N IN H O D E COBRAS Um dos romances mais bem es critos da língua portuguesa. JOSUÉ MONTELLO Ninho de Cobras é um livro fas cinant cinante, e, e isso lhe basta basta para pren pren der a atenção do leitor do princí pio ao fim da narrativa. ANTON NTONIO IO HOHL HOHLFE FEL LDT
FICHA CATALOGRÁFICA (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) Ivo, Lêdo, 1924I93n Ninho de cobras: cobras : uma historia mal mal contada. Ri o de Janei Ja neiro ro,, Record, 1980. 167p. 21cm. "V prêmio Walmap". Bibliografia. 1. Romance brasileiro. I. Título. Títul o. 73-0353
CDD — 869.93 CDU — 869.0(81)-31
LÊDO IVO
NINHO DE COBRAS Uma históri história a mal contada
V PRÊMIO WALMAP 2ª Edição
EDITORA RECORD
Copyright © 1973, 1980 by Lêdo Ivo
Direitos desta edição reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Rua Argentina 171 — 20 921 Rio de Janeiro, RJ Impresso no Brasil
SUMÁRIO
. . . o destino geralmente geralm ente significa um processo necessário que seguirá sempre adiante, independentemente da vontade de Deus e dos homens. SANTO
AGOSTINHO
A RAPOSA
NAQUELA
MADRUGADA,
uma
raposa havia descido até o centro da cidade. Viera das matas que, mesmo à noite, guardavam nos ramos secos o calor do verão e, depois de atra vessar arbust arbu stos os ale aleij ijados, ados, se af as t ar a dos tronco tr oncoss e galhos que, às vezes, crepitavam surdamente no escuro. Perto do tabuleiro onde os norte-americanos ti nham, no início da guerra, construído o aeroporto, ela estacou, e seus olhos refratários aos sonhos e à desolação se fixaram, por um instante, nas luzes ver melhas do campo de pouso. Após um momento de espreita, escolheu a estrada mais larga e veio des cendo contra a cidade. Esgueirou-se junto à cerca de um sítio, quando um velho caminhão arquejante, que deixava escapar óleo, clareou a estrada poeiren ta, de barro batido, e logo continuou o seu caminho, atravessando avenidas de bangalôs engolfados em ja j a r d i n s s o mbr mb r i o s e r u a s d e s e r t a s . Só a s l uzes uz es dos postes brilhavam. A queda de um oiti ocupou, por um instante, o silêncio da noite, como se o fragmento de uma estrela tivesse caído sobre a terra. E uma lacraia se refugiou num monte de madeiras podres, diluiu-se no negror do cascalho. A raposa atingiu a primeira rua de paralelepípe dos, cruzou obliquamente uma linha de bonde, des ceu a Ladeira dos Martírios, e começou a vaguear
pelas ruas estreitas do centro da cidade. Na escuri dão, parecia um cachorro vadio. Mas desde o mo mento em que surgira num atalho das matas rígidas até aquele em que atingira a Rua do Comércio, ne nhum olhar humano a divisara ou se demorara nela, nem mesmo para confundi-la com um pulguento cão sem dono. E não se saberia dizer se ela revelava es panto, astúcia ou curiosidade. As casas dormiam, e pareciam ainda mais acachapadas, mesmo as que possuíam mais de um pavi mento. Os homens e mulheres dormiam. Cheirando a suor, a esperma, ao açúcar que há séculos es corria da paisagem, a uma secreção qualquer, eles dormiam na noite vidrada, e sonhavam e se agita vam, enquanto morcegos balançavam como lâmpa das nos caibros dos telhados e mosquitos zuniam, e ratos e baratas se movimentavam desembaraçada mente na escuridão. E, fora, na rua sem aragem, embora não esti vesse longe das ondas, a raposa espreitava, ia e vinha. Como se o esponjoso cheiro do mar a tivesse atraído, continuou descendo ruas até atingir a beira da água. Pela primeira vez suas patas conheceram a doçura da areia da praia. Aproximou-se do oceano, deixou que um rasti lho de onda lhe umedecesse as patas, sem enxergar a brancura azulada das nuvens, e sentiu nas unhas secas o estonteante refrigério da água viva. Curvan do o focinho, estendeu para as águas a sua vibrante língua sedenta, mas logo a retirou, num movimento de vertigem e náusea. A detonação das vagas parecia conturbá-la. Afastou-se do mar e seguiu pela praia até os tra piches negros que, cheirando a açúcar mesmo à noite — quando todos os armazéns estavam fechados e não havia nenhum trabalho de estiva — avançavam 10
para o mar, apoiados em estacas verdenegras que, presumivelmente, jamais apodreceriam e haveriam de entrar para a eternidade com a sua imemorial solid solidez ez.. (Per (P er to , debaixo deba ixo de u ma daquel as cas as as,, est a vam sepultados os marinheiros ingleses. Havia mui tos anos, um navio ancorara no porto de Jaraguá, com peste a bordo. Os cadáveres dos marujos mortos de febre amarela tinham sido desembarcados e en terrados na praia que, com os tempos, se converteu numa avenida, suprimindo-lhes os túmulos. E, em certas noites, quando há navios ingleses ancorados no porto, as almas desses marinheiros vagueiam pelas ruas desertas de Jaraguá, procurando barquei ros que os levem para bordo e os façam repousar sob a mesma bandeira que os cobria nos dias em que, embarcando no navio perdido, eles sonhavam com um verde trópico de coqueiros, papagaios, canários e mulheres mulhe res more na s. ) A raposa rapo sa deteve-se j un t o a uma barcaça, possivelmente farejou o casco que, dias antes, tinha sido pintado de novo, e cheirava a alca trão. Um caranguejo roçou nela a sua pata dianteira da esquerda. Momentos depois ela parava junto aos degraus da Associação Comercial, contemplava as colunas bran cas do edifício que se projetava na negridão da noite, como uma sombra leitosa e virginal. Chegou a subir dois ou três degraus. A alguns metros dali, no escri tório da Western, um telegrafista estava acordado, e sua vigília era doce como o próprio sono e se man tinha levemente no ar amarelecido de uma sala, en quanto ele, o olhar fixo na ilustração de uma folhi nha, esperava os sinais fortuitos que, através dos cabos submarinos, atravessavam a noite granulosa das águas, onde nenhuma estrela fulgia. Num movimento rápido, a raposa mudou de dire ção, e veio pela rua que cheirava a açúcar e a cebola. 11
(Atrás das portas cerradas das fachadas leprosas, que o vento do mar fora ulcerando, jaziam sacos de açúcar de bangüê e de cebola, fardos de algodão, aguardente, milho, coco, fibras têxteis.) Apesar da proximidade do mar tumescente que projetava nas ruas próximas o odor de evasão e ma resia — a desnorteante mistura de viagem e de po dridões que, situando-se numa linha indecisa e flu tuante, tanto podia ser de lixo acumulado como o fedor de poliédricas e gosmentas dejeções mari nhas — apesar dessa vizinhança de sal e navio, musgo e marisco, as ruas possuíam uma pesada e mortiça qualificação terrestre. Era como se ali, na queles sobrados de gradis ferrugentos e nas calçadas tortas e em declive, o homem se tivesse empenhado em construir o seu primeiro e mais resistente baluar te contra o mar e a evasão, levantando um monu mento que, mesmo à noite, cheirava a mercancia e a lucro. E as janelas fechadas escondiam o amor e o ódio, a expiação e o terror, o adultério e a sodo mia. E, dia e noite, os relógios marcavam o fluir do tédio e da espera insensata. A raposa parou mais uma vez, reconhecendo no ar um vago e vaporoso cheiro de couro, depois mu dado no de melaço. Talvez se estivesse lembrando, na quele momento, de certa hora de sua vida em que lhe entrara pelas narinas o odor dos rios perenes que fertilizavam as várzeas do lugar onde ela nascera. Mas nunca poderia dizer se esse instante em que herdara o sentimento de seu ambiente natal trans correra de dia, sob o sol que fazia com que as car naubeiras fremissem, ou se fora à noite, quando a terra bebe a claridade das estrelas. Também não lhe seria possível discernir se, naquele momento remoto, ela morava na Zona da Mata, onde os canaviais ha viam crescido no lugar das imemoriais florestas var12
ridas a fogo, e os caetés perseguidos pelos coloniza dores se haviam esvaído, ou se esse minuto já de funto se diluíra de si mesmo em outra paisagem, entre mandacarus e coroas-de-frade. Agora, sentia em seu dorso a carícia do vento do mar, e todos os seus instantes antigos se confundiam e se disper savam. Numa mescla de astúcia e desnorteamento, a ra posa voltou ao centro da cidade, entrando por outros becos. E decerto esse ziguezagueante pervagar num horizonte fuscalvo lhe deu uma visão geral de Ma ceió, apesar de não ter ido até as margens da lagoa e nem mesmo ter chegado às proximidades dos dois cemitérios. Ao descer a ladeira, depois dos sítios, das casas ajardinadas e dos bangalôs, a raposa vira, do outro lado da igreja, o Palácio do Governo. O cartaz dilacerado do cinema Rex (era o antigo cinema Flo riano onde, há muitos anos, comerciantes, advoga dos, médicos, funcionários estaduais comidos de dí vidas, fazendeiros e assassinos riam, após o jantar, assistindo às comédias de Carlitos e vendo as ba nhistas de Mack Sennett sumirem-se, evanescentes, nas dunas de um mar quase sépia, quando não se deslumbravam com o espetáculo de um campo de neve todavia escurecido), a tabuleta de um cartório, o trem da Great Western já parado na estação, à es pera dos passageiros que ao amanhecer partiriam para o Recife, o quartel da polícia, o Sovaco da Ove lha, a cadeia, o Hospital de São Vicente, o Teatro Deodoro, as estátuas dos marechais Deodoro da Fon seca e Floriano Peixoto — que incutiam nos alagoa nos o sentimento glorioso de que o País lhes devia não só a proclamação como a consolidação da Repú blic bl icaa — a R u a da L a m a (onde as puta pu tass dor miam mia m finalmente, em quartos que cheiravam a loção), tudo isto ia desfilando pelos olhos da raposa, e era admis13
sível que ela sentisse, na área mais intelectual e des lumbrada de seu instinto, que estava percorrendo uma cidade, a primeira e única cidade que haveria de conhecer em toda a sua vida. No quartel da polícia, uma sentinela, que boce j a v a d e s ono, on o, viu vi u a r a p o s a mov mo v e ndo nd o - s e a o l o n g e , m a s em nenhum instante lhe passou pela cabeça que se tratasse de outro bicho que não fosse um cão vadio. No Hospital de São Vicente algumas janelas esta vam iluminadas. Uma se abriu exatamente no mo mento em que ela atingia a calçada oposta, mas a freira que a descerrou para espreitar por um momen to a hirta desolação da noite, paralela à sua vigília, não viu o animal que se esgueirava em direção à esquina. A freira sofria de insônia. De madrugada, abrira por uns instantes a sua sua janela (como costu ma v a dizer dizer par a si me s ma ) e ficar fi caraa a cont co nt emp la r aquela escuridão lavada e contudo opressiva que an tecipava a aurora. A brisa vinda do mar próximo, que lhe refrescava o rosto, parecia libertá-la de tudo o que, nela, era aceitação e espera, renúncia e perple xidade — vazio pessoal que se enchia, diariamente, de rostos lívidos, humilhados pelas doenças. Minutos depois, a raposa sentia nas narinas um cheiro de sangue e carne crua. Estava atravessando exatamente o largo diante do qual se erguia o Mer cado Municipal, que cheirava a frutas e matadouro. De repente, porém, esse odor nauseante era substi tuído por um longínquo mas discernível cheiro de oceano. E, de muito longe, dos recifes de areias e co rais, dos mangues e maceiós onde os goiamuns dor miam, dos coqueirais surrados pertinazmente pela ventania, dos canaviais que avançavam até a beira do mar, das várzeas cobertas de tiririca, vinha um aroma que, pelas frestas dos telhados, penetrava nas 14
casas e se filtrava no sono das criaturas. E ao sono de cada um, à fração inconfessável de sonho, acres cia-se esse aroma da noite que agonizava. Era talvez um perfume de cajueiro florido, ou de folha de ouricuri batida ritmadamente pela brisa. E esse cheiro, vindo de todos os lugares, dos estuários dos rios, dos tabuleiros e barradas, do fundo dos recôncavos, das dunas e rios, das praias nuas, dos campos brejados, dos vales e lagoas, misturava-se ao sono dos homens, ao que neles era mais especificamente humano, ter restre e vital, como a ambição, a mendacidade, o adultério, ou certa crueldade mais ostensiva duran te o mormaço, como se a nutrisse a cega luminosi dade do dia mole e pleno. A raposa, que se recordava confusamente de um rio jamais seco, observava que a escuridão se ia di luindo. Um jasmineiro fremia, escondido por um muro. Bananeiras rufiavam. Vinha dos quintais o amiudar dos galos. Galos cantavam. Tornavam-se mais claras as fachadas das casas, que os aguaceiros lavavam em vão. Até mesmo o muro do necrotério, onde só havia um cadáver — o de um carroceiro que morrera afogado e o mar vomitara, monstruosamen te redondo e inchado de uma turbilhonante vida de água — prometia uma claridade radiosa, assim que a aurora viesse. Cães latiam. E ela espreitava, e era como se sondasse menos a perspectiva que se desdo brava baçamente diante de seus olhos do que a subs tância espessa do próprio presente. Seus olhos cin zentos, vivamente animais, que não tinham o dom da lembrança, mas apenas o do reconhecimento, não se recordavam do forno para o fabrico de cal, que vira certo amanhecer perto da casa-grande de um enge nho, nem da raiz de mandioca encontrada ocasional mente num chão calcário e farejada com indiferença. 15
De nada se lembrava — e diante dela estava o ins tante, hialino como um quartzo, matéria que talvez tivesse o poder de ferir-lhe as patas e a cauda. Agachou-se, à maneira dos cães, para urinar, junto a um muro onde, na noite anterior, fora garatujado um protesto: Abaixo o Estado Novo. Abaixo a ditadura. Naquele átimo de tempo em que o mijo da raposa borrifava uma nesga da parede da casa e escorria pela calçada, o professor Serafim Gonçalves não so nhava, na larguíssima cama que lhe abrigava o corpo tornado ainda mais gordo pelo sono. Apenas dormia, a sono alto, roncando, e era como se não existissem nem a sua gordura nem os recursos extraordinários que há anos estavam no Supremo Tribunal Federal, nem o rosto de seus clientes e alunos. Ao seu lado, magra, fina, o corpo acusando-se em ossos e mús culos, sua mulher ressonava, abraçada ao travesseiro de macela. Ela sonhava, mas era uma informe gara tuja de sonho, que jamais poderia alçar-se à catego ria de uma narrativa. Com a bexiga aliviada, a raposa prosseguia em seu vaguear através da cidade escura e deserta. O céu se envermelhava, os contornos das janelas e portas e das varandas fuligentas se faziam mais nítidos nas fachadas esborcinadas pelas chuvas. Calendários toscos do tempo, as coisas proclama vam, na semi-escuridão, o século, o ano, o dia. Nos cartórios fechados jaziam as histórias de papel da cidade: nascimentos, inventários, casórios, toda a empoeirada e infindável crônica de milhares de des tinos sedentários que o tempo esvaziara, fieiras de nomes sem rumor e significação, sem rostos e sem vozes como as pedras das ruas e os azulejos des pregados das platibandas que as intempéries iam puindo. E da polpa de um oiti dilacerado pela queda 16
no pátio do colégio evolava-se um perfume penetran te, rival da infância. A raposa, que tinha do fluir das horas apenas uma noção obscura, apesar de cadenciada pelo inin terrupto suceder-se dos dias e noites, sabia que a aurora estava rompendo. O recrudescimento dos can tos dos galos e as manchas cor de lavareda que listra vam o horizonte e avançavam pelas paredes decrépi tas anunciavam o arraiar da manhã. Sentindo sede, parou e bebeu a água suja de uma poça que refletia o palor de um céu de vidro. Tendo contornado o muro de um colégio, subiu a rua, do lado esquerdo, contrá rio ao muro que guarnecia o jardim do Palácio do Governo. E, no silêncio, o galo cantou. Era um galo de plu magem dourada, resplandecente, e sua crista rubra rivalizava com a vermelhidão da aurora. Magnífico, exultante, cantou, jubilosamente, no esplendor da manhã nascente, acordando o interventor e os ma gistrados, as putas e as beatas, proclamando a glória do dia, enquanto suas esporas aguilhoavam a terra inteira. Foi então que, no posto policial, um guarda des cobriu a raposa com os seus olhos bugalhados e a reconheceu como se ela fosse a preciosa e jamais con seguida relíquia de sua infância. Chamou por um companheiro e a apontou. O outro, limpando com os dedos a remela dos olhos, ainda duvidou. Mas era uma raposa! De repente o animal sentiu-se ameaça do e perseguido. Caíra numa armadilha, às suas costas e à sua frente se levantavam paliçadas. Como todos os animais, não acreditava em sua própria morte; julgava-se imortal, não obstante admitir a sua imortalidade com a morna indiferença dos seres sem metafísica. O certo, porém, é que estava acossado, 17
na cidade que despertava pouco a pouco, e em cujo silêncio nativo se incrustavam os rumores mais di versos (e águas ág uas fervia fer viam m em chale cha leir iras as ou es esco corr rr ia iam m de torneiras recém-abertas, e pães saíam de fornos crepitantes, e a freira que sofria de insônia se aproxi mou da cama em que agonizava uma velha de olhos de sapiranga, e a faca ensangüentada de um açou gueiro rasgava o que fora outrora o peito de um boi, e um padre, sentado à beira de uma cama, amarrava os cadarços dos sapatos, e uma mulata de olhos ver des, na pensão da Dina, tinha o seu sono quebrado pelos apitos de um navio). Era a manhã que raiava, tornando o céu momentaneamente lilás e demasiado alto para ouvir os gritos de alguns homens que per seguiam uma raposa. E esta, com os seus olhos cin zentos e uma elasticidade que provinha de seus an cestrais habituados a perseguições bem mais tenazes e cruentas, era assenhoreada confusamente pela no ção de que se achava entre a existência e o nada. como alguns minutos antes se sentira situada entre a sede e a água. Depois, tornou-se mais imperiosa a sua convicção do perigo. Homens se aproximavam dela, grotescos como espantalhos, as beiçarias aber tas num sinal de impiedosa alegria, portando instru mentos mortais que haveriam de golpeá-la. E, num fiapo de tempo, bem menor do que aquele em que um estilhaço de estrela resvala no céu escuro e cego, a raposa conheceu a morte, algo atordoador e fulgente que só poderia ser a morte, caso esta exis tisse em toda a sua absurda plenitude e dura magni ficência, e não fosse apenas uma ficção ou um ponto de referência dos vivos deixados repentinamente de amar e odiar, demitidos de súbito de sua grandeza e miséria. Era a morte que, incandescente e perversa, a alcançava, alterando a sua inconfundível beleza 18
animal, tumultuando-lhe o sangue, destruindo a sua ardente harmonia de movimentos, tornando vítrea a sua visão da manhã cristalina e fantasmagórica. Desfigurada pelos golpes que os homens lhe ha viam vibrado, ela ficou jazendo durante mais de uma hora sobre as pedras da rua. Era um montão de car nes e pêlos informes e ensangüentados, e em torno dela se revezava um círculo de curiosos, cambiando os comentários mais variados. Quando o dia já cla reava por completo, uma carroça de lixo parou perto do ajuntamento, e o cadáver da raposa foi jogado entre os monturos.
