O USO DA FORÇA E DOS MEIOS COERCIVOS PELAS FORÇAS DE SEGURANÇA
(ALGUMAS REFLEXÕES)
Maria José R. Leitão Nogueira
É com muito gosto que aqui venho partilhar algumas reflexões sobre o uso da força e dos meios coercivos pelas forças de segurança. Gosto, que vem do facto de esta iniciativa se inscrever no âmbito da formação inicial, ocasião em que as pessoas estão mais abertas a reflectir sem as limitações decorrentes do exercício da profissão, que têm tendência a instalar-se em todos nós ao fim de anos de actividade e que, por vezes, nos retiram a abertura de espírito necessária para reflectir sobre as coisas de forma diferente daquela a que nos habituámos. Gosto, ainda, porque não deixa de constituir para mim um reencontro com o passado, trazendo-me à lembrança boas e gratas recordações de momentos em que numa escola também contribui para a formação de profissionais de Polícia. Finalmente, porque estando aqui hoje em representação da Inspecção Geral da Administração Interna, tenho a expectativa de vos poder transmitir um dos seus importantes objectivos, o qual se concretiza na promoção da qualidade da actividade policial.
I - O cumprimento dos princípios e normas que regem a actividade de Polícia Começo por referir que o bom profissional de Polícia é aquele que consegue apresentar resultados com observância das normas que regulam a sua actividade. Digo que não corresponde à verdade alguma ideia remotamente ouvida, de que o cumprimento das regras possa constituir um obstáculo à eficácia. E digo que, bem pelo contrário, a respectiva observância irá reflectir-se, as mais das vezes de forma decisiva na resolução do caso. Pretendo com isto salientar que de pouco ou nada serve apresentar resultados, tais como deter pessoas, realizar buscas ou proceder a revistas, à custa da violação de princípios e normas cuja inobservância é susceptível de comprometer à partida o resultado final. Se esta ideia não estiver presente, se não houver consciência de que grande parte da actividade de Polícia não se esgota na concreta actuação material, projectando-se antes no futuro, corre-se o risco de ver o "brilho" inicial da operação sucumbir no momento decisivo. A estrita observância dos princípios e normas que regem a actividade policial é, pois, fundamental para uma actuação que se pretende eficaz e para a salvaguarda do agente de eventuais responsabilidades. II - Os princípios e as normas que regem a actividade policial No que respeita ao uso da força e dos meios coercivos, como sabem, existem, quer no plano internacional quer no plano nacional, princípios e normas que enformam esta específica, melindrosa e necessária vertente de actuação da Polícia. No plano internacional destaco: - O Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, Lei, adoptado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 34/169, de 17 de Dezembro de 1979), cujo artigo 3° dispõe "Os
funcionários responsáveis pela aplicação da lei só pod em em
empregar a força
quando tal se afigure estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever" ;
- Os Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, Lei , adoptados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes (realizado em Havana de 27.8 a 7.9 de 1990) nos quais se diz que "os funcionários responsáveis pela aplicação da lei, no exercício das suas funções, devem, na medida do possível, recorrer a meios não violentos antes de utilizarem a força ou armas de fogo. Só poderão recorrer à força ou a armas de fogo se outros meios se mostrarem ineficazes ou não permitirem alcançar o resultado desejado" ,
e que "Sempre que o uso
legítimo da força ou de armas de fogo seja indispensável, os funcionários (...) devem: Utilizá-las com moderação e a sua acção deve ser proporcional à gravidade da infracção e ao objectivo legitimo l egitimo a alcançar" ;
- O Código Europeu de Ética da Polícia (Recomendação 10/2001 do Comité de Ministros do Conselho da Europa), no sentido de limitar o recurso à força aos casos de absoluta necessidade e para alcançar um fim legitimo. No plano interno, saliento: - O artigo 266° da CRP respeitante aos princípios fundamentais que regem a Administração Pública, o qual dispõe que a mesma "visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos" ;
e que "Os órgãos e agentes
administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé" .
