaprender a lista prévia e mediu o tempo de reaprendizagem em segundos. Os resultados da função que relaciona número de repetições no primeiro dia, 112
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representados na abcissa, com o tempo de reaprendizagem no segundo dia, representados na ordenada, revelou uma função linear negativa, isto é, quanto maior fosse o número de repetições, menos tempo era preciso para se obter uma reaprendizagem perfeita. Ebbinghaus descobriu que repetindo uma lista mais vezes do que seria necessário para uma perfeita reprodução obtinha uma poupança na reaprendizagem da mesma lista, efectuada 24 horas depois, proporcional ao tempo de repetição inicialmente dispendido. Assim com 8, 32 e 64 repetições o tempo de reaprendizagem diminuia de 19 minutos para 15 e deste para 8 minutos respectivamente. Entre os estudiosos da memória humana, Ebbinghaus é especialmente recordado pelas investigações efectuadas sobre os efeitos do intervalo de tempo no grau de retenção e que ficaram incorporados na sua famosa curva de esquecimento. Esta função descreve um declínio progressivo no grau de retenção de acordo com intervalos de tempo que variavam desde os 19 minutos até um mês. A experiência consistiu numa aprendizagem inicial de listas de 13 sílabas e numa reaprendizagem das mesmas listas passados vários intervalos de tempo. Se a reaprendizagem de uma lista pela segunda vez exigisse um número menor de ensaios do que a aprendizagem inicial, então era de supor que algo da aprendizagem inicial ainda se conservava intacto. Usando a fórmula anteriormente descrita para medir o grau de retenção, Ebbinghaus observou que o grau de retenção ia diminuindo progressivamente com o aumento do intervalo de retenção de acordo com uma função aceleradamente negativa. Veja-se a Figura 3.1. De modo inverso, o grau de esquecimento aumentava com o intervalo de tempo. No entanto o esquecimento foi mais acentuado para intervalos de retenção menores (19 minutos a 24 horas) do que para intervalos maiores (24 horas a 31 dias).
Figura 3.1 - Curva de esquecimento de Ebbinghaus (ou grau de retenção) ao longo de vários intervalos de retenção desde os 19 minutos e 1 hora até 31 dias de acordo com o método de reaprendizagem. © Universidade Aberta
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Ebbinghaus é recordado por ter aberto uma nova área de estudo em psicologia e fornecido um novo modelo de investigação que veio a ter um impacto considerável nas futuras gerações de investigadores, a ponto de alguns resultados continuarem a ser citados nos manuais mais recentes sobre memória humana. Ebbinghaus conseguiu demonstrar admiravelmente bem que a memória humana podia ser objecto de uma investigação experimental e quantitativa, mas as experiências que efectuou, usando sílabas-sem-significado, excluíram aquilo que parece constituir a grande maioria das recordações do dia-a-dia, isto é, material com alto grau de significado e de interesse pessoal. O inglês Bartlett (1932) foi o primeiro investigador a criticar o trabalho de Ebbinghaus, por ter adoptado uma situação bastante artificial nas experiências laboratoriais. Ebbinghaus foi acusado de estar demasiado virado para a natureza do material em vez de se preocupar com as atitudes dos sujeitos e da sua experiência prévia. Segundo Bartlett um material aparentemente simples, como sílabas-sem-significado, não produz só por si uma situação de aprendizagem simples. Pelo contrário, produz até uma situação de aprendizagem bem complexa, já que os sujeitos de uma experiência face a uma lista de sílabas, tipo XEB, LAC, BIR, ZUG, utilizam e recorrem a estratégias complexas de aprendizagem a fim de memorizar um material verbal fora do comum, criando assim uma situação de aprendizagem bem mais complexa do que seria de prever antecipadamente. Bartlett salientou que o esforço do sujeito feito na descoberta do significado do material verbal a ser aprendido era um aspecto central numa situação de aprendizagem. Por isso, quanto mais abstracto e sem-significado fosse o material a aprender, maior seria o esforço dispendido pelo sujeito e mais complexa podia vir a tornar-se a situação de aprendizagem. As críticas de Bartlett ao trabalho de Ebbinghaus e à tradição de estudos nele baseados não tiveram grande repercussão na década em que foram proferidas. Porém, na década de 70, verificou-se uma redescoberta da obra de Bartlett e uma avaliação da sua importância nos estudos de memória humana, com o começo dos estudos sobre memória semântica, a observação de erros e omissões no relato de testemunhos oculares e o interesse crescente pelas estruturas e processos cognitivos da pessoa. Bartlett (1932) realizou vários estudos sobre memória a fim de verificar o modo como as pessoas eram capazes de recordar tipos de materiais mais consentâneos com situações do dia a dia, como faces, gravuras e histórias. Bartlett estava disposto a sacrificar um certo grau de controlo experimental a fim de obter resultados sobre o funcionamento da memória que pudessem ser mais facilmente generalizáveis e com uma validade externa maior. Num dos estudos, Bartlett leu um conto popular, extraído do folclore índio norte americano, intitulado A Guerra dos Fantasmas, com uma extensão de 114
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cerca de 330 palavras (veja-se a reprodução em Osgood, 1973/1953, p. 651-654). É uma história invulgar, mas de fácil compreensão. É uma história que apresenta algumas inconsistências lógicas no tipo de informação social descrita, vistas pela perspectiva cultural de um ocidental. Quando uma pessoa reproduz uma história que inclui alguns episódios invulgares e ambíguos, quer se trate do conto A Guerra dos Fantasmas quer do relato de um filme, peça de teatro ou um acontecimento que se presenciou na rua, há certas características comuns presentes neste tipo de relatos efectuados. No estudo de Bartlett, sujeitos adultos liam a história duas vezes seguidas e depois tentavam reproduzir por escrito o seu conteúdo o mais fielmente possível passados 15 minutos e depois passados alguns meses e anos (método de reprodução repetida). Bartlett sublinhou os aspectos seguintes: • Há uma coerência no relato do conto ao longo das reproduções da mesma pessoa, mesmo que o relato seja diferente do original em certos pontos e seja preciso acrescentar novos elementos. • Há uma abreviação do conto ao longo do tempo com a omissão de episódios, pormenores e elementos estilísticos próprios que não se enquadram bem no fio da história, tornando-se a reprodução cada vez mais convencional. • A reprodução inclui geralmente acrescentos e alterações nos vários episódios que compõem a história, ficando uns mais salientes do que outros. Bartlett é considerado um pioneiro da teoria construtivista da memória, ao defender que a recordação é uma construção pessoal de factos passados. A memória é uma interpretação imaginativa da experiência passada e nesta reconstrução entram os nossos esquemas, atitudes, emoções e quadro cultural de referências. Uma pessoa esforça-se por dar significado ao passado, tornando-o mais lógico, coerente e significativo, de modo que a história faça no final sentido para nós, mesmo que para tal seja preciso esquecer alguns elementos ou acrescentar e inventar outros. Bartlett chega mesmo a afirmar que o “passado está continuamente a ser refeito e reconstruído tendo em conta os interesses do presente” (o. cit., p. 309). A perspectiva de Bartlett de estudo da memória é de natureza qualitativa procurando ressaltar quer as omissões e erros na recordação de materiais importantes no dia a dia, quer o esforço na busca de significado que a pessoa faz para completar o puzzle dos acontecimentos passados. Esta perspectiva contrasta com a análise quantitativa, o rigor e controlo experimental dos estudos de Ebbinghaus, cuja influência ao longo do séc. XX foi evidente. Conforme salientou oportunamente Baddeley (1976), a investigação sobre o funcionamento da memória humana será frutuosa, especialmente se conseguir combinar o melhor de cada uma das tradições iniciadas por Ebbinghaus e Bartlett. © Universidade Aberta
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3.2
Sistemas e processos de memória
Quando no dia a dia se fala de memória, fala-se da memória como um sistema único, como na expressão “a minha memória está a ficar cada vez pior”. Raramente se fala de memória como sendo formada por dois ou mais sistemas. Em contraste, os investigadores referem com frequência a existência de vários sistemas de memória, embora neste como em muitos outros temas científicos o consenso não seja fácil. Se a memória é constituída por vários sistemas, quais são e que características apresentam? Desde Ebbinghaus (1885) até à década de 50, a concepção prevalecente de memória era unitária. A memória era concebida como um sistema de retenção de informação a longo prazo. Durante este período houve outros modelos alternativos, mas tiveram uma influência diminuta na altura. William James (1890) propôs uma distinção entre memória primária e memória secundária, em que a primeira representava informações actualmente conscientes, e a segunda incluía toda a informação não-consciente que a qualquer momento podia voltar à consciência e ser recordada. Hebb (1949) sugeriu também uma distinção entre um registo cerebral a curto prazo, baseado numa activação eléctrica, e um registo a longo prazo que reflectiria um sistema de ligações neuronais mais permanentes entre conjuntos de células cerebrais. As distinções de memória de James e Hebb não tiveram repercussões significativas, a ponto de se poder dizer que a divisão da memória em dois sistemas só começou a ter alguma relevância a partir dos estudos de Peterson e Peterson (1959). Estes investigadores verificaram experimentalmente que numa tarefa com uma duração de 30 segundos, os sujeitos não eram capazes de recordar mais do que 20% do material previamente apresentado após terem decorrido 18 segundos. Uma tarefa deste tipo, em que se verificava um montante considerável de esquecimento após 18 segundos, não poderia ser da mesma natureza da tarefa usada por Ebbinghaus (1885) na sua famosa curva de esquecimento, onde um tal nível de esquecimento apenas se verificava após intervalos superiores a um mês. Assim a partir dos finais da década de 50, passou-se a estabelecer uma dicotomia de memória ao longo da dimensão temporal, começando-se a identificar tarefas de memória a curto prazo em contraste com tarefas de memória a longo prazo. Esta distinção foi incorporada na década de 60 em dois importantes modelos de memória formulados por Waugh e Norman (1965) e Atkinson e Schiffrin (1968). Waugh e Norman propuseram um modelo de memória constituído por uma memória primária e uma memória secundária, em que a repetição era o principal processo responsável pela passagem da informação da memória primária para a memória secundária.
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Atkinson e Schiffrin (1968) propuseram um modelo de memória formado por três registos: Memória sensorial, memória a curto prazo e memória a longo prazo. Neste modelo unidireccional de processamento, a informação era captada pelos sentidos e depois dava entrada nos diversos registos sensoriais, como o visual e o auditivo. Depois uma parte era seleccionada e transferida para um sistema com capacidade limitada designado por memória a curto prazo (MCP), onde a informação ficava sujeita a diversos processos de controlo como a repetição e organização. A informação não processada era esquecida e a informação que tinha sido objecto de algum processamento na MCP era transferida para um sistema permanente de grande capacidade designado por memória a longo prazo (MLP). Cada um destes três sistemas armazenava informação por períodos de tempo diferentes, tinha capacidades diferentes e incluia processos de funcionamento próprios. A divisão da memória em dois ou mais sistemas não foi porém consensual nos anos 60 e particularmente nos anos 70, onde houve quem voltasse a defender uma concepção unitária de memória. O modelo unitário mais representativo foi proposto por Craik e Lockhart (1972), conhecido pelo modelo dos níveis de processamento. Craik e Lockhart sugeriram que o grau de retenção de memória dependia fundamentalmente do modo como a informação uma vez percebida era processada a diferentes níveis e não dependia do facto de residir neste ou naquele sistema de memória como a MCP ou a MLP. A MCP seria equivalente à manutenção da informação num determinado nível de processamento, de natureza mais superficial; não constituía um sistema ou estrutura específica de memória. Por outro lado, um nível de análise mais profundo da informação daria origem a um grau de retenção mais estável e permanente. A capacidade de MLP estaria unicamente relacionada com o aumento maior da profundidade da análise sobre a informação percebida. Assim quanto maior fosse a profundidade de processamento maior seria o grau de retenção na memória. Neste modelo, a duração da informação seria mais breve ou mais permanente conforme o tipo de processamento efectuado na altura da respectiva aquisição. Assim estavam os investigadores de memória na década de 70, divididos entre o apoio a uma concepção de memória formada por dois ou mais sistemas e o apoio a uma concepção unitária de memória que armazenaria informação de forma mais breve ou mais permanente conforme o nível de processamento ou o tipo de análise que tivesse sido efectuado. No final do séc. XX, passadas três décadas sobre o início desta polémica, pode parecer surpreendente, mas os maiores investigadores de memória estão longe de chegar a um consenso sobre esta matéria, a avaliar pela leitura do livro de Foster e Jelicic (1999). Estes editores juntaram as contribuições de uma dezena de ilustres investigadores e verificaram que metade defendia a concepção da memória
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em diferentes sistemas e a outra metade concebia a memória como uma sequência de processos. Isto acontece no final de uma década dedicada à investigação sobre o cérebro humano, onde os investigadores puderam usar e recorrer a instrumentos altamente sofisticados de observação do funcionamento do cérebro em acção. Ao afirmar-se a dificuldade de consenso não se pretende dizer que os investigadores sejam portadores de meras opiniões sem qualquer fundamento. As vantagens e desvantagens da opção por uma ou outra perspectiva de memória estão fundamentadas a partir de resultados empíricos. Mas o que para uns são resultados suficientes para justificar a adesão ou até a mudança e “conversão” de uma perspectiva noutra como aconteceu com Tulving (e.g., Tulving, 1999), para outros investigadores os resultados são insuficientes. Esta dificuldade advém em grande parte do facto da memória ser um construto teórico, como a aprendizagem e a inteligência. Tudo o que se sabe sobre estes processos mentais apenas pode ser inferido indirectamente a partir da interpretação das experiências realizadas. Mas acontece por um lado que os processos mentais não são estanques e isolados entre si e por outro não há uma experiência ou teste cognitivo que seja suficientemente “puro” para detectar a totalidade de um processo mental, como a memória, sem sofrer a influência de outros processos mentais como a percepção, atenção e aprendizagem. Neste sentido creio que as técnicas de imageologia, por mais sofisticadas que venham a ser no futuro (como a tomografia por emissão de positrões, PET na sigla inglesa) não adiantarão muito ao nosso conhecimento do funcionamento dos processos mentais, se ao mesmo tempo não se avançar no aperfeiçoamento e sofisticação metodológica das tarefas cognitivas que acertem no alvo da memória ou noutro qualquer processo cognitivo em análise. Só se observa bem com os olhos ou com o PET, quando se tem a certeza daquilo que se pretende observar.
3.2.1 Distinções de memória As publicações científicas sobre memória humana estão cheias de termos de memória, nuns casos para fazer referência a diversos sistemas, noutros casos para agregar uma série de informações e conhecimentos numa determinada área. Um estudante de memória fica bastante limitado na compreensão da literatura desta área se não for capaz de compreender o significado de muitos destes termos e dos critérios subjacentes ao seu estabelecimento. A memória humana tem sido dividida em função de critérios temporais (memória imediata, memória a curto prazo e memória a longo prazo), em função do conteúdo (memória episódica, memória semântica, memória procedimental), em função 118
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do estado de consciência envolvido (memória explícita e memória implícita), em função dos processos envolvidos (memória declarativa e memória procedimental). Ao longo deste capítulo estes termos irão ser definidos no contexto dos modelos e experiências realizadas. Desde meados da década de 80 tem havido várias tentativas para organizar as diversas distinções de memória num todo mais ou menos coerente (Tulving, 1985; Schacter e Tulving, 1994; Squire, 1994). No entanto esta organização raramente é global de forma a abranger todas as distinções, concentrando-se na maioria dos casos ao nível mais da MLP (e.g., Tulving, 1985; Squire, 1994). A nível mais global, Schacter e Tulving (1994) propuseram os cinco sistemas de memória seguintes: Memória primária (MCP), memória episódica, memória semântica, memória procedimental e sistema de representação perceptiva (PRS na sigla inglesa). Estes sistemas diferem entre si em termos de propriedades, em termos de recordação da informação e em termos de zonas cerebrais. A memória primária seria um sistema de MCP de capacidade e duração limitada. Os quatro sistemas restantes seriam componentes da MLP, com capacidade e duração muito grande. Uma destas distinções mais importantes e de maior frequência na literatura científica é entre memória a curto prazo (MCP) e memória a longo prazo (MLP). Esta distinção foi uma proposta inicialmente psicológica (e.g., William James, 1890; Broadbent, 1958; Peterson e Peterson, 1959; Waugh e Norman, 1965) e cedo foi adoptada pelos neurologistas e mais tarde pelos bioquímicos, mantendo-se até ao presente em toda a literatura científica sobre memória humana (e.g., Foster e Jelicic, 1999). A MCP e a MLP são concebidas como duas estruturas mentais com funções próprias e associadas a áreas cerebrais específicas. A função da MCP seria manter transitoriamente uma representação consciente do presente e a função da MLP seria reter e conservar a informação passada. As provas tradicionais de apoio à distinção entre MCP e MLP baseiam-se nos dois critérios seguintes: (1) a presença de duas componentes na curva de posição serial; (2) estados de amnésia ou tipos diferenciados de desordens de memória. A primeira justificação é de natureza cognitiva e comportamental e a segunda de natureza neuropsicológica.
3.2.2 Curva de posição serial A curva da posição serial é um fenómeno empírico de fácil obtenção (e.g., Murdoch, 1962). Numa experiência típica apresenta-se uma lista de 10 a 20 palavras, uma de cada vez e após a apresentação da última, os sujeitos são © Universidade Aberta
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solicitados a evocar o maior número na ordem preferida. Após ter sido evocada a primeira lista, uma nova lista de itens é apresentada e em seguida evocada pelos sujeitos e este ciclo repete-se por 3 ou 4 listas. O resultado das evocações efectuadas pelos sujeitos, quando analisadas em função da posição do item na respectiva lista, produz os efeitos da posição serial que se exprime por uma curva assimétrica de formato parecido com o perfil longitudinal de um barco. A curva de posição serial apresenta dois efeitos importantes: O efeito de primazia reflecte a melhoria de evocação dos itens iniciais e o efeito de recência a dos itens finais. Veja-se a função do grupo de controlo na Figura 3.2. Investigações efectuadas, sobre o efeito de certas variáveis no formato da curva de posição serial revelaram a existência de factores que afectam o efeito de primazia e a zona intermédia, deixando inalterável o efeito de recência, e vice-versa. Assim o efeito de primazia e a zona intermédia são afectados por variáveis consideradas responsáveis pela aprendizagem a longo prazo, como o tempo de apresentação, o significado das palavras e o relacionamento semântico. Em contraste, a presença de uma actividade com uma duração de cerca de 20 segundos, intercalada entre o final da lista e o início do período de evocação, elimina o efeito de recência, mas deixa inalterável o efeito de primazia e a zona intermédia (e.g., Postman e Phillips, 1965). Veja-se a função do grupo experimental na Figura 3.2.
Figura 3.2 - Percentagem de evocações correctas para listas de 16 palavras evocadas imediatamente no final da apresentação (controlo) ou após 20 segundos de actividade interpolada (experimental). Representação da curva de posição serial e dos efeitos de primazia e recência no grupo de controlo. 120
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No sentido de se encontrar uma explicação para a eliminação do efeito de recência, alguns investigadores formularam a hipótese de que os sujeitos tornavam-se cada vez mais conscientes da aproximação do final da lista, tentando então manter os itens finais num registo provisório de modo a “esvaziá-lo” logo que o período de evocação surgisse. Assim os itens do fim da lista seriam facilmente evocados, devido ao facto de não terem sido deslocados e substituídos por outros posteriormente apresentados. Tais itens ficariam provisoriamente registados na MCP. A presença de uma actividade intercalada tinha por efeito deslocar da MCP os últimos itens aí residentes de forma a “criar espaço” para o processamento da actividade com a duração de 20 segundos. O efeito de recência e a sua eliminação por meio de uma actividade interpolada foi considerado uma das melhores provas da expressão empírica da MCP. Em contraste os itens apresentados no início e no meio da lista não eram afectados pela actividade interpolada, mas por variáveis como o número de repetições sucessivas e associações, que originavam uma retenção mais a longo prazo, assim como a transferência para um registo mais permanente, a memória a longo prazo. Durante anos os investigadores acreditaram que a curva de posição serial era um instrumento importante nas mãos dos psicólogos para analisar a memória humana (e.g., Lindsay e Norman, 1977, p. 341). Actualmente porém a importância da curva de posição serial, enquanto suporte da existência da MCP e da MLP, é bastante menor quando comparada com os resultados de estudos neurológicos. Não deixa no entanto de ser uma tarefa cognitiva importante ao revelar dissociações entre os efeitos de diversas variáveis, um objectivo que está presente em muitos dos estudos experimentais actuais na análise de tarefas (e.g., Pinto, 1984).
3.2.3 Estados de amnésia Há pacientes com desordens de memória (síndroma de Korsakoff) que apresentam um desempenho normal em tarefas de MCP e um desempenho quase nulo em tarefas de MLP. As tarefas de MCP são a amplitude de memória, a tarefa de Brown-Peterson e o efeito de recência da curva de posição serial. A tarefa de MLP habitualmente usada é a evocação livre de listas de palavras, em que os itens do início e do meio da lista são quase sempre ignorados. No comportamento do dia a dia, estes pacientes não sabem onde moram, qual o nome do cônjuge ou o que comeram ao almoço. São capazes de ler o jornal à tarde, sem saberem que já o leram de manhã. Não reconhecem o médico, a enfermeira ou o familiar com quem estiveram há cinco minutos. Os danos cerebrais situam-se nos lobos temporais e nas zonas mais profundas como o hipocampo e o sistema límbico. © Universidade Aberta
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Estes pacientes têm dificuldades em tarefas que requerem um registo consciente e explícito, mas por outro lado o desempenho parece ser normal no conhecimento implícito e não-declarativo. São capazes de aprender alguns procedimentos, como o desenho e a leitura por meio de espelho e aprender a seguir um alvo sinuoso com um ponteiro. Todavia se se perguntar a um amnésico como explica a melhoria registada ao fim de cinco dias de treino em relação ao primeiro dia, o paciente normalmente pergunta admirado: — “Que está para aí a dizer? Eu nunca fiz isto antes!” Estes amnésicos revelam uma deficiência no conhecimento declarativo ou explícito, mas o conhecimento não-declarativo e implícito parece ser normal (Cohen, 1984). Há ainda um segundo tipo de amnésia, cujos pacientes apresentam sintomas opostos. São capazes de efectuarem uma aprendizagem normal, demonstram conhecimentos muito extensos, têm um desempenho quase normal nos testes de inteligência convencionais, mas por outro lado revelam um valor de amplitude de MCP limitado a cerca de 1-2 itens, e ausência do efeito de recência. A zona cerebral afectada são os lobos pré-frontais do córtex cerebral, e a zona do hemisfério esquerdo na região de Silvius, região também associada a afasias e problemas da fala (Baddeley, 1997, p. 43). Apesar de haver alguma controvérsia sobre a existência de diferentes sistemas de memória (e.g., Roediger III et al., 1999), a distinção entre MCP e MLP mantém-se útil, mesmo que no futuro se venha a provar que tal distinção não traduz a existência de sistemas próprios suficientemente diferenciados. Esta distinção tem um importante valor heurístico e constitui uma forma clarificadora de organizar as diferentes tarefas de memória, indicando os temas de estudo dos diferentes grupos de investigadores. Assim quando alguém diz que está a fazer uma investigação sobre a MCP ou sobre memória episódica, qualquer estudante de memória rapidamente percebe qual o tipo de enquadramento da investigação em curso.
3.3
Memória a curto prazo
A memória a curto prazo (MCP) é um construto teórico, proposto a partir da interpretação dos resultados das experiências realizadas por Brown (1958) e Peterson e Peterson (1959). Nestas experiências verificou-se um grau de esquecimento considerável ao fim de 18 segundos numa tarefa de recordação de consoantes, em que a repetição destas era dificultada ou bloqueada devido à realização de uma tarefa interpolada. Estes resultados foram usados para apoiar a concepção de um tipo de memória cujas características de armazenamento da informação pareciam ser diferentes da memória que 122
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armazenava informação durante intervalos de retenção medidos em dias, semanas ou mesmo anos. A MCP veio a ser incorporada na maior parte dos modelos de memória propostos, de que destaco os modelos de Waugh e Norman (1965), Atkinson e Schiffrin (1968) e Baddeley (1986), sendo ainda hoje uma estrutura incontornável na investigação da memória humana. A MCP surge na literatura científica com diferentes nomes, os mais frequentes foram designados por memória imediata, memória primária e memória operatória. O estudo da MCP abrange em geral os temas seguintes: (1) A capacidade, ou quantidade de informação retida e armazenada; (2) A codificação, isto é, o modo como a informação sensorial está representada na MCP; (3) O esquecimento, ou a duração da informação retida.
3.3.1 A capacidade da MCP A capacidade da MCP é limitada em termos do número de itens armazenados, em termos da duração dos itens e em termos da disponibilidade de recursos mentais para executar as operações da MCP. Assim há limites no que respeita à quantidade de informação que se pode reter num dado momento, como há também limites na rapidez com que se podem usar as funções cognitivas para processar a informação recebida. Quaisquer que sejam os limites da MCP não é difícil demonstrá-los. Uma das tarefas aplicadas é a determinação da capacidade da MCP a partir de uma prova de memória de números (e.g., Pinto, 1991a). Na prova de memória de números apresenta-se uma sequência de dígitos, um de cada vez ao ritmo de um dígito por segundo. No final da apresentação, os sujeitos são solicitados a recordar os dígitos na ordem apresentada. Começase habitualmente por séries de dois ou três dígitos e aumenta-se progressivamente a extensão da série até o sujeito falhar três vezes consecutivas. Os resultados obtidos nesta prova de amplitude de memória de números com jovens adultos de educação média situam-se geralmente à volta dos sete dígitos, mais ou menos dois. Comparando diferentes grupos etários, verificou-se que a amplitude de memória aumenta uma unidade cada dois anos desde os três anos até cerca dos 14 anos, onde atinge o valor sete, estabilizando a seguir pela vida fora, excepto na velhice, onde costuma ocorrer um ligeiro decréscimo (e.g., Hunter, 1964). O valor de amplitude de 7 itens em média, obtido com dígitos, não é igual ao valor de amplitude obtido com outros materiais, como consoantes, palavras, cores e sílabas-sem-significado (e.g., Pinto, 1991b, p. 112), onde os valores © Universidade Aberta
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de amplitude podem variar entre 2 e 8. Estes resultados indicam que a amplitude de memória não é um valor fixo e depende do grau de complexidade e familiaridade dos materiais seleccionados. Apesar destas diferenças, alguns investigadores propuseram que a extensão da memória imediata representaria um número constante de itens ou unidades informativas categorizadas (Miller, 1956). Miller (1956) propôs que a capacidade da MCP era de 7± 2 unidades informativas categorizadas. Uma unidade categorizada significa que os dígitos “1939” podem representar quatro unidades se forem considerados os dígitos isoladamente ou uma unidade se for considerado o ano de 1939, informação representando o começo da II Guerra Mundial. Uma sequência de 16 dígitos “191 419 181 939 194 4” pode ser formada por 16 ou por 4 unidades categorizadas, considerando no caso de 4, o início e o fim da I e da II Guerras Mundiais. Ao contrário de Miller, Simon (1974) propôs o valor 5 para representar a amplitude de MCP, afirmando que 7 era um valor inflacionado devido à elevada familiaridade dos adultos com dígitos. De facto Chi (1976) confirmou a tese da familiaridade numa experiência com crianças que apresentavam uma familiaridade maior do que os adultos no jogo de xadrez e na reprodução de peças de um tabuleiro para outro. Quando a amplitude de memória foi medida a partir do número de peças de xadrez correctamente reproduzidas após uma única observação, verificou-se que a amplitude de memória nas crianças excedia significativamente a dos adultos; quando foi medida em dígitos observou-se a tradicional diminuição das crianças em relação aos adultos. O treino pode aumentar o valor de amplitude de memória num domínio específico. Um exemplo deveras elucidativo é o estudo de Ericsson, Chase e Faloon (1980) que descreveram o caso de Steve Faloon, um universitário dos EUA que conseguiu aumentar o valor de amplitude de memória de 7 até quase 80 dígitos ao fim de 2 anos de treino. Este aumento não correspondeu a uma função ascendente contínua de ensaio para ensaio ao longo do tempo que decorreu a experiência. À maneira da maioria das pessoas, Faloon só conseguiu reproduzir 7 dígitos no primeiro ensaio. Depois houve vários momentos de impasse em que nenhum aumento de amplitude se verificou, mas que foram ultrapassados progressivamente através da descoberta e aplicação das estratégias de codificação significativa, organização e estruturação da informação de forma hierárquica, apelo crescente à informação na MLP e rapidez de processamento. Será que a amplitude de memória aumenta de facto uma unidade cada dois anos desde a primeira infância até à adolescência (e.g., Hunter, 1964), ou será que representa um valor fixo sem grandes variações ao longo do desenvolvimento humano? Muitos investigadores crêem que os aumentos de amplitude de memória entre os 3 e os 6 anos são devidos em grande parte a 124
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factores de crescimento e maturação verificadas na fisiologia cerebral, mas em relação aos outros períodos etários, as diferenças de amplitude seriam devidas mais a factores cognitivos, como a familiaridade, o treino e aplicação de estratégias de codificação e recordação.
3.3.2 A codificação na MCP A codificação refere-se ao modo como a informação está representada na memória humana e segundo experiências realizadas na década de 60 por Conrad (1964) e Baddeley (1966) o tipo de representação na MCP tem uma componente predominantemente acústica ou fonológica. Conrad (1964) solicitou a identificação de letras apresentadas num taquistoscópio durante 750 ms. Os erros de identificação apresentavam similaridades acústicas, e ocorriam mais vezes nas consoantes com sons parecidos (M-N; PB) do que com figuras parecidas (F-T; Q-G). Os erros revelaram semelhanças acústicas, mesmo quando as letras eram apresentadas visualmente. Havia uma tradução fonológica da informação visual apresentada, afectando o modo como a identificação se processava. Noutro tipo de experiência, Baddeley (1966) apresentou listas formadas quer por palavras similares acusticamente (ex., pão, mão, cão, não, dão, chão, são) quer por palavras não-similares (ex., pão, giz, bar, sol, cor, ler, dia). Numa prova de evocação serial imediata de listas de palavras deste tipo obteve uma percentagem de 9,6% para a lista similar e de 82% para a lista não-similar. As diferenças acentuadas entre a lista 1 e 2 revelam que a similaridade acústica dos materiais apresentados interferiu e afectou negativamente o estabelecimento na MCP de um código da mesma natureza acústica. No que se refere à memória a longo prazo, estudos efectuados por Baddeley e outros investigadores revelaram que a representação da informação é de natureza predominantemente semântica, mas não em exclusivo. Assim, por exemplo, quando se solicita a evocação livre ou seriada de uma lista de 20 palavras anteriormente apresentadas (onde se incluem por exemplo as palavras ‘fogo’, ‘saia’, ‘estrada’) verificam-se às vezes erros de evocação em termos de significado parecido (por ex., fogo-incêndio, saia-vestido, estrada-avenida). Nesta tarefa também podem ocorrer erros de tipo acústico-perceptivo, como “pombo-bombo”, embora a frequência seja menor do que os erros de tipo semântico. A similaridade semântica não afecta tanto o estabelecimento de uma representação numa tarefa de MCP.
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A informação processada na MCP é afectada por informações acusticamente similares e na MLP por informações semanticamente similares, sugerindo a possibilidade de haver pelo menos duas formas diferentes de codificação na memória. Numa abordagem alternativa em termos de modelo de níveis de processamento, a representação da informação na memória seria o produto de análises diversas realizadas nos estímulos percebidos. Assim uma análise predominantemente acústica seria suficiente para tarefas de curto prazo, como recordar uma sequência de dígitos na tarefa de telefonar e discar um número. Todavia, se a tarefa for a longo prazo, como memorizar uma lista de compras para adquirir no fim do dia no supermercado, um texto para exame, etc., então será mais útil aplicar um processamento semântico. A codificação da informação na memória humana não se restringe apenas à codificação acústica e semântica e é certamente bastante mais complexa do que esta breve descrição deixa supor. A codificação de uma série de palavras e a sua representação na memória não será da mesma natureza da representação de outras informações como o rosto do nosso pai, o cheiro a maresia, o sabor do café e o toque de veludo. É uma questão importante saber se a informação na memória humana está representada por um único código de características abstractas e gerais, ou antes por uma série de códigos de características sensorialmente dependentes, como o visual, auditivo ou olfactivo.
3.3.3 Duração e esquecimento na MCP Peterson e Peterson (1959) verificaram que jovens universitários eram incapazes de recordar em média mais de 20% de siglas de consoantes após terem decorrido 18 segundos. A partir destes e de outros estudos similares, como o desaparecimento do efeito de recência na curva de posição serial, foi sugerido que a duração da informação na MCP situava-se entre 10 a 20 segundos sem haver necessidade de ser renovada através da repetição. Se a repetição tiver lugar, a informação prolonga-se por bastante mais tempo como acontece quando se repete um número de telefone depois de se ver na lista e até ser integralmente discado. Porém a informação é esquecida se o processo de repetição, que mantém a informação na MCP, for perturbado por qualquer distracção externa. Quando a MCP foi proposta como construto teórico nos finais da década de 50, o esquecimento observado nas tarefas de MCP foi explicado de acordo com as duas teorias de esquecimento predominantes da época: A teoria do desuso, segundo a qual o traço de memória perdia gradualmente a sua intensidade ou robustez ao longo do tempo por falta de uso; e a teoria da interferência, que afirmava que o esquecimento era o resultado da competição 126
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entre estímulos e respostas similares, sendo o intervalo de tempo irrelevante. Alguns dos estudos clássicos sobre o esquecimento em tarefas de MCP são descritos a seguir. Peterson e Peterson (1959) apresentaram a um grupo de sujeitos uma sigla ou trigrama de consoantes (LTC) seguido por um número de três dígitos (437). O sujeito repetia o trigrama LTC e o número 437 e imediatamente iniciava uma contagem retroactiva de 3 em 3 durante intervalos de retenção variáveis: (ex., 437, 434, 431, 428, …). No final do intervalo de contagem retroactiva, o sujeito evocava o trigrama inicialmente apresentado. Os intervalos de retenção usados, preenchidos com a contagem retroactiva, foram: 3 - 6 - 9 - 12 - 15 e 18 segundos. O objectivo da tarefa interpolada (ou distractiva) situada entre a apresentação do trigrama e o período de evocação, era minimizar ou impedir a possibilidade de repetição do trigrama por parte do sujeito. Esta tarefa de MCP veio a ficar conhecida por tarefa de Brown-Peterson. (a)
(b)
Peterson e Peterson (1959)
Keppel e Underwood (1962)
Figura 3.3 - (a) Percentagem de evocações correctas para trigramas de consoantes para intervalos de retenção até 18 segundos (Peterson e Peterson, 1959). (b) Evocação de trigramas ao longo de 6 ensaios em função do intervalo de retenção de 3 e 18 segundos (Keppel e Underwood, 1962).
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Os resultados obtidos por Peterson e Peterson estão expostos na Figura 3.3a, onde se observa uma diminuição progressiva da percentagem de evocações correctas à medida que o intervalo de tempo aumenta até 18 segundos. Peterson e Peterson explicaram o esquecimento observado em função do decurso do tempo, por não haver provas suficientes da influência da variável interferência proactiva. Keppel e Underwood (1962) consideraram prematura a conclusão dos Peterson de que o esquecimento fora devido ao decurso do tempo, e propuseram que os efeitos inibitórios da interferência proactiva na experiência dos Peterson talvez tivessem sido bloqueados pelos efeitos positivos e facilitadores da prática. Keppel e Underwood apresentaram a 2 grupos de sujeitos, 6 trigramas de consoantes. Cada trigrama era seguido por intervalos de retenção de 3 ou de 18 segundos, preenchidos com uma tarefa de contagem retroactiva. A sequência dos intervalos foi num grupo: 3 - 18 - 3 - 18 - 3 - 18; no outro grupo foi: 18 - 3 - 18 - 3 - 18 3. Os resultados obtidos estão expostos na Figura 3.3b, onde se observam diferenças reduzidas de percentagem de evocação entre 3 e 18 segundos nos primeiros dois ensaios, e diferenças acentuadas nos últimos ensaios. Para Keppel e Underwood os ensaios de 1 a 6 representavam a manipulação da interferência proactiva, sendo mínima a interferência proactiva associada ao 1º ensaio e máxima relativamente ao 6º ensaio. Assim o grau de evocação da informação retida na MCP diminuía à medida que aumentava a interferência proactiva. Keppel e Underwood (1962) concluiram que a interferência proactiva manifestava-se na MCP do mesmo modo que na MLP. Comentando a experiência de Keppel e Underwood, Wickens (1963, 1970) sugeriu um procedimento para fazer dissipar ou libertar o desenvolvimento da interferência proactiva nesta tarefa de MCP. Wickens apresentou blocos de 4 ensaios com uma duração de 30 segundos cada. O material verbal apresentado em cada ensaio era formado por 3 palavras pertencentes a uma categoria (por ex., FRUTOS: uva, maçã, pêra). Os materiais apresentados ao grupo experimental nos 3 primeiros ensaios era semelhante ao do grupo de controlo, mas diferia no 4º ensaio, por ex., mudava-se de FRUTOS para a categoria AVES (por ex., melro, rola, pardal). Manipulava-se assim no 4º ensaio o tipo de material entre os grupos experimental e de controlo. De acordo com os resultados de Keppel e Underwood (1962), a interferência proactiva desenvolve-se e aumenta ao longo dos três primeiros ensaios. Mas o que acontecerá no 4º ensaio entre os grupos experimental e de controlo? Verificar-se-á ou não uma libertação da interferência proactiva com a mudança de material no grupo experimental? Os resultados obtidos por Wickens, e ilustrados na Figura 3.4, revelam que a interferência proactiva aumentou nos três primeiros ensaios nos dois grupos, continuando ainda no 4º ensaio no 128
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grupo de controlo, mas foi anulada no 4º ensaio do grupo experimental, onde o desempenho foi semelhante ao observado no 1º ensaio.
Figura 3.4 - Percentagem de evocações correctas ao longo de 4 ensaios com mudança na categoria de material no quarto ensaio no grupo experimental. Ilustração da libertação da interferência proactiva no 4º ensaio segundo Wickens (1970).
Uma das explicações mais aceites para a libertação da interferência proactiva no 4º ensaio baseia-se na possibilidade do novo tipo de material, introduzido no 4º ensaio do grupo experimental, ter fornecido uma pista de recuperação específica e única que difere dos ensaios precedentes. Em contraste, nos 4 ensaios do grupo de controlo e nos 3 primeiros ensaios do grupo experimental haveria como que uma saturação das pistas de recuperação, cuja especificidade foi cada vez mais reduzida. Estudos no âmbito da libertação da interferência proactiva revelaram que as mudanças no conteúdo semântico (ex., animais flores) produzem um valor de libertação bastante maior do que as mudanças de natureza sintáctica (adjectivos - verbos) ou físicas (mudança da cor de fundo). Veja-se a propósito Marques (1997). As experiências anteriores sugerem que a interferência representa um papel mais importante no esquecimento de tarefas de memória a curto prazo do que o decurso do tempo. Todavia Posner (1967) tentou explicar o esquecimento na MCP como uma interacção entre o factor interferência e o decurso do tempo, formulando a teoria do banho de ácido. Segundo esta teoria, o processo de esquecimento seria análogo à desintegração do metal quando colocado © Universidade Aberta
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num vaso de ácido corrosivo. O grau de desintegração do metal seria uma função quer da força do ácido quer do período de tempo durante o qual o metal ficava submerso no ácido. Na memória humana, o grau de similaridade entre itens verbais causa interferência do mesmo modo que a força do ácido e o tempo de imersão afecta a corrosão do metal. Assim quanto maior for a similaridade dos itens maior será a interferência. Mas o tempo também é importante. Assim a interferência será maior quanto mais tempo influenciar um item armazenado na memória. Itens com alto grau de similaridade não causarão muito esquecimento se os itens forem evocados imediatamente. De modo inverso, itens distintos e dissimilares (não interferentes) podem permanecer muito mais tempo na MCP resultando daí pouco esquecimento. Os investigadores continuam a discutir qual a variável (interferência ou decurso do tempo) mais responsável pelo esquecimento na MCP. Estas dificuldades estão talvez relacionadas com a presença de um paradoxo na tarefa de BrownPeterson de MCP a respeito da finalidade da tarefa interpolada para suspender a repetição. Por um lado, quanto mais similar for a actividade interpolada em relação aos itens-a-ser-recordados, maior será a probabilidade de surgir interferência retroactiva. Por outro lado, quanto mais diversa for a actividade interpolada, maior será a probabilidade dos sujeitos efectuarem duas tarefas ao mesmo tempo. A tarefa de Brown-Peterson é uma tarefa tipicamente laboratorial que simula muito bem algumas situações do dia a dia, como acções a realizar dentro de instantes. No paradigma de Brown-Peterson, a tarefa inicial é a apresentação de trigramas; a interrupção é a tarefa de contagem retroactiva e as dificuldades de recordação são a tarefa de evocação. Exemplo de uma situação quotidiana ilustrativa é ir da cozinha ao quarto buscar um objecto, entretanto o telefone toca a caminho do quarto, a pessoa atende e a intenção inicial é interrompida. Quando se desliga o telefone, a pessoa tem às vezes dificuldade em lembrar-se do que ia fazer ao quarto. Voltar à cozinha pode facilitar a evocação.
3.3.4 Memória operatória A MCP é um sistema com uma capacidade limitada em termos de armazenamento e de processamento. Quando se ressaltam mais as limitações em termos de armazenamento, a MCP é designada por memória primária; quando se ressaltam as limitações conjuntas de armazenamento e processamento, a MCP designa-se por memória operatória. Baddeley (1986) 130
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definiu a memória operatória como “um sistema de armazenamento e manipulação temporária da informação durante a realização de um conjunto de tarefas cognitivas como a compreensão, aprendizagem e raciocínio” (p. 34). Assim por exemplo na compreensão da fala é fundamental reter na memória os temas da conversação, enquanto se está a perceber e a processar o que o interlocutor diz para depois se poder responder e interagir. Na aritmética para adicionar várias parcelas como 534+567+314 = ?, é preciso adicionar a coluna das unidades, reter o resultado (5) e manter transitoriamente na memória a sobra (1) que em seguida deverá ser adicionada à coluna das dezenas e assim sucessivamente. Por definição, as tarefas de memória operatória devem conter componentes de armazenamento, processamento activo e actualização do material registado. Uma tarefa típica de memória operatória requer que a pessoa armazene na memória uma porção limitada de informação e ao mesmo tempo execute alguma operação cognitiva, quer no material retido quer no material que está a ser processado. Salthouse e Babcock (1991) compararam o desempenho em duas provas de MCP, que poderão ser consideradas típicas de memória primária e da memória operatória. A prova de memória primária era a prova clássica de amplitude de números e a prova de memória operatória era também uma prova de amplitude de números, mas provenientes dos resultados de adições sucessivas. Por exemplo, os investigadores apresentaram 2+4=?; 5+0=?; 3+6=?; 1+1=?; 3+5=? e os sujeitos depois de adicionarem as parcelas tinham de reter os resultados de cada adição e evocá-los por ordem no final da sessão, o que neste exemplo seria, 6, 5, 9, 2, 8. O desempenho nas duas tarefas revelou uma diferença média de 2 itens, situando-se o desempenho da memória primária em torno dos tradicionais 7 itens e o da memória operatória em torno dos 5. A memória operatória é um sistema activo e consciente de retenção e processamento da informação proveniente dos registos sensoriais, assim como da informação recuperada da MLP. É o sistema que num dado momento está a trabalhar ou a operar a informação, identificando-se e confundindo-se com o foco da consciência. Considere-se por ex., a tarefa de contar sucessivamente o número de janelas, portas e armários existentes em casa. Contadas as janelas tem que se reter o número, enquanto se contam as portas e depois reter o número de janelas e portas enquanto se contam os armários e no final apresentar três valores numéricos por ordem. Esta tarefa torna-se bastante complexa se se solicitar ainda a contagem do número de candeeiros de tecto e compartimentos da casa. A sobrecarga crescente da memória operatória com as limitações inerentes que daí resultam torna cada vez mais difícil processar a nova informação.
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3.4
Memória a longo prazo
Dos vários tipos de memória, a MLP é aquela que corresponde mais de perto ao que a pessoa comum julga que a memória é. A MLP armazena o conhecimento que possuímos do mundo que nos rodeia durante longos períodos de tempo. Estes conhecimentos são bastante diversos. Uns são de tipo episódico, como o que fizemos esta manhã ou onde passámos as últimas férias de verão. Outros são gerais e enciclopédicos, como a sintaxe da língua materna, os significados das palavras, o valor de π, a localização dos mares e continentes, a abertura da 5ª sinfonia de Beethoven. Outros ainda são de tipo motor e procedimental como andar de bicicleta, escrever à máquina ou tocar piano. As informações armazenadas na MLP não provêm apenas das modalidades visuais e auditivas. Há também informações provenientes dos outros sentidos, como o olfacto e tacto, como o cheiro a alfazema, o som do mar a bater na rocha, o tacto de veludo ou da areia a escoar-se entre os dedos.
3.4.1 Modelos de MLP A memória a longo prazo (MLP) é o sistema que armazena a informação e conhecimento durante longos períodos de tempo. Devido à diversidade de conhecimentos retidos na MLP, houve investigadores (e.g., Tulving, 1985) que propuseram sistemas específicos de MLP a fim de representar diferentes tipos de conhecimento: o conhecimento episódico, o conhecimento semântico e o conhecimento procedimental. Segundo o modelo mono-hierárquico e piramidal de memória de Tulving (1985), a memória episódica situa-se no topo da pirâmide hierárquica, a memória semântica numa posição intermédia, enquanto que a memória procedimental situa-se na base da pirâmide. Mais recentemente Tulving e Schacter (1990) acrescentaram o sistema de representação perceptiva. Este modelo pressupõe que um sistema superior não pode manter-se incólume com um sistema inferior deteriorado. Assim não pode haver um sistema episódico incólume em pessoas com um sistema semântico danificado. A memória episódica é o sistema responsável pela recordação consciente dos acontecimentos de uma vida inteira, referenciados em termos de espaço e tempo. Tulving (1985, p. 387) definiu a memória episódica como a recordação consciente de “acontecimentos pessoalmente vividos enquadrados nas suas relações temporais”. Os conteúdos da memória episódica são por exemplo, o que comi hoje ao almoço, onde passei as últimas férias de verão, a escola primária onde andei, a casa onde moram os meus pais, a participação numa experiência de psicologia no laboratório na semana passada. É o sistema de memória mais especializado, o último a desenvolver-se na infância e o primeiro a deteriorar-se na velhice. O hipocampo e a área circundante seriam as principais 132
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zonas neuronais subjacentes que medeiam o funcionamento da memória episódica. As provas ou medidas típicas de memória episódica são a evocação livre, a evocação seriada, a evocação auxiliada e o reconhecimento. De um modo geral o desempenho de memória é mais baixo nas provas de evocação livre e seriada, mais alto nas provas de reconhecimento e intermédio nas provas de evocação auxiliada (e.g., Pinto, 1998a). A memória semântica é o sistema que dá significado ao mundo de conhecimentos de que somos portadores. A informação na memória semântica não está associada a um contexto autobiográfico de natureza temporal e espacial. Tulving (1972, p. 386) definiu a memória semântica como “uma enciclopédia mental do conhecimento organizado que uma pessoa mantém sobre palavras e outros símbolos mentais”, tendo mais tarde alargado o seu âmbito para incluir “o conhecimento do mundo de que um organismo seria portador” (Tulving, 1985, p. 388). O conhecimento retido na memória semântica seria o conhecimento da língua materna, o conhecimento de factos gerais, sabedoria e inteligência prática e o conhecimento geral do mundo, que na concepção da teoria psicométrica de inteligência de Cattell (1963) representaria a inteligência cristalizada. Segundo Patterson e Hodges (1995) as regiões ântero-laterais dos lobos temporais teriam um papel importante no funcionamento da memória semântica, mas segundo Mayes (1999) as zonas cerebrais envolvidas não poderiam ser muito diferentes das que afectam a memória episódica, porque o conteúdo da memória semântica começou por ser inicialmente episódico. As provas típicas de memória semântica incluem provas de vocabulário, tempo de latência na nomeação de palavras e gravuras e o fenómeno da palavra debaixo da língua. A memória procedimental seria constituída por capacidades perceptivas e motoras que no decurso do tempo e com a prática se transformaram em rotinas e hábitos de que pouco ou nada se tem consciência. As componentes de hábitos e habilidades motoras, como andar, nadar e tocar um instrumento, revelam um processo aquisitivo gradual e progressivo ao longo de vários ensaios. A memória procedimental constitui a base da pirâmide dos sistemas de MLP de Tulving (1985) e de acordo com um dos postulados deste modelo seria o sistema onde as deficiências de funcionamento seriam mais difíceis de detectar. As principais zonas neuronais subjacentes seriam os córtices motor e pré-motor e os gânglios basais. O sistema de representação perceptiva (PRS na sigla inglesa) seria um registo de memória responsável pelo fenómeno de activação perceptiva (perceptual © Universidade Aberta
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priming na sigla inglesa), segundo o qual uma palavra anteriormente percebida é mais rapidamente identificada numa segunda apresentação. Este sistema foi proposto por Tulving e Schacter (1990) e situar-se-ia ao nível da memória procedimental, mas distinto desta. O processo aquisitivo no PRS revela-se num único ensaio e não é gradual como na memória procedimental, sugerindo a possibilidade da memória procedimental ser constituída por componentes diferentes. A memória procedimental é avaliada por meio de um conjunto de provas designadas na literatura por provas indirectas, implícitas ou não-declarativas (e.g., Squire, 1994). As provas implícitas medem o desempenho de memória em situações em que não há instruções directas ou explícitas para aprender ou recordar, mas que mesmo assim reflectem uma melhoria no desempenho observado. Em geral envolvem tarefas constituídas por aprendizagens repetidas segundo o procedimento de Ebbinghaus, activação perceptiva repetida e activação semântica, tarefas de aprendizagem motora, resolução de problemas do tipo torre de Hanói, tarefas de completação de palavras a partir de radicais ou fragmentos depois de terem sido estudadas previamente (e.g., Graf e Masson, 1993). Muitas das capacidades, competências e habilidades da memória procedimental são essenciais no dia a dia e em geral permanecem intactas à medida que uma pessoa envelhece, mesmo quando a memória semântica começa já a dar sinais de enfraquecimento. A referência a três subsistemas na MLP (memória episódica, memória semântica e memória procedimental) é apoiada a nível neuronal e até em investigações com idosos normais. Estudos realizados com tarefas de memória explícita e implícita revelaram a presença de dissociações entre sistemas de memória, verificando-se que os amnésicos e idosos são afectados principalmente nas tarefas de memória explícita ou consciente, e bastante menos afectados nas tarefas de memória implícita ou inconsciente. Há casos de pacientes com a amnésia de Korsakoff que são incapazes de reconhecer a mulher e os filhos na altura da visita ao hospital, mas conseguem dizer que estão perante uma mulher e crianças. São doentes que revelam um tipo de conhecimento semântico, mas carecem do conhecimento episódico de que tal mulher é num caso a esposa ou no outro caso a enfermeira que o tratou durante a manhã. Há ainda outros casos graves de amnésia, em que o único conhecimento recordado, embora de forma inconsciente, é o conhecimento procedimental. Baddeley (1989) relata o caso de Clive Wearing que tinha uma memória episódica e semântica altamente deficitária, mas era capaz de tocar peças musicais complexas na harpa e reger um coro. Este tipo de pacientes com desordens de memória a nível episódico e semântico conseguem mesmo assim beneficiar do treino anterior e da repetição na 134
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aprendizagem de uma habilidade motora nova, como a leitura por meio de espelho ou tracejado, apesar de não terem qualquer consciência da aprendizagem previamente realizada. Rozin (1976) descreve o caso de um músico de piano que aprendeu a tocar rapidamente uma peça musical numa tarde. No dia seguinte quando lhe foi pedido para voltar a tocar a mesma peça, o paciente não tinha qualquer memória consciente do que lhe era pedido. No entanto quando os primeiros compassos da peça musical foram tocados, o paciente foi capaz de tocar toda a peça correctamente.
3.4.2 Codificação na MLP Ao falar-se sobre a codificação na MCP foi referido que a codificação na MLP era de natureza predominantemente semântica. Mas a codificação da informação em termos semânticos tem níveis diferentes consoante as instruções seguidas. Um dos procedimentos de investigação mais usados para se analisar a codificação na MLP foi o dos níveis de processamento de Craik e Lockhart (1972) e Craik e Tulving (1975) descritos a seguir. Craik e Lockhart sugeriram que o grau de retenção dependia fundamentalmente do modo como a informação, uma vez percebida, é codificada e processada a diferentes níveis. A duração da informação na memória seria um produto de séries sucessivas de análises efectuadas nos estímulos percebidos. O nível mais básico e ligeiro de processamento incluiria a análise sensorial e física da informação e envolveria o processamento de certas características dos estímulos como palavras maiúsculas ou minúsculas, apresentadas numa voz masculina ou feminina. Uma fase intermédia envolveria uma análise de tipo fonológico ou acústico e terminaria numa análise de natureza semântica, considerada a mais profunda. A análise da informação feita ao longo de diferentes níveis foi designada por modelo de níveis de processamento. Experiências realizadas de acordo com o modelo de níveis de processamento revelaram que o processamento semântico produz um melhor desempenho de memória do que processamentos de tipo fonológico e de tipo físico. Craik e Tulving (1975) orientaram o processamento de uma lista de 60 palavras de acordo com as instruções seguintes, ministradas aos sujeitos da experiência: Físico:
“A palavra está escrita em maiúsculas?” MESA, casa;
Fonológico: “A palavra rima com PESO?” Medida, OBESO; Semântico: “A palavra enquadra-se na frase: Ele encontrou ‘—’ na rua?” Nuvem, AMIGO.