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o PROFESSOR
— U M A RAPOSA em pleno pl eno co
ração da cidade! E ainda dizem que Maceió é um lugar civilizado — comentou o professor Serafim Gonçalves, à porta do Bar Colombo, após afastar com um gesto um pedidor de esmolas que usava um cha péu de folha de ouricuri. Embora se dissesse habitualmente que o profes sor Serafim Gonçalves era o advogado mais gordo de Alagoas — como asseguravam alguns, estendendo a sua gordura a todo o Estado, mas não deixando de limitá-la ao ofício exercido — na verdade ele era o homem mais gordo de Alagoas. Era admissível que, dez ou vinte anos antes, hou vesse algum cidadão mais gordo, advogado ou mé dico, senhor de engenho ou comerciante, mas esse presumível outro desaparecera, sem deixar sequer a lembrança de seu nome ou alguns dados particulares sobre a sua gordura. E o professor Serafim Gonçal ves se firmara, perante seus contemporâneos, como o advogado mais gordo de Maceió — maneira restri tiva de dizer que ele era o homem mais gordo do Estado. Ao sair da Faculdade de Direito do Recife, não concebia que iria tornar-se tão gordo, apesar de sua família, que ele sustentava orgulhosamente ter san gue dos invasores holandeses, haver produzido du rante gerações alguns homens altos, vigorosos e mes mo gordos (o que, indubitavelmente, se devia aos 21
soldados que o conde Maurício de Nassau comandava naqueles dias em que sonhava plantar no Nordeste um grande império). A esses antepassados batavos, atribuía o fato de possuir olhos de um castanho bem claro, quase cor de mel, e também a circunstância de seus cabelos serem também castanhos, com algumas mechas que convizinhavam com o louro. O professo professorr Seraf Ser af im Gonçal ves senti a-se, a-s e, assi a ssim, m, alto e branco, numa terra de homens morenos, acaboclados e mulatos, sem falar nos pardavascos e negros. Era gordo, alto e claro — três coisas que o envaideciam. Naquela noite de fim de ano em que, ostentando um anel de grau, tipo chuveiro, e envergando um sujíssimo guarda-pó que, pela manhã, fora pulcro e branco, saltara do trem da Great Western e rece bera, na estação, os beijos e abraços de seus pais e irmãos e os parabéns de alguns amigos que tinham ido esperá-lo, o professor Serafim Gonçalves não era ainda tão gordo, nem pensava em sê-lo algum dia. Ao voltar para Maceió — que não era a sua cidade natal, porque nascera em Penedo, mas não deixava de ser, inegavelmente, a sua sua cidade, a que lhe seria dado conquistar através dos anos — trazia a pri meira e grande decisão de sua vida: candidatar-se a deputado estadual na próxima legislatura, abrindo assim caminho para uma carreira política que não esperava terminar na Câmara Federal, nem mesmo no Se nado na do (onde t i nh a a ce cert rt eza de se sent ntar ar -se -s e al gum dia), mas no Palácio dos Martírios, como governador do Estado. Pois era isto que queria ser: gover nador do Estado de Alagoas. Naturalmente, já havia estabelecido uma série de manobras para alcançar esse objetivo, que não considerava propriamente uma ambição, mas um direito, tendo em vista as suas habilitações particulares. 22
Alto, gordo, vermelhaço, o ventre glorioso, sen tia-se amplamente credenciado para representar, do ponto de vista físico, o homem alagoano — um ho mem forte, não franzino ou opilado. E, do ponto de vista intelectual, julgava-se, também, profusamente habilitado para desempenhar papel tão considerável na vida pública. Além de seus conhecimentos jurí dicos, que haveriam de fazer dele um dos advogados mais respeitados de Alagoas, possuía algumas tintas literárias. Numa revista estudantil do Recife, escre vera dois artigos, um sobre o Barão de Penedo — essa glória alagoana que terminara sendo embai xador do Brasil em Londres e conversando amistosa me nt e com a r a i n ha Vit óri a (?) — e out ro sobre o poeta alagoano Guimarães Passos, cujos restos mortais jaziam num cemitério parisiense. Durante os cinco anos em que estudara no Recife, conhecera jo j o r n a l i s t a s e e s c r i t o r e s e u m a t a r d e t o m a r a c e r v e j a num grupo em que se dissertava sobre a literatura inglesa. Tinha, portanto, traquejo intelectual, e não era sem razão que, algumas vezes, em palestra com os colegas e amigos à porta do bar do Cupertino, asseverava: "Uma vez, conversando com Gilberto Freyre, ele me disse que a nossa sociedade patriar cal..." cal.. ." E bast ba st ava respi re spi ngar um a opinião opiniã o de qual quer obra do mestre para dar aos circunstantes a respeitosa veracidade científica de que eles careciam. O professor Serafim Gonçalves, relembrando esses anos em que convivera com professores e estudantes — o que o levava a comprar alguns livros e ler revis tas e jornais — era salteado pela certeza de que essas convivências lhe tinham garantido certo pe cúlio cultural para ser utilizado a vida inteira. E, como desejasse ser um político de lastro intelec tual, projetava escrever um livro, que a Casa Rama lho decerto editaria, se é que não seria melhor 23
fazer-se imprimir por alguma editora do Sul, com prefácio de Gilberto Freyre, que naturalmente não se negaria. Em princípio, estabelecera que esse livro — umas trezentas páginas de prosa séria e forte! — seria sobre a colonização holandesa em Alagoas. Sentia-se um pouco holandês — na cor da pele, nos olhos cor de mel, nos bastos cabelos castanhos, tirantes a louro — e desconfiava que, em si mesmo, no mais íntimo de sua natureza, haveria de encon trar certa obscura cumplicidade, que o levaria a pro duzir com razoável facilidade o livro sonhado. Num livro sobre o Barão de Penedo que também projetara escrever, cifrava novas esperanças de notoriedade e estimação pública, mas esbarrava na dificuldade de só no Rio, no Itamarati, encontrar-se a documenta ção referente a sua vida diplomática, sem falar nas achegas que estariam na Embaixada do Brasil em Londres. Além do mais, faltava à existência do Barão de Penedo o elemento holandês do primeiro assunto. Com esse livro sobre a penetração dos batavos em Alagoas — penetração essa que produzira a sua pele sangüínea, os seus olhos cor de mel e seus cabelos quase louros, e que haveria de consagrá-lo como um prosador de penacho — o professor Serafim Gonçal ves admitia que seria eleito, sem dificuldades, tanto para o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (e, secretamente, esperava ser recebido pelo próprio Orlando Araújo, seu presidente), como para a Aca demia Alagoana de Letras. Eram os mais altos ce náculos do Estado, um no plano da historiografia e o outro no das belas-letras. O professo professorr Se Sera ra fi m Gonçalves Gonça lves r ec econh onh ec ecia ia que, nele, coabitavam essas duas direções da inteligência. E estava ele recém-formado e já com várias questões no foro, pensando em todas essas providências indis24
pensáveis à sua ascensão, quando Getúlio Vargas fechou o Congresso e transformou os governadores estaduais em interventores. Nas conversas com os amigos, apoiou cautelosamente o golpe de Estado, mas foi para casa desapontado. Com a Assembléia Legislativa fechada, não poderia candidatar-se a deputado estadual. Surgia, assim, uma barreira aos seus sonhos. O aconselhável seria cuidar de outros pontos de seu plano, enquanto não fossem restau radas as liberdades democráticas. Dormiu decidido a começar no dia seguinte as pesquisas sobre a in fluência holandesa. Pensou em passar algumas sema nas em Penedo: sua cidade natal fora a fronteira daquela Nova Holanda sonhada por criaturas litorâ neas, que amavam viver junto às águas e aos jardins. Projetou viagens a Porto Calvo, Porto de Pedras e Passo de Camaragibe. Decidiu-se a passar algumas manhãs na biblioteca do Instituto Histórico, folhean do livros velhos e documentos roídos pelas traças. Mas, no dia seguinte, os clientes começaram a im portuná-lo logo cedo, e não teve tempo de cuidar disso. Os dias subseqüentes o mantiveram ocupado, prin pr inci ci pal mente men te o cas o de um desquite (motivad (mot ivado o pelo fato de uma das damas mais puras e religiosas da sociedade alagoana ter pegado uma gonorréia que o marido — um devasso! — trouxera dos bordéis) e um recurso a ser encaminhado ao Supremo. Meses depois, o professor Serafim Gonçalves estava conven cido de que o novo regime apenas adiava a realização de suas ambições. Podia aproveitar o tempo advo gando e ganhando dinheiro. E foi o que fez, com o maior despejo. E, quanto mais advogava, mais engor dava. As suas banhas se desdobravam, nem todas evi dentemente flácidas, algumas surgindo como impe riosa expressão de fartura e saúde. E foi ficando tão 25
gordo que, anos depois, já era considerado o advoga do mais gordo de Maceió — o que equivalia a assegu rar que era o homem mais gordo do Estado, pois ne nhum outro se lhe equiparava. E a gordura, judiciosa e triunfante, lhe trouxe uma consideração que, geral mente, se nega aos magros, por mais notáveis que estes sejam. Ao passar pela Rua do Comércio, o ventre bojudo cativo do jaquetão de linho branco, e carre gando numa gorda pasta as provas renovadas de seu triunfo, tinha a sensação de que muitos olhos o se guiam, invejosos ou admirativos, ou apenas olhos obscuros e remelentos dos que vêem a glória ou a fortuna acumular-se, caprichosa ou inexplicavelmen te, aos pés de certos mortais. E não era apenas o físi co imponente que, destacando-o de toda aquela gentarada confundível e mesquinha, lhe granjeava res peito. peit o. ("Não (" Não sou da me s ma louça lo uça", ", ref le lexio xionava nava ele, na muda parlenda em que transbordava o fervoroso amor de si mesmo.) Não eram poucos os que o consi deravam o homem mais inteligente de Alagoas. Na esteira de sucessivas vitórias no foro, as suas frases felizes se espalhavam pelos bares e cartórios, eram louvadas pelos grupos de língua solta que, às portas das lojas e em torno do Relógio Oficial, viam o dia passar como uma correição de formigas. Assim, quan do convidado, pela Ordem dos Advogados, para ser incluído numa lista tríplice que, fatalmente, o con verteria num desembargador, recusou com um dito elogiado até pelo interventor federal: "Os grandes advogados não seguem a magistratura." Com a sua gordura, apareceu também um sestro. Fungava. Isso decorria, certamente, de algum desvio de septo, pois tinha uma das narinas constantemente entupida. Não se interessara em ir a um médico, mesmo por que se considerava um dos homens mais saudáveis de Alagoas. 26
Neste entrementes, houve ainda outro aconteci mento importante na vida do professor Serafim Gon çalves: casou-se com Lígia Tavares, filha do velho co ronel Tavares, senhor de engenho. O professor Sera fim Gonçalves não se arredava da convicção de que fizera um casamento de amor. A moça, uma morena clara enxuta de carnes, estudara num colégio de frei ras, conhecia o Rio, apreciava os romances de José Lins do Rego e Érico Veríssimo. E, de um modo não totalmente obscuro, pressentia que, quando caísse o Estado Novo e voltassem as eleições, o coronel Tava res não hesitaria em lançá-lo na política, o que seria fácil, pois dispunha de um bom eleitorado de ca bresto. Dois anos depois de casado, o professor Serafim Gonçalves aceitou convite para ensinar Direito Civil na Faculdade de Direito de Alagoas; e isto signifi cava que seria catedrático quando se abrisse o con curso. Assim, antes dos quarenta anos, já era uma pessoa conceituada e respeitável. Os jovens chama vam-lhe professor, cercavam-no à saída das aulas, e ele pingava em ouvidos ainda verdes algumas gotas de sua cada vez mais crescente experiência de vida. A sua banca de advocacia era uma das mais próspe ras do Estado, possivelmente a sua gordura infundia confiança e respeito aos clientes. "Um bom advogado deve ser gordo", costumava ele ponderar, à porta do Bar Elegante e do Colombo, quando os amigos alu diam à vastidão de sua pança. E, intimamente, cor rigia a frase: um grande advogado, pois se conside rava o maior do Estado, o que mais recorria ao Su premo Tribunal. Quando o Brasil declarou guerra à Alemanha — e vários navios nossos tinham sido afundados por sub marinos alemães em costas bem próximas às alagoa27
nas — aproveitou a oportunidade para ampliar a sua popularidade. Na Faculdade de Direito de Alagoas, deu uma aula que ficou memorável, na medida em que, em Maceió, alguma coisa pode ficar memorável. Disse aos alunos (e às vezes gostava de repetir, sen tado na privada ou tomando banho, algumas das frases que tinham sido aspeadas por veementes pal m a s ) : "Hoje não nã o vos vos fala fa lare reii sobre os navi os co mo bens imóveis para efeito de hipoteca. Falarei sobre os navios brasileiros que foram torpedeados pelos alemães. Falarei sobre a luta da liberdade contra a tirania e a impostura de uma ideologia baseada na mentira da superioridade racial." E, no fundo de si mesmo, o professor Serafim Gonçalves se sentia um pouco ariano. Ao que tudo indicava, em suas veias corria também o sangue saxônico dos soldados de Hitler, mas essa remota arianidade, decerto mescla da ao sangue dos caetés que tinham comido gostosa mente o bispo Sardinha e ao dos negros e portugue ses, não tornava menos violenta e inflamada a sua indignação diante do traiçoeiro afundamento dos navios. O professor Serafim Gonçalves falou dos ca dáveres dos afogados, que tinham dado às praias anônimas de Sergipe. Gostou da expressão "praias anônimas" e a repetiu. Nessa aula, ficou consolidado o seu prestígio como orador, de tal modo que se tor nou um dos tribunos mais requestados do Estado. Falava nos banquetes e cerimônias. De verbo fácil, como o suor que lhe escorria das axilas em dias de calor, tudo lhe saía de improviso. E, saboreando inti mamente essas vitórias oratórias de província, era levado, pela imaginação erradia, ao futuro que o aguardava. Imaginava-se, já senador da República, discursando no Monroe: "Sr. Presidente, este é um país em que não medra o ódio." Via-se investindo 28
contra a política financeira do governo, numa adver tência fulgente: "A nau do Estado já começou a sin grar o mar traiçoeiro da inflação." Gordo, alto, aframengado, olhos cor de mel, ora dor de primeira força, professor conceituado, prome tendo publicar um dia o seu livro sobre as influên cias holandesas em Alagoas (e só não começara a escrever esse ensaio, que queria alentado, por abso luta falta de tempo!), o professor Serafim Gonçalves se sentia um homem a caminho de um futuro afor tunado. Andando pelas ruas tortas da cidade, o ca belo ao vento, prelibava o sabor da vida. Nesse tempo, já j á m o r a v a n a Ave Av e n i d a d a P a z , def de f r ont on t e a o m a r , n u m a casa apalacetada. Na sala de entrada, instalara o es critório. Nos dias e noites de muito calor, abria as quatro janelas do escritório, que olhava para o mar, e os passantes poderiam ver a sua biblioteca jurídica, uma das melhores do Estado, o que representava mais um fator de segurança para os seus constituin tes, que apreciavam a diligência e erudição de seu defensor. Além disso, não gostava de livros brochados. Quase toda a sua biblioteca era encadernada, o que parecia aumentar a autoridade dos volumes e confe ria às estantes um ar de irrecusável nobreza. Ocorreu ainda que, nesse pedaço, foi ficando calvo. Sua cabeleira, talvez a mais bela do Estado, com as fartas mechas de cabelos castanho-claros, ia sendo lenta e implacavelmente desfalcada pelo tempo. Mas, mesmo ficando calvo, não deixou de ser cabe ludo, como se as mechas restantes persistissem em ocultar os impiedosos desfalques das centenas ou talvez milhares de fios que iam sumindo dia após dia. O professor Serafim Gonçalves ponderava que a cal vície não era indesejável num homem público, como se evocasse as noites de meditação e estudo, consul tando a jurisprudência. 29
E, enquanto a calva ia avançando, traiçoeira, o professor Serafim Gonçalves, embalado pela ambição, confiava a si mesmo que sua vida estava quase reali zada. O futuro lhe reservava coisa gorda. Só faltava a redemocratização do País, o que aconteceria fatal mente após a guerra, para poder iniciar a sua car reira política. Não era mais segredo para ninguém que ela começaria pela deputação federal, havendo mesmo possibilidade de que ele fosse um dos candi datos a senador, pela oposição. Embora mantendo boas relações com o interventor federal, o professor Serafim Gonçalves não admitia que viesse a formar do lado do governo, quando surgisse a ocasião. Acha va que, para as suas ambições, nada melhor do que a bandeira oposicionista, que permitiria ampliar ain da mais o seu conceito de tribuno. E, enquanto per manecia o Estado Novo, apesar de alguns rumores periódicos de que Vargas dia a dia fazia maiores con cessões às forças armadas para continuar no Poder, o professor Serafim Gonçalves ia vivendo numa tra balhosa expectativa. Era como se sua verdadeira existência só fosse começar no dia em que conseguis se pôr a mão na coisa pública. Nesse tempo, houve ainda outra mudança na sua vida: deu para gostar de conhaque. Antes, tomava apenas um cálice por dia, para abrir o apetite do almoço. Depois, passou a redobrar as doses, e incor porou o conhaque à sua vida, o que lhe dava ligeira euforia. Embora reconhecesse que esse amor à bebida constituía uma pequena fraqueza, ou uma concessão que se fazia, não o considerou prejudicial às suas ambições. Tomava conhaque como os seus amigos tomavam cerveja no Bar Colombo ou jogavam pôquer nos fundos do Bilhar do Comércio. Não achava, por tanto, que esse hábito possuísse algum ponto censu30
rável. Preferência singular, contribuía ainda mais para personalizá-lo. Levado pelo seu sonho, e nele fiado, ouvia, com exultação, vozes futuras. Era no Palácio dos Martírios. O oficial-de-gabinete dizia: "O deputado Cansanção trouxe da Europa uma caixa de conhaque para o governador." O governador era ele, que prestesmente se transformava em senador e, parado num corredor do Palácio Monroe, escutava, como se estivesse invisível, a informação de um vete r a no repórt re pórt er polít pol ític ico o a um jovem jove m foca: foc a: "É o J oa qu i m Nabuco de Alagoas. Homem muito culto, autor de um livro sobre a colonização holandesa no Nordeste e de uma biografia do Barão de Penedo, trabalho exemplar, muito louvado pela crítica. Orador estu pendo. E também homem muito fino, apreciador de conhaques europeus." Às vezes, porém, o professor Serafim Gonçalves se excedia. Assim aconteceu naquela manhã em que, sentado numa das mesas do Bar Colombo, soube que Alexandre Viana se suicidara. Não era um de seus amigos — apenas relação de rua, e filho de um ho mem a quem apreciara. Era, contudo, um suicídio, um ato terrível. O professor Serafim Gonçalves jul gou insuficiente o primeiro conhaque matinal. Pediu outro e, enquanto esperava que o garçom voltasse, tamborilava distraidamente os dedos no marmorite da mesa e ouvia o interlocutor contar-lhe a histó ria de uma raposa que, naquela manhã, fora morta a cacetadas no centro da cidade, perto da Praça dos Martírios. — Imagine, uma raposa no coração da cidade — comentou. A exclamação disfarçava, porém, o tênue interesse que lhe suscitara a história. Não conseguia entender o suicídio de Alexandre Viana, e o seu interlocutor 31
ignorava os motivos. Sabia-se (era público e notório) que o suicida tinha uma filial — maneira metafórica de dizer-se que sustentava duas casas, pois um ano antes se amigara com uma moça que trabalhava na Alfândega, ou na Recebedoria, ou na delegacia de um dos institutos de Previdência. Seria possível que Alexandre Viana tivesse dado algum desfalque? Tudo eram hipóteses, mas a verdade haveria de saltar à luz, de uma hora para outra. Em Alagoas, só os te souros escondidos pelos holandeses não eram desco bertos. Do resto, sabia-se, fosse o nome de um ganha dor da loteria ou um incesto. — Ele El e deixou deixou c ar t as ? O outro não sabia, por enquanto. E, mastigando mole algum detrito, entremostrava as gengivas des botadas na boca de cu-de-galinha. Olhando com secreto rancor o retrato de Getúlio Vargas pendente da armação do bar, o professor Se rafim Gonçalves tomou o terceiro conhaque no bal cão; estava em cima da hora de dar a sua aula na Faculdade. Iria ao enterro. — O corpo ainda está no necrotério. Me encon trei agora mesmo com o doutor Lages, que é o mé dico-legista. — Estão falando em desfalque, mas eu não acre dito. Pairava no ar um leve cheiro de lixo — aquele secular cheiro de imundície que o vento do mar não conseguia extinguir, por mais que soprasse. — Maceió não respeita nem os mortos. Há, até, quem ande espalhando que ele foi assassinado pelo Sindicato da Morte. À medida que o dia ia ficando alto, os mendigos aumentavam. O sol forte os atraía. — Muit Mu itos os cas casos os de tifo, ti fo, soube hoje. hoj e. 32
Uma voz fanhosa: — Isso só acaba no dia em que a água de Maceió for clorada. Um cego bexiguento, acompanhado por um me nino com uma harmônica, estendeu a mão ao pro fessor Serafim Gonçalves. — Estão falando aí que um submarino alemão afundou outro navio brasileiro. — E u , se fosse o govern gov erno, o, man ma n da v a pren pr ende derr todos os integralistas. São eles que dizem aos alemães onde estão os navios. — Assim falou um contabilista que, meses antes, fora levado à chefatura de polícia, onde lhe deram duas dúzias de bolos de palmatória, por conta dás idéias avançadas que ele espalhava nas bodegas, em conversas com amigos e conhecidos. E como se ainda lhe ardessem as palmas das mãos, reiterou, numa indignação cívica: — São eles. Um sino bateu, rouco, na Igreja do Livramento. Num boteco, um caixeiro de suspensórios tomava caldo de cana. Perrenhos, os bondes rangiam nos trilhos. Na porta de um cartório, um oficial-de j u s t i ç a r a b u l e j a v a . Q u a n d o o prof pr ofes esso sorr S e r a f i m G o n çalves ia dobrando a esquina, uma mão amarela se estendeu para ele: — Moço, me dê uma esmola. Ao subir os primeiros degraus do edifício que alguns alagoanos pertinazes haviam conseguido cons truir, para disseminar entre os seus conterrâneos os princípios da Lei e do Direito, o professor Serafim Gonçalves voltou a cabeça. Pela calçada passava um marinheiro louro. Parou para vê-lo, e depois não sa beria dizer quanto tempo durara a contemplação. Um aluno arrancou-o do devaneio inconfessável. — É um navio de guerra norte-americano que está no porto. 33
Durante a aula inteira, o professor Serafim Gon çalves mostrou-se distraído. As palavras fugiam-lhe. E seu pensamento desinquieto seguia o marinheiro desconhecido que, vindo de longes terras, se atraves sara no seu caminho, perturbando-o.