- O artigo 272° do mesmo texto fundamental, fundamental, respeitante à "Polícia" prescreve:
- "A Polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos" (nº 1); "As medidas de Polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário"
(nº 2); "A prevenção dos crimes, incluindo a dos
crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre Polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos" (nº 3);
- A Lei de Segurança Interna (Lei n° 20/87, de 12 de Junho) que depois de definir a actividade e fins de segurança interna (artigo 1°) estabelece ao nível dos princípios fundamentais que: "A actividade de segurança interna pautar-se-à pela observância das regras gerais de Polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias e pelos demais princípios do Estado de direito democrático” ;
e que “As medidas de Polícia são as previstas nas leis, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário”; e ainda que “A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre Polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos” (artigo 2º);
- A Lei Orgânica da Polícia de Segurança Pública (Lei º 5/99, de 27.1) ao dispor que “No âmbito das suas atribuições, a PSP utiliza as medidas de Polícia legalmente previstas e aplicáveis nas condições e termos da Constituição e da lei, não podendo impor restrições ou fazer uso dos meios de coerção para além do estritamente necessário (…)”, e que “Os meios coercivos só poderão ser utilizados nos seguintes casos: Para repelir uma agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos, em defesa própria ou de terceiros; Para vencer resistência à execução de um serviço no exercício das suas funções, depois de ter feito aos resistentes intimação formal de obediência e esgotados que tenham sido quaisquer outros meios para o conseguir” ;
O Código Deontológico do Serviço Policial, Policial, aplicável aos militares da GNR e ao pessoal da PSP no âmbito do exercício das funções policiais
(Resolução do Conselho de Ministros n° 37/2002, DR. IS, B, de 28.2) que, depois de enunciar como princípios fundamentais, além de outros, o respeito dos direitos humanos (artigo 2°) e de prescrever que "No cumprimento do seu dever, os membros das forças de segurança promovem, respeitam e protegem a dignidade humana, o direito à vida, à liberdade, à segurança e demais direitos fundamentais
(...)", sobre o uso da força dispõe ainda que "Os
membros das forças de segurança usam os meios coercivos adequados à reposição da legalidade e da ordem, segurança e tranquilidade públicas só quando estes se mostrem indispensáveis, necessários e suficientes ao bom cumprimento das suas funções e estejam esgotados os meios de persuasão e de diálogo" ;
e que "Os membros das forças de segurança evitam recorrer ao
uso da força, salvo nos casos expressamente previstos na lei, quando este se revele legitimo, estritamente necessário, adequado e proporcional ao objectivo visado" ;
- O Regime Jurídico do Recurso a Arma de Fogo em Acção Policial (D.L. n° 457/99, de 5.11 ). Podemos, pois, dizer que, constituindo a garantia dos direitos fundamentais um dos pilares do Estado de Direito, o seu exercício tem de suportar, por vezes, restrições em nome de um interesse público ou geral. Mas, ao mesmo tempo que é função da Polícia defender os direitos dos cidadãos, estes constituem um limite da actividade da Polícia. Com efeito, quotidianamente a Polícia é chamada a intervir para prevenir danos sociais ou para impedir a respectiva generalização, através de actuações susceptíveis de provocar restrições aos direitos fundamentais. Contudo, a prossecução do interesse público não pode fundamentar o sacrifício abusivo dos direitos dos cidadãos. Num Estado que elege como principio fundamental a dignidade da pessoa humana, que consagra constitucionalmente como direitos fundamentais os direitos à vida e à integridade física e que impõe o respeito pelo conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias (artigos 1 °, 24°, 25° e 18° da CRP), impõe-se que, no exercício das suas funções, os agentes actuem com