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Os resultados obtidos numa prova de reconhecimento das palavras apresentadas em função das instruções de processamento físico, fonológico e semântico indicaram valores na ordem dos 15, 45 e 80% respectivamente, quando a resposta dos sujeitos era positiva. Os resultados foram mais baixos quando a resposta era negativa nos três tipos de instruções, mas o padrão de resultados obtido foi semelhante ao das respostas positivas. O mesmo padrão de resultados foi ainda obtido numa prova de evocação. Craik e Tulving (1975) demonstraram ainda que o processamento semântico poderia ser objecto de diferentes níveis. Mesmo que todas as palavras fossem processadas em termos de significado, aquelas palavras que tivessem sido enquadradas numa estrutura sintáctica mais rica e elaborada eram melhor retidas do que as palavras inseridas numa estrutura sintáctica simples. A estrutura sintáctica foi manipulada numa experiência em que a tarefa dos sujeitos era processar a palavra RELÓGIO escrita a maiúsculas numa das frases seguintes: (1) “Ele deixou cair o RELÓGIO”; (2) “O velho senhor atravessou a sala a coxear e pelo caminho levantou o lindo RELÓGIO que estava pousado na artística mesa de mogno”. Os resultados indicaram que a recordação era muito superior para palavras inseridas numa estrutura sintáctica rica e elaborada, expressa pela segunda frase, em comparação com uma estrutura sintáctica simples, expressa na primeira frase. Embora a palavra RELÓGIO tivesse sido processada em termos de significado em ambos as frases, as diferenças de desempenho de memória foram substanciais, entre 40 e 80%. Assim o processamento semântico pode ser suplementado com um processamento mais extenso, elaborado e distintivo. Outros estudos realizados no âmbito desta área revelaram ainda que o processamento da informação é ainda mais profundo e o grau de retenção mais elevado, quando as palavras são analisadas e associadas em relação à personalidade da pessoa que as estuda em comparação com um processamento semântico (e.g., Rogers et al., 1977). Neste sentido, Pinto (1991b, cap. 11) provou ainda que o processamento da informação em termos de personalidade e de episódios era equivalente entre si. Em termos de personalidade, uma pessoa pode processar a palavra RELÓGIO, por exemplo, em termos do prazer e valor do relógio que possui. Em termos de episódio pessoal, pode associar a palavra RELÓGIO com um episódio que ocorreu no passado com este objecto, como o relógio de ouro que recebeu em criança quando fez a comunhão solene (e.g., Pinto, 1998b; Symons e Johnson, 1997). Uma importante implicação prática deste tipo de estudos sugere que uma boa maneira de recordar material verbal é relacioná-lo com aspectos da nossa personalidade ou com episódios pessoais vividos.
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O modelo de níveis de processamento é uma contribuição importante para explicar a duração maior ou menor da informação na memória. Há no entanto importantes objecções que este modelo não tem conseguido resolver. A objecção mais frequente refere-se à circularidade de raciocínio na definição do que é um nível mais superficial ou mais profundo. Esta definição depende do desempenho obtido, que por sua vez tenta confirmar os níveis seleccionados. Uma objecção mais pertinente foi formulada por Morris et al. (1977) argumentando que o nível de processamento está dependente da prova de memória que vier a ser aplicada. Se o processamento inicial for semântico, mas a prova de memória for uma selecção de palavras que rimam, o desempenho é pior do que se o processamento inicial tiver sido fonológico. Estes investigadores contestaram a hipótese de que o processamento semântico é mais memorável do que o processamento fonológico, provando ainda que é preciso ter em conta o modo como a memória é testada ou avaliada quando se tenta prever as consequências de um nível de processamento seleccionado. Há assim uma transferência de um nível de processamento para um tipo apropriado de prova de memória, designando-se este fenómeno por transferência apropriada de processamento.
3.4.3 Retenção na MLP Ao longo da vida as pessoas adquirem grandes volumes de informação, mas esta informação tem pouca utilidade se não puder ser usada. A MLP é o repositório de toda a informação, que apesar de não estar a ser actualmente usada pode vir a sê-lo no futuro. Todas estas informações envolvem um certo grau de organização, sob pena de se tornarem inúteis em termos de uso e recordação. Esta organização ocorre ao longo do processo de aquisição e codificação, assim como ao longo do processo de recuperação. Para já vamos concentrarmo-nos no processo de aquisição. Quando a aquisição de novas informações se processam, o sistema cognitivo estabelece uma espécie de organização automática e implícita, nomeadamente em termos espaciais e temporais e provavelmente ainda em termos de agrado, ameaça e dor. Esta organização automática da informação por mais elementar que seja, pode ser suficiente para um organismo se orientar no seu meio ambiente, encontrar alimento e fugir dos predadores. No topo desta organização implícita, as pessoas são ainda capazes de organizar activamente a informação através de processos voluntários como a categorização, hierarquização e formação de imagens, cuja descrição é feita a seguir.
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3.4.3.1 Categorização e hierarquização A organização da informação-a-ser-evocada é fundamental para uma boa recordação futura. Quanto melhor for a organização da informação, melhor tende a ser o desempenho de memória. A organização da informação pode ser externa ou interna. A organização externa é imposta pelo meio de transmissão da informação, como o professor que antes de iniciar a aula apresenta o plano da aula, o livro que no início do capítulo refere os temas que vão ser abordados, ou o conferencista que apresenta um resumo no início da comunicação. A organização interna ou subjectiva é elaborada pela pessoa no acto de aprendizagem (e.g., Tulving, 1962). De facto a informação retida na memória orienta a organização de novas informações percebidas. Uma das primeiras investigações sobre os efeitos da organização na memória foi o estudo clássico realizado por Bousfield (1953). Este investigador apresentou uma lista de 60 palavras que incluíam 15 exemplares de quatro categorias diferentes: vegetais, animais, profissões e nomes. Embora a ordem de apresentação das palavras fosse completamente aleatória, os sujeitos evocaram as palavras no final agrupando-as segundo as categorias prévias numa percentagem maior por categoria do que seria de esperar pelo acaso. Cofer et al. (1966) compararam a evocação de uma lista de palavras acrescentando as categorias a que pertenciam, com a evocação da mesma lista sem as categorias incluídas. Apesar da primeira lista ter um número maior de palavras, a percentagem de evocação e o número de agrupamentos foi maior na evocação das palavras da primeira condição do que na segunda condição. Além da organização, o modo como a informação está hierarquizada tem um efeito bastante positivo. Bower et al (1969) apresentaram quatro slides de 28 palavras, num total de 112 palavras, tendo cada slide sido exposto durante 56 segundos. Metade dos sujeitos viram as 28 palavras de cada slide organizadas de forma hierárquica em termos de inclusão de classes, conforme a Tabela 3.1; A outra metade dos sujeitos viu as mesmas 28 palavras dispostas espacialmente em grupos, mas de forma aleatória. Os resultados do grupo que viu as palavras organizadas e hierarquizadas em termos de inclusão evocou mais do triplo das palavras no 1º ensaio e no 3º ensaio foi capaz de recordar todas as 112 palavras (73, 106, 112, 112). Em contraste, o grupo que viu as palavras sem organização hierárquica e inclusiva nem ao fim do 4º ensaio tinha atingido o nível de evocação que tinha sido atingido pelo outro grupo no primeiro ensaio (21, 39, 53, 70).
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Tabela 3.1 – Hierarquia de minerais apresentada na experiência de Bower et al. (1969).
MINERAIS METAIS
Raros
PEDRAS
Comuns
Ligas
Preciosas
Alvenaria
Platina
Alumínio
Bronze
Safira
Calcário
Prata
Cobre
Aço
Esmeralda
Granito
Ouro
Chumbo
Latão
Diamante
Mármore
Rubi
Ardósia
Ferro
Será que o benefício da organização da informação se situa ao nível da aquisição da informação ou ao nível da evocação? Afinal é ao nível dos protocolos de evocação que se observa se a organização teve ou não efeito. Vários estudos indicaram que a organização tem um efeito maior ao nível da aquisição.
Caixa 3.1 Texto apresentado na experiência de Bransford e Johnson (1972) A tarefa é bastante simples. Primeiro distribuem-se as partes em vários montes. É óbvio que se pode fazer apenas um monte, se o que houver para fazer for suficiente. Se não houver possibilidades em casa, o próximo passo é ir a um local apropriado. Se houver, é uma vantagem considerável. É bom não haver sobrecarga. Isto é, é preferível fazer poucas coisas mais vezes, do que muitas de uma vez só. Isto no princípio pode não parecer importante, mas podem surgir facilmente complicações. Por outro lado, um erro pode ficar bastante caro. No início o procedimento parece ser complicado, mas em breve passa a ser uma actividade rotineira. É difícil prever, no futuro imediato, um fim para a necessidade de realização desta tarefa, mas quem sabe o que o futuro nos reserva. Depois do procedimento ficar concluído, uma pessoa reparte as coisas pelos seus lugares respectivos. Muito provavelmente voltarão a ser usadas e todo o ciclo terá de ser repetido. No entanto isto faz parte da vida. Veja-se o tema do texto no final deste Capítulo.
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Hudson (1969) apresentou listas de palavras para evocar, pertencentes às categorias redondo (bola, queijo, balão, etc.) e branco (linho, neve, ovo, etc.). Os resultados de evocação foram melhores quando as categorias foram apresentadas no início da apresentação da lista do que no final da lista ter sido apresentada e antes da evocação ter lugar, provando assim que a identificação prévia das categorias facilitou o agrupamento das palavras durante o decorrer da apresentação. A importância da categorização prévia foi ainda comprovada numa outra experiência realizada por Bransford e Johnson (1972), onde foi apresentado, em vez de uma lista de palavras, um texto complexo e difícil, exposto na Caixa 3.1 a três Grupos de sujeitos: O 1º Grupo conhecia o tema do texto antes de o ler; O 2º Grupo foi informado do tema no final da leitura, mas antes da evocação ter lugar; O 3º Grupo (controlo) não foi informado nem antes nem depois da leitura do texto. Os resultados obtidos indicaram que o melhor desempenho foi obtido nos sujeitos do 1º Grupo, aqueles que puderam activar mais facilmente uma estrutura de conhecimentos existente, de forma a melhor interpretar e estruturar o significado do texto ouvido. O número médio de ideias recordadas foi para o 1º Grupo 5,8; para o 2º Grupo 2,7; e para o 3º Grupo 2,8.
3.4.3.2 Formação de imagens Além da organização, a formação de imagens (imagery, em inglês) é uma variável bastante eficaz para facilitar a retenção da informação de forma mais permanente na memória. A formação de imagens envolve a criação de uma imagem mental de objectos, seres e acontecimentos que não estão fisicamente presentes. As palavras não têm o mesmo grau de criação e produção de imagens. É mais fácil e rápido formar uma imagem mental de um cão ou de uma bola do que de liberdade ou inflação. A habilidade para formar imagens, se for devidamente treinada e apurada, pode permitir a obtenção de um desempenho elevado no domínio da memória humana. Estudos experimentais realizados por diversos investigadores revelaram de forma consistente uma superioridade do grupo de sujeitos instruídos a formar imagens interactivas e bizarras relativamente a outros grupos de sujeitos que seguem instruções diferentes destas. Bower (1970) realizou uma experiência para comparar os efeitos da formação de imagens na memória em relação a outras variáveis alternativas. Pares de palavras (por ex., cão-bicicleta) eram apresentadas a três grupos de sujeitos instruídos a formar imagens interactivas (por ex., um cão a guiar uma bicicleta), imagens separadas (por ex., criar uma 140
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imagem com um cão situado à esquerda e uma bicicleta à direita) ou a repetir várias vezes o par de palavras apresentado visualmente. Os resultados revelaram que o grau de evocação do grupo de imagens separadas foi quase metade (27%) do grau de retenção observado no grupo de imagens interactivas (53%) e praticamente semelhante ao grupo de repetição de palavras (30%). Estes resultados e replicações posteriores (Bower, 1972) demonstraram que a instrução para formar imagens interactivas, quando usada com habilidade, pode proporcionar um grau de retenção bastante mais elevado do que o obtido por outras estratégias alternativas. A criação e formação de imagens é um procedimento explorado sistematicamente por certas pessoas que revelam uma memória excepcional, os chamados mnemonistas. Um dos casos mais famosos foi o do mnemonista Shereshevskii (ou sujeito S.), descrito por Luria (1968), que era capaz de criar rapidamente uma imagem visual específica de números, cores, sons ou qualquer outro fenómeno que experimentasse. Além de vívidas e expressivas, as imagens formadas por Shereshevskii eram frequentemente bizarras e específicas e envolviam experiências sinestésicas de dois ou mais sentidos. Um dia Shereshevskii referiu-se à voz de Luria com a seguinte expressão: — “Que voz amarela e quebradiça, o Sr. Luria tem!” A eficácia das imagens em termos de memória é tanto maior quanto mais as imagens forem bizarras, interactivas e cómicas (cujas iniciais formam a sigla BIC). Formar uma imagem interactiva implica que os itens-a-recordar estejam intimamente relacionados; não basta uma simples relação, é preciso obter-se uma interacção profunda. Assim por exemplo, a associação entre as palavras Livro-Fontanário pode ser feita a diversos níveis em termos de imagens a formar. É possível imaginar: (1) Um livro pousado sobre a borda de um fontanário; (2) O cano do fontanário em formato de livro aberto; (3) O cano do fontanário parcialmente entupido com um livro preferido ou detestado por onde saem algumas gotas de água tingidas de tinta. Neste exemplo, o grau de interacção das duas palavras é provavelmente maior em (3) do que em (2) ou (1). O exagero da situação, assim como o aspecto excêntrico e bizarro da imagem, aumenta bastante o grau de singularidade e especificidade de um objecto tão frequente e familiar como é um livro. Às vezes os aspectos bizarros e interactivos da imagem geram o riso pelo ineditismo da situação, outras vezes é necessário distorcer exageradamente a imagem ou acentuar particularmente um dos aspectos para que surja o elemento cómico da situação, à maneira do caricaturista que distorce propositadamente elementos do rosto de uma personalidade pública. Formar imagens com estas características torna o processo de aquisição e codificação bastante mais elaborado, facilitando a retenção futura do par de itens verbais.
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Uma técnica de memorização, que explora intensamente a formação de imagens bizarras, interactivas e cómicas, é a mnemónica dos lugares, uma das melhores técnicas de apoio à memória humana até hoje inventadas. A mnemónica dos lugares consiste em primeiro lugar na selecção de um determinado número de lugares ao longo de um percurso. Em segundo lugar, o método dos lugares requer a formação de uma imagem mental entre o lugar seleccionado e a palavra, ideia ou acontecimento a memorizar. Por último, após ficar concluída a formação das diferentes imagens mentais entre lugares e palavras-amemorizar, é possível recordar mais tarde todas as palavras, ou a maior parte delas, percorrendo mentalmente cada lugar situado ao longo do percurso e extraindo desse lugar a palavra associada à imagem. Veja-se uma breve ilustração na Caixa 3.2 para 8 locais situados ao longo de um percurso bem conhecido na baixa da cidade do Porto. Na mnemónica dos lugares o percurso pode chegar a incluir dezenas de locais e edifícios, de preferência com funções específicas e diferenciadas.
Caixa 3.2 Ilustração da mnemónica dos lugares Locais do Porto
Itens-a-recordar
Imagem BIC
Estação S. Bento
Carta
(1)
Túnel da Pç Liberdade
Pintura
(2)
Multibanco
Mobília
Torre dos Clérigos
Vinho
Fontanário dos Leões
Doença
Quartel da GNR
Revista
Hospital de S. António
Bandeira
Museu Soares dos Reis
Café
(…)
(…)
(1) Imagem possível: “O comboio pára na estação, as portas das carruagens abrem-se e em vez de passageiros saem milhares de cartas que entopem a estação” (2) Imagem possível: “A pintura da Mona Lisa de Leonardo da Vinci flutua na água que inundou o túnel, está manchada e tem um sorriso apalhaçado!”.
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Numa experiência com a mnemónica dos lugares, Pinto (1991b, cap. 10) seleccionou um percurso com 36 locais, instruindo grupos de universitários a formarem imagens BIC entre cada local e 36 palavras diferentes. Os resultados médios obtidos ao longo de três ensaios foram respectivamente de 22, 27 e 29 palavras correctamente recordadas pela ordem de apresentação. A linha base inicial sem a aplicação da mnemónica dos lugares foi de 7 palavras. É de assinalar neste estudo que vários estudantes conseguiram evocar mais de 30 palavras, tendo alguns conseguido ainda evocar todas as 36 palavras apresentadas, um resultado considerado à partida inacreditável pelos próprios. A vantagem da mnemónica dos lugares reside no facto de que esta técnica utiliza mecanismos eficazes ao nível da aquisição da informação e mais tarde durante a fase de evocação. Durante a fase de aquisição estabelece-se uma imagem interactiva bastante vívida e singular entre o local e a palavra-a-evocar e como se viu anteriormente a formação de imagens proporciona um grau de retenção elevado. Por outro lado, durante a fase de recordação, restabelece-se o contexto de cada local percorrendo mentalmente a ordem dos lugares e activando em cada lugar a imagem anteriormente formada e extraindo daí a palavra associada. Verifica-se na mnemónica dos lugares, segundo a teoria da codificação específica de Tulving e Thomson (1973), uma correspondência total, ou pelo menos bastante elevada, entre a fase de aquisição e a fase de recuperação em termos de contexto ou indicadores usados. Este contexto refere-se naturalmente aos locais seleccionados ao longo do percurso para codificação e mentalmente percorridos no momento da evocação.
3.4.4 Recuperação da informação na MLP A experiência passada afecta o comportamento presente das mais diversas formas. A memória é o passado feito presente, mas não é a reprodução fiel e integral do passado. Há diferenças entre o que foi originalmente aprendido no passado e o que é recordado no presente. Esta diferença pode ser analisada de forma mais qualitativa a partir dos erros e distorções observadas no relato de episódios, ou de forma mais quantitativa, expressa em termos de média ou percentagem de recordação de listas de itens verbais. Os métodos para medir a memória ou grau de retenção são parcialmente diferentes, possuindo por consequência diferentes sensibilidades a respeito da medição da quantidade de informação retida. Os principais métodos, ou provas de memória, estudados são a evocação, o reconhecimento, a reaprendizagem e a reconstrução, cuja descrição breve será feita a seguir. © Universidade Aberta
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3.4.4.1 Provas de memória A evocação consiste na reprodução consciente e activa de uma lista de itens (palavras, sons, imagens, contos ou episódios). A prova de evocação pode ocorrer em condições de total liberdade em termos de ordem de recordação (evocação livre), em condições de recordação na ordem em que foram apresentados os itens (evocação seriada), ou ainda a partir de um elemento auxiliar (evocação auxiliada), como a primeira sílaba da palavra (ex., a sílaba “car —” da palavra “carbono”), ou o primeiro membro de um par de palavras previamente apresentadas (ex., o membro “vento” do par “vento-casa”). A evocação é um método de aplicação fácil, muito usado no sistema escolar em exames, mas é o menos sensível na avaliação da informação recordada, principalmente quando se usa a evocação livre. O reconhecimento é uma tomada de decisão sobre se um item apresentado se identifica e compara com uma representação na memória. É uma decisão pessoal, consciente e activa de se ter encontrado algo antes, por exemplo uma palavra, um objecto ou um rosto. Normalmente o reconhecimento é medido pedindo-se aos sujeitos para localizar ou identificar a resposta correcta num grupo de outras respostas alternativas, que podem variar em extensão e similaridade. Numa prova de reconhecimento o grau maior ou menor de dificuldade depende do número de alternativas e do grau de similaridade com a resposta correcta. Às vezes até pode ser mais difícil do que a evocação. Em comparação com a prova de evocação livre, o reconhecimento, quando usada numa situação escolar, é uma prova mais difícil de elaborar de forma correcta, mas bastante mais objectiva e rápida na avaliação dos resultados. A evocação e o reconhecimento são consideradas provas directas e explícitas de memória, porque requerem uma recordação consciente, intencional e deliberada dos itens ou acontecimentos previamente verificados. A evocação livre é a prova de memória em que o sujeito tem menos índices de ajuda (ou pistas) no acesso à informação, e a prova de reconhecimento é aquela em que a ajuda é maior através da reposição da informação original. A evocação exige mais atenção e recursos cognitivos do que o reconhecimento, porque envolve um menor apoio na busca e recuperação da informação. As provas que envolvem uma comparação entre evocação e reconhecimento revelam em geral que o desempenho na prova de reconhecimento situa-se normalmente por volta dos 80%, enquanto que o desempenho na prova de evocação situa-se na ordem dos 40-50%. O desempenho na prova de evocação auxiliada apresenta um valor intermédio entre o reconhecimento e a evocação livre (e.g., Tulving e Watkins, 1973; Brown, 1976). O estudo de Tulving e Watkins é uma boa ilustração.
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Tulving e Watkins (1973) apresentaram a um grupo de sujeitos uma lista de palavras, cada uma formada por cinco letras, tipo barco. A memória foi medida através de condições de ajuda que variavam em função do número de letras das palavras apresentadas durante a prova de memória e que ia de zero a cinco (por ex., -, b, ba, bar, barc, barco). As seis condições tipificavam num dos extremos uma prova de evocação livre (-) e no outro extremo uma prova de reconhecimento (barco), com as quatro restantes condições intermédias a representarem condições de evocação auxiliada. A percentagem de recordação variou entre 25% (evocação livre) e 85% (reconhecimento). Como o grau de aquisição foi idêntico em todas as condições, as diferenças de memória observadas ocorreram ao nível da recuperação e resultaram da ajuda crescente no número de pistas fornecidas. A reaprendizagem consiste em voltar a aprender algo que já fora aprendido antes. Ao efectuar-se uma reaprendizagem, aprende-se normalmente mais depressa do que da primeira vez. Há uma poupança em termos de tempo gasto ou do número de ensaios necessários para se obter o desempenho máximo atingido na primeira vez. A reaprendizagem foi o método quantitativo inventado por Ebbinghaus e já anteriormente referido. Em termos de revelação dos conhecimentos disponíveis na memória é um método muito mais sensível do que a evocação e o reconhecimento, principalmente para intervalos de tempo longos. Veja-se a Caixa 3.3. É no entanto um método moroso e pouco prático de aplicar, sendo esta a razão porque é preterido em relação aos métodos anteriores no sistema escolar. A completação ou reconstrução foi um método inicialmente usado em pessoas com desordens de memória (Warrington e Weiskrantz, 1968), mas que se revelou bastante popular nas últimas duas décadas, sendo usado com frequência quer com pacientes amnésicos quer com pessoas normais. Nesta prova os participantes inspeccionam, numa primeira fase, uma lista de palavras na ausência de instruções específicas para as memorizar (ex., grade) e depois são confrontados, numa segunda fase, com uma lista de radicais das palavras (ex., gra — ), referentes a palavras da lista inicial ou antiga e palavras novas, tendo por tarefa indicarem a primeira palavra que lhes vem à cabeça (ex., graça, grade, gralha?). Os resultados revelam que os sujeitos seleccionam e completam mais palavras da lista inicial (ex., grade) em relação ao que seria de esperar pelo acaso, revelando assim a presença do passado no desempenho presente, isto é, a memória de uma situação passada. Os sujeitos raramente têm consciência da opção feita por uma palavra da lista anterior, o que levou os investigadores a classificarem a prova de completação como uma prova de memória implícita.
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Caixa 3.3 Recordação do conhecimento escolar A prova de reaprendizagem de medição de memória de Ebbinghaus é uma boa simulação experimental da situação de retenção de conteúdos escolares a longo prazo. Quando um estudante aprende uma grande quantidade de conteúdos escolares nas diversas disciplinas que frequenta ao longo do sistema escolar, verifica-se que uma parte significativa desses conteúdos apenas estão acessíveis na altura do exame da disciplina, normalmente avaliada de acordo com uma prova de memória por evocação. Passados porém algumas semanas ou meses, a maior parte daquilo que foi aprendido numa disciplina escolar é inacessível à memória em termos de recordação consciente através da prova de evocação, a mais frequentemente usada, a menos que os respectivos conteúdos tenham sido integrados em disciplinas posteriores. No entanto, se o conhecimento anteriormente adquirido for expresso através do tempo de reaprendizagem da informação antiga, verifica-se com alguma surpresa uma aquisição rápida dos conteúdos que se julgavam esquecidos. A reaprendizagem revela a poupança retida, tornando acessível mais rapidamente o que estava inicialmente disponível mas era inacessível.
Esta prova tornou-se bastante popular nos meios de investigação a partir da descoberta, considerada bastante importante, de que as diferenças de desempenho eram diminutas entre jovens, idosos e pacientes amnésicos na prova de completação, em contraste com as diferenças observadas entre estes grupos em provas de evocação e reconhecimento, em que as diferenças eram bastante elevadas com prejuízo para os amnésicos (e.g., Graf e Schacter, 1985; Graf e Masson, 1993). Graf e Schacter (1985) descobriram que sujeitos amnésicos apresentavam um desempenho bastante inferior (4%) em provas de memória explícita (evocação) em relação aos sujeitos normais (65%), mas não apresentavam diferenças de maior (35 e 37%) nas provas de memória implícita de completação de radicais. O grupo de controlo, que não tinha visto inicialmente as palavras, apenas recordou 12%. A diferença significativa entre 12 e 35% é uma prova experimental de que os pacientes amnésicos são capazes de recordar informação recentemente apresentada. Afinal a informação da lista anterior estava retida e 146
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disponível, mas a via de acesso estava impedida ou não era a mais indicada quando a evocação foi usada. Prova-se assim que as dificuldades de memória devem-se fundamentalmente a problemas de recordação ou recuperação e não a problemas de aquisição, como à partida seria mais fácil de sugerir. Conta-se a este respeito que um dia o suíço Claparède cumprimentou uma das suas pacientes que sofriam de amnésia com uma pionaise escondida na mão. Nos dias seguintes, a paciente recusou-se a cumprimentar Claparède, mas não sabia explicar porquê. Apesar desta paciente não ter qualquer recordação consciente do facto passado, revelou uma memória da situação através da modificação do comportamento.
Caixa 3.4 Erros de reprodução de memória (Alves dos Santos, 1923) Crianças da 4ª classe (10-13 anos) leram o texto seguinte, tendo de efectuar no final uma reprodução imediata. Uma reprodução diferida foi pedida passados 8 dias: “Nesse dia caiu o governo; mas o nobre ministro dos Negócios Estrangeiros, ao descer as escadas do seu ministério, poderia dizer, com um alto espírito: “A história tem dias tristes, mas não tem dias estéreis”. Cumpri o meu dever; honrei o meu nome e o da minha Pátria; a posteridade me vingará ...” Reproduções das crianças: “Nesse dia caiu o governo; mas o nobre dos negócios Estrangeiros ao descer as escadas poderia dizer com um alto espirito honrai o meu nome e o da minha patria. A prosperidade me vingará.” — João, 13 anos, Rep. imediata. “Nesse dia caiu o governo do nobre ministro o ministério caiu nas escadas a história tem dias estereis e bom para a patria para a alma.” — Júlio, 10 anos, Rep. imediata. “Mas o nobre ministerio do Estrangeiro ao descer as escadas dize a historia tem dias tristes mas não tem dias esteres honrai o meu nome e o da minha patria.” — João, 13 anos, Rep. diferida. “Nesse dia caiu o governo; mas ao descer as escadas do seu governo Estrangeiro disse em altos gritos. A historia tem dias falsos, mas não tem dias estereis. Cumpri o meu dever, honrei o meu nome e o da minha patria.” — António, 10 anos, Rep diferida.
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Schacter (1987) propôs a classificação das provas de memória em duas categorias: Métodos explícitos e métodos implícitos. Os métodos explícitos são constituídos pelas provas de evocação e reconhecimento e requeriam uma recordação consciente das experiências passadas. Os métodos implícitos são constituídos por diversas provas que não envolvem uma recordação consciente, de que se destacam as seguintes: A prova de completação de radicais (ex., gra —) ou fragmentos (ex., -ra-e), reconstrução de pares de palavras ou gravuras, a reaprendizagem e a identificação de palavras apresentadas rapidamente ou de forma degradada. Em contraste com os métodos quantitativos precedentes, é de salientar o uso de métodos ou provas de análise qualitativa. Bartlett (1932) é conhecido por toda a comunidade científica de memória por ter efectuado uma análise qualitativa das recordações de um conto índio, intitulado A Guerra dos Fantasmas, anteriormente citado. Antes de Bartlett (1932) há um estudo anterior de análise qualitativa de memória realizado pelo português Alves dos Santos (1923). Alves dos Santos estudou a reprodução imediata e diferida de um pequeno texto por parte de crianças da 4ª classe depois de o terem lido e estudado. São consideráveis os erros de reprodução expressos em termos de modificações, distorções e acrescentos, conforme se pode verificar pela Caixa 3.4. Mais recentemente Neisser (1982) usou também o método da reprodução repetida num estudo sobre o depoimento de John Dean no caso Watergate. Este alto funcionário do governo do Presidente Nixon dos EUA foi apelidado O Gravador Humano pelos jornalistas devido à capacidade assombrosa para relatar episódios com alto grau de pormenor passados alguns meses antes na sala oval da Casa Branca. Quando o depoimento de Dean foi conferido com as gravações secretas efectuadas por Nixon e mais tarde tornadas públicas, verificou-se que o depoimento d’O Gravador Humano, embora “essencialmente correcto, não era literalmente fiel em nenhuma ocasião” (Neisser, 1982, ob. cit. p. 158). Como facilmente se deduz, a análise qualitativa da memória tem implicações importantes para a avaliação da veracidade e fidelidade de testemunhos proferidos num contexto judicial.
3.5
O problema do esquecimento
A capacidade e duração da informação na memória humana é bastante elevada, mas a nossa experiência diária confirma a omnipresença do esquecimento, às vezes, em situações bastante embaraçosas como em exames ou num encontro inesperado com um amigo que já não se via há vários anos. O esquecimento é a prova diária de que a nossa memória é falível. Na maior parte dos casos 148
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ocorre em condições normais e previsíveis, pode mesmo ser benéfico e só em casos raros é que se torna um fenómeno incapacitante. A recordação está intimamente associada à organização inicial dos materiais para acesso futuro, isto é, ao modo como a informação foi inicialmente percebida e codificada, organizada e ao modo como esta codificação e organização estão acessíveis. Repare-se no que seria a busca de um livro numa biblioteca central se não se tivesse acesso ao ficheiro. A busca do livro pretendido dificilmente seria conseguida. O esquecimento é a dificuldade de recordar a informação no momento mais adequado. O esquecimento pode ser definitivo, devido à deterioração completa do traço de memória. Neste caso fala-se de esquecimento dependente do traço. Ou pode ser temporário, devido à ausência de um indicador, pista ou fragmento de informação que possa conduzir ao traço de memória retido. Neste caso fala-se de esquecimento dependente do indicador ou pista, já que a informação está disponível, mas não é imediatamente acessível (Tulving e Pearlstone, 1966). Historicamente foram propostas diferentes teorias e explicações sobre a natureza do esquecimento, como as teorias do desuso, interferência, incongruência contextual e recalcamento, que serão analisadas a seguir.
3.5.1 Teoria do desuso A teoria do desuso, conhecida também por teoria do declínio temporal do traço de memória, afirma que o esquecimento depende da falta de uso durante o período de permanência da informação na memória. Assim a informação na memória é tanto mais robusta quanto mais recentemente tiver sido apresentada e tanto mais débil quanto maior for o tempo sem uso na memória. A repetição é o processo que facilita a conservação do traço de memória. Se a repetição for suspensa, o traço de memória começa a enfraquecer e a deteriorar-se. A teoria do desuso é uma explicação intuitiva e popular do esquecimento, ouvindo-se às vezes dizer a propósito “com o tempo acaba-se por esquecer”. Apesar do apelo alcançado nos meios não-científicos, esta teoria não tem conseguido obter a confirmação ou rejeição experimental. A principal razão deve-se ao facto de ser praticamente impossível eliminar todas as possíveis fontes de interferência numa situação experimental. Imagine-se que se pretende demonstrar que os traços de memória das palavras de uma lista enfraquecem com o tempo e esta debilidade é maior passadas 10 horas do que passada uma hora. Para o efeito a pessoa A aprende uma lista e após um intervalo de retenção de 10 horas é sujeita a uma prova de memória; na pessoa B, o intervalo de retenção é de 1 hora. Para se estar certo de que o esquecimento foi devido ao © Universidade Aberta
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decurso do tempo (A esquece mais do que B) e não à interferência retroactiva, é preciso evitar que as pessoas aprendam algo durante o intervalo de retenção. Uma solução seria pôr o sujeito a dormir, mas mesmo neste caso a solução não eliminaria a possibilidade de uma certa aprendizagem ocorrer na fase de adormecer, ao acordar ou até em sonhos. E mesmo que se conseguisse eliminar toda a aprendizagem durante o intervalo de retenção, não seria ainda possível atribuir o esquecimento ao decurso do tempo. O esquecimento poderia ser o resultado da interferência proactiva, já que todas as outras experiências prévias do sujeito constituem fontes de interferência proactiva. A realização de uma experiência para avaliar de forma inegável os efeitos do tempo parece ser impossível. Houve no entanto algumas tentativas experimentais para se avaliar os efeitos do tempo no grau de retenção. Conrad e Hille (1957) variaram sistematicamente o ritmo de apresentação de listas de itens. De acordo com a teoria do desuso, ritmos de apresentação rápidos favoreciam a evocação, porque o intervalo de tempo entre a duração média de apresentação e o início da evocação é menor do que para ritmos de apresentação mais longos. Os resultados indicaram que a condição de apresentação mais rápida produziu uma melhoria de cerca de 10% na percentagem de evocações correctas. Pinto e Baddeley (1991) analisaram a memória espacial para o local de estacionamento do carro dos participantes na experiência, após intervalos de retenção de 2 horas, uma semana e um mês, tendo verificado que a percentagem de evocações correctas nestes três intervalos de retenção foi de 72, 73 e 72% respectivamente. Estes resultados indicaram que o intervalo de tempo não teve efeito no grau de retenção e que o estacionamento noutros locais, anteriores ao teste ou nos intervalos de retenção de uma semana e um mês, não interferiu no grau de evocação. No entanto, noutra experiência realizada a seguir, o desempenho de memória baixou de 72% para cerca de 40%, quando os participantes estacionaram no mesmo parque em duas alturas diferentes durante o intervalo de um mês. Estes resultados sugerem que o factor interferência é responsável pela diminuição de 72% para cerca de 40% na segunda experiência, mas fica por explicar a diminuição de 100% para 72% ao fim de 2 horas na primeira experiência! Terá sido o decurso do tempo? É difícil saber. Pinto e Baddeley (1991) sugerem em alternativa a hipótese de discriminação temporal para explicar a dificuldade de recordação de acontecimentos passados. Esta hipótese é melhor compreendida a partir da analogia da recordação com a percepção e discriminação de dois postes telefónicos adjacentes numa longa fila de postes a perder-se de vista no horizonte. Embora o intervalo entre os postes seja o mesmo, postes adjacentes mais próximos do observador são melhor discriminados do que postes mais afastados. 150
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3.5.2 Teoria da interferência Uma das teorias mais importantes do esquecimento na memória é a interferência, quer sob a forma retroactiva quer proactiva. A interferência retroactiva foi inicialmente estudada por McGeoch (1932), enquanto que a interferência proactiva foi descoberta bastante mais tarde por Greenberg e Underwood (1950). A teoria da interferência afirma que o esquecimento é o resultado da competição entre diferentes memórias. À medida que a quantidade de informação retida na memória aumenta passa a ser mais difícil identificar e localizar um determinado item. A interferência retroactiva ocorre quando a evocação (EA) de uma lista de palavras (A) é afectada negativamente pela aprendizagem posterior de outra lista semelhante (B). O procedimento clássico para investigar a interferência retroactiva recorre à comparação do desempenho entre dois grupos: Grupo experimental: (A, B, EA); Grupo de controlo: (A, —, EA). McGeoch e MacDonald (1931) investigaram a interferência retroactiva nesta experiência clássica: Numa 1ª fase os sujeitos aprenderam uma lista de 10 palavras a um critério de 100%. Durante o intervalo de retenção de 10 minutos que se seguiu, os sujeitos foram divididos em 6 grupos, tendo 5 aprendido uma lista B diferente: O 1º grupo fez uma 2ª aprendizagem de uma lista de dígitos; O 2º grupo aprendeu uma lista de sílabas-sem-significado; O 3º grupo aprendeu uma lista de palavras-não-relacionadas; O 4º grupo aprendeu uma lista de palavras antónimas; O 5º grupo aprendeu uma lista de palavras sinónimas; O 6º grupo, grupo de controlo, não fez nada e ficou a descansar. Dez minutos após a aprendizagem inicial, os sujeitos foram solicitados a evocar (EA) o maior número de palavras da lista inicial A. O número médio de palavras evocadas em cada um dos grupos está representado na Figura 3.5. Estes resultados indicam que quanto maior for o grau de similaridade em termos de significado entre a lista intermediária B e a lista-a-ser-evocada A, maior é a interferência retroactiva e por conseguinte menor é o grau de evocação. O número médio de palavras evocadas em cada um dos grupos está representado na Figura 3.5. Estes resultados indicam que quanto maior for o grau de similaridade em termos de significado entre a lista intermédia B e a lista-a-ser-evocada A, maior é a interferência retroactiva e por conseguinte menor é o grau de evocação. A interferência proactiva ocorre quando a evocação (EB) de uma lista de palavras (B) é afectada negativamente pela aprendizagem prévia de outra lista semelhante (A). O procedimento clássico para investigar a interferência proactiva recorre à comparação do desempenho entre dois grupos: Grupo experimental: (A, B, EB); Grupo de controlo: (—, B, EB). © Universidade Aberta
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Figura 3.5 - Número médio de palavras correctamente evocadas de uma lista inicial em função da aprendizagem efectuada numa lista intermédia. Ilustração da experiência de McGeoch e MacDonald (1931).
Os efeitos da interferência proactiva foram demonstrados por Greenberg e Underwood (1950) numa experiência clássica importante. Na primeira sessão, um grupo de sujeitos aprendeu uma lista de 10 palavras segundo um critério de 100%. Esta 1ª lista foi evocada na 2ª sessão após um intervalo de retenção de 10 minutos. No final da 2ª sessão, e após os sujeitos terem evocado a lista 1, foram solicitados a aprender uma 2ª lista. Na 3ª sessão, iniciada 10 minutos depois, evocavam a lista 2 e aprendiam uma 3ª lista. Na 4ª sessão, iniciada 10 minutos depois, evocavam a lista 3 e aprendiam a 4ª lista. Finalmente na 5ª sessão evocavam apenas a lista 4. Ao todo os sujeitos aprenderam 4 listas e evocaram as palavras da última lista anteriormente aprendida após um dos 3 intervalos de retenção seguintes: (a) 10 minutos depois, como no caso do grupo anteriormente descrito, (b) 5 horas depois e (c) 48 horas depois, como aconteceu aos grupos dois e três. Os resultados obtidos estão expostos na Figura 3.6 e indicam o número de palavras correctamente evocadas em função, quer do número de listas, quer do intervalo de retenção. Os resultados revelam que a interferência proactiva aumenta com o número de listas previamente aprendidas, mas este efeito ocorre principalmente com intervalos de retenção mais longos. A interferência proactiva é assim uma função quer do número de listas anteriormente aprendidas quer do valor do intervalo de retenção. É muito importante notar que o perfil destes resultados é uma função de recordação (recuperação ou de memória) e não de aquisição (ou de aprendizagem), já que as listas foram inicialmente aprendidas segundo um critério de 100%. Segundo Underwood (1957) a interferência proactiva seria, dos dois tipos de interferência, a mais importante. 152
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Figura 3.6 - Número médio de palavras correctamente evocadas de uma lista em função quer do número de listas previamente aprendidas quer de 3 intervalos de retenção. Ilustração da experiência de Greenberg e Underwood (1950).
A interferência, enquanto teoria geral do esquecimento na memória, enfrenta algumas dificuldades. Numa experiência, Tulving (1967) apresentou uma lista de palavras (A) e depois requereu três ensaios de evocação (E) seguidos (AEEE). O número de palavras recordadas em cada uma das provas de evocação permaneceu constante, mas as palavras recordadas não foram sempre as mesmas. Apenas metade das palavras da lista foram recordadas em todos os três ensaios, enquanto que a outra metade às vezes era recordada, outras vezes não. Houve palavras que não foram recordadas no primeiro ensaio e passaram a sê-lo no segundo ou terceiro ensaios. Estes resultados não podem ser explicados satisfatoriamente, nem pela teoria da interferência, nem pela teoria do desuso. Não se explica pela teoria da interferência, porque se a interferência actua no 1º ensaio produzindo uma “desaprendizagem” ou competição inibidora entre as palavras, não pode deixar de actuar também no 2º e 3º ensaios. Nem se explica pelo desuso, porque o 3º ensaio de evocação está mais afastado do final da aprendizagem do que o 1º ensaio. O português Sílvio Lima (1928) já tinha observado este fenómeno que designou por “instabilidade do esquecido” (vide Sílvio Lima, 1928, p. 130). Para melhor caracterizar esta “instabilidade do esquecido” Sílvio Lima usou até uma quadra popular: “O que agora me lembra/ pode daqui a instantes esquecer-me/ como o que agora me esquece/ pode daqui a instantes lembrar-me”. O esquecimento
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é um processo instável e ocorre principalmente ao nível da fase de recuperação, como tenta provar o modelo explicativo seguinte.
3.5.3 Incongruência contextual É opinião corrente que o esquecimento no dia a dia depende do modo como a informação foi adquirida. Se uma pessoa estiver atenta ou se o aluno prestar atenção, então não há esquecimento. Isto é uma meia-verdade, porque a codificação ou aquisição não é suficiente se não se tiver em conta a fase de evocação. A informação pode estar disponível na memória, mas o acesso estar transitoriamente impedido. A dificuldade de acesso deve-se à ausência de um indicador ou pista adequada. Segundo Tulving (1983) o acesso à informação armazenada é dirigido por meio de pistas de recuperação ou indicadores, que podem revestir elementos de significado das palavras, elementos ambientais ou ainda elementos orgânicos e emocionais. Tais indicadores seriam codificados com os itens-a-ser-recordados na altura da aquisição, e posteriormente, quando a recordação viesse a ocorrer, serviriam para indicar a “via de acesso” à informação retida na memória. Tulving e colaboradores (e.g., Tulving e Thomson, 1973) defenderam a posição de que nenhum indicador, pista ou contexto, independentemente do maior ou menor grau de associação com o item-a-ser-recordado, poderia facilitar maximamente a evocação desse item, a menos que tivesse estado presente na fase da codificação. Assim na evocação da palavra FRIO no contexto «FRIOterra», a pista mais indicada para aceder à palavra FRIO será terra e não a palavra quente — apesar do par quente-frio ter um grau de associação elevada — porque na altura da codificação, a palavra FRIO foi codificada e percebida em associação com terra e não com a palavra quente. No seguimento de uma série de experiências realizadas por Tulving e colaboradores, Tulving e Thomson (1973) formularam o princípio da codificação específica, que teria por base os seguintes postulados: • O modo como os itens são percebidos afecta o modo como são retidos ou armazenados. • Os indicadores seleccionados na altura da codificação determinam o tipo de indicadores que facilitarão o acesso à informação retida. • Quanto maior for a concordância entre os indicadores usados na fase de codificação e na fase de recuperação, melhores serão os resultados obtidos. 154
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O princípio de codificação específica defende que uma pista só é maximamente eficaz na recuperação da informação, se tiver sido usada na altura da apresentação na codificação dos itens. Por outras palavras, uma pista só é eficaz em termos de recordação se tiver sido percebida no contexto de aquisição. A representação da informação na memória é assim o resultado da interacção entre aquisição e recuperação. Deste modo, a maior parte do esquecimento a que estamos habitualmente sujeitos é um esquecimento dependente da pista ou indicador, devido ao uso de pistas inadequadas. As demonstrações experimentais do princípio da codificação específica envolvem um plano factorial 2 x 2, em que são usadas duas condições de codificação “AB” que covariam com duas condições de evocação “ab”. O princípio da codificação específica prevê que o desempenho será melhor nas condições “Aa” e “Bb” em que há uma concordância de índices e pistas contextuais, do que nas condições “Ab” e “Ba” em que a concordância está ausente ou é menor. Esta previsão foi verificada num contexto verbal por Tulving e Osler (1968) quando observaram que o desempenho era superior nas condições em que os indicadores estavam presentes na fase de codificação e na fase de evocação (por ex., o indicador “gordo” para aceder à palavra-aevocar CARNEIRO) do que nas condições em que o indicador estava apenas presente numa das fases. Os resultados desta experiência estão expostos na Figura 3.7, onde se verifica que o desempenho mais elevado ocorre nas condições congruentes.
Figura 3.7 - Número médio de palavras correctamente evocadas em função da presença ou ausência de indicadores nas fases de codificação e de evocação. Ilustração da experiência de Tulving e Osler (1968).
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Num contexto ambiental, Godden e Baddeley (1975) verificaram que a evocação de listas de palavras por parte de mergulhadores era melhor sempre que se verificava uma concordância de contexto físico entre as fases de apresentação e de evocação (por ex., “terra-terra” ou “mar-mar”) relativamente às condições em que havia discordância (“terra-mar” ou “mar-terra”). Por exemplo, a visita feita umas décadas depois à escola primária ou à casa onde se viveu na infância pode desencadear uma série de recordações de episódios passados e até a lembrança de alguns nomes de colegas e professores que se julgavam completamente esquecidos. Esta situação designa-se por esquecimento dependente do contexto. Num contexto orgânico, Eich et al. (1975) verificaram que a evocação de uma lista de palavras era melhor evocada quando o estado orgânico era similar na fase de codificação e de evocação (por ex., “sóbrio-sóbrio” ou “tóxico-tóxico”) em relação às condições incongruentes. Verificou-se ainda que a memória é afectada pelo contexto ou estado emocional. Bower, Monteiro e Gilligan (1978) usaram a hipnose para induzir estados e disposições alegres ou tristes. Obtido o estado emocional pretendido, apresentou-se aos sujeitos duas listas de palavras que mais tarde evocaram num contexto emocionalmente congruente com o contexto inicial ou num contexto divergente. Os resultados indicaram um grau de evocação maior quando houve concordância entre o estado emocional na fase de aquisição e na fase de evocação do que nas fases de contexto emocional divergente. Este fenómeno designa-se por esquecimento dependente do estado. O conjunto destes estudos e outros similares revela um apoio significativo para o princípio de codificação específica e para o papel dos factores de recordação e recuperação no esquecimento e memória, apoiando a mudança progressiva da ênfase posta apenas na fase de codificação e nos diversos tipos de processamento envolvidos, para passar a ressaltar a interacção entre as fases de codificação e de recuperação.
3.5.4 Recalcamento Freud sugeriu que o esquecimento era motivado, isto é, os sujeitos reprimiam aquelas ideias ou pensamentos que pareciam ameaçadores e perturbadores e transferiam-nos da consciência para o inconsciente de forma a sentirem-se melhor protegidos. Assim o inconsciente seria constituído em grande parte por memórias recalcadas, que continuavam a exercer os seus efeitos de forma indirecta através de tiques e aversões, apesar de não se ter consciência de tal. 156
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Este tipo de comportamentos é também conhecido actualmente por memórias orgânicas. Freud referiu várias situações deste tipo na sua importante obra Psicopatologia da Vida Quotidiana (Freud, 1901/1960). Segundo Freud o acesso a este tipo de memórias inconscientes apenas era possível através da psicanálise. Os casos de esquecimento total para acontecimentos específicos ocorrem em diversos períodos da vida. Christianson e Nilsson (1984) descreveram o caso de uma amnésia funcional, de que foi vítima CM, depois desta ter sido assaltada e violada no decurso de um exercício de jogging em Estocolmo. Quando CM foi encontrada, não sabia quem era nem o que lhe tinha acontecido. A amnésia funcional de CM durou quatro meses até ao dia em que recomeçou as corridas de jogging e passou pelo local do assalto, que provavelmente lhe trouxe à memória a recordação do acontecimento sofrido. Noutro contexto verificouse que os autores de crimes violentos referem muitas vezes em tribunal não ter qualquer memória do que se passou. Embora este esquecimento possa ser nuns casos uma tentativa de fingimento, noutros representa um recalcamento efectivo do crime causado pelo trauma do acontecimento. O problema com a teoria do recalcamento é a dificuldade em obter provas a favor, a partir de situações experimentalmente controladas, apesar das “provas” clínicas apresentadas por Freud e pelos seus seguidores. Esta teoria apresenta uma explicação plausível para o esquecimento das experiências pessoais traumáticas e desagradáveis — que devido à sua natureza ameaçadora são recalcadas ou geram fugas e dissociações — mas tem grandes dificuldades em explicar o esquecimento das experiências pessoais agradáveis da infância e adolescência. Por outro lado, a teoria do recalcamento não explica porque é que o esquecimento aumenta com o intervalo de tempo. A teoria do recalcamento foi objecto de grande atenção na década de 90 devido a notícias nos meios de comunicação sobre adultos que recordaram durante o processo terapêutico situações traumáticas de abuso sexual por parte de familiares ou situações em que foram vítimas de cultos satânicos durante a primeira infância. Algumas destas memórias revelaram-se verdadeiras, mas outras foram construídas pelas pacientes a partir de sugestões e interpretações terapêuticas. É significativo a este respeito o estudo de Williams (1994). Esta investigadora entrevistou 128 mulheres que tinham sido levadas à urgência hospitalar antes dos 12 anos por razões de abuso sexual. A entrevista ocorreu 17 anos depois do registo hospitalar e verificou-se que 38% não tinham qualquer memória sobre o episódio hospitalar (ou não quiseram recordá-lo!). Pode dizerse que 38% significa recalcamento inconsciente na perspectiva freudiana, mas também pode inversamente afirmar-se que 62% foram capazes de recordar o passado de forma consciente.
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Sendo as experiências agradáveis e desagradáveis objecto de esquecimento, uma explicação alternativa para a menor recordação de memórias desagradáveis pode dever-se à menor frequência repetitiva. É possível que as pessoas tenham uma maior tendência a seleccionar, recordar e comunicar acontecimentos agradáveis da vida do que insucessos e acontecimentos desagradáveis. A lembrança, repetição e reprodução frequente de recordações agradáveis permite uma maior contextualização, consolidação e rapidez de acesso, principalmente quando a pessoa se encontra num estado emocional congruente.
3.5.5 Esquecer é recordar O esquecimento também é benéfico. Numa perspectiva clínica, o esquecimento é um mecanismo cognitivo com grande poder terapêutico e curativo, principalmente quando é capaz de varrer da nossa mente certas memórias amargas e penosas, por vezes traumáticas, que peregrinam as noites de pesadelo em pesadelo. O esquecimento não é necessariamente um sinal de que a memória é um sistema defeituoso ou imperfeito. Pelo contrário, importa ver o esquecimento de forma positiva como um mecanismo importante de libertação de informações irrelevantes e triviais. Jorge Luis Borges (1942/1998) conta a história Funes ou a Memória, um personagem de ficção que memorizava tudo: “Disse-me: «Mais recordações tenho eu sozinho do que devem ter tido todos os homens desde que o mundo é mundo»” (op. cit. p. 507) e mais adiante “Funes não só se lembrava de cada folha de cada árvore de cada monte, como também de cada uma das vezes que a tinha notado ou imaginado” (p. 507-8). Mas Funes paga um preço elevado por esta capacidade de memória. A mente de Funes estava tão abarrotada de pormenores imediatos que era incapaz de generalizar de uma experiência para outra. Anos mais tarde, o neuro-psicólogo russo Luria (1968) publicou o caso verídico de Shereshevskii (ou S.), um jornalista com uma memória excepcional, que tinha o problema de não ser capaz de esquecer. Shereshevskii tinha a memória tão sobrecarregado de inúmeros pormenores que lhe era quase impossível ler livros ou pensar em termos abstractos. Borges (1942/1998) tinha razão ao afirmar neste contexto que “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair” (o. cit., p. 508). Esquecendo, a mente humana não só se liberta de inúmeras futilidades diariamente adquiridas, mas também reserva espaço para conservar aquilo que realmente importa recordar. E o que importa realmente recordar no dia a dia pode ser conseguido através da repetição, compreensão, organização e 158
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integração da informação, formação de imagens e contextualização, entre outros processos cognitivos.