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A ESCADA
ALEXANDRE V IANA
suicidou-
se por volta das três da madrugada, umas duas horas antes que, na Rua da Boa Vista, alguns homens, esgrimindo cacetes, tivessem abatido a raposa. Morreu sem ter visto a raposa que, desde o come ço da madrugada, passara a vaguear pelo centro da cidade. Naturalmente não poderia tê-la visto no mo mento em que ela se detivera perto de sua casa para beber água num pequeno charco, pela simples razão de que não se encontrava ali, pois não dormira em casa nem mesmo dormira, esta era a verdade. Poderia ter se encontrado com a raposa no ins tante anterior em que esta, rondando perto dos ar mazéns de estiva em Jaraguá, parara nas imedia ções da agência da Western Telegraph Co. — como se a seus afiados ouvidos de animal da mata pudesse chegar o código cifrado que vinha silenciosamente do mar, pelos cabos submarinos. Mas ocorreu que, quando Alexandre Viana, vindo da casa de Enaura, dobrou a esquina, e se tornou mais forte em seu rosto a pressão do vento do mar, a raposa, movida por um súbito sentimento de velocidade, começara praticamente a correr, e em breve alcançaria a pri meira das quatro janelas da casa do professor Sera fim Gonçalves. Ora, à distância, ela perdia a sua forma e conteúdo originais para transformar-se num cachorro. E não era aceitável que Alexandre Viana tivesse a sua atenção despertada pela sombra esguei35
rant ra ntee de um ca cach chor orrr o que se perdi per diaa no fundo fund o da ave av e nida mal iluminada. De qualquer modo, Alexandre Viana não viu a raposa. E, coisa singular, no momento em que do brara a esquina e levantara os olhos para mirar as paredes grossas e lívidas dos armazéns que expeliam, no silêncio apenas violado por breves e finos ruídos ilocalizáveis, um cheiro próximo ao de uma imensa rapadura que se estivesse dissolvendo irremediavel mente na sombra, Alexandre pensava precisamente em bichos. Viera-lhe à lembrança uma cena da in fância — não um desses episódios esquecidos, que só um aroma ou um rumor conseguem ressuscitar, içando-o na memória como se fosse uma velha ban deira danificada em antiga catástrofe, mas um qua dro que o viera acompanhando através da existên cia, e o fazia despertar como a cadência persistente e metálica de um martelo. Alexandre Viana acabara de fazer admissão para o Colégio Diocesano naquela tarde em que se aproxi mara da praça da cadeia, para ver o novo circo. Com prara um rolete de cana, e fora se acercando. Já estava fincado o grande mastro central, e havia em torno uma azáfama nutrida de rumor e desordem; e dentro desta fremia a regra da ordem profunda que faz com que os circos se ergam, subitamente, em qualquer largo, ao som da música que atrai as crian ças e pacifica os bichos. Movido por uma curiosidade a que se misturavam timidez e temor, Alexandre Viana conseguiu aproximar-se das jaulas e tendas onde estavam presos os animais, e contemplou, não sem um certo nojo, um leão velho e fedorento, cujo focinho latrinário se movimentava para a direita e para a esquerda, tentando afugentar uma nuvem de moscas. Havia ainda um tigre, magro, que fitava a 36
todos, de esconso, com os seus olhos duros ensan güentados güent ados que pr ome ti am vinga vi ngança nça — u m a vingan vin gan ça impossível, marcada num frígido território além do tempo e da morte. Mais longe, um elefante cor de terra espisoteava o chão — e era ao mesmo tempo uma coisa respeitá vel e cômica em sua argilosa rotundidade. Contudo, não era ao elefante que parecia ser um animal quase livre, dadas as suas surpreendentes proporções, que Alexandre dirigia o seu olhar. Sentia-se como que fascinado pelos dois animais ultrajados, o leão e o tigre, presos em fétidas jaulas paralelas. E no olhar de ambos os bichos lia um ódio tremendo à escravi dão, um horror que transpunha as fronteiras de qual quer irracionalidade para afirmar-se, em toda a sua veemência, nas ininterruptas tentativas de ultrapaspassar as grades de ferro. E, nesse instante, Alexan dre Viana se sentiu contundido pela nauseante e suja atmosfera de terror que se desprendia daquelas ja j a u l a s . T a n t o o t i g r e c o mo o l e ã o e s t a v a m c o n d e n a dos até a morte que viria, nascida do próprio cati veiro ou da velhice. E não escapariam nunca — nem mesmo poderiam matar-se, nem sequer sabiam o que significava esse ato último. Sobre o empardecer do dia Alexandre Viana vol tou para casa pensando em bichos que pudessem evadir-se da escravidão, fugir da jaula, sendo eles mesmos os artífices de sua libertação. No dia seguin te, perguntou ao padre Sizenando por que os ani mais irracionais não se suicidavam, e a resposta coincidia com aquela que, intimamente, já dera. Entrou na aula com a prodigiosa sensação de que só o homem, animal racional, o único ao qual foi prometido o Paraíso, podia sacrificar-se a si mesmo. Os tigres, leões e elefantes eram bichos terrestres. Nenhum deus lhes prometera um paraíso. Não tendo 37
direito a um inferno que pudesse consumi-los eter namente, estavam impedidos de trucidar-se a si mes mos. Para eles, a vida não era uma simples sala de espera da eternidade, um lugar de passagem, que baldejava o oceano golfante, e onde se respirava o cheiro dos sacos de açúcar amontoados nos armazéns e trapiches. Era a sua própria eternidade de bichos, e no máximo eles poderiam, se tivessem o dom da lembrança, evocar os primeiros tempos nas florestas e montanhas, num paraíso terreal de onde tinham sido retirados pela astúcia dos caçadores de feras. A partir daquele dia, Alexandre Viana passara a guardar, na consciência, o segredo de sua eventual libertação. A vida era uma jaula. O próprio universo, com as suas inumeráveis galáxias, os seus dias e noites, os sistemas estelares regidos por uma harmo nia fundamental, e o peso de seus mitos, era também uma jaula. Mas, nessa prisão, ora metafísica ora visí vel nas quatro paredes de uma cadeia ou nas ruas tortas de uma cidade, havia um cativo com o poder de evadir-se a qualquer momento. E, desde aquele instante da descoberta, Alexandre Viana passou a admitir o suicídio como uma espécie de saída de emergência. Periodicamente, a lembrança daquela tarde de sua meninice em que vira o circo ser armado lhe voltava à memória, e com ela a imagem de um animal capaz de evadir-se da jaula, um animal em presário de sua própria morte e adestrado para cons truir assim a sua eternidade. Depois que deixou o colégio, Alexandre Viana não aceitou o conselho de seu pai, que queria vê-lo advo gado. Preferiu meter-se em pequenos negócios — cor retagens de seguros, heteróclitas transações nascidas de conversas com amigos e conhecidos junto ao Re lógio Oficial, representações. Anos depois, era geren38
te da agên ag ênci ci a de u m a empre sa aér ea ( e, às vezes, vezes, vinha-lhe ao espírito que os aviões tinham uma saída de emergência que poderia ser usada também durante o vôo, em pleno ar, e haveria de proporcionar a esse eventual usuário uma sensação vertiginosa de evasão e liberdade, uma espécie de ressurreição às avessas no espaço irreversivelmente azul). Casou-se com uma moça que fora por assim dizer a sua namorada de infância. Na própria noite daque le casamento sem lua-de-mel, pois não tinham viaja do, e dormiam juntos pela primeira vez no quarto estreito da casa que haviam alugado na Ponta Grossa (e Alexandre Viana se lembrava de que, no momento exato em que se estendera sobre o corpo de Alice, e a sentira fremir na escuridão como um pássaro, ouvira o apito de um trem de carga sulcar o vazio da noite), tivera a nítida consciência de que estava finalmente enjaulado. A jaula deixara de ser uma atmosfera — como era o caso da cidade onde homens, ociosos, iam de um lugar para outro, parando para comprar uma caixa de fósforos ou engraxar os sapa tos, olhar o vinco de suas roupas de brim branco ou confidenciar a um conhecido o último boato ou male dicência, espostejando reputações — para ganhar uma perturbadora materialidade. Ele se assemelha va ao criminoso que só se sente realmente preso quando atrás de suas costas se fecha a porta de ferro da cela, e se julgava livre quando, com as mãos al gemadas, caminhava pelas ruas cheias de sol e ru mores. Naquela noite nupcial, enquanto Alice deixa va furtivamente o quarto, de camisola de cambraia, e ele ouvira o barulho longínquo da porta do banhei ro que se fechava, Alexandre Viana se considerava capturado. Caçadores invisíveis tinham alcançado as suas florestas e montanhas, e ele se sentia lançado ou caído numa armadilha. 39 3 9
Sua vida continuou plácida, na casa de quartos estreitos. A sala, cheia de bibelôs — pois a mania de Alice era colecionar os enfeites de louça mais gro tescos possíveis — parecia cada vez mais apertada, principalmente depois que tinham sido pendurados nas paredes dois retratos coloridos dos pais de sua mulher, reproduzindo imagens de ambos ainda jo vens e momentaneamente hieráticos, ou então depois que umas horrendas flores artificais tinham enchido um jarro verde colocado num centro de jacarandá E os dias se passavam, dias de areia e vento, refres cantes dias de nada, e salteava Alexandre a convicção de que ele, em sua rotina e palavras, fingia viver. Nasceu o primeiro filho, e Alice, após meses de vertigens e vômitos, encontrou nessa criaturinha la ng ui nh en t a e sujeit suj eit a a cagane cag aneir ir as uma um a raz ão de viver superior às flores artificiais e aos cômicos obje tos de biscuit. Alexandre Viana observou que o filho os separa va, parecia torná-los mais livres, excluía as convi vências demasiadas, assegurava a cada um deles uma zona de sombra e sigilo que se confundia com a re flexão e o pudor. E durante anos tinham ambos vi vido separados por uma reserva mútua, como se não ousassem confiar um ao outro os seus segredos e me ditações. Até que, num entardecer, uma moça entra ra na agência e se dirigira a Alexandre Viana, que estava no balcão, tratando do despacho de umas caixas de produtos farmacêuticos. Queria uma pas sagem para o Recife. Já era a segunda vez que ela vinha à agência. Todas as passagens disponíveis tinham sido vendidas, de modo que ela confiava na possibilidade de uma desistência. Alexandre Viana atendeu-a, desta vez. Soube que ela queria assistir ao casamento de um irmão, soube ainda que fora ao cinema, no dia anterior, e seu rosto queimado teste 40 4 0
mu n h a v a que estive est ivera ra na praia pra ia no últ úl t imo domingo. No dia seguinte, pela manhã, Alexandre Viana con seguiu arranjar-lhe a passagem, dando-lhe ainda um abatimento. Ela acolheu esse fato com uma desarra zoada mostra de gratidão, que iluminava os seus olhos negros. Uma semana depois, tornou a aparecer na agên cia com um decote ousado no vestido de organdi amarelo. Alexandre Viana estava no fundo do escri tório, viu-a, e aproximou-se do balcão. Ela lhe entre gou um chaveiro, que trouxera para ele do Recife. Chamava-se Enaura, e não ligou nenhuma impor tância à sua aliança de casado. Os encontros se suce deram, em locais diversos. Ela, evidentemente, não era mais virgem, dois anos antes se entregara no Recife a um soldado, e reconhecia que, após isso, tive ra alguns casos. Alice não precisou esforçar-se muito para perce ber a presença de outra mulher na vida de Alexandre. As desculpas de que ia fazer serão no escritório, os domingos passados fora de casa sob o pretexto de que estava acompanhando um fiscal da empresa, que de sejava conhecer Deodoro e Riacho Doce, todo esse varejo de circunstâncias se foi amontoando em seu espírito. O marido não mais a procurava à noite, ale gando estar morto de cansaço; e alguns depoimentos amigos completaram o resto. Ela, sem recriminá-lo, fechou-se numa casta expectativa. E, não sabia ex plicar por que, guardou debaixo do papel cor-de-rosa do pequeno oratório posto sobre a cômoda do seu quarto o envelope azul com a carta anônima que contava do chamego danado de seu marido com uma tal de Enaura. Era um pedaço de papel almaço, no qual um informante sem figura havia escrito, em letras finas que procuravam imitar as dos jornais: Seu marido está amancebado com uma rapariga 41
chama chamada da
Enaur Enauraa
e
mont mont ou
casa casa
para para
ela ela
em
Jaraguá.
Embaixo, assinava-se: Uma pessoa amiga. E s s a c a r t a anônima tinha sido escrita mentalmente num entar decer, dentro de um grande depósito que cheirava a açúcar e a fibras. Ele pensara em chamar Enaura de galinha (e na verdade assim a considerava), mas terminara desistindo, preferindo um termo mais respeitoso, já que o destinatário era uma senhora casada. Enquanto escrevia lentamente as letras como se as desenhasse, o homem que a remetera sentia en trar-lhe pelas narinas o cheiro pesado e cinzento da tarde — um cheiro de navios, de ferrugens guarda das, de galpões escuros e fechados onde se acumu lavam gêneros alimentícios destinados ao embarque, de resíduos esverdeados e gelatinosos que o mar vo mitava nas praias, do salitre que cobria imperceptivelmente as fachadas dos edifícios como se fosse transparente pátina marítima. Mas às vezes era como se o mar não existisse, e ele morasse entre pedras, num ninho de cobras. E havia em sua carta uma inverdade ou incorreção. Alexandre Viana não mon tara casa para Enaura. Ela, que morava no Farol, mudara-se para Jaraguá, e acompanhara a velha tia que há muitos anos tinha amores com um sargento da Polícia Militar, um sarará por nome Cajueiro — um desses sucessos que, de tão prolongados, termi nam ganhando uma auréola platônica, de tal modo que nem todas as semanas o sargento precisava tirar as suas lustrosas botinas de soldado no quarto onde havia uma litografia de São Judas Tadeu, o santo das perdas impossíveis. A tia era também a sua con selheira. Não censurou a ligação de Enaura, não só porque nutrisse a convicção de que toda mulher pre cisava de um homem, como também porque possuía 42 4 2
cega e obtusa confiança na sobrinha, achando pos sível que esta acabasse por afastar Alexandre Viana de sua mulher legítima. Ela estava certa de que Enaura terminaria por obter isso, dando à sua li gação a majestosa dignidade de um casamento. Em Maceió, casos assim eram comuns. A mudança para Jaraguá fora motivada pela cir cunstância de Enaura não desejar novos falatórios da vizinhança a respeito de sua casa, onde o sar gento da Polícia Militar era visto quase todos os dias, entrando e saindo. Alexandre Viana fora o fiador do contrato de alu guel da nova casa. Além de algumas despesas miú das, só custeara um móvel: uma cama de casal, com prada no Ladoski, e que Enaura aceitara, um pouco encabulada, a título de presente. E, como Enaura trabalhasse, não lhe saía cara, e pouco lhe pesava no orçamento. O autor da carta anônima não igno rava esses fatos e, ao escrever a denúncia, devia re conhecer que estava carregando demais nas tintas, engrossando a informação com um dado inverídico. E, ao desenhar as letras finas de sua carta, sempre imaginava o momento em que o destinatário, abrin do o envelope azul, procuraria adivinhar se o reme tente era homem ou mulher, e durante minutos ru minava o mistério de uma assinatura sibilina e am bígua, e cercada por invisível fímbria de sarcasmo. Alice guardara a carta dentro do envelope azul, ocultara-a debaixo dos santos, ouvira conselhos de pessoas idosas que a induziam a suportar aqueles dias de amargura. As noites em que Alexandre não dormia em casa passaram a fazer parte da rotina de sua vida. Ele não precisava aludir ao eventual serão na agência. Se não chegava até às oito horas da noite, era mais do que certo não vir mais. Punha o filho na cama, jantava em silêncio, ficava debru43
cada à janela da sala de visitas durante alguns mo mentos, e o tempo ia passando: um tempo rococó em que os bibelôs se transformavam em frágeis monu mentos de um mundo amarelo e silente, sustentado pela sua própria falta de esperança e sua maciça ade são à rotina. Alice sabia que não havia mais o que esperar, a não ser viver entre bibelôs que jamais se dissolve riam e enfrentariam, em sua bizarra passividade de louça, quaisquer ultrajes do tempo. A vida entre ela e Alexandre transcorria num ridículo purgatório de aparências, em que uma zona de silêncio (como se o pudor de ambos fosse s ub i t amen am en t e invoc in vocado ado)) i m punha o fluxo das interdições. E ambos calavam, e não ousavam ultrapassar o limite das pequenas e repetidas cerimônias domésticas, das contas do arma zém, do dinheiro para que ela pudesse percorrer as lojas à tarde, comprando roupas e algum brinquedo para Otávio, das conversas tão vazias de sentido que chegava a ser espantoso que as palavras, com o seu gume de significação, pudessem ordená-las em torno da mesa ou na sala de visitas. Para fugir àquele vazio — tão grande que se podia ouvir o canto do canário do vizinho ou o arrastar de um tamborete na calçada da venda da esquina — Ale xandre corria para a casa de Enaura, arrastava-a para o quarto. E lá, junto à sua nudez, alisando a marca de vacina que ficara em sua coxa direita, alcançando bruscamente os pentelhos negros que contrastavam com os seus cabelos de um castanho claro, imobilizando-se diante da verdade animal de seu corpo, ele se pacificava. Ela se deixava acariciar, sem retribuir com qual quer iniciat ini ciativa, iva, t a mb é m esperando (pois (poi s ele nem sequer tirava a gravata e ainda permanecia ves tido, apenas sem paletó). E, sem articular a palavra mais breve, ele se sentia de repente existir e durar 44 4 4
no vazio irreversí irre versível vel do universo. S i m, es ta va dent ro da jaula, junto à fêmea que jamais saciaria o seu frio desejo de liberdade, a sede de evasão que lançava, no silênci sil êncio o da noite noi te estrel est relada, ada, à cons co nsid ider eraç ação ão dos dos deuses, onde quer que eles estivessem. Não fora bas tante que esses deuses, ocultos nas altas galáxias, fixando os homens com os seus mil olhos supracelestes, tivessem inventado a carne. Era para além da carne que Alexandre Viana se voltava, e nada encontrava, como se algo tivesse sido receptado, mudando a sua busca em desapontamento. E só um gesto de d e En a u r a , procuran procu rando-o do-o co m a mão, mão , no primeiro movimento de um balé breve e sujo, desabotoando-lhe a braguilha e virando o busto (e o olhar de Alexandre se fixava sobre os enrugados halos dos seios que acompanhavam a lenta flexão do tronco), arrancava-o de seu mutismo, levando-o a desembaraçar-se das roupas e a estancar os pensa mentos que jorravam de seu espírito com a clara per feição de uma torrente, refrescando lucidamente o seu desespero, abrindo em seu horizonte de mutismo e tédio uma clareira de reflexão que o iluminava com a sua luz alta e aguda. Como um animal que se evade e, após alguns segundos de ofuscação, volta de novo ao cativeiro, assim se sentia, quando o seu desejo se mudava em ofegante pacificação, e durante alguns minutos se deixava ficar, estirado na cama, se lado pelo vácuo da efêmera e estival hipnose. Estava mais uma vez encurralado — a porta que julgava en contrar, no segundo em que, comprimindo as nádegas de Enaura, e repousando a cabeça em seu ombro es querdo, atingira o espasmo, diluíra-se, perdera qual quer consistência imaginável. Era uma porta de nada, na noite de nada. No frágil minuto nada exis tia a não ser a breve e arquejante conjugação de dois desejos embaralhados e afinal esvaídos, enquanto 45
acima dos caibros e das telhas da casa voavam frag mentos do grande vento que, tendo vindo das regiões l ongí on gí nqua nq uass onde onde os dias sã são o et er name na ment nt e frios e brancos, perdera gradativamente a sua consistência polar e se tornara profuso e cálido, com o seu hálito quente que atiçava as palmas dos coqueiros e trans portava o cheiro das goiabeiras floridas. Alexandre observava que Enaura se referia à ven t an i a (o u a u ma t el ha queb qu eb ra da ) , e a frase, perdi da no espaço preenchido pelo crepitar ininterrupto da brisa, só agora voltava a ser notada, como se o vento a tivesse levado até os sítios onde gordas mangabeiras se agitavam como graves matronas incomodadas e a tivesse devolvido, disponível e intacta. O caráter sentencioso e conceituai da frase o seguia, como um cão furtivo, ou mesmo como uma raposa esgueirada nas trevas. E assim ele dormia: o vento o vento o vento. Não repetia a palavra mas, à medida que suas pálpebras pesavam, via-se acossado pela sua desati nada reiteração. O vento não parecia submetido a qualquer lei ou regra meteorológica, e mudava o seu frio em mormaço, mesmo dentro de sua fúlgida quen tura guardava um laivo de umidade, e vinha emba lá-lo para que ele dormisse com as mãos cruzadas no peito, à maneira dos defuntos. Alexandre Viana não sabia dizer quantas vezes, entre as grades de sua jaula, ouvira o soprar do vento na noite sonora e vazia. Também já não lhe interes sava saber em quantas ocasiões o seu olhar se deti vera diante da marca de vacina que Enaura tinha na coxa. No dia seguinte, tomava o café que Enaura, vestida num roupão berrante (que, inexplicavelmen te, a tornava parecida com uma puta que conhecera anos antes na Rua do Capim), lhe preparava, saía para o trabalho guiado por súbita pressa que oculta va a vontade de ficar sozinho alguns minutos, du46