respeito pelos mesmos, devendo a intervenção policial pautar-se pelo estritamente necessário à reposição da legalidade violada e na ponderação dos diversos interesses em jogo adoptem as medidas que se mostrem face às circunstâncias, adequadas, necessárias e proporcionais. E, se os princípios enunciados constituem um importantíssimo filtro de aferição da legalidade da actividade da Polícia em geral, por maioria de razão assumem especial significado quando está em causa o uso da força e de meios coercivos. O princípio da proporcionalidade, ou da proibição de excesso, aplicado à actividade de Polícia - limitativo das liberdades individuais - visa impedir abusos ou excessos por parte das autoridades que a exercem, e garantir um justo equilíbrio entre os interesses individuais e o interesse público que ao Estado compete proteger, com a salvaguarda dos direitos fundamentais. Donde, os agentes de autoridade, no exercício da actividade de Polícia, perante uma situação concreta terão sempre de avaliar se ocorre uma relação equilibrada entre a vantagem do fim que visam prosseguir e o custo da medida a adoptar para o atingir. A medida restritiva deve revelar-se meio adequado à prossecução do fim visado por lei, ou seja tem de ser idónea para o alcançar. Este é o princípio da adequação. adequação. Por outro lado, deve demonstrar-se a sua necessidade para alcançar o resultado pretendido. Será necessária quando o fim visado não puder ser atingido por meio menos lesivo. Este é o princípio da necessidade ou da exigibilidade. exigibilidade. Finalmente, é necessário que do confronto entre o interesse prosseguido e o interesse sacrificado, resulte ser este aceitável em função do objectivo a atingir. Este é o princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Importa, pois, reter: - A actividade de Polícia só pode desenvolver-se quando estão em causa tarefas de Polícia, contribuindo as respectivas atribuições - defesa da legalidade democrática, garantia da segurança interna e defesa dos direitos
dos cidadãos - de forma decisiva para a delimitação da sua esfera jurídica, estando-lhe vedado manifestar vontades que não tenham por objectivo a prossecução dos fins que a lei determina; - A Polícia tem de pautar a sua actuação pelo princípio da proporcionalidade ou de proibição de excesso - que vincula toda a Administração Pública -, nas suas três dimensões: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; - O uso da força reveste natureza residual e subsidiária, e surge sempre na perspectiva de um dever que incumbe ao Estado e aos seus órgãos; - A Lei não contém, porque não pode conter, nem uma enumeração completa e total das situações concretas em que a Polícia pode recorrer ao uso da força, nem dos meios coercivos de que em cada caso se pode socorrer; É, quanto ao recurso à arma de fogo, que se assiste compreensivelmente, por parte do legislador, a uma maior clarificação e pormenorização dos respectivos pressupostos. Trata-se de um meio coercivo extremo, cujo uso exige um aprofundado conhecimento do quadro legal, formação permanente e treino. Passo por isso a dedicar-lhe especial atenção, reproduzindo em parte uma comunicação que num passado recente proferi sobre o tema. III - O regime jurídico do recurso a arma de fogo em acção policial Da análise do regime jurídico instituído pelo D.L. n° 457/99, resulta claro o acolhimento das recomendações constantes dos textos internacionais, alguns já atrás mencionados, com particular atenção para os Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei.
O diploma, ao clarificar os pressupostos do recurso a arma de fogo e ao definir as situações em que tal pode ocorrer, concretizando o uso possível, representou um avanço importante, ou se se quiser uma garantia acrescida, para os cidadãos numa área especialmente sensível. Com efeito, comparando os regimes anteriormente em vigor com o sistema instituído pelo D.L. 457/99, conclui-se que este: a) trouxe maior concretização dos pressupostos que possibilitam o recurso a arma de fogo; b) estabeleceu com clareza duas categorias de utilização da arma, sendo uma muito mais exigente do que a outra; c) restringiu de forma acentuada a possibilidade de se recorrer à arma contra pessoas, fixando de forma taxativa as condições capazes de legitimar esse uso e deixando expressa a necessidade de respeitar e preservar a vida humana até ao extremo possível. Este regime restritivo veio a ser posteriormente reforçado no Código Deontológico do Serviço Policial, Policial, no qual se vinca a natureza extrema de que reveste a medida de recurso a arma de fogo. IV - Algumas situações exemplificativas Com recurso a situações conhecidas em virtude do cargo exercido, passamos a referir exemplos-tipo em que, com maior frequência, se tem verificado uso indevido de arma de fogo. A - Disparos acidentais ou involuntários Deparamo-nos nesta caso com ocorrências que se traduzem na perseguição apeada de suspeitos da prática de crimes de natureza diversa que, ao serem surpreendidos pelos agentes de autoridade em situação indiciadora de actividade delituosa, encetaram fuga. No decurso da perseguição os agentes empunharam arma de fogo destravada e em