3.6
Recordação e reconstrução
A recordação do passado nem sempre é imediata e directa. Muitas vezes é uma busca dinâmica pela melhor interpretação, que pode ser a que parece mais lógica ou a que nos é mais favorável. Para começar pode-se afirmar que a informação adquirida é modificada até certo ponto pelo receptor da mesma. De facto o aparelho sensorial humano está preparado para captar uma banda limitada de informações sensoriais em contraste com outros seres vivos que são capazes de captar informações externas mais extensas. Em psicologia cognitiva há uma distinção importante e clarificadora entre processamento ascendente e processamento descendente. O processamento ascendente é um processamento que começa na análise da informação captada pelos órgãos sensoriais e sobe progressivamente até níveis de análise cada vez mais complexos. A percepção é directa no sentido de que a informação é directamente extraída da “matriz sensorial” sem recurso a esquemas e representações intermédias. O processamento descendente parte do conhecimento e expectativas que uma pessoa tem sobre o modo como este ou aquele objecto se parecem, influenciando a sua identificação. O conhecimento de que somos portadores, as estratégias, as expectativas, a experiência passada e os nossos interesses influenciam o modo como uma pessoa interpreta os estímulos sensoriais recebidos. A ênfase nos processos activos do sujeito, que reflecte a predominância crescente da perspectiva cognitiva na investigação psicológica, faz ressaltar o papel fundamental do aparelho cognitivo humano na percepção e organização do conhecimento. Para os construtivistas, a percepção é indirecta, inferencial e construtiva. A percepção é algo mais do que o registo directo das sensações, já que entre a estimulação e a experiência perceptiva intervêm outros acontecimentos, como a atenção, a memória das experiências passadas, a capacidade de raciocínio, as necessidades orgânicas e sociais, os estereótipos e representações da realidade social. A percepção e a memória são selectivas, porque em cada momento apenas percebemos e compreendemos uma parte da estimulação sensorial. Na literatura científica da memória há bastantes estudos que demonstraram o papel selectivo e construtivo da memória. Alguns destes estudos, considerados clássicos, são referidos a seguir.
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A tendência das pessoas para reconstruir os acontecimentos passados que presenciaram foi apoiada a partir do famoso estudo de Loftus e Palmer (1974). Estes investigadores apresentaram a um grupo de sujeitos um filme que descrevia um desastre automóvel, fazendo no final diversas perguntas sobre o que tinham observado. Uma das perguntas cruciais era: — “A que velocidade circulavam os carros quando se esmagaram um contra o outro?” A estimativa média foi de 65,6 Km/h. No entanto quando o verbo esmagar foi substituído pelos verbos colidir, a média foi de 63,2 Km/h; pelo verbo chocar foi 61,3 Km/h; pelo verbo embater foi 54,7 Km/h e pelo verbo tocar foi 51,2 Km/h. Uma semana mais tarde, os sujeitos da experiência anterior foram novamente convidados a responder a várias perguntas sobre o acidente, a mais importante das quais foi: — “No acidente filmado viu no chão algum vidro partido?” O número de sujeitos que afirmou ter visto vidro partido estava directamente relacionado com as velocidades previamente sugeridas pelos verbos usados. Assim o número de respostas afirmativas para os sujeitos a quem foram apresentados o verbo esmagar foi de 32%; embater - 14% e o grupo de controlo que não recebeu nenhuma pergunta sobre velocidade na semana anterior foi de 12%. De facto não tinha sido exposto no filme nenhum vidro partido. Loftus e Palmer concluiram que a inclusão de informação suplementar após a percepção do acontecimento — neste caso a informação de que os carros se esmagaram um contra o outro — produziu uma alteração na memória dos sujeitos de modo a ficar em conformidade com a situação sugerida pelo verbo esmagar. Quando os carros se esmagam um contra o outro, no raciocínio de alguns dos participantes, é bem provável que apareça no chão vidro partido. Esta investigação ajudou a provar que a memória humana não se limita apenas a um registo fiel dos factos ocorridos. Há registos ou memórias que são simplesmente o resultado de processos dedutivos, originados, quer por perguntas capciosas ou indutoras, quer por informações circunstancialmente obtidas durante o intervalo ocorrido entre o acontecimento original e o momento de recordação ou altura de se prestar declarações. Do ponto de vista teórico, põe-se uma questão importante: Será que a memória do acidente foi preservada na sua configuração original e em seguida reconstruída a partir da informação suplementar veiculada pelos diferentes tipos de verbos? Por outras palavras, será que os dois acontecimentos ficaram registados e coexistem lado a lado, ou será que o primeiro registo foi alterado permanentemente não sendo mais possível ter-se acesso à memória original? A resposta a esta questão é difícil e controversa, havendo investigadores que defendem que a memória original foi permanentemente alterada (e.g., Loftus, 1983) e outros que afirmam que é possível recuperar a integridade da memória original (e.g., Bekerian e Bowers, 1983). Esta recuperação integral aconteceria 160
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nomeadamente quando a série de perguntas feitas acompanha a sequência dos acontecimentos inicialmente observados, restabelecendo-se desta forma o contexto original de aquisição dos acontecimentos. Em apoio da hipótese da integridade das memórias originais vale a pena citar o estudo do português Sílvio Lima (1928) sobre uma prova de reconhecimento de postais ilustrados. A prova consistiu na apresentação, durante 45 segundos, de um postal colorido retratando uma cena rural a um grupo de 7 crianças de 9 e 10 anos. No postal viam-se ao centro três vacas sobre a erva, duas a pastar e a outra a olhar para a direita. À esquerda está uma rapariga que veste boné branco, blusa branca e saia vermelha e segura na mão esquerda um recipiente para recolha do leite. A mão direita está livre. À esquerda e ao fundo vê-se a casa da herdade; À direita avista-se o mar. Ainda ao centro e à frente existe uma pequena poça de água cercada de flores brancas. Terminado o tempo de observação do postal, as crianças foram solicitadas a responder a provas de evocação e de reconhecimento ao longo de três sessões, tendo as crianças realizado as seguintes provas: • Descrição espontânea da cena rural. • Resposta a um interrogatório com perguntas capciosas ou indutoras a fim de se deformar a imagem-lembrança: Por ex., “Qual a cor da saia da rapariga? Tens a certeza de que não era azul?” • Reconhecimento, por último, do postal original no meio de quatro outros postais distractores que retratavam cenas rurais similares. Os resultados indicaram uma deformação quase total da informação do postal após a 3ª sessão. Assim se no campo estavam 3 vacas passaram a existir 4 para todas as 7 crianças; Se a rapariga vestia saia vermelha, a saia passou a ser azul para 6 crianças; Se a rapariga estava situada à esquerda passou a situar-se à direita para 5 crianças. Todas as crianças aceitaram ainda que a casa da herdade estava situada à direita e que as vacas estavam com os pés na água. Verificouse ainda a inclusão por parte de 6 crianças de elementos não existentes, como por exemplo a presença de uma verdasca na mão direita da rapariga para guiar as vacas. Estes resultados revelaram que os interrogatórios conseguiram “deformar o conteúdo representativo e primitivo da imagem por meio da adição de pormenores, transferências cromáticas e transposições topográficas” (o. cit., p. 179). No entanto estas deformações não apagaram a memória original porque na 3ª sessão, quando o postal original foi apresentado com mais outros 4 postais distractores, todas as crianças reconheceram correctamente o postal inicial original (o. cit., p. 183). Isto significa que a memória do postal original foi © Universidade Aberta
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preservada e coexistiu temporalmente com as memórias deformadas produzidas pelas informações dos interrogatórios, não tendo estas últimas sido capazes de alterar permanentemente a memória do postal original (e.g., Pinto, 1993). Os resultados dos estudos anteriores originam a seguinte questão: Será que as alterações de memória ocorrem ao nível da codificação ou ao nível da recuperação? Os resultados de Sílvio Lima (1928) sugerem que o efeito ocorre ao nível da recuperação, porque as crianças são capazes de reconhecer correctamente o postal original, apesar dos erros de evocação. A hipótese de que as alterações de memória ocorrem ao nível da recuperação foram ainda verificadas por Carmichael, Hogan e Walter (1932) num estudo realizado sobre os efeitos da presença de um rótulo na recordação de figuras ambíguas previamente observadas. Uma figura ambígua, por exemplo dois pequenos círculos ligados por um traço, era apresentada a três grupos de sujeitos. A um grupo foi dito que se tratava de uns óculos; a outro que se tratava de um haltere. O grupo de controlo não recebeu qualquer rótulo. Quando os sujeitos foram mais tarde solicitados a desenhar a figura previamente observada, as reproduções escritas alteraram-se no sentido dos rótulos apresentados. Isto é, nuns casos os desenhos pareciam-se mais com uns óculos; noutros casos pareciam-se mais com um haltere. No entanto quando a prova de evocação foi substituída por uma prova de reconhecimento não se verificaram diferenças entre os três grupos. A memória original manteve-se preservada. O padrão que emerge destes estudos experimentais indica que a memória do passado está sujeita a erros e deformações, que ocorrem nomeadamente ao nível da fase de recuperação. Porém isto não significa que não haja erros devidos a uma deficiente codificação e aquisição. Quando na fase de aquisição, somos expostos a novos materiais, estes são incorporados na actual estrutura das nossas crenças e conhecimentos. Assim a informação percebida é construída em função dos conhecimentos anteriores, crenças, desejos, expectativas, estereótipos, enfim todo o quadro cultural de referências, de forma a ser melhor compreendida, — o que nem sempre significa que é correctamente compreendida. Este processo de incorporação pode originar distorções de forma a melhor acomodar o material percebido à nossa estrutura mental. Contudo a memória é também uma reconstrução de acontecimentos passados, e esta reconstrução é tanto mais distorcida quanto maior tiver sido o intervalo de retenção, o tempo reduzido de aquisição, o elemento emocional envolvido e as reproduções efectuadas. No dia a dia esta reconstrução é mais frequente do que se pensa. Vejam-se os mal-entendidos que frequentemente surgem nas conversas entre pessoas, ou as distorções no relato de acontecimentos obser162
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vados na televisão, por exemplo a gravidade das faltas nos jogos de futebol percebidas por adeptos rivais. Kant uma vez afirmou que nós vemos as coisas, não como elas são, mas como nós somos. E se o aparelho cognitivo humano é susceptível de compreender e construir a realidade numa certa perspectiva e mais tarde a recordá-la de forma distorcida, é legítimo perguntar, o que é que impede uma pessoa de não cair no solipsismo e relativismo? A resposta é uma organização apropriada da informação para uma eficaz recordação futura. Há informações importantes, como nomes de pessoas, animais e objectos comuns, letras de canções, poemas e textos, que as pessoas conseguem recordar correcta e integralmente e onde os erros e as deformações potencialmente originadas pela construção e reconstrução não acontecem. Nestes casos a codificação foi efectuada de forma profunda, seguida por frequentes recordações posteriores que corrigem as mal-formações das lembranças passadas. Verificam-se aqui recordações imediatas e automáticas. Porém, se o tempo de exposição inicial for insuficiente, os intervalos de retenção longos e o processamento de informação inadequado e superficial, a tendência para distorcer a informação original é maior e mais frequente. Neste caso a recordação é lenta, imprecisa e exige bastante esforço.
3.7
Conceitos de memória
Memória, codificação, retenção, recuperação, recordação, sílaba-semsignificado, evocação, reconhecimento, reaprendizagem, completação, reconstrução, reprodução repetida, curva de esquecimento, memória primária, memória operatória, memória a curto prazo, memória secundária, memória a longo prazo, memória episódica, memória semântica, memória procedimental, sistema de representação perceptivo, níveis de processamento, curva de posição serial, efeito de primazia, efeito de recência, amnésia, unidades categorizadas, teoria do desuso, teoria da interferência, interferência retroactiva, interferência proactiva, incongruência contextual, indicadores ou pistas, recalcamento, retenção categorizada, retenção hierarquizada, formação de imagens, mnemónica dos lugares, reconstrução da memória, processamento ascendente, processamento descendente.
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3.8
Perguntas de auto-avaliação 1. Define memória episódica e memória semântica e dê exemplos de tipos de informação retidos em cada um destes sistemas. 2. Define e caracterize os processos de evocação e reconhecimento a partir de exemplos de provas de memória e a partir de situações quotidianas. 3. Muitos investigadores concebem a MCP e a MLP como dois sistemas de memória com características e funções próprias. Refira e comente algumas das provas mais comuns em apoio desta distinção. 4. A memória a curto prazo ou memória imediata é uma estrutura com capacidade limitada. Explique a natureza destes limites e o modo como têm sido medidos e interpretados. 5. Descreva o modelo de níveis de processamento e as implicações ao nível da codificação e retenção de conhecimento. 6. A interferência, o decurso do tempo e a incongruência de indicadores são algumas das explicações propostas para o esquecimento na memória humana. Descreva resumidamente o que caracteriza cada uma destas explicações.
3.9
Sugestões de leitura
Informação suplementar sobre a memória humana pode ser lida em Baddeley (1997), Schacter (1996) e Pinto (1991b). O tema do texto da experiência de Bransford e Johnson (1972), referida na Caixa 3.1, é a “colocação da roupa na máquina de lavar”.
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4. Inteligência
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A inteligência é uma capacidade humana bastante valorizada. É algo que as pessoas se julgam dotadas em maior ou menor grau, quase sempre para mais em relação ao que os outros lhes querem atribuir. Já ouvi muitas pessoas queixarem-se da falta de memória, de atenção ou de aprendizagem, mas nunca ouvi ninguém queixar-se da sua inteligência, ou de que é pouco inteligente. Ter ou não ter inteligência conta, mas pouco contaria se não marcasse a diferença. De facto todos ou quase todos gostariam de ser elogiados pela sua inteligência. É isto pelo menos o que revelaram os inquéritos que ano após ano faço aos meus alunos no início das aulas. Definir inteligência não é fácil, pelo menos em termos técnicos. Mas esta dificuldade não parece verificar-se no dia a dia. Até parece que toda a gente sabe o que é a inteligência, menos os investigadores. Qualquer pessoa é capaz de referir meia dúzia de termos associados a inteligência ou à falta dela. As pessoas usam teorias pessoais, ou implícitas, de inteligência para classificar o comportamento das outras pessoas numa situação, como sendo às vezes espertas, finas, brilhantes e perspicazes, ou estúpidas, idiotas, ignorantes, parvas, rudes, tacanhas e obtusas. Em geral as pessoas são capazes de perceber o que é ou não um comportamento inteligente. Sternberg et al. (1981) solicitaram a 476 pessoas nos EUA para indicarem as características de uma pessoa inteligente e as respostas dadas mais frequentemente foram: ‘raciocina bem e de forma lógica’, ‘lê muito’, ‘lê com um alto grau de compreensão’ e ‘revela bom senso’. Os comportamentos considerados não-inteligentes foram: ‘não tolera diferentes perspectivas’, ‘não revela curiosidade’, ‘reage com pouca consideração pelos outros’.
Âmbito e definições A Caixa 4.1 apresenta algumas definições de inteligência, propostas pelos investigadores desta área e indica algumas das dimensões consideradas essenciais: Um processo de adaptação ao meio (Binet); uma capacidade para pensar racionalmente (Wechsler); uma habilidade para captar o essencial de uma situação (Heim). Em 1921 os editores da revista Journal of Educational Psychology perguntaram a 14 psicólogos famosos, entre os quais Terman, Thorndike e Thurstone, o que entendiam por inteligência? Apesar da variedade de respostas, foi possível ressaltar dois temas importantes: Capacidade para aprender a partir da experiência e capacidade de adaptação ao meio envolvente. Mais recentemente, Sternberg et al. (1981) pediram a um grupo de peritos, doutorados na área da inteligência, para analisar uma série de comportamentos e avaliar o grau de inteligência envolvido. Em seguida aplicaram a análise © Universidade Aberta
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factorial (uma técnica estatística que permite ressaltar os temas comuns) e notaram a emergência de três factores: A inteligência verbal, a resolução de problemas e a inteligência prática. Estes três factores foram considerados os componentes principais da inteligência. Sternberg verificou ainda uma correspondência muito elevada entre a avaliação do que é um comportamento inteligente dada pelos peritos e a avaliação feita por pessoas comuns, expressa por uma correlação média de r=+0,82. Noutra publicação, Sternberg e Detterman (1986) referem um estudo em que solicitaram uma definição de inteligência a um grupo de 24 especialistas na área. As respostas ressaltaram as seguintes características: ‘capacidade para aprender a partir da experiência’, ‘capacidade para se adaptar ao meio envolvente’, ‘capacidade para compreender e controlar os próprios processos de pensamento (meta-cognição)’.
Caixa 4.1 Definições de inteligência “Cremos que a inteligência envolve uma faculdade fundamental (…). Esta faculdade é o juízo, também conhecida por bom senso, senso prático, iniciativa, a faculdade de adaptação pessoal às circunstâncias. Julgar bem, compreender bem, raciocinar bem …” (Binet e Simon, 1905). “Inteligência é aquilo que os testes de inteligência medem” (Boring, 1923). “Adaptação da pessoa ao seu meio ambiente … habilidade para aprender … habilidade para pensar de modo abstracto” (Spearman, 1927). “O rendimento global da capacidade para agir intencionalmente, pensar racionalmente e agir no meio de forma eficaz” (Wechsler, 1939). “A actividade inteligente consiste em alcançar o essencial de uma situação e responder de forma apropriada” (Heim, 1970). “Aquilo que uma pessoa usa quando não sabe o que fazer” (Carl Bereiter, cit em Jensen, 1998).
A inteligência é considerada por vários investigadores como uma habilidade (ou capacidade) cognitiva geral. Segundo Jensen (1998) o termo inteligência 168
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deve aplicar-se a todo um grupo de processos ou princípios de funcionamento do sistema nervoso que tornam possível as funções comportamentais responsáveis pela adaptação do organismo ao meio ambiente. A inteligência representaria a eficácia do funcionamento global do cérebro no desempenho das actividades mentais. Seria uma espécie de ‘motor neurológico e metabólico’ que dirige os vários componentes do cérebro, como a capacidade geral para aprender, recordar, pensar, generalizar, usar conceitos abstractos e formular novas soluções. Todas estas funções estariam agrupadas sob o conceito de inteligência. Nesta concepção, a inteligência seria como que uma entidade ou substantivo de que se tem muito, pouco ou quase nada. Em contraste, há outros investigadores que apontam a dificuldade de se usar critérios precisos na definição de inteligência. Para estes, a inteligência não seria um substantivo de que se tem um certo valor mais ou menos fixo e definitivo; estaria antes representada por um adjectivo que qualificaria os comportamentos e actividades das pessoas. Assim uma pessoa pode ser menos inteligente numa actividade (ex., matemática e física) e muito inteligente noutra (ex., música, desporto ou dança), ou vice-versa. É ainda possível que duas pessoas tenham comportamentos inteligentes, sem terem quaisquer traços em comum. Uma pessoa assim não teria inteligência, teria antes inteligências. Há mais do que uma perspectiva em termos de definição de inteligência: Há investigadores que consideram a inteligência como um conceito unitário; há outros que consideram que não há inteligência, mas inteligências. Há ainda outros que pensam que debruçar-se sobre esta questão é tempo perdido. Neisser et al. (1996) sugeriram, por outro lado, que a inteligência seria melhor analisada e compreendida em termos da variedade de técnicas e instrumentos usados. Veja-se ainda a propósito Miranda (1986). Não há, em síntese, uma definição absoluta e consensual entre os investigadores sobre o que é a inteligência. A inteligência não é uma entidade visível e reificável. É um construto teórico proposto pelos investigadores para agrupar e explicar um conjunto de fenómenos. O estudo da inteligência é controverso. É controverso em termos de definição; em termos de medida; e em termos do grau de hereditariedade que envolve. Naturalmente que o modo como a inteligência é definida tem implicações no modo como vai ser medida. O modo como é medida produz maiores ou menores diferenças individuais e grupais. Estas diferenças podem ser usadas para efeitos de selecção em termos académicos e de emprego. Estas diferenças precisam ainda de ser interpretadas e explicadas. E é ao nível da explicação das diferenças que a polémica mais se concentra. Nas páginas seguintes vamos abordar algumas das principais questões relacionadas com a medição de inteligência, as teorias e modelos e as explicações propostas para as diferenças obtidas.
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4.1
Medidas de inteligência
Há várias concepções de inteligência e uma diversidade de procedimentos para medir a inteligência. A avaliação da inteligência é uma questão importante da psicologia. O objectivo é obter valores quantitativos que clarifiquem as diferenças individuais em termos de funcionamento mental. É uma área com grande impacto fora da disciplina, nomeadamente a nível escolar e selecção profissional. A descrição, ou mesmo a referência a todos os procedimentos ou testes de medição intelectual é manifestamente impossível. É útil no entanto apontar alguns marcos históricos.
4.1.1 História breve dos testes de inteligência Um dos marcos iniciais da medida da inteligência foi expresso pelo convite feito pelo ministro de instrução francês a Binet em 1904 para elaborar uma prova que permitisse identificar as crianças atrasadas das escolas de Paris. Tinha-se iniciado a escolaridade obrigatória para todas as crianças em França e as escolas estavam demasiado cheias. O ministro pretendia criar escolas especiais para as crianças atrasadas, onde melhor pudessem ser educadas. Mas ninguém sabia muito bem como é que tais crianças podiam ser objectivamente identificadas. Em 1905, Binet apresentou uma escala de medida de inteligência em colaboração com Simon, que ficou conhecida por escala de Binet-Simon (Binet e Simon, 1905). A escala de Binet-Simon baseava-se em competências de memória, vocabulário e conhecimentos comuns. A escala foi inicialmente formada por 30 questões de dificuldade crescente. Uma questão fácil era apontar o nariz, os olhos e a boca; uma questão intermédia era nomear 4 cores; uma questão difícil era compreender uma frase complexa. Quando cerca de 3/4 das crianças dos sete anos, por exemplo, conseguiam resolver um grupo de tarefas, estas tarefas eram consideradas de resolução típica e adequada para crianças dos 7 anos. Através deste método, Binet e Simon foram bem sucedidos na identificação das crianças normais e atrasadas. Uma criança ‘mentalmente atrasada’ era aquela que ficava aquém ou abaixo do nível de realização das questões para uma criança da sua idade. Binet e Simon consideraram a inteligência como um factor geral de funcionamento, cujo valor era expresso pelo desempenho na prova que tinham elaborado. Em 1908 Binet e Simon fizeram uma revisão da escala e propuseram o conceito de idade mental. Este conceito refere-se à idade cronológica a que uma criança melhor correspondia em termos mentais. Assim se uma criança de 7 anos 170
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realizasse as provas destinadas a uma criança de 8 anos, a idade mental seria de 8 anos; se a criança não conseguisse resolver as provas de 7 anos, mas apenas as de 6, então a idade mental seria de 6 anos. Este conceito de idade mental permitia uma comparação e ordenação fácil entre as crianças de diferentes idades. Binet e Simon calculavam para cada criança o valor de idade mental (IM) e comparavam-no com o valor da idade cronológica (IC). Baseado nos estudos de Binet e Simon, o alemão Stern (1912) formulou o conceito de quociente intelectual (QI), calculado segundo a fórmula QI = (IM/IC) x 100. Esta fórmula tinha por objectivo atribuir um valor médio de 100 ao QI de uma população. Assim se a IM fosse igual à IC, o QI era igual a 100; se a IM fosse maior do que IC, então o QI era superior a 100. Se uma criança de 8 anos realizasse as provas previstas para uma criança de 10, o QI era igual a 125. A determinação do QI segundo a fórmula de Stern gera problemas a partir dos 18 anos, idade que se convencionou considerar como termo do desenvolvimento intelectual. A idade mental aumenta até cerca dos 18 anos e depois estabiliza, enquanto que a idade cronológica aumenta sempre. Se se aplicar a fórmula de Stern a adultos, o valor de QI começa a diminuir a partir dos 18 anos. Para ultrapassar este problema, mais tarde Wechsler (1939) propôs o uso de grupos etários representativos da população em vez da idade cronológica. Propôs ainda o uso de testes de aptidão geral para medir a inteligência potencial em vez de aprendizagem ou realização actual. Em 1916 o americano Terman da Universidade de Stanford adaptou o teste de Binet-Simon para os EUA designando-o por Escala de Inteligência de Stanford-Binet. Este teste foi objecto de revisões sucessivas em 1937, 1960, 1972 e 1985. O teste de Stanford-Binet manteve o conceito de idade mental e de QI até 1960 de acordo com a fórmula de Stern, como valor único para a inteligência. Mas a partir de 1960, o QI passou a ser determinado em termos relativos face a uma amostra representativa, tal como o QI dos testes de Wechsler. A versão mais recente do teste de Stanford-Binet foi publicada em 1985 e aplica-se a idades dos 2 aos 18 anos (Thorndike et al., 1985). O teste inclui 15 sub-testes agrupados em torno de quatro áreas ou habilidades específicas: Raciocínio verbal, raciocínio quantitativo, raciocínio abstracto-visual e memória a curto prazo. O teste produz ainda um valor global que pode ser interpretado em termos de QI, ou inteligência total. Para determinar o valor de QI usam-se tabelas para converter os valores reais obtidos nos sub-testes em valores padrão que são ajustados em cada idade de modo que a média seja 100 e o desvio padrão 16. Em 1939 o americano Wechsler desenvolveu um teste de inteligência para adultos até aí inexistente, tendo sido objecto de revisões em 1955, 1978 e
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1995. Em 1950 o teste de Wechsler foi adaptado a crianças, tendo também sofrido revisões posteriores em 1972 e em 1989. Estes testes tornaram-se bastante populares e foram objecto de várias revisões. As designações mais recentes de cada um são:
Caixa 4.2 Escala de Inteligência de Wechsler para Adultos (WAIS) — Tipos de testes
Escala verbal
Escala de Realização
1. Informação geral. Questões sobre informação adquirida no meio sócio-cultural.
1. Completação de gravuras. Indicar o que falta nas gravuras.
2. Compreensão geral. Julgar situações comuns e interpretar o senso comum.
2. Arranjo de gravuras. Ordenar várias gravuras de forma a formar uma história.
3. Aritmética. Questões sobre as 4 operações principais de aritmética.
3. Desenho de blocos. Copiar e reproduzir uma figura por meio de blocos coloridos.
4. Similaridades. Relações e similaridades entre conceitos de forma a avaliar componentes lógicas e abstractas.
4. Montagem de objectos. Reunião de figuras comuns a partir das suas partes.
5. Vocabulário. Definição do significado de palavras com dificuldade crescente.
5. Símbolos-dígitos. Emparelhar símbolos com dígitos de acordo com uma chave.
6. Amplitude de números. Audição de uma série de dígitos e repetição na ordem normal e inversa.
A WAIS-III (Escala de Inteligência de Wechsler para Adultos) aplica-se a adultos dos 16-74 anos e é composta por 11 sub-testes, seis de tipo verbal e cinco de realização. O teste produz um QI verbal, um QI de realização e ainda um QI global (Wechsler, 1997). O QI global pode ser considerado uma medida aproximada do factor g. Os valores absolutos obtidos nos sub-testes são 172
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convertidos em valores de QI, quer para cada tipo de sub-testes quer para um valor global resultante. Uma listagem dos diferentes sub-testes encontra-se na Caixa 4.2. A WISC-III (Escala de Inteligência de Wechsler para Crianças) aplica-se a crianças dos 6-16 anos e é composta por 10 sub-testes, cinco de tipo verbal e cinco de realização. O teste produz um QI verbal, um QI de realização e ainda um QI global resultante da média dos anteriores (Wechsler, 1991). Há uma versão da WISC aferida para Portugal (Marques, 1969). As escalas de inteligência de Stanford-Binet e WISC-III são das mais usadas na América do Norte para medir o desenvolvimento intelectual das crianças e adolescentes e identificar aquelas que têm problemas de aprendizagem. Em contraste com os testes anteriores, Raven (1938, 1989) propôs um teste para medir a inteligência que fosse livre de influências culturais e linguísticas. O teste designou-se por Matrizes Progressivas de Raven (MPR). A tarefa do sujeito é descobrir uma regra numa matriz de 4 ou 9 figuras, em que a última figura está em branco; depois aplica-se a regra na escolha da alternativa correcta para a figura em branco, numa série de 6 ou 8 alternativas apresentadas na mesma folha. Formas deste teste podem ser aplicadas quer a crianças a partir dos 5 anos e meio, quer a adultos e idosos, assim como a pessoas com inteligência acima da média. Este teste pretende medir um factor geral de inteligência (factor g) ao nível do raciocínio indutivo. Devido à simplicidade de aplicação e à reduzida influência e expressão cultural que envolve, o teste de Raven é um dos testes mais conhecidos, sendo frequentemente aplicado um pouco por todo o mundo, e usado na comparação de crianças de diversas países, etnias e povos (e.g., Simões, 1994). Na comparação entre grupos étnicos (como brancos e negros nos EUA), as diferenças médias destes dois grupos no teste de Raven são metade das obtidas nos testes convencionais de QI. Um teste que minimiza ao máximo os factores culturais e linguísticos como o de Raven tem levantado algumas objecções na medida em que os elementos culturais são um factor importante no funcionamento do mundo moderno. No entanto o teste tem valor porque prevê de forma satisfatória variáveis de natureza educacional e ocupacional.
4.1.2 O significado do QI O QI é um conceito estatístico que tenta representar o conceito psicológico de inteligência. O QI psicométrico estabelecido por um teste não é a inteligência real de uma pessoa, mas pretende representá-la. O QI obtido nos testes de
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Wechsler e de Stanford-Binet é uma medida relativa, na medida em que o valor real obtido nestes testes é comparado com uma amostra representativa de indivíduos do mesmo grupo etário. O QI é relativo a um valor da população com média de 100 e desvio padrão de 15 ou 16. Estes valores numéricos são convencionais. No teste de Wechsler há aproximadamente 68% da população que tem um desempenho entre ±1 desvio padrão (85-115) e 95% entre ±2 desvios padrão (70-130). Apenas 2,28% têm valores de QI acima de 130. Veja-se a Figura 4.1. A medição da inteligência está assim dependente das características de padronização de um teste de inteligência.
Figura 4.1 - Representação da distribuição normal com referência às percentagens de casos entre desvios padrões e aos valores de QI nos testes de Wechsler.
Às vezes tem-se a ilusão de que o número de QI de uma pessoa tem o mesmo significado que o número do seu peso ou altura, porque o valor de QI é expresso em termos de um valor quantitativo. Mas não é. O peso e a altura não são estabelecidos em comparação com os valores de uma amostra representativa da população, antes resultam de uma escala com um valor zero e intervalos iguais. Uma pessoa com 1,80 m tem o dobro de outra com 90 cm, tem ainda 10 cm a mais ou a menos do que outra com 1,70 m ou 1,90 m. A escala de medição do QI é ordinal. A escala não tem zero e os intervalos não são iguais. Um QI de 140 não é o dobro de outro com apenas 70. Um QI de 70 é obtido por um indivíduo débil mental que precisa de alguma ajuda no dia a dia. Um QI de 140 é obtido por cerca de 4 indivíduos em mil que revelam 174
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uma inteligência brilhante. Dois valores diferentes de QI apenas nos dizem que uma pessoa tem mais ou menos inteligência psicométrica do que outra e quantos indivíduos na população têm provavelmente um valor de QI idêntico, mas pouco mais.
4.1.3 Inteligência geral: o factor g Um teste de inteligência, tipo WAIS, é constituído por vários sub-testes. Uma pessoa normalmente obtém melhores resultados num ou noutro sub-teste em relação aos restantes. Quando milhares de testes de QI são analisados, verifica-se de um modo geral que as pessoas com bons resultados num sub-teste (ex., numérico) obtêm também resultados acima da média noutros sub-testes (ex., verbal ou espacial) da mesma escala de inteligência. Isto significa que os sub-testes, que medem diferentes habilidades cognitivas, reflectem uma capacidade cognitiva subjacente a todos eles, expressa pela matriz de intercorrelações positivas. O padrão destas inter-correlações é determinado por uma técnica estatística designada por análise factorial. Esta técnica produz um valor que tem em conta uma percentagem significativa da variância dos resultados. A variância restante refere-se a habilidades mentais específicas, parcialmente independentes umas das outras. Spearman (1927) foi o primeiro a designar este padrão ou capacidade cognitiva subjacente por factor g. O factor g é um construto matemático que representa o que há de comum no desempenho dos vários sub-testes por parte de uma pessoa ou grupo de pessoas através da análise factorial. Esta regularidade estatística tem sido objecto de várias interpretações. Spearman referiu que o g representava uma espécie de energia mental e Jensen (1980) um índice ou expressão da inteligência geral. O instrumento considerado como o melhor para medir o factor g é o teste de Raven, que segundo Jensen (1980) é um teste que “mede realmente o g e pouco mais”. O QI global da WAIS ou WISC e o factor g são considerados sinónimos de inteligência geral.
4.1.4 Características psicométricas de um teste O primeiro passo na criação de um teste psicológico é estabelecer uma definição precisa da variável que o teste pretende medir. Em seguida os investigadores elaboram uma lista de questões ou itens para avaliar essa variável. Esta lista é © Universidade Aberta
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depois aplicada a um grupo de pessoas com características similares àquelas que mais tarde irão realizar o teste. No decurso de vários ensaios de preparação, há certos itens que são ambíguos em termos de interpretação ou são considerados pouco discriminativos em relação ao objectivo do teste. Estes itens são omitidos da versão final. Selecciona-se depois uma amostra representativa de uma comunidade ou país e determina-se as normas de aplicação e realização. O cuidado posto na selecção da amostra é fundamental para se estabelecer a representatividade da amostra em relação à população.
4.1.4.1
Fidelidade e validade
As duas principais características de um teste são a fidelidade e a validade. Um bom teste deve ser ao mesmo tempo fiel e válido, embora a validade seja considerada a principal característica que um teste deva possuir. A fidelidade refere-se à consistência interna dos dados obtidos no teste. Há vários procedimentos para medir a fidelidade de um teste: teste-reteste, comparação de metades e o uso de formas equivalentes. O teste-reteste envolve a passagem do mesmo teste a um pequeno grupo da amostra original em duas ocasiões diferentes com um intervalo de algumas semanas. A comparação de metades implica estabelecer uma correlação entre metade dos dados com a outra metade. As formas equivalentes são duas versões semelhantes do mesmo teste aplicadas ao mesmo grupo de pessoas. Um teste é considerado fiel se o coeficiente de correlação entre os valores obtidos, em duas ocasiões pelas mesmas pessoas, entre uma metade dos dados e a outra metade, ou entre duas formas semelhantes do mesmo teste, for bastante elevado. A validade refere-se à relação dos dados do teste com a característica psicológica (variável ou construto) que o teste é suposto medir. Um teste é válido e útil se for capaz de medir verdadeiramente uma variável ou factor importante do mundo real. Há também vários procedimentos para estabelecer a validade de um teste: • A validade de rosto refere-se à análise inicial do teste, normalmente por um grupo de peritos, para verificar se os conteúdos do teste são apropriados e têm alguma relevância ou utilidade em relação ao que se pretende medir. É um procedimento subjectivo usado nas fases iniciais de construção do teste e está dependente do estado de conhecimentos da época. A validade do conteúdo pretende determinar se os itens do teste são apropriados, relevantes, coesos entre si e cobrem o leque de conteúdos possíveis. Normalmente é feita por peritos.
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• A validade do construto refere-se ao grau de ligação dos itens entre si e em relação ao objectivo do teste; procura-se verificar se os itens captam bem a qualidade hipotética da variável em estudo. Através da análise factorial pode-se verificar se há um valor significativo de variância comum partilhada entre todos os itens do teste. A validade do construto estabelece-se ainda através da comparação com outros testes similares (ex., uma escala de inteligência com outra escala de inteligência). • A validade de critério compara os resultados de um teste com o comportamento da pessoa no mundo real, quer em termos de capacidade de previsão do desempenho futuro da pessoa numa certa área, quer em termos de comparação concorrente com o desempenho actual da pessoa numa área específica. Assim um teste de inteligência é considerado válido se for capaz de prever no primeiro caso quais os alunos actuais do secundário que irão entrar na universidade; no segundo caso quais os alunos que aprendem actualmente melhor ou pior na sala de aula. A validade de critério é uma validade externa, empírica e mais objectiva do que os outros tipos de validade. Por último, através da técnica quantitativa de análise de itens pode-se avaliar o modo como cada item individual de um teste contribui para a validade global do teste. A psicometria e a avaliação psicológica é uma das áreas mais florescentes da psicologia aplicada. Esta área tem por objectivo medir as diferenças individuais de ordem intelectual, cognitiva e de personalidade, recorrendo a testes padronizados que são administrados sob condições controladas. Há actualmente um grande número de testes para a maioria das características das pessoas. Os investigadores tentam construir testes que consigam obter uma medida tanto quanto possível pura da variável em análise. É uma tarefa bastante árdua e complexa.
4.1.5 Estabilidade e previsão dos testes de inteligência Quando se diz que o QI de um teste tem uma correlação de r=+0,50 com o desempenho escolar ou de r=-0,40 com os tempos de reacção, isto significa o seguinte: Quanto mais o valor numérico se aproximar de 1, maior é a força da relação entre duas variáveis; quando o sinal é positivo, isto significa que o aumento na grandeza de uma variável está associado ao aumento na grandeza de outra; quando o sinal é negativo, significa que o aumento na grandeza de uma variável está associado à diminuição na grandeza da outra. Tem ainda bastante importância em psicometria a determinação do quadrado do r (r2), © Universidade Aberta
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quando se pretende prever uma variável a partir de outra. Assim, quando r=+0,50, tal significa que o valor de QI contribui (ou prevê) em 25% para a variância na distribuição dos resultados da segunda prova (ex., realização escolar), mas há 75% da variância que não é prevista pelo teste de QI. Há uma longa série de estudos que tentou determinar o valor dos coeficientes de correlação entre testes de inteligência (QI) e algumas variáveis humanas importantes. Os coeficientes de correlação a seguir indicados foram obtidos, na sua maior parte, a partir do estudo síntese dirigido por Neisser et al. (1996), que refere alguns dos melhores estudos realizados nesta área. • Estabilidade do QI. Os valores de QI permanecem relativamente estáveis ao longo da vida de uma pessoa, apesar de algumas flutuações. Os QIs obtidos, principalmente após os 10 anos, apresentam um valor de correlação bastante estável com valores de QI obtidos nas idades mais tardias. A correlação entre os 5-7 anos e os 17-18 anos é de r=+0,86 e entre os 11-13 anos e os 17-18 anos é ainda maior, r=+0,96 (Jones e Bayley, 1941, cit. por Neisser et al., 1996). Apesar do grau de estabilidade do QI ser maior a partir da adolescência, há mesmo assim cerca de 10 a 15% de pessoas que melhoram ou pioram em termos de QI com o passar dos anos. • Realização escolar. O QI é um bom factor preditivo da realização escolar. A correlação é da ordem dos +0,50 (Sattler, 1988). Esta correlação significa que os alunos mais inteligentes tendem a obter melhores classificações escolares. Significa ainda que as competências que os testes de inteligência medem são realmente importantes. Isto é aliás a razão pela qual os testes de inteligência foram inventados e usados por Binet. Uma correlação da ordem dos +0,50 apenas têm em conta cerca de 25% da variância total, deixando uma margem folgada para a intervenção de outras variáveis como a motivação, o interesse, a prática, o acompanhamento familiar, a qualidade da instituição escolar e o papel dos professores. Note-se no entanto que a correlação pode aumentar ou diminuir em função de variáveis alternativas, mas ainda assim não se descobriu nenhum tipo de instrução ou outra variável que eliminasse por completo a correlação entre QI e realização escolar. • Anos de escolaridade. A correlação entre QI e o número de anos escolares frequentados por uma criança é de r=+0,55 e significa que os alunos mais inteligentes tendem a permanecer mais anos na escola. Há outros factores, além da inteligência, que podem ser responsáveis pela escolaridade, como as classificações escolares obtidas, o apoio dos professores e as aspirações dos pais e família. No entanto verificou-se que o QI é a variável que isoladamente prevê melhor o número de anos. 178
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• Variáveis sociais. O QI está ainda correlacionado com o estatuto sócioeconómico da pessoa (r=+0,33) e com o desempenho profissional (r=+0,54). Os valores de QI estão ainda negativamente correlacionados com alguns comportamentos sociais como o crime juvenil, embora o coeficiente obtido seja baixo (r=-0,19). • Prática e idade. Um estudo longitudinal, que acompanhou o desempenho de um grupo de professores desde os 22 anos até aos 56 anos, indicou que o QI era mais elevado no final da carreira do que no início em cerca de 7 pontos (Burns, 1966). Este aumento revelou-se específico da área em que os professores trabalhavam. Assim os professores de letras obtiveram um aumento nas provas verbais e uma diminuição nas provas numéricas e figurativas, enquanto que os professores de ciências revelaram o padrão inverso. Este estudo parece provar que o valor de QI não diminui com a idade (pelo menos até aos 56 anos) e até tem tendência a aumentar, nomeadamente naquelas provas que estão relacionadas com as actividades que são objecto de treino regular. O QI é um factor que prevê vários aspectos da vida de uma pessoa com mais ou menos sucesso. A previsão é maior em termos de realização escolar, razoável em termos de emprego e posição profissional e baixa em termos de variáveis sociais como a criminalidade. Além do QI, há outros factores concorrentes como a personalidade, a motivação pessoal, a qualidade da educação e o ambiente familiar, o meio sócio-económico que contribuem em maior ou menor grau para o desempenho da pessoa nas diferentes situações da vida.
4.1.5.1 O efeito Flynn Ao longo do séc. XX os resultados nos testes de aptidão escolar de acesso à universidade nos EUA tem baixado nas últimas décadas. Em contraste, os resultados nos testes de inteligência têm aumentado continuamente. O teste de Raven (assim como os sub-testes de realização não-verbais da escala de Wechsler) é um dos que tem obtido aumentos maiores ao longo dos anos. Este aumento não se verifica apenas nos EUA, mas acontece um pouco por todo o mundo industrializado. No caso do teste de Raven, o aumento verificado em Inglaterra em adultos de 1942 a 1992 foi de 5,4 pontos de QI por década num total de 27 pontos. Na Holanda foi de 7 pontos por década desde 1952. A média de cinco países industrializados foi de 6 pontos por década no teste de Raven. No caso de testes de QI (Wechsler e Stanford-Binet) o aumento é menor e situa-se à volta © Universidade Aberta
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dos 3 pontos por década. Este aumento de inteligência é conhecido pelo efeito Flynn (Flynn, 1987, 1998) em homenagem ao investigador que primeiro o identificou. Este aumento contínuo tem sido objecto de diferentes explicações (Neisser, 1998). Há quem o considere um aumento real e há quem o considere uma ficção ou artefacto associado ao conhecimento e aplicação dos testes. O próprio Flynn (1998) considera este aumento um artefacto. Em 1952 na Holanda previa-se existir cerca de quatro pessoas geniais em mil que tinham um QI acima de 140 no teste de Raven. Trinta anos mais tarde, em 1982, previam-se 91 pessoas geniais em mil, considerando as normas de aplicação e aferição de 1952. Segundo Flynn, a Holanda deveria estar a assistir, com tantos génios, a um verdadeiro renascimento cultural na década de 80. Mas parece que ninguém deu conta de um tal renascimento! Greenfield (1998) considera o aumento real e afirma que a omnipresença na sociedade actual das tecnologias da imagem como a televisão, o cinema e sobretudo os jogos de computador são propícias ao desenvolvimento da análise visual e responsáveis pelo desenvolvimento das habilidades e competências visuais que se manifestam numa melhoria crescente nos resultados deste tipo de testes. Poder-se-ia incluir ainda a tarefa de análise visual “descubra as diferenças” popularizada pelos jornais e revistas. Se a hipótese de Patricia Greenfield se vier a provar, afinal o teste de Raven está mais sujeito a influências culturais do que se pensou inicialmente.
4.1.6 Testes de inteligência: prós e contra Os testes de inteligência são medidas úteis de avaliação do desempenho em tarefas que fazem apelo a habilidades mentais. Mas os testes são também instrumentos polémicos em termos do estabelecimento das diferenças individuais. Nos testes de inteligência, há aspectos considerados mais positivos ou mais negativos. Alguns destes serão referidos a seguir.
4.1.6.1 Limitações dos testes A inteligência, que é medida pelos testes, designa-se por inteligência psicométrica e não esgota naturalmente o conceito da verdadeira inteligência. Há habilidades cognitivas que residem fora do âmbito dos testes convencionais de inteligência, como a sabedoria, a criatividade, o conhecimento prático e as 180
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competências sociais. Estas dimensões são importantes e bastante valorizadas socialmente. Basear a inteligência apenas nos resultados dos testes de inteligência é ignorar aspectos importantes da capacidade mental de uma pessoa. Os testes de inteligência não medem a inteligência prática para situações do dia a dia, assim como a capacidade de adaptação ao meio em termos de relacionamento social e de estabilidade emocional. Por sua vez, as culturas humanas não têm uma concepção única e similar do que é ou não um comportamento inteligente. Há culturas que ressaltam mais os elementos de motivação, personalidade e competências sociais, enquanto outras fixam-se nos aspectos mais cognitivos do conceito de inteligência, como acontece nas culturas ocidentais. Num passado não muito distante os testes foram usados com fins xenófobos para afastar pessoas, raças e povos no âmbito da emigração. Serviram ainda para rotular e seleccionar crianças e jovens, estigmatizar alguns deles durante muitos anos, desenvolvendo um tipo de profecia de auto-realização negativa.
4.1.6.2 Vantagens dos testes A principal vantagem dos testes tem a ver com a sua capacidade preditiva. Os testes são úteis porque prevêem o desempenho de várias actividades humanas. De facto quase tudo o que tem importância social apresenta uma correlação com os testes de inteligência, provando assim a validade prática destes instrumentos. Os testes prevêem razoavelmente bem certas formas de realização escolar e sucesso académico presente e futuro. O QI é a única variável singular que prevê melhor, ou em maior percentagem, o desempenho escolar. Os testes prevêem ainda vários tipos de desempenho profissional e alguns problemas sociais como o crime, pobreza, riqueza e saúde. Jensen (1980) verificou ainda que os testes aferidos convencionais não estão enviesados no sentido de favorecer ou desfavorecer determinados grupos ou etnias (por ex., os brancos ou os negros nos EUA). Os testes são uma das aplicações práticas mais importantes da psicologia. Nos EUA, ministérios como a defesa usam os testes de inteligência para seleccionar os militares para as diferentes especialidades após o treino básico inicial e reconhecem que uma medida destas tem gerado poupanças orçamentais muito avultadas. A importância do QI é especialmente saliente na selecção de empregos que envolvem situações potenciais de alto risco, como pilotos de aviação e operadores de centrais nucleares e esta vantagem tem sido frequentemente referida em relatórios, mesmo por agências governamentais. O QI, ou © Universidade Aberta
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inteligência geral, é o factor que melhor parece distinguir entre aqueles que se limitam a memorizar um conjunto de instruções em relação àqueles que são capazes de conceptualizar um problema e elaborar soluções adequadas para fazer face a situações e contingências imprevistas. Apesar das suas limitações e objecções, os testes de inteligência medem uma certa forma de funcionamento mental ou mesmo certas habilidades cognitivas gerais que tem consequências práticas importantes no dia a dia das pessoas, conseguindo diferenciar de forma coerente uma pessoa de outra (e.g., Anastasi, 1989).
4.2
Teorias e modelos de inteligência
As três grandes abordagens teóricas no estudo da inteligência são: A psicométrica, o processamento da informação e a desenvolvimental. A perspectiva psicométrica concentra-se na medição da inteligência, recorre à análise factorial e destaca a presença de um ou mais factores ou habilidades constitutivos da inteligência; A perspectiva de processamento da informação investiga a natureza da inteligência e os processos mentais específicos do seu modo de funcionar; A perspectiva desenvolvimental analisa os processos e as mudanças qualitativas no modo de pensar que ocorrem ao longo do desenvolvimento humano. Além destas três perspectivas, será ainda considerada a perspectiva contextual, onde incluo um grupo de outras teorias que têm merecido bastante atenção na literatura científica recente e que ressaltam a influência do meio sócio-cultural e da personalidade.
4.2.1 Teorias psicométricas As teorias de inteligência mais importantes e influentes até à década de 70 foram as teorias psicométricas. Estas teorias estudam as habilidades mentais recorrendo aos resultados obtidos em vários testes de inteligência em grandes amostras de pessoas, usando a análise factorial. Esta técnica estatística analisa a matriz de inter-correlações entre diferentes testes e é considerada o principal meio para se determinar se a inteligência é constituída por um único factor ou é antes constituída por vários factores, componentes ou habilidades mentais. Se os testes estão bastante relacionados entre si, supõe-se que os testes se referem a um único factor de cuja influência dependem. Se pelo contrário a relação entre os testes é baixa, então cada teste ou sub-grupos de testes medem um factor ou habilidade diferente. 182
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Os estudos psicométricos originaram três grupos de teorias psicométricas de inteligência: Teorias de factor único, como a de Spearman; teorias de vários factores (ou habilidade primárias distintas) como a de Thurstone; teorias de inteligência de estrutura hierárquica formadas por um factor g no topo que governa diferentes factores subjacentes, como a de Carroll.
4.2.1.1 Spearman: o factor g Spearman (1927) inventou a análise factorial e aplicou esta técnica aos resultados de vários testes efectuados com crianças. Spearman verificou que a maioria dos testes estava positivamente correlacionada entre si, indicando que as pessoas com bons resultados num teste tendiam a produzir também bons resultados noutros testes. Spearman formulou a hipótese de que todos os testes tinham um factor comum, ou um factor geral, além de algo mais específico em relação a cada teste. Spearman designou o factor geral por g e os factores específicos por s, próprios de cada tarefa, como a aritmética. O factor g representaria a “correlação múltipla positiva” existente nos vários testes de habilidades cognitivas, o que era comum, o factor geral que todos os testes procurariam medir. O factor g seria hereditário, uma espécie de essência inata da inteligência, uma “energia mental”, ou a partícula fundamental em que se basearia a psicologia. Galton (1822-1911) já tinha avançado com a hipótese de que havia uma habilidade geral de natureza mental subjacente a qualquer actividade humana que exigisse esforço da mente humana. Esta proposta teve uma influência considerável no desenvolvimento posterior dos estudos de inteligência e condicionou aquilo a que durante várias décadas se chamou a escola psicométrica inglesa (ou de Londres) de inteligência e que teve como continuadores Burt, Vernon e Hans Eysenck. Esta escola contrastou com a escola psicométrica americana representada principalmente por Thurstone e Guilford.
4.2.1.2 Thurstone: habilidades mentais primárias Thurstone (1938) defendeu que o facto de uma pessoa ser inteligente numa área não significava que fosse inteligente em todas as áreas. A inteligência não depende de um único factor, mas é antes formada por vários factores que no conjunto constituem a inteligência. Recorrendo à análise factorial, Thurstone © Universidade Aberta
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analisou resultados de testes de inteligência de adolescentes e jovens universitários e verificou que os testes não estavam correlacionados num grau tão elevado como Spearman supunha, sugerindo antes que a inteligência era constituída por sete factores distintos que designou por habilidades mentais primárias. Os sete factores propostos por Thurstone foram: Visualização espacial – reconhecimento de relações espaciais; velocidade perceptiva – detecção rápida e precisa de elementos visuais; raciocínio numérico – realização rápida e precisa de operações aritméticas; compreensão verbal – compreensão do significado das palavras e conceitos verbais; fluência verbal – rapidez de reconhecimento de palavras únicas e isoladas; memória – recordação de listas de palavras e números; raciocínio indutivo – dedução de uma regra ou relação que descreve um conjunto de observações. Estas habilidades mentais eram consideradas independentes; não havia um factor geral superior, tipo g, com o qual estivessem relacionadas. Não havendo um factor superior ou habilidade geral, a ordenação dos indivíduos em termos globais seria inadequada. Os alunos podiam ser bons num factor e menos bons noutro factor ou vice-versa. Talvez por isto, esta teoria tornou-se mais popular e aceite do que a de Spearman. No fim da vida Thurstone admitiu porém a possibilidade de haver um factor g hierárquico de segunda ordem que estaria relacionado com todas as sete habilidades primárias.
4.2.1.3 Guilford: o cubo da inteligência Guilford (1967) rejeitou também a hipótese de um factor geral de inteligência, propondo antes uma teoria de inteligência constituída por 150 habilidades distintas, que designou por teoria da estrutura do intelecto. Estas 150 habilidades estavam representadas por pequenos blocos num cubo, cujas três dimensões designou por operações (5) x conteúdos (5) x produtos (6). As cinco operações referem-se ao que o indivíduo faz e são a avaliação, produção convergente, produção divergente, memória e cognição. Os cinco conteúdos referem-se ao material no qual o indivíduo executa as operações e são o visual, auditivo, simbólico, semântico e comportamental. Os seis produtos referem-se às formas básicas na qual a informação pode ser incluída e são as unidades, classes, relações, sistemas, transformações e implicações. Segundo Guilford, cada uma das 150 inteligências representadas no cubo podia ser medida, um projecto que tentou realizar. Embora estas dimensões representem uma contribuição analítica importante para o estudo da inteligência, 184
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a hipótese de haver 150 inteligências diferentes foi considerada um exagero, mesmo por aqueles que propuseram a existência de diferentes tipos de inteligência.