r a nt e a viagem de bonde. Ao at atin ingir gir a praia pra ia,, co nt em em plava os navios, um ou dois atracados, ou outros ancorados no mar, mas como se nada estivessem es perando e o seu passageiro estacionamento nas proxi midades da atracação fosse uma incorruptível perma nência. Na agência, era envolvido pela burocracia das pequenas partidas — passagens para o Recife, João Pessoa, Natal, Fortaleza, Teresina, Belém, Manaus, passagens para Aracaju, Bahia, Canavieiras, Vitória do Espí rito ri to Sa Sant nt o, Rio. — Mas tem que fazer baldeação? — Quantos quilos de bagagem eu posso levar? — Se não fosse esta guerra, eu ia de navio. — Soube Sou be que um submar sub mar i no al emão em ão afund af undou ou outro Ita. — Mas me disseram que vai haver uma linha de ônibus Ma Macei ceió— ó—Rio. Rio. Homens queriam viajar, para um negócio, um internamento num hospital, uma nomeação — e dis cutiam dias, horas de partida e chegada, transporte até o aeroporto, peso das malas. E as mulheres tam bém queriam viajar, para um casamento, um bati zado, uma visita a um parente. Os pretextos mais variados afloravam durante os minutos em que exa minavam o horário dos aviões, surpreendiam-se dian te do novo aumento das passagens, assumiam uma atitude circunspecta ao ouvir o comentário do ven dedor da firma de São Paulo que estabelecia uma conexão entre as viagens aéreas e a cotação do dólar. — E a minha fatura, onde está a minha fatura? — Já recebeu a confirmação? — En t ão reservo r eservo a passag pas sagem em e venh ve nho o paga pa garr amanhã. Havia mercadorias para despachar. Era preciso ir ao aeroporto, mas a camioneta ainda não voltara do posto de gasolina onde estava sendo lubrificada. 4T 4 T
Havia um avião da companhia detido em Salvador, à espera de uma peça que não viera ainda do Rio. A mulher de um desembargador mandara pergun tar-lhe se não poderia arranjar-lhe alguns jornais cariocas. Um sujeito rouco se afastara do balcão depois de lhe terem assegurado que não chegara ain da o remédio que alguém no Sul lhe remetera. Ale xandre Viana dava uma ordem, atendia ao telefone, apontava um engradado posto junto à escada que conduzia à sobreloja onde ficava o seu escritório, acendia um cigarro. E as horas passavam, esponjo sas, sugando o que, no tempo, era fluente como as palavras e a água. Alexandre Viana saía um pouco, a pretexto de que precisava engraxar os sapatos e comprar um maço de cigarros. Atravessava a rua que se alargava até o Relógio Oficial, para ali se bifurcar. Sentado na cadeira do engraxate, ouvia Gonguila dizer-lhe quan to Os Cavaleiros dos Montes precisavam no próximo carnaval; ou talvez nada ouvia, apenas deixava que o engraxate falasse, enquanto o seu olhar acompa nhava, no outro lado da rua, o caminhar de Ramona, o pederasta mais famoso da cidade, que avançava em direção à Helvética, de onde vinha o rumor de risos deflagrados em torno de uma mesa cheia de garrafas vazias de cerveja. O bonde que passava es condia o caminhar de Ramona, que envergava, ape sar do calor, uma roupa surrada de casimira, decerto não talhada para ele, que já a recebera surrada e com uma cor indefinível, como se durante anos ela tivesse suportado, num clima frio, a veemência roti neira das chuvas. Do outro lado da parede, era o bar do Zanotti. Um homem acendia o cigarro recorrendo a uma corda que se balançava no ar e cuja ponta e r a um olho esbras esb ras eant e; out ro engoli a um refresco refr esco feito de um líquido esverdeado e de gelo ralado. Des48
ceu da cadeira, soltou uma cédula entre as latas de gr ax as (Gonguila , a ca be ça incl inada guard ando na gaveta o trapo cor de chocolate de que se servira para dar brilho aos seus sapatos, cessara de olhá-lo), e saiu, atravessando pessoas que iam e vinham, quase pisando ou esmagando um mendigo que, de mãos e pés torcidos, se arrastava pela calçada, e cuja altura não ultrapassava sequer os joelhos dos adultos que por ali transitavam. Mais adiante, parou num grupo em que predominavam homens vestidos de caroá, brim branco e linho-120. Durante minutos esteve escutando a conversa, fariscando o estraçoar de vidas e reputações, o desfiar de bandalheiras e ordinarices. Era o último escândalo da cidade, a história de um homem que, chegando inopinadamente em casa, sur preendera a mulher na cama com um mata-mosquito; assassinara-a com dois tiros, mas o amante con seguiu fugir, de cuecas, pulando um muro e deixando numa cadeira da alcova ultrajada o seu uniforme. Às vezes, a plácida ociosidade daqueles grupos linguarazes, distribuídos em torno do Relógio Oficial enquanto a tarde escorria, era conjuratoriamente transtornada pelo súbito fragor de um tiro, e um dos homens de branco caía morto — e a tarde continuava, flexível como um arco. Com os seus olhos espantadiços, os cabelos corta dos à escovinha, e um ar de estupor e inocência no rosto sem cor, que parecia evitar o sol e o vento, Guabiraba aproximava-se do grupo que pairava, envolvendo-o num gesto mole. Talvez viesse apenas dar alguma facada, ou escutar o fim da história do mata-mosquito. Alexandre Viana despediu-se, foi an dando ao acaso das pernas. De uma sapataria em liquidação vinham músicas de carnaval. Junto à porta do Bilhar do Comércio, algumas pessoas esta vam postadas, conversando. 49
Ao anoitecer, dir-se-ia que toda a cidade conver sava mortes, adultérios, doenças, bebedeiras, negó cios, armava discussões sobre política ou o resultado do jogo-do-bicho. Um dizia que, na véspera, encon trara uma peniqueira perto da Praça dos Martírios e a levara para o Banheiro do Cego, e a possuíra sobre uma tábua dura que era menos uma cama improvisada que uma mesa; outro contava uma farra que terminara com um banho, à noite, no Catolé (todos tinham ficado nus, homens e mulheres, e, graças à euforia das bebidas, era como se estivessem numa espécie de debochado paraíso terreal); um ter ceiro garantia que vira a mulher de um médico, dias antes, rumando para um novo recurso que havia no Po ço; ço ; outr ou tro o j ur a va que se seu u vizinho era er a veado (e n u m dos grupos, estava o homem do balcão, calado, be bendo todas as palavras como se elas fossem uma eterna baba rendilhada, recolhendo informações para as cartas anônimas que, pelo menos uma vez por se mana, produzia em seu quarto, no Palácio Velho). Moleques buliam com Guabiraba, mangavam de suas calças coronhas e cabelo à escovinha. Alexandre Viana voltava para a agência, passava a examinar faturas e despachos, fazia recomendações sobre certas embalagens. Caída a noite, desarregaçava as mangas da camisa, subia o nó da gravata, vestia o paletó e, conforme o dia da semana, a dis posição, qualquer fato eventual, rumava para a casa onde Alice se movia entre biscuits ou para aquela sala onde Enaura o esperava vestida num roupão cor de vinho (e mais uma vez voltava à lembrança de Alexandre Viana a mulher da rua do Capim, dir-se-ia que ela usava o peignoir como se portasse leve e macio tesouro que a fazia comparável a certas mulheres da alta sociedade, certas mulheres que se moviam vaporosas no centro cristalino da manhã, 50
após noites em que, nos quartos escuros e hermé ticos, se tinham deixado amar sem todavia permiti rem a seus maridos a visão de seus corpos que o re cato parecia tornar momentaneamente imaculados quando tocados por mãos quase convulsas). Bibelô. Peignoir. Peignoir. Bibelô. O retrato de Getúlio Vargas pendurado na parede. O barulho das motocicletas. O vento. A sombra do trapiche. O men digo desnarigado que lhe pedira uma esmola. O selo, ultrajado por um carimbo, num envelope sobre a cô moda. A toalha azul, axadrezada, na mesa em que havia só dois pratos — a tia de Enaura saíra, fora visitar uma velha na Combona, e ainda não voltara. E assim era, e assim seria eternamente. Mas houve uma noite em que Alexandre Viana deixou a casa de Enaura quando a madrugada come çou a elevar-se no céu pardusco, onde as estrelas mu davam imperceptivelmente de lugar. Não viu a ra posa nem mesmo quando, depois de atravessar a ponte sobre o Salgadinho, pousou o olhar sobre a pra ça deserta e o edifício da Companhia Força e Luz Nordeste do Brasil. Veio caminhando, seguido pelo vento rastejante que lhe refrescava as pernas, cruzou a linha férrea, subiu a ladeira pelo lado da cate dral, alcançou a calçada da Recebedoria e, mais adiante, antes do fim da praça, perto do Palácio Velho, passou para o lado esquerdo. Abriu a porta da agência, deixando-a encostada, acendeu a luz, subiu a escada que levava à sobreloja. Alexandre Viana chegou à agência cerca das duas da madrugada, pelo menos Enaura declarou à polícia que ele saíra da casa dela à uma e meia e decerto gastara meia hora de trajeto. Durante uma hora, ele mexeu em papéis, a fim de que, ao primeiro exame, ficasse evidenciado que deixava a agência em ordem, e se afastasse qualquer hipótese vexatória e infaman 51 5 1
te — já que decidira não escrever nenhuma carta ou bilhete, e desejava que, de qualquer investigação su perficial ou instantânea, resultasse a verdade de que as contas da agência estavam em dia. Não houvera desfalque nem deslize. Deixava tudo em ordem. Este pensamento ocorreu bruscamente a Alexandre Viana, que via agora nascer uma ordem profunda da sinuosa desordem de sua vida e da existência em geral. Era como se o mundo fosse uma mesinha onde um grupo de bibelôs estivesse arrumado, e o acaso dessa arru mação se tivesse convertido, por uma inevitável har monia ou hábito, numa ordem evidente que repelia qualquer modificação ou ultraje. Abriu a última ga veta, e dentro havia apenas um objeto: a pistola que comprara há anos e jamais usara. Depois, seu olhar se fixou no corrimão da escada, cujos degraus não voltaria a pisar. Sobre a mesa estava um maço de jo j o r n a i s do R i o — e r a m o s j o r n a i s que qu e p r o m e t e r a à mulher do desembargador. Olhou-os com uma sensa ção de desapontamento, quase de raiva. Dera ordem ao garoto para levá-los na noite anterior à casa do desembargador, decerto ele se esquecera. Mas o resto estava nos lugares — o peignoir de Enaura estava pendurado atrás da porta de seu quarto, os bibelôs de Alice jaziam, brilhantes e cegos como tesouros, na abafada sala de visitas. E seu filho dormia. Alexan dre Viana estremeceu. Esperava que um dia o menino compreendesse por que ele resolvera não ficar presen te em sua vida e vê-lo crescer, até que ambos se sepa rassem e se convertessem taciturnamente em dois es tranhos. Certo chegaria uma hora em que a criança, tornada rapaz ou homem feito, arriscaria, no fun do de sua consciência, uma pergunta: "Por quê?". E Alexandre Viana não estaria junto dele para asse gurar-lhe que assim procedera exatamente por inexis tir esse porquê emitido pelos vivos, articulado surda52
mente pelos que jamais morreram. O carimbo que, no selo, se dilatava como uma pupila ao sol. O bibelô. O navio. O peignoir. Os sapatos engraxados. O vento que chiava, levantando areia e esparrinhando folhas de cajueiro. Os navios podres afundados no mangue. As moscas que traziam tifo. O hálito do tigre. Os olhos sanguinolentos do leão. Os pentelhos de Enaura. Todas as portas se iam fechando, na névoa. O vento não carregava mais o cheiro de goiabeiras mais per fumadas que o oceano. E diante e em redor de Ale xandre Viana só havia palavras. As próprias pessoas, despojadas do que nelas havia de humano, muda vam-se em palavras e congestionavam o seu espírito. Chovia — era uma chuva de palavras. Ventava — era um vento de palavras. O mundo não era feito de céus, nuvens, cidades, engenhos de rapadura, portos, represas, jardins, carroças, ruas, usinas, casas, ho mens. Era feito só e exclusivamente de palavras — e o povo falava palavras. Até as pedras das ruas de Maceió eram feitas de palavras. Alexandre Viana co mia palavras, dormia palavras, trabalhava palavras. E se sentia mais solitário do que nunca, como se a própria arma que se desenhava diante de seu olhar se fosse converter numa palavra. Rio. Canavieiras. Ilhéus. Salvador. Aracaju. Recife. João Pessoa. — Um submarino alemão afundou outro navio do Lóide. — Me disseram que foi da Costeira. — Vou fazer baldeação em Salvador ou sigo di reto? Alexandre Viana levantou a pistola, o dedo encon trou o gatilho, o corpo inteiro sentiu a frialdade metálica do cano — era a mesma sensação de quan do, com a cabeça baixada e os pés altos, ficava na cadeira do dentista que ia extrair-lhe o nervo de um dente. Depois o estampido reboou, com um fragor 53
súbito, seco e resplandecente de terremoto, como se a terra, antes compacta e impenetrável, se tivesse fendido at é a pirosfer piros fera. a. E, fundindo-se na explo exp losã são o que contagiava a imensa noite lunar, uma luz, talvez a lâmpada da sobreloja que balançava, talvez a ofus cação da luz de uma estrela. E havia ainda uma es cada — para quem subir? para quem descer? Alexan dre Viana jamais o soube, porque precisamente na quele momento ele deixara de existir, não se movia mais na seca e opaca desolação do mundo. Num tem po infinitesimal, enquanto o mar reboava, Alexandre teve a sensação de que não vivia. Apenas sonhava. Estava sonhando a sua realidade. E nada aconteceria, pois que era sonho, a virginal espuma de um sonho que o envolvia como uma escada em espiral envolve os passos do faroleiro ao cair da noite. Numa trans posiç pos ição ão vertigi vert iginosa nosa ( co mo naquel naqu eles es dias de s ua ado lescência em que sonhava que estava caindo, mal fe chava os olhos para dormir, ignorando que essa queda i mag i nári ná ri a era er a o anúnc an únc io de sua virilidade) passou a ver-se como se estivesse sendo sonhado. Sim, ele estava sendo sonhado, ele não existia — e a morte, mesmo deliberada e procurada pelas suas mãos, sig nificaria apenas o fim do sonho, do mesmo modo como, adolescente, lhe bastava abrir os olhos para verificar que deixara de cair, e a aflitiva queda que o aproximava do primeiro orgasmo não passava de um sonho. Assim que a sineta bateu, ele desceu, correndo, a escada do colégio. Queria alcançar a matinê do circo. Sua mão se desprendera do corrimão, ele tro peçara entre dois degraus, fora caindo. E agora, tal vez num agora fora do tempo ou do espaço, ou seme lhante à fímbria entre o cais e o casco de um navio, entre o estrondo e a incandescência, o vento e a telha quebrada, o roupão e o bibelô, a passagem aérea e a 54
j a u l a , e n t r e o e n g r a d a d o e m que qu e e s t a v a p r e g a d o o aviso "cuidado — vidro" e a interrogação a sair quin ze anos depois da garganta de um rapazinho, entre a estátua do estadista que se diluía na treva quando ele, uma hora antes, atravessara a praça, e a chave que guardara no bolso ao deixar entreaberta a porta da agência — e de novo entre o estampido e o re lumbre, o roupão e o bibelô, a jaula e o vento, dentro da morte dura como um diamante, Alexandre Viana via uma escada. Mas a sua sua morte — um episódio ou acontecimento pessoal, como um aniversário, o sabor de um cafezinho tomado em pé, o gesto da mão im paciente que alcança sob o lençol um seio nu — era como o vento do mar ou o apito de um navio. Vinha de fora, forjada por uma realidade exterior que se esvaía em imaterialidade e abstração e, sonho in vasor, o ocupava como um intruso, naquele instante crispado em que ele se despojava de sua vida como quem se despe para dormir, franqueando o espetáculo grotesco ou torpe de sua nudez para sempre ofendida ao vazio absoluto situado além das constelações e do fluir do tempo que, guardando a vida e o movimento, a memória e o êxtase, era também o fiel depositário da morte e das decomposições.
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o ROUPÃO
— ENTÃO, OS homens mata
ram a raposa... A mulher estava deitada na cama de uma das enfermarias do hospital, onde fora internada como indigente. Estendera-se de modo a ficar com a cabeça alta no travesseiro dobrado. Vestida num roupão cor de vinho, escutava a história narrada pela compa nheira de enfermaria que lhe ficava à esquerda, uma mulher magra que trazia no rosto, no pescoço e nos braç br aços os (e ce r t amen am en t e no resto rest o do corpo ocult ocu lto o por u ma bat a suj su j a) pequenas man ch as negras. E r a a his his tória de uma raposa morta, naquela manhã, no cen tro da cidade. O roupão que a mulher envergava lhe fora dado em Penedo, por um caixeiro-viajante, e desde então ela não se separava dele. Na pensão da Rua do Capim, para onde fora ao chegar a Maceió, usava-o diaria mente, com a sensação obtusa mas veemente de que ele lhe dava uma certa qualificação social — imagi nava que as madames que moravam nas belas casas do Farol e na Pajuçara, e às vezes desciam de carro defronte às lojas da Rua do Comércio, possuíam rou pões iguais. Naquela manhã, o enfermeiro que lhe viera apli ca r inj eção (n ão era er a propri pro pri amente ament e um enfe rmeir o, mas um servente que meses antes varria as enfer marias do hospital, e fora subitamente promovido porque, de tanto olhar o verdadeiro enfermeiro prá57
tico que também fora servente como ele, terminara aprendendo a ferver uma seringa, serrar uma am pola e espetar a agulha na carne magra e rugosa dos doen te tes) s) conta con tarara- lhe que um homem se havia hav ia suici sui ci dado, e o cadáver já chegara ao necrotério. O enfer meiro lhe dera a informação enquanto massageava o músculo do seu braço direito, pois acabara de apli car-lhe uma injeção. — Matou-se com um tiro. Mas há quem diga que ele foi assassinado pelo Sindicato da Morte. E acrescentou, guardando a agulha no estojo enegrecido: — Morte matada. Em sua cabeça se misturavam as duas histórias, a da raposa morta a pauladas e a do homem que se suicidara ou fora assassinado. Sindicato da Morte Mo rte.. .... M uita ui tass veze vezess el a já ouvira falar fal ar daqueles daquel es homens pagos para matar — que sumiam depois do crime, mandados para Goiás e outras fronteiras e lonjuras da terra, desapareciam da cadeia quando presos, eram absolvidos no júri ou surgiam por sua vez trucidados, os beiços lívidos selados pelo silêncio. A mulher fora internada para tratar de um esquentamento e um cancro mole. Na realidade, era como se estivesse podre. Pelo menos, numa dessas discussões tão comuns nas enfermarias de indigen tes, uma companheira, criatura escrofulosa e irritada que dias depois obtivera baixa, a acusara de estar podre, com as suas doenças do mundo. Revidara com outro insulto, em que insinuara que a outra estava leprosa; mas à noite, já haviam feito as pazes e con versavam como boas amigas. Todos os dias, tomava uma injeção (era um tratamento distribuído em séries, destinado a curar-lhe a sífilis, pois a gonorréia e o cancro mole já estavam praticamente curados, embora ela continuasse a fazer lavagens, pelo menos 58
deixara de sentir dor e ardência no momento de urinar), e nesse instante em que a agulha lhe pene trava no músculo, o enfermeiro sempre lhe dizia algo — dizia-lhe que o novo cirurgião comprara um automóvel e o encostara no oitão do outro lado, dizia que o menino com tifo morrera, dizia que a velha de Anadia — aquela que tinha olhos de sapiranga — estava passando muito mal e a mulher de oveiro bai xo, que viera de S ã o M iguel igu el dos dos Campo Ca mposs ( ou se seri ri a de Quebrangulo?), já recebera alta. Ficara boa sem dedo de médico, graças a uma promessa a São Miguelo Anjo. — Parece que há uma nova epidemia de tifo em Maceió. Naquela manhã, o enfermeiro lhe contara que o homem que vendia passagens de avião se matara com um tiro, e pensavam que ele fizera isso porque gastara com a rapariga o dinheiro que deveria ser entregue aos donos dos aviões. Mas podia ser também um crime de morte. Quando o enfermeiro saíra, prometendo- lhe ar r an j ar um maço de cigarro ciga rros, s, ela voltara a deitar-se, a cabeça alta no travesseiro duro. A morte de Alexandre Viana não a tocava. Em primeiro lugar, a morte era uma coisa que de modo algum a interessava. Parcialmente curada das doen ças do mundo, passava horas e horas sozinha pen sando na realização, que supunha estar próxima (e contudo jamais se consumaria), de seu grande sonho: morar na pensão da Dina. Desde que chegara a Maceió, este era o seu maior desejo, e o fato de j a m a i s o t e r a l c a n ç a d o p a r e c i a d a r - l he a i n d a m a i s força para atingi-lo. Em segundo lugar, não podia imaginar que já passara parte de uma noite com o suicida. Fora semanas depois de sua chegada a Ma ceió. Saíra da pensão para tomar um sorvete mas o homem não tinha sorvete de coco, o seu prefe59
rido, e ela desistira, ficara vagando pelas imediações, fora até o Buraco-do-Galo. Alexandre Viana, que aca bara de acender um cigarro e expelia dois finos rolos de fumaça pelas narinas, aproximara-se dela. No quarto da pensão, quando ela já tirara a roupa, fican do só de combinação, estendia a mão para apanhar o frasco de cheiro e perfumar os sovacos, julgando estar agindo como uma senhora da alta sociedade, ele a abraçara, levantara-lhe a combinação e, alisando-lhe as nádegas, fizera-lhe certa proposta. Ela se limitara a dizer, baixo mas com uma firmeza sur preendente, em que talvez houvesse certa ética profis sional ou até mesmo teimosia: "Fora do organismo, nada." Sua resposta o contentara, ele não insistira, e tinham ido para a cama. Ao sair, ele achara graça em seu roupão cor de vinho, chegara a dizer que ela parecia uma mulher casada, o que muito a envai decera. Ela não sabia que ele estava morto, e não o reco nheceria, aliás, se lhe fosse permitido entrar no ne crotério e olhar para o rosto de Alexandre Viana. Seus olhos, de um castanho esverdeado, sempre apresenta vam um brilho úmido; e uma parte do rosto, à altura do ouvido direito, transformara-se em repelente mas sa sanguinolenta que pouco possuía de humano. Ela j a m a i s p oder od erii a r e c o n h e c ê - l o p o r que qu e j á s e a p a g a r a para sempre de sua memória a lembrança tênue de seu rosto fino e astucioso como o focinho de uma raposa. Também não tinha a certeza de que fora a ele — ao homem encontrado perto do Buraco-do-Galo, que lhe fizera aquela proposta (ou teria sido outro?) e cuja unha do indicador da mão esquerda estava quase totalmente coberta por uma mancha marrom de nicotina — e não ao sujeito gordo com quem esti vera na noite seguinte, que contara a sua história. 60