condições de disparar e, quando alcançaram o suspeito, por vezes porque este resistiu, originando em consequência reacções mais bruscas, desequilíbrios ou mesmo quedas, dispararam involuntariamente a arma, atingindo-o em alguns casos mortalmente. Situações houve em que, face à resistência oferecida pelo suspeito no momento da detenção, a arma empunhada nas condições acima descritas (destravada e preparada para fazer fogo) serviu para desferir pancadas na nuca, sendo concomitantemente de forma inadvertida premido o gatilho, provocando disparo quase sempre fatal. Em algumas destas situações não tem sido questionado o acto inicial de empunhamento da arma de fogo, considerado adequado pelo risco, pela natureza da operação e pelas concretas circunstâncias da acção. Mas, já se tem posto em causa a correcção da conduta do agente, na medida em que, por exemplo, sendo conhecedor das características do terreno (acidentado e com visibilidade diminuta), sem que existisse qualquer indicio de reacção por parte do perseguido, ao encetar a perseguição empunhando arma com bala na câmara e com patilha de segurança destravada, veio a dar causa por adopção de procedimento incorrecto (transporte da arma empunhada da forma descrita durante a perseguição) a disparo involuntário que por vezes se revelou fatal. Nestas ocorrências os agentes de autoridade, por omitirem deveres de cuidado a que estavam obrigados, traduzidos nos procedimentos a adoptar no transporte e utilização de armas de fogo oportunamente ministrados, acabaram por fazer uso indevido das mesmas. Por estar relacionada com o núcleo de situações acabado de descrever, refiro uma questão levantada pelas forças de segurança relativa à sua concreta possibilidade de actuação, no sentido de se esclarecer quais as acções materiais susceptíveis de integrar a expressão "recurso a arma de fogo" utilizada de forma repetida no D.L. n° 457/99. Da leitura dos trabalhos preparatórios do diploma resulta que a expressão "recurso a arma de fogo" foi escolhida em alternativa a "uso de arma de fogo" por o legislador a ter considerado mais impressiva, no sentido de acentuar a ideia de excepcional idade subjacente a todo o articulado. Se, conjuntamente com este aspecto, atentarmos no conteúdo do diploma, designadamente nos artigos 3°, n° 3 e 4, 4° e 7° podemos afirmar
que, para o efeito da concreta acção, a expressão "recurso" equivale à de "uso" , o que não elimina a questão da identificação do tipo de conduta susceptível de integrar o "uso" . Deixando de lado as situações bem mais restritivas de uso de arma de fogo directamente contra pessoas, diremos que verificados os pressupostos do n° 1 do artigo 3° (vulgarmente designado como uso de arma de fogo contra coisas) resulta legitimada, quer a advertência do uso com tiro para o ar (artigo 4°, n° 2), quer o disparo contra coisas e, por maioria de razão, o mero empunhamento da arma. A questão que se pode colocar é a de saber se, não ocorrendo qualquer dos pressupostos que legitima o uso de arma de fogo, é permitido o respectivo empunhamento, designadamente com o objectivo de intimidar. Com efeito, a redacção do n° 3 do artigo 3°, ao dizer que "Sempre que não seja permitido o recurso a arma de fogo, ninguém pode ser objecto de intimidação através de tiro de arma de fogo" , aumenta a dúvida.
Contudo, parece resultar dos trabalhos preparatórios a intenção de vedar a intimidação também através do mero empunhamento da arma de fogo, nos casos em que não se mostrem reunidos os pressupostos do uso efectivo da mesma. Pese, embora, a letra da lei não reflectir tal motivação, parece-nos que, constituindo o empunhamento da arma só por si uma forma de coacção, fora dos casos em que se verificam os pressupostos referidos no artigo 3° viabilizadores do recurso a arma de fogo, o acto de empunhamento há-de estar sempre condicionado pelos princípios gerais da necessidade, adequação e proporcionalidade inerentes às medidas de Polícia. B - Disparos dirigidos a suspeito em fuga apeada Neste segundo grupo, ainda relativo a situações de perseguição apeada, mas num quadro diferente, integram-se casos já não de disparos acidentais, mas voluntários. Deparamo-nos aqui com ocorrências em que o suspeito da prática de um crime é interceptado pelo agente, oferece resistência e consegue pôr-se em