4.2.1.4 Cattell e Horn: inteligência fluida e cristalizada No âmbito da perspectiva psicométrica e usando a análise factorial, Cattell (1963) e o seu discípulo Horn (e.g., Horn e Cattell, 1966) propuseram uma divisão do factor geral de inteligência g em duas dimensões que designaram por inteligência fluida e inteligência cristalizada. Esta classificação revelou-se bastante promissora. A inteligência fluida foi assim designada porque era capaz de fluir através dos muitos tipos de actividades mentais ou cognitivas. Seria a habilidade para pensar e raciocinar em termos abstractos, formar conceitos, raciocinar de forma indutiva partindo do particular para o geral e resolver criativamente novos problemas. É uma dimensão que reflecte o potencial de cada indivíduo. Aumenta gradualmente ao longo da infância e juventude (acompanhando a maturação do sistema nervoso) iniciando por volta dos 30 anos uma diminuição lenta e progressiva durante o resto da vida. É um tipo de inteligência dependente mais dos genes e das estruturas neurofisiológicas. Por esta razão não é tão influenciada pelos processos de educação e aculturação como a inteligência cristalizada. É medida através de testes de raciocínio, analogias de palavras e figuras. A inteligência cristalizada caracterizaria antes uma espécie de produto final das experiências de que uma pessoa é portadora num determinado momento da vida. Seria a capacidade aprendida para resolver problemas baseados em conhecimentos resultantes da experiência acumulada da pessoa. É uma dimensão com uma base mais cultural. Representa a influência dos processos educativos e culturais e aumenta ao longo da vida da pessoa, estabilizando por volta dos 50-60 anos. Inclui o conhecimento e competências medidos pelos testes de informação geral, vocabulário e compreensão da leitura, resolução de problemas que dependem do conhecimento geral adquirido. Veja-se uma reformulação mais recente em Horn (1985).
4.2.1.5 Carroll: a teoria dos estratos de inteligência Carroll (1993) reanalisou por meio da análise factorial exploratória 461 bases de dados sobre diferenças individuais obtidas em testes mentais de 1927 a © Universidade Aberta
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1987 em 19 países diferentes. Carroll obteve uma estrutura hierárquica de inteligência com três estratos (ou níveis) de habilidades cognitivas. Um estrutura hierárquica significa que “quando o factor A ‘domina’ o factor B e C, isto implica a existência de um grupo de variáveis que medem todas o factor A, além de sub-grupos de outras variáveis diferentes que medem apenas os factores B e C, respectivamente. Em geral, o factor A situa-se numa ordem superior de análise em relação aos factores B e C” (Carroll, 1993, ob. cit. p. 72). Carroll situou no topo da hierarquia, estrato III, o factor geral de inteligência g que seria basicamente expresso pelo QI. No nível intermédio, estrato II, haveria sete factores gerais: (1) Inteligência fluida; (2) inteligência cristalizada; (3) aprendizagem e memória; (4) percepção visual; (5) percepção auditiva; (6) fluência e evocação; (7) rapidez cognitiva geral. A ordem destes sete factores representa uma maior proximidade (ex., 1. inteligência fluida) ou afastamento (ex., 7. rapidez cognitiva) em relação ao factor geral de inteligência situado no topo. Na base da hierarquia, estrato I, agrupar-se-iam tarefas ou testes cognitivos associados apenas a um factor específico do estrato II. Assim no caso do factor (3) ‘aprendizagem e memória’, as tarefas cognitivas específicas seriam a aprendizagem associativa e a evocação livre. Para Carroll os factores do estrato II corresponderiam a fenómenos reais que governam e controlam a actividade cognitiva da pessoa. Porém o modelo não toma partido por qualquer teoria psicológica (cognitiva ou beaviorista), embora uma interpretação dos factores possa apelar a operações cognitivas como a memória operatória e a memória a longo prazo. Carroll admitiu que a sua teoria dos três estratos de inteligência apresentava semelhanças com outras teorias que assumem um modelo hierárquico como a de Spearman, Thurstone, Vernon, Cattell e Horn, mas não com teorias de tipo taxonómico como as de Guilford e eventualmente Gardner e Sternberg. Uma das vantagens principais da teoria dos três estratos de Carroll é a possibilidade de demarcar o tipo de correlações entre variáveis psicométricas e variáveis cognitivas que podem vir a ser exploradas no âmbito de tarefas de processamento de informação.
4.2.1.6 Jensen: o factor g de inteligência Jensen (1980, 1998) é um continuador da teoria do factor geral de inteligência g de Spearman. O factor g é uma hipótese teórica que tenta descrever o fenómeno quantitativo designado por correlação múltipla positiva. Isto é, a 186
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presença de correlações positivas entre todos os testes mentais, independentemente do conteúdo, modalidade ou outras características superficiais, quando os testes são passados a amostras representativas da população geral. O factor g não está directamente ligado a nenhum tipo específico de conteúdo ou a nenhuma habilidade cognitiva adquirida. Se um teste de inteligência fosse um alforge de tarefas cognitivas sem qualquer ligação entre si e sem qualquer factor comum, então não se verificaria a tal correlação positiva. O factor g seria um indicador indirecto da habilidade geral comum a todas as tarefas mentais mensuráveis. A questão crucial do factor g é a seguinte: Qual a natureza do processo mental que governa a actividade das pessoas para desempenharem melhor ou pior qualquer teste, mesmo quando os testes são diferentes em termos de conteúdo e modalidade sensorial? A teoria do factor g de Jensen pretende descobrir e explicar as causas desta “correlação positiva”, que considera um fenómeno central da ciência comportamental. Algumas das principais teses de Jensen são as seguintes: 1. O g é um construto teórico que representa um fenómeno observável, isto é, a intercorrelação positiva entre todos os testes mentais, independentemente da sua enorme diversidade. O g seria o ingrediente activo da inteligência humana. 2. O significado e importância dos testes mentais advém do facto de medirem o factor g. O factor g prevê o desempenho de qualquer tipo de comportamento que faça apelo a situações de aprendizagem, tomada de decisão e resolução de problemas. É possível construir testes que meçam apenas o factor g sem mais nada, como acontece com o teste de Raven. Não é possível construir porém testes que meçam as habilidades específicas do tipo de Thurstone ou de outros investigadores sem medir também de alguma forma o g. O g tem maior capacidade preditiva em termos de sucesso escolar, programas de treino militar e emprego do que qualquer outro factor alternativo, ou grupo de factores independentes de g. 3. O que é hereditário na inteligência tem a ver na maior parte com o g. Os restantes factores expostos pela análise factorial têm um peso hereditário bastante reduzido. O factor g tem uma base biológica e como qualquer função biológica na espécie humana é um produto dos processos evolutivos. Jensen (1998) defendeu que o g é a componente mental mais importante que uma pessoa deve desejar possuir para obter sucesso na escola, no emprego e na vida. O segundo traço mais importante é o desejo de realização e motivação. Por muito inteligente que uma pessoa seja, se não tiver um desejo forte de © Universidade Aberta
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realização, se for preguiçosa, se não se esforçar, não irá conseguir afirmar-se nem evidenciar-se. Mas a motivação e esforço por maiores que sejam, poucos efeitos terão se não forem apoiados por uma inteligência geral.
4.2.1.7 Estrutura de inteligência e análise factorial A teoria da habilidade geral ou g de Spearman não foi muito popular no seu tempo e continua a não ser popular actualmente e o mesmo acontece com a teoria de Jensen (1998). É mais popular a noção de que a inteligência é constituída por muitas habilidades mentais especializadas e que as pessoas são melhores numas do que noutras. Partilhando em maior ou menor grau das fatias do bolo da inteligência, todos se sentem talvez um pouco mais felizes e seguros de si. As concepções iniciais de inteligência aplicaram a análise factorial a fim de isolar factores ou habilidades gerais e específicas de inteligência, mas este procedimento não permite fornecer informação sobre a natureza dos processos mentais envolvidos. É ainda uma perspectiva que torna difícil testar diferentes teorias alternativas de inteligência. Os opositores da análise factorial referem que o padrão de agrupamentos que surge na aplicação da análise factorial (donde às vezes resulta um factor geral ou vários factores independentes) depende do número e tipo dos testes usados e da diversidade cultural, escolar e social das amostras de sujeitos. Assim a emergência de um factor geral dominante g é mais provável aparecer com a aplicação de um pequeno número de testes similares a amostras de sujeitos muito diversas. Em contraste, a análise factorial poderá fazer emergir um número maior de factores independentes quando são aplicados um número maior e mais diferenciado de testes a amostras mais homogéneas de sujeitos. Esta hipótese parece ter actualmente pouco apoio após a publicação do trabalho gigantesco realizado por Carroll (1993) que verificou não só a presença de um factor geral, mas também de outros factores específicos, organizados num sistema hierárquico. No âmbito da teoria psicométrica, o modelo de inteligência mais aceite defende a existência de diversas habilidades mentais específicas dependentes hierarquicamente de um factor geral, estando o desempenho do sujeito dependente de ambos. No entanto, saber se a inteligência é melhor representada por um factor geral, por várias habilidades específicas ou ambas é uma questão ainda em aberto.
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4.2.2 Teorias de processamento de informação A abordagem factorial dominou os estudos de inteligência até à década de 70. Com o surgimento da psicologia cognitiva experimental, a inteligência passou a ser concebida como uma componente da mente que afecta as várias fases de processamento da informação. Segundo o modelo de processamento de informação, a inteligência é concebida como uma série de processos que as pessoas usam para resolver problemas. Assim uma pessoa é mais inteligente do que outra, quando conhece o processo melhor e mais eficaz para resolver um problema, ou quando percorre de forma mais rápida os diversos passos para o resolver. A inteligência é tudo o que a mente faz ao processar a informação. A mente recebe informação, armazena-a na memória, analisa, compara, transforma-a e por fim planeia a execução de uma resposta. As operações executadas em cada fase podem ser mais adequadas e eficazes, mais rápidas ou demoradas, do mesmo modo que os programas de computador são melhores ou piores, mais rápidos ou mais lentos. A ênfase posta na rapidez de processamento, na eficácia, ou em ambas, assim como na complexidade dos processos mentais envolvidos, diferencia os diversos investigadores que adoptaram o modelo de processamento de informação no estudo da inteligência. Os investigadores analisam as operações envolvidas na realização das tarefas laboratoriais de processamento de informação, verificam o modo como os sujeitos as realizam e depois obtêm correlações com medidas de inteligência geral. O objectivo é determinar quais as operações consideradas essenciais na realização de uma tarefa e a sua relação com a inteligência geral. Estas tarefas podem ser a medição de movimentos oculares e potenciais de evocação cerebral, a velocidade de identificação de letras ou linhas desiguais, tempos de reacção simples ou de escolha, resolução de analogias verbais ou de problemas. O objectivo destas medições é avaliar a eficácia em termos de precisão e rapidez de cada um destes processos. Os resultados obtidos em diversos estudos têm revelado uma correlação significativa entre a realização de tarefas simples de processamento de informação e medidas de inteligência geral. Esta perspectiva retoma a tradição iniciada por Galton (1822-1911) nos finais do séc. XIX, que pretendeu medir a inteligência a partir de habilidades mentais simples. Binet interrompeu esta tradição ao avaliar a inteligência em termos de habilidades mentais de nível superior. Alguns dos investigadores mais conhecidos no estudo da inteligência, estudada no âmbito do modelo de processamento da informação, são Richard Haier, Ted Nettelbeck, Arthur
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Jensen, Earl Hunt, Herbert Simon e Robert Sternberg. Alguns dos estudos mais significativos são referidos a seguir.
4.2.2.1 Haier: inteligência e o metabolismo da glucose Haier foi um dos investigadores que na década de 90 usou técnicas de imageologia cerebral (tomografia por emissão de positrões - PET na sigla inglesa) a fim de observar o cérebro durante a realização de tarefas cognitivas inteligentes, como o teste de Raven ou o jogo de computador Tetris. Haier estabeleceu depois correlações entre o desempenho nas provas e certas características do funcionamento cerebral, nomeadamente o modo como o cérebro metaboliza a glucose durante a realização das actividades cerebrais (Haier, 1993) e verificou uma correlação negativa. Esta correlação negativa significa que as pessoas que obtêm resultados elevados nos testes de inteligência tendem a usar globalmente menos glucose ao nível do metabolismo cerebral do que cérebros de pessoas menos eficientes. Verificou-se ainda que os cérebros de indivíduos com atrasos mentais, como os portadores da síndroma de Down, revelam valores metabólicos cerebrais mais elevados do que grupos de indivíduos normais. Parece assim que os cérebros das pessoas mais inteligentes consomem globalmente menos glucose (açúcar) do que os cérebros de pessoas menos eficientes na realização de uma tarefa. Apesar da grandeza por vezes elevada deste tipo de correlações ainda se está longe de compreender os mecanismos neuronais que são responsáveis por esta correlação.
4.2.2.2 Nettelbeck: inteligência e tempo de inspecção Nettelbeck (1987) descobriu uma correlação significativa entre o tempo de inspecção (duração) de uma figura simples e os resultados em testes de inteligência. A figura era formada por duas linhas verticais de 25 e 35 mm alinhadas no topo por uma linha horizontal e a tarefa do sujeito era identificar se a linha vertical maior se situava à direita ou à esquerda. Para o efeito o experimentador aumentava ou diminuia o tempo de inspecção de forma a assegurar um nível superior a 90% de respostas correctas. Nettelbeck verificou que o tempo menor de inspecção da figura estava relacionado com valores maiores de inteligência em vários testes da WAIS. Assim uma pessoa inteligente era aquela que era capaz de inspeccionar mais rapidamente uma figura simples e indicar onde se encontrava a diferença. 190
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Uma meta-análise efectuada em vários estudos deste tipo situou o valor de correlação em r=-0,30, elevando-se para r=-0,55 quando factores de correcção de erros foram tidos em conta (Kranzler e Jensen, 1989). Brand foi um dos pioneiros do estudo desta tarefa e referiu uma correlação de r=-0,75 entre tempo de inspecção e QI para o conjunto de amostras representativas da população em geral, incluindo crianças, idosos e atrasados mentais (Brand, 1996).
4.2.2.3 Jensen: inteligência e tempos de reacção de escolha Jensen (1987) defendeu a hipótese de que a inteligência está relacionada com a rapidez de condução dos circuitos neuronais do sistema nervoso. Jensen efectuou experiências de tempos de reacção de escolha e verificou que os sujeitos com um QI superior apresentavam valores mais baixos de tempos de reacção (maior rapidez). A correlação entre testes de inteligência e tempos de reacção situou-se entre r=-0,30 a r=-0,40. Assim uma componente importante da inteligência é a velocidade de processamento da informação das tarefas a realizar (e.g., Vernon e Weese, 1993).
4.2.2.4 Hunt: inteligência e acesso lexical Hunt (1978, 1990) propôs também que a inteligência estava relacionada com o tempo de reacção, nomeadamente ao nível da velocidade de acesso lexical. Hunt usou a tarefa de Posner (Posner e Mitchell, 1967) onde são apresentadas pares de letras, tipo “A-A”, “A-a” e “A-b”. A tarefa dos sujeitos é indicar se cada par é idêntico em termos físicos (A-A) ou se em termos de nome (A-a). A identidade física envolve apenas uma comparação na memória a curto prazo (MCP), mas a identidade de nome envolve o acesso suplementar à informação armazenada na memória a longo prazo (MLP). A velocidade de acesso lexical seria medida através do tempo de acesso à MLP. Hunt verificou que grupos de sujeitos com inteligência verbal alta ou baixa obtiveram tempos de reacção equivalentes na tarefa de identidade física; porém na tarefa de identidade de nome, o grupo com inteligência verbal superior respondeu mais rapidamente cerca de 25 a 50 milésimos de segundo. Um vigésimo de segundo pode parecer ridiculamente baixo para diferenciar a inteligência das pessoas, mas quando esta diferença é adicionada aos milhares e milhares de letras que compõem um texto, o tempo total do processamento do texto pode tornar-se numa diferença considerável. Este padrão de resultados foi reproduzido com diferentes tipos de grupos, como crianças de 10 anos, universitários e idosos. © Universidade Aberta
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4.2.2.5 Simon: inteligência e resolução de problemas Simon (1976) interessou-se por problemas mais complexos do que os precedentes. Entre estes contam-se alguns bem conhecidos da literatura psicológica de resolução de problemas como o problema dos “jarros de água” ou o problema dos “canibais e missionários” . Um problema típico de jarros de água envolve uma situação inicial em que há três jarros com capacidades diferentes de 8, 5 e 3 litros; o jarro de 8 litros está cheio e os outros dois estão vazios. O objectivo é efectuar transferências de quantidades de água entre os jarros, sem qualquer ajuda externa em termos de medição, de forma a obter-se dois volumes de 4 litros cada nos jarros de 8 e 5 litros. O problema dos canibais e missionários refere que na margem de um rio estão 3 canibais e 3 missionários e o objectivo é fazê-los passar a todos para a outra margem de barco. Há duas importantes restrições: o barco apenas leva duas pessoas de cada vez; os canibais não podem estar em maioria em cada margem senão comem os missionários! Estes dois problemas têm estados iniciais e finais bem definidos e podem ser ainda objecto de simulação por computador. O objectivo é aproximar o estado inicial do estado final por meio de uma série de operações ou procedimentos de forma a atingir objectivos intermédios que se aproximem do objectivo final desejado. Newell e Simon (1972) estudaram as estratégias seguidas pelas pessoas, o tempo gasto no estabelecimento e resolução de objectivos intermédios, a capacidade da memória operatória e verificaram que as pessoas mais inteligentes não só organizavam a sequência de processos e operações de forma mais eficaz, mas também revelavam ter uma memória operatória com maior capacidade.
4.2.2.6 Sternberg: inteligência e analogias Sternberg (1984) investigou os processos mentais e estratégias envolvidas na realização de tarefas incluídas nos testes convencionais de inteligência, nomeadamente ao nível das analogias verbais e séries numéricas. Uma analogia pode ser representada pela sequência A está para B, assim como C está para D, ou simbolicamente A:B::C:D. Na maior parte dos casos o termo D é omitido pelo investigador e a tarefa do sujeito é escolher a resposta certa a partir de duas ou mais alternativas, do tipo:
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Advogado: Cliente: Médico:? (a. Doente; b. Medicina) Resolver analogias implica dividir o problema global em várias fases, resolver cada fase numa certa ordem ou sequência de processamento de informação até o problema estar totalmente resolvido. Assim na analogia acima referida e de acordo com Sternberg é possível determinar cinco fases: 1. O sujeito codifica ou determina o significado específico dos termos usados na analogia, como advogado e médico. Neste caso os conceitos são familiares, mas há outras analogias em que os termos usados são pouco comuns. 2. O sujeito relaciona advogado e cliente, deduzindo daí uma relação (por ex., o advogado presta serviço a um cliente ou o advogado é pago pelo cliente). 3. O sujeito determina uma relação de ordem superior entre a primeira parte da analogia e a segunda parte (por ex., advogado e médico são profissionais que prestam serviços e são pagos por quem os usufrui). 4. O sujeito aplica a relação deduzida na primeira parte da analogia à segunda parte, seleccionando a alternativa mais adequada, neste caso doente em vez de medicina. 5. O sujeito indica a resposta. Este tipo de analogia implica a dedução e aplicação de relações semânticas em torno do significado das palavras. Há ainda outro tipo de analogias de natureza figurativa que implicam relações de natureza visual, como as existentes entre imagens que variam em termos de forma, número e cor, como sucede no teste das matrizes de Raven. Sternberg estudou a inteligência em termos de processamento de informação, analisando o modo como a informação é internamente representada; o tipo de estratégias usadas no processamento da informação; o tipo de componentes mentais usadas para executar as estratégias; o tipo de decisões tomadas sobre as estratégias a seguir. Sternberg considerou o estudo das componentes de processamento de informação um objectivo mais importante e esclarecedor sobre o funcionamento da inteligência do que a simples medição da velocidade mental, como fizeram outros investigadores. Mesmo assim Sternberg não descurou a medição da velocidade de processamento dos diversos componentes no raciocínio de analogias. Verificou até que os sujeitos considerados mais inteligentes nos testes tradicionais de inteligência demoravam mais tempo a codificar os termos do problema do que
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os sujeitos menos inteligentes, mas o tempo extra, gasto na fase inicial, era aproveitado para executar melhor e mais rapidamente os restantes componentes da tarefa. Isto significa que os sujeitos mais inteligentes gastam mais tempo no planeamento global da tarefa e menos tempo na execução local em termos da aplicação das estratégias específicas. Este gasto suplementar de tempo no planeamento global da tarefa, realizado no início, tinha a vantagem de assegurar que as estratégias específicas de resolução da tarefa fossem correctamente escolhidas e capazes de serem executadas. A perspectiva de processamento de informação é um modelo importante para o estudo da inteligência humana. A descoberta de que as habilidades a nível verbal, numérico e espacial, que formam a inteligência, podem envolver processos cognitivos bastante simples constitui uma linha de investigação bastante prometedora. Esta perspectiva ressaltou também o papel fundamental da memória no desempenho intelectual, tendo em conta nomeadamente a rapidez e precisão da recuperação da informação na memória a longo prazo; a extensão e organização dos conhecimentos de base (desempenho de principiantes versus peritos num qualquer domínio); e a capacidade da memória operatória, enquanto fonte importante de diferenças individuais a nível cognitivo. As correlações obtidas entre o QI e as medidas de rapidez de processamento cognitivo podem significar que uma pessoa inteligente é aquela que processa a informação de forma mais rápida. Na realidade isto pode ser ou não assim. A correlação é um valor que indica a força da ligação entre duas variáveis, mas não indica qual é a direcção causal. Pode acontecer que uma pessoa mais inteligente realize de forma mais rápida as tarefas mentais, como também pode suceder que um cérebro mais eficiente e rápido promova um desenvolvimento intelectual superior; ou ambas as coisas (Neisser et al., 1996).
4.2.3 Teorias de desenvolvimento cognitivo As teorias de desenvolvimento cognitivo estudam as mudanças qualitativas que ocorrem no pensamento da pessoa ao longo da vida, tendo em conta as influências de natureza biológica (maturação) e da experiência com o meio (aprendizagem). As teorias clássicas mais importantes do desenvolvimento cognitivo, nomeadamente a nível intelectual, foram as teorias de Piaget e de Vygotsky, cuja descrição breve será feita a seguir. Para informações complementares veja-se Lourenço (1997). 194
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4.2.3.1 Teoria de Piaget Piaget (1896-1980) propôs uma teoria do desenvolvimento cognitivo constituída por quatro fases qualitativamente distintas que ocorrem numa progressão fixa ao longo da infância e adolescência. Cada uma destas fases constituía uma estrutura de desenvolvimento específica e foram assim designadas: sensóriomotora (0-2 anos), pré-operatória (2-7 anos), concreta (7-11 anos) e formal (acima dos 12 anos). A ordem destas fases é invariante, mas há alguma variabilidade no tempo em que cada criança atinge cada fase (Piaget, 1967). Em cada fase há uma adaptação complexa crescente da criança ao meio devido sobretudo a processos fisiológicos de maturação. O desenvolvimento intelectual ocorre por meio de três processos fundamentais: assimilação, acomodação e equilibração. A assimilação envolve a incorporação de novos acontecimentos nas estruturas cognitivas pré-existentes da criança. A acomodação representa as modificações ao nível dos esquemas da criança de forma a integrar os elementos novos do meio. A equilibração representa o equilíbrio entre assimilação e acomodação, um processo de resolução de esquemas conflituais e a respectiva integração em novas estruturas. A actividade do sujeito não é caótica; está organizada em esquemas e estruturas. Um esquema seria uma acção que se repete e se aplica a situações comparáveis, como os esquemas de ordem e classificação. O conceito de estrutura refere-se aos tipos de organização qualitativamente diferentes do ser humano, como as estruturas sensório-motoras e pré-operatórias. Quando um esquema se desenvolve, a assimilação assegura que a nova aprendizagem, representada pelo esquema, se consolide, isto é, que possa ser usada repetidamente e até de forma automática. Mas a assimilação, considerada isoladamente, tornaria o comportamento rígido e inflexível, dificultando assim o desenvolvimento. Seria através da acomodação que as mudanças nos esquemas actuais se realizariam, de forma que a criança se possa adaptar à realidade. Assim a assimilação e a acomodação são processos necessários e complementares, constituindo ambos o processo fundamental de adaptação. Piaget considerou que a progressão do desenvolvimento cognitivo faz-se através do processo de maturação biológica e ocorre em grande parte de dentro para fora. A capacidade para aprender qualquer conteúdo cognitivo está sempre dependente da fase do desenvolvimento intelectual atingido. O ambiente pode facilitar ou impedir o desenvolvimento intelectual, mas tem menos influência do que a maturação.
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4.2.3.2 Teoria de Vygotsky Vygotsky (1896-1934) foi um psicólogo russo que ressaltou o papel do meio social no desenvolvimento intelectual da criança. Defendeu que as habilidades intelectuais, como a linguagem e o pensamento, tinham uma origem social, sendo inicialmente aprendidas por meio dos pais e mais tarde por meio dos professores e da sociedade. O desenvolvimento intelectual procede de fora para dentro por meio do processo de interiorização. A interiorização era o processo de absorção do conhecimento a partir do ambiente ou contexto. Numa fase de desenvolvimento a criança situa-se face a três tipos de habilidades intelectuais: Há habilidades que a criança domina; outras que começou a aprender e que pode usar com ajuda; outras ainda que estão para além das suas habilidades actuais. Nesta hierarquia de habilidades, Vygotsky introduziu a noção de zona de desenvolvimento proximal (ZDP), uma zona que seria constituída por um conjunto de habilidades que a criança ainda não domina, mas que tem o potencial de adquirir e aplicar, se as circunstâncias se proporcionarem. Cada criança em cada fase é portadora de um leque de habilidades que se situam entre aquilo que é capaz de realizar agora (desempenho) e aquilo que potencialmente pode vir a realizar se for libertada do meio, que nunca é o meio óptimo de desenvolvimento intelectual, embora possa umas vezes ser melhor do que outras. Vygotsky defendeu que os testes convencionais de inteligência testavam apenas a inteligência estática e não a inteligência dinâmica que o conceito de ZDP implica. A principal objecção que se pode apresentar refere que, se a avaliação da inteligência estática é já de si uma tarefa bastante complexa, então a avaliação do potencial intelectual de cada um torna-se duplamente complexo. Os investigadores ressaltaram ainda o facto de que o desempenho de gémeos monozigóticos adoptados por famílias de meios sociais diferentes apresentarem uma correlação bastante elevada de QI. Isto prova que, se o meio é importante, os genes têm um papel não menos importante.
4.2.4 Teorias contextuais A inteligência envolve factores universais comuns a todas as pessoas, mas também há aspectos da inteligência que são valorizados por uma cultura e considerados menos relevantes noutra cultura. Por sua vez as características da personalidade de uma pessoa são capazes de potenciar ou de limitar o desempenho intelectual. Sternberg e Gardner são alguns dos investigadores 196
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que formularam teorias de inteligência que têm em conta variáveis da cultura e da personalidade. Eis uma breve descrição de cada.
4.2.4.1 Sternberg: teoria triárquica de inteligência Sternberg concebe a inteligência como uma interacção complexa de capacidades de processamento de informação, experiências específicas e influências contextuais ou culturais. A inteligência seria um conjunto de actividades mentais que têm por objectivo a adaptação, a regulação e a selecção de situações ambientais relevantes para a vida de cada um. Sternberg (1985, 1996) propôs uma teoria de inteligência, que designou de inteligência triárquica, significando que a inteligência inclui três tipos de habilidades principais, que orientam a pessoa em relação ao seu mundo interno (analítica), ao mundo externo (prática) e entre o mundo interno e externo (criativa). • Analítica. Habilidade para realizar tarefas que envolvem diferentes fases, passos ou componentes. Inclui as habilidades típicas dos testes tradicionais de inteligência com problemas bem definidos que apresentam apenas uma resposta. Envolve processos cognitivos como a compreensão verbal, resolução de analogias, séries numéricas e silogismos, aquisição e armazenamento da informação. Às vezes designada por inteligência académica ou componencial. A inteligência analítica é considerada por alguns como uma componente equivalente (ou disfarçada) do factor g de Spearman e Jensen. • Prática. Habilidade para fazer face ao dia a dia da pessoa. Refere-se à componente adaptativa do comportamento ao meio ambiente, de modo a entender as situações, resolver problemas práticos e conseguir um relacionamento adequado com as pessoas. Envolve situações em que surgem problemas mal-definidos com soluções múltiplas. Designada também por inteligência contextual. • Criativa. Habilidade para perceber soluções criativas e inovadoras face a novos problemas. Baseia-se na experiência passada da pessoa e permite codificar, inventar, planear e pensar a informação de forma a criar novas ideias, teorias e descobertas. Designada também por inteligência experiencial. A inteligência analítica é a componente mais desenvolvida em termos teóricos, mas Sternberg reconhece que é útil pensar a inteligência em termos de um modelo que integre os três tipos de habilidades ou competências. Há pessoas que podem ser mais inteligentes a resolver problemas abstractos e académicos,
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enquanto outras podem sê-lo na resolução de problemas práticos e concretos. Para Sternberg uma pessoa inteligente não é aquela que é dotada e distinta em todos os aspectos da inteligência. É antes a pessoa que conhece os seus pontos fortes e fracos e que é capaz de capitalizar nos fortes e compensar, remediando nos fracos. O modelo de inteligência de Sternberg reconhece, por um lado, que todas as pessoas têm algo de comum em termos de competência intelectual ao nível da componente analítica, mas por outro é capaz de integrar a diversidade e multiplicidade da experiência e cultura humanas ao nível das componentes prática e criativa. Há de facto pessoas dotadas em termos académicos que são consideradas socialmente inaptas, e vice-versa. Formular um modelo de inteligência que integra ao mesmo tempo as competências analíticas, práticas e criativas parece fazer sentido. Sternberg considera que os testes tradicionais de inteligência não são o melhor método para prever quais as pessoas que irão ser bem sucedidas, por exemplo em termos de negócios, uma área que requer competências intelectuais elevadas. Objecta-se todavia que os testes tradicionais de inteligência apresentam uma correlação significativa com o desempenho profissional. Mesmo assim, os testes têm um poder preditivo maior para certas ocupações, aquelas que exigem especialmente competências académicas e graus universitários para serem desempenhadas, como a medicina, direito e engenharia.
4.2.4.2 Gardner: teoria das inteligências múltiplas Gardner (1983, 1993) concebeu a inteligência de forma modular. O cérebro humano estaria organizado em termos de módulos diferenciados, cada um dos quais seria responsável por um tipo de inteligência diferente. A inteligência é um nome que classifica as actividades conjuntas destes módulos. Haveria sete módulos independentes e distintos, que determinavam o comportamento inteligente das pessoas. Não há lugar para um factor unitário g, mas Gardner admite que as diversas inteligências podem actuar em conjunto para produzir um comportamento considerado inteligente. As sete inteligências propostas por Gardner são: Linguística – habilidades verbais usadas na fala, na audição, leitura e escrita; lógico-matemática – raciocínio lógico e resolução de problemas de tipo matemático ou quebra-cabeças; espacial – formar imagens espaciais, ler um mapa, encontrar o melhor caminho entre dois locais; arrumar o maior número de itens num espaço compacto, como pratos na máquina de lavar ou malas no carro na viagem de férias; musical – criação de melodias e ritmos, tocar 198
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instrumentos musicais e apreciação musical; corporal e quinestésica – expressa através da dança, ginástica, patinagem, desporto e ilusionismo; interpessoal – compreender os outros, perceber o que sentem, o que os motiva e interessa e saber interagir; intrapessoal – conhecer-se a si próprio, descobrir os pontos fracos e como os melhorar, desenvolver o sentido de identidade. Estas sete inteligências apresentam algumas similaridades com os sete domínios de habilidade cognitiva do estrato II de Carroll (1993) — que este aliás reconhece —, com excepção da inteligência corporal e da inteligência intrapessoal. As inteligências de Gardner não são o mesmo que as habilidades mentais primárias de Thurstone, que no seu todo formavam a inteligência; são antes sistemas específicos de funcionamento intelectual. Gardner reconhece que no estado presente não estão ainda identificados todos os módulos da inteligência, mas com o desenvolvimento da investigação cerebral esta tarefa poderá um dia vir a ficar completa. Um modelo formado por inteligências múltiplas relativamente independentes tem como corolário o desinteresse na medição da inteligência em termos de um factor geral ou g. Gardner criticou de facto a medição da inteligência em termos de um factor geral. Sendo uma pessoa portadora de diferentes inteligências, umas mais fortes do que outras, o que deve ser medido é cada inteligência própria. As provas científicas para apoiar as inteligências múltiplas são limitadas, mas mesmo assim Gardner defendeu um apoio cerebral para a sua existência. Gardner recorreu ao estudo de casos para apoiar o seu modelo, apontando vários critérios responsáveis pela independência dos diferentes sistemas de inteligência, nomeadamente: • O isolamento potencial por meio de lesões cerebrais. Danos ou destruição de zonas do cérebro afectam tipos específicos de comportamento inteligente, como é o caso da linguagem, memória ou movimentos corporais, mas deixam outros relativamente inalteráveis, como se observa em casos de afasia ou dos doentes de Parkinson. • A existência de prodígios numa área intelectual específica (como a música, cálculo matemático ou memória), com atraso relativo ou acentuado nas restantes áreas. • Provas de natureza psicométrica que indicaram habilidades intelectuais diferentes; provas de natureza cognitiva-experimental que revelaram um desempenho diferenciado em tarefas de tipo verbal ou espacial. • Susceptibilidade de codificação num sistema de símbolos específico como o sistema de notação matemático, ou no geométrico, verbal, musical, quinestésico e facial-expressivo.
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• A necessidade de operações específicas para executar um determinado tipo de inteligência, como sucede na música, matemática, fala ou escrita. Gardner propôs uma teoria de inteligências múltiplas que tem recebido um melhor acolhimento na imprensa popular do que na imprensa científica. Gardner é criticado por ter reunido no mesmo modelo habilidades mentais e talentos comportamentais, dilatando demasiado a fronteira do conceito de inteligência e das habilidades consideradas específicas. Assim as inteligências inter- e intrapessoais não seriam propriamente inteligências, mas antes traços de personalidade; a inteligência musical seria antes um talento ou aptidão específica; a inteligência quinestésica seria também uma aptidão corporal. Uma pessoa é geralmente considerada inteligente ou não, independentemente de ter ou não competência em termos musicais ou desportivos. Uma pessoa pode ser completamente incapaz em termos de memória musical, ser surda e coxa e revelar mesmo assim inteligência geral e prática, uma boa adaptação ao meio e obter até um bom resultado num teste convencional de inteligência. A execução musical, a dança, a ginástica artística e o relacionamento pessoal, por mais excepcionais que sejam, são geralmente incluídos na categoria especial de talentos. São capacidades importantes para quem opta por determinadas áreas, mas muitos investigadores não as incluem na categoria de inteligência ou de habilidades intelectuais. A teoria de inteligências múltiplas de Gardner é consoladora e reconfortante para a maioria das pessoas que se consideram melhores numa área do que noutra. Mas há investigadores que julgam que Gardner foi longe de mais ao incluir no conceito de inteligência certo tipo de talentos ou aptidões. Em defesa de Gardner, os antropologistas dirão que o conceito de inteligência é uma criação humana e inclui por isso uma componente cultural e uma visão do mundo. Se a definição mais cognitiva de inteligência, que é o resultado de uma certa visão cultural do mundo ocidental, se vier a modificar na direcção de Gardner, então a dança e a música, que muitos consideram talentos, poderão vir a ser consideradas inteligências no futuro.
4.2.4.3 A inteligência emocional Durante a década de 90 falou-se muito de inteligência emocional, em grande parte devido à popularidade internacional do livro Inteligência Emocional de Goleman (1997). Refira-se no entanto que o conceito de inteligência emocional foi inicialmente proposto por Salovey e Mayer (1990). A inteligência emocional é a habilidade para identificar e controlar os próprios sentimentos e emoções, usando a informação obtida para guiar o pensamento e a acção. As habilidades 200
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envolvidas na inteligência emocional incluem a identificação e a compreensão das emoções no próprio e nos outros; a expressão e a regulação das emoções; o uso das expressões emocionais de forma adaptativa. Este tema será objecto de maior desenvolvimento no Capítulo 6 deste livro na secção Emoção e Cognição. A medição da inteligência emocional em termos das várias habilidades que a constituem representa um projecto de investigação que alguns investigadores consideram importante seguir. Pela minha parte penso que o alargamento do conceito de inteligência à emoção é inadequado, como também o seria se se investigasse a inteligência da motivação, a inteligência da personalidade e a inteligência da visão (Hoffman, 1998). A inteligência simplesmente cognitiva, já de si tão complexa, não se torna mais clarificadora com o alargamento do conceito tradicional para incluir a inteligência emocional. Em contraste, a relação entre “emoção e cognição” é um tema que tem sido e merece continuar a ser objecto de intensa investigação. A inteligência e a cognição são conceitos com significados relacionados mas não coincidentes.
4.3
O problema da hereditariedade-meio
As pessoas diferem umas das outras no peso, altura, cor dos olhos e pele, e diferem também em termos de inteligência e outros processos mentais. A que se devem as diferenças de inteligência? Será devido a razões hereditárias e genéticas, ou será antes devido à influência do meio sócio-cultural em que a pessoa nasce e se desenvolve? O problema da hereditariedade-meio é o problema de saber até que ponto estas diferenças são devidas mais a factores genéticos ou mais a factores ambientais, ou à influência conjunta de ambos os factores. O que se compara em termos de diferenças de inteligência é a inteligência avaliada por testes padronizados, também designada por inteligência psicométrica. Abordar este problema, ou até mesmo referi-lo, é uma fonte permanente de controvérsias e até mesmo de aborrecimentos, já que representa uma das questões mais partidarizadas de toda a história da psicologia. A principal razão tem a ver com o facto de que um trabalho sério neste domínio tem de abordar o problema das diferenças de inteligência a nível individual e de grupo (género, nacionalidade, etnias e raça), diferenças estas que até hoje resistiram a todos os esforços teóricos e práticos para as erradicar. Na investigação das causas principais das diferenças individuais de inteligência, os investigadores recorrem ao estudo de gémeos a fim de se determinar se o factor genético é mais ou menos importante do que o factor ambiente (ou © Universidade Aberta
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sócio-cultural). De acordo com a perspectiva genética, o QI de dois indivíduos é tanto mais parecido quanto mais semelhantes forem em termos genéticos. Para os sócio-culturalistas, não são os genes que marcam as diferenças, mas o ambiente. Vamos descrever em seguida os principais argumentos de um lado e de outro.
4.3.1 Factores genéticos O estudo de gémeos e de crianças adoptadas constituem os principais procedimentos usados para se investigar a influência da hereditariedade nas diferenças individuais de inteligência. No estudo dos gémeos há uma distinção inicial importante que é preciso considerar. Os gémeos que se desenvolveram a partir de um mesmo e único óvulo fertilizado são geneticamente idênticos e do mesmo sexo e designam-se por monozigóticos (MZ). Os gémeos que se desenvolveram a partir de dois óvulos fertilizados têm aproximadamente 50% dos genes em comum, podem ser ou não do mesmo sexo e em termos genéticos são tão parecidos entre si como dois irmãos e designam-se por dizigóticos (DZ). Por circunstâncias diversas de ordem familiar e social, há gémeos que têm sido criados em ambientes diversos. Há assim: (1) Gémeos MZs criados juntamente na mesma família; (2) Gémeos MZs criados separadamente em famílias que podem ter estatutos sociais equivalentes ou diferentes, que vivem em meios próximos ou afastados entre si, facilitando ou não a comunicação entre eles; (3) Gémeos DZs do mesmo sexo ou de sexo diferente criados ou não na mesma família. A correlação em termos de QI de gémeos MZs criados separadamente determina a estimativa do grau de hereditariedade que influencia o QI: A hereditariedade é a mesma, mas o ambiente é diferente. A correlação em termos de QI entre crianças de pais biológicos diferentes criadas juntas na mesma família determina a estimativa do grau de influência familiar e ambiental no QI: O ambiente é o mesmo, mas a hereditariedade é diferente. A hipótese genética defende que quanto maior for a similaridade genética entre duas crianças, maior será a correlação entre o QI de ambas. McGue et al. (1993) referem coeficientes de correlação de vários estudos realizados desde a década de 30, cujo leque de valores obtidos são: Os valores de correlação dos gémeos MZs criados juntos variam entre +0,76 a +0,91; os gémeos MZs criados separadamente variam entre +0,68 a +0,78; os gémeos DZs criados juntos variam entre +0,51 a +0,64; os gémeos DZs do mesmo sexo têm um coeficiente de correlação de +0,62; a correlação entre DZs de sexo diferente é de +0,57; entre irmãos criados juntos é de +0,47; entre irmãos 202
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criados separadamente é de +0,24; entre primos é de +0,15; entre crianças de pais biológicos diferentes criadas na mesma família adoptiva vai de 0,00 a +0,19 (e.g., Bouchard et al., 1990; Lynn e Hattori, 1990). Estes coeficientes de correlação indicam que quanto maior é a similaridade genética, mais elevado é o coeficiente de correlação entre o QI de duas crianças, apoiando assim a hipótese genética. Os gémeos MZs não são semelhantes apenas em termos de QI, mas também a outros níveis. O estudo de Minnesota (EUA) de gémeos criados em separado revelou nalguns casos um padrão de similaridades surpreendente em termos de vestuário, gostos, preferências e hábitos quotidianos por parte de ambos os gémeos, mesmo após um período de separação de 47 anos (Tellegen et al., 1988; Atkinson et al., 1996, p. 432). As correlações acima apresentadas revelam também que quanto mais similar é o ambiente familiar e social, mais elevado é o QI. Os gémeos MZs criados juntos (+0,76 a +0,91) estão sujeitos não só a uma influência similar a nível genético, mas também a nível familiar. Sendo as duas influências similares, os dados deste tipo de gémeos não provam nada, argumentam os sócioculturalistas. Os geneticistas respondem que os gémeos MZs criados separadamente apresentam correlações mais elevadas (média de +0,72) em relação aos gémeos DZs do mesmo sexo criados juntos (média de +0,60). Se o meio sócio-familiar fosse mais importante do que a influência genética, a diferença deveria ser nula, mas não é. Este é de facto o tipo de resultados considerado como uma das melhores provas a favor da influência genética na inteligência (Bouchard, 1997). Os sócio-culturalistas apresentam algumas objecções pertinentes para relativizar a influência genética (e.g., Kamin, 1974; Eysenck versus Kamin, 1981). Uma análise mais cuidada dos gémeos criados à parte revelou que a separação dos gémeos foi parcial. Às vezes os gémeos MZs são criados por familiares, como tias e avós que vivem nas redondezas; alguns convivem com frequência e frequentam até a mesma escola. Quando os gémeos são colocados em famílias por agências de adopção, normalmente as agências escolhem famílias com estatuto semelhante, ficando assim o meio sócio-cultural mais equivalente do que a palavra separação deixa supor. Os geneticistas comportamentais contra-argumentam dizendo que a influência genética nas diferenças de inteligência é cada vez maior à medida que a criança cresce. À medida que uma criança se separa do seu meio familiar e escolhe mais ou menos inteligentemente o meio social onde deseja viver, o seu QI torna-se mais parecido com o dos seus progenitores. A hereditariedade é definida como a proporção da variância total que é atribuída a factores genéticos com um valor máximo de 1. Jensen (1998) referiu que o efeito da hereditariedade
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sobre o QI aumenta com a idade, situando-se entre 0,40 a 0,50 nas crianças, entre 0,60 a 0,70 nos adolescentes, e cerca de 0,80 por volta dos 60 anos. Plomin e Petrill (1997) obtiveram resultados semelhantes numa revisão da melhor investigação efectuada nesta área. Em contraste a influência do meio diminui com a idade. É maior na infância (0,35) e quase nula na adolescência (Neisser et al., 1996).
4.3.1.1 Adopção de crianças No debate entre hereditariedade e meio, foram ainda efectuados estudos com crianças dadas para adopção logo após o nascimento. Quando estas crianças adoptadas são criadas em famílias em que a mãe tem filhos naturais que com eles crescem, é possível investigar o grau de correlação entre o QI da mãe e o QI dos filhos naturais e adoptivos. Assim, se as diferenças de QI forem o resultado de factores sócio-culturais, então o QI das crianças adoptadas deve estar mais correlacionado com o da mãe adoptiva do que com o da mãe natural com quem nunca viveram. Mas se as diferenças de QI forem o resultado de factores genéticos, então o QI das crianças adoptadas deve estar mais correlacionado com o da mãe biológica, que lhes transmitiu metade dos seus genes, do que com o da mãe adoptiva que lhes transmitiu apenas o meio sócio-cultural. Horn (1983) verificou, no âmbito do projecto de adopção do Estado do Texas no EUA, que a correlação entre a criança adoptada e a mãe biológica era de +0,28 (apenas partilham os genes); entre a criança adoptada e a mãe adoptiva era de +0,15 (apenas partilham o meio); entre a criança natural e a mãe biológica era de +0,21 (partilham genes e o meio); entre irmãos biológicos era de +0,33. Estes resultados indicam que as crianças, criadas separadamente dos seus pais biológicos, são mais similares em termos de QI às mães biológicas do que às mães adoptivas. Este mesmo padrão de resultados foi obtido por Fulker et al. (1988), que em conjunto com o estudo anterior, indica que a partilha de genes conta mais do que a partilha do meio.
4.3.2 Factores ambientais e sócio-culturais Há vários estudos que demonstraram o papel importante dos factores ambientais e sócio-culturais nas diferenças individuais de inteligência. Alguns 204
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destes estudos são uma reinterpretação dos estudos de gémeos e de crianças adoptadas referidos anteriormente. A correlação média dos gémeos DZs é de cerca de +0,60 e entre irmãos é de cerca de +0,47. Esta diferença não pode ser explicada em termos de factores genéticos, porque a hereditariedade é de 0,50 em ambos. A diferença deve ser explicada por factores ambientais que afectam simultaneamente o desenvolvimento conjunto dos gémeos, em contraste com o dos irmãos. Talvez haja melhorias ao nível da situação familiar ou escolar, ou a outros níveis que sejam responsáveis pelo grau maior de similaridade nos gémeos. Nos estudos de adopção verificou-se também que o meio familiar e sóciocultural conta. Assim a correlação entre crianças adoptadas e a mãe adoptiva é baixa (cerca de +0,15), mas é maior e significativamente diferente de zero. Por outro lado, Schiff et al. (1978) estudaram 32 crianças francesas, filhas de pais da classe operária, que foram adoptadas antes dos seis meses por famílias da classe média superior. Quando o QI destas crianças foi comparado com o QI dos irmãos, que permaneceram com os pais biológicos, verificou-se uma diferença de QI de 111 para 95 respectivamente. A importância do meio pode ainda ser avaliada a partir dos resultados de programas de intervenção estatais em crianças de meios carenciados realizados nos EUA. Um dos programas de intervenção mais conhecidos foi iniciado em 1965 e chamou-se projecto Head Start. O objectivo era conceder apoios a crianças da pré-escola durante um ano escolar antes de iniciarem a escolaridade obrigatória. As primeiras avaliações realizadas 1 a 2 anos depois do início da escolaridade foram bastante desencorajantes. Os ganhos ao nível de QI, quando foram observados, eram mínimos e duraram pouco tempo. A melhoria no desempenho escolar foi também bastante reduzida. Estes resultados levaram alguns investigadores a criticar a ênfase exagerada em torno do QI, sugerindo que o programa Head Start não fornecera às crianças as competências que normalmente as crianças da classe média desenvolvem em casa durante os primeiros 4 anos. Um estudo realizado no início da década de 80 nas crianças que participaram no programa Head Start, revelou que algumas objecções iniciais tinham sido exageradas, ao descobrir-se um efeito latente (ou adormecido). As crianças participantes obtiveram valores ligeiramente superiores em relação às nãoparticipantes nos domínios da leitura, matemática e linguagem e esta melhoria tendia a aumentar com a idade desde os 6 até aos 14 anos. Os participantes eram mais capazes de satisfazer os objectivos escolares, verificando-se nomeadamente um menor número de reprovações, menor abandono escolar e menos colocação em programas planeados para crianças com dificuldades de aprendizagem. Por sua vez, as mães destas crianças estavam mais satisfeitas com a
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realização escolar dos seus filhos e tinham aspirações mais elevadas sobre a sua realização escolar futura (Zigler e Berman, 1983). O projecto Milwaukee foi um outro programa de intervenção intensivo realizado nos EUA com 20 crianças profundamente carenciadas dos 4 aos 6 anos. As mães tinham um QI de 75 ou menos e foram também objecto de um programa específico de apoio. Os resultados obtidos durante os anos préescolares foram notáveis, tendo o grupo experimental revelado diferenças superiores de QI em relação a um grupo de controlo na ordem dos 20-30 pontos. Todavia as diferenças entre os dois grupos foram diminuindo progressivamente dos 7 aos 14 anos durante o período de escolaridade, mas a média do grupo experimental manteve-se sempre mais elevada do que a do grupo de controlo até ao final da avaliação do programa (Garber, 1988). Quer o projecto Milwaukee, quer um outro projecto da mesma natureza, conhecido por Carolina Abecedarian, revelaram que uma intervenção intensiva teve um efeito positivo em termos de QI, embora o efeito fosse mais reduzido do que seria de esperar à partida (Campbell e Ramey, 1994). Assim o meio sócio-cultural tem uma influência positiva na melhoria dos valores de QI obtidos, embora a grandeza deste aumento seja variável. Os sócio-culturalistas gostam de usar a seguinte imagem para ilustrar a sua perspectiva: Se um grupo de plantas crescer em terra fértil e outro grupo com os mesmos genes crescer em terra arenosa, o primeiro grupo irá florescer e o segundo definhar. Os geneticistas comportamentais respondem que as crianças não são plantas que estão fixas a um meio ambiente. As crianças (exceptuando casos extremos de abuso) têm mobilidade para descobrir no meio formas de maximizar as suas condições de desenvolvimento e esta capacidade de descoberta estaria associada à inteligência geral.
4.3.3 Interacção hereditariedade-meio A hereditariedade e o meio contam no desenvolvimento intelectual humano. O problema é conseguir determinar qual a estimativa mais aproximada da influência específica da hereditariedade por um lado ou do meio por outro. A determinação desta estimativa é uma tarefa complexa e os valores que foram propostos são bastante variados. O problema deve-se ao facto de não ser possível obter uma conclusão definitiva, porque o investigador não tem controlo, por razões de natureza ética, quer sobre a hereditariedade quer sobre o meio. O investigador não pode realizar uma experiência em que possa manipular à vontade a hereditariedade das crianças como faz com as ervilhas e os ratos, 206
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nem manipular as condições ambientais em que uma criança cresce e se desenvolve. Há investigadores que gostam de defender posições fortes em vários domínios científicos e a questão da estimativa da hereditariedade e do meio é uma delas. Uma posição aceitável (embora menos informativa) é a referência a um contributo conjunto e equivalente da hereditariedade e do meio e partir daí para a investigação das variáveis que permitem influenciar o QI das pessoas. Aliás Hebb (1949) considerou a determinação desta estimativa um absurdo lógico, e para o provar perguntava qual era a área de um rectângulo representada pelo seu comprimento? A questão parecia-lhe absurda porque a área por definição implica a multiplicação do comprimento pela largura. Do mesmo modo numa pessoa, tanto os genes como o ambiente são importantes para o seu desenvolvimento. Considere-se a questão da altura de uma pessoa. Quase todos reconhecem que a altura tem um forte contributo hereditário. Mas este factor está também dependente do meio em que a criança cresce e se desenvolve. Nas últimas décadas a altura dos mancebos, que se apresentam para a inspecção militar, tem subido em vários países, entre os quais Portugal e Japão e mantido relativamente constante nos países do Norte da Europa, onde as condições sócio-económicas têm sido melhores há já várias décadas. Supõe-se que um factor do meio ambiente, importante para este aumento, é a melhoria das condições alimentares. Neste caso pode-se considerar que os genes ditam que a altura de uma pessoa X será de 1,80 m, mas esta altura apenas será atingida em condições de apoio ambiental consideradas óptimas. Um outro exemplo clássico da interacção entre os genes e o meio é o caso de uma doença metabólica associada ao cromossoma 12, designada por fenilcetonuria, que causa atraso mental profundo e até a morte se não for detectada logo após o nascimento. O bebé não é capaz de metabolizar o aminoácido fenilalanina e a acumulação de produtos tóxicos no cérebro produz a destruição de tecido cerebral e impede o desenvolvimento intelectual normal. A identificação rápida da doença e o estabelecimento de uma dieta reduzida em fenilalanina até cerca dos 10-12 anos permite que a criança possa desenvolver uma inteligência normal. Esta doença é uma prova suplementar de como um traço da pessoa, que é geneticamente determinado, pode ser controlado por condições ambientais. No âmbito da discussão hereditariedade-meio, Scarr-Salapatek (1971) introduziu o conceito importante de leque de respostas. Este conceito, quando aplicado às diferenças de QI, significa que uma pessoa, que não seja atrasada mental, pode ter uma variação à volta de 20-25 pontos de QI. No entanto o limite superior do leque de resposta apenas seria atingido em condições ideais de exposição da pessoa a um meio favorável ao longo da vida. Variáveis como © Universidade Aberta
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os anos de escolaridade, a qualidade do sistema escolar, a natureza do apoio familiar, a erradicação das doenças infantis, a nutrição e suplementos vitamínicos, a situação económica e social da comunidade, entre várias outras, foram já objecto de investigação e revelaram ter um papel positivo. Uma análise recente sobre os limites de algumas destas variáveis pode ser lida em Flynn (1998).