Um deles lhe perguntara, após a trepada, como viera parar ali. Ela sabia que muitos faziam essas perguntas apenas para, enquanto descansavam, angariar forças para dar uma segunda — e a própria história possuía elementos para excitá-los, fazer com que o desejo fosse de novo nascendo nos putanheiros corpos esti rados e nos olhos atentos. Ele (o homem do Buracodo-Galo ou o sujeito gordo, de mão extraordinaria me nt e peluda e nariz nar iz de rebolo) rebol o) oferec ofe recera era-l -lhe he um cigarro, um Iolanda Azul, e chegara mesmo a acen dê-lo, gentileza que a encantara, e lhe provocara mesmo certo meteórico desejo de fazer de novo, por puro prazer, como se não estivesse numa pensão e não pagasse quarto e comida. Contara tudo — não uma história linear, como às vezes conseguia ler nos jornais ou nos folhetos ven didos na Fe i ra do Pa s sa ri nh o (e como eram, er am, embor emb oraa ela o ignorasse, as histórias dos romancistas do sé culo X I X e de seus meigos epígonos epígonos da atu al id ad e) ; não uma história que começava com o seu nascimen to e terminava ali naquela cama no quarto de uma casa da Rua do Capim, mas uma história que come çava em qualquer lugar e terminava em qualquer lugar, desurdida e fragmentária, e na qual o depois precedia o antes, a travessia da noite guardava dias e sóis já extintos, o amanhã se antecipava ao confuso trasanteontem mal vivido. Era, enfim, uma história mal contada, e toda embaralhada, como de cigano ou ladrão de cavalo, pois ela não sabia histórias, e, além do mais, não estava certa de que a sua vida fosse realmente uma história digna de ser narrada como aquelas que os cegos cantavam nas feiras e os poetas populares celebravam nos folhetos de letra redonda vendidos na Feira do Passarinho. 61
De qualquer modo, contara ao homem, em sua linguagem substancial, feita quase que exclusiva mente de nomes e verbos, a sua desaventura — de onde viera, como perdera o cabaço, de que modo fora emputecendo até entrar, com uma pequena mala em que estava guardado um roupão cor de vinho, na quela pensão da Rua do Capim. Principiara a história na estrada cercada de anjicos e mulungus. Os dias eram grandes. Ela, o pai, a mãe e mais dois irmãos iam numa viajada lenta e contínua, de criaturas habituadas ao mato, como as cobra cob rass e preás. Nas lé gua s vencidas, venci das, a m a n h ã se fazia tarde, e as corujas vinham mais uma vez fundar o seu império nas estacas desoladas da noite. Dor miam à beira dos caminhos, junto aos xiquexiques e mandacarus e, sem tocas, eram mais pobres que os bichos. A madrugada refrescava os corpos queimados pelos sóis sucessivos. E, aparecidos no céu os primei ros sinais do dia, levantavam-se e tornavam a vencer léguas de beiço. Queriam chegar o mais cedo possível a Tinhorão. A estrada era seca, estorricada, cruzada pelos camaleões, e no luzente céu sem nuvens passa vam as arribaçãs, rumo às terras de água. Mas em breve a palavra do profeta se cumpriria em verdade e esplendor, e as caatingas requeimadas virariam vergéis. A terra seria repartida com os pobres. Have ria sempre água nos açudes e cacimbas, e peixes nos riachos crescidos como rios perenes. Em busca desse milagre, muitas noites haviam dormido ao relento. As crianças choramingavam, cansadas e de barriga vazia. Na paisagem de rios secos e sobrevôos de aves rapinantes, andavam léguas até conseguir uma cane ca d'água numa palhoça onde um jegue ou um bode era sinal de grandeza. E caminhavam no dia raso e torcido pelo sol. E cruzavam com ciganos que leva vam cavalos roubados para vender nas feiras, defun62
tos em redes, cantadores de excelências, vaqueiros vestidos de couro. E paravam para dormir. E, acor dados sobre a madrugada, punham-se de novo pelas estradas lavadas pelos alvores do dia, e já sobrevoa das pelos acauãs que, de vez em quando, mergulha vam no mato ralo, em busca de cobras. Os troços pesavam-lhes nas costas e nas mãos, o vazio na boca do estômago acusava fome mas o sentimento de puri ficação próxima os ajudava a suportar as privações da viagem, e a poupar a rapadura, a farinha e a carne-seca, que eram o decomer de cada dia. Os ro meiros aumentavam; e, nos pequenos cortejos de homens carregando trouxas e bruacas, e mulheres levando meninos escanchados nas ancas, havia devo tos cheios de medalhas, cegos e aleijados, feridentos cheios de postemas, e até um leproso que descera os arrozais do Rio São Francisco, atrás da salvação. Nunca jamais o esqueceu, naquela nação de gente, o romeiro de boca de ninho; diziam que ele fora ho mem de muitas posses, e abandonara família e fa zenda para anunciar a volta de el-rei Dom Sebastião. Ele não se destinava ao Tinhorão — tinha caminho próprio, procurava lugar de pedras para reunir pere grinos e cumprir a sua missão na Terra. A noite des pontava, a papa-ceia surgia em toda a sua glória, os vaga-lumes apareciam e desapareciam nas touceiras, os grilos chiavam, os juazeiros e aroeiras se sumiam nas lonjuras apagadas. E, no seu silêncio de bicho, ela fechava os olhos, deitada no chão duro. E, quando dormia, à luz das estrelas, perseguiam-na sonhos deambulatórios e vôos de pássaros agourentos. E vi nham-lhe à memória, ainda, o chiqueiro onde os bodes cagavam bolinhas cor de jabuticaba e a cerca de avelós junto à qual ela se agachara, com dor de barriga. E outras imagens se sucederam, em sua men te, naquele instante em que apertava entre os dedos 63
o segundo Iolanda Azul dado pelo homem: o case bre, o curral, as esteiras, as roupas que fediam a suor. Naquela travessia, quando os dias eram tão iguais que a paisagem adusta parecia ser a mesma, rebrotada de si mesma, os bichos que mais a atraíam eram os calangos e lagartixas. Uma vez, advertida por um ruído de mato seco, tentara correr atrás de uma lagartixa, e seu pai lhe gritara, cheio de furor. Um dia, findou-se a sucessão de mulungus, coroas-defrade e pedregulhos, e alcançaram as terras do santo, que eram verdes e úmidas, ou assim lhe pareciam, agora, na memória breve e traída. O pai entregara ao profeta umas cédulas velhas, apuradas na venda da casa e do roçado — dinheiro de ponta de lenço. Ajoelhara-se diante do santo que o abençoou, fitando-o com uns olhos remelentos. Alguém vira o pro feta a trabalhar, certa manhã, auxiliado por cinco en xadas manejadas por mãos invisíveis. Uma vez ele assobiara e passarinhos tinham vindo comer em suas mãos. Tinhorão estava cheio de gente, os homens plantavam milho, feijão e mandioca. Os meninos te miam que o santo os castigasse e iam brincar longe. Numa noite chuvosa, ela dormia na esteira quando o pai a acordou. O santo a estava chamando. Saiu pelo caminho cheio de lama, temendo pisar nos sapos. Ao entrar, molhada, na casa do santo, adivinhou logo o motivo do chamamento — e não porque já lhe tives sem contado certos hábitos e preferências do profeta, e ela mesmo se sentisse numa idade em que a seguia uma curiosidade entremeada de temor, mas simples mente porque o assanho com que a recebera, de ca misa de madapolão e sem calças, esclarecia as suas intenções. Ela gritou, golpeada por uma dor fina ( u m a dor de f a c a) quando qua ndo o sa nto nt o se deitou sobre sobr e ela na esteira, e sua barba a arranhava, e crescia a sua respiração de asmático. Algum tempo depois, ela 64
não saberia dizer se o santo lhe dissera qualquer pa lavra ou se tudo transcorrera em silêncio e gestos espargidos. Voltou para casa correndo. Não chuvis cava mais, na noite de marimbondos e pássaros so nâmbulos. Seu pai já estava dormindo e nem lhe perguntou, no dia seguinte, nem em qualquer dos outros dias, o que o santo queria. Chegou a receber novos recados — ia, e a dor de faca era menor, só uma formigagem em suas partes, que depois se diluiu numa mistura de desejo e náusea. Numa tarde, ela estava tirando a roupa, na beira do rio, para tomar banho (e perto cantava um pitiguari, aquele passa rinho que anuncia a chegada de pessoas distantes), quando viu, entre as touceiras, um garoto a olhar as saúnas céleres nas águas esverdeadas. Foi ela que, fogosa, o chamou com as mãos úmidas, fê-lo aproxi mar-se, estendeu-se junto a uma touça de capim, ar rastou-o. Mas o homem que a ouvia desejava que ela resu misse o fim da história, talvez quisesse dar a segunda ou pretendesse ir embora. E ela acrescentou que uma força da polícia invadira o roçado, o cabo do desta camento dera no profeta uma pisa de cipó-de-boi; seu pai fez-se na faca, matou um soldado, sumiu pelo mato. De primeiro, ficara rodando pelo oco do mun do, ora num lugar, ora noutro, morou uns tempos com co m um guarda-fre guarda- freios ios ( e r a um viúv viúvo, o, de orel has a c a banadas, e uma mão de jia que lhe dava gastura quando tocava no seu corpo), depois se amigou com um velho enxerido que fora tangerino de boiada, até que batera no Beco do Camartelo, em Penedo. E du rante segundos pairou no quarto, quase materializa da, a atmosfera criada pela magia daquela palavra que tantas coisas poderia evocar: uma cidade, uma igreja em cujo forro se penduravam centenas de mor cegos, os tesouros enterrados pelos holandeses, os ca65
lungas de cerâmica de uma feira, a água cantando na bolina de uma embarcação, os pífanos, pratos e zabumba de um alegre e súbito esquenta-mulher, os vales verdes, os baixios onde os arrozais se estendiam, o barrento Rio São Francisco escorrendo entre coroas de areia e guardando, em suas águas, surubins, ro balos, piranhas e xiras. Para ela, a palavra Penedo significava principalmente a luz mortiça de uma placa no quarto estreito da pensão em que morava no Beco do Camartelo, e a litogravura emoldurada de São Sebastião trespassado por flechas que pregara na parede. E era o lugar em que o caixeiro-viajante (cuja mania era comer fritada de camarão com cer ve j a) a pres pr es ente en te ar a com co m o roupã ro upão o cor de vinho. vinh o. O ho mem não queria dar a segunda — queria apenas ouvir, era decerto um desses caras conversadores, que gostam de fazer perguntas, meter-se na vida dos ou tros. Jogara o toco de cigarro no chão de tijolo, apro ximara-se da bacia para lavar-se. Ela também se levantara, vestira o roupão, sentira-se de repente completa e digna como uma senhora após cumprir inevitável rito doméstico. Ao vê-la de roupão, o ho mem — que, já de cueca e camisa, e sentado à beira da cama, calçava os sapatos — sorrira e fizera o co mentário que tanto a envaidecera. Ela lhe contara, então, que fora o presente de um caixeiro-viajante, em Penedo. Não lhe dissera que o grande sonho de sua vida era usar aquele roupão na pensão da Dina, quando finalmente ali fosse aceita. Não lhe confiara que, várias vezes, tentara ser admitida lá — procurara a Dina, expusera-lhe as suas pretensões, enquanto a sua interlocutora a olhava dos pés à cabeça, como se ela fosse um animal que estivessem avaliando numa feira, e mantinha o rosto fechado de quem não encon trava, nessa inspeção, motivo para aceitar a pro66
posta. Não era possível, os quartos estavam todos ocupados, até mulheres do Recife lhe tinham escrito e mandado retratos, à espera de vagas. Ao voltar des sas visitas mal sucedidas, ruminava o seu desaponta mento, e não encontrava um motivo para explicar as suas dificuldades. Como puta, não era pior nem me lhor do que as outras. Não estava sofrendo então de nenhuma doença do mundo — pegara, semana antes, uma camada de chatos, mas conseguira libertar-se dela raspando os pentelhos e usando uma pomada amarela que o homem da farmácia lhe vendera. Con siderava-se limpa, asseada, tomava banho duas vezes por dia, já recebera propostas para amigar-se. Por que a Dina não a queria em sua pensão? Ali, na cama do hospital, voltava a fazer a per gunta, e logo se tranqüilizava. Não estava certa de que a Dina não a quisesse, e tinha a certeza de que um dia seria aceita lá, antes de ir para o quarto tomaria um copo de cerveja e dançaria com o homem que se tivesse agradado dela. Dentro de algumas semanas, estaria livre das ru bras lavagens de permanganato e das injeções, e dei xaria o hospital. Recomeçaria tudo, de qualquer lugar, iria se aproximando, concentricamente, da pensão da Dina, com a paciência de uma ave de ra pina que se apronta para o saque. E um dia, em grande, vestida no roupão cor de vinho, abriria a j a n e l a d e s e u q u a r t o n a p e n s ã o d e D i n a , o l h a r i a c h e i a de langor, de dentro de sua vitória, a clara manhã futura — uma manhã luminosa, cujos emblemas se riam bondes e carroças, o mar e os navios — acom panharia os passos dos transeuntes e ouviria os insis tentes rumores matinais com a espessa sensação de que vencera na vida. Na cama ao lado, a mulher de manchas negras no rosto e nos braços, e que era uma verdadeira ana6 7
bolena, continuava a mesma história, ou talvez outra história, que surgira de dentro da primeira como uma caixa vazia guardada dentro de outra caixa. De qual quer modo, era uma história sem começo e sem fim; estes eram meras convenções exigidas pela pretensa racionalidade de uma narrativa que, como a própria vida, estava irremediavelmente condenada ao frag mentário, era semelhante a um espelho espatifado no chão. Ela fingia escutá-la, chegava a agarrar no ar alguns fiapos de frases, mas seu pensamento an dava longe, perdia-se no caminho requeimado de pa ragens fraudadas pela infidelidade de uma memória que poderia ser comparada a uma sucessão de man chas negras numa paisagem vazia. Embrenhava-se num futuro enigmático, todavia nítido, aonde ela se situava, silenciosa e clemente, sem precisar de trocar de traje, uma vez que já se achava paramentada para esse fulgente e redondo dia vindouro, envolvida no roupão cor de vinho com que o caixeiro-viajante a presenteara em Penedo. De novo lhe voltava ao espírito a lembrança da risad ri sadaa daquele homem ho mem (t al alvez vez o que ela en c on t r a r a à saída do Buraco-do-Galo, talvez o homem gordo e peludo que lhe oferecera um cigarro após a trepada, talvez ambos, talvez nenhum deles e sim um terceiro que usava camisa-de-vênus ou um quarto ou quinto), e ela se lembrava do anão, que a visitava uma vez por semana, e lhe percorria o corpo como, lenta e industriosamente, uma formiga percorre toda vasti dão da terra, ou um besouro sobrevoa incansavel mente o pistilo de uma flor, ou uma bomba suga a água de um poço. De olhos fechados, ela sentia o anão sobre ela, amando-a com o seu minucioso e fre nético amor de anão; e as orelhas dele lhe roçavam os seios que se intumesciam de súbito, como se à volúpia daquele momento tivesse aderido algum 68
inconfessável instinto maternal. E como o anão era austero! Dos minúsculos suspensórios, dos sapatos de duas cores, da roupa de linho, da camisa de cam braia com monograma, da gravata vermelha e dos óculos, emanava inconfundível aura de severidade, que se ajustava à sua condição de comerciante res peitado em toda a cidade, banqueiro de jogo-dobicho, proprietário de quase uma rua lá para as bandas do Trapiche da Barra, possuidor de grandes depósitos bancários, e amigo do interventor e do chefe de polícia. E, ainda de olhos fechados, e não querendo abri-los, como que para não provocar a ruptura do deslumbramento que a mantinha solta no espaço num esponjoso esplendor, ela admitia que, com o anão, gozava mais do que com os outros ho mens, mesmo quando se entregava a estes com a disposição de sentir, e não repetindo uma sucessão de gestos e movimentos mecânicos. Realmente, era inútil negar, ela gozava mais com o anão, num es pasmo prolongado e gelatinoso, que a fazia gemer, mudada em água e fúria. E, sentindo-o percorrê-la, como uma formiga ou um besouro, e tocada pela sua espessa língua de cão, ela reconhecia que, verda deiramente, só gozava com ele. Quando fechava os olhos, o anão se agigantava, transformado num ani mal trombejante. Minutos depois, já envolta no roupão, tentava esconder de si mesma a verdade que fulgurava em seu espasmo e a instigava a admitir uma franja de vileza e bestialidade em sua vida (como se gozar com um anão fosse um pecado, uma anormalidade inconfessável). Mas aquele homem da risada e do cigarro não tivera a força e a pertinácia íntima de conservar-se intocável em sua memória, talvez nenhum homem do mundo fosse dotado dessa virtude, e, sim, apenas alguém dentro de um sonho como um sapato dentro 69
de uma caixa de sapatos. Ao vê-la de roupão, rira, reconhecera nela o ar senhorial e doméstico das mu lheres casadas que andavam de carro e moravam em casas onde havia jardins e gaiolas de passarinhos e cadeiras com almofadas e um disco rodando infle xivelmente numa vitrola. E durante um segundo, não mais, ela fechara os olhos, e se sentira como se já j á e s t i v e s s e e m s e u q u a r t o n a p e n s ã o d a D i n a , p l e namente investida de sua futura e compacta digni dade, fazendo gestos compassados e langorosos, le vantando lentamente um braço sem que a manga do roupão lhe resvalasse até o cotovelo, aceitando um copo de cerveja gelada oferecido por um juiz de Direito ou um desembargador. — Foi mesmo suicídio. Um investigador me disse lá na venda. O enfermeiro voltara, com a carteira de cigarros. — A cidade está cheia de marinheiros ameriricanos.
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O HOMEM DO BALCÃO
No BONDE, os dois advogados conversavam sobre a morte da raposa. — Foi um ato de selvageria. — Não concordo concor do com o distin dis tinto to colega. P a r a mim, foi a reação natural de um punhado de pes soas que representavam a Civilização — e, intima mente, censurou o interlocutor que, guedelhudo, usava uma brilhantina enjoativa. Uma locomotiva silvava, fagulhenta, na platafor ma da estação. — Mas matar um pobre animal indefeso? Podiam tê-lo capturado e oferecê-lo a um jardim zoológico. Ou então tornar a jogá-lo no mato. No portão do palácio do bispo, uma devota, com cara de quaresma e o peito cheio de escapulários, acenava para um padre no outro lado da rua. As rodas de uma carroça chiavam nos paralelepípedos lavados pelo sol forte. — Em primeir o lugar lu gar , não n ão temos te mos n e n h u m ja jar dim zoológico... — No Recife tem. Podiam mandar para lá. E aposto que não há nele nenhuma raposa. Os brasi leiros gostam de valorizar os bichos dos outros paí ses, os elefantes, os leões, os tigres. E acham que os nossos macacos são inferiores aos africanos. Com plexo de inferioridade. Tirou do bolso a cigarreira, que ostentava as suas iniciais. Fora-lhe dada, no Recife, quando de sua 71
formatura, por uma mulher casada — um romance antigo, que gostava de contar nos bares e cartórios, com alguns pormenores eróticos puramente imagi nários. — Mas raposa gosta muito de comer galinha. Eu me lembro, quando era menino, uma vez o galinheiro lá em casa amanheceu que era um verdadeiro cemi tério, penas por todos os lados... — Continuo sustentando que foi uma crueldade. Quando o bonde dobrou a esquina, as dunas apa receram, avançando quase brancas para o mar azul. Nas casas gastadas do tempo, escorria a sombra fur tiva da vida — rostos, gestos, vozes que subiam, baixavam, entrecruzavam-se, fundiam-se num rumor incoerente, tecendo no ar claro um tapete arbitrário de formas, cores e sons. Contudo, estampava-se nas fisionomias e atitudes das pessoas debruçadas às ja j a n e l a s o u p a s s a n d o p e l a s r u a s a l g o d e i n deva de vass s á vel ve l . O que nelas havia de mais exterior e ostensivo não bastava para que fossem identificadas. Dir-se-ia que cada uma carregava um segredo, entregava-se a uma faina secreta como uma aranha que, fingindo-se de ociosa, lançasse no ar vazio uma teia caprichosa e invisível, nela acumulando sua pertinácia e expecta tiva. Somos todos aranhas, ou lacraias que se escon dem sob as camas — sob o segredo das camas que só à noite se abrem para a verdade profunda dos seres que amam e sonham, e se chocam contra o muro dos outros corpos, e procuram amortalhar sua solidão nos lençóis indiferentes — ou entre as madeiras podres dos porões e dos sótãos, pensou o advogado, lembrando-se das cenas que costumava narrar, aos colegas do foro, a respeito daquele seu caso amoroso. E como mentimos! acrescentou mentalmente, olhan72
do a estátua do Visconde de Sinimbu e algumas cr i an ça s ( uma um a estava est ava de velocípede) velocípede) que cor co r ri am entre os oitizeiros. A sua antiga amante pernambu cana era casada com um barbeiro, aliás um corno manso, e não com um sargento da Polícia Militar, a que ele costumava dar a pintura de ciumento e belicoso. E também não era verdade que os encon tros fossem na casa dela, nas noites em que o marido imaginário estava de plantão. Eram num recurso, não só porque ela tinha quatro filhos pequenos como ainda porque temia o falatório da vizinhança. — Respeito a opinião do colega, mas... Sentado no banco de trás, o homem que escrevia cartas anônimas ouvia, com boa orelha, a conversa dos bacharéis, o olhar alongado para uma alvarenga plantada na praia. — E o suicídi suic ídio o de Ale Alexa xandr ndr e Vi Vian ana, a, h e i n? Suas narinas se dilataram, ele sorveu a maresia — aquele cheiro que, ligando Maceió a todo o uni verso, impregnava até os autos dos cartórios. — Es t ã o dizendo dizendo aí que foi foi crime cr ime do Si nd i c a t o da Morte. — Em sua voz havia um frêmito de medo. Era como se temesse que o seu nome de lacraia ou aranha também estivesse incluído na relação secreta do tribunal invisível. Em fim de contas, não sabia dizer se era inocente ou culpado. E, mesmo se fosse inocente, estaria salvo? — Não, já está tudo esclarecido. Ele se matou com um tiro de revólver. Um rapaz tão novo, com um bom bo m empr emp r ego eg o — e de futuro! futur o! pr a t i c ando an do es esse se ato desvairado. E deixou um filho pequeno. Na calçada, um menino passava, com uma gaiola de passarinho. Era um curió. — Ele tinha uma rapariga. O bonde atingiu a praia. O homem do banco tra seiro tentou concentrar a sua atenção na carta que 73
estava redigindo mentalmente. Vossa Reverendíssi ma? Vossa Excelência? Senhor Bispo? Decidira de nunciar certo cônego que, segundo informações che gadas aos seus ouvidos, dormia com a empregada. Mas estacava naquele pormenor — como tratar o bispo? Não podia perguntar a ninguém. — O distinto colega sabe que o homem é o único animal que pratica o suicídio? — e olhou para os sapatos, que Gonguila engraxara naquela manhã. Como brilhavam! Na praia, um menino soltava uma arraia. — Que sol, hein? O dia di a er a redondo, verde ve rdemar. mar. Ondas Onda s cor co r ri am, umas um as após das outras out ras,, e vi nh a dissolver-se dissolver-se na ar ei a o brancume de suas espumas. — Aquele navio ali é norte-americano. — Já vi uns marinheiros espalhados por aí. Mas que paisagem! Com o seu passo gingante, um urubu se aproxi mava da beira da água. — É uma paisagem admirável. No Nordeste não há iguais. E pessoas viajadas, que conhecem o estran geiro, garantem que temos as mais belas praias do mundo. Veja que céu azul. Um navio rouquejava. O mar era como uma grande porta aberta, toda pintada de azul. Ele, porém, pertencia à raça dos que ficam, dos animais que permanecem cativos mesmo com a jaula aberta. Estava certo de que jamais emigraria. — Não duvido. Mas, sobre o suicídio... Um urubu sobrevoava, rasante, um telhado ene grecido. — Olhe a casa do professor Serafim Gonçalves. Olhe a biblioteca. Dizem que ele deixa as janelas abertas para impressionar quem passa. 74