fuga, sendo perseguido. Durante a perseguição são efectuados disparos para o ar que não produzem o efeito pretendido, na sequência dos quais vem a ser realizados disparos na direcção do suspeito com o propósito de o imobilizar, os quais o atingem originando ferimentos ou mesmo a morte. Destacamos em termos hipotéticos uma situação já colocada por forças de segurança, por concretizar um caso deste tipo. Determinado indivíduo, ao ser surpreendido em acção de furto coloca-se em fuga com o objecto subtraído, sendo perseguido por um agente de autoridade. A este propósito, foi observado que o limite máximo abstracto de três anos de prisão correspondente ao Crime, por ser condição da legitimação do recurso a arma de fogo (artigo 3°, n° 1, alínea b), é impeditivo do respectivo uso - designadamente através de tiro para as pernas do presumível infractor em fuga - actuação que se poderia mostrar idónea à detenção e recuperação do bem. No que respeita a esta situação, pergunta-se: se fosse eliminado o requisito correspondente ao limite máximo da pena, podia o agente na situação concreta disparar para as pernas do infractor? Se os factos integrassem um furto qualificado (cuja pena ultrapassa os três anos de prisão), podia o agente actuar da forma descrita? E, caso se tratasse do presumível autor de um crime de roubo acabado de cometer, se se desse o caso de estar em fuga? O artigo 3° - o núcleo do regime jurídico instituído pelo D.L. 457/99, de 5.11 - ao estabelecer diferentes pressupostos para cada uma das intervenções que viabiliza, consoante se trate de actuação directamente contra pessoas (nº 2) ou contra coisas, (nº 1), não deixa grande margem para dúvida. Com efeito, à luz deste preceito parece inequívoco que nas circunstâncias descritas se mostra arredada a possibilidade de efectuar o disparo directamente dirigido à pessoa em fuga, qualquer que seja a pena correspondente ao crime e ainda que direccionado a zonas não vitais, já que a norma que legitima o disparo directo sobre pessoas contempla apenas três situações possíveis que tem em comum a salvaguarda de vidas humanas, o que não era manifestamente o caso. Mas, poderia perguntar-se, não tem qualquer relevância a distinção entre o tiro de imobilização e o tiro intencionalmente letal? Tem, perante um
caso em que se verifiquem os pressupostos que legitimam o recurso a arma de fogo contra pessoas, na medida em que o agente "deve esforçar-se por reduzir ao mínimo as lesões e danos e respeitar e preservar a vida humana" (artigo 2°, n° 2). Julgo não ser necessário justificar a ideia que esteve por detrás da opção legislativa ao restringir ao máximo os casos em que o recurso a arma de fogo directamente contra pessoas é admissível, o que constitui uma manifestação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental à vida, direito irrenunciável consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem. C - Disparos efectuados perante um quadro indevidamente caracterizado como de legitima defesa. Um terceiro leque de situações prende-se com ocorrências em que os agentes perante uma hipotética agressão ou perante uma agressão já consumada, reagiram fazendo uso da arma de fogo através de disparo efectuado na direcção do próprio agressor. O recurso a arma de fogo contra pessoas, respeitado o principio da proporcionalidade, reforçado no n° 2 do artigo 3° pelas palavras "desde que (...) a respectiva finalidade não possa ser alcançada através do recurso a arma de fogo, nos no s termos do n° n ° 1 (...)" (...) " (ou
seja contra as coisas), só é admissível ocorrendo uma das circunstâncias taxativamente enunciadas, a saber: para repelir agressão actual e ilícita dirigida contra o agente ou terceiros, se houver perigo iminente de morte ou de ofensa grave à integridade física; para prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas; para proceder à detenção de pessoa que represente essa ameaça e que resista à autoridade ou impedir a sua fuga (artigo 3°, n° 2, alíneas a), b) e c). Se compararmos o teor do ponto 9 dos Princípios Básicos Sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei com as normas acabadas de enunciar, constata-se que o legislador nacional adoptou, quase sem alteração, a redacção do texto internacional.