4.3.4 Observações complementares A leitura de alguns estudos aqui referidos parece revelar tendências contraditórias. Assim o estudo de Schiff et al. (1978) revelou que crianças adoptadas por famílias da classe média alta aumentaram o valor de QI em relação aos irmãos que permaneceram na família biológica. O que parece provar a influência do meio. No entanto, o estudo de Horn (1983) refere uma correlação maior entre a criança adoptada e a mãe biológica, do que entre a criança adoptada e a mãe adoptiva. O que parece provar a influência da hereditariedade. Embora à primeira vista pareça contraditório não há contradição, considerando que o desenvolvimento intelectual é específico de cada pessoa e o resultado da influência conjunta dos dois tipos de variáveis, que se manifestaram de forma diferente ao longo do desenvolvimento humano. Estabelecer uma estimativa sobre a hereditariedade da inteligência não implica afirmar que a hereditariedade é um valor imutável na vida da pessoa. E o mesmo se passa em relação ao meio sócio-cultural. Os valores da hereditariedade e meio são valores descritivos médios, que revelam uma tendência, mas não determinam como é que a hereditariedade e o meio interagem para afectar o processo de desenvolvimento intelectual desta ou daquela criança ou adolescente. Uma questão a concluir: Quando o meio sócio-cultural é em grande parte homogéneo, a que se devem as diferenças de QI que entretanto se vierem a observar? Atribui-se a Goethe a seguinte máxima “Se educássemos as crianças de acordo com as melhores orientações, estávamos cheios de génios”. Desenvolver programas que tenham em conta as variáveis sociais irá diminuir provavelmente o leque de respostas ou diferenças de QI num dado grupo ou classe social, mas não as anula e torna toda a gente igual e muito menos genial. Nas sociedades mais desenvolvidas, as diferenças continuarão a existir no acesso aos melhores cursos universitários, ficando de fora muitos estudantes das classes médias superiores, que foram criados num dos meios sociais melhores e mais favoráveis. O que terá causado as diferenças de realização dos estudantes das classes médias altas que os impediram de aceder aos cursos 208
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de elite? Tempo, esforço, motivação e qualidade de estudo? Ou inteligência geral? Ou ambos os tipos? Não é fácil responder a esta questão, a menos que uma pessoa opte à partida por um dos lados da barricada.
4.4
Conclusão
A inteligência é um dos temas psicológicos mais estudados e uma das áreas da psicologia que recebeu mais atenção do público ao longo da sua história. Sendo uma área essencial, é também uma área bastante complexa onde muitas questões importantes permanecem por resolver. Uma das questões tem a ver com a definição de inteligência. Uma dimensão importante de inteligência é a capacidade de adaptação ao meio, a habilidade prática para se analisar correctamente as situações e conseguir uma adaptação ao ambiente e às pessoas que aí vivem. Adaptação implica análise da situação, adopção e invenção de novas formas de adaptação a um mundo em constante mudança, onde não é possível adoptar sempre as soluções passadas, mas onde se exige antes a capacidade para inventar novas soluções. Neste sentido o ambiente e a cultura próprios de um local ou de uma época influenciam o modo como alguns aspectos da inteligência são valorizados em relação a outros. Mas isto não significa que a inteligência seja um mero epifenómeno cultural. Os resultados dos testes convencionais de inteligência revelam uma estabilidade significativa ao longo da vida de uma pessoa, provando ser instrumentos capazes de prever uma parte importante da variação futura da actividade intelectual humana. A inteligência é constituída por vários componentes ou habilidades considerados universais. O que não se sabe porém é se estas componentes universais reflectem apenas um factor geral g ou pelo contrário reflectem vários factores mentais primários e qual o modo da sua organização. Será que a inteligência envolve ou não rapidez e agilidade mental? Os resultados de diversos estudos realizados no âmbito do modelo de processamento de informação revelam uma correlação bastante significativa entre rapidez de processamento e a inteligência psicométrica. Uma questão suplementar é saber se o tempo de processamento será mais importante nas fases iniciais de processamento, nas fases posteriores e mais importantes, ou ao longo de todo o ciclo de processamento? Neste paradigma os investigadores dividem cada tarefa nas suas componentes principais e depois calculam o tempo gasto em cada componente. O curioso é tratar-se de um velho paradigma pelo qual os investigadores voltaram a interessar-se e que foi considerado por Donders (1818-1889) nos primórdios da psicologia científica no estudo dos tempos de reacção. © Universidade Aberta
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A inteligência será melhor definida em termos genéticos, ambientais ou por ambos e em que grau? A grande maioria dos investigadores suspende o juízo sobre esta questão e afirma que os factores genéticos e ambientais são igualmente importantes. Pelo menos foi esta a resposta dada pela maioria dos 1020 peritos num inquérito realizado por Snyderman e Rothman (1988). É difícil saber porém se este resultado traduz fielmente o estado da investigação científica ou revela antes uma resposta táctica de adaptação ao meio! A principal razão é que uma resposta a esta questão, além de ter uma importância científica enorme, tem também consequências práticas a nível social e político. Se a hereditariedade tiver um peso maior do que o meio, prevê-se que os programas de intervenção comunitária terão um efeito mais reduzido do que se partir do conhecimento científico de que o meio tem tanta ou mais importância do que a hereditariedade no desenvolvimento intelectual. A inteligência é um dos temas mais polémicas da psicologia, nomeadamente quando os investigadores avançam com explicações de tipo hereditário para as diferenças individuais e de grupo (género, etnia e raça) ou prevêem a falta de eficácia de medidas de apoio social. Recentemente a editora Wiley retirou do mercado o livro de Brand por razões ideológicas (Brand, 1996). O último livro de Arthur Jensen esteve bastante tempo em fase de revisão por pares, tendo sido depois rejeitado pelas editoras académicas de primeira grandeza (Jensen, 1998). A mais importante e influente Associação Americana de Psicologia (APA) teve de reunir um grupo de peritos para elaborar um artigo de síntese sobre o que era actualmente conhecido e desconhecido (fundado ou especulação) no estudo da inteligência (Neisser et al., 1996), após a publicação de um outro livro polémico sobre inteligência (Herrnstein e Murray, 1994) que foi objecto de discussões acaloradas nos meios de comunicação. O curioso é que estes três livros foram todos publicados nos últimos seis anos, o que faz prever que o tema da inteligência irá continuar a figurar nos meios de comunicação social como um dos temas mais controversos da psicologia. Parece que toda a gente reconhece implicitamente que ter ou não ter inteligência conta.
4.5
Conceitos de inteligência
Inteligência, teste de inteligência, idade mental, quociente intelectual (QI), factor g, fidelidade do teste, validade do teste, efeito Flynn, inteligência fluida, inteligência cristalizada, inteligência triárquica, inteligências múltiplas, hereditariedade-meio, leque de respostas. 210
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4.6
Perguntas de auto-avaliação 1. Indique uma definição de inteligência, fundamentando a sua resposta. 2. O que é o quociente intelectual (QI)? Como é obtido? 3. Quais as razões para um teste exigir níveis altos de fidelidade e validade? 4. Que variáveis humanas os testes de inteligência prevêem melhor ou pior? Fundamente a sua resposta. 5. Explique os aspectos que melhor diferenciam as teorias psicométricas das teorias de processamento de informação? 6. Como explica a influência da hereditariedade e do meio no desenvolvimento intelectual humano?
4.7
Sugestões de leitura
Informação suplementar sobre a inteligência pode ser obtida nos livros de Neisser e col (1998), Sternberg (1985) e no artigo de Neisser et al. (1996). Em português há o livro de Almeida (1988) sobre teorias da inteligência e o de Freeman (1976) sobre testes psicológicos.
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5. Motivação
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Porquê, porquê, porquê?… Porque é que eu estou a escrever este livro ou o leitor está a lê-lo? Porque é que os alunos não estudam, os trabalhadores não rendem, as crianças passam o tempo a jogar ou a ver televisão? Porque é que há pessoas bem sucedidas na vida? Porque é que a mãe abandonou o filho? Porque é que o marido matou a mulher, ou o filho matou os pais? Porque é que as nações declaram guerra? É fácil indicar uma dezena de motivos prováveis, mas seleccionar e decidir sobre qual o motivo preponderante, é muitas vezes uma tarefa tão complexa que em certos meios, como os tribunais, se passam meses e anos de trabalho intenso até se conseguir determinar e provar o motivo principal. Muitas vezes nem os próprios indivíduos sabem porque é que agiram de uma determinada maneira em vez de outra. A motivação é uma resposta aos porquês do comportamento humano. Os desígnios ou motivos do comportamento humano não são insondáveis como às vezes se diz, são antes variados e complexos e determinar o peso e a importância de cada um é uma tarefa árdua, difícil, às vezes impossível. Os motivos variam de pessoa para pessoa, na mesma pessoa ao longo dos tempos e integram e orientam os planos dos sistemas sócio-organizacionais. Como, como, como?… Como motivar as crianças a fazer os deveres e a arrumar o quarto? Os alunos a estudar? Os trabalhadores a produzir mais e melhor? Os patrões a pagar mais? O governo a baixar os impostos?
Definição A motivação é uma palavra mágica na boca de muitas pessoas. As pedagogias e os sistemas de gestão empresarial fazem da motivação um dos seus principais objectivos, criando incentivos, lembrando punições, estabelecendo metas e tentando desenvolver a satisfação geral das pessoas e dos grupos em que se integram. Mas o que é a motivação? Será um estado interno que impele o organismo para a acção, uma espécie de energética do comportamento? Ou será antes um impulso generalizado e difuso sem qualquer objectivo ou direccionalidade? Ou ainda uma característica de certos tipos de comportamento que são controlados e puxados do exterior a partir de incentivos, prémios e punições? Motivação significa etimologicamente mover-se, implica um movimento do indivíduo para a acção. Uma pessoa fez isto ou aquilo porque tinha um motivo, © Universidade Aberta
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uma necessidade, um desejo, um instinto, um impulso ou um interesse qualquer. Qualquer que seja o termo escolhido, houve uma força que impeliu a pessoa ou o animal a mover-se numa certa direcção. Motivação vem de motivo e motivo significa, além de causa e origem, um elemento próprio e saliente numa pintura ou num relevo que chama a atenção e o interesse da pessoa. Segundo Nuttin (1985) a motivação é “uma força que age sobre um sujeito e o põe em movimento; é uma energia que ao libertar-se põe a máquina a funcionar”. Nuttin considera ainda a motivação como “uma tensão afectiva, todo o sentimento susceptível de desencadear e de sustentar uma acção em direcção a um objectivo”. A motivação é assim uma força que inicia, guia e mantém a direcção do comportamento. A motivação impele e guia um organismo para a acção. A motivação envolve um conjunto de processos internos que impele o organismo a satisfazer uma necessidade. Isto sugere que o factor inicial tanto pode ser uma necessidade biológica como a fome, ou uma necessidade social como o desejo de ser estimado e aceite pelos outros. As necessidades activam estados impulsivos ou níveis de excitação que levam o sujeito a agir de modo a satisfazer tais necessidades. A motivação confere três características a todo o comportamento: A força, a direcção e a persistência. Todo o comportamento é orientado para um objectivo a que a pessoa atribui um certo valor. Este valor depende da natureza da necessidade inicial a que está ligado e do prestígio social do objectivo a que está associado. A força, a intensidade e a persistência do comportamento indicam o valor que a pessoa atribui ao objectivo. O comportamento humano tem objectivos e raramente se apresenta de forma caótica. As pessoas têm razões para justificar o que fazem, o que não significa que um motivo seja sempre consciente e o único a actuar.
5.1
Conceitos motivacionais
No estudo da motivação há vários conceitos associados às causas ou origens do comportamento motivado, sendo os mais referidos as necessidades, impulsos, incentivos e motivos. Uma definição global de cada um só é possível no âmbito das teorias que os aplicam, embora seja útil apresentar uma clarificação prévia. Necessidade é um estado interno do organismo que está privado ou carente de alguma coisa. Há necessidades biológicas, como a fome ou a sede; psicológicas como o conhecimento e a realização pessoal; e sociais como o reconhecimento, 216
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a estima e o prestígio. Na tradição beaviorista o conceito de necessidade foi operacionalizado em termos de número de horas de privação de alimento ou de um valor de percentagem de peso abaixo do normal. O conceito de necessidade é às vezes usado como sinónimo de desejo, motivo ou incentivo, mas cada um destes conceitos tem significados próprios. Uma necessidade desencadeia normalmente um impulso, mas há também necessidades para as quais não há impulsos, como a necessidade de oxigénio. Por outro lado, a publicidade torna atraentes certos objectos supérfluos, e o impulso para os adquirir é por vezes tão forte que a pessoa cria uma necessidade artificial para melhor justificar a compra. Impulso é um termo bastante vago, com muitos significados, alguns mais positivos do que outros. Em geral significa tensão e urgência na realização de um comportamento, tornando-o mais energético. O impulso pode estar relacionado com estados fisiológicos internos como privações ou valores hormonais desequilibrados, ou com situações externas como um ambiente muito frio ou muito ruidoso. O impulso é uma característica da necessidade que motiva o comportamento. Mas o impulso não determina qual o comportamento que será seleccionado. Os impulsos podem ser classificados em primários ou secundários. Os impulsos primários derivam dos estados fisiológicos do organismo, ocorrem antes de qualquer tipo de aprendizagem e seriam universais como o alimento, a água, o desejo sexual, a evitação da dor e a temperatura estável. Os impulsos secundários são o resultado da aprendizagem e as características motivadoras destes são aprendidas, em associação talvez com os impulsos primários, um exemplo dos quais é ter dinheiro. Tipicamente um impulso primário é interno ao organismo e um impulso secundário é externo. Os impulsos podem ter várias funções: homeostático, tendência para reduzir a fome, sede e manter uma temperatura constante; aversivo, uma tendência constante para evitar a dor e mal-estar; exploratório, uma tensão para experimentar novos comportamentos ou avaliar a importância de novos estímulos no ambiente; antecipatórios, em que o objectivo é planear a satisfação de necessidades futuras; pausa, em situações humanas: “dar uma volta para matar o tempo” e situações de lazer; nos animais: limpeza do corpo e catar insectos e ocorrem quando o animal não tem mais nada para fazer de importante. O conceito de impulso foi substituído nalgumas teorias pelo conceito mais geral de excitação. Também a partir da década de 60, com o declínio do beaviorismo e a ênfase nos processos cognitivos, o conceito de impulso foi substituído a pouco e pouco pelo conceito mais genérico de motivo. Incentivos são estímulos externos que atraem ou repelem o comportamento e permitem satisfazer diversas necessidades de um animal. Um incentivo é um
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factor externo que tem capacidade para puxar o comportamento humano numa certa direcção. Porém a presença de um incentivo não significa que seja capaz de motivar sempre o comportamento, significa antes que é capaz de o fazer. Os incentivos podem ser de tipo primário como o alimento, ou secundário como o salário, prémios, posse de objectos ou o usufruto de certas situações. Os incentivos secundários são adquiridos através do processo de aprendizagem e apresentam-se associados ao incentivo primário. Impulsos e incentivos estão associados. Os impulsos informam o organismo sobre o grau de urgência de uma acção, enquanto os incentivos informam o organismo sobre as possibilidades correntes de satisfazer uma necessidade. Veja-se o caso da experiência do macaco preso numa gaiola: Tem fome e no tecto está suspenso um cacho de bananas. A fome é um impulso; as bananas são o incentivo externo. O sistema motivacional forma uma associação entre necessidade e incentivo segundo os beavioristas. Segundo os cognitivistas, o macaco forma uma representação das percepções internas e externas e organiza o comportamento com objectivo de apanhar as bananas. Motivo significa um impulso para a acção e substituiu progressivamente o conceito de impulso. Ao contrário do impulso, o motivo não está associado tanto a mudanças fisiológicas e orgânicas, mas envolve antes desejos e aspirações para a acção em função de objectivos que são valorizados pela pessoa. O motivo envolve uma componente psicológica acentuada, um elemento emocional e alguns exemplos são os motivos de realização pessoal, sucesso, auto-estima, afiliação, liderança ou medo do fracasso (e.g., McClelland e Atkinson, 1976).
5.2
Teorias da motivação
Não há uma teoria geral da motivação humana. As teorias da motivação são tentativas de explicação para a questão: porque é que um animal ou uma pessoa decide fazer isto ou aquilo e escolhe um comportamento em vez de outro? O comportamento e a motivação são tão complexos que não há uma razão única, global e satisfatória que explique todo o processo motivacional. As várias teorias da motivação acompanharam a evolução geral das várias tendências e paradigmas de investigação psicológica. Uma forma de classificar e descrever estas teorias será analisá-las numa sequência, situando num extremo os factores biológicos e no outro extremo os factores sociais. As teorias de ênfase biológica focam os instintos, as pulsões e impulsos, enquanto que as teorias sociais focam a influência do grupo, sociedade e cultura em que a pessoa se situa. Entre umas e outras situam-se as teorias cognitivas e a importância atribuída aos objectivos pessoais e de realização. 218
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5.2.1 Teorias biológicas As teorias biológicas têm por objectivo analisar os elementos e estruturas bioquímicas e neurológicas da motivação. Nestas teorias foca-se principalmente os impulsos primários que têm uma base claramente orgânica, como a fome, sede, manutenção da temperatura, evitação da dor, busca do prazer, desejo sexual. Estas teorias defendem a existência de necessidades básicas no organismo, produzidas por estados de privação. Estes estados geram impulsos que são os verdadeiros desencadeadores da acção. O comportamento é dirigido para os estímulos que podem reduzir e aliviar tais necessidades. Algumas das teorias deste tipo são a teoria dos instintos, a teoria sociobiológica e a teoria de Freud.
5.2.1.1 Teoria dos instintos Segundo a teoria dos instintos, o comportamento de um organismo ou pessoa seria impelida por instintos. Os instintos são comportamentos que revelam um padrão fixo, comuns a toda a espécie, geneticamente determinados (nãoaprendidos) e são suscitados por estímulos presentes no meio, como no caso de uma espécie de peixes que ataca qualquer intruso que apresente uma mancha vermelha no ventre. O pressuposto desta teoria refere que todos os membros de uma espécie estariam programados para agir da mesma maneira ou pelo menos de forma semelhante. Nos humanos, existe um instinto básico de sobrevivência e esta motivação não seria o resultado da aprendizagem, condicionamento ou cultura, mas estaria programada a nível genético. Na sequência dos estudos de Darwin, tornou-se popular entre os investigadores nos finais do séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX classificar todo o tipo de comportamentos sob a forma de instintos. McDougall (1908) foi um dos investigadores que ressaltou o papel dos instintos no comportamento e caracterizou os instintos como comportamentos expressos de modo uniforme, inatos (não-aprendidos) e universais em cada espécie. Assim uma ave faz o ninho do mesmo modo estereotipado, quer viva em liberdade quer viva em cativeiro, desde nascença. McDougall (1908) generalizou a teoria dos instintos animais aos humanos e defendeu que as pessoas tinham diversos instintos, como os instintos sexual, procriação, cuidar dos filhos menores, ciúme, submissão. McDougall referiu uma lista de 18 instintos tendo mais tarde substituído o termo instinto por propensões, devido ao forte criticismo a que foi sujeito.
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A teoria dos instintos tornou-se tão comum no início do séc. XX, que um historiador chegou a compilar uma lista de mais de 5700 instintos humanos. Na altura os investigadores, em vez de explicarem os diferentes comportamentos humanos, limitavam-se a nomeá-los. Assim se uma pessoa fumava tinha o instinto de fumar ou nos dias de hoje se dedicasse mais horas a navegar na internet do que à família, a pessoa tinha o instinto da internet! Não é difícil adivinhar que um projecto deste tipo caiu rapidamente no ridículo e foi abandonado. O principal argumento contra a teoria dos instintos defende que o ser humano não exibe comportamentos fixos, estereotipados e não-aprendidos como nos animais, quando muito possui apenas alguns reflexos elementares como o reflexo de sucção no bebé. A teoria dos instintos foi abandonada enquanto explicação do comportamento humano e historicamente substituída por teorias que ressaltaram a redução das necessidades fisiológicas e o papel dos incentivos externos. Apesar da teoria dos instintos ter falhado na explicação do comportamento humano, há ramificações desta teoria nos dias de hoje quer ao nível da genética e da etologia (instinto sexual e instinto de agressão) quer ao nível das teorias evolucionistas (sociobiologia) que tentam explicar comportamentos humanos complexos como o acasalamento, diferenças de género, criação dos filhos, ciúme e altruísmo.
5.2.1.2 Teoria sociobiológica A sociobiologia estuda as bases genéticas e evolutivas do comportamento em todos os organismos, incluindo os seres humanos e tenta explicar os comportamentos sociais, desde os comportamentos de vida em grupo até ao altruísmo e cuidados parentais. É uma teoria actual, bastante controversa, mas cada vez mais popular nos meios científicos, podendo ser considerada como uma ramificação actual da teoria dos instintos. A tese principal refere que a selecção natural favorece os comportamentos sociais que maximizam a capacidade e sucesso reprodutivo dos organismos. Assim a principal força ou motivação que impele o comportamento de todos os organismos vivos, incluindo os seres humanos, é a necessidade de fazer passar o maior número de genes de um organismo para a geração seguinte. A teoria dos instintos defendia que as pessoas tinham o instinto de sobrevivência e que toda e qualquer característica que aumentasse o grau de sobrevivência passaria a ter provavelmente uma base genética no futuro. A sociobiologia defende esta ideia de forma diferente. O objectivo fundamental de um organismo não é a simples sobrevivência ou a sobrevivência da sua prole, 220
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mas antes a capacidade de transmitir o maior número de genes às gerações seguintes. Os genes teriam a tendência (ou propensão) egoísta de sobreviver a todo o custo. Esta propensão pode ser melhor compreendida a partir de uma piada do biólogo Haldane a quem um dia perguntaram se era capaz de sacrificar a sua vida pelo irmão. “Não”, respondeu ele, “mas por dois irmãos ou oito primos” (citado em Pinker, 1997, p. 400), o número mínimo de parentes que asseguraria a sobrevivência dos seus genes. Para Darwin, o organismo mais capaz é o que consegue sobreviver mais tempo. Para o sociobiólogo Hamilton (1996) o animal mais capaz é o que consegue maximizar a sobrevivência dos seus genes nas gerações futuras. A sociobiolologia tenta explicar de forma plausível diversos tipos de comportamentos, como as escolhas e preferências femininas de acasalamento, o cuidado dos filhos, o altruísmo, a actividade sexual e a competição humana. A razão porque os animais e humanos gastam tempo e sacrificam-se tanto com a alimentação, a segurança e cuidado dos filhos teria a ver com a necessidade de assegurar a transmissão dos genes às gerações seguintes. Também o comportamento altruísta, que em casos extremos envolve o sacrifício da própria vida pela sobrevivência e segurança dos descendentes, teria lugar para permitir que os próprios genes tivessem continuação nas gerações seguintes. Informação complementar e mais desenvolvida pode ser obtida em Crawford e Krebs (1997).
5.2.1.3 Teoria de Freud Freud (1920/1961) propôs a existência de dois grandes instintos ou pulsões à nascença: A pulsão da vida (eros) e a pulsão da morte (tanatos). Estas pulsões tinham origem em necessidades corporais. Os instintos da vida incluíam os instintos sexuais (libido) necessários para a reprodução e os instintos relacionados com a fome e a sede, necessários para a manutenção e preservação da vida. Os instintos de morte não foram muito bem caracterizados exceptuando talvez o instinto de agressão. As pessoas são impelidas por impulsos inatos de natureza sexual que motivam as pessoas a comportarem-se no sentido de reduzir a energia psíquica de natureza sexual (libido) de forma a atingir um equilíbrio. Estes instintos ou desejos básicos estariam presentes desde o nascimento numa espécie de “caldeirão” de energia que Freud designou por id. Muitos dos desejos eram recalcados pelo ego devido a pressões parentais e sociais. O id ou inconsciente retinha os desejos e as memórias reprimidas. Estes desejos influenciavam o comportamento sempre que circunstâncias similares às originais viessem a ocorrer. A exclusão dos desejos da esfera consciente não significava © Universidade Aberta
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o seu desaparecimento. O ego, o guardião da consciência, usava mecanismos de defesa para orientar a energia reprimida substituindo a gratificação imediata dos desejos básicos por situações mais aceitáveis socialmente. Para Freud a motivação não é o resultado do acaso. Todo o comportamento é psiquicamente determinado e tem origem em desejos inconscientes. A origem real da motivação humana apenas seria revelada por meio dos sonhos, hipnose e a psicanálise. No entanto todo o comportamento seria dirigido para um objectivo, mesmo no caso de comportamentos neuróticos e lapsos da fala. Apesar da teoria de Freud ter um alcance bastante restrito no que se refere à motivação (parece totalmente irrelevante em termos escolares, no trabalho, no desporto e na empresa), mesmo assim é uma contribuição teórica importante. A tese de que o comportamento motivado não é apenas o resultado de uma vontade racional e consciente e pode também ocorrer devido a factores inconscientes é uma ideia geralmente tida em conta (e.g., McClelland, 1987).
5.2.2 Teorias comportamentais As teorias comportamentais (beavioristas) da motivação tentam estabelecer relações específicas entre motivação e aprendizagem e dão bastante importância a conceitos comuns, como impulso, reforço, punição e moldagem. Assim os organismos têm necessidades básicas (fome, sede) que geram impulsos para procurar no meio estímulos e situações que possam satisfazer ou reduzir estes impulsos (reforços primários, como o alimento, bebida ou evitação da dor). O conceito de impulso tem vantagens sobre o conceito de instinto, porque pode ser objecto de operacionalização, atraíndo deste modo o interesse dos beavioristas. Assim o impulso de um organismo pode ser expresso de forma quantitativa em termos do número de horas de privação de alimento ou bebida, ou duração e intensidade de uma estimulação desagradável como um choque eléctrico.
5.2.2.1 Teoria de redução de impulsos A teoria de redução dos impulsos defende que os organismos são impelidos e motivados para a redução de impulsos. Um impulso seria um estado interno de tensão que motivaria um organismo a comportar-se de um determinado modo a fim de reduzir a tensão existente. O objectivo seria obter um estado 222
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constante ou correcto de equilíbrio interno (homeostase) para uma certa necessidade. Esta teoria tem subjacente a ideia de que o estado normal de um organismo é o equilíbrio e quando este equilíbrio é desfeito gera-se um impulso no sentido de restabelecer o estado original. Os postulados principais da teoria são: 1. Os organismos agem no sentido da redução dos impulsos, de modo que todos os comportamentos podem ser explicados como esforços directos ou indirectos de redução de impulsos. 2. Os comportamentos acompanhados por uma redução de impulsos são fortalecidos; a redução dos impulsos é uma condição necessária para que a aprendizagem ocorra. Hull (1943) defendeu que todo o comportamento é motivado por impulsos homeostáticos ou por impulsos secundários baseados neles. A satisfação das necessidades primárias exprimem-se por diversos impulsos primários e são os principais impulsionadores do comportamento. Assim o desequilíbrio psicológico associado à necessidade de alimento é assinalado ao cérebro por processos bioquímicos que mantêm o organismo activo até o alimento ser encontrado, a fome satisfeita e o equilíbrio restabelecido. A necessidade gera o impulso que assegura a ocorrência do comportamento, sendo o objectivo deste a redução do impulso. A aprendizagem envolve a presença de um reforço, cujo poder e efeito tem a ver com a capacidade para reduzir o impulso. A teoria de redução de impulsos e obtenção de um estado de equilíbrio pretendeu ser uma teoria geral de explicação do comportamento animal e humano, apesar da maior parte dos estudos experimentais terem sido realizados em ratos. É uma teoria que estabelece uma relação satisfatória entre motivação e aprendizagem, mas tem dificuldades em explicar alguns resultados experimentais. Esta teoria não conseguiu explicar, por exemplo, porque é que os macacos colocados numa gaiola se entretêm a resolver sucessivamente problemas mecânicos (fechos de gaiolas) na ausência de alimento ou de outro reforço “extrínseco” qualquer — procuram satisfazer uma necessidade não-biológica (Harlow et al., 1950). No caso humano, a teoria não explica porque é que as pessoas continuam motivadas a agir mesmo após estarem saciadas. No caso de um banquete, o equilíbrio foi atingido muito antes de se chegar à sobremesa e no entanto as pessoas desejam ainda comer (provar!?) os queijos, os doces e as frutas. As pessoas esforçam-se ainda para obter resultados ou atingir objectivos muito para além da satisfação das necessidades básicas, como ter mais dinheiro, bens, poder, fama e conhecimentos. Há ainda cidadãos, artistas e modelos femininos que sacrificam a alimentação em alto grau para nuns casos conse-
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guirem a atenção da opinião pública, e noutros a fama e sucesso (satisfações não-biológicas). As pessoas buscam ainda sensações e agem de forma a aumentar o nível de excitação nas suas vidas, muito para além de qualquer equilíbrio necessário.
5.2.2.2 Teoria da excitação Na explicação do comportamento humano, a teoria da excitação propôs a substituição do conceito de impulso pelo conceito mais geral de excitação. Há motivos psicológicos que, em vez de terem por fim a redução da tensão, procuram antes aumentá-la. Há pessoas que adoptam comportamentos de risco, nas relações sexuais, na descoberta da natureza ou de novos ambientes, na condução automóvel, ou mesmo assistindo a filmes de terror e espectáculos macabros. As crianças são capazes de brincar e manterem-se activas o dia inteiro e alguns jovens e adultos adoram praticar desportos radicais. Mesmo os macacos são capazes de passar horas a tentar descobrir o mecanismo do funcionamento dos fechos das gaiolas. A exploração e descoberta de situações novas é um motivo que não parece satisfazer à partida qualquer necessidade biológica e não se enquadra bem na teoria de redução de impulsos. A excitação envolve reacções de natureza fisiológica e psicológica. Quando uma pessoa está num estado de excitação, há alterações ao nível da forma das ondas cerebrais, ritmo cardíaco, respiração e aumento do diâmetro da pupila. As pessoas sentem-se atentas, vigilantes, os sentidos estão bem despertos e a concentração é fácil. Um estado destes verifica-se por exemplo quando se encontra subitamente um grande amigo que não se vê há vários anos. O estado oposto de baixa excitação verifica-se à noite depois de um longo e intenso dia de trabalho. Também acontece durante o dia, tendo em conta a quantidade de café que habitualmente se toma. As pessoas necessitam de um nível mínimo de excitação sensorial. Heron et al. (1956) realizaram uma experiência em que estudantes eram bem pagos para viver alguns dias num compartimento confortável, mas onde a excitação sensorial tinha sido removida na sua quase totalidade. Os participantes usavam óculos que deixavam passar uma luminosidade constante, mas não permitiam ver as formas dos objectos; as mãos e os pés estavam forrados com luvas e roupas para evitar as sensações tácteis; o ruído era reduzido, mas constante. Passado pouco tempo neste ambiente, os sujeitos começaram a ficar desorientados, a ter dificuldades de concentração, a sentir alucinações, a entrar em 224
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estados de delírio e ao fim de 2-3 dias recusaram continuar a experiência. A situação tornou-se intolerável e deixou de justificar a recompensa financeira. O nível de excitação varia de pessoa para pessoa, assim como dentro da mesma pessoa. Teoricamente deve haver um nível óptimo de excitação: Níveis baixos podem causar aborrecimento, letargia e sonolência e níveis bastante elevados podem causar ansiedade. Mudanças significativas face a um nível considerado óptimo ou satisfatório levam o organismo a agir no sentido de restaurar o equilíbrio desejado. Na sequência do estudo clássico de Yerkes e Dodson (1908), vários estudos revelaram uma relação entre o nível de excitação e a qualidade do desempenho registado na realização de uma tarefa. A relação observada é no entanto complexa e apresenta-se sob a forma de U invertido. Assim para níveis baixos e moderados de excitação, quanto maior for o grau de excitação melhor é o desempenho. Mas a partir de um certo nível intermédio de excitação, a melhoria de desempenho estabiliza, passando depois a diminuir quando os valores de excitação se tornam bastante elevados. Estes estudos revelaram ainda que o nível óptimo de excitação varia com a complexidade da tarefa. Se esta for fácil, o nível óptimo de excitação é moderadamente alto. Se a tarefa for bastante difícil, o nível óptimo de excitação é moderadamente baixo. Uma excitação elevada na realização de uma tarefa difícil, como acontece no caso de um exame, pode gerar ansiedade e consequentemente distracção e bloqueio no raciocínio e na recordação. Mas quando a tarefa é fácil, ou o prazo bastante distante, a excitação que a tarefa desperta é diminuta, gerando-se rituais de adiamento até ao momento em que não é possível adiar mais e se atinge o nível mínimo adequado de excitação para a sua realização. Berlyne (1960) considerou a curiosidade, um motivo capaz de aumentar o grau de excitação e seria despertada pela incerteza dos estímulos, ambiguidade, incongruência, raridade, complexidade e novidade. Todos estes aspectos fariam aumentar o nível de excitação, originando comportamentos exploratórios, a descoberta do meio ambiente e a busca de sensações. A teoria da excitação concentra-se num conceito simples, capaz de fornecer uma explicação plausível para os resultados obtidos em experiências de privação sensorial e de manipulação e exploração ambiental. Não deixa porém de ser um conceito limitado como veremos pelas teorias seguintes.
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5.2.2.3 Teoria do incentivo Nem todo o comportamento é impelido por impulsos internos ou pela procura de um nível de excitação óptimo. As teorias dos instintos, redução dos impulsos e excitação ressaltavam os mecanismos internos que “empur-ravam” o comportamento numa determinada direcção. Em contraste, a teoria do reforço ou incentivo defende que as pessoas são “puxadas” pelo desejo de alcançar um objectivo. Há objectos e situações externas que atraem o comportamento, como acontece com o dinheiro, prestígio, encontro com amigos, o usufruto de bens ou que também repelem como a proximidade de ambientes ruidosos, poluídos e tóxicos. Estes factores externos são designados incentivos e têm a capacidade para motivar o comportamento humano. O incentivo puxa ou afasta o comportamento numa certa direcção a partir de um estímulo externo. A presença de um incentivo não significa que seja capaz de motivar sempre o comportamento, significa apenas que tem a potencialidade de o fazer. Os incentivos que atraem o comportamento podem ser objectivos de curto prazo como receber o dinheiro pela tarefa realizada ou comer o gelado ou a fatia de bolo de chocolate no fim da refeição; ou de médio e longo prazo, como obter boas classificações no exame para depois receber um presente, passar umas férias agradáveis, arranjar um bom emprego e conseguir um salário elevado. A teoria do incentivo é uma teoria tipicamente beaviorista, em que o comportamento é motivado apenas por factores externos, positivos ou negativos, tipo “pau ou cenoura”. Na sequência da teoria do incentivo, os investigadores passaram a distinguir dois tipos de orientações motivacionais: A motivação extrínseca e a motivação intrínseca (Deci, 1975; Deci e Ryan, 1985). As pessoas com uma motivação extrínseca realizam uma tarefa ou para alcançarem uma recompensa externa e tangível, ou porque têm medo de ser punidos. Numa situação escolar os reforços externos e visíveis são as notas, os prémios e quadros de honra; numa empresa são os salários, prémios, seguros, promoção, gabinetes pessoais com secretárias e condições de trabalho satisfatórias. Os reforços extrínsicos são atribuídos pelos administradores e constituem um meio poderoso para seleccionar os empregados e mantê-los satisfeitos na empresa, ou pelo menos para minimizar tanto quanto possível o grau de insatisfação. As pessoas com uma motivação intrínseca realizam a tarefa pela satisfação e prazer que dá, pela curiosidade e interesse que estimula e pelos sentimentos de competência e controlo que proporciona. As diferenças entre estas duas 226
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orientações motivacionais nem sempre são nítidas e bem contrastadas, como se verá adiante. As teorias comportamentais clássicas valorizam apenas a motivação extrínseca resultante de reforços e punições. No entanto os motivos extrínsecos podem ter um efeito imediato e poderoso, mas não costumam durar muito, a menos que se goste minimamente da tarefa a realizar. Os motivos intrínsecos têm um efeito maior e mais profundo a longo prazo, porque são inerentes à pessoa e estão relacionados com o grau de satisfação da tarefa. E este grau de satisfação é um reforço intrínseco poderoso que a teoria do incentivo simplesmente ignora.
5.2.3 Teoria humanista de Maslow Maslow (1954/1987) elaborou uma teoria da motivação que tinha por objectivo ressaltar e explicar os motivos de natureza psicológica no comportamento humano e não o comportamento de todos os animais em geral, como pretenderam fazer as teorias do incentivo ou da redução dos impulsos. A teoria de Maslow é uma teoria das necessidades humanas, que tem subjacente três postulados: (1) As pessoas são motivados no sentido de satisfazer as suas necessidades; (2) As necessidades estão hierarquizadas na vida de uma pessoa; (3) As pessoas progridem na hierarquia de necessidades à medida que as necessidades inferiores são satisfeitas. A hierarquia de necessidades de Maslow é formada por sete níveis ou patamares, organizados em forma de pirâmide da base para o topo, descritas a seguir: 1. Fisiológicas - consideradas as necessidades mais básicas e importantes, situadas na base da pirâmide, e incluem as necessidades de alimento e água sem as quais uma pessoa não pode sobreviver. 2. Segurança - necessidade de estabilidade na vida, ordem e liberdade de forma a conseguir-se atingir objectivos de longo prazo. 3. Pertença - afeição e amor da parte dos familiares, amigos e conhecidos; as pessoas tentam satisfazer este tipo de necessidades depois de terem assegurado as necessidades precedentes. Se estas necessidades forem satisfeitas a pessoa sente-se confiante, capaz, útil e necessária no grupo e na comunidade. 4. Estima - realização, prestígio, estatuto social e competência.
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5. Cognitivas - curiosidade e desejo de obter novos conhecimentos, compreender o mundo, o funcionamento das coisas e o comportamento das pessoas. 6. Estéticas - apreciação da beleza e arte, que proporciona conforto e bem-estar, assim como a organização da vida social. 7. Auto-realização - desenvolver e realizar o potencial próprio de cada um até ao último grau. “O que uma pessoa pode ser, deve sê-lo”, de acordo com Maslow. Assim se uma pessoa é médico, mas quisesse ser escritor, era uma pessoa que não teria conseguido realizar o seu potencial de realização. Esta necessidade não é exterior ao organismo, mas antes uma necessidade de crescimento interior e uma fonte de motivação intrínseca. Seria o último e o mais importante objectivo humano a atingir. Maslow organizou as sete necessidades em dois grandes grupos: (1) Necessidades carentes formadas pelos primeiros quatro grupos; a satisfação destas necessidades tem primazia e uma vez obtida a satisfação, a motivação tende a diminuir; (2) Necessidades do ser ou de realização e crescimento, formadas pelas três necessidades do topo, onde a motivação tende a aumentar à medida que estas necessidades são satisfeitas. Quanto mais baixa se situar a necessidade na hierarquia, mais prepotente e impulsiva se torna se não for satisfeita. As necessidades fisiológicas e de segurança são essenciais para a sobrevivência humana. Uma pessoa esfomeada estaria pouco preocupada com necessidades de natureza cognitiva ou de estima pessoal. As pessoas apenas sobem na hierarquia à medida que as necessidades inferiores são satisfeitas. Maslow considerou esta hierarquia, não como uma descrição rigorosa e absoluta da motivação humana, mas antes como uma descrição do que poderia acontecer em situações ideais. Defendeu esta hierarquia de necessidades, mas não como uma organização fixa. As pessoas podiam sacrificar temporariamente necessidades de ordem fisiológica por necessidades de ordem cognitiva ou estética, dando prioridade a estas últimas. Reconheceu até que muitas pessoas talvez não consigam satisfazer as necessidades do topo da hierarquia. Várias objecções foram feitas ao sistema de Maslow. Argumentou-se que cada grupo de necessidades estava definido em termos vagos; que a inclusão das necessidades parecia arbitrária; que as provas em apoio da tese de que as pessoas satisfazem as necessidades inferiores antes de tentarem satisfazer as necessidades superiores eram reduzidas. Há casos de pessoas que entraram em greve de fome e algumas chegaram mesmo a morrer para conseguirem divulgar um ponto de vista social, político ou religioso. A invariância da 228
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hierarquia de necessidades foi também contestada a partir de estudos interculturais, alegando-se que a ordem não é universalmente fixa. Em resposta a esta objecção, refira-se no entanto que é a existência de um postulado hierárquico e invariante que dá força e valor heurístico ao sistema de Maslow, caso contrário não passava de mais uma de entre várias listas de necessidades possíveis. A hierarquia implica a noção de há uns motivos que até serem satisfeitos são mais fortes e prementes do que outros. A teoria de Maslow foi bastante influente e estimulou o pensamento de muitos investigadores que tentaram verificar o alcance e limites da satisfação das diferentes necessidades em diferentes grupos, comunidades e culturas à volta do mundo. Maslow estava certo quando afirmou que o comportamento humano é influenciado por motivos diferentes.
5.2.4 Teorias cognitivas Nas últimas décadas, a maior parte dos teóricos da motivação seguem uma perspectiva cognitiva. Bandura (1986) afirmou até que a razão “que leva uma pessoa a agir tem a sua raiz nas actividades cognitivas”. A motivação é um processo cognitivo e envolve a maior parte das vezes uma tomada de decisão consciente. As teorias cognitivas defendem que as pessoas agem, não por motivos externos ou condições ambientais (reforços e incentivos) ou até mesmo fisiológicas (a fome), mas antes em função das percepções e interpretações que dão aos acontecimentos, assim como em função dos objectivos, planos e expectativas que formam. Na teoria cognitiva, a motivação cria intenções e dirige os comportamentos para objectivos. Por outras palavras, o comportamento é determinado pela maneira como uma pessoa pensa e tem em conta as crenças, expectativas, objectivos e valores próprios. As necessidades básicas não se restringem a necessidades fisiológicas ou de segurança; as pessoas têm também uma necessidade básica de compreender o mundo em que habitam e de nele agir de forma eficaz e competente. As pessoas são activas e curiosas, buscam informação, realizam tarefas que antecipadamente percebem que lhes dão ou podem dar satisfação e procuram atingir níveis de compreensão da realidade cada vez maiores. O conhecimento é de facto uma necessidade inata, mas a pessoa não está motivada para conhecer e explicar tudo (pode-se estar muito interessado em psicologia, mas não em física, ou vice-versa). O interesse por um tipo de conhecimento pode ser suscitado por estímulos que provocam a surpresa, a dúvida e a dissonância cognitiva. O interesse por uma tarefa será tanto maior quanto mais a sua aprendizagem ou realização satisfizer uma necessidade © Universidade Aberta
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sentida e percebida pela pessoa. Deste modo as teorias cognitivas ressaltam a orientação intrínseca da motivação.
5.2.4.1 Teoria da dissonância cognitiva de Festinger Ser coerente em termos de comportamentos, opiniões, crenças e atitudes é uma necessidade básica considerada muito importante a nível humano porque revela uma imagem positiva da pessoa. Festinger (1957) propôs uma teoria que tem implicações importantes ao nível da perspectiva cognitiva da motivação e que designou por teoria da dissonância cognitiva. Segundo esta teoria as pessoas sentem tensão e desconforto quando são induzidas a dizer ou a tomar uma posição que é contrária às crenças e valores em que verdadeiramente acreditam. Festinger designou esta tensão ou desconforto psicológico por dissonância cognitiva. Esta tensão motiva a pessoa a reinterpretar a situação e a minimizar as inconsistências a fim de restaurar um estado de consistência cognitiva. Uma forma de o conseguir é a pessoa convencer-se de que acredita verdadeiramente na afirmação que fez ou no comportamento que realizou de forma a resolver a dissonância e a atingir um estado de consistência pessoal. Esta busca de consistência interna explica alguns comportamentos peculiares no dia a dia do tipo seguinte: Uma senhora cortou algumas flores num jardim público. Quando o polícia a abordou, a senhora justificou-se dizendo que gostava tanto de flores que não fora capaz de resistir a cortá-las. Queria levá-las para casa para as ter mais perto de si! O estudante que comete a fraude de fotocopiar o livro do professor em vez de o comprar, quando confrontado directamente pelo autor justifica-se dizendo que o preço do livro é exageradamente elevado para o orçamento diminuto de um estudante. Se o autor lhe perguntar como justifica a ida a um espectáculo musical onde pagou um bilhete de entrada mais caro do que o preço do livro, o estudante alega que o espectáculo é mais divertido! O leitor pode analisar outras justificações deste tipo dadas por fumadores que sabem que o tabaco faz mal e causa cancro; senhoras que usam casacos de pele de animais, apesar de saberem que vários animais foram mortos para o fazer; jovens que têm relações sexuais esporádicas, sujeitos a contrair a sida e mesmo assim não usam preservativo. Festinger e Carlsmith (1959) realizaram uma importante experiência onde provaram a teoria da dissonância cognitiva. Nesta experiência clássica estudantes foram solicitados a realizar individualmente uma tarefa bastante aborrecida e rotineira durante uma hora (pôr e tirar carretos de um tabuleiro com uma mão; rodar cavilhas um quarto de círculo). Depois de realizarem a tarefa, os sujeitos foram divididos em três grupos. Ao primeiro Grupo foi 230
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oferecido a cada estudante um dólar para dizer ao próximo sujeito da experiência que a tarefa era bastante interessante e engraçada. Aos sujeitos do segundo Grupo foi oferecido 20 dólares para fazer o mesmo; O terceiro Grupo era de controlo, a quem não foi oferecido nenhum dinheiro nem feito nenhum pedido. Depois de aceitarem a oferta os sujeitos deslocaram-se à sala de experiência onde se esforçaram por convencer o próximo sujeito (no caso, uma rapariga aliada do experimentador) de que as tarefas eram agradáveis e interessantes. No final os sujeitos foram solicitados a responder à pergunta: “Qual o grau de agrado que realmente teve na realização desta tarefa?” Os estudantes a quem foi pago um dólar afirmaram que tinham gostado realmente da tarefa. Mas os estudantes a quem foi pago 20 dólares afirmaram que não tinham gostado e consideraram a tarefa tão aborrecida como os sujeitos do grupo de controlo. Os resultados da experiência de Festinger e Carlsmith são contra-intuitivos e contrários ao que o senso comum prevê. O senso comum (assim como a teoria do incentivo anteriormente referida) dirá que os sujeitos a quem foi oferecido 20 dólares são mais capazes de confirmar e de se convencerem da mentira feita, mudando de crenças e atitudes e afirmando que a tarefa foi divertida. Contudo os resultados foram no sentido oposto e este padrão de resultados foi verificado em vários estudos posteriores. Festinger (1957) e outros autores posteriores explicaram este resultado paradoxal afirmando que os sujeitos do Grupo de 1 dólar estavam perante um dilema: Realizaram um longo trabalho aborrecido por um reforço ou incentivo diminuto. Se perceberam que de facto a tarefa era aborrecida, era preciso ser muito “palerma” para aceitar mentir por apenas um dólar: “Como foi possível justificar a mentira de que a tarefa era interessante por apenas um dólar?” Para evitar esta questão ou conclusão desagradável, os sujeitos decidiram alterar a percepção que tinham da tarefa e passaram a justificá-la (provavelmente de forma inconsciente) como interessante e agradável. Por outro lado, os sujeitos do Grupo dos 20 dólares não precisaram de fazer qualquer ginástica intelectual para justificar a mentira. Podiam afirmar no final que acharam a tarefa aborrecida, porque tinham uma justificação pessoal para a mentira dada: A soma elevada de dinheiro oferecido. Assim o Grupo de um dólar tinha uma dissonância cognitiva elevada e revelou uma maior mudança de atitude, enquanto que o Grupo de 20 dólares tinha uma dissonância cognitiva baixa e revelou uma mudança de atitude reduzida. A teoria da dissonância cognitiva sustenta que uma pessoa processa a informação de forma activa e que, sempre que encontra discordâncias ou incongruências em termos de conhecimentos e saber, faz um esforço para mudar de opinião e atitude (cognições) de forma a conseguir um estado de coerência e consistência cognitiva. A dissonância cognitiva é um estado cognitivo negativo de tensão e desconforto, que motiva e orienta a pessoa a reduzi-lo e a obter consonância. © Universidade Aberta
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5.2.4.2 Modelos de atribuição causal As teorias de atribuição causal são descrições das justificações, desculpas e porquês que as pessoas dão para explicar os sucessos e fracassos no comportamento do dia a dia. Rotter (1954) propôs um modelo que tentava situar a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso do comportamento no interior ou no exterior das pessoas e que designou por modelo de locus de controlo. As pessoas que tinham um locus de controlo interno assumiam a responsabilidade pelo seu comportamento e pelo seu destino e gostavam de trabalhar em situações em que as suas competências e esforço podiam levar ao sucesso. Em contraste as pessoas com um locus de controlo externo acreditavam que as forças que determinavam as suas vidas situavam-se em geral no exterior e fora do seu controlo, sendo a sorte ou a falta dela uma das causas frequentemente referidas (e.g., Rotter, 1982). Mais recentemente Weiner (1979; 1990) propôs um modelo de atribuição causal bastante mais elaborado. Segundo Weiner as causas dos sucessos ou fracassos podem ser caracterizadas em função de três dimensões: Locus (a causa situa-se no interior ou no exterior da pessoa); Estabilidade (a causa é estável na pessoa, como o grau de competência e habilidade, ou é instável como o grau maior ou menor de esforço dispendido); responsabilidade pessoal (a causa está sob o controlo e responsabilidade da pessoa como o esforço ou pedido de ajuda, ou é incontrolável como a competência pessoal, saúde, estado emocional, sorte e dificuldade da tarefa a realizar). Weiner descreveu quatro atribuições que as pessoas referem (duas internas e duas externas) para justificar os seus sucessos e insucessos numa tarefa: • Habilidade (tiveram sucesso, porque são espertos e habilidosos; falharam porque não o são); é uma atribuição interna e estável. • Esforço (tiveram sucesso, porque se esforçaram e trabalharam muito; falharam porque não trabalharam o suficiente); é uma atribuição interna e instável. • Dificuldade (tiveram sucesso, porque a tarefa tinha uma dificuldade aceitável e razoável; falharam porque a tarefa era muito difícil; ou ainda, a tarefa era muito fácil e conseguiram ser bem sucedidos); é uma atribuição externa e estável. • Sorte (tiveram sucesso ou fracasso por motivos de sorte ou por razões externas desconhecidas); é uma atribuição externa e instável. Weiner defendeu que as dimensões do locus, estabilidade e responsabilidade têm implicações importantes na motivação humana. Assim a dimensão de locus interno e externo estaria relacionada com sentimentos de auto-estima. Se o 232
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sucesso ou o fracasso fosse atribuído a factores internos, a pessoa sentia orgulho e uma motivação crescente no caso de sucesso; ou uma redução na autoestima no caso de fracasso. A dimensão de estabilidade estaria relacionada com expectativas sobre o futuro. Se o sucesso ou o fracasso fosse atribuído a factores estáveis como a dificuldade da tarefa, no caso de sucesso criava-se a expectativa de o mesmo vir a acontecer no futuro com tarefas de dificuldade semelhante ou maior; se o sucesso ou insucesso fosse atribuído a factores instáveis como a disposição ou a sorte, a motivação não aumentaria no futuro. A dimensão de responsabilidade estaria relacionada com as emoções de orgulho e reconhecimento ou de ira e vergonha. Se a pessoa é bem sucedida numa tarefa que sente como estando ao seu alcance, a pessoa sentirá orgulho e satisfação; se falha, sentirá vergonha. Mas se percebe a tarefa fora do seu alcance, o sucesso será atribuído à sorte e o fracasso originará estados de ira contra o responsável pela tarefa. Um dos postulados centrais das teorias de atribuição é a ideia de que as pessoas fazem um esforço por manter uma imagem positiva de si próprios. Assim quando algo de positivo acontece, as pessoas têm tendência a atribuir o resultado a factores internos como as competências pessoais e os esforços realizados; todavia quando surge um fracasso, a causa é atribuída a factores externos, que a pessoa não controla, como a falta de sorte ou à dificuldade exagerada da tarefa. As teorias da atribuição têm um papel importante na explicação do desempenho escolar dos alunos. Vários estudos indicaram que os estudantes com um locus de controlo interno têm melhores classificações do que estudantes do mesmo nível de inteligência, que têm um nível baixo de locus de controlo interno (Nowicki et al., 1978; Barros et al., 1993).