No mar calmo, desatavam-se ondas moles e mornas. — Cada um tem as suas vaidades. Mas ele é um grande advogado. E vai fazer uma carreira política brilhante. Terminará senador ou governador deste Estado. No ponto de parada, o motorneiro esperava que o cego descesse, ajudado pelo guia, um amarelinho empambado. E desceu também uma velha, com uma cesta de sapotis. — Mas como ia lhe dizendo, os animais irracio nais não se suicidam. Só o homem, que é racional, se mata. Não acha que há um vínculo entre o sui cídio e o uso da razão? O outro recordou-se de uma conversa ouvida, na véspera, entre desembargadores, quando fora ao tri bunal dar entrada numa apelação. — O livre-arbítrio... O seu int erloc er locuto utorr tirou ti rou os óculos emba ça çados dos , limpou-os com o lenço, balanceou a cabeça. — Chegou onde eu queria chegar. Com efeito, o livre-arbítrio dá ao homem a liberdade de esco lher a sua própria morte. O bonde entrara na rua torta. O homem que es crevia cartas anônimas olhou para as fachadas de azulejos dos velhos sobrados. Num deles funcionava a pensão da Dina. Imaginou mulheres nuas, chei rando a loção, surubas que só terminavam ao ama nhecer. Era assim que fazia em seu quarto no Palácio Velho, quando tocava punheta. — Es t e é que é o prob pr oble lema ma es e s se senc ncii al : o da da liber li berdade dade do homem, ho mem, e o de seus li mite mi tes. s. Não acha que...? O bonde parara no ponto da Associação Comer cial. O homem do banco traseiro saltou. Do outro lado estava o armazém, com os seus sacos, barris 75
e réstias de cebolas, o retrato de Getúlio Vargas na parede amarelecida, e o balcão de onde ele ouvia os apitos dos navios. Era como se o seu universo termi nasse ali, no chapinhar da água escura e grossa sob as estacas dos trapiches, nas locas dos goiamuns, no cheiro de maresia que lhe entrava pelas narinas, nas faturas que passavam pelas suas mãos, nos gradis que a ferrugem ia puindo, nos sacos de açúcar à espera de embarque, no chão manchado de melaço. Vossa Exma. Reverendíssima? Eminência? Não. Emi nência era só para os cardeais. Imóvel à beira da calçada, esperou que o caminhão passasse, e olhou para um dos sobrados. Uma mulata de olhos verdes, debruçada no gradil, assistia ao movimento da rua. À noite, se sentisse vontade de tocar bronha, haveria de lembrar-se dela — dos cabelos desalinhados de quem acabara de acordar, do roupão de chita, dos sovacos raspados. Fecharia os olhos, e a veria toda arreganhada. Senhor Bispo. Atravessou a rua, rumo ao balcão que o esperava. Mas não era no seu em prego que ele escrevia as cartas anônimas. Não era no balcão do armazém, junto aos gosmentos sacos de açúcar, que ele escrevia as cartas. Ali, limitava-se a vigiar, ouvir, e escutava as conver sas, e contemplava os navios de cascos negrentos e conveses brancos, enquanto seu espírito ia desenro lando, como se fosse um novelo, a frase que haveria de escrever, à noite, sentado à mesinha de seu quar to de solteiro no Palácio Velho — de onde haveria de mudar-se, mais dia menos dia, uma vez que o velho palácio ia ser demolido, para que em seu lugar se construísse um edifício moderno. E a frase ia e vinha, encompridava-se, tornava-se ferina e sucinta, algo estritamente informacional: Sua mulher está traindo o insigne conterrâneo. conterrâneo. Uma pessoa amiga. amig a. Quanto à expressão "insigne conterrâneo", lera-a numa nota 76
de aniversário saída na Gazeta de Alagoas, gostara dela e decidira utilizá-la em sua próxima carta anô nima, que por sinal seria dirigida a um dentista. Esgravatando um dente com um pau de fósforo que afinara com a unha, pensava em seu ofício secreto, revelando os segredos, denunciando tudo o que se fazia às escondidas na cidade. E do fundo de sua infância vinha a lembrança daquela noite em que observara pela primeira vez o estratagema das ocultações. Estava deitado no quarto sem luz, quando ouviu baterem suavemente à porta da rua. Ficou assustado. Quem seria? Teve desejo de chamar pela mãe, para que viesse protegê-lo contra a batida escassa e madrugadeira, mas de sú bito escutou, no quarto vizinho, um rumor de chine los e passos afastando-se em direção à sala. Uma lu fada de vento entrou pela casa, dissolveu-se nas lí vidas paredes de taipa. Depois, escutou a porta fechar-se, umas pisadas cautelosas, a voz de sua mãe, outra vez. Fechou os olhos, porque os passos de sua mãe se encaminharam para o seu quarto, sentiu a porta abrir-se e um corpo de cheiro familiar estacio nado junto ao seu, uma mão puxando o lençol de bra mante bem para perto de seu rosto — e a luz trêmula da lamparina que sua mãe trouxera lhe deu a von tade de abrir os olhos, mostrar que não estava dor mindo. Assim que ela saiu, voltou a descerrar as pál pebras e ficou escutando os menores ruídos. Dir-se-ia que a casa estava cheia de movimento, embora tudo não passasse de uma seqüência de estalidos e peque nos sons prudentes. Os passos de sua mãe foram até a cozinha, ele ouviu um jorro dágua caindo em uma bacia. Ela voltou, fechou devagar a porta do quarto contíguo. E ele acompanhava os rumores incom preensíveis, cada um dos quais deveria ter um sentido secreto. Eram os sapatos que iam caindo, cochichos, 77
o colchão da cama cedendo a um peso que não lhe era familiar. Que estariam fazendo? Daí a pouco, ouviu algo como uma luta, o filete de duas respira ções desordenadas, era como se a chuva estivesse ba tendo nas telhas. Em seguida, houve um silêncio demorado, e ele terminou dormindo. No dia seguinte, ainda se perguntou que mistério era aquele. Quase contara o estranho acontecimento a um menino da vizinhança, mas se lembrou de que sua mãe viera verificar se ele dormia e, ao café, nada lhe dissera a respeito daquela visita noturna. Alguns dias depois, ela comprou brim e fez-lhe uma roupa. A alegria que sentiu, de roupa nova, levou-o a só raramente evo car o episódio. Uma vez, quisera brincar com uns garotos que tinham vindo morar perto de sua casa, e um deles o repelira: "Não brinco com filho de rapariga." Du rante muitos dias, desejara perguntar à mãe a signi ficação das palavras que o demitiam de certos con vívios. Não tinha pai. Certa ocasião perguntara por ele, e a mãe respondera que havia morrido. Julgou que fosse filho de rapariga qualquer criança cujo pai tivesse morrido. Não tardou, porém, a descobrir o engano. Um menino, conversando com ele na cal çada da esquina, disse que ia estudar de graça na escola porque era filho de uma viúva, seu pai morre ra tuberculoso. Havia, naturalmente, uma grande diferença entre filho de rapariga e filho de viúva. Os maridos das viúvas morriam tuberculosos. Depois, vieram os anos no Orfanato São Do mingos. Tornara-se rapaz, fizera o curso de contabi lidade, arranjara um emprego, e seus olhos passaram a encher-se de navios, e em seus ouvidos vinham morrer os apitos que anunciavam partidas e viagens. Não se casara e morava naquele quarto alugado no 78
Palácio Velho, aonde fora parar depois de ter vivido, alguns anos, no Sovaco da Ovelha. Estendido na cama, ficava a escutar o vento numa folha de zinco. Não tinha sono, revirava-se, deitava-se de bruços, coçava-se. Seria o barulho do zinco ou de uma bacia a encher-se de água, naquele ponto obscuro de sua infância que jamais poderia ser apagado? Portais carunchentos estalavam. Ratos atravessavam poças de mijo. O vento esfolava as bananeiras. Uma caranguejeira se engastava na tre va como uma jóia letal. Preclaro conterrâneo: Su Suaa mulher está... No Orfanato São Domingos, apren dera a colocar os pronomes e as crases. Assim, podia orgulhar-se de suas cartas. Não cometia nenhum erro grosseiro, embora admitisse que sua ortografia nem sempre era correta, pois não se familiarizara com a reforma. Ao sol-pôr, saía antes do fechamento do armazém. Tomava o bonde, saltava no Relógio Oficial e mis turava-se aos grupos de conhecidos que estracinhavam reputações, ouvia mais do que falava. Enquanto estava escutando a conversaria grande que os tiros de um pistoleiro do Sindicato da Morte poderiam dispersar de repente, seus olhos acompanhavam as mulheres que atravessavam a rua e sumiam nas sapatarias e lojas de fazenda, seguiam os passos dos homens que entravam no Bilhar do Comércio e, por entre as mesas, iam até o fundo, desapareciam no lugar reservado onde se jogava pôquer. Nobre amigo. O gerente de sua firma está viciado no pôquer, ainda ontem perdeu... Avançava a cabeça para ver me lhor, e a inclinava para que a orelha pudesse captar a palavra dita em voz baixa. Após vários anos de convivência com todos aque les grupos que se espalhavam pela Rua do Comércio, já j á s a b i a qua qu a i s o s ma i s obs ob s erva er vado dorr es es,, o s que qu e l i n d a v a m 79
e deslindavam os casos, os que estavam em condições de propa pr opala larr a info in forma rmação ção de que car eci a ( j á que passava o dia quase todo no balcão do armazém, e não podia seguir a adúltera ou o concussionário). E, enquanto à sua volta se tratava de embarque e desembarque de mercadorias, e circulavam faturas e despachos, ele, sotrancão, arquitetava a frase: Distinta conterrânea: Seu marido montou casa para um a rapariga na Rua da Areia. Areia. No quarto, havia sempre uma boa provisão de envelopes azuis, tipo comercial, e folhas de papel almaço (cada uma delas era cortada e dava para quatro cartas), além de selos. Assim, não precisava exibir ao funcionário do guichê postal o envelope onde o nome do destinatá rio figurava em letras desenhadas como se fossem de imprensa. Colocava-o diretamente na caixa e voltava para o armazém. Antes de entrar, ficava parado à porta. Era como uma aranha, condenada ao suplício eterno das expectativas, enquanto seu olhar vaguea va, indo desde a alta parede da Alfândega ao vôo das gaivotas que sobrevoavam não apenas casas, trapi ches, negras madeiras jamais apodrecidas, a pensão da Dina, a Recebedoria de Rendas, currais de peixe, mas a granulosa e odorante substância do momento, que envolvia os aparatos navais da praça próxima, os degraus e as colunas brancas do edifício da Asso ciação Comercial, as pedras agressivas da rua, que o tempo, os pés dos homens e as rodas dos veículos não tinham ainda conseguido polir, e o ar claro onde o cheiro de salsugem se misturava ao dos mon tes de açúcar ensacado no fundo dos depósitos. E a rua torta, com a agência do telégrafo submarino, os bordéis localizados em sobrados vetustos, as com panhias de seguros, as agências consulares, os ban cos, os armazéns, as casas de representações, os bo80
tecos gordurosos, parecia ser nutrida por tudo o que viesse do mar: gente, navio, papel, vento, alga. No início do século XVII, quando naquela região havia apenas a senzala de um engenho de açúcar, chamado Massavó, junto ao qual se erguera uma ca pelinha sob a invocação de São Gonçalo, navios que e r a m ent en t ão o cúmul cú mul o da modernid moder nidade ade (e hoje ho je só poderiam ser encontrados em álbuns ou livros his tóricos) paravam diante da paisagem antropofágica dividida em dois planos, na mais baixa estendendo-se os alagadiços e a mais alta sendo o fim do tabuleiro que penetrava interior a fundo. Os piratas desciam de suas escunas e urcas e vinham buscar pau-brasil. As baleeiras espreitavam o mar aparentemente vazio. E quando um sujeito chamado Manoel Antônio Duro recebeu de Gabriel Soares, alcaide-mor de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul (que seria a cidade das Alagoas, primeira capital da província), uma sesmaria de oitocentas braças de terra, construiu em Pajuçara, diante do mar e dos lumes do dia, uma casa de telha que figura numa escritura pública de 25 de novembro novemb ro do ano an o de Cristo Cris to J e s u s de 1611, 1611 , e se constituiu no primeiro sinal do povoamento de Maceió — dessa cidade que todavia não existia ainda durante o domínio holandês no Brasil, ou era de uma desimportância tão grande que nenhum dos porme norizados mapas holandeses da época a registra. E decerto esse engenho de açúcar nascera em função do mar-oceano que, na enseada, se foi mudando em porto, a princípio clandestino, atraindo os corsários franceses, permitindo o embarque de açúcar sem que a sanha dos dizimeiros lhe aumentasse o preço e estimulando o comércio dos açorianos que foram pos sivelmente os primeiros povoadores dos alagadiços e tabuleiros e no começo se interessaram pela minera ção e buscaram ouro. 81
A língua da água olhada pelo camarada chamado Antônio Duro não era ainda o mar ostensivamente comerc come rcia iall do começo do século X I X , quando o an co radouro fez nascer ali um comércio regular, e as pri meiras lojas e bodegas foram surgindo, com os seus balcões e prateleiras, e as arengas dos bufarinheiros e mer ca cador dor es grossos, naqu na quel elee lugar lu gar onde ele (pen (p en sando em uma nova carta anônima) se achava. Roupas, gulodices, algodão, madeiras para a edifica ção de casas e a construção de barcos, couros, fumo, milho, arroz, feijão eram trazidos do interior em comboios de bestas e em carros de bois conduzidos por escravos, e dali de Jaraguá — cujo comércio tanto os comprava diretamente como os acolhia em consignação — passavam para o bojo dos veleiros que os levavam para Pernambuco e Bahia. De todos esses produtos exportáveis, o que vinha em maior quantidade, o mais tangível numa terra aberta a tantas outras sementes e mudas, era o açúcar. Por isso até hoje Jaraguá cheira a açúcar, tanto ao açúcar embarcado nos cargueiros do Lóide e da Costeira e nos navios estrangeiros que por alguns dias infun dem nos estivadores a suntuosa visão da redondeza da Terra como ao antigo e imemorial açúcar que atraía a atenção do fisco real, e levava a velha cidade de Alagoas, cabeça da comarca, a acompanhar com ciúme e temor o desenvolvimento do povoado j u n t o a o m a r que, qu e, g r a ç a s a o s e u por po r t o, c o n c o r r i a para o desprestígio e a decadência do porto do Francês. E esse receio da cabeça da comarca era ju j u s t o : a 5 de deze de zemb mbrr o de 1 8 1 5 , o p r í n c i p e D o m João, regente do reino de Portugal, em nome de sua mãe Dona Maria, a Louca, assinava o alvará de cria ção da vila de Maceió, desmembrando-a da Vila de Alagoas. E os três vereadores e o procurador eleitos quando Maceió alcançara a sua emancipação, e co82
meçara a organizar-se, e o alcaide que zelava pela ordem da nova vila, e os dois juízes ordinários, o juiz de órfãos, e os dois tabeliães públicos e de notas, que eram as autoridades mais importantes do povo de cinco mil pessoas, todos sentiam o cheiro do açúcar que impregnava o ar, e se transformava em montes de moedas guardadas nas arcas de couro cuja prega ria cor de ouro evocava fausto e riqueza. E assim, nessa atmosfera marcada pela ânsia de progresso, tinham surgido a Casa da Câmara, a cadeia e o pelourinho de tijolo que, no pátio da capela, simbo lizava a vila, com o seu marco de lei, ordem e justiça levantado contra a bestialidade, a ganância e o crime, estas e outras oficinas edificadas à custa dos mo radores, de acordo com o alvará que o gordo Dom João, após um almoço juncado de frangos, assinara em nome de sua mãe Dona Maria, a Louca, naquele 5 de dezembro de 1815. Agora, mais de um século transcorrido depois daquele 9 de dezembro de 1839 em que a cidade de Maceió se transformara na capitai da província graças à sua posição marítima e topográfica — tor nando-se a sede do governo, da Assembléia, da Te souraria Provincial e das aulas maiores — esse recen der a açúcar permanecia, tanto no antigo Largo do Pelourinho onde a cidade nascera de um engenho como em becos e vielas que se perdiam na direção da lagoa Mundaú. E esse cheiro, de passado e presente, esse secular e peganhento cheiro de açúcar estava entranhado nas pedras das ruas, nos retratos dos antepassados linhajudos que descendiam de salteadores e prostitu tas degredados por el-rei de Portugal, nos estribos dos bondes, no hálito dos despachantes, nas platibandas dos sobrados, nos azulejos das igrejas, nas paredes sujas das casas que abrigavam aranhas e lacraias. 83
nos baús de renda, nos requerimentos que circula vam nas repartições públicas, nos pianos, nas roupas, nos santos dos oratórios, nos sonhos, no verniz dos móveis, nos alvarás, nas caixas de charuto que guar davam balas e moedas, até mesmo na alma das cria turas. E também os corpos das moças, quando elas ficavam nuas, tinham esse cheiro de açúcar que, apesar de sua impregnação imemorial e moageira, nem sempre conseguira adoçar a dureza e crueldade dos espíritos, nem tornar menos violenta a iracúndia nativa ou explosão dos apetites e caprichos que pro duziam derramamento de sangue — talvez um san gue açucarado, carregado desse ininterrupto mel dos tempos e que atraía as moscas. E decerto até mesmo a es t át ua do Visconde Visconde de Si ni mbu mb u (o grand gr andee es t a dista do Império, motivo de orgulho para todos os alagoanos, embora só alguns deles soubessem ao certo o que ele fizera, e por que se cobrira de glória e de tão monumental e azinhavrado esquecimento), na praça de seu nome, teria algo açucarado em sua pá tina — da mesma substância dos quebra-queixos vendidos em tabuleiros nas esquinas e das doçarias guardadas em compoteiras nas casas onde, após as refeições, aumentava surpreendentemente o zumbido das moscas que, na cidade sem esgotos, e edificada sobre os excrementos dos seus habitantes, eram por tadoras do tifo ou portadoras de nada. Eminente conterrâneo. Abusando de sua confiança, o seu sócio sóc io .. . Dentro da vasta e nítida realeza da tarde, as gaivotas continuavam sobrevoando o mun do portuoso, as bandeiras dos navios, a vida, as bar caças e alvarengas pousadas na praia, o surdo cha pinhar das águas debaixo dos trapiches palafíticos, os sobrados onde funcionavam os prostíbulos. Uma claridade ao mesmo tempo amarelada e azul envolvia as coordenadas geográficas: 9º 40' 18" de latitude •84
sul e 35º 44' 00" de longitude a oeste de Greenwich, e a parca altitude de cinco metros acima do mar hipnótico, e de sua absurda lógica de água. A tarde, sustentada pela pulcra harmonia universal, vestia de uma tépida luz vibrante as estátuas do marechal Deodoro da Fonseca, o proclamador da República, e do marechal Floriano Peixoto, o consolidador da Re pública — e ambos transmitiam aos meninos dos grupos escolares a sensação majestosa de que Alagoas, berço desses dois varões de Plutarco, e em cuja pai sagem havia um coqueiro, mundialmente famoso, chamado Gogó da Ema, era o centro do universo, em bora fosse o menor Estado brasileiro, depois de Ser gipe e fosse ainda cinqüenta e duas vezes menor que o Amazonas. "Os grandes perfumes se guardam nos pequenos frascos" — diziam as professoras, chaman do a atenção dos meninos de olhos remelentos e mãos na boca para a glória de Alagoas. Em certas ocasiões, eles eram obrigados a cantar ó hino: "Alagoas, estre la radiosa/ que refulge ao sorrir das manhãs./ Da República és filha donosa/ maga estrela entre estre las irmãs." Os garotos não sabiam o que significava "filha donosa", e muitos deles, corrigindo o hino e a professora, cantavam "magra estrela", presas de um súbito e insopitável entusiasmo cívico que haveria de amenizar-se com a idade. Uma mosca zumbia. Ou seria uma abelha? Ilustre Concidadão. Concidadão. O caixa de seu prestigioso estabeleci estabeleci mento mento de deuu à sua (dele) esp osa, no dia dia do an anive ivers rsári árioo As dessa dessa virtuosa virtu osa senhora, senhora, uma um a jóia jó ia no valor de...
gaivotas prosseguiam sobrevoando a grande tarde re donda, feita de terra e água, e de nuvens que se deslo cavam em direção ao sul. E a noite se fechava, azul e rósea. Os armazéns cerravam suas portas, fazendo crescer no silêncio a marulhada das ondas. E os goiamuns se refugiavam em suas locas negras. E o
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vento crepitava nos velhos navios que, desde o século passado, apodreciam afundados na lama das lagoas. As tanajuras pousavam nas ilhas peganhentas. Os coqueirais dançavam. E as ruas se iam fazendo deser tas, embora se ouvisse o barulho de algumas bolas de bilhar rolando num pano verde, o som de um sam ba na pensão da Dina, e o estalido de uma janela, que uma freira entreabria no hospital. Diminuía o falario dos que trocavam língua em roda do Relógio Oficial e dos botequins. Depois era a madrugada, e em seguida vinha a manhã e os urubus levantavam vôo e farejavam carniças. Os galhos dos oitizeiros fremiam, tocados pela aragem vinda do mar. E, imó veis nas trevas, as lacraias pressentiam o avançar da manhã no chão do universo. O homem do balcão desceu os degraus do Palácio Velho para pa ra tomar o seu ca café fé matinal mati nal.. ( Li be r t a r a uma mosca que zumbia dentro do açucareiro.) En quanto caminhava, ia notando o número crescente de cães e mendigos que surgiam nas calçadas, como se o sol os tivesse chamado para livrá-los das pulgas e sarnas ou curá-los das úlceras e elefantíases. Numa parede, estava desenhado um sigma — um desenho velho, a piche, que as chuvas não conseguiam apagar. Ao passar pela chefatura de polícia, rumo ao ponto de bonde (e, (e , durant dur antee a viagem, via gem, escuta escu tari ri a a conve con vers rsaa dos dois advogados), ouviu o barulho das motoci cletas. Já sabia, então, da novidade do dia. No café, Guabiraba lhe comunicara a morte de Alexandre Viana.
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o
CEMITÉRIO
O CEMITÉRIO era junto ao mar.