Quanto a este núcleo de situações friso (como já lhes foi transmitido), que a agressão ilícita susceptível de legitimar a acção de legitima defesa tem de ser actual (em curso ou eminente). O "emprego imediato de meios extremos contra ameaças hipotéticas ou mal desenhadas constitui abuso de autoridade" (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, tomo II (9ª edição), Coimbra 1983, p. 1159). Tem sido recorrente, em situações concretas, a alegação de actuação, a coberto de legitima defesa, em casos de disparos efectuados na direcção de uma viatura, em consequência dos quais sobreveio a morte e, ou, ofensas à integridade física quer para o condutor quer para os ocupantes, na sequência de tentativa de atropelamento dos agentes de autoridade por parte do veículo em fuga. Ora, tem-se constatado que a alegação nesse sentido encerra muitas vezes um entendimento incorrecto sobre o conceito da actualidade a que atrás aludi. Na verdade, não é possível configurar uma agressão em execução, quando os disparos direccionados ao veículo em fuga ocorrem na sequência da desobediência do condutor em deter a marcha, uma vez "transpostos" os agentes de autoridade alegadamente vítimas da tentativa de atropelamento. Donde, se exige atenção ao nível da configuração das condutas idóneas a integrar o que já pode ser considerado como acto de execução, por um lado, e como identificação do momento a partir do qual se há-de ter por cessada a agressão, por outro. D - Disparos dirigidos a coisas que vem a atingir pessoas O último grupo de casos respeita ao uso de arma de fogo em situação de desobediência, por parte do condutor à ordem de paragem, o que já tem acontecido no âmbito de puras acções de fiscalização de trânsito através de disparos efectuados na direcção do veículo em fuga, os quais, visando embora os pneus, vem a atingir o condutor ou um passageiro. Nesta matriz incluem-se ainda situações de perseguição auto de suspeitos da prática de crime, no decurso da qual, com vista a fazer deter a marcha do veículo em fuga foram realizados disparos, numa primeira fase para
o ar e posteriormente dirigidos ao veículo, em alguns casos com o resultado acima enunciado. Não cuidando da situação de disparo de arma de fogo na sequência de desobediência numa pura acção de fiscalização de trânsito - na medida em que a consideramos desprovida de suporte legal - vamo-nos deter nos casos em que o mesmo ocorre para atingir um dos objectivos enunciados nas várias alíneas do n° 1, do artigo 3°, designadamente para impedir a fuga de um suspeito, verificados os demais pressupostos. Nos trabalhos preparatórios do D.L. 457/99, a título de exemplo de uso de arma de fogo contra coisas, surge o disparo contra os rodados de um camião e não já contra os pneus de um automóvel, o que não será por acaso. Com efeito, o grau de perigosidade inerente a cada uma das situações não é, por razões óbvias, comparável. O elevado grau de risco para a vida e integridade física que os disparas dirigidos a viaturas em fuga encerra, constituirá certamente a justificação da formação ministrada às forças de segurança relativamente aos procedimentos a adoptar na abordagem das viaturas em movimento, no sentido de não ser usada arma de fogo para forçar a imobilização da viatura perseguida, salvo se do interior desta houver reacção com recurso a tais armas, "ou se, não havendo cessado o flagrante delito, se torne imperioso evitar danos maiores" , caso em que será admissível como último recurso, de preferência com munições adequadas 1. E, se o risco da ofensa dos direitos fundamentais à vida e à integridade física é grande quando o disparo é efectuado por um agente apeado, maior será quando o mesmo ocorre no âmbito de uma perseguição auto, situação em que factores aleatórios o aumentam exponencialmente. Do que acabo de referir, com base na experiência que a análise de casos concretos me tem fornecido, excluo, em princípio, a possibilidade do disparo dirigido aos pneus de uma viatura em fuga, admitindo-o em situações excepcionalíssimas, designadamente quando ocorra perigo de vida ou de
Ministério da Administração Interna (MAl), Serviço Policial. Técnicas de Intervenção Policial. Texto de Apoio A, Lisboa, Setembro 2000, p. 25.
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grave ofensa à integridade física, perigos estes a aferir com base nas circunstâncias do caso.
Falei do uso da força em geral, destaquei alguns textos internacionais e nacionais que enformam a actividade de Polícia em particular, referi os princípios a que se encontra subordinada e o meio coercivo extremo que é a arma de fogo. Não é possível numa exposição desta natureza tratar isoladamente cada um dos meios coercivos e seria impossível referir todas as circunstâncias em que deles se podem socorrer. Não irão encontrar lei que expressamente diga se neste ou naquele caso podem fazer uso da força ou de um particular meio coercivo. Só perante situações concretas poderão fazer a devida avaliação decidindo em conformidade e a plena consciência disto é extremamente importante. Mas, se de alguma forma tiver conseguido contribuir para que reflictam sobre os princípios básicos a que deve obedecer o recurso à força e aos meios coercivos, se tiver conseguido reforçar que estes se revestem natureza residual e subsidiária e que se ajustam sempre a um dever do Estado e dos seus órgãos, no exercício das respectivas atribuições, se reavivei a necessidade de terem sempre presente o principio da proporcional idade nas suas três vertentes - adequação, necessidade - exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito -, então este encontro terá tido utilidade. Agradeço a atenção com que me ouviram. Estarei ao vosso dispor para qualquer esclarecimento. Desejo-vos felicidades no futuro desempenho, ficando cientes de que eu, tal como a maioria dos cidadãos deste país, precisamos e contamos convosco.
Torres Novas, 5 de Maio de 2004