5.2.5 Teorias da aprendizagem social As teorias da aprendizagem social, inicialmente beavioristas, foram-se tornando cada vez mais cognitivas, podendo-se afirmar que no geral são teorias que tentam integrar as duas influências, a beaviorista e a cognitiva. A influência beaviorista reflecte-se na importância dada aos determinantes externos do comportamento como os reforços e punições, enquanto que a influência cognitiva ressalta o papel dos determinantes internos como as crenças, expectativas e objectivos pessoais.
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5.2.5.1 Teoria da expectativa x valor Uma das teorias que combina estas duas perspectivas é a teoria da expectativa x valor (Atkinson, 1964). Segundo esta teoria, a motivação é o resultado da multiplicação da probabilidade de sucesso esperado vezes o valor do incentivo associado ao sucesso: M = Ps x Is. Por exemplo, se um jovem julga que tem possibilidades de vir a ser o líder da organização juvenil do seu partido e valoriza bastante esta escolha, provavelmente este jovem revelará uma motivação bastante elevada e fará todos os esforços para conseguir ser eleito. Em contraste, um outro jovem com um grau de competências equivalentes, mas que atribui um menor valor à eleição, sentir-se-á menos motivado e fará menos esforços para alcançar um tal objectivo. Uma das características desta teoria de motivação é o facto da fórmula ser multiplicativa, o que implica que, se o valor da expectativa ou o valor do incentivo for zero, então a motivação resultante também será zero. A motivação é o produto destas duas forças ou factores e se um dos factores for zero, deixa de haver motivação para a pessoa agir e esforçar-se em direcção a um objectivo. Assim se o jovem gostar imenso de ser eleito (incentivo elevado), mas reconhecer que tem poucas capacidades (expectativa nula), então a motivação será zero. Atkinson (1964) sublinhou ainda que a motivação apenas seria máxima com níveis moderados de probabilidade de sucesso. Assim por exemplo dois jogadores de xadrez situados ao mesmo nível de competência fariam um esforço elevado para cada um ganhar o jogo, isto é, a motivação seria elevada e semelhante. Porém se um dos jogadores fosse um mestre e o outro um amador, os jogadores não iriam esforçar-se maximamente. O mestre não valorizaria muito a vitória e por isso não faria os maiores esforços; por outro lado, o amador gostaria imenso de ganhar ao mestre, mas como tem uma probabilidade diminuta de conseguir ganhar, o mais provável é não dar o esforço máximo.
5.2.5.2 Teoria de Nuttin Nuttin (1985) propôs uma teoria da motivação que se enquadra nas teorias de aprendizagem social, principalmente na sua vertente mais cognitiva da expectativa x valor. Nuttin sublinha a abordagem interaccionista da motivação humana, baseada nas interacções dinâmicas e preferenciais que se estabelecem entre a pessoa e o meio (entre o eu-mundo) no âmbito do comportamento, e em que estas interacções podem tomar a forma de relações biológicas, psicológicas e espirituais. Há interacções que são preferidas a outras e é no 234
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âmbito deste relacionamento e desta valorização selectiva que a personalidade humana se constitui e se desenvolve. Para Nuttin a motivação não é o elemento desencadeador da necessidade, mas constitui antes a direcção activa do comportamento em direcção a um objectivo.
5.2.5.3 Modelo de Bandura O investigador actual mais representativo das teorias da aprendizagem social com implicações ao nível da motivação é Bandura. Bandura (1986, 1997) analisou vários motivos que poderão ter um papel importante na origem da motivação. Alguns destes motivos são o conceito de auto-eficácia e o estabelecimento activo de objectivos. A auto-eficácia refere-se às crenças que uma pessoa tem sobre a sua competência pessoal na realização de uma tarefa e no controlo de uma situação. Face a uma nova tarefa, uma pessoa com um nível de auto-eficácia elevado, iniciará e persistirá na sua realização em função das recordações passadas de tarefas similares que foram bem sucedidas. Porém se as recordações forem de fracasso, o grau de auto-eficácia será menor e provavelmente a pessoa não se sentirá motivada para realizar a tarefa. As pessoas têm tendência a trabalhar mais e a persistir durante mais tempo numa tarefa quando têm um sentimento elevado de auto-eficácia. Nada fará um futuro bem sucedido, como um passado bem sucedido. O estabelecimento activo de objectivos é um outro motivo importante, na medida em que os objectivos estabelecidos determinam o critério para uma pessoa avaliar o seu próprio desempenho. No dia a dia as pessoas estabelecem uma série de planos e objectivos e esperam realizá-los bem e a tempo, esforçando-se para o efeito. Quando os objectivos são alcançados, a pessoa sente-se satisfeita e mais cedo ou mais tarde volta a estabelecer novos objectivos para conseguir realizá-los. Nestes casos o grau de auto-eficácia tende a aumentar. No entanto quando os objectivos não são cumpridos e a pessoa desiste frequentemente, o sentimento de eficácia pessoal tem poucas probabilidades de se desenvolver. Estabelecer e trabalhar para objectivos que sejam específicos, moderadamente difíceis e passíveis de serem atingidos num prazo razoável constitui uma importante orientação motivacional. Objectivos moderadamente difíceis constituem um desafio importante para as pessoas tentarem realizar e alcançar, mas objectivos muito fáceis ou extremamente difíceis não são motivadores por natureza.
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5.2.6 Motivação intrínseca e extrínseca As teorias da motivação anteriormente descritas constituem uma selecção de entre as teorias e modelos que julgo serem as mais importantes. As teorias de carácter mais psicológico diferem bastante entre si face à questão “O que é a motivação e quais os factores que a originam?” Para as teorias beavioristas (Hull e Skinner) os factores motivacionais são extrínsecos sob a forma de reforços e punições. Para a teoria humanista (Maslow) os factores últimos são intrínsecos sob a forma de satisfação de necessidades do ser e de auto-realização. Para a teoria cognitiva (Festinger, Weiner), os factores são intrínsecos sob a forma de consistência pessoal, atribuições causais e expectativas. Para as teorias da aprendizagem social (Atkinson, Bandura), os factores são intrínsecos como as expectativas e o sentimento de eficácia pessoal e em parte extrínsecos tendo em conta o valor dos objectivos em si, para além daquilo que a pessoa lhes atribui. No entanto, como veremos a seguir os motivos não se arrumam facilmente em intrínsecos e extrínsecos. A motivação intrínseca tem a sua fonte na pessoa e implica a existência de uma relação entre os meios e os fins. A motivação intrínseca surge quando uma pessoa decide fazer uma tarefa, está consciente das suas capacidades para a realizar e pensa obter satisfação na sua realização. No entanto Nuttin (1985) refere que a distinção entre motivação intrínseca e extrínseca pode ser redutora, porque um acto pode ser determinado de diferentes maneiras. Assim uma pessoa trabalha por motivos extrínsecos para obter um salário que lhe permita financiar actividades pessoais fora do trabalho e realizar o seu projecto pessoal. Neste caso o trabalho é um meio num projecto pessoal mais vasto de acção, que tem uma motivação dominante. O objectivo é aproximar a natureza dos actos do projecto pessoal. Deci e Ryan (1985) analisaram também a dicotomia entre motivação extrínseca e intrínseca e propuseram um contínuo motivacional que vai da amotivação num extremo até à motivação intrínseca no outro extremo, passando pelas diversas cambiantes da motivação extrínseca. O tipo de motivação envolvido numa tarefa pode ir do grau zero de auto-determinação presente na amotivação até valores elevados de iniciativa pessoal e de auto-determinação expressos na motivação intrínseca. A amotivação exprime o nível zero da motivação e representaria o desamparo e resignação total resultante de realização de tarefas mal sucedidas. A pessoa sente que não tem qualquer controlo sobre os resultados das tarefas que desempenha. Amotivação é um conceito equivalente ao de desamparo aprendido, proposto por Seligman (1975). A motivação extrínseca ocorre quando uma pessoa obtém uma recompensa agradável ou evita uma situação desagradável na realização de uma tarefa. 236
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Por exemplo, estudar o suficiente para obter uma classificação que permita passar (recompensa) e evite reprovar (evitação). Deci e Ryan distinguem quatro tipos de motivações extrínsecas: regulação externa (recompensa ou medo); introjecção (a pessoa age porque sente-se culpada); identificação (a pessoa valoriza a importância da tarefa); integração (há uma escolha em função de valores, do tipo “prefiro ficar a estudar a ir ao cinema”). O grau de autodeterminação começaria apenas na fase de identificação e aumentaria na fase de integração. A motivação intrínseca surge quando a realização de uma tarefa é acompanhada pelo prazer e satisfação que dela podem ser retirados e representa o nível mais elevado de auto-determinação pessoal e afirmação do estado de competência. Deci e Ryan distinguem três tipos de motivações intrínsecas: Estados de conhecimento elevado (conhecer algo de novo); estados de realização (sentir o desafio e prazer de resolver um problema complexo); estados de sensação e paixão (sentir sensações sensoriais, bem-estar e estéticas, proporcionadas pela actividade realizada, como acontece por exemplo no desporto, na música, num trabalho em grupo ou numa relação sexual apaixonada). A motivação intrínseca envolve factores auto-gerados que leva a pessoa a agir numa certa direcção. Estes factores são considerados “reforços psicológicos”, uma espécie de oportunidade para se praticar as capacidades próprias, aceitar e responder a desafios, mostrar que se é capaz, autónomo e bem sucedido e ainda sentir que se é reconhecido, aceite e estimado. As pessoas precisam de acreditar que aquilo que fazem é válido em si para se comprometerem efectivamente a realizá-lo. Para Deci e Ryan o compromisso último numa tarefa ocorre principalmente quando são promovidas condições que facilitam a motivação intrínseca. Os professores devem ser capazes de identificar qual é a orientação motivacional principal na realização de uma tarefa, se é intrínseca ou extrínseca. A promoção da motivação intrínseca deve ser o objectivo principal, mas pode não ser o objectivo primeiro. Numa situação escolar, por exemplo, os professores não devem ignorar a eficácia inicial da motivação extrínseca sob a forma de observações positivas, reconhecimento oportuno pelo trabalho bem feito, boas classificações, prémios e outras recompensas. Mas a pouco e pouco o professor deve ajudar os estudantes a identificar as suas aptidões, as aprendizagens já feitas e os estilos de aprendizagem; devem ainda alimentar a curiosidade, o interesse e o desejo de saber, mostrar a importância da tarefa, desenvolver a expectativa de que se é capaz e acompanhá-los na realização dos seus objectivos. Quando um aluno está intrinsecamente motivado para realizar uma tarefa (por ex., aprender a tocar um instrumento musical ou realizar um trabalho escolar
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sobre determinado tema), gosta realmente do que faz e obtém satisfação e prazer pela sua realização, a atribuição de reforços ou incentivos externos (prémios, dinheiro ou presentes) não é de todo necessária e pode até ser às vezes contraproducente. Neste caso verifica-se o que se designou por efeito de super-justificação: Quando há motivação intrínseca e prazer para realizar uma tarefa, a introdução de um reforço externo pode diminuir o desejo de a realizar e o agrado que antes se sentia. (Para investigações recentes sobre esta questão, veja-se Butler, 1988; Eisenberger e Cameron, 1996; 1998).
5.2.6.1 Não há uma teoria … No trabalho, na empresa e no desporto não há uma única teoria que seja capaz de explicar o que motiva as pessoas a fazer mais e melhor. A complexidade do conceito de motivação por um lado e a existência de diferenças individuais e de valores no que se refere aos objectivos importantes da vida por outro torna difícil formular uma teoria que explique a motivação em geral. No entanto as teorias existentes permitem fornecer um enquadramento teórico que ajuda a focar os aspectos mais relevantes que devem ser tidos em conta no comportamento das pessoas e em certas situações específicas. As melhores teorias são aquelas que conseguem compreender e explicar a energética do comportamento em geral e dos seres humanos em particular e ainda conseguem ser capazes de fazer propostas específicas para motivar as pessoas numa determinada situação. As teorias do incentivo estabeleceram este objectivo para o comportamento animal em geral, e conseguiram-no em grande parte, mas revelaram-se incapazes de explicar o comportamento humano. O funcionamento da motivação humana implica um tipo de motivos específicos como as expectativas, as crenças, as cognições e a percepção do valor pessoal e social atribuído aos diversos incentivos. É por este caminho que se orientam as teorias cognitivas e especialmente as teorias da aprendizagem social e creio que ambas estão no bom caminho.
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5.3
Conclusão
Há autores que afirmam que a motivação precede a cognição. A motivação seria influenciada por necessidades que empurram o organismo para a acção. Estas necessidades actuariam antes do organismo planear a sua satisfação. Pode estar certo, mas é apenas um elemento da motivação. Quando uma pessoa está esfomeada e procura alimento, o papel da cognição parece secundário, porque a pessoa parece agir “cegamente” na busca de estímulos adequados para reduzir este impulso, indo directamente ao frigorífico, à dispensa ou ao restaurante da esquina. Isto em condições normais e em especial nas sociedades ocidentais de abundância e solidariedade. Mas em casos extremos de situações de fome e penúria, como sucede em tempo de guerra com o racionamento de alimentos, a satisfação destes impulsos requer a tomada de decisões estratégicas para manter a sobrevivência da pessoa. Assim quando o animal tem ao mesmo tempo fome e sede e os incentivos que satisfazem estes impulsos estão situados em locais diferentes e um dos locais é mais perigoso e envolve mais riscos do que outro, é preciso fazer uma escolha e esta escolha é uma decisão cognitiva. E a escolha pode ser não-beber para já. Pode argumentar-se que o organismo irá escolher à partida o comportamento com maior nível de motivação, por exemplo a bebida. Mas esta escolha implica uma decisão prévia em função da recordação do tempo de privação e dos riscos prováveis que enfrenta a sua satisfação. Analise-se ainda o caso do impulso sexual nos mamíferos e nas pessoas. Não basta existir um impulso sexual por um lado e detectar um incentivo no ambiente para o satisfazer por outro. Mesmo nos animais a satisfação do impulso sexual envolve estratégias de corte e acasalamento bastante complexas, em que o comportamento sexual é orientado em termos da escolha que parece melhor em cada momento. E a escolha pode não se concretizar, se entretanto aparecer um concorrente que tiver feito a mesma opção. Nos seres humanos isto é ainda mais evidente e complexo, envolvendo na maioria esmagadora dos casos a avaliação de factores de natureza pessoal, social e económica, além de valores morais e religiosos. É preferível defender a tese de que a motivação, a emoção e a cognição estão intimamente relacionadas num sistema complexo de interacções e de precedências mútuas. Por exemplo, escolher o curso universitário que se pretende seguir, planear umas férias, ter um filho agora ou mais tarde, são objectivos que implicam uma extensa actividade cognitiva de forma a analisar as vantagens ou desvantagens inerentes à decisão que vier a ser tomada. Este planeamento será bastante verde, insípido e desencorpado se não for guiado pelas emoções de alegria, surpresa, medo e esperança, associadas aos comportamentos resultantes da escolha que vier a ser tomada. Sem as emoções associadas e sem a
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motivação para se atingir cada um destes objectivos, cada plano não passará de mais um plano possível, provavelmente todos mais ou menos interessantes e válidos, mas sem a excitação e a força para permitir a iniciação e a persistência do comportamento escolhido.
5.4
Conceitos de motivação
Motivação, necessidades, impulsos, incentivos, motivos, instintos, sociobiologia, gene egoísta, homeostase, excitação, motivação intrínseca, motivação extrínseca, auto-realização, dissonância cognitiva, atribuição causal, locus de controlo, expectativa x valor, auto-eficácia, amotivação, efeito de superjustificação.
5.5
Perguntas de auto-avaliação 1. Defina e relacione os conceitos de necessidades, impulsos e incentivos. 2. Descreva a teoria motivacional de Maslow e refira os seus pontos mais positivos e negativos. 3. Quais lhe parecem ser as maiores contribuições das teorias cognitivas e da aprendizagem social para a compreensão do processo motivacional. 4. Defina motivação extrínseca e intrínseca e comente as potencialidades de cada tipo.
5.6
Sugestões de leitura
Informação suplementar sobre motivação pode ser lido em McClelland (1987), Bandura (1997), Barros, Barros e Neto (1993) e Abreu (1998).
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6. Emoção
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Todos sentimos estados de alegria, satisfação e prazer quando nos divertimos com os nossos filhos e amigos, damos e recebemos prendas, assistimos a um bom espectáculo e somos elogiados. Noutras ocasiões sentimos surpresa por uma notícia inesperada, medo de um vulto sentado à entrada da porta quando regressamos a casa de noite, fúria quando vemos o nosso carro riscado ou o comerciante nos quer vender gato por lebre, aversão a certos alimentos, repulsa ao ver certas pessoas, tristeza e pesar pelo falecimento de um familiar. Em todos estes casos, sentimos uma ou mais emoções, desencadeadas por um estímulo externo ou por um pensamento, com uma tonalidade agradável ou desagradável, intensa ou ligeira, breve ou mais demorada. São experiências e sensações pessoais involuntárias e cujo aparecimento súbito muitas vezes nos surpreende. A emoção é uma experiência subjectiva que envolve a pessoa toda, a mente e o corpo. É uma reacção complexa desencadeada por um estímulo ou pensamento e envolve reacções orgânicas e sensações pessoais. É uma resposta que envolve diferentes componentes, nomeadamente uma reacção observável, uma excitação fisiológica, uma interpretação cognitiva e uma experiência subjectiva.
6.1
Âmbito da emoção
A emoção é um comportamento observável através do rosto, voz, gestos e posição corporal. O rosto é um meio privilegiado de expressar uma grande variedade de emoções. No teatro e cinema, o rosto de Sir Laurence Olivier conseguiu transmitir as mais subtis variações da experiência emocional, a ponto de se poder dizer que o rosto é o palco da emoção. O rosto transmite receptividade, afastamento ou compaixão em relação aos outros e tem um papel importante em termos de adaptação e ajustamento social. As variações tonais da voz que um grande actor, artista de fado ou cantor de ópera são capazes de revelar, exprimem também uma paleta emocional bastante variada e complexa. A voz e o rosto têm autonomia emocional própria. Uma voz forte e rápida ou lenta e arrastada ao telefone podem significar fúria ou tristeza, do mesmo modo que a observação de fotografias de rosto são suficientes para caracterizar a emoção expressa. No entanto é o corpo na sua globalidade, que transmite e exprime a fidelidade emocional. Há situações ardilosas em que o rosto e a voz parecem submissas, mas a posição corporal e os gestos indicam agressão, e onde uma percepção incorrecta pode ser prejudicial. A emoção inclui uma componente de excitação fisiológica, ao nível do sistema nervoso autónomo (SNA). Perante a ameaça física de um delinquente, causando © Universidade Aberta
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medo e pavor ou perante um embate automóvel, provocando aborrecimento e fúria, verificam-se diversas alterações fisiológicas, nomeadamente um aumento do ritmo cardíaco e pressão sanguínea, a respiração torna-se ofegante, o sangue flui do estômago para os músculos voluntários, aumenta a transpiração, as glândulas supra-renais produzem epinefrina (adrenalina), as pupilas dilatamse para melhorar a visibilidade, entre outras reacções. A emoção é também uma interpretação cognitiva conjunta do estado fisiológico e da situação que desencadeou a reacção. O mesmo estado fisiológico pode dar origem ou não a uma emoção. Subir as escadas a correr de um prédio de vários andares produz um conjunto de reacções fisiológicas, como o aumento da respiração, ritmo cardíaco e transpiração, semelhantes em parte à emoção de medo ou fúria, mas uma pessoa quando chega ao topo das escadas não diz que sente medo ou que está furiosa. Mas se no início das escadas vê subitamente um desconhecido com mau aspecto, surgem logo reacções fisiológicas semelhantes que passam a ser interpretadas e sentidas como surpresa e medo. Por último, a emoção é uma experiência subjectiva sob a forma de alegria, tristeza ou pesar. É um sentimento geral de agrado ou desagrado, forte ou fraco, que nos inúmeros cambiantes que revela nos faz vibrar quando deparamos com o belo ou tropeçamos no horrível. As emoções podem ainda ser agradáveis e desagradáveis ao mesmo tempo, como sucede com uma promoção no emprego onde um vencimento melhor é acompanhado por mais responsabilidades e menos tempo para a família e amigos, ou mesmo até com o casamento onde ao prazer da relação se juntam mais deveres e obrigações. O controlo sobre as emoções é parcial. As emoções não podem ser ligadas ou desligadas imediatamente. São estados quentes que precisam de tempo para arrefecer. A maior parte das dimensões subjectivas da emoção podem ser avaliadas por meio de questionários de auto-observação sobre o que uma pessoa sente ou já experienciou. Mas são os escritores, os artistas e os actores os que conseguiram revelar provavelmente melhor as inúmeras facetas e subtilezas da experiência emocional.
6.1.1 Funções da emoção Além das várias componentes e estruturas envolvidas na actividade emocional, é possível destacar o papel funcional das emoções. A emoção tem uma função adaptativa, uma função motivacional e até mesmo uma função perturbadora. As emoções têm uma função adaptativa e ajudam os organismos a enfrentar questões chave de sobrevivência postas pelo ambiente. Darwin (1872) foi o primeiro a ressaltar o papel funcional das emoções e defendeu que a 244
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comunicação é o aspecto da emoção mais importante e significativo em termos de sobrevivência. Do ponto de vista evolutivo as emoções são um sistema básico da espécie gravado no sistema nervoso para efeitos de comunicação. Se as emoções apresentam uma função de comunicação simples, então as emoções contribuem para a racionalidade da acção em vez de serem consideradas actos meramente irracionais. Quando o papel adaptativo da emoção é desempenhado satisfatoriamente, a emoção torna-se num estado racional, porque está adaptada à percepção que a pessoa faz da situação. A emoção tem uma função motivacional. As emoções mobilizam a pessoa para responder a situações urgentes sem perda de tempo a ponderar qual a melhor reacção ou resposta. A rapidez com que as emoções surgem e nos dominam, muitas vezes antes de nos darmos conta, é essencial para mobilizar o organismo para reagir. As emoções tem ainda uma função perturbadora na tomada de decisões e uma acção desmobilizadora. Estados contínuos e frequentes de tristeza e depressão perturbam a acção, enviesam a maneira de pensar com base em recordações passados de insucessos e fracassos e revelam-se pouco ou nada adaptativos em termos de mobilizar uma pessoa neste estado para satisfazer as suas necessidades básicas. A função adaptativa e perturbadora da emoção parece contraditória. A tristeza e depressão não parecem ser à primeira vista estados adaptativos, mas também se pode defender esta hipótese. A tristeza seria um estado adaptativo, significando um sinal de ajuda e busca de compaixão para que outros façam o que a pessoa não pode ou não quer fazer. A compaixão pelos mais fracos e a sua cura é um meio de manter a sobrevivência do maior número de membros do grupo ou da tribo. Neste caso a depressão não seria perturbadora, mas um sinal adaptativo.
6.1.2 Conceitos emocionais No âmbito da emoção há vários termos relacionados, como sentimento, afecto, preferências, humor, disposição, traços emocionais e desordem emocional. Alguns destes termos são considerados às vezes sinónimos, outras vezes são conceitos que discriminam variações ao longo da escala de intensidade emocional ou representam aspectos qualitativos diferentes. Emoção, sentimento e afecto são considerados sinónimos quando se fala de um estado emocional ou afectivo que influenciou uma determinada opção, interferiu na percepção de um acontecimento ou desencadeou uma recordação específica. A emoção é mais breve e intensa do que o sentimento, mas não existe uma linha divisória. Cada emoção varia também em intensidade. A notícia de uma primeira gravidez pode ser uma enorme surpresa e uma grande decepção aos 15 anos, uma © Universidade Aberta
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enorme surpresa e uma grande alegria aos 25 anos, e podem ocorrer sentimentos semelhantes mas de intensidade menor aos 35 anos com a notícia do terceiro filho, ou sentimentos ambivalentes com o nascimento de gémeos. A emoção tem componentes expressivas a nível comportamental e orgânico. A alegria, a surpresa, a fúria e a repulsa são estados intensos, acompanhados por níveis de excitação rápidos e desejo de agir, motivam uma acção e depois regressam ao estado normal. Uma pessoa pode ter uma explosão súbita de cólera, muito raramente é capaz de ter um ataque de cólera que dure um dia inteiro, embora possa ficar num estado de animosidade, irritação e hostilidade durante bastante tempo. Humor e disposição são estados que podem durar horas ou um dia inteiro, como se verifica em expressões do género, “hoje acordei mal-disposto” ou “passei um fim de semana bem-disposto”. O sentimento é um sentir consciente, uma impressão, uma experiência, às vezes com uma dimensão mais sensorial como dor ou bem-estar, outras vezes com uma dimensão mais afectiva como tristeza, melancolia, agrado. O sentimento é um estado similar à emoção, menos intenso e mais prolongado. As preferências são estados que têm uma valência consciente e inconsciente de natureza emocional e afectiva. Uma pessoa tem preferências conscientes por cores, flores ou tipos de pessoas, mas tem dificuldades em explicar conscientemente um grande número de preferências no dia a dia, desde certo tipo de compras que fez até à pessoa que escolheu para cônjuge. Desordem emocional é uma expressão que se refere às reacções emocionais não apropriadas em relação a uma dada situação. Estados de ansiedade e fobias são desordens emocionais que podem durar vários meses e estão associados a um quadro de sintomas. Estados emocionais como a ira, pesar, tristeza e sofrimento podem dar origem a comportamentos desorganizados e caóticos. Circunstancialmente a emoção captura o cérebro e o corpo por momentos. Se a duração for prolongada pode até pôr em risco a sobrevivência da pessoa. Estados crónicos de experiência emocional prolongada devem ser objecto de tratamento e psicoterapia por parte de pessoal especializado. O traço emocional refere-se a um estado consistente e estável no comportamento da pessoa, como o traço “feliz” que está relacionado com a frequência de emoções positivas, satisfação com a vida, prazeres e realizações, ou o traço “deprimido” que está relacionado com situações opostas. Os traços de personalidade, como o traço de personalidade extrovertida ou neurótica, são ainda mais estáveis, consistentes e duradouros do que o traço emocional, têm muitos deles uma base emocional e podem durar anos ou uma vida inteira. Assim os termos emoção, humor, traço emocional e traço de personalidade representariam expressões de comportamentos afectivos ao longo de uma escala de duração temporal cada vez mais longa e de intensidade cada vez mais breve. 246
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6.1.3 Emoções primárias e secundárias Há uma grande variedade de estados emocionais descritos por um número elevado de conceitos. Na língua inglesa foram contados mais de 550 termos referentes a emoções e na língua portuguesa o número não deverá ser muito diferente. Será possível reduzir este número de estados a um pequeno grupo de emoções básicas e primárias, de modo semelhante ao que os físicos estabeleceram para as cores e os químicos para os elementos básicos que presidem aos vários compostos? A ideia é atractiva e faz sentido (Ekman, 1994). Há estados emocionais que parecem inatos como a aflição e o sorriso, ou pelo menos estão presentes de forma diferenciada nos primeiros meses de vida, como a ira-frustração e medo (e.g., Rothbart, 1994). São ainda estados reconhecidos por quase toda a gente em diversas partes do mundo (Ekman e Friesen, 1971). Há ainda um tipo de emoções compostas que parecem ser formadas a partir de outras emoções básicas, como o amor que seria formado pela alegria mais a aceitação; o desprezo pela aversão mais a ira; O optimismo pela alegria mais a antecipação; o desapontamento pela surpresa mais a tristeza. Além disto, a mesma emoção combinada com outras daria origem a emoções secundárias diferentes. Assim o medo, que é considerado um comportamento de protecção nas diferentes espécies, quando combinado com a antecipação daria origem à ansiedade; combinado com a aceitação daria origem à submissão; combinado com a aversão daria origem à vergonha. Vários investigadores defenderam a existência de um certo número de emoções básicas tendo em conta diferentes critérios. Veja-se o Quadro 6.1 elaborado a partir de um estudo de Ortony et al. (1988). O número de emoções básicas varia de investigador para investigador, mesmo quando se considera o mesmo critério de classificação. Qual o critério que deve presidir à selecção e agrupamento das emoções para se considerar o que é ou não uma emoção básica? Será que básico significa inato, universal à espécie humana, integrado na constituição genética da espécie, representado através de circuitos cerebrais próprios e anterior ao processo de aprendizagem humana? Ou básico seria constituído por um pequeno grupo de emoções, cujas combinações dariam lugar a emoções secundárias mais complexas, como por exemplo o ciúme que seria uma combinação de medo, tristeza e ira? A resposta a esta questão depende muito da perspectiva teórica que se adoptar. O consenso é difícil, mesmo entre os que ressaltam a importância da componente neurofisiológica da emoção. A classificação proposta por Plutchik (1980) é uma das mais referidas na literatura e baseia-se em vários postulados, sendo os mais importantes os 4 seguintes: Há elementos comuns ou prototípicos que podem ser identificados nas expressões emocionais das diferentes espécies; Há um pequeno número
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de emoções básicas e todas as restantes emoções são combinações, misturas ou compostos deste núcleo básico; Cada emoção revela-se em graus de intensidade e níveis de excitação variados; As emoções têm um papel adaptativo ajudando os organismos a enfrentar questões vitais de sobrevivência postas pelo ambiente. Plutchik (1980) defendeu oito emoções básicas, cada uma com o seu oposto e tendo por critério a relação com os processos biológicos adaptativos: alegria-tristeza, ódio-medo, surpresa-antecipação, aversãoaceitação.
Quadro 6.1 – Listagem das emoções básicas e respectivos critérios de selecção proposta por alguns dos principais investigadores na área das emoções.
Autor
Emoções básicas
Critério principal
James (1884)
amor, ira, medo, desgosto
Envolvimento corporal
Watson (1930)
amor, ira, medo
Sistema nervoso
Mowrer (1960)
prazer, dor
Estados emocionais inatos
Ekman (1992)
ira, aversão, medo, alegria, tristeza, surpresa
Expressões faciais universais
Panksepp (1982)
medo, ira, pânico, expectativa
Circuitos cerebrais
Plutchik (1980)
ira, aversão, medo, alegria, tristeza, surpresa, Processos biológicos adaptaaceitação, antecipação tivos
Izard (1992)
ira, aversão, medo, alegria, desprezo, culpa, Neuroquímico, comportamenaflição, interesse, vergonha, surpresa to e sensação
A discussão sobre a existência de emoções primárias deve-se em grande parte aos estudos inter-culturais realizados desde a década de 70 por Paul Ekman e colaboradores (e.g., Ekman e Friesen, 1971; Ekman, 1994), que tentou provar que as expressões faciais de medo, ira, tristeza e satisfação são universais e reconhecidas por pessoas das mais diversas culturas e estados de desenvolvimento, incluindo tribos iletradas da Nova Guiné sem acesso aos meios de comunicação social. Em apoio desta hipótese, outros estudos realizados sobre a expressão facial de crianças cegas de nascença indicaram que as expressões de alegria, pesar e tristeza eram muito semelhantes às expressões faciais de crianças normais. 248
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6.2
Teorias da emoção
Strongman (1998) refere cerca de 150 teorias que foram divulgadas na literatura científica para melhor se compreender e explicar as emoções e a formação do estado emocional. Apesar de tantas alternativas não há no caso da emoção, como em muitos outros fenómenos psicológicos, uma teoria consensual capaz de explicar todos os aspectos da emoção, embora haja naturalmente teorias que são melhores do que outras. Quase todas as teorias contemporâneas de emoções salientam quatro factores na formação de um estado emocional: 1. A estimulação externa a partir de acontecimentos do meio ambiente, como a visão de um cão a correr em direcção a nós; ou interna, a partir de imagens e pensamentos, como a ansiedade que estou a sentir em relação ao exame que vou realizar amanhã. 2. Correlatos neurofisiológicos a nível da organização cerebral e a nível dos sistemas nervoso central e autónomo. 3. A avaliação cognitiva feita pela pessoa a partir da estimulação recebida. Um cão corpulento e solto a correr e ladrar na nossa direcção causa medo e fuga, mas se estiver preso numa jaula não suscita qualquer receio; do mesmo modo uma seringa na mão de um médico não causa fuga ao contrário de uma seringa na mão de um delinquente. A avaliação da situação afecta em grande parte as emoções produzidas e geradas. 4. Elementos motivacionais: A activação emocional tem frequentemente um papel desencadeador da acção. Quase todas as teorias de emoção envolvem componentes cognitivos e fisiológicos, embora a ênfase posta em cada um deles varie de teoria para teoria. As teorias e hipóteses explicativas referidas a seguir são uma selecção do que julgo serem as teorias da emoção mais aceites e citadas na literatura psicológica, nomeadamente a teoria de James-Lange, Cannon-Bard, Schachter e Singer, Lazarus, teoria da expressão facial e as hipóteses explicativas de natureza neurológica de LeDoux e Damásio.
6.2.1 Teoria de James-Lange William James nos EUA e Lange na Dinamarca propuseram uma teoria das emoções bastante semelhante entre si e quase ao mesmo tempo. A descrição feita por James é a mais referida e a que é descrita a seguir. James publicou em 1884 o artigo O que é uma emoção? que se tornou bastante influente e um © Universidade Aberta
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dos artigos mais citados na literatura desta área. James (1884) defendeu que as emoções que sentimos são o resultado de informações que recebemos do nosso corpo quando reagem a estímulos do meio ambiente. A emoção é a percepção da agitação e alterações fisiológicas desencadeadas por seres e acontecimentos no nosso meio ambiente. Para cada emoção haveria uma assinatura corporal única ao nível dos órgãos viscerais e músculos voluntários. James baseou-se numa experiência mental para defender a sua teoria, convidando para o efeito o leitor a sentir uma emoção forte, a pensar depois nas diversas reacções e estados corporais envolventes e por último a retirar um a um os elementos fisiológicos e corporais associados à emoção. O que restaria, segundo James, era uma emoção desencorpada, destituída de calor emocional, uma percepção puramente cognitiva, pálida e sem cor; um estado neutro e frio. A pessoa podia ver um urso ou um cão e correr, mas não sentia medo ou ficava furiosa. Neste sentido James refere que a estratégia para aliviar uma emoção indesejável é tentar alterar as respostas corporais que estão sob controlo voluntário. No caso de tristeza, por exemplo, seria pôr uma cara alegre, saudar bem alto as pessoas, rir, pôr-se bem direito e caminhar com energia. A teoria de James é oposta à crença do senso comum: A pessoa vê o cão, tem medo e depois foge. Segundo James, a sequência é diferente: A pessoa vê o cão, corre e depois sente medo. O mesmo se verifica com as outras emoções: As pessoas estão tristes porque choram, felizes porque riem e se abraçam, furiosos porque batem e lutam. Esta teoria associa os estados mentais aos processos fisiológicos. Se as emoções que sentimos são o resultado de informações que recebemos do nosso corpo, então o corpo produziria um conjunto de mudanças fisiológicas específicas para cada emoção sentida. Esta tese foi contestada nas décadas seguintes.
6.2.2 Teoria de Cannon-Bard Cannon (1927) contestou uma das implicações da teoria de James-Lange segundo a qual o padrão de respostas fisiológicas podia dar origem a uma variedade de expressões emocionais e propôs uma teoria alternativa que veio a ficar conhecida por teoria de Cannon-Bard. Cannon-Bard recusaram a ênfase posta na percepção da actividade fisiológica, afirmando que as mesmas alterações viscerais ocorrem em estados emocionais diferentes — as pessoas choram de tristeza ou de alegria — ou até mesmo em estados não-emocionais, como nos estados de febre ou de hipoglicemia. 250
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Cannon-Bard referem estudos realizados em cães e gatos, onde as ligações entre o SNC e as vísceras foram cortadas, não se tendo verificado alterações ao nível do comportamento emocional. Nestas experiências de amputação das ligações, os sinais exteriores de fúria de um gato face a um cão a ladrar estavam presentes. Segundo Cannon-Bard as vísceras são estruturas de reacção lenta, em contraste com a rapidez de resposta emocional a um estímulo, não podendo servir de condição necessária e suficiente para a percepção do estado emocional. A teoria de Cannon-Bard defendeu que os estímulos externos activam a região do tálamo, que por sua vez envia dois sinais em simultâneo: Um sinal neuronal para o córtex que leva a pessoa a sentir a emoção; e outro sinal para o SNA e músculos que desencadeiam as mudanças fisiológicas e corporais associadas à emoção. Cannon-Bard consideraram a região do tálamo como o centro da emoção e esta ideia ainda hoje está presente, embora com um apoio anatómico a nível cerebral mais preciso e elaborado. Actualmente o sistema límbico e principalmente a amígdala estão mais envolvidos na regulação e controlo da emoção do que a teoria de Cannon-Bard pensava inicialmente sobre o papel específico do tálamo. A teoria de Cannon-Bard nada diz sobre os estados fisiológicos específicos de cada emoção, apenas refere a presença de um estado global de actividade ou excitação no organismo que varia em termos de intensidade. Assim quando a divisão simpática do SNA é activada, os efeitos são uniformes no organismo, independentemente de qualquer estímulo ambiental específico. Para esta teoria as emoções diferem em termos de grau de excitação geral. A teoria de Cannon-Bard justifica a versão do senso comum sobre o aparecimento da emoção: Um pessoa vê o cão, depois sente medo e em seguida foge. Assim uma pessoa chora porque está triste, abraça e beija porque está contente, luta porque está furiosa.
6.2.3 Teoria de Schachter e Singer Schachter e Singer (1962) defenderam a teoria de que as emoções resultam do modo como avaliamos e interpretamos os nossos estados de excitação. Os factores determinantes na formação do estado emocional são por um lado a excitação fisiológica e visceral e por outro a avaliação cognitiva efectuada. No entanto esta teoria privilegia a fase de avaliação cognitiva, afirmando que um único estado de excitação fisiológica pode produzir emoções diferentes, dependendo do modo como o indivíduo interpreta e avalia a situação. A teoria de avaliação cognitiva foi inicialmente formulada a partir dos resultados obtidos © Universidade Aberta
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na experiência realizada por Schachter e Singer (1962), que ressaltou o papel da avaliação cognitiva na formação da emoção. Nesta experiência os sujeitos foram informados de que iam participar num estudo que tinha por objectivo analisar os efeitos de um suplemento vitamínico. Na realidade o suplemento era a droga epinefrina (ou adrenalina). A epinefrina é produzida pelas supra-renais sempre que uma pessoa está perante uma situação causadora de stress e é responsável pelo aumento da pressão sanguínea, ritmo cardíaco e respiração. A experiência foi dividida em três fases. Na primeira fase os participantes foram divididos em quatro grupos. O 1º Grupo tomou epinefrina e foi correctamente informado sobre os efeitos secundários, nomeadamente um ligeiro tremor das mãos, aumento do ritmo cardíaco e rubor ligeiro na face; o 2º Grupo tomou epinefrina e foi erradamente informado sobre os efeitos da droga, tendo sido informado que a droga causava entorpecimento dos pés, comichão e uma dor de cabeça ligeira; o 3º Grupo tomou epinefrina e não foi informado sobre nenhum efeito da droga; o 4º Grupo (placebo) recebeu uma injecção de um soluto salino e não recebeu também qualquer informação. Estas informações diferenciadas tinham por objectivo manipular as interpretações dos sujeitos sobre as suas próprias sensações corporais. Na segunda fase da experiência, os sujeitos aguardavam numa sala de espera durante 20 minutos até que fossem chamados para realizar uma série de provas e onde já se encontrava um outro participante. Este era um aliado ou cúmplice do experimentador que tentava comportar-se durante o tempo de espera, quer em termos de euforia quer em termos de fúria ou irritação. Na situação de euforia o cúmplice sorria, fazia bolas de papel e jogava basquetebol; fazia aviões e atirava-os ao ar; fazia uma torre com caixas de arquivo e depois tentava derrubá-la. Na situação de ira, o tempo de espera era passado pelo participante e pelo cúmplice a preencher um longo questionário. O cúmplice fazia comentários depreciativos sobre a natureza da experiência, irritava-se com perguntas de tipo pessoal referentes ao rendimento anual do pai e explodia rasgando o questionário e abandonando a sala quando era questionado sobre o número de vezes por semana que tinha relações sexuais. Durante esta fase os sujeitos foram observados através de um espelho unidireccional e a frequência de actividades iniciadas e partilhadas foi registada. Na terceira fase os sujeitos responderam a um questionário sobre a intensidade dos estados de euforia ou de fúria e foi-lhes medida a pulsação. No final os participantes foram informados do verdadeiro objectivo da experiência. As hipóteses desta experiência previam que os sujeitos do 4º Grupo (placebo, não-excitados) não deveriam sentir emoção, do mesmo modo que os sujeitos do 1º Grupo que tomaram epinefrina e que foram correctamente informados 252
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sobre as reacções que poderiam surgir, porque tinham uma explicação prévia e não-emocional para a excitação que iriam sentir. Em contraste, todos os restantes grupos deveriam sentir-se eufóricos ou furiosos em função do tipo de actuação do cúmplice do experimentador. Os resultados apoiaram genericamente estas hipóteses. Os sujeitos enganados do Grupo 2, quando colocados na situação de euforia avaliaram o seu estado como sendo relativamente feliz, e quando colocados no estado de ira avaliaramno como estando relativamente furiosos. Apesar do grau de excitação fisiológica ser semelhante nos dois estados, as emoções sentidas foram diferentes e opostas. Por sua vez, os sujeitos do Grupo 1 (informado) e os do Grupo 4 (placebo) não sentiram nenhuma emoção, porque tinham uma explicação prévia para o que iam sentir a nível fisiológico. A emoção resultou assim da avaliação que foi feita da situação, tendo em conta a informação inicial apresentada na primeira fase. Segundo Schachter e Singer as pessoas reconhecem as emoções com base na excitação que sentem e na interpretação cognitiva do contexto no qual as emoções acontecem. Há uma interacção entre estímulos internos e os nossos processos cognitivos que avaliam a situação. Assim quando a excitação atinge um certo grau procuramos no ambiente sinais que nos indiquem qual a causa do nosso sentir. Se a excitação está associada a um contexto em que recebemos uma boa notícia, uma pessoa sente alegria; se está associada a uma má notícia a pessoa sente pena e tristeza. Assim a excitação fisiológica prepara o palco onde decorre a emoção, mas não determina qual a emoção específica que lá vai ser representada. A experiência de Schachter e Singer foi várias vezes repetida originando algumas objecções. Por um lado, a emoção não é tão maleável como Schachter e Singer inicialmente defenderam (e.g., Marshall e Zimbardo, 1979). Por outro, a excitação fisiológica provocada pela epinefrina é considerada ligeiramente desagradável pelos sujeitos, o que causa alguns problemas em termos de estabelecimento de uma linha de base para efeitos de comparação, uma vez que pode atenuar os estados de alegria e acentuar os estados de ira. Em vez da epinefrina, alguns estudos usaram o exercício físico intenso para estabelecer uma linha de base neutra na obtenção do grau de excitação. Num estudo deste tipo, os sujeitos depois de terem participado intensamente num exercício físico foram objecto de comportamentos provocatórios, originando uma experiência mais intensa de fúria. Este grupo de sujeitos comportaram-se em seguida de forma mais agressiva numa tarefa realizada do que sujeitos de outro grupo que não tinham feito qualquer exercício físico inicial (Zillman e Bryant, 1974). Veja-se ainda o estudo de Duton e Aron (1974), referido na Caixa 6.1, que revela uma vez mais a importância da avaliação cognitiva da excitação na formação do estado emocional. © Universidade Aberta
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Caixa 6.1 Emoções no cima da ponte Duton e Aron (1974) realizaram uma experiência com o apoio de uma jovem bonita e sedutora que serviu de experimentadora. A experimentadora mostrou um cartão com uma figura ambígua de uma mulher do teste projectivo TAT a homens dos 18 aos 35 anos a quem pediu para inventar uma pequena história sobre esta figura. O relato foi posteriormente analisado em termos do número de elementos contidos de natureza sexual. A história foi solicitada em três ambientes diferentes: A meio de uma pequena ponte sólida de madeira situada a pouca altura da corrente de um riacho; A meio de uma ponte de madeira suspensa, que oscilava e movia-se constantemente e tinha um metro e meio de largura e 140 metros de comprimento, situando-se a uma altura de 70 metros acima da corrente; Em terra firme passados 10 minutos depois dos homens terem atravessado a ponte. Os resultados indicaram que as histórias do Grupo, elaboradas a grande altura na ponte oscilante, continham significativamente mais imagens de natureza sexual do que no caso da ponte fixa e baixa, assim como na situação de terra firme, após a excitação da travessia da ponte ter diminuído. Os homens foram ainda informados de que poderiam telefonar à experimentadora se pretendessem obter informações adicionais sobre os resultados da experiência, tendose verificado que o número de homens que realizaram a prova na ponte alta fizeram quatro vezes mais telefonemas do que os que efectuaram a prova na ponte baixa. Normalmente a excitação fisiológica provocada pela passagem da ponte suspensa causa medo e apreensão. Na ausência de uma explicação imediata para a excitação que sentiram no cimo da ponte oscilante na presença de uma figura feminina sedutora, os homens avaliaram a excitação fisiológica em termos de atracção sexual pela experimentadora, transferindo-a para a história que contaram. Esta experiência prova que é a avaliação da excitação no contexto da situação que é fundamental em termos de formação do estado emocional.
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No conjunto, estes estudos revelam que a emoção não é independente da avaliação que é feita. A excitação pode contribuir para a intensidade do estado emocional, mas a avaliação da situação contribui para a qualidade emocional, ou tipo de estado que a pessoa afirma sentir. Crê-se por isto que o papel da excitação fisiológica é mais reduzido na diferenciação das emoções do que o papel da avaliação cognitiva da situação. Esta teoria tem implicações práticas evidentes. Se o modo como uma pessoa avalia cognitivamente a situação geral determina o tipo de emoção que vai sentir, será possível tornar mais flexível a avaliação cognitiva, de forma a que a pessoa seja capaz de reduzir e atenuar a intensidade de emoções negativas como o medo, ansiedade e ira? É neste âmbito que se situa a terapia cognitiva, enquanto técnica de modificação do comportamento.
6.2.4 Teoria cognitiva de Lazarus A teoria emocional de Schachter e Singer ressaltava a interdependência dos factores fisiológicos e de avaliação cognitiva na formação dos estados emocionais. Mas nas décadas seguintes a tendência predominante no estudo das emoções foi cognitiva. Uma das teorias influentes no âmbito desta tendência foi a teoria da avaliação cognitiva de Lazarus ao defender que as emoções são o resultado directo da nossa avaliação da situação, não da excitação (Lazarus et al. 1980). Ressaltar demasiado os elementos fisiológicos poderia ser considerado uma forma de reducionismo da experiência humana ao comportamento animal, prejudicando a compreensão do processo emocional, porque no decurso da evolução foram os processos cognitivos os que mais se terão desenvolvido e moldado o comportamento humano na adaptação ao meio. Lazarus et al. (1980, p. 192) chegam a ponto de afirmar que os adultos humanos devem ser as criaturas mais emocionais da terra, porque podem usar processos e competências bastante complexas para efectuar distinções subtis a nível emocional e recordá-las mais tarde no meio de muitos outros tipos de informação. Lazarus não rejeita os elementos fisiológicos associados à emoção, muito menos os factores culturais que considera indispensáveis na forma como a emoção é expressa (ex., o luto em diferentes culturas) e no modo como os estímulos são percebidos e avaliados em termos de segurança e medo. Para além da fisiologia e da cultura, no entanto, há uma pessoa com um desenvolvimento e uma memória que na sua relação com as pessoas e o ambiente avalia cada situação em termos de relevância pessoal e significado, tentando ajustar-se da forma considerada mais favorável. A avaliação cognitiva e a
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adaptação (ou ajustamento) são os dois conceitos centrais da teoria emocional de Lazarus, conhecida por teoria cognitiva relacional e motivacional (Lazarus, 1991). Os pontos principais da teoria de Lazarus são os seguintes: 1. Para que uma emoção se verifique, é necessário um processamento cognitivo prévio do estímulo ou da situação. A situação é avaliada em termos normais ou em termos de ameaça directa ou potencial. 2. Uma situação considerada ameaçadora desencadeia uma resposta directa de ataque, fuga ou fixidez de movimentos juntamente com respostas de ordem fisiológica. A emoção incluiria assim uma tendência inata para a acção, sempre que fosse percebida alguma ameaça ou benefício pessoal. 3. Quando uma resposta directa não pode ser dada, a pessoa desenvolve estratégias de adaptação à nova situação, tentando ajustar-se da melhor maneira possível. Para Lazarus et al. (1980) a intensidade e qualidade das emoções depende da forma como uma pessoa se adapta e ajusta a uma situação, sendo a relação social a situação mais importante na experiência humana. Assim o modo como os encontros e relações sociais são avaliados em termos positivos ou negativos determina o significado, a qualidade e a intensidade da resposta emocional. Entre os diversos estudos experimentais que têm sido referidos como apoio da teoria cognitiva de Lazarus conta-se a experiência de Speisman et al. (1964), além da capacidade de explicar várias situações quotidianas comuns. Speisman et al. (1964) mostraram um filme chocante onde se viam os pénises de rapazes adolescentes a serem cortados com um faca de pedra denteada num ritual de passagem à puberdade de uma tribo aborígene australiana. O filme incluia seis operações destas. Cenas deste tipo são propícias a causar níveis elevados de stress e ansiedade e foram mostradas a 4 Grupos, acompanhadas por diferentes comentários sonoros. No 1º Grupo foi focada a dor sofrida pelos rapazes (condição traumática); no 2º Grupo o episódio foi destacado como um rito de passagem para a vida adulta (negação do trauma — “as palavras de coragem ditas pelos homens mais velhos estão a produzir efeito e o rapaz está esperançado que a cerimónia tenha um final feliz” ); no 3º Grupo os elementos emocionais foram ignorados e as tradições da tribo ressaltadas (intelectualização — “Como vêem a operação é formal e a técnica cirúrgica, apesar de elementar e rude, é manejada de forma cuidadosa”); no 4º Grupo o filme foi mostrado em silêncio e sem comentários (controlo).
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Os resultados obtidos, expressos por meio de índices fisiológicos como o ritmo cardíaco e grau de conductibilidade da pele, indicaram que as respostas emocionais foram significativamente inferiores nos Grupos 2 e 3 em relação ao Grupo 1, e um pouco inferiores em relação ao Grupo 4. Nos Grupos 2 e 3 o sofrimento dos adolescentes foi atenuado através de informações moderadas ou de intelectualizações explicativas. Os resultados revelam que o modo como vemos e avaliamos as situações influencia o nível de excitação fisiológica que sentimos. No âmbito de situações quotidianas comuns, a teoria de avaliação cognitiva de Lazarus procura explicar certos comportamentos de adaptação e ajustamento às situações, às vezes controversa mas de forma bem sucedida. Veja-se a situação seguinte. Um empregado é vítima de comentários, insinuações e provocações frequentes do patrão, fazendo tudo para que se despeça. O empregado não pode retaliar directamente contra o patrão, porque seria despedido por justa causa; Não pode despedir-se da empresa, porque tem família e as alternativas podem ser piores. Uma forma do empregado adaptarse melhor à situação e de a considerar menos ameaçadora é efectuar uma reinterpretação e reavaliação e pensar que talvez o patrão não seja tão mau como parece, que a conjuntura económica é a causa de todo o mal-estar e que talvez com um pouco mais de calma e esforço possam surgir melhores dias no futuro. A teoria cognitiva relacional e motivacional de Lazarus é uma teoria psicológica bastante influente e de grande alcance explicativo a ponto de Strongman (1998, p. 281) ter afirmado que esta teoria era provavelmente a mais influente e de maior alcance explicativo de todas as 150 teorias da emoção que tinha descrito e analisado.