O mu r o bran br anco co o se sepa para rava va da linh li nhaa dos dos coqueiros. coquei ros. E a areia fofa, pisada pelos pés dos acompanhantes do enterro de Alexandre Viana, era a antiga areia das dunas domadas para que os mortos fossem enter rados num território onde as águas e as terras se en contravam. E um marinheiro norte-americano — alto, louro, forte — batia fotografias das sepulturas. Na cova aberta, um siri surgiu e logo desapareceu, como se o assustasse o espetáculo dos homens que tinham vindo enterrar um suicida. Na mente do pro fessor Serafim Gonçalves pairava a frase em latim que encimava o portão do cemitério. Ela advertia os alagoanos de que eles eram pó, e ao pó haveriam de reverter. Mas, evidentemente, poucos alagoanos sa biam latim para traduzi-la e absorvê-la em seus es píritos que amavam esfaimadamente a vida e o dinheiro. Tornando a olhar a sepultura, o professor Serafim Gonçalves viu algo branquicento e viscoso e que, com os seus anéis, se movia como uma minúscula sanfona. Deveria ser um verme. Embora o sol da tarde esti vesse forte, e laivos avermelhados começassem a ris car o céu azul e branco, muitos dos acompanhantes tinham vindo de roupas escuras — como se a morte merecesse respeito e pedisse cores austeras. A clari dade, vinda do céu e sorvida pelas espumas do mar, 8 7
acentuava o brilho do papelão dourado que cercava a cruz roxa do ataúde. Abrindo caminho com a sua barriga saliente aper tada no jaquetão de tropical bege, o poeta Armando Wucherer, festejado autor de Canções do Tédio, apro ximou-se do professor Serafim Gonçalves. Estiveram um momento silenciosos, olhando o caixão que descia lentamente na sepultura, por meio de cordas. Mas logo o poeta desejou reduzir a solenidade daquele momento, que se deixava juncar de tudo e de nada, como os nascimentos e as mortes dos homens. E, com a sua voz rouca e um brilho malicioso nos olhos azuis: — Um juiz de Direito foi demitido na Paraíba por que tinha uma concubina. A gente devia chamá-lo para vir morar em Maceió. Aqui quase toda a Justiça é amigada! — e sorriu, um sorriso abafado de quem está num enterro e quer apenas disfarçar a impie dade da vida. Outras vozes se fragmentavam no silêncio caden ciado pelo rumor dos coveiros. A presença da morte estimulava os diálogos. Um, ao pé do rosto do outro: — Mas não tem padre neste enterro? E o vento. E a areia. E o brancor do dia luminoso que comia lentamente a vida. E aquelas dunas que tinham sido o primeiro sinal de terra quando o almi rante Pedro Álvares Cabral, navegando no mar curvo, descobriu o Brasil, que ali começara, no grito de um marinheiro no alto de um mastro, numa mancha es verdeada à distância, na gaivota voando sozinha como no começo do mundo. — Suicida não tem direito aos sacramentos, você não sabe? Longe a longe, esgarçava-se um fiapo de nuvem. O guincho de um bonde nos trilhos. Os coqueiros cantavam. Urubus de papo cheio cochilavam nos telhados. 88
— Quer dizer que... Guabiraba afiou o ouvido, filou um cigarro. — Foi suicídio mesmo? Estão falando aí no Sin dicato da Morte. O bach ba char ar el est remeceu reme ceu.. U m sujeito sujeit o ruivo, de má sombra, parecia medi-lo com os olhos. Não sou inocente, refletiu. Foi-não-foi, vivo con tando pabulagens em tudo o que é cartório. Minto que nem cachorro de preá. Sou culpado e carrego a culpa de todos. Se o Sindicato da Morte me assas sinar, pagarei por mim e pelos outros. Mirou os acompanhantes do enterro: rostos sem inocência, olhos cobiçosos, bocas que guardavam astuciosamen te o silêncio e a mentira, mãos ávidas que desde a infância haviam aprendido a segurar dinheiro. E as gravatas apertavam pescoços de futuros degolados. — Camões, encontrando-se um dia com Bocage... Esse camarada ruivo é um pistoleiro assalariado, guarda-costas de Hortêncio. Será que estou contem plando o meu futuro assassino? O bacharel teve a atenção desviada para o marinheiro louro que tirava fotografias das sepulturas. Agora, o mar era apenas um rumor longínquo, como se estivesse se apartando das dunas e das algas coa guladas. O tumulto das ondas hesitantes se dissipava em silêncio e claridade. Sepultados na areia salina, os defuntos haveriam de sentir ainda mais a presença da morte, privados do sussurro imemorial da vida e do movimento que, entre os trapiches e os bordos dos navios, as casas e o céu azul, se desenrolava como interminável meada. — O prefeito de Santana do Ipanema me disse hoje de manhã que apareceu lá no sertão um novo beato que está emprenhando tudo o que é donzela. A mania do homem é tirar cabaço e dizer que vai distribuir a terra dos senhores de engenho. 89
Uma lagartixa correu entre sepulturas. — O melhor remédio para gonorréia é chá de ca belo de milho, pode tomar. Algumas mãos se baixaram, agarraram punhados daquela areia amarelenta, milenarmente umedecida pelas águas do oceano, e os jogaram no ataúde. Por um instante, as vagas do mar perto bramiram, numa festiva afirmação de vida e movimento, cor e luz, num cântico surdo que se ia desdobrando ao longo do temor dos acompanhantes do enterro de Alexandre Viana. A terra jogada no caixão, e que ia cobrindo a cruz roxa e os dourados, lembrava aos circunstantes que eles eram pó sob o vento que chia va — e ao pó haveriam de reverter. Na terra mole, convizinha das águas e do mar estridente, os seus corpos seriam visitados pelos siris e caranguejos, como se eles tivessem morrido afogados. — Comi ontem uma mulher que peguei no Buraco do-Galo. Que babaca! Era peluda como uma caran guejeira — e na frase fremia algo ancestral e antropofágico, como se nela ressoassem os costumes selvá ticos dos caetés que, ciosos de sua ética de canibais, transformaram o bispo Sardinha num ajantarado e, por isso, haviam sido massacrados pelos coloni zadores. — Você precisa comer é uma mulata de olhos ver des que veio de Porto Real do Colégio. Eles queriam agarrar-se à vida, aos fiapos de exis tência que se esgarçavam nas memórias contundidas pelo espetáculo daquele sepultamento. Percorriam as suas pequenas jaulas mentais, enquanto o mar es trugia perto — azul e branco, azul e branco — e eternamente vitorioso como a morte. E, assustados, deixavam-se habitar pelo pensamento de que a vida era um acidente, coisa de nada, incerta e transeunte, comparável à mosca voejante que tenta aproximar-se 90
das narinas de um defunto ou aos pêlos espalhados na mão que segura a alça de um esquife. Dentro de Maceió, nos balcões das farmácias que vendiam permanganato de potássio e camisa-devênus, ou nos livros negros dos cartórios que consa gravam a partilha das misérias e ambições dos ho mens, fossem elas fazendas ou dinheiro de contado, nos anjos gordos e tortos das igrejas e nos confes sionários por onde escorriam as velhas e infindáveis histórias de masturbações juvenis e cobiças e adul térios, no amor e no litígio, na verdade e na patranha, tudo se afigurava fortuito. E talvez no suicídio de Alexandre Viana vibrasse a intenção de converter o acidental em algo respeitável e preclaro como uma lei ou um protocolo semelhante ao do Sindicato da Morte, o grande tribunal secreto alagoano. De qual quer forma, ele saltara o obstáculo, pulara o grande espaço vazio como um cavalo, para transformar-se, na viagem sem torna-volta, num pó ofendido pela fome dos siris ou ser, por todos os tempos, e mesmo além de qualquer tempo didático ou mensurável, a pura essência guardada em vácuos inopinados, pre servada num limbo de gelo ou de fogo, e perpetuando, na eternidade dos sóis e das galáxias sempre reno vadas e germinadoras, o sinal do seu gesto insensato — aquele gesto com que quisera conciliar todos os extremos, a servidão e a liberdade, a jaula fedorenta aparecida em sua infância e o fogo que havia entre as pernas de Enaura. Um galalau louvava o suicida: — Era um rapaz inteligente. Podia ter ido embora de Maceió, feito uma carreira lá fora. Além das dunas estavam, no mar imenso, os por dos navios. Mas quem partiria? — Maceió é um grande cemitério. No fundo, todos nós já estamos enterrados. 91
No íntimo, eles se sentiam colados às ruas, à luz do farol, ao barulho do mar, aos degraus rangentes que levavam aos lupanares. E amavam o calor da quela paisagem como as cobras amam seus ninhos de pedra. Mas Alexandre Viana se diluíra; e sua inexistência vagava nos corredores do nada. — E era muito trabalhador. Às sete horas, já esta va no batente, no balcão da agência. O n o me se despre desp rende ndera ra do corpo e da a l ma con co n gelada; e procurava, também, o caminho do vento e da poeira, além das dunas e dos portalós dos navios. — E s t ã o falando fal ando n u m desfa des falqu lque. e... . — a voz voz e r a de um representante de produtos farmacêuticos, que passava o dia percorrendo consultórios. Na roupa de casimira azul-marinho (e de fundilhos lustrosos) ele sentia calor. E se perguntava quem iria para o lugar de Alexandre Viana. Ele conseguira atravessar o rio; e nos chãos da outra margem não havia bibelôs, nem cruzes tortas ou en ferrujadas. E o engano redondo de sua vida se desfi zera. E seu espólio era pó. E era vento o seu inven tário. — Não acredito. Ele se matou por causa da rapa riga — e Guabiraba levantava para o interlocutor os seus olhos piscos de abirobado. A conversa andava em círculos, como um cavalo de maromba. O ruído da terra lívida, que ia tapando a cova, diminuía. Alguns dos acompanhantes vagavam entre as cruzes desajeitadas, pisavam flores feias, liam nomes, viam retratos desbotados, espaireciam num passeio sinistro, como se as mortes antigas, e já j á e v a p o r a d a s , a p a g a s s e m a n ó d o a que qu e o s e p u l t a mento de Alexandre Viana deixava na areia. Pre Preza zaddo connter co terrâne âneo. Sua Exm Exmaa. c onsorte... Ele também estava ali, a prestar orelhas ao diálogo que 92
pusera em dúvida a honestidade do suicida. Em boa verdade, não o conhecera pessoalmente — apenas se habituara a vê-lo atrás do balcão da companhia de aviação. Lembrava-se (e talvez fosse uma lembrança cr i ada ad a pela mor mo r t e) de que, u ma vez, vez, no boteco bot eco do Zanotti, ambos tinham ficado um ao lado do outro, esperando que fosse ralado o gelo dos refrescos. De certo houvera outras ocasiões em que se tinham cruza cr uzado do:: na Por Po r t a do Sol So l , na Helvética, Helvéti ca, num nu m bonde. Mas da memória revolvida não surgia o episódio em que ambos tivessem trocado palavras. Contudo, pre textara ser amigo de Alexandre Viana para sair mais cedo do emprego. E ali se achava. Naquele cemitéri cemit ério o est ava ent erra er rada da a sua su a mãe . O túmulo era um dos últimos, perto do muro junto à praia. Ele, porém, não se sentia disposto a ir vê-lo. Nem mesmo no Dia dos Mortos o visitava. Com a morte de sua mãe, experimentara um sentimento em que se mesclavam sossego e alívio. Considerava-se, afinal, libertado e sozinho, podendo exercer o seu ofício secreto de observador, mantendo os ouvidos abertos à verdade e à calúnia, captando sinais de movimentos longínquos e forjando, no quarto do Pa lácio Velho, as cartas que perturbavam ou desnortea vam existências, produziam revolta e amargura, tor navam-se o emblema de uma degradação. Visitar a sepultura de sua mãe equivalia a voltar a um tempo já j á c a d u c o , t o r n a r a e s c u t a r n a n o i t e e s p e s s a o s m e s mos sussurros equívocos que lhe haviam transtorna do a infância, defrontar-se mais uma vez com uma criatura que escapara à sua sede de julgamento. Ela j a m a i s c i t a r a o n o m e do s e u pai pa i . L i m i t a v a - s e a dize di zerr que havia morrido. Todavia, nas tardes em que os navios apitavam no porto de Jaraguá, e alguns rostos desconhecidos sur giam nos armazéns próximos à Alfândega, ele era 93
salteado pela quase certeza de que seu pai fora um viajante, uma dessas criaturas de passagem que não esquentam nenhum lugar e vão deixando por onde pisam um sinal que logo se extingue: uma conta não paga, a evidência de um objeto desaparecido, uma promessa não cumprida, o peso de um espasmo num corpo dividido entre a curiosidade e o pudor. Podia j u r a r q u e s e u p a i n ã o m o r a r a e m M a c e i ó . P a s s a r a a l i apenas alguns dias ou semanas e se fora, por tralhas ou malhas, cumprindo novas etapas de um destino forasteiro em que a irresponsabilidade ou a indife rença, ou uma absurda esperança mascaravam a abjeção. Era desse pai desconhecido, estrafalário e pertinaz passageiro de terceira dos navios do Lóide e da Cos teira, sentado sempre nos últimos vagões dos trens da Great Western ou apertado nos bancos dos ônibus resfolegantes que faziam o trajeto entre pequenas ci dades apodrecidas, que ele herdara a vocação de es crever cartas anônimas. Não, evidentemente, porque seu pai as escrevesse. Sua vida nômade e concen trada na obtenção de pequenos favores, negócios velhacos e vantagens ilusórias, não lhe permitia deter-se para observar os que o cercavam — ou me lhor, os que desfilavam diante dele e, via de regra, não haveriam de guardar recordações agradáveis ou nítidas de sua passagem. Mas, saindo inapercebido de uma espelunca para não pagar a conta das dormidas ou deixando, sem o saber, num corpo estirado as se mentes de seu prolongamento, ele lhe transmitira o legado invisível que o mantinha acordado e vigilante nas tardes em que a burocracia alfandegária lhe pro piciava horas seguidas de reflexão e lazer, ou nas noites do Palácio Velho, quando à sua consciência solitária e rancorosa aflorava a certeza de que grande parte da população de Maceió estava fornicando. Os 94
desembargadores, os juízes de Direito, os comercian tes, os barbeiros, os usineiros gordos e os senhores de engenho falidos, os tabeliães, os médicos, os advoga dos, os caixeiros, os pescadores, os pistoleiros, todos fornicavam na cidade calorenta apesar da noite e das estrelas, do mar e das lagoas e do vento. Nesse uni verso de corpos nus e suados seu pai surgira um dia. Batera numa porta, deitara-se numa cama, esporrara-se e depois partira, saciado, como quem cumpre um ritual ou faz carimbar um documento, desfazendo-se numa ausência que já era uma vice-morte. E deixara nele, no filho não cogitado naquele instante entre instantes, a herança de uma baixeza, a perpé tua indecisão dos que não podiam ouvir sem um frê mito o apito dos navios ou o bufo de uma locomotiva. Voltou para perto da cova que estava sendo fechada. O professor Ser afim af im Gonçal Gonç alves ves cu mpr imen im enta ta va um homem minúsculo. Numa roupa de linho-120, mais branca do que a cal dos muros, gravata vermelha, camisa de cambraia com monograma, sapatos de duas cores (branca e marrom), óculos de aros de ouro, o comerciante e banqueiro de jogo-do-bicho Hortêncio levantava o rosto para melhor ouvir as explicações de seu advogado, que proejara o ventre rotundo para realçar a importância dos seus providenciamentos: — Já apelei. Es t a s e ma n a el elaa deve te terr dado e n t r a d a no Supremo. Vamos ver qual será o ministro-relator. Os esclarecimentos do professor Serafim Gonçalves enchiam-no de satisfação. Eram mais uma prova de sua importância, embora fosse, fisicamente, um dos homens mais baixos de Alagoas, com um metro e qua renta de altura. Dono de arruados no Trapiche da Barra, de uma plantação de coqueiros perto de Ria cho Doce (zona de petróleo), comerciante invejado, banqueiro de jogo, Hortêncio vivia como um lorde e se julgava uma das pessoas mais notáveis do Estado. 95
À boca miúda, apontavam-no como um dos chefes do Sindicato da Morte — e a versão de que ele era um dos juízes daquele tribunal secreto e sinistro que não conhecia as fronteiras entre a culpa e a inocência, a defesa e a vindita, não deixava de envaidecê-lo. como se o colocasse no mesmo e austero nível dos magistrados. Mesmo porque os demais componentes daquela corte que decretava mortes — umas em emboscadas de beira de estrada ou na calada da noite, outras ostensivas e ruidosas, dentro dos bares ou lojas ou nas ruas centrais da cidade, como se nesses sacri fícios houvesse alguma intenção exemplar — eram ou deveriam ser pessoas tão respeitáveis como ele. — E a morte desse rapaz, hein? — a pergunta era de um branqueio de cabelo pixaim. — Dizem que tinha uma barregã. Não agüentou o rojão. — Tinha quantos filhos? — O perguntador fez um ar de compunção, mas dos dentes para fora. Ao tomar o bonde, de volta do enterro, haveria de esquecer-se de tudo, das palavras e da sombra fingida no rosto. Sua graça era Botelho Ferro, vinha de uma parentagem colat col atera erall do B a r ã o de J ar ag uá . O nome nom e de batismo se perdera, logo no começo da sua vida. Ti nha uma grande loja de ferragens, na Rua Primeiro de Março. Largo de unhas, furtava no peso e na me dida e, fona, só pensava em amealhar. Desde menino tinha um sonho só, a descoberta de uma botija en terrada, que não contava a ninguém, nem mesmo à mulher. Pouco lhe importavam as provanças e fortúnios alheios. Guabiraba ficou perto dele, conver sando baixinho com o advogado Quintela Cavalcanti, sendo escutado atentamente pelo advogado Mendon ça Braga. Guabiraba, um facadista, um sujeito escalafobético, íntimo das notabilidades de Alagoas! Dizia-se que tinha talher cativo na saleta da casa do 96
primeiro promotor público, podia chegar a qualquer hora que era servido. Com os seus olhos negros e rapinantes, que as sobrancelhas grossas assombra vam ainda mais, Botelho Ferro mirou Guabiraba com rancor. — Sabe que a Dina recebeu ontem uma mulher nova? Veio da Bahia, mas há quem diga que é per nambucana. — Não, é se sergi rgi pana, pan a, ma s fez fez ca carr rr ei ra no Recif Rec ife. e. Hortêncio lembrou-se daquela mulher de roupão cor de vinho, que conhecera anos antes, no começo de sua fortuna. Ela costumava pôr uma loção vagabunda nos sovacos. E ele ocupava o seu corpo como um lagarto que rasteja numa folha. Mas os sa patos de duas cores, engraxados diariamente por Gonguila (o melhor engraxate de Alagoas, e ás do clube carnavalesco Os Cavaleiros dos Montes), o mo nograma bordado em sua camisa por uma bordadeira do Pilar, os óculos de aros de ouro que tinham vindo especialmente do Rio para ajudá-lo a enxergar me lhor os seus semelhantes, a roupa de brim de linho inglês feita no Recife e o anel de chuveiro que enfei tava a sua mão esquerda eram provas de sua respei tabilidade — mais do que os coqueiros que avança vam para os currais de peixe, as dezenas de casas alugadas, o palacete no Farol, os fardos e caixas em pilhados em seu armazém, sua assinatura no Livro de Ouro dos Cavaleiros dos Montes, a ação que co meçara a transitar no Supremo Tribunal Federal ou a imagem que, atendendo a um pedido de monsenhor Capitulino, doara à igreja de São Benedito. Uma par te do dinheiro que lhe trazia o jogo-do-bicho era en tregue às autoridades, talvez servisse para pagar aos desembargadores que distribuíam justiça ou às pro fessoras que desasnavam crianças. O sentimento de sua utilidade seguia-o, presente como o vinco impe97
cável de suas calças, e aliado à convicção de uma limpeza ostensiva. Para ele, a miséria era a sujeira. Todos os dias, eram mudados os lençóis de sua cama — uma grande cama de jacarandá maciço, e de pés torneados, considerada uma réplica perfeita daquela em que dormira Dom Pedro II quando de sua pas sagem por Alagoas. E seu banho era demorado como banho de noiva. Um grito de menino, longe. E uma abelha zumbia, dourada e impaciente na vastidão da manhã. — Ainda cheguei a ver. A raposa recebeu tanta paulada que você não imagina. Virou uma massa. — Quem assim falava era um parente transversal dos Góis Monteiro, rapaz vaidoso do seu grande sangue. — E dizem que Maceió é uma cidade civilizada! As raposas amanhecem na Rua do Comércio. Ele usava uma pistola. Mas esta, na verdade, fazia parte de sua indumentária, como os suspensórios, a pérola na gravata e o monograma na camisa. — Não foi na Rua do Comércio não. Foi na Rua da Boa Vista, quase na esquina com o Palácio dos Martírios — atalhou o fulano arruivascado. Guardacostas de Hortêncio, estava ali a serviço — não co nhecera o defunto. — Então? A alguns metros do próprio interventor federal, uma raposa. Botelho Ferro olhou Hortêncio com uma secreta inveja. Quase um anão! E contudo nascera empelicado. Dizia-se que começara a vida com dinheiro de botija, fortuna vista em sonho e desenterrada de uma casa velha em Arapiraca. Havia também os que atri buíam a origem de seus cabedais a um milhar acer tado no jogo-do-bicho com uma oração da cabra preta. Mas Botelho Ferro ficava com os que, temero 98
samente, apontavam na raiz de sua vida um crime de morte. O bach ba char ar el sentiu-s sent iu-see mai ma i s uma vez vez incomoda inc omodado: do: o pistoleiro parecia observá-lo a meio olho. Hortêncio já ouvira, pela manhã, a história da ra posa abatida a pauladas, no centro da cidade. Escutando-a de novo não podia evitar que, em seu pen samento, emergissem outras imagens: as de homens condenados por um tribunal invisível e caídos em emboscada e que, como a raposa daquela manhã, não tiveram nenhuma possibilidade de fugir ao sacrifício, terminaram convertidos em massas sangrentas, nas pedras da rua ou na poeira das estradas. Era como se a sua mão tivesse brandido o pau que ajudara a abater a raposa; ou o bacamarte, o revólver ou a faca que fizeram tombar, com gritos de espanto, os ho mens marcados para morrer e divididos entre a ino cência, a suspeita e a culpa. Como as raposas que vagavam, perdidas, nas ruas embaçadas da cidade estranha, procurando uma saí da no labirinto de cal e tijolo, eram os homens. E cada um de seus passos os aproximava do lugar em que a sentença de um tribunal ilocalizável e todavia soberano e presente seria inflexivelmente cumprida. No ponto do bonde à porta do cemitério, o mari nheiro americano olhava os circunstantes com seus olhos azuis que pareciam guardar uma infância re mota. Ao desviar a vista de um mendigo tornado monumental pela elefantíase, Hortêncio viu o homem que escrevia cartas anônimas. E era como se estivesse olhando um condenado à morte.