6.3
Expressão e feedback facial da emoção
O rosto é um dos elementos mais importantes da expressão emocional e um meio de comunicarmos aos outros o que sentimos. Darwin (1872) foi o primeiro a referir que a expressão emocional era um sinal importante em termos adaptativos e de sobrevivência da espécie. Os estudos realizados por Ekman e colaboradores demonstraram que as expressões emocionais básicas da sociedade ocidental são facilmente reconhecidas por pessoas de outras sociedades, incluindo sociedades pré-letradas, e vice-versa (Ekman et al. 1987). A partir deste tipo de estudos, Ekman propôs a existência de seis emoções básicas ou primárias comuns a todos os seres humanos (vide Quadro 6.1). Apesar de haver algumas diferenças na expressão facial da mesma emoção dentro de
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uma mesma cultura, há também provas de que pessoas de sociedades e culturas diferentes produzem expressões faciais similares em resposta a certas situações vividas ou imaginadas. No âmbito destes estudos foi formulada a hipótese de que a expressão facial desempenha um papel causal na experiência emocional. Segundo esta hipótese, a simples mudança da expressão do rosto muda aquilo que uma pessoa sente. Isto significa que se uma pessoa puser uma cara alegre, vai sentir-se alegre e se puser uma cara carrancuda vai sentir desagrado e repulsa. Uma mudança corporal causa uma experiência emocional e a formulação e defesa desta hipótese é em parte um regresso à teoria de James-Lange: Uma pessoa sentese feliz, porque está a sorrir. De acordo com esta hipótese, uma pessoa recebe informação corporal, não apenas ao nível da excitação fisiológica, mas também ao nível da expressão facial, resultando daqui uma experiência emocional mais intensa. Há vários estudos que apoiam a hipótese de uma relação directa entre expressão facial e emoção sentida. Verificou-se por exemplo que sujeitos solicitados a exagerar as expressões faciais a estímulos apresentados referem uma resposta emocional mais intensa do que os sujeitos com expressão facial normal. Numa experiência bastante imaginativa, Strack et al. (1988) solicitaram a um grupo de sujeitos para avaliarem se os desenhos animados que estavam a ver eram muito ou pouco engraçados, enquanto seguravam um lápis atravessado entre os dentes e compararam os resultados com a avaliação obtida num outro grupo que segurava o lápis preso nos lábios. A colocação do lápis atravessado nos dentes causa geralmente uma expressão sorridente, enquanto que a colocação nos lábios origina uma expressão carrancuda. (Experimente o leitor para melhor acreditar!) De acordo com o sentido da hipótese, os sujeitos com o lápis atravessado nos dentes avaliaram os desenhos animados como mais engraçados do que os sujeitos com o lápis atravessado nos lábios. A expressão facial é assim uma componente importante da experiência emocional. No entanto o modo como a expressão facial contribui para a experiência emocional não está devidamente esclarecida. Uns sugerem que as contracções dos músculos da cara afectam a circulação do sangue no rosto, causando variações subtis na temperatura do sangue que irriga o cérebro. Outros sugerem que estas variações de temperatura são responsáveis pela maior ou menor libertação de substâncias neurotransmissoras associadas às emoções. Qualquer que seja o mecanismo, os resultados deste tipo de experiências revelam que há uma ligação directa entre expressão facial e experiência emocional que não é mediada pela avaliação cognitiva (veja-se a propósito, Damásio, 1995, p. 154). No entanto o papel da avaliação cognitiva na emoção não é rejeitado pelos investigadores que contribuíram para o estudo da expressão facial das emoções, nomeadamente Ekman (1992, 1994). 258
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6.4
Perspectiva neurológica
As concepções de LeDoux e Damásio sobre os processos de formação emocional, embora diferentes, foram englobadas numa perspectiva neurológica devido à importância dos estudos neurofisiológicos efectuados no âmbito da emoção. É uma perspectiva importante que a psicologia deve ter em conta.
6.4.1 Modelo de LeDoux LeDoux (1996) defendeu, a partir de estudos realizados em ratos, que o processamento cerebral da emoção era feito através de dois circuitos: Um circuito directo e outro indirecto. A sequência da estimulação no circuito directo era a seguinte: Identificação do estímulo, tálamo sensorial, amígdala e reacção emocional. No circuito indirecto, havia um desvio da estimulação do tálamo para a amígdala através do córtex sensorial. A via tálamo-amígdala é mais directa e rápida do que a via tálamo-córtex-amígdala. Segundo LeDoux esta via directa permitiria começar a responder a um estímulo potencialmente perigoso, antes de se saber qual a sua natureza. Mas o processamento feito na amígdala proveniente directamente do tálamo é confuso e trapalhão. Na expressão de LeDoux era como se a música dos Beatles, Rolling Stones ou de outra banda qualquer soasse da mesma maneira. Para que a amígdala sintonize e reconheça a música dos Beatles é preciso aguardar a chegada do processamento da estimulação do circuito indirecto feito via córtex. Numa experiência de condicionamento de medo, em que um som é associado durante vários ensaios a um choque eléctrico, verifica-se que o som se apropria das características do choque e produz medo nos ratos. Se entretanto o córtex for lesionado, o rato continua a ter medo ao som, mas se a amígdala for lesionada o rato perde o medo que tinha anteriormente. No entanto se a situação inicial for um pouco mais complexa e se a resposta de condicionamento de medo for estabelecida em termos discriminativos com um som contínuo (por ex., o choque associado a um som contínuo, mas não associado a um som descontínuo), verifica-se que as lesões do córtex não impedem o rato de continuar a ter medo ao som, simplesmente passa agora a reagir da mesma forma aos dois tipos de som. Os estudos de LeDoux (1996) sobre a existência de uma via directa e rápida de processamento emocional entre o tálamo e a amígdala (ignorando o córtex, que é considerado responsável pela cognição) foi aproveitada para apoiar um grupo de teorias que rejeitam a influência da avaliação cognitiva na resposta emocional. Se a amígdala desencadeia a reacção emocional sem a estimulação
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ter necessidade de passar pelo córtex primeiramente, então as teorias cognitivas estão erradas ao defenderem a avaliação cognitiva como uma condição necessária para a formação da resposta emocional. É importante referir que LeDoux não subscreve este tipo de explicação (vide LeDoux, 1996, p. 52) e afirma até que as teorias cognitivas são as que melhor se aproximam de uma boa explicação sobre as emoções. De facto pode-se argumentar que o processamento ao nível do circuito directo tálamo-amígdala é tão elementar e grosseiro que a vantagem adaptativa é reduzida. Reagir a um estímulo súbito ameaçador com respostas tipo parar (ou ficar “gelado”) e aumento rápido do ritmo cardíaco apenas se torna numa vantagem adaptativa acrescida se entretanto chegar à amígdala a informação do córtex de que o estímulo percebido é efectivamente uma cobra e não uma corda enrolada!
6.4.2 Modelo de Damásio O neurologista Damásio (1995) tem uma visão conjunta e integrada dos sistemas emocional e racional. Assim tanto contesta que a emoção esteja desligada do processo avaliativo mental, como a racionalidade e a globalidade do acto de pensar estejam apenas dependentes do cérebro. Para Damásio a formação do estado emocional requer a presença de três actores: Uma representação explícita (consciente) do estímulo; uma representação explícita do actual estado do corpo; uma representação intermediária que recebe sinais destes dois locais de actividade cerebral, preserva a ordem de início da actividade cerebral, criando por um breve período um estado conjunto sincronizado. O conjunto destes três actores formaria um processo básico que seria acompanhado paralelamente por um outro processo, também básico, que modularia o estilo de raciocínio e o nível de eficiência e velocidade no processamento das representações. Este segundo processo básico seria responsável pela emocionalidade própria de cada pessoa e pelos enviesamentos emocionais na avaliação de acontecimentos (ob. cit. p. 175-6). Para Damásio, há emoções primárias, aquelas que sentimos na infância, inatas, pré-organizadas e jamesianas (veja-se James no Quadro 6.1) e emoções secundárias, as que sentimos em adultos e que se foram construindo progressivamente sobre as emoções primárias (ob. cit. p. 145; 148). Esta classificação e o critério adoptado são bastante discutíveis, porque o processo de desenvolvimento para classificar as emoções em primárias e secundárias é um critério bastante controverso e como se viu não há acordo sobre o número de emoções básicas. Talvez este tipo de discussão seja “por vezes inútil”, (ob. cit. p. 144), 260
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mas a clarificação não deixa de ser necessária. Pode-se argumentar ainda que Damásio confunde o reflexo inato do pinto que esconde a cabeça “quando um objecto de asas largas o sobrevoa” (ob. cit. p. 146-7) com a emoção de medo do pinto, que é uma resposta emocional adquirida através da experiência. O medo humano é uma emoção adquirida e não uma emoção inata. Só por volta dos 8 meses, altura da constituição do objecto permanente (memória a curto prazo) é que a expressão de medo em relação a estranhos se verifica (Schaffer, 1974). Damásio (1995) ressalta a importância quer do sistema límbico, nomeadamente a amígdala, no processamento das emoções primárias como o medo, quer do sistema límbico e dos córtices pré-frontal e somatossensorial no processamento das emoções secundárias como o luto (vide p. 146-153). Assim doentes com lesões a nível do córtex pré-frontal sentem normalmente emoções primárias como o medo, mas encontram-se diminuídos em termos das emoções secundárias desencadeadas por imagens e por certas categorias de situações. Uma prova seria a descrição do caso Elliot, feita por Damásio. Elliot submeteu-se a uma cirurgia para remover um tumor situado por cima da zona orbitral. A cirurgia originou algumas lesões orbitofrontais e talvez por isso o comportamento emocional de Elliot modificou-se substancialmente depois. Elliot apresentava um desempenho cognitivo elevado, revelava conhecimentos actualizados da vida política e de negócios, mas mostrava-se incapaz de tomar decisões apropriadas em situações quotidianas. Elliot parecia não ter sentimentos tanto em relação ao passado, como em relação a acontecimentos traumáticos actuais. Não revelava sinais evidentes de tristeza, frustração ou fúria face aos acontecimentos da sua vida. Tudo parecia neutro. Os danos nos córtices pré-frontrais impedem esta área de processar adequadamente os estímulos viscerais e corporais que aí chegam, privando os pacientes de reagir em termos emocionais secundários. Elliot e outros pacientes com lesões pré-frontais têm reacções emocionais primárias e têm disponível a informação necessária para tomar uma decisão, mas mostram-se incapazes de efectuar opções no dia a dia. Na ausência de sinais emocionais, ou sentimentos, todas as opções ou decisões parecem boas ou más. Elliot tinha dificuldades em priorizar as opções, isto é, em decidir-se pela melhor das opções. A falta de consciência dos sentimentos corporais que normalmente acompanham as alternativas que levam a uma decisão, e de que dependia no dia a dia o futuro de Elliot, revelou-se ruinosa. Damásio designou por marcadores somáticos estes sentimentos corporais que guiam a pessoa nas decisões que toma e que aparecem sob a forma de impulsos límbicos vindos das “vísceras”. Tais marcadores seriam uma espécie de sinal de alarme automático que nos chama a atenção para um potencial perigo ou punição, ou nos alerta para uma oportunidade excelente, tipo prémio ou reforço. © Universidade Aberta
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Estes sentimentos marcariam as nossas opções face a decisões reais ou imaginadas e fariam apressar o processo de decisão. Em contraste, as opções não marcadas somaticamente seriam esquecidas no processo de tomada de decisão, não alertariam a pessoa na direcção de uma decisão a tomar, e prendiam a pessoa a um ciclo vicioso interminável de avaliações sucessivas sobre o custobenefício de qualquer tomada de decisão. De facto, Elliot mostrava uma indecisão total na escolha da consulta seguinte. A nível racional apresentava razões para rejeitar qualquer data proposta e não tinha a mínima consciência de como se sentia relativamente a qualquer uma das datas. A indecisão de Elliot é uma prova do papel crucial que os sentimentos, os “marcadores somáticos” de Damásio, desempenham nas diversas opções que a vida nos obriga a tomar.
6.5
Emoção e cognição
A emoção é um tipo de cognição, ou é um sistema independente? Pôr a questão da primazia da cognição ou da emoção, significa defender que os estados cognitivos e emocionais pertencem a sistemas independentes um do outro. Se os sistemas são independentes, a questão principal é saber qual dos sistemas é que responde em primeiro lugar a um estímulo. Assim pergunta-se, as reacções iniciais aos estímulos externos têm a forma de estados emocionais ou de estados cognitivos? Os investigadores ligados à psicologia cognitiva apoiam a perspectiva de que os estados emocionais são secundários em relação à actividade cognitiva. Assim as reacções emocionais ocorrem após a estimulação externa ter sido processada em termos cognitivos. Para se reagir emocionalmente a um estímulo, primeiramente é preciso identificá-lo e depois relacioná-lo com outras informações que já temos e conhecemos de modo a reconhecê-lo como favorável, prejudicial ou ameaçador. Os psicólogos sociais e clínicos, e especialmente os que estão voltados para terapia e as interacções humanas, acreditam que as reacções emocionais são primárias e que precedem ou pelo menos acompanham o processamento cognitivo. Este grupo de investigadores defende que os juízos emocionais são feitos antes, ou ao mesmo tempo, dos juízos cognitivos. Esta perspectiva tem uma tradição filosófica e ensaística. Hume afirmou que a “razão é a escrava das paixões (emoções)”, Pascal que “o coração tem razões que a razão desconhece” e Susana Tamaro aconselha “vai aonde te leva o coração”. 262
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Desde os estudos de Schacter e Singer (1962) até aos finais da década de 70, a tendência predominante no estudo da emoção foi cognitiva. Em 1980, Zajonc (1980) publicou um artigo onde defendeu que as respostas emocionais e afectivas podem surgir na ausência de qualquer processamento cognitivo consciente. Então a perspectiva cognitivista esmoreceu durante algum tempo até que voltou a pulsar com um artigo de Lazarus (1984) que questionou e contrariou a tese deste artigo e defendeu a primazia da cognição sobre a emoção. Zajonc (1980, 1984) refere vários estudos onde tenta demonstrar que um tipo simples de emoção, como a preferência por um estímulo, pode ser formada sem se verificar um processamento consciente do estímulo. Há vários tipos de experiências, umas mais ao nível da percepção outras mais ao nível da memória, onde o efeito de preferência foi investigado. Num tipo de experiências efectuado a nível mais perceptivo, sujeitos ocidentais são expostos a um estímulo novo, por exemplo ideogramas chineses ou música popular coreana, e depois são solicitados a escolher, numa série de estímulos, aqueles que preferem. Os resultados indicam que os sujeitos preferem os estímulos que foram expostos previamente, mesmo que não tenham qualquer consciência da sua exposição prévia. O efeito da simples exposição, como é conhecido o efeito, observa-se numa variedade de circunstâncias, mas é mais intenso quando o estímulo prévio é exposto subliminarmente (Bornstein, 1992). Bornstein (1972) verificou ainda que fotografias de rostos expostas subliminarmente eram depois avaliadas de forma mais positiva do que as fotografias que não tinham sido previamente expostas. De modo semelhante, Murphy e Zajonc (1993) verificaram que a mera exposição durante 5 milissegundos de uma face com um semblante alegre ou com um semblante severo afectava de forma favorável ou desfavorável a impressão causada por ideogramas chineses. Nesta experiência os ideogramas adquiriram um significado emocional através da ligação com um estímulo emocional activado subliminarmente e processado inconscientemente em termos de alegria ou de fúria. Num estudo de memória, Johnson et al. (1985) realizaram uma experiência onde observaram uma aparente dissociação entre emoção e cognição. Estes investigadores apresentaram a pacientes amnésicos com a síndroma de Korsakoff imagens do rosto de duas pessoas e uma biografia ficcional de cada uma, de forma a ser percebida como uma “boa pessoa” ou uma “má pessoa”. Quando se perguntou aos sujeitos do grupo de controlo, após um intervalo de retenção de 20 dias, qual o rosto que preferiam, estes sujeitos optaram sempre pela “boa pessoa” e fundamentaram a opção com base na biografia inicialmente apresentada. Em contraste, os pacientes amnésicos foram incapazes de evocar a informação biográfica específica de cada pessoa, mas revelaram uma preferência média de 78% pela “pessoa boa” em relação à “pessoa má”. Os © Universidade Aberta
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amnésicos efectuaram uma escolha pela “boa pessoa” mesmo na ausência de recordação consciente e voluntária da biografia da pessoa na qual se baseou a preferência. Estudos deste tipo revelaram que as preferências podem ser formadas sem que haja uma razão consciente, levando Zajonc (1980) a defender que o afecto precede e ocorre independentemente da cognição e que portanto a emoção e a cognição são funções separadas da mente humana. No entanto o facto repetidamente comprovado de que o processamento emocional pode ocorrer para além do estado consciente não prova, ao contrário de Zajonc, que o sistema emocional é independente ou tem primazia sobre a cognição.
Caixa 6.2 Avaliação cognitiva de uma dor súbita Por volta dos meus dez anos, estava eu na cozinha a tentar consertar um pequeno electrodoméstico, quando de repente senti uma pancada fortíssima de um ferro no braço e cotovelo direito. Numa fracção de segundo soltei um grito de dor e atirei uma expressão de raiva contra o meu irmão, que de forma cobarde me pregara uma partida de mau gosto. Nos segundos seguintes, olhei à minha volta para ver onde o meu irmão se tinha escondido para lutar e lhe bater, mas não vi ninguém! Afinal estava sozinho em casa e só então me dei conta de ter sofrido um choque eléctrico muito intenso. Nesse momento senti uma variedade de experiências emocionais quase em simultâneo. Primeiro senti vergonha e culpa pela atribuição errada, depois surpresa pela natureza e intensidade da experiência vivida e por último alívio e satisfação por não ter sofrido piores consequências. O mais curioso nesta situação foi a atribuição imediata, numa fracção de segundo, da dor súbita a uma partida de mau gosto do meu irmão sentindo uma expressão intensa de fúria. Não a atribui aos meus pais, nem aos meus primos ou outras visitas frequentes de casa, nem muito menos a fantasmas. Naquele instante o meu sistema cognitivo ao pesquisar uma justificação na memória da minha experiência passada só encontrou aquela alternativa provável, e era uma atribuição errada! Na história do meu desenvolvimento, não havia memória de experiências com choques eléctricos nem uma lembrança explícita do perigo de fazer reparações com aparelhos ligados à corrente. Apenas uma vaga ideia de que o contacto com a electricidade produzia um choque, embora ignorasse totalmente qual a natureza e o tipo de experiência que um choque eléctrico causava.
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Izard (1993) é também um defensor da tese de que o sistema emocional pode funcionar independentemente de qualquer processo cognitivo, apesar de reconhecer a interacção entre estes sistemas nas situações do dia a dia. Izard (1993) propôs até que a emoção podia ser activada directamente a partir de quatro tipos de processamento de informação seguintes: celular, orgânico, biopsicológico e cognitivo. O processamento cognitivo era apenas um de entre os vários activadores da emoção. Relativizar a cognição em termos humanos parece-me um erro porque os factores genéticos e orgânicos são inconsequentes e pouco específicos na determinação da diversidade dos comportamentos emocionais. A subtileza destas distinções é enganadora, porque a avaliação cognitiva da situação pode ser feita de forma quase instantânea, às vezes correcta e outras vezes errada, mas capaz de produzir uma acção imediata de defesa ou ataque numa situação de perigo. O episódio pessoal descrito na Caixa 6.2 poderá ser esclarecedor em relação ao papel da componente cognitiva ou avaliativa da emoção. Pode suceder que a emoção à maneira de LeDoux (1996) possa ser desencadeada através de um circuito centrado na amígdala, que evite o córtex e prepare imediatamente o corpo para a fuga ou o ataque. Tudo estaria certo se na concepção de Izard (1993) a activação celular, a activação orgânica e a activação biopsicológica preparassem o corpo apenas para uma resposta, ou de fuga ou de ataque. Estando o corpo preparado para duas respostas no mínimo, fuga ou ataque, tem de haver uma avaliação cognitiva discriminante da situação que envolva o córtex, porque programar o corpo para a fuga é diferente de programá-lo para o ataque. A sobrevivência da espécie humana ao longo do processo evolutivo não se verificou a partir de fugas inúteis ou de ataques desnecessários, mas da avaliação correcta e o mais rápida possível da situação ambiental. Ao contrário do que alguns teóricos defensores da independência do sistema emocional pensam, o sistema cognitivo é capaz de efectuar avaliações e tomar decisões correctas em fracções de segundo, dando tempo suficiente ao corpo para programar a resposta adequada à situação. Em resumo, na base da polémica sobre a primazia ou não da cognição sobre a emoção estão questões como a determinação do âmbito e da fronteira entre o que é ou não a emoção e do que é ou não a cognição. Os adeptos da primazia da emoção defendem uma concepção limitada do que é o processamento cognitivo. Para estes a cognição é a consciência e fica restrita apenas ao formato verbal da descrição de estados conscientes. Em contraste, os cognitivistas defendem uma concepção abrangente da cognição a todo o processamento mental, incluindo o processamento não-consciente de natureza subliminar. A emoção pode ter lugar para além da consciência (subliminar). De facto as pessoas reconhecem que as suas emoções são súbitas e imprevisíveis. A avaliação cognitiva da situação é o primeiro passo da experiência emocional. Um estímulo para ter uma valência emocional precisa primeiro de ser avaliado © Universidade Aberta
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em termos cognitivos, tipo bom ou mau, favorável ou perigoso, mesmo que seja só de forma subliminar. A dor é uma emoção no termo de uma fase de processamento que pode desembocar no estado emocional de tristeza, desgosto, fúria ou até alegria como na dor de parto e nascimento, conforme a avaliação que for feita. Do mesmo modo as preferências serão emoções no termo de uma avaliação subliminar, mas nem por isso menos cognitiva, que antecipa uma tendência para a acção favorável ou afasta o aparecimento de uma situação desagradável. O papel da avaliação cognitiva na experiência emocional retomou a tendência dominante na investigação a ponto de Lazarus (1991, p. 352) ter afirmado que “a cognição é uma condição necessária e suficiente da emoção”. Defender a importância crucial da avaliação cognitiva não significa que a emoção seja o mesmo que cognição, ou que a emoção se resuma a uma avaliação racional sobre a situação. A emoção e cognição podem ser concebidas como funções mentais e cerebrais separadas, mas mutuamente interactivas.
6.5.1 Emoção e terapia A controvérsia sobre emoção-cognição não é meramente teórica, mas tem implicações práticas a nível do controlo do comportamento numa situação terapêutica. Na antiguidade os estóicos defenderam que as emoções eram o resultado de crenças erradas e de objectivos pessoais inadequados. A versão moderna dos estóicos está representada pela terapia cognitiva, que dá primazia à cognição sobre a emoção. Na terapia cognitiva, o terapeuta tenta modificar as respostas emocionais alterando o modo como uma pessoa processa a informação em termos cognitivos, isto é, tenta ajudar as pessoas a mudar o modo de pensar a respeito de si próprias. A terapia cognitiva procura ainda sugerir hipóteses alternativas prováveis para a origem das desordens comportamentais de forma a desfocar a causa obsessiva da desordem comportamental e sugerir cursos de acção mais consequentes. Os psicólogos que dão primazia às emoções sobre a cognição, defendem que as reacções emocionais são respostas condicionadas, cuja aquisição foi efectuada independentemente da influência cognitiva. Para serem modificadas estas respostas emocionais precisam primeiro de ser extintas no âmbito do paradigma de condicionamento, por exemplo através da dessensibilização sistemática. Veja-se o Capítulo 2. Segundo a terapia comportamental, o comportamento emocional apenas pode ser modificado se for abordado directamente, sem necessidade de qualquer mediação cognitiva. Mas na realidade não há prática terapêutica que não tenha um determinado grau de 266
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mediação cognitiva, por mínima que seja. O paciente que aborda o terapeuta comportamental tem no mínimo a crença de que o saber deste lhe pode ser útil em termos de cura. Esta crença é mantida e alimentada pelo terapeuta comportamental, embora rejeite à partida a cognição como factor mediador. Ora estas crenças são representações cognitivas e elementos terapêuticos importantes.
6.6
Cognição e congruência emocional
É comum afirmar-se que os apaixonados vêem o mundo com óculos cor de rosa. De facto um estado emocional alegre, feliz e eufórico faz recordar mais facilmente situações favoráveis do que situações desfavoráveis. O inverso também ocorre, quando pessoas tristes e deprimidas recordam mais facilmente fracassos e insucessos passados. Noutro contexto, diz-se que o pessimista vê a garrafa meia-vazia, mas o optimista vê-a meia-cheia. A interacção entre disposição, humor e emoção por um lado e os processos cognitivos de aprendizagem, memória e pensamento por outro não parecem oferecer grandes dúvidas à partida. Os investigadores defenderam e provaram que o estado emocional tem de facto um efeito significativo na aprendizagem, memória e pensamento. Mantendo ou mudando o contexto em que a aprendizagem ocorre, a recordação pode ser melhor ou pior. Bower et al. (1981) verificaram um efeito de aprendizagem selectiva numa amostra de sujeitos, previamente hipnotizados a sentirem-se alegres ou deprimidos. Os sujeitos foram instruídos a ler uma pequena história sobre dois estudantes que jogavam ténis num sábado à tarde: Um chamava-se André e era alegre e satisfeito com a vida, cantava, dizia anedotas, gostava de estar ao sol e ganhava o jogo; O outro estudante chamava-se Jack e era o oposto, um personagem triste, deprimido, preocupado com os exames, incomodado com o sol e perdia o jogo. No dia seguinte os sujeitos foram solicitados a recordar livremente a história, encontrando-se num estado emocional neutro. Os resultados obtidos indicaram que os sujeitos, hipnotizados a sentirem-se alegres, evocaram 55% da informação sobre o André, o feliz, enquanto que os sujeitos, hipnotizados a sentirem-se tristes, recordaram 80% da informação sobre Jack, o triste. Numa outra experiência, Wright e Bower, citado por Gilligan e Bower (1984, p. 566), analisaram a influência do humor ou emoção na probabilidade de ocorrência de acontecimentos futuros. Estes acontecimentos poderiam ser de natureza pessoal ou internacional e de tipo positivo e afortunado ou de tipo negativo e catastrófico. Acontecimentos pessoais positivos e negativos eram do género seguinte: “nos próximos 3 anos vais passar umas férias na Europa” © Universidade Aberta
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e “nos próximos 5 anos vais estar envolvido num grave acidente de carro”; os acontecimentos nacionais positivos e negativos eram do tipo: “nos próximos 10 anos vai haver uma cura para a maior parte dos cancros” e “nos próximos 10 anos vai desencadear-se uma guerra mundial”.
Figura 6.1 - Percentagem de ocorrência de futuros acontecimentos de natureza favorável (bons) ou desfavorável (maus) em função do estado emocional dos sujeitos na experiência (feliz, triste ou neutro) obtidos na experiência de Wright e Bower, citado por Gilligan e Bower (1984).
Através da hipnose, os sujeitos foram induzidos a formar um estado feliz e neste estado foram solicitados a avaliar a probabilidade de ocorrência de metade dos acontecimentos. Em seguida os sujeitos foram induzidos a formar um estado triste e depois avaliar a probabilidade de ocorrência da outra metade dos acontecimentos. Os resultados obtidos estão expostos na Figura 6.1 e indicam que um humor feliz faz aumentar as estimativas de acontecimentos favoráveis no futuro, enquanto que um estado triste faz aumentar as previsões de acontecimentos catastróficos. Por outras palavras, o optimista viu o futuro de forma mais risonha, enquanto que o pessimista viu o futuro de forma mais trágica. O estado de humor enviesou as estimativas sobre a probabilidade dos acontecimentos, fazendo-as subir quando havia uma congruência de estado emocional, ou fazendo-as baixar na situação incongruente. Provavelmente o estado emocional favoreceu a recordação de um número maior de acontecimentos passados similares e este maior número disponível na memória operatória ajudou a aumentar e a tornar mais provável que acontecimentos do mesmo tipo viessem a ocorrer no futuro. 268
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Beck e Emery (1985) propuseram uma teoria, no âmbito do princípio de codificação específica de Tulving e Thomson (1973), referido no Cap. 3, que pode explicar os efeitos de congruência emocional no pensamento, aprendizagem e memória. Beck e Emery (1985) defenderam que a informação de uma pessoa e o seu conhecimento prévio organizam-se em torno de esquemas representativos que guiam o processamento da informação. As desordens emocionais, como a ansiedade e depressão, representariam distorções no processamento da informação. Estas distorções resultam de uma activação exagerada de certos esquemas mal adaptados que conduzem a um grau maior de sensibilidade perceptiva e de enviesamento de memória no que se refere à informação congruente com o esquema predominante. A depressão estaria associada a um esquema negativo da imagem da pessoa e a ansiedade associada a um esquema exagerado de perigo. Deste modo, as pessoas com esquemas negativos prestariam atenção e recordariam mais informação negativa de natureza depressiva, enquanto que as pessoas com esquemas de perigo exagerado recordariam mais rapidamente estímulos ameaçadores. Em síntese, pessoas com desordens emocionais revelam enviesamentos cognitivos ao nível da atenção, aprendizagem, memória e pensamento para a informação que é consistente com o seu estado emocional e estes enviesamentos cognitivos vão exacerbar as desordens emocionais. Assim pessoas ansiosas recordarão mais informação relacionada com perigo e ameaças, enquanto que as pessoas deprimidas recordarão mais informação relacionada com perdas, fracassos e separação (e.g., Mathews e MacLeod, 1994). Na relação entre cognição e emoção refira-se a concluir que deficiências cognitivas ao nível da aprendizagem podem produzir emoções negativas como fracasso, tristeza e depressão; por outro lado, emoções negativas podem prejudicar a aprendizagem. Num estudo de revisão de meta-análise, Seipp (1991) verificou uma associação entre ansiedade e desempenho académico: Assim quanto mais ansiosa uma pessoa fosse, pior era o seu desempenho académico. Em contraste, as emoções positivas podem contribuir para uma aprendizagem bem sucedida.
6.7
Conclusão
As emoções são estados quentes e dão sabor à vida. São ainda estados quentes e causam desordens, tragédias e angústias. Sem emoções as nossas reacções parecem ficar “desencorpadas” na expressão de W. James. As emoções são sinais fortes do modo como nos sentimos e da disposição provável de encarar uma determinada situação. Têm uma função adaptativa e de ajustamento às situações. São formas rápidas de reacção a acontecimentos inesperados e © Universidade Aberta
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envolvem ainda uma avaliação da situação que se revela sob formas expressivas bastante variadas. As emoções enviesam a nossa maneira de ver o mundo, dando-lhe um aspecto agradável, harmonioso e paradisíaco quando estamos satisfeitos e felizes ou um aspecto desagradável, caótico e trágico quando estamos tristes e deprimidos. Mas sem emoções como poderíamos viver e sobreviver?
6.8
Conceitos de emoção
Emoção, sentimento, preferência, emoção primária, emoção secundária, humor, expressão facial, enviesamento cognitivo.
6.9
Perguntas de auto-avaliação 1. Emoções primárias e emoções secundárias: Há alguma justificação para esta classificação? Comente. 2. Analise a relação entre cognição e emoção com base numa teoria das emoções à sua escolha. 3. O que entende por efeito de congruência emocional e enviesamento cognitivo? Refira uma prova experimental.
6.10 Sugestões de leitura Informação suplementar sobre emoções pode ser lido em Ekman e Davidson (1994) — uma obra chave sobre as questões científicas abordadas na psicologia da emoção. São ainda úteis a leitura de LeDoux (1996), Damásio (1995), Strongman (1998) e Goleman (1997).
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7. Personalidade
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Muitos de nós fomos colegas ou alunos de pessoas que deixamos de encontrar durante muito tempo. Decorridos uma ou duas dezenas de anos, se por acaso voltamos a revê-las, pessoalmente ou através da televisão, acontece às vezes dizer-se: “É o mesmo fulano! Quando o conheci, já pensava assim”. Isto pode ser nuns casos um elogio, noutros uma ofensa, mas a ideia de que as principais características das pessoas, positivas ou negativas, se mantêm estáveis ao longo do tempo é uma crença bastante arreigada. Mas pode ser falsa. A simpatia das pessoas, enquanto característica da personalidade, depende muito das ocasiões. Muitos pais queixam-se de que os filhos são mais simpáticos fora do que dentro de casa, com os amigos do que com os irmãos. Outras características como a honestidade, a estabilidade emocional e a responsabilidade variam ao longo da vida, tornando imprevisível o comportamento humano. Personalidade vem da palavra latina persona, que na antiguidade greco-romana significava a máscara usada no palco pelos actores de teatro. Com o tempo, persona incorporou outros significados como o papel representado pelo actor, depois o desempenho de uma função social e finalmente um cidadão, portador de determinados direitos e deveres no direito romano. O estudo científico da personalidade iniciou-se tardiamente a partir da década de 30 (e.g., Hartshorne e May, 1928; Allport, 1937). Até essa altura, a personalidade era abordada por teólogos, filósofos, escritores de romances e de teatro, fisiologistas e psicanalistas. A personalidade é até um dos poucos temas centrais da psicologia, que não foi objecto de investigação empírica sistemática por parte da primeira geração de investigadores de psicologia nos finais do séc. XIX e princípios do séc. XX. Em geral, a personalidade refere-se ao padrão de comportamentos, modos de pensar e de sentir que permite distinguir uma pessoa de outra e que apresenta uma certa estabilidade ao longo do tempo. Há obviamente outras definições de personalidade, cuja descrição e análise só faria aumentar a confusão que reina nesta área. Mais importante do que referi-las, é apontar os principais problemas que ocorrem na investigação do estudo da personalidade. Assim pergunta-se: será o comportamento das pessoas estável e coerente em circunstâncias diferentes, ou é imprevisível, dependendo acima de tudo das ocasiões? Uma pessoa é honesta e conscienciosa, ou não é, ou é numas ocasiões e deixa de sê-lo noutras, mas em que tipo de situações? O que dá coerência ao comportamento da pessoa virá de dentro da pessoa, da sua constituição, dos parâmetros da sua formação e desenvolvimento ou será antes o resultado do leque de situações e circunstâncias em que a pessoa se encontra e das quais depende. Uma teoria da personalidade deve tentar explicar porque é que uma pessoa é única, porque é diferente, de que modo é semelhante a outras, em que circunstâncias o comportamento é ou não estável. A resposta a estas questões
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é dada de modo diferente e apenas parcialmente pelas várias teorias de personalidade.
7.1
Teorias da personalidade
As principais teorias da personalidade são a teoria psicodinâmica (psicanalítica), a teoria humanista, a teoria dos traços, teoria beaviorista (situacionista) e a teoria interaccionista. As teorias psicodinâmicas sublinham o papel do inconsciente no desenvolvimento da personalidade. As teorias humanistas distinguem a unicidade da pessoa e o seu potencial de realização e crescimento. A teoria dos traços ressalta as dimensões principais da personalidade que permitem diferenciar uma pessoa de outra. As teorias beavioristas e situacionistas destacam o papel do meio e da situação na determinação do comportamento e da personalidade. As teorias interaccionistas evidenciam a influência conjunta das dimensões da personalidade e das características do meio na determinação do comportamento humano.
7.1.1 Teorias psicodinâmicas As teorias psicodinâmicas radicam nas teorias psicanalíticas formuladas inicialmente por Freud, Adler e Jung e apresentam-se actualmente sob diversas versões neo-freudianas. Psicodinâmico refere-se às tensões ou forças activas que actuam no interior da pessoa e que motivam o comportamento humano. Segundo Freud, estas tensões e dinamismos estão relacionadas com o conflito inconsciente travado entre o ego, o id e o super-ego. Quer a teoria de Freud, quer de um modo geral as outras teorias psicodinâmicas, sublinham o papel do inconsciente e a ideia de que a personalidade se vai formando ao longo do processo de desenvolvimento, integrando de forma mais ou menos satisfatória a influência de diversos factores. As teorias psicodinâmicas valorizam bastante os factores motivacionais, sendo a motivação e personalidade termos bastante relacionados. Pela sua importância histórica e especificidade explicativa, serão descritas a seguir as teorias psicodinâmicas propostas por Freud e Erikson.
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7.1.1.1 Freud Freud (1910/1957) defendeu a teoria de que a personalidade era determinada pela influência de forças inconscientes que se manifestavam ao longo de várias fases no processo de desenvolvimento. O psiquismo seria formado por três grandes estruturas: o id, o ego e o super-ego. O id é constituído pela parte herdada da personalidade, incluindo os impulsos biológicos e irracionais, funciona de acordo com o princípio do prazer, e tem por objectivo a gratificação imediata dos impulsos primitivos. A libido é a energia psíquica que se acumula no id e alimenta os impulsos primários de sexo, fome e agressão. O ego é uma estrutura consciente que serve de intermediário entre os impulsos primitivos do id e as pressões do mundo exterior. Funciona de acordo com o princípio da realidade e analisa as condições mais favoráveis para que os impulsos sexuais possam vir a ser satisfeitos com segurança e sem ameaçar a integridade do grupo ou da sociedade. O super-ego representa a moral e os valores da sociedade que a criança aprende dos pais, professores e outros agentes sociais. Desenvolve-se a partir das gratificações e punições recebidas à medida que a criança cresce. O super-ego é formado pela consciência e pelo eu-ideal. A consciência impede a criança de praticar actos moralmente reprováveis e o eu-ideal motiva a criança a realizar actos morais e a ser perfeita. A personalidade desenvolve-se ao longo de várias fases, tendo em conta as experiências e a resolução dos conflitos infantis. Em cada uma destas fases podem surgir problemas, dando origem a uma fixação de energia nessa fase, que se mantém pela vida fora. Quando um adulto tem problemas de personalidade, há uma regressão de comportamentos até à fase infantil em que houve fixação e com a qual se verificam diversas semelhanças. As fases de desenvolvimento psicosexual são cinco e foram assim designadas: oral (até aos 18 meses), anal (18-36 meses), fálica (3-6 anos), latência (até à puberdade) e genital (após a puberdade). Na fase oral as crianças sentem prazer na realização de actividades que envolvem a boca. As crianças podem sentir também problemas causados por um desmame precoce ou abrupto, dando origem a uma personalidade adulta de tipo oral, que tanto pode manifestar-se de forma agressiva ou dependente. Na fase anal o prazer da criança desloca-se para a zona anal, envolvendo o treino da higiene. Uma criança com problemas nesta fase pode desenvolver um comportamento de retenção, dando origem a comportamentos adultos de limpeza obsessiva ou de avareza e teimosia.
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Na fase fálica, o pénis e o clítoris tornam-se as principais fontes de prazer da criança. Os problemas nesta fase dão origem nos homens a uma personalidade fálica, expressa pela frivolidade e auto-convencimento, enquanto que na mulher origina uma luta pela supremacia sobre o homem. Na fase de latência, os meninos e as meninas tendem em grande parte a ignorarse uns aos outros até à puberdade. Segue-se depois a fase genital, em que o prazer sexual obtido com uma pessoa do sexo oposto constitui a principal fonte de satisfação. Uma pessoa com uma personalidade genital, sem fixações nas fases precedentes, revela maturidade e capacidade para amar e ser amada.
Mecanismos de defesa O super-ego não é capaz de controlar totalmente a expressão dos desejos do id, mas as tendências deste não deixam de se manter poderosas e influentes. Os desejos do id devem ser de algum modo satisfeitos. Quando se verifica uma tendência a fazer algo de errado, quer em termos sociais quer em termos da consciência da pessoa, gera-se um estado de tensão que precisa de ser reduzido. Esta tensão ou ansiedade neurótica pode tornar-se incontrolável. Os mecanismos de defesa são estratégias inconscientes usadas pelas pessoas para reduzir a ansiedade de forma a ocultar a sua origem. Estes mecanismos foram referidos por Freud e investigados mais sistematicamente pela filha Anna Freud no livro “O eu e os mecanismos de defesa” (1936), de que se faz a seguir uma descrição dos mais importantes: Repressão: uma estratégia que contém e força os impulsos inaceitáveis do id a permanecerem no inconsciente. Este controlo nem sempre é eficaz e os impulsos do id revelam-se em sonhos e no comportamento sob a forma de “lapsos de memória”. Na década de 90 debateu-se muito a questão da repressão e memória — “síndroma da repressão de memória” — no que se refere a pessoas que foram vítimas de abuso sexual em criança. Os episódios de abuso terão sido reprimidos pela criança e tornados inconscientes e só mais tarde regressaram à consciência ajudados pela psicanálise ou outro tipo de terapias. O debate desta questão foi e continua a ser polémico devido à dificuldade em determinar muitas vezes se tais memórias são reais e genuínas ou pelo contrário inventadas e forjadas devido ao processo terapêutico seguido, originando a “síndroma das falsas memórias”. Negação: mecanismo em que a pessoa recusa simplesmente aceitar ou reconhecer a situação causadora de ansiedade. 276
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Racionalização: estratégia que leva uma pessoa a distorcer a realidade tentando justificar o que lhe aconteceu por meio de explicações que favorecem e protejem uma imagem favorável de si própria. Deslocamento: procedimento que redirecciona a expressão de um pensamento ou sentimento não desejado de uma pessoa mais forte e poderosa para outra pessoa mais fraca, como culpar a secretária em vez do director. Projecção: Um mecanismo que leva uma pessoa a atribuir os pensamentos e sentimentos indesejáveis que sente a uma outra pessoa. Sublimação: Um mecanismo considerado positivo e saudável por Freud que leva as pessoas a reorientar os seus impulsos indesejáveis para pensamentos e acções aprovados e aceites socialmente. A teoria da personalidade de Freud é uma das teorias psicológicas com maior impacto no séc. XX, nomeadamente a nível cultural. Freud chamou a atenção para o papel do inconsciente no comportamento, o conflito entre impulsos biológicos e normas sociais e os mecanismos usados para defrontar a ansiedade e a sexualidade. Pode-se rejeitar a teoria de Freud, mas é difícil evitar o uso de alguns dos seus conceitos mais importantes no dia a dia, que em muitos casos já passaram para a linguagem corrente. No entanto a teoria do desenvolvimento psicosexual de Freud, além de outras hipóteses da sua teoria, não é fácil de provar de forma empírica. Os críticos mais ferozes vão a ponto de afirmar que a teoria freudiana é uma teoria intelectualmente fechada — justifica qualquer comportamento oposto, incluindo as razões daqueles que não acreditam na teoria. Freud defendeu que os problemas de personalidade adulta têm origem em grande parte em experiências infantis de natureza sexual. As experiências infantis são importantes no desenvolvimento da personalidade, mas não são tão determinantes como Freud defendeu. A importância das experiências infantis deve ser considerada a par com outras experiências marcantes na vida da pessoa, como as experiências na adolescência e na vida adulta, para a qual Erik Erikson chamou apropriadamente a atenção.
7.1.1.2 Erik Erikson Erikson (1980) é um autor com formação psicanalítica que tentou rever e alargar as fases de desenvolvimento psicosexual de Freud. É um neo-freudiano que publicou uma obra muito própria a partir de 1950. Defendeu que o © Universidade Aberta
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desenvolvimento psicológico tem como principal força motriz, não apenas os impulsos sexuais inconscientes de Freud, mas também e acima de tudo a capacidade de adaptação social da pessoa ao meio. O meio fornece à pessoa a liberdade e as limitações, a escolha e a direcção no âmbito de um leque de possibilidades circunscritas pela sociedade e pela hereditariedade. O desenvolvimento seria assim o resultado da interacção entre as necessidades biológicas e as forças sociais que uma pessoa encontra na vida quotidiana. O desenvolvimento da personalidade não está confinado à infância e adolescência, mas ocorre ao longo da vida numa sucessão temporal contínua em torno de oito fases. Em cada fase, a pessoa confronta-se com uma crise específica, na forma de sentimentos polarizados, como “um sentimento de confiança versus desconfiança” na primeira fase, exigindo uma resolução. A forma mais ou menos adequada e satisfatória como a pessoa resolve a crise e a síntese estabelecida em cada fase, afectam o modo de resolução das crises das fases seguintes e por conseguinte o desenvolvimento da personalidade futura. As oito fases psicossociais de Erikson estão descritas no Quadro 7.1 com a indicação das crises específicas de cada fase e dos comportamentos resultantes da superação satisfatória de cada crise. Na designação de cada fase, a expressão “um sentimento de …” significa a sensação afectiva de se ter conseguido resolver ou não a crise e o termo “versus” significa a polaridade ou luta entre os dois sentimentos opostos. Por razões de espaço serão descritas apenas duas das mais importantes fases de desenvolvimento, a primeira e a quinta. Na 1ª fase “oral-sensorial”, ocorre a primeira crise que tem a ver com “um sentimento de confiança versus desconfiança”. No primeiro ano de vida a criança depende dos cuidados dos pais para obter alimento, vestuário, protecção, contacto corporal e novos estímulos. Se a criança for bem cuidada e as necessidades básicas satisfeitas, a criança desenvolve um sentimento básico de confiança. Se for mal tratada ou cuidada de forma inconsistente, a criança pode desenvolver sentimentos de medo e desconfiança quer em relação a si quer aos outros. Na fase “oral-sensorial”, a crise envolve uma interacção com a mãe entre dar e receber, entre “confiança versus desconfiança”. Se a crise for adequadamente resolvida, formam-se nesta fase os alicerces da confiança básica e da atitude de optimismo para o futuro.
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Quadro 7.1 - As oito fases de desenvolvimento psicossocial de E. Erikson, com referência às crises específicas de cada fase e aos comportamentos futuros resultantes da superação satisfatória de cada crise.
Fase e idade
Crise psicossocial um sentimento de (…) versus (…)
Resultado óptimo
1. Oral-sensorial (1º ano)
confiança - desconfiança
confiança básica e optimismo
2. Muscular-anal (2º ano)
autonomia - vergonha e dúvida
sensação de controlo sobre si próprio e sobre o meio
3. Locomotora-genital (3-5)
iniciativa - culpa
direcção em função de objectivos
4. Latência (6 - puberdade)
aplicado - inferioridade
competência e responsabilidade
5. Puberdade, adolescência
identidade - confusão de papéis
integração do presente com o passado e os objectivos futuros; fidelidade
6. Adultos jovens
intimidade - isolamento
compromisso, partilha, proximidade e amor
7. Adultos de meia idade
produtividade - absorvimento
actuação e interesse com o mundo e as gerações futuras
8. Adultos idosos
integridade - desespero
sabedoria, perspectiva e satisfação com a vida passada
Na 5ª fase, “puberdade e adolescência” que ocorre entre os 12 e os 18 anos, a crise que surge envolve “um sentimento de identidade versus confusão de papéis”. Erikson considera este conflito o mais significativo que uma pessoa enfrenta na vida. Nesta fase o adolescente deve decidir quem é, o que pretende vir a ser e em que valores acredita, definir a sua identidade sexual, e planear o tipo de profissão e estilo de vida que deseja vir a seguir no futuro. A construção da identidade do eu é um conceito central no sistema de Erikson e forma-se através da integração de experiências presentes e passadas, com os projectos, esperanças e valores que orientam a pessoa ao longo da vida. Se a integração não for satisfatória, surge uma confusão nos papéis a assumir, não se desenvolve um sentido de identidade e nasce uma crise de identidade. O conceito eriksoniano de crise de identidade teve uma aceitação bastante generalizada e tornou-se uma expressão comum na psicologia da adolescência, na literatura clínica e até na linguagem corrente.
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A teoria de Erikson é uma teoria optimista do poder do ego e da força adesiva deste para unir as diferentes fases do desenvolvimento psíquico. É ainda a primeira e principal teoria a considerar o ciclo global de desenvolvimento humano desde o nascimento até à morte. É, no entanto, uma teoria bastante pobre em termos de fundamentação empírica ao basear-se em observações pessoais de casos clínicos seguidos na terapia, em vez de se apoiar nas características dominantes de uma amostra representativa em cada fase de desenvolvimento humano.
7.1.2 Teorias humanistas As teorias humanistas desenvolveram-se nas décadas de 50 e 60 como uma reacção ao então domínio da psicanálise e do beaviorismo na explicação psicológica, considerando-se como uma terceira força em termos de alternativa explicativa. Estas teorias valorizam as experiências mentais subjectivas da pessoa e a necessidade que estas sentem de expandirem as suas fronteiras pessoais e de realizarem ao máximo as suas potencialidades. Entre os seus principais representantes contam-se Carl Rogers e Abraham Maslow. Devido a uma referência breve feita já a Maslow no Capítulo V, apenas será exposta a teoria de Rogers.
7.1.2.1 Carl Rogers Segundo Rogers (1961/1970) as pessoas têm duas necessidades básicas. Uma é a necessidade de auto-actualização, um desejo de realizar os diferentes aspectos ou potencialidades pessoais aos mais diversos níveis. A outra é a necessidade de obter um olhar positivo dos outros, sob a forma de aprovação, amizade, respeito e amor. O desenvolvimento sadio da personalidade ocorre quando as relações humanas preferenciais proporcionam um olhar positivo incondicional permitindo à pessoa realizar o seu potencial sem se arriscar a perder tais relações por motivos de desaprovação. A necessidade de um olhar positivo pode ser tão premente que pode levar a asfixiar a necessidade de auto-actualização. Pode acontecer que uma pessoa nem sequer se dê ao trabalho de explorar os seus próprios interesses se desconfiar que isso lhe pode causar a desaprovação dos outros. O ideal é obter um equilíbrio entre a necessidade de aprovação dos outros, sentir-se seguro e obter um olhar positivo, e a necessidade de auto-actualização. 280
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Rogers desenvolveu ainda dois outros conceitos importantes: O auto-conceito e o eu ideal. O auto-conceito refere-se ao eu tal como é actualmente percebido. O eu ideal representa os projectos e objectivos pessoais, tudo o que uma pessoa deseja vir a ser para funcionar no máximo das suas capacidades. A distância entre o auto-conceito e o eu ideal seria um índice do estado de felicidade maior ou menor da pessoa. Quanto menor for a distância, mais feliz seria a pessoa. Rogers desenvolveu um método terapêutico, designado psicoterapia nãodirectiva, ou terapia centrada no cliente. Nesta terapia, o cliente deve perceber o terapeuta como alguém que o aceita totalmente, que revela um olhar positivo incondicional e que pela sua empatia consegue obter uma compreensão global da sua estrutura de personalidade. O objectivo da terapia é proporcionar um meio de aceitação incondicional, consolador e ausente de críticas e ajudar o cliente a tomar consciência das suas experiências, reflectindo retroactivamente as verbalizações do cliente. Deste modo o cliente toma consciência de si próprio, do seu auto-conceito, de modo a torná-lo mais compatível com a sua experiência total e a tornar-se numa pessoa completamente funcional. O auto-conceito deixa de ser estático, abre-se e torna-se sensível a novas experiências e sentimentos, ajusta-se aos sentimentos dos outros e às realidades do meio, desenvolvendo-se à medida que as novas experiências pessoais são integradas. Rogers defende que o melhor ponto de observação para se compreender o comportamento da pessoa é a partir do seu quadro interno de referências pessoais. As pessoas contêm em si as potencialidades para um crescimento sadio, se aceitarem a responsabilidade pelas suas próprias vidas. É uma perspectiva optimista da pessoa humana, que contrasta com a perspectiva mais pessimista da psicanálise e a perspectiva mecanicista do beaviorismo. Em termos gerais, a teoria de Rogers é uma alternativa importante à psicanálise e ao beaviorismo, ao ressaltar a importância da necessidade de uma melhor compreensão da experiência subjectiva da pessoa e ao chamar a atenção para o papel que o olhar sobre si próprio tem no funcionamento humano. Rogers e os humanistas contribuíram bastante para renovar o interesse da psicologia pelo ego, isto é, pelo que é próprio e genuíno em cada pessoa (self na designação inglesa). A teoria de Rogers (e a dos outros humanistas) é considerada pouco científica, devido à dificuldade em justificar muitos dos seus pressupostos e afirmações e ainda pelo facto dos seus principais conceitos serem considerados vagos, pouco rigorosos e precisos. Rogers sublinha demasiado os relatos feitos pelo cliente, que pode estar pouco consciente dos mecanismos responsáveis pelos seus problemas e conflitos, e ignora ainda o inconsciente no processo terapêutico, apesar do seu relevo na compreensão dos conflitos internos. É uma concepção considerada demasiado individualista e centrada na pessoa; ainda demasiado
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optimista sobre a natureza humana, considerada basicamente positiva e boa. É no entanto difícil ter empatia e um olhar positivo incondicional por um homicida e torturador de crianças, por muito profissional que o terapeuta seja. Os apoiantes de Rogers alegam que o principal objectivo das teorias humanistas é perceber e captar a essência da acção humana, que dificilmente será conseguida através dos métodos empíricos convencionais.
7.1.3 Teorias dos tipos e dos traços As teorias que primeiro tentaram determinar as dimensões comuns da personalidade humana e o seu grau de variação nas pessoas individuais foram a teoria dos tipos, que remonta à antiguidade clássica greco-romana e a teoria dos traços, que de certo modo lhe sucedeu a partir de meados do séc. XX. Ao contrário das teorias anteriores, a teoria dos tipos e principalmente as teorias dos traços são propícias a uma investigação empírica que pode conduzir à sua rejeição ou manutenção.
7.1.3.1 Tipos de personalidade Uma das teorias mais antigas da personalidade proposta na antiguidade clássica é a teoria de Hipócrates (séc. IV AC) e Galeno (séc. II DC). Estes autores propuseram quatro tipos de temperamentos, baseados nos fluidos (humores) corporais que controlavam a mente humana: Sanguíneo — um tipo animado, optimista e agradável no convívio; o fluido abundante era o sangue; Colérico — um tipo rápido e excitável, de natureza por vezes agressiva; o fluido abundante era a bílis; Fleumático — um tipo lento, mole e frio; o fluido abundante era o flegma ou muco pulmonar; Melancólico — um tipo triste e pessimista, de natureza depressiva; o fluido abundante era a bílis preta, cuja existência nunca se provou. Estes quatro tipos de temperamento foram bastante populares na Idade Média e até foram usados mais tarde para classificar diferentes povos. Assim os italianos eram sanguíneos, os árabes coléricos, os ingleses fleumáticos e os russos melancólicos. Esta classificação foi retomada com outra justificação científica por Pavlov para caracterizar as diferentes personalidade dos cães que usava nas experiências de condicionamento e foi também integrada no modelo de personalidade de Hans Eysenck, referido na Figura 7.1 deste capítulo. Kretschmer propôs na década de 20 três tipos básicos de personalidade, relacionando diferentes tipos corporais com a propensão para o surgimento de 282
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doenças psiquiátricas: o pícnico era fisicamente atarracado, baixo, forte e propenso à doença maníaco-depressiva; o asténico era magro, esguio e propenso à esquizofrenia; o atlético era muscular e propenso à saúde mental. Kretschmer baseou esta classificação em observações de doentes psiquiátricos, mas não referiu provas para apoiar a teoria. Sheldon propôs em 1940 uma teoria da personalidade baseada em atributos físicos e atributos temperamentais a partir de observações com pessoas normais. Os atributos físicos ou morfológicos definiam três tipos: o endomorfo era gordo com músculos e ossos pouco desenvolvidos; o mesomorfo era forte com músculos e ossos bem desenvolvidos; o ectomorfo era magro com músculos e ossos medianamente desenvolvidos. Por sua vez, os atributos temperamentais descreviam três tipos: o visceral era sociável e amoroso; o somático era vigoroso e empreendedor; o cerebral era consciencioso e contido. Sheldon tentou estabelecer correlações entre os três tipos corporais e os três tipos de temperamento, mas não foi muito bem sucedido. No seu conjunto, as teorias dos tipos ressaltam as características morfológicas, orgânicas e fisiológicas como causas ou determinantes principais dos traços cognitivos, afectivos e sociais da personalidade. O senso comum acredita neste tipo de determinismos, considerando uma pessoa gorda como sendo geralmente calma e sociável e uma pessoa magra, como sendo agitada e ansiosa, de que são exemplos paradigmáticos as figuras cinematográficas de Laurel e Hardy (Bucha e Estica). As teorias constitutivas de personalidade são teorias historicamente datadas com implicações reduzidas nas teorias actuais da personalidade.
7.1.3.2 Traços de personalidade Uma teoria dos traços tem por objectivo determinar o perfil ou a matriz dos traços característicos de uma pessoa, o que a diferencia de outra e o que a torna única. A personalidade seria constituída por um conjunto de traços que caracterizaria o comportamento geral das pessoas. Em geral um traço é um nome que descreve um padrão ou conjunto de comportamentos. Mais especificamente um traço é definido como um modo característico da pessoa pensar, sentir, reagir e de se comportar. É uma disposição relativamente estável ao longo do tempo. Uma pessoa pode ter o traço dominante de ansiedade, outra o da extroversão e outra ainda estes mesmos traços em graus intermédios. Uma teoria de traços parte do pressuposto de que a personalidade reside na pessoa e que esta é responsável (ou a causa) pela consistência do comportamento nas diversas situações. É uma perspectiva que centraliza as causas do comportamento na personalidade. © Universidade Aberta
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As teorias iniciais de traços de personalidade eram constituídas por listas de adjectivos e pouco mais, sendo a personalidade definida pela sua enumeração e frequência. Um dos primeiros proponentes da teoria dos traços foi Gordon Allport (1937) que considerou o traço como a unidade básica da personalidade. Para Allport, um traço era uma disposição geral da personalidade que contribuía para as regularidades do comportamento da pessoa em diferentes alturas e situações. Além de Allport, os grandes defensores da teoria dos traços foram Hans Eysenck e Raymond Cattell, que usaram a análise factorial para determinar as dimensões subjacentes da personalidade e cuja descrição faremos a seguir. A teoria dos traços dominou os estudos da personalidade até aos finais da década de 60, foi fortemente contestada na década de 70, reaparecendo depois, apoiada em estudos melhor fundamentados.
7.1.3.3 Modelo de Hans Eysenck Eysenck realizou vários estudos de personalidade em soldados internados num hospital nos arredores de Londres durante a II Guerra Mundial, publicandoos em 1947, onde defendeu que a personalidade era basicamente constituída por dois grandes tipos ou dimensões: a extroversão-introversão e o neuroticismo-estabilidade (e.g., Eysenck e Eysenck, 1985). Eysenck classificou o comportamento humano usando os conceitos de traço e tipo. Um traço referese às consistências de comportamento. Um tipo ou dimensão inclui um grupo de traços que apresentavam uma correlação mútua significativa. Assim, por exemplo, um introvertido era um tipo ou dimensão de personalidade que revelava os seguintes traços específicos: reservado, persistente e rígido. Um tipo como a extroversão-introversão representaria os polos de uma distribuição normal, situando-se a maioria das pessoas na zona intermédia da distribuição, havendo apenas um pequeno número em cada extremo. Eysenck representou o padrão de tipos e traços de personalidade de uma pessoa num modelo bi-dimensional, exposto na Figura 7.1. Além dos traços associados com cada tipo de personalidade, Eysenck estabeleceu uma relação com os quatro tipos de Hipócrates e Galeno: colérico, sanguíneo, fleumático e melancólico. No tipo (dimensão ou super-factor) designado por extroversão-introversão (E), uma personalidade extrovertida seria caracterizada pela sociabilidade, impulsividade e busca de actividades excitantes; uma personalidade introvertida definir-se-ia antes pela reserva, cautela, preferência por actividades solitárias em vez do relacionamento social. Jung foi o primeiro a usar os conceitos de introvertido e extrovertido para caracterizar dois tipos de personalidade diferentes, que Eysenck veio a adoptar. 284
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Figura 7.1 - Classificação bi-dimensional de personalidade de Hans Eysenck, tendo em conta os dois factores primários resultantes da aplicação da análise factorial: extroversão-introversão e estabilidade-instabilidade (neuroticismo). Eysenck relacionou estes factores com os tipos de Hipócrates-Galeno situados nos quadrantes internos.
No tipo designado por neuroticismo-estabilidade (N), uma personalidade neurótica ou instável seria ansiosa, tensa, facilmente irritável e cheia de preocupações; em contraste uma personalidade estável seria calma, controlada e de boa disposição. A maioria das pessoas não se enquadra nestas caracterizações extremas, revelando antes uma mistura destas duas dimensões. Eysenck considerou posteriormente uma terceira dimensão, o psicoticismo (P), um tipo de personalidade que caracterizaria aquelas pessoas com um carácter hostil, mais solitário e insensíveis aos sentimentos dos outros. O psicoticismo, ao contrário das outras duas dimensões, não estaria representado por uma distribuição normal; seria antes uma distribuição enviesada com a zona mais baixa da escala de psicoticismo a agrupar a maioria das pessoas. Eysenck propôs um modelo hierárquico da personalidade baseado em cada uma destas três dimensões. No topo da hierarquia estaria o tipo de personalidade designada por exemplo por extroversão; mais a baixo e a seguir estaria o traço de sociabilidade ou tomada de riscos; mais abaixo ainda estaria o nível das respostas habituais dadas numa situação (ex., responder ou não a pedidos de pessoas estranhas na rua) e finalmente na base as respostas específicas (ex., indiquei a direcção de uma rua a uma pessoa que a pediu hoje).
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Eysenck e Eysenck (1975) construíram um instrumento de avaliação das três dimensões da personalidade, designado actualmente por “Questionário de Personalidade de Eysenck – Revisto” (ou EPQ-R). Este questionário é constituído por uma série de questões, do tipo “Prefere ler a encontrar-se com pessoas”; “Dá importância ao que os outros pensam de si”, “Vai a festas grandes e barulhentas?” a que a pessoa deve responder sim ou não. O Questionário de Eysenck apresenta valores razoáveis de fidelidade e validade e as duas principais dimensões da Figura 7.1 emergem com bastante clareza na análise factorial aplicada aos dados de vários estudos. Numa avaliação geral, alguns investigadores referem que o modelo de Eysenck, ao propor apenas 2-3 dimensões, é bastante simples e menos adequado do que outros modelos alternativos de traços para traduzir a complexidade da personalidade humana. Eysenck argumentou que muitos aspectos da personalidade podem ser formados pela combinação de duas das principais dimensões, ou mesmo das três. Por exemplo, o traço de “boa disposição” pode ser uma combinação de extroversão e estabilidade, enquanto que o traço de “má disposição” estaria representado mais pelas dimensões opostas, como a introversão e o neuroticismo. O modelo é portanto suficientemente flexível para englobar as principais dimensões da personalidade humana. De facto estas 2-3 dimensões de personalidade emergem invariavelmente na análise factorial dos dados, como se verificou recentemente num estudo realizado em 35 países diferentes (Eysenck, 1992).
7.1.3.4 Modelo de Cattell Cattell (1965) realizou vários estudos com o objectivo de estabelecer uma teoria geral dos traços da personalidade humana, incluindo aspectos não considerados por outros investigadores, como a motivação, a emoção, o afecto e a aprendizagem. Cattell procurou analisar o comportamento humano de acordo com várias medidas a fim de determinar de forma sistemática a estrutura da personalidade, recorrendo para o efeito a três tipos de dados: (1) a observação sistemática durante vários meses de um grupo de pessoas; (2) a passagem de questionários de auto-avaliação; (3) a obtenção de dados em testes objectivos especialmente planeados para medir a personalidade, como a resposta dermal e cuja finalidade era ocultada aos sujeitos. Cattell aplicou a análise factorial a estes três tipos de dados a fim de isolar os factores subjacentes à personalidade humana, esperando que a mesma estrutura de personalidade viesse a emergir de forma equivalente com os três procedimentos, o que aconteceu apenas e em parte com os dois primeiros. No âmbito 286
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dos estudos de personalidade, Cattell elaborou o questionário “16 PF” (16 factores da personalidade) capaz de medir 16 factores primários que constituiriam a estrutura básica da personalidade humana. A lista dos 16 factores primários de personalidade, incluindo a letra que os designa e os respectivos significados extremos, é a seguinte: (A) Reserva – vivacidade; (B) menos inteligente – mais inteligente; (C) instável emocionalmente – estável; (E) submisso – agressivo; (F) cauteloso – impulsivo; (G) oportunista – consciencioso; (H) tímido – aventuroso; (I) inflexível – compreensivo; (L) confiante – desconfiado; (M) prático – imaginativo; (N) directo – discreto; (O) seguro – preocupado; (Q1) conservador – aberto à mudança; (Q2) dependente do grupo – individualista; (Q3) descuidado – perfeccionista; (Q4) paciente – tenso. Cattell considerou que os traços profundos que constituíam a personalidade estavam presentes em cada pessoa em graus diferentes. O objectivo de uma teoria da personalidade seria determinar a matriz de traços individuais de forma a conseguir-se formular previsões sobre o comportamento de cada pessoa. Numa avaliação geral, a estrutura de personalidade de Cattell, baseada em 16 factores, é considerada bastante complexa e de difícil confirmação, tendo-se conseguido obter quanto muito uma estrutura com sete factores (Digman, 1990). Notou-se também que alguns dos 16 factores eram similares entre si e podiam ser englobados num único factor, como por exemplo a ansiedade que agruparia os factores (C) instável, o (H) timidez, e o (Q4) tenso. Apesar das objecções a que este modelo foi sujeito, o questionário “16 PF” tem-se mantido como um dos quatro principais instrumentos de avaliação da estrutura básica da personalidade humana, principalmente em amostras não-clínicas (Butcher e Rouse, 1996). Cattell defendeu de forma mais explícita do que Eysenck que os factores de personalidade podiam ser influenciados por situações e estados corporais como o cansaço, o medo, o entusiasmo ou o álcool levando a pessoa a agir temporariamente contra a sua personalidade. Ambos os investigadores defenderam no entanto a constância mais ou menos permanente dos factores da personalidade ao longo da vida da pessoa.
7.1.3.5 Modelo dos cinco grandes factores O modelo dos cinco grandes factores de personalidade, designado de seguida simplesmente por “cinco factores”, é uma alternativa aos modelos da estrutura de personalidade de Cattell e Eysenck. O número de traços primários que
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formam a estrutura da personalidade de Cattell é considerado exagerado e o número proposto por Eysenck é considerado reduzido de mais para caracterizar a estrutura da personalidade humana. Historicamente o modelo dos “cinco factores” foi desenvolvido no início da década de 60 por Tupes e Christal, Norman, e Borgatta (cit. em Digman, 1990). O modelo dos “cinco factores” defende que a estrutura básica da personalidade de uma pessoa seria melhor caracterizada por cinco grandes factores, a seguir designados: 1. Extroversão vs Introversão (E). Representa o grau de interacção social, o nível de actividade e de estimulação. Os valores altos e baixos da escala estariam representados pelos adjectivos seguintes: loquazcalado, franco-secretivo, sociável-recolhido. 2. Amabilidade (A). Refere-se à orientação interpessoal ao longo de um contínuo que vai da compaixão ao antagonismo expresso em actos e pensamentos. Os adjectivos opostos representativos são: amigável-hostil, não-ciumento—ciumento, gentil-obstinado. 3. Consciencioso (C). Identifica as pessoas organizadas, persistentes, com uma motivação dirigida para objectivos. Os adjectivos representativos são: responsável-incerto, escrupuloso-sem escrúpulos, exigente-descuidado. 4. Neuroticismo vs Estabilidade emocional (N). Avalia os indivíduos ansiosos e instáveis, propensos a pensamentos irrealistas e dificuldades de ajustamento. Os adjectivos representativos são: ansioso-calmo, excitável-sereno, tenso-ponderado. 5. Cultura; Abertura à experiência (O do inglês openness). Pessoas tolerantes, abertas à exploração do desconhecido e da experiência em si. Os adjectivos representativos são: polido-rude, inteligente-não inteligente, sensível-não sensível artisticamente. O modelo dos “cinco factores” apresenta alguma equivalência com o modelo de personalidade de Eysenck, nomeadamente ao nível do factor 1 (extroversão) e do factor 4 (neuroticismo). A estrutura de personalidade dos “cinco factores” emergiu com a aplicação da análise factorial a dados obtidos em diferentes culturas, idades, e usando diferentes escalas de medida (McCrae e Costa, 1987). Esta estrutura foi ainda comprovada em estudos longitudinais, em que as mesmas pessoas respondem a escalas de personalidade com intervalos de vários anos, tendo-se verificado uma estabilidade bastante significativa dos diversos factores. É um modelo que caracteriza bem as diferenças individuais e é considerado uma boa solução em termos da estrutura da personalidade. O modelo não está relacionado com nenhuma teoria específica da persona288
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lidade, mas enquadra-se numa teoria geral de traços que procura descrever a personalidade de forma quantitativa a partir dos dados de diversas escalas. Entre os investigadores de personalidade há um largo consenso em torno dos “cinco factores” ou traços primários, embora poucos sejam capazes de explicar por que razão a personalidade humana é melhor descrita por cinco factores do que por 16 (Cattell) ou por três (Eysenck). Uma das explicações sugeridas aponta para as limitações de processamento de informação em termos da capacidade humana para usar e apontar quais as características descritivas pessoais ou as características observadas nos outros. O modelo dos “cinco factores” surgiu e desenvolveu-se na década de 60, ficou pendente na década de 70 devido às objecções fortemente críticas do modelo situacionista e neo-beaviorista em psicologia social que abordaremos a seguir e na década de 90 voltou a ocupar um papel significativo em termos de investigação na área da personalidade (e.g., Goldberg, 1993). Neste contexto, foi elaborado um inventário de personalidade para avaliar os “cinco grandes factores” por Costa e McCrae (1992), que designaram por NEO-PIR (Neuroticismo, Extroversão, Abertura (Openness) – Inventário de Personalidade – Revisto). Apesar de algumas limitações em termos de validade, este inventário é considerado uma alternativa bastante satisfatória em termos de avaliação da personalidade. Em geral, as várias teorias dos traços defendem que a personalidade é constituída por um número reduzido de traços básicos que podem ser usados para explicar o comportamento de todas as pessoas. Estes traços são uma definição operacional dos factores que emergem da aplicação da análise factorial, uma técnica estatística que identifica grupos de itens fortemente intercorrelacionados entre si. Os factores, por ex., a extroversão, são depois validados através da observação de comportamentos das pessoas em festas, grupos e situações de animação social. Estes traços são considerados disposições básicas da pessoa, estáveis ao longo do tempo e segundo alguns autores têm uma origem hereditária significativa. As pessoas diferem umas das outras em termos do perfil revelado pela pontuação obtida na intensidade dos vários traços. Estas teorias são baseadas em estudos empíricos, cujos resultados podem ser reproduzidos e falsificados. A existência de traços ou tipos de personalidade tem uma longa tradição histórica e enquadra-se bem na psicologia popular. Mas é uma perspectiva contestada em termos empíricos por duas razões: (1) o valor de fidelidade teste-reteste dos traços de personalidade, especialmente com intervalos longos, é baixa. Isto significa que uma pessoa considerada hoje tendencialmente introvertida, pode ser considerada daqui a um ano no mesmo teste tendencialmente extrovertida; (2) A teoria dos traços aplica a análise factorial, mas esta técnica estatística não é um método completamente objectivo, tem © Universidade Aberta
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limitações próprias e requer um certo número de decisões arbitrárias e subjectivas. Por isso há investigadores que defendem 3, 5 ou 16 factores básicos de personalidade. Em geral, o suporte empírico das teorias dos traços é razoável, mas o alcance deste grupo de teorias foi posto à prova por parte das teorias situacionistas e interaccionistas como veremos a seguir.
7.1.4 Teorias beavioristas O beaviorismo estimulou a busca de explicações para além da pessoa, tentando encontrá-las na estabilidade e permanência da situação ambiental. Para o beaviorismo a personalidade resume-se ao comportamento. É o comportamento no dia a dia que define a nossa personalidade. A personalidade não é algo de interno à pessoa e formada por um conjunto de características próprias. Uma pessoa é honesta e outra é agressiva, não devido a nenhum traço específico da personalidade da pessoa, mas devido a situações passadas em que os comportamentos que aí tiveram lugar foram objecto de reforço ou punição. É a frequência de reforços e punições previamente recebidos em situações em que ocorreram comportamentos honestos ou agressivos que define se uma pessoa é honesta ou agressiva. Watson, o fundador do beaviorismo na segunda década do séc. XX, num texto considerado de antologia, defendeu de forma explícita a ideia de que a personalidade era o resultado das experiências do meio e não o resultado de um qualquer factor interno, tipo hereditariedade ou habilidades pessoais. Watson disse: Dêem-me uma dúzia de crianças saudáveis … e o meu mundo especializado para as fazer crescer, e eu garanto-vos que tomo uma ao acaso e a educo para se tornar qualquer tipo de especialista que eu queira — doutor, advogado, … e também, é claro, pedinte ou ladrão, independentemente dos seus talentos, … tendências, habilidades, vocações e raça dos seus progenitores (Watson, 1930, p. 82).
Skinner foi outro dos investigadores beavioristas que defendeu a concepção de que a personalidade não se distingue do comportamento. A personalidade resume-se ao conjunto dos comportamentos. A análise da personalidade de uma pessoa envolveria a descrição geral e sistemática dos estímulos (ou situação) que produzem as respostas de uma pessoa, as próprias respostas em si e o tipo de reforços que mantêm as respostas. As pessoas comportam-se de forma diferente, porque têm histórias diferentes de reforços e punições. É o reforço consistente de certas categorias de respostas, cujo agrupamento unificado se designa por personalidade. 290
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Segundo Skinner (1953), uma pessoa pode ser sociável quando se encontra na situação de um grupo de amigos e pouco ou nada sociável quando se encontra numa situação familiar. Ou ainda “uma pessoa pode ser ao Domingo um crente piedoso e participativo nas cerimónias de culto da sua religião e à Segunda-feira um profissional agressivo e sem escrúpulos” (o. cit. p. 286). Atribuir as causas do comportamento à personalidade não faz sentido, até porque o conceito de personalidade não passa de uma “ficção explicativa”. Não faz sentido dizer que uma pessoa é ou não sociável, é ou não piedosa, até porque ser sociável ou piedoso depende da situação em que se encontra e da natureza do reforço presente (e.g., Skinner, 1987). Não há propriamente uma teoria beaviorista da personalidade, mas a perspectiva beaviorista de investigação influenciou um conjunto de investigadores que formularam teorias sobre a personalidade. A perspectiva beaviorista é interessante e original, mas é considerada limitada em termos explicativos. Além das experiências de aprendizagem passadas, resultantes dos reforços e punições, há outros tipos alternativos de aprendizagem, como a aprendizagem cognitiva e a aprendizagem por observação, além de variáveis como a hereditariedade que influenciam a constituição da personalidade humana.
7.1.5 Teorias situacionistas A teoria dos traços argumenta que a consistência do comportamento humano depende da personalidade e que esta reside dentro da pessoa. Mas será que o comportamento humano será sempre consistente, independentemente das circunstâncias? Uma pessoa será sempre honesta, amigável e altruísta, ou será que tais comportamentos dependem da situação em que uma pessoa se encontra? Em 1968 Mischel considerou que as teorias centralistas da personalidade (teorias dos traços e psicodinâmicas) estavam erradas, defendendo em alternativa que o comportamento dependia do meio e das circunstâncias que rodeiam a pessoa. Basicamente era uma teoria beaviorista, que então designou por teoria da aprendizagem social e que ficou também conhecida por teoria situacionista. Mischel (1968) defendeu que as regularidades observadas no comportamento humano são determinadas pelas características da situação. Por sua vez, as diferenças de personalidade têm origem na exposição a diferentes estímulos da situação que constituem as experiências próprias da pessoa ao longo da vida; não são causadas pelas características internas da pessoa ao nível de traços ou tipos constitutivos. Para a teoria situacionista, um traço de personalidade como a extroversão ou a honestidade não é mais do que uma construção do observador que tenta dar algum sentido ao comportamento que © Universidade Aberta
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observa nos outros. Tais traços são categorias que existem apenas na mente do observador; não existem na pessoa do observado. As regularidades de comportamento seriam assim o resultado de situações similares em que a pessoa se encontra, em vez de serem o resultado de factores internos do sujeito. A teoria situacionista de Mischel (1968) baseou-se em grande parte num grupo de estudos realizados em 1928 e 1930 por Hartshorne e May que analisaram os comportamentos de honestidade e fraude de crianças em situações cuja descoberta parecia impossível (para as crianças). Hartshorne e May (1928) verificaram que poucas crianças se comportaram de forma honesta em todas as situações, quer em casa quer na escola, e também que poucas crianças se comportaram de forma desonesta em todas as situações. Havia pouca consistência no comportamento das crianças; quando era vantajoso comportarem-se de forma pouco honesta, muitas crianças fizeram-no, mas nem sempre da mesma forma. A honestidade era em grande parte um comportamento específico da situação. Os resultados do estudo de Hartshorne e May sugeriram que os traços de personalidade como a honestidade ou a cooperação não determinam ou controlam o comportamento; pelo contrário o que uma criança faz ou não, depende em grande parte dos elementos da situação. Mischel admitiu que o comportamento pode ser consistente e que uma pessoa é honesta em diversas situações, mas desde que as situações sejam similares. Ser honesto ou ter um comportamento consistente em condições similares não pode ser considerado uma prova da existência de um traço interno da personalidade. Mischel foi a ponto de contestar o valor preditivo dos instrumentos ou questionários de avaliação da personalidade baseados na teoria dos traços, como os de Cattell ou Eysenck. O situacionismo gera um certo desconforto, porque há a crença até certo ponto generalizada, de que uma pessoa é honesta e verdadeira independentemente da situação. Infelizmente o número de santos na terra não é muito grande e a maioria das pessoas raramente é posta à prova em situações específicas, diversas e extremas. Quando tal acontece, mesmo em experiências de simulação laboratorial, os resultados revelam-se por vezes inesperados, como se prova pela experiência clássica de Zimbardo et al. descrita na Caixa 7.1. Quando as características de uma situação são bem demarcadas e fortes como no caso da experiência da prisão, uma bicha de autocarro ou a presença num acto de culto religioso, os traços de personalidade tornam-se menos eficazes na explicação do comportamento das pessoas. Parece até que as exigências da situação se sobrepõem ou anulam os traços da personalidade, tornando-se nos únicos factores que melhor prevêem o comportamento das pessoas.
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Caixa 7.1 Uma prisão simulada Zimbardo et al. (e.g., Haney, Banks, e Zimbardo, 1973) convidaram um grupo de universitários masculinos para participar num estudo que pretendia simular a vida numa prisão. Os participantes foram previamente avaliados como sendo emocionalmente estáveis e de boa saúde; todos aceitaram participar e cumprir as regras e depois foram distribuídos ao acaso em dois grupos, um de prisioneiros e outro de guardas. Os guardas vestiam uniformes de tipo policial, usavam óculos escuros, cacete e assobio e deveriam fazer cumprir um certo número de regras. Os prisioneiros foram fechados três em cada cela vazia e foi-lhes distribuído um vestuário humilhante, uma espécie de camisa comprida até aos pés, privados de usar roupa interior, calçavam sandálias, usavam um barrete na cabeça feito de meias de nylon e tinham números à frente e atrás das costas pelo qual passaram a ser identificados. Ao fim de um ou dois dias de representação dos papéis de guardas e prisioneiros, os participantes interiorizaram e passaram a acreditar de tal modo naquilo que faziam que os guardas começaram a revelar um comportamento rude, cruel e humilhante para com os prisioneiros e estes tornaram-se nuns casos passivos e dependentes e noutros casos desenvolveram estados elevados de ansiedade e depressão a tal ponto que tiveram de ser libertados quase logo no início. As reacções foram-se tornando de tal modo críticas que Zimbardo, o “responsável pela prisão”, teve de interromper a experiência ao fim de seis dias, quando estava planeada para decorrer durante duas semanas. Esta experiência, que pretendia ser uma simulação de uma situação real, revelou-se uma poderosa demonstração do efeito da situação na forma como as pessoas se comportam.
Na década de 70, a teoria situacionista marcou alguns pontos a favor, em grande parte devido à incapacidade dos questionários e testes de avaliação da personalidade em vigor para prever o comportamento das pessoas em situações futuras, nomeadamente em condições de adaptação a situações de stress. O situacionismo desenvolveu algumas objecções fortes e pertinentes contra a teoria dos traços, a ponto de uma pessoa efectivamente se interrogar quanto
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do comportamento humano é devido à consistência dos traços de personalidade e quanto é devido à influência do meio. A resposta ainda hoje não é fácil de dar, mas muitos investigadores, incluindo Mischel nos anos mais recentes (e.g., Mischel, 1993), propuseram uma posição intermédia, ou interaccionista, que se descreve a seguir.
7.1.6 Teorias interaccionistas Bowers (1973) foi um dos primeiros investigadores a contestar a dicotomia entre traços por um lado e situações por outro na explicação das diferenças de personalidade após a publicação do livro de Mischel (1968). Esta dicotomia para Bower não tinha fundamento, porque qualquer prova a favor da teoria dos traços ou da teoria situacionista podia servir também para as rejeitar. Bower ilustrou esta limitação referindo o caso do comportamento de condução no interior de uma cidade ou numa auto-estrada. No interior da cidade (uma situação bastante específica) quase toda a gente obedece aos muitos sinais de trânsito e limites de velocidade, provando que a situação é influente; mas na auto-estrada (uma situação pouco restritiva) as pessoas têm liberdade de conduzir a diferentes velocidades, umas conduzem acima do limite, outras próximo do limite e outras ainda a uma velocidade de grande segurança, provando que os traços são influentes. A auto-estrada exerce um controlo sobre o comportamento de condução muito menor do que na cidade, ficando a pessoa mais livre para activar e exercer os seus traços psicológicos distintivos sobre a situação. As teorias interaccionistas são teorias ecléticas que consideram o comportamento como o resultado da interacção entre traços e predisposições da pessoa por um lado e as circunstâncias da situação por outro, que em conjunto infuenciam ou condicionam o modo como o comportamento se exprime. O comportamento das pessoas é assim uma função da influência mútua das variáveis da personalidade com as variáveis da situação. O interaccionismo chamou a atenção para a existência de situações psicologicamente fortes e situações psicologicamente fracas. As situações fortes são bem definidas e estruturadas e fornecem indicações bastante precisas para guiar e orientar o comportamento. As situações fracas estão organizadas de forma ambígua e as indicações são menos claras e precisas. Neste caso compreende-se melhor porque é que a teoria dos traços é capaz de prever melhor o comportamento nas situações psicologicamente fracas, enquanto que o situacionismo consegue prever melhor nas situações fortes. 294
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O interaccionismo descobriu ainda que há pessoas mais receptivas a agir de acordo com disposições pessoais (traços), enquanto outras são mais propensas a agir de acordo com os imperativos da situação. As pessoas mais do tipo disposicional revelam consistência de comportamento ao longo do tempo e através das situações (por ex., honestidade e altruísmo), enquanto que as pessoas mais situacionistas revelam menor consistência de comportamento em circunstâncias idênticas. Na sua fase interaccionista, Mischel realizou vários estudos sobre a capacidade das crianças adiarem uma gratificação para depois receberem uma gratificação maior (e.g., Mischel et al., 1989). Numa experiência típica, uma criança fica só numa sala com dois objectos de que gosta mais dum do que doutro. Se a criança esperar pelo regresso do experimentador que se ausentou da sala, tem direito ao objecto preferido, se não quiser esperar pode brincar ou ficar com o objecto menos preferido. Mischel verificou uma continuidade significativa do comportamento das crianças entre os 4 anos e os 17 anos. As crianças, que foram capazes de adiar aos 4 anos no laboratório por mais tempo a gratificação, foram consideradas pelos pais aos 17 anos como mais atentas, competentes, inteligentes, capazes de se concentrar e de enfrentar situações de ansiedade de forma madura. O que quer que esteja presente na mente das crianças aos 4 anos e que as leva a resistir por mais tempo à tentação de se apoderarem de algo muito desejado (seja traço, tendência ou disposição pessoal), é algo que se mantém na mente da criança — e não na situação — pelo menos até à adolescência. Mischel admite assim a permanência de alguns traços ao longo do tempo. Mischel defende uma perspectiva interaccionista do comportamento humano, preferindo sublinhar as variáveis cognitivas da pessoa, em vez dos traços de personalidade na interpretação de uma situação. Para Mischel, os traços seriam mais de ordem temperamental, enquanto que as variáveis cognitivas definiriam melhor as competências e estratégias mais permanentes do comportamento humano. Em síntese, o interaccionismo é uma perspectiva que tenta reunir o melhor da teoria dos traços e da influência da situação na explicação e previsão do comportamento humano. Apoia a crença generalizada sobre a permanência e consistência de traços de personalidade ao longo do tempo, mas reconhece que nem todos os traços são igualmente consistentes e estáveis e capazes de prever o comportamento. Quando a situação é altamente estruturada, é provável que as pessoas se comportem mais de acordo com a situação do que de acordo com as suas disposições pessoais. Mas surge a questão: Onde se situa a linha divisória entre situações estruturadas e pouco estruturadas por um lado e entre “o que uma pessoa é” e “aquilo que às vezes se comporta” por outro? Uma das objecções principais postas ao interaccionismo é a selecção de situações © Universidade Aberta
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isoladas, bem contrastadas e mutuamente independentes que permitem revelar um efeito interaccionista entre situação e personalidade, mas estas são condições extremas e talvez pouco comuns e representativas. Mais do que uma dicotomia, há uma continuidade e reciprocidade entre comportamento e situação. O comportamento afecta a situação e esta por sua vez afecta o comportamento. Há entre personalidade e situação um interaccionismo recíproco, a ponto das pessoas serem capazes de seleccionar ou evitar uma situação, e de explorar e alterar ainda aspectos da situação em detrimento de outros (Buss, 1987). A mesma situação, seja uma aula, um acto de culto, ou um espectáculo desportivo tem um significado diferente para cada pessoa, tendo em conta a própria experiência passada. O modo como uma pessoa selecciona e avalia os estímulos numa destas situações, determina o modo como os estímulos vão influenciar o comportamento. Os aspectos da situação não influenciam só por si o comportamento, mas apenas e na medida em que a pessoa os interpreta de um modo ou doutro. O comportamento pode ser previsto, mas só algumas vezes para algumas pessoas e nalgumas situações.
7.1.7 Teorias e conclusão As teorias de personalidade representadas por tipos, traços e dinamismos concebem a personalidade como uma entidade própria, central, um construto teórico legítimo com um papel causal importante e capacidade explicativa no comportamento humano. As restantes teorias, representadas pelo beaviorismo, aprendizagem social e situacionismo, dão importância aos factores externos da personalidade, cujos traços e disposições seriam secundários na regularidade e consistência do comportamento. As teorias da personalidade diferem em tantos pontos, que é legítimo perguntar se há algo de comum às diversas teorias? Assim a personalidade desenvolve-se ao longo de diferentes fases até à adolescência como sugere Freud, até ao fim da vida segundo Erikson, ou a criança já nasce com uma personalidade como sugerem os comportamentalistas genéticos? A personalidade terá uma estrutura própria? Qual o papel que os dinamismos intra-psíquicos, o inconsciente, a influência das normas sociais e a força do ego representam na motivação do comportamento humano? Há disposições ou traços comuns de personalidade que se mantêm consistentes ao longo do tempo e através das diferentes situações? Muitas são as perguntas, poucas são ainda as respostas. Parece no entanto poder afirmar-se que há uma consistência razoável de alguns traços de personalidade ao longo do tempo por parte de algumas pessoas. Nem todas as pessoas são totalmente consistentes ou inconsistentes ao longo do tempo em todas as situações. Há ainda um 296
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acordo substancial no que respeita à existência de pelo menos dois traços ou factores principais: extroversão-introversão e neuroticismo-estabilidade emocional (ou ansiedade), assim como a vantagem de se examinar melhor a interacção entre traços e situações no comportamento das pessoas.
7.2
Instrumentos de medida da personalidade
Os instrumentos de medida de avaliação da personalidade estão relacionados com a perspectiva teórica subjacente. Assim a perspectiva psicodinâmica destaca os testes projectivos; a perspectiva humanista valoriza a compreensão empática e terapia não-directiva; a perspectiva dos traços recorre a inventários e questionários; a perspectiva situacionista e interaccionista analisa amostras de comportamento em situações reais ou em situações simuladas. Alguns dos mais importantes instrumentos são referidos a seguir.
7.2.1 Métodos projectivos A perspectiva psicodinâmica valoriza os métodos projectivos, como a melhor técnica para revelar as motivações inconscientes. Um teste projectivo é constituído por figuras ambíguas ou estímulos sobre os quais as pessoas devem fazer uma descrição. Estes testes pressupõem que as pessoas projectam as características da sua personalidade na interpretação dos estímulos ambíguos, reflectindo assim aspectos do seu inconsciente. Os testes projectivos mais conhecidos são o teste de Rorschach e o TAT (Thematic Apperception Test). O teste de Rorschach é constituído por 10 manchas simétricas ou borrões de tinta, a preto e a cor e foi inicialmente publicado em 1921 por H. Rorschach (e.g., Silva et al., 1991). Veja-se uma mancha parecida com as usadas no teste na Figura 7.2a. Nenhuma das manchas representa um objecto específico, mas cada uma é passível de sugerir diferentes elementos reais ou fictícios. Os sujeitos são solicitados a referir o que vêem e o examinador interpreta e descreve as respostas, nomeadamente em termos de localização, determinantes e conteúdo. Este teste permite avaliar aspectos da personalidade a nível defensivo, cooperativo, competitivo, assim como aspectos mais cognitivos como a capacidade de processar e integrar múltiplos estímulos, a originalidade e rapidez de respostas.
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Figura 7.2 - Figuras semelhantes às gravuras usadas no teste projectivo de Rorschach (a) e no teste TAT de Murray (b).
O TAT é constituído por 31 figuras (uma delas em branco) e foi publicado por Murray em 1938 (e.g., Silva, 1985). Veja-se uma figura parecida com as usadas no teste na Figura 7.2b. Algumas das figuras são aplicadas especificamente a crianças, outras a homens ou mulheres. Em geral, o examinador usa apenas um conjunto de 10 figuras. As figuras retratam cenas ambíguas (por ex., um rapaz a olhar para um violino em cima da mesa) e a tarefa do sujeito é descrever uma história que inclua os antecedentes e as consequências da situação actualmente representada pela figura. Através de uma análise detalhada e complexa dos temas das histórias narradas é possível obter informações sobre as necessidades de afiliação, relacionamento social, rejeição, agressividade, domínio e motivação para a realização.
7.2.2 Questionários e inventários A perspectiva dos traços de personalidade usa inventários e questionários formados por várias escalas de forma a avaliar a presença e grau de intensidade dos diferentes traços. Estes instrumentos são constituídos por um conjunto de perguntas de auto-avaliação que se agrupam sob diferentes categorias ou factores (por ex., extroversão, dominância, imaginação) a que as pessoas geralmente respondem: verdadeiro, falso ou não sei. Os questionários mais conhecidos resultantes da teoria dos traços são o Questionário de Eysenck, o Inventário “16 PF” de Cattell e o Inventário NEO-PI-R dos “cinco factores” de Costa e McCrae, já anteriormente referidos. 298
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O MMPI-2 (Inventário multifásico de personalidade de Minnesota) é um inventário de auto-avaliação constituído por 567 itens ou perguntas que formam 10 escalas. A uma pergunta (por ex., Nunca fiz nada de perigoso pelo prazer que isso me deu), o sujeito responde verdade, falso ou não sei. Ao contrário do Inventário 16PF de Cattell, cujos itens foram agrupados por factores obtidos por meio da aplicação da análise factorial, o processo de construção do MMPI resultou da selecção de um conjunto de itens que se revelaram capazes de discriminar entre amostras representativas da população normal ou com problemas psicológicos, por exemplo, entre normais e esquizofrénicos. Segundo uma revisão de Butcher e Rouse (1996), o MMPI é um dos métodos de avaliação clínica da personalidade mais usados, com mais de metade (51%) dos estudos publicados no período de 1974 a 1994, seguido pelo Rorschach com 22%, o TAT com 11%, o 16PF com 10% e vários outros restantes com 6%. Os inventários e questionários de personalidade são instrumentos de uso frequente e de fácil aplicação, mas envolvem dificuldades em termos de interpretação, mesmo quando usados por profissionais. Um dos problemas diz respeito ao facto de algumas respostas serem mais desejáveis socialmente do que outras. Mesmo sem grandes conhecimentos de psicologia, um candidato a vendedor ou a uma profissão de relações públicas sabe que as respostas mais relacionadas com a dimensão de extroversão lhe poderão ser favoráveis. Por isso alguns instrumentos como o MMPI-2 incluem controlos internos com escalas que avaliam o grau de verdade ou mentira através de perguntas que só podem ser respondidas de uma maneira, se a pessoa tiver por hábito dizer a verdade. Neste caso “sim” a perguntas do tipo: “Alguma vez disse uma mentira?”, ou “Alguma vez revelou um segredo?” Apesar destes instrumentos obedecerem a regras bastante rigorosas na obtenção de índices de fidelidade e validade, há um problema com o índice de validade destes instrumentos que é baixo e onde a capacidade preditiva é limitada. A questão da validade é de facto paradoxal. Se um teste produz interpretações demasiado vagas e gerais a validade é nula, porque quase todos se identificam com elas; se pelo contrário a interpretação é bastante específica, a pessoa pode não se identificar com a interpretação dada, e a validade do teste é indevidamente reduzida. Entre uma interpretação genuína obtida a partir de um teste de personalidade, ou um texto com afirmações vagas típicas de um horóscopo, a maioria das pessoas considera as afirmações vagas mais precisas e correctas em termos de interpretação da própria personalidade. Veja-se o estudo de Forer (1949) na Caixa 7.2.
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Caixa 7.2 Horóscopos e perfis de personalidade Forer (1949) solicitou aos seus alunos para responderem a um novo teste de personalidade, que incluía questões sobre características pessoais, passatempos, ambições e esperanças secretas de realizações futuras. Forer prometeu sigilo em relação aos resultados do teste e comprometeu-se a entregar uma interpretação personalizada na aula da semana seguinte. Um texto dactilografado com o nome do aluno e o perfil de personalidade foi entregue com a referência de que a informação era apenas do conhecimento do próprio e do professor. Depois dos alunos terem lido o texto, foram solicitados a avaliar em que medida o perfil de personalidade recebido era mais ou menos preciso numa escala de 0 (deficiente) a 5 (perfeito). A média da avaliação foi de 4,3, indicando que a maioria dos alunos considerou o texto uma avaliação quase perfeita da própria personalidade. Ao contrário do que os alunos pensaram, o texto distribuído foi idêntico para todos e era composto por frases tiradas de um livro de astrologia, do tipo: Tem uma forte necessidade de ser amado e admirado por outras pessoas. Orgulha-se de ser uma pessoa que pensa pela sua cabeça e não aceita as opiniões dos outros de ânimo leve. Há alturas em que é afável, sociável e extrovertido e outras em que é introvertido, reservado e prudente. Tem tendência a criticar-se e às vezes descobre tarde demais que foi demasiado franco para com outras pessoas. Alguns dos seus projectos e aspirações são um bocado irrealistas. Se se pedir às pessoas para escolher entre afirmações vagas deste tipo ou uma interpretação genuína obtida com um teste de personalidade, a maioria das pessoas considera este tipo de descrição mais precisa e correcta. Estas afirmações são tão gerais que uma pessoa não tem dificuldades em identificar-se com elas num momento ou noutro. Se o leitor quiser impressionar os amigos, diga-lhes que tirou um curso de astrologia, obtenha a data de nascimento e depois entregue um texto com as frases anteriores ou escreva um novo texto retirando uma frase diferente de cada um dos 12 signos de um horóscopo publicado em jornais e revistas. Se o papel for bem representado, o sucesso do leitor é garantido. Os astrólogos, cartomantes e fazedores de horóscopos são populares porque dizem às pessoas o que elas gostam de ouvir, articulando frases e afirmações generalistas. Depois sugerem às pessoas para relacionar tais afirmações e análises com as suas experiências específicas. Mais tarde as pessoas têm tendência a recordar, que o astrólogo previu o seu caso específico.
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7.2.3 Avaliação comportamental As perspectivas beaviorista, situacionista e de aprendizagem social investigam o comportamento das pessoas em situações de controlo experimental, quer seja no laboratório quer seja em determinados contextos ocupacionais específicos. Partem do princípio de que o factor que melhor prevê o comportamento futuro das pessoas não é um teste de personalidade, mas antes o padrão de comportamentos passados que teve lugar em situações similares. Por exemplo, em vez de se passar um questionário para se saber quais poderão ser os melhores professores de entre uma amostra de recém-formados, observa-se em alternativa um conjunto de variáveis destes futuros professores a ensinar alunos em aulas reais durante um período de estágio. O questionário pode indicar se o finalista é ou não uma pessoa emocionalmente estável, mas o grau de estabilidade pode ser diferente na situação real de sala de aula, onde podem ocorrer situações inesperadas. Assim o factor que melhor prevê a estabilidade emocional numa sala de aula no futuro é o grau de estabilidade emocional actual na leccionação de aulas reais e não o valor num teste de personalidade que nunca é capaz de simular verdadeiramente a globalidade da situação. Em geral, o factor que prevê melhor o desempenho profissional no futuro não é um teste de personalidade, mas antes o desempenho profissional actual ou passado de natureza profissional equivalente. Em síntese, os instrumentos de avaliação da personalidade são instrumentos frequentemente usados, úteis mas limitados. Na perspectiva do terapeuta que acaba de receber um cliente na primeira consulta, a aplicação de um instrumento de avaliação de personalidade a um desconhecido permite obter em pouco tempo um perfil genérico e resumido da sua personalidade. Este perfil é uma percepção mais objectiva e proporciona uma compreensão melhor do que seria possível obter com várias entrevistas individuais, permitindo formular hipóteses para melhor orientar a relação terapêutica durante as sessões seguintes. A mesma vantagem ocorre numa prova de admissão e selecção profissional com centenas de candidatos a um número reduzido de lugares, em que um teste de personalidade pode permitir obter rapidamente um perfil genérico da personalidade de centenas de candidatos, por exemplo a pilotos de aviação ou técnicos de publicidade.
7.3
Origem das diferenças de personalidade
Plomin e Daniels (1987) escreveram um artigo com o título “Porque é que as crianças de uma mesma família são tão diferentes entre si?”, uma interrogação
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que muitos pais e educadores devem ter feito desde o tempo de Abel e Caim. Na mesma família, há crianças que são mais fáceis de educar, são bem dispostas e cooperantes; há outras que parecem ter o comportamento oposto. Estes contrastes estão representados por algumas figuras históricas de que se destacam em Portugal, os filhos de D. João VI — D. Pedro e D. Miguel — que lideraram os dois campos opostos da guerra civil na primeira metade do séc. XIX. A que se devem estas diferenças de personalidade? Uma resposta possível ressalta a história da pessoa a nível familiar, escolar e comunitário, as experiências de vida, o modo como se lidou com os sucessos e fracassos da existência e como foram superados. Mas uma resposta deste tipo não é capaz de ter em conta toda a diversidade da personalidade humana. Na mesma família encontram-se crianças e jovens com personalidades muito diferenciadas, apesar do meio e tipo de educação serem muito semelhantes. Supondo que a educação familiar dos filhos é semelhante, torna-se difícil rejeitar o papel da hereditariedade no desenvolvimento das diferenças de personalidade. Qual o papel que a biologia e a genética têm nesta diversidade? A década de 90 assistiu a uma série de publicações que vieram chamar a atenção de forma acrescida para a influência da hereditariedade nos traços de personalidade. Um destes estudos foi realizado por Bouchard et al. (1990) sob a égide da Universidade de Minnesota (EUA) com o objectivo de investigar as diferenças psicológicas ao nível da personalidade e dos interesses ocupacionais, usando para o efeito uma amostra elevada de gémeos monozigóticos (MZs) e dizigóticos (DZs) adultos. A amostra estudada de gémeos MZs era formada por mais de uma centena de pares e estes tinham sido separados nos primeiros meses de vida, criados à parte na infância e adolescência durante os anos de formação e apenas reunidos na fase adulta da vida. Os gémeos MZs criados à parte são considerados uma experiência fascinante da natureza ao permitir deslindar a influência específica da hereditariedade da influência do meio. Como os gémeos MZs criados à parte partilham a totalidade dos genes, mas não partilham o meio, qualquer semelhança que haja em termos de interesses e traços de personalidade fica a dever-se a causas genéticas. Os resultados de correlação obtidos com quatro inventários de traços de personalidade e três inventários de interesses ocupacionais indicaram um coeficiente de correlação de r=+0,51 para gémeos MZs criados juntos e de r=+0,50 para gémeos MZs criados à parte, um valor praticamente idêntico, e bastante superior à correlação com gémeos DZs, ou fraternos, que foi de r=+0,23. Estes resultados indicam que a similaridade de traços de personalidade e de interesses ocupacionais é maior à medida que aumenta a similaridade genética da amostra estudada e de certo modo independente do meio familiar de pertença (vide ainda Bouchard, 1994; Pinker, 1997, p. 447-450).
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O facto dos gémeos MZs serem ou não criados juntos teve um efeito mínimo. Isto significa que ser criado e educado pelos mesmos pais no mesmo ambiente familiar não torna os irmãos mais parecidos em adultos do que se tivessem sido criados separadamente por casais adoptivos no âmbito das medidas examinadas. Judith Harris (1995) chegou a ponto de afirmar que se rodassem os pais das crianças entre si, o efeito na personalidade adulta seria mínimo. É importante sublinhar no entanto que o meio familiar e social dos participantes neste estudo foi considerado médio e aceitável, um ambiente satisfatório de afecto, cuidados e apoio saudável às crianças, não se verificando casos extremos de abuso, grandes privações e maus tratos. A influência biológica na personalidade tem um longo passado e remonta como já vimos a Hipócrates que explicou a existência de quatro tipos de personalidade em função de humores e fluidos corporais. Embora hoje ninguém acredite nesta história de fluidos e humores, há uma posição empiricamente fundamentada e cada vez mais aceite sobre o papel dos genes na personalidade. Os genes podem ter os seus limites, mas não podem estar ausentes da discussão sobre a origem das diferenças de personalidade. Os investigadores, que se situam no âmbito da teoria dos traços, concebem os diferentes traços, não como meros nomes ou etiquetas coladas aos factores que emergem da análise factorial, mas como disposições pessoais mais ou menos permanentes resultantes da constituição genética da pessoa. Porque os traços são hereditários, talvez seja por isso que são consistentes ao longo do tempo. O papel da hereditariedade é um pressuposto das teorias dos traços, embora nem sempre esteja explícito. Eysenck foi um dos investigadores que defendeu a origem parcialmente hereditária das diferenças de personalidade em relação às três dimensões de extroversão, neuroticismo e psicoticismo (Eysenck, 1990). Eysenck apoiou-se em estudos realizados em gémeos MZs criados à parte que indicaram correlações na ordem de r=+0,53 para neuroticismo e de r=+0,61 para extroversão, coeficientes bastante superiores aos dos gémeos DZs, respectivamente r=+0,11 e r=-0,17 (e.g., Tellegen et al., 1988). Loehlin (1982) verificou também, numa re-análise efectuada a dados de 1700 adolescentes gémeos, uma influência hereditária bastante acentuada para os traços de extroversão e de neuroticismo de Eysenck. Eysenck propôs que a hereditariedade afecta especificamente a constituição do sistema fisiológico da pessoa, nomeadamente ao nível do sistema reticular de activação ascendente (SRA), tornando-o mais ou menos sensível e reactivo aos estímulos presentes. O sistema SRA excitaria ou inibiria a actividade cortical em função da quantidade de impulsos sensoriais recebidos. Quando o limiar de estimulação sensorial é baixo, a pessoa procura estimulação suplementar no exterior e o comportamento tende a ser mais extrovertido. Quando o limiar é alto e o córtex fica sobrecarregado de estimulação, então a pessoa procura agir de forma mais introvertida a fim de reduzir e anular a estimulação excessiva © Universidade Aberta
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que está presente a nível cerebral. Esta explicação obteve apoio laboratorial (e.g., Bullock e Gilliland, 1993). Alguns estudos de electroencefalografia (EEG) indicaram que a actividade cerebral é maior nos sujeitos introvertidos do que nos extrovertidos, embora nem todos os estudos realizados revelem de forma nítida este padrão de diferenças.
7.4
Conclusão
Do mesmo modo que um capítulo tem uma conclusão, um livro de psicologia geral termina normalmente com um capítulo sobre personalidade. O pressuposto ou razão principal tem a ver com o facto de que nos restantes capítulos de um livro de psicologia são abordados importantes aspectos ou variáveis isoladas da pessoa, havendo a responsabilidade de no final do livro se juntarem as peças para formar um todo coerente. Embora o estudo da personalidade devesse integrar as variáveis cognitivas, afectivas e motivacionais de uma pessoa numa teoria ou sistema coerente, os investigadores da personalidade raramente tentam um tal projecto. Antes preferem investigar questões mais específicas, algumas delas referidas neste capítulo, como a determinação dos traços principais que definem a personalidade das pessoas em geral ou o que as diferencia entre si, a consistência dos traços em diversas situações ao longo do tempo, a construção de instrumentos de avaliação objectivos e rigorosos, a proposta de técnicas terapêuticas que permitam ajudar a mudança de comportamentos pessoais mal adaptados socialmente. A personalidade humana é uma estrutura psicológica tão complexa que em certos casos e situações dificilmente será captada pela aplicação de um qualquer método de avaliação actualmente disponível, seja questionário de autoavaliação, um teste projectivo, ou análise de amostras reais de comportamento das pessoas. O comportamento das pessoas será sempre difícil de prever e de controlar na sua maior parte. Em comparação foi menos complexo descobrir a totalidade do genoma humano. Por muito que se conheça uma pessoa, dificilmente se descobre a motivação para certos comportamentos dramáticos e trágicos. E não creio que a motivação e personalidade possam ser melhor esclarecidas através da psicanálise. Freud, ao contrário do que se pensa, não foi um terapeuta bem sucedido. Os psicanalistas, que em geral são terapeutas com uma experiência muito extensa, reconhecem a sua incapacidade para perceber em muitos casos os mistérios da motivação e da personalidade humana e qual o melhor meio a aplicar para facilitar a mudança de personalidade. Quer se acredita muito ou pouco no livre-arbítrio humano, tenho a convicção e a esperança — um pressuposto filosófico e uma perspectiva deste livro — 304
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de que uma parte significativa do comportamento humano é o resultado das decisões mais ou menos conscientes da mente humana. Não são apenas as condições sociais e externas (como os beavioristas, antropologistas e sociólogos defendem), ou os determinismos genéticos (como os geneticistas comportamentais ressaltam) que determinam o comportamento humano em geral, mas também e acima de tudo as decisões que a pessoa toma, tendo em conta a sua estrutura mental e o conhecimento de que se é portador. É aqui que reside a essência e o fascínio da investigação psicológica.
7.5
Conceitos de personalidade
Personalidade, traço de personalidade, tipo de personalidade, id, ego, superego, mecanismos de defesa, identidade do eu, crise de identidade, autoconceito, eu ideal, extroversão-introversão, neuroticismo, psicoticismo, modelo dos “cinco factores”, situacionismo, interaccionismo, métodos projectivos, questionários e inventários.
7.6
Perguntas de auto-avaliação 1. Defina personalidade tendo em conta uma das teorias estudadas neste capítulo. 2. Qual a função dos mecanismos de defesa freudianos? Descreva dois deles. 3. Descreva brevemente o modelo de personalidade de Eysenck e o modelo dos “cinco factores” e refira as principais semelhanças e diferenças. 4. Caracterize resumidamente os principais instrumentos de medida da personalidade. 5. Que factores devem ser considerados para explicar a origem das diferenças de personalidade?
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7.7
Sugestões de leitura
Informação suplementar sobre a personalidade pode ser obtida nos livros de Mischel (1993) e Pervin e John (1999).
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8. Referências
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