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A FESTA
NA NOITE daquele dia em que
ab at er am a raposa (ou (o u em que ente en terr rr ar am Ale Alexan xan dre Viana, se assim preferir o leitor que fia de minha pala pa la vra) vr a),, houve u ma grand gr andee festa fes ta na pensão pensã o da D in a. As versões que depois se derramaram sobre a cidade, num círculo que ia desde o Tribunal de Apelação e as mesas do Bar Colombo e do Ponto Certo até as casas de ferragens, as barbearias, os cartórios e os balcões das farmácias, eram de tal modo confusas e contraditórias e vulneráveis que terminaram por subverter a verdadeira motivação do encontro em que algumas das figuras mais preclaras do Estado se ombrearam com boêmios inveterados, desdentados e sifilíticos, caloteiros de alto bordo, prostitutas, comi lões e beberrões de prol, e marinheiros de um navio norte-americano que ancorara na tarde anterior no porto de Jaraguá. Até o Guabiraba, o mais ilustre dos facadistas, e achegado das maiores notabilidades de Alagoas, às quais tratava invariavelmente por você, achava-se presente, e trazia uma fome canina, inclu sive porque, em sua sesta habitual, sonhara que o interventor oferecera em sua honra uma panelada de goiamuns, temperada com pimenta rabo-demacaco. Segundo uns, o pagode fora em homenagem a Hegecipo Caldas, que ganhara no milhar do jogo-dobicho ou comemorara o seu aniversário — ou melhor, tinha agora o seu aniversário festejado pelos amigos, 101
já j á que qu e o dia di a e x a t o de s e u n a t a l í c i o ele o p a s s a r a em sua casa na Rua do Comércio, onde podia ser visto de tamancos e envergando um pijama de alamares, sua vestimenta habitual tanto para dormir ou pre guiçar numa cadeira de balanço como para conversar no meio da rua, receber amigos e fechar negócios. Para outros, a pura da verdade era que Hegecipo Caldas ganhara uma questão no Supremo Tribunal Federal (seu advogado fora o professor Serafim Gon çalves) çal ves) e ele mesmo mes mo tiver ti veraa a inic in icia iati ti va de promover pro mover a festa. Havia, porém, os que o afastavam daquele núcleo festivo, alegando que ele nem sequer apare cera na pensão da Dina, pela simples razão de que, naquele dia, estava com a família em Coqueiro Seco, ou em Quebrangulo. Também correu a versão de que a festa fora improvisada, não obedecia a nenhum pretexto exclusivo, nascera de um ror de acasos acumulados: a chegada dos marinheiros norte-ame ricano ri canoss (e alguns algun s a ch av a m que o navio anco a ncora rado do no porto era de guerra, e à cata de submarinos ale mães, enquanto outros o consideravam um reles cargueiro apanhador de bananas); umas bocas-deuçá que tinham aparecido na pensão da Dina e re clamavam a consagração de paladares nobres; uma homenagem improvisada ao poeta Armando Wucherer que, tendo publicado, anos atrás, o seu Canções do Tédio, não recebera até então a reverência como vida de seus amigos e admiradores, muito embora o seu livro comprovasse a adesão de Alagoas ao simbo lismo francês. E não faltou boca que, jocosamente, propalasse que se comemorava o cinqüentenário do nascimento de Guabiraba. Os dois fachos do farol sobre a colina iluminavam a noite. Branco e vermelho. Na porta do Bar Colombo, magistrados conversavam sobre a guerra e o navio norte-americano ancorado no porto de Jaraguá. Ra102 102
mona, um dos raros alagoanos que caíam com os quartos, sentara-se num dos bancos da Praça Deodo ro: a noite noi te promet pr ometia ia marin mar inhe heii ros. ro s. Com o seu ar ma n so, Dominguinhos entrou na loja mortuária de Sátiro Marques — queria saber se alguém morrera naquele anoitecer, para que ele se incorporasse ao velório. No Jor Jornal de Ala Alagoas goas, um redator, armado de tesoura e de um vidro de cola, ultimava a edição do dia seguin te, retalhando impiedosamente os jornais do Recife trazidos horas antes pelo trem da Great Western. Na Gazeta de Alagoas, o velho Luís Silveira, seu diretor, escrevia pessoalmente a nota do falecimento da sogra do Chefe de Polícia: "Vítima de pertinaz moléstia que zombou de todos os recursos da ciência, e con fortada pelos sacramentos da Santa Madre Igreja, faleceu ontem, aos 89 anos de idade, a veneranda senhor a.. ." Na Pr aç a dos dos Martí rios, ra tu ín as ca ta vam homens, para levá-los às tábuas duras do Ba nheiro do Cego. E, no Hospital de São Vicente, a velha de olhos de sapiranga chegava ao último da vida. O bachar bac harel el,, que que cami ca minh nh a va re nte ao mur o do cemitério velho, atingiu a praça, após ter esperado que um bonde quase vazio dobrasse a curva. Da cal çada do hospício alcançou a rua que, iniciando-se no oitão do quartel do 20 BC, ia terminar nas dunas da praia. Seus sapatos estavam cheios da mesma areia fofa e acinzentada que sepultava os mortos ou era jogada pelo vento nos olhos aturdidos dos loucos. Na noite feita, ele não sentia medo, já que o per seguia a certeza de que o desfecho de sua vida — aquela catástrofe que haveria de ser a culminação de sua existência ansiosa e desolada — seria pela madrugada, quando as barras da aurora começassem a esfolar a escuridão. Seu andar era seguro. No meio da rua, a areia dissolvia os seus passos. Respirou o cheiro do mar, ouviu a zoadeira dos coqueirais, teve 103
a impressão fugidia de que um vapor mugia por lon ge. A luz branca e encarnada do farol rasgou a noite, acima do telhado do quartel e do hospício. Mas esses sinais de viagem pertenciam a um outro universo. Ele estava preso à areia mortuária onde seus sapatos mergulhavam silenciosamente. Aproximou-se da casa. A luz da sala estava apagada: era o sinal conven cionado. Firme, a sua mão empurrou docemente a porta apenas encostada. E, antes de fechá-la e sentirse envolvido por um abraço, o bacharel tornou a ou vir o vapor que arribava e a ver a negridão do espaço ser varrida por uma luz encarnada que só poderia ser a do farol. Enquanto o sono, o tédio e a desolação da noite feita ocupavam a cidade, e as lacraias e morcegos transitavam desembaraçadamente nas casas velhas, o grande salão do sobrado onde funcionava a pensão da Dina era todo luzes, músicas e vozes. Um retrato de Getúlio Vargas, com o dístico "Só o amor constrói para a eternidade", enfeitava a parede do corredor de entrada. A cachaça que haviam começado a servir era, decerto, a melhor do mundo, aquela que garan tia a Alagoas o privilégio de olhar com desdém os alambiques de Vitória de Santo Antão, em Pernam buco, ou os engenhos do Ceará. Escorrendo pela gar ganta dos presentes, a azuladinha fabricada por Paulo Rolemberg, no Engenho Coruripe, dava-lhes a sensação de que tinham nascido numa terra ditosa, merecedora da inveja universal. — É um livro para sair na Brasiliana ou na Do cumentos Brasileiros — assim o professor Serafim Gonçalves explicava ao secretário do Jornal de Ala goas a sua obra sobre a colonização holandesa. Tinham subido juntos a escada da pensão da Dina. O jornalista, que se prontificara a dar uma nota na edição de domingo, perguntou-lhe quantas 104
páginas já havia escrito. Esquivou-se. Não sabia ao certo! — em seu escritório, amontoavam-se as ano tações, os documentos, os mapas, a bibliografia. E acrescentou, gravemente: "É obra para umas qui nhentas páginas." Guabiraba aproximou-se, para ouvir a conversa. — E Calabar, você o considera um traidor? — O jo j o r n a l i s t a l a m b i a a e s p u m a d e c e r v e j a que qu e l h e f i c a r a nos lábios. — Ainda não fixei a minha opinião a esse res peito. É mat ér i a mui to complicada, compli cada, e que exige cabeça fria. Para uns Calabar, sendo brasileiro — isto é, nascido numa colônia — podia escolher entre a Holanda e a Espanha, inclusive porque, naquela época, Portugal deixara de existir como nação sobe rana. Para outros, houve traição, dada a nossa ori gem ibérica. Mas ainda não me aprofundei nesse problema, que é muito complexo, mesmo porque a guerra holandesa não foi apenas econômica. Foi tam bém religiosa, uma luta entre o Catolicismo e o Pro testantismo. Lembre-se de que Maurício de Nassau determinou a liberdade dos cultos, os judeus cons truíram até uma grande sinagoga no Recife. Os ho landeses não vieram aqui apenas para buscar açúcar. Embora eu reconheça a importância do fator eco nômi nô mico co,, discordo de M a r x (você (v ocê sabe que eu sou so u um liberal li beral -democr ata) na predomi nânci a absorvente que que ele lhe atribui. Como Gilberto Freyre — de quem também discordo algumas vezes — levo em conta outros fatores: os raciais, os políticos, os religiosos, os sexuais, até os alimentares. O jornalista mastigou uma boca-de-uçá. E depois, chupando os dentes: — Mas não se esqueça de que os holandeses fi zeram uma grande sacanagem com Calabar, entre gando-o aos portugueses, que o esquartejaram. Na 105
minha opinião, Calabar é uma grande figura, um precursor do nosso nacionalismo. Não é por ele ser alagoano... O professor Serafim Gonçalves fungou: — É um ponto muito delicado da nossa História. E um historiador, como é o meu caso, lida com fatos e documentos. Nada de conclusões apressadas ou passionais, por isso é que estou demorando tanto com o meu livro. Guabiraba ouvia, rosnando de impaciência. Uma vez estivera em Porto Calvo, com um pessoal do Rio, que tomava nota de tudo. Fora porque um deles, um rapaz meio abaianado, lhe garantira que haveria al moço de lagostas. Vira o pelourinho onde haviam esquartejado esse tal de Calabar, as fortificações derruídas, escutara o mar azul batendo, alto e rumo roso, contra a tarde. Mas, aos homens, ele pedia pou co: almoços e jantares, roupas velhas, dinheiro miúdo para os cigarros e as passagens de bonde. Tudo o mais seria excesso. Como o jornalista se levantasse da mesa, para cumprimentar o banqueiro Hortêncio, que acabava de chegar, o professor Serafim Gonçalves arrematou: — Não se esqueça de dar a notinha, domingo. O outro sossegou-o: — Esteja descansado. É tido como certo que foi naquela noite de regalório que os alagoanos inventaram o uísque com água de coco, pois a presença dos marinheiros norteamericanos fizera com que, em certas mesas, a be bida escocesa se juntasse às comidadas e bebidadas nativas e conspícuas. De qualquer forma, houve uísque e água de coco, juntos cu separados. Foi ser vido o melhor cachimbo imaginável, feito da própria cachaça do Engenho Coruripe com o mel de abelha uruçu. E muitos dos convidados e penetras cortavam 106
a bebida com pedacinhos de caju, que não eram, aliás, o único tira-gosto, pois nos pratos de louça florida havia um despotismo de bocas-de-uçá, cozi das e enfeitadas com um raminho de coentro, ou à milanesa. Pelas versões correntias, fora o professor Guedes de Miranda, diretor da Faculdade de Direito de Ala goas e uma das maiores glórias jurídicas do Estado, que reclamara bocas-de-uçá à milanesa. Mas alguns depoimentos rajados de idoneidade prolatavam, à boca grande, que ele não descera do alto de sua res peitabilidade de homem letrudo para ir a uma festa na pensão da Dina — o que era contraditado por outros, também sumamente idôneos, os quais assegu ravam que o professor Guedes de Miranda não só fora à festa, em companhia de seu colega Serafim Gonçalves, como ainda fizera, ali, confidências senti mentais. Recordava-se uma frase sua, interrompida pela aparição da fritada de sururu (ou da fritada de siri, ou do sururu ensopado no leite de coco): "Quando estive o mês passado em São Paulo, repre sentando Alagoas no Congresso Latino-Americano de Juristas, conheci uma mulher, de olhos mouriscos e rosto de madona, que parecia alimentar-se de azeito nas de Atenas e velhos vinhos de França". A frase era do professor Guedes de Miranda, que já a dissera numa aula na Faculdade, e a repetira em conversas com os seus colegas da Academia Alagoana de Letras e do Instituto Histórico, e mesmo almoçando com o bispo. Mas essa frase, repetida e invejada, não era o suficiente para documentar a presença do professor Guedes de Miranda na pensão da Dina. No momento em que algumas das comidas faziam a sua entrada triunfal na sala, e o caldo fumegante do sururu de capote inebriava consciências e estô magos já cativados pela azuladinha de Coruripe, o 107
poeta Armando Wucherer dissertava sobre as suas origens étnicas. E garantia, mirando em roda, e abrindo as narinas para o cheiro dos pitus cozidos e os olhos para os camarões que pareciam nadar no leite de coco: "Em meu sangue, rodopiam os moinhos da Holanda e florescem os vinhedos do Reno." Do outro lado da mesa, e ao lado de Guabiraba, o facínora Piolho de Onça, notoriamente vinculado ao Sindicato da Morte, ouvia-o, deslumbrado, masti gando, com o que restava de seus dentes cariados, nacos de carne-de-sol com farofa de bolão — era uma carne escaldada com cebola e coentro e uma farofa amorosamente cozinhada em manteiga de garrafa. Piolho de Onça mastigava e admirava. E, numa es treita ilha de discernimento, ele sentia que as horas de convívio com as altas personalidades de Alagoas — ou, pelo menos, com pessoas ilustradas que usa vam gravatas e anéis — o redimiam do dia-a-dia promíscuo e dos serviços confiados à sua pontaria ou ao seu gesto certeiro e impiedoso. Como havia marinheiros norte-americanos na cidade — e todos sabem que os marujos, quando bêbedos, gostam de brigar, puxar faca, quebrar mesas e cadeiras, passar seixo nas putas — sua presença fora solicitada, uma presença preventiva e moralizadora recebida com efusão pela própria Dina, e que o fizera logo sentar-se na grande mesa em que se festejava o aniversário de Hegecipo Caldas, ou o milhar ganho pelo poeta Armando Wucherer. E o que Alagoas tinha de melhor e mais letrado limpava travessas de sururu e de carapeba ao leite de coco e pedia mais fritada de siri. A um marinheiro, o poeta Armando Wucherer procurava (numa língua que, para Piolho de Onça, deveria ser francês, ou inglês, ou alemão, pela simples razão de que não era lí ngua de hom em mac ho al ag oan o) incut ir alg umas 108
noções da riqueza de sua terra. Explicava-lhe que, na verdade, Alagoas era um lençol subterrâneo de petró leo — e não estaria longe o dia em que, dos conveses dos navios, seriam vistas torres de petróleo em todo o litoral, misturadas aos coqueirais. E embora os jo j o r n a i s d o R i o — que qu e e x a g e r a m t udo, ud o, a p e s a r d a c e n sura do DIP! — vivessem propalando que, em Ala goas, imperava a lei da selva e do cão, devido aos freqüent fr eqüentes es crime cr imess de mor mo r t e (que (q ue t i nh a m razões de natureza sociológica! como costumava sublinhar, no foro e nas aulas, o professor Serafim Gonçalves), na verdade ela era uma doce terra de açúcar, concei tuada até no estrangeiro. Quando o Brasil era um Império, Alagoas já ex portava açúcar, algodão, couros e mel. Das terras estranhas que ficavam do outro lado do oceano vinham sedas, chitas, carne salgada, vinhos, azeite de oliveira, drogas medicinais, panos de algodão, bacalhau, manteiga, farinha de trigo, ferragens, madapolões. Sua cachaça era impacientemente dispu tada pelas demais províncias, que lhe compravam, ainda, além do algodão, açúcar e couros, outras ri quezas locais: cocos, milho, farinha de mandioca, azeite de mamona, feijão, esteiras de junco e de piripiri, madeiras em pranchões, canoas, caroás, vigas, tábuas, lã de carneiro e de barriguda, paus para fazer ja j a n g a d a s , c a n o a s e c e r a a m a r e l a . E, e m t r o c a , A l a goas recebia sabão, charque, café em grão, moedas metálicas, ferragens, sal, panos, charutos e cigarros. Guabiraba sorvia lentamente a cachaça verná cula, gabando-a com estalidos da língua sequiosa e alegre. E, ao seu lado, o poeta Armando Wucherer defendia a sua terra: uma terra azul e branca, e ver de, que alguns alagoanos maus ou ressentidos detra tavam lá fora. Não, Alagoas não era uma terra de assassinos ou de gente sanhuça, de revólver ou faca 109
na cinta. E, quanto aos rumores de que, na cadeia de Maceió, os presos apanhavam mais do que boi ladrão, não passavam de calúnias espalhadas pelos inimigos do interventor, um homem de bem que combatia o comunismo e a corrupção administrativa. O fumo de Arapiraca, por exemplo, era superior ao da Bahia. E tudo isto sem falar no sururu — e fez o mari nheiro engolir um pedaço de fritada e beber, num prato fundo, o dourado caldo de sururu de capote. Good, good... aprovava o marujo louro e sardento, quase num grunhido. — Só Maceió e Paris têm sururu — garantiu o poeta Armando Wucherer, sob o olhar atento do banqueiro Hortêncio. E limpou os beiços com a ponta da língua. Graças a Alagoas, o Brasil era agora uma Repú blica, como os Estados Unidos: se o marechal Deo doro da Fonseca não tivesse montado no seu cavalo, naquela manhã de 15 de novembro de 1889, o País ainda seria um Império — e talvez ele, Armando Wucherer, fosse conde. O j or nal na l i st a assegur ava que Alagoas Alagoas possuía a melhor cachaça do mundo. Nenhuma bebida, em toda a Terra, era comparável à azuladinha de Coruripe, a qual pedia tira-gostos nobres como boca-de-uçá ou fatia de caju. Ele estava diante de um marinheiro, uma cria tura que passara semanas dentro de um navio, sem ver mulheres. Com os olhos acesos, confidenciou-lhe (pois era uma confidência, uma frase dita em voz baixa, à mão, num francês juncado de palavras in glesas e es espa panh nhol olas as)) que Ala Alagoas goas possuía as melho mel ho res putas do Brasil. Não eram como as mulheres do Mangue, nem tinham as galinhagens das fêmeas do Recife. Algo recatadas, só faziam ou só gostavam de fazer na frente, mas talvez só em Cingapura ou nos 110
mares do Sul existissem mulheres como aquelas. Apontou algumas, vistas da porta, dançando com os marinheiros. Circungirando o olhar pelas mesas rui dosas, o professor Serafim Gonçalves se aproximou, segurando uma taça já servida de sorvete de cajá. Dir-se-ia que aquela noite de pagodeira o tornara mais gordo ainda — de uma obesidade grave de magistrado ou estadista, que tivesse cingido o seu abdome como uma consagração ou uma recompensa. Muitos dos convivas tinham acabado de jantar, e houve mesmo um que, tendo guardado fome para os últimos pratos, protestara contra a falta de bagre do Pilar ou de uma boa galinha ao molho pardo num banquete daquela categoria. Uns estavam bêbedos e loquazes, com as bebidas sempre correndo a frouxo; outros, sonolentos. Havia os que agarravam as mu lheres para dançar ou simplesmente esticavam as pernas, com um ar de satisfação animal, ou de súbita indolê ind olênci ncia, a, e pediam um arre ar reben benta ta-d -dia iabo bo ou mai ma i s uma cervejinha gelada, "para limpar a serpentina", convictos de que o trajeto do líquido pelas tripas ha veria de contribuir para uma rigorosa higiene intes tinal, tornada necessária pelo acúmulo de cachaças e pitus, siris e carapebas, sururu e farofa de bolão. Piscando os olhos, e num gesto de mole impaciên cia, Guabiraba exigiu um palito para esgaravatar os dentes amarelos, juncados de cáries imensas. E re clamou do garçom: com tanta espuma, aquilo era cerveja de músico! — Gr an de noite! noi te! — c omen om en t av a o poeta Arman Ar man do Wucherer. Na verdade, morar em Alagoas era parti cipar de uma festa eterna ou jamais interrompida. Ela começava pela manhã, no bonde que o trazia do Farol para o centro da cidade. Na porta do Bar Co lombo, era o desfile interminável: informantes que tudo viam e ouviam desenferrujavam as línguas 111 111
malignas; os maridos enganados e as adúlteras da vam à paisagem um tom malicioso que a avivava ainda mais; cervejas geladas refrescavam as gargan tas fatigadas de dizer e comentar, retorquir e perorar; mesmo os mendigos feridentos ou deformados pela elefantíase eram necessários àquela festa que se pro longava o dia inteiro, contra o tédio e o mormaço, o silêncio e o medo da morte, e só terminava quando as luzes das casas se apagavam, sumiam na escuri dão as fach adas ada s degradada degr adadass que guar g uar davam dav am ai nda nd a uns toques e longes da grandeza perdida, e os degraus das escadas dos prostíbulos deixavam de ranger. Segundo as versões que se fragmentaram nos dias seguintes, e as coscuvilhices de praxe, a festa só ter minou ao pintar da aurora, quando um grupo alugou automóveis e foi tomar banho no Catolé — homens e mulheres nus, de acordo com a melhor tradição alagoana, ciosa da nostalgia do paraíso terrestre. Mas, pelas conversas e comentários no Bilhar do Comércio e no tribunal, a festa acabara mesmo na pensão da Dina, quase sol claro. Alguém gritara, de repente, enquanto um dos irmãos Paurílio castigava o piano com um tango: "Todo mundo nu!" E homens e mu lheres bem comidos e bebidos tiraram as roupas e. no ambiente protegido pela presença de Piolho de Onça, que não permitia a entrada de estranhos — alegando que a pensão da Dina fora alugada, naquela noite, a um grupo seleto da sociedade alagoana, a fim de homenagear a oficialidade de um navio de guerra norte-americano fundeado no porto de Jaraguá — dançaram e se divertiram e se rebolaram até quando as raias do amanhecer clarearam o céu, pre nunciando o dia jucundo, os leiteiros e padeiros começaram a surgir nas ruas oblíquas da cidade, e os bondes, rangendo nos trilhos, apressaram os 112
sinais de uma vida obstinada que mais uma vez iria grassar ao sol. No quarto, a mulata de olhos verdes soltava ri sadas; as carícias do marinheiro norte-americano davam-lhe cócegas, e ela cruzava os braços sobre os seios. Um bacharelando sugeriu que, para encerrar a festa, se abrissem garrafas de champanha. Mas o poeta Armando Wucherer ponderou aos interlocuto res, deslumbrados com a sua sabedoria, que a ocasião não era propícia. E, num ar de peroração, agitando os braços e mal disfarçando um arroto: — Champanha só numa mesa de mármore, sob uma luz de reflexos arroxeados, e junto a uma mu lher das axilas bem cheirosas. Guabiraba trepou numa cadeira. Queria fazer um discurso, mas se rendeu às vaias. E, instantes depois, arriado num sofá, dormia a perna solta. O sa salã lão o se esvaziava. Os galos an un ci av am que o dia iniciara a sua marcha nas trevas. Em duas fubicas sacolejantes, de capotas arriadas, como no corso do carnaval, e que pareciam avançar em dire ção ao alvor da manhã, iluminando meiáguas, atolei ros, quintais onde cachorros ladravam, varjedos e os arbustos aleijados do tabuleiro, e num trajeto inverso ao da raposa abatida na véspera, um grupo já che gara ao Catolé. E, nus, homens e mulheres patinha vam na água fria e envolvente, e quase verde, ou se sumiam pelos matos, pagãos, entre risos e gritos. E a suruba, transformando os homens em sátiros, e o mulherio em ninfas, dava a Alagoas, naquela silves tre e matinal aurora de róseos dedos, uma dignidade mitológica. "Além do Equador Equad or não exist e pecado", a no t a r a Barlaeus, ao levantar a crônica do tempo dos flamen113
gos, quando aquela paisagem fazia parte da Nova Holanda, e pelas fiadas de ruas tortas e armazéns empanturrados de açúcares transitava a pior escória da Terra. Eram, além dos portugueses, os neerlande ses, franceses, escoceses, ingleses, judeus e alemães que, procurados ou perseguidos pelo Santo Ofício e outros tribunais que significavam a véspera da fo gueira e da forca, ali tinham chegado com os seus sonhos e vícios, em busca do ouro e do paraíso ter restre, e dispostos a enfrentar as disenterias e as guerrilhas. Os olhos desses passantes recrutados pela Companhia das Índias Ocidentais eram olhos de as sassinos, hereges, ladrões, bêbedos contumazes, bi chas ch as louca lo ucass (como (co mo aquele ca capi pi tã o holandês que, pelo crime de sodomia, foi desterrado para a Ilha de Fer nando de Noronha e depois jogado num cárcere de Amsterdam), jogadores inveterados e trapaceiros, criminosos sexuais, desordeiros, funcionários ganan ciosos e corruptos. Valia tudo, naquela terra ditosa em que os gentios, não contentes de comer os seus próprios mortos, ainda comiam os cristãos. Só de uma vez, um naufrágio lhes ofereceu um portentoso banquete — e eles devoraram o bispo Dom Pero Fernandes Sardinha, dois cônegos presumivelmente gordos como abades, capitães e mulheres. E esse pro digioso festim antropafágico, em que os índios haviam comido o Ocidente colonizador e predatório, inquisitorial e eclesiástico, fradesco e burocrático, erudito e militarista, ainda hoje vibrava na memória coletiva dos alagoanos, que guardavam em suas caras ama relas e em seus sonhos importunados pelo murmúrio do vento do mar e pelo zumbido dos mosquitos as últimas lembranças daquele passado remoto em que o homem, temendo do céu apenas os trovões e relâm pagos, estava ligado à natureza como as árvores e os bichos, as águas e as pedras. Para o rebotalho hu114
mano que fugia da masmorra, da fogueira e do cutelo, a América era a latrina da Europa. "Além do Equador não existe pecado", alegavam eles, de boca ou de consciência; e matavam índios e negros, os seus próprios companheiros de brancura, saqueavam en genhos, roubavam armazéns, ou violentavam mulhe res, nelas depositando, em suas ardidas chochotas negras ou tapuias, as sementes dos olhos verdes e azuis dos nordestinos agalegados e sararás. Esse código de permissividade atravessara os séculos. E quando hoje, nos bulhentos bordéis de Maceió, al guém grita "Todo mundo nu!", ou as surubas fazem e s p a d a n j a r as águas água s dos ri ac achos hos ou do oceano ac acor or dados pela luxúria do homem, mais uma vez ressurge — à luz daquelas constelações que o sábio Marcgrafe amava contemplar do Observatório mandado cons truir por João Maurício de Nassau no seu palácio do Recife — essa tradição escondida de criaturas fiéis à vida da carne e dos sentidos sufocados pela Igreja e pelo Estado. Era como se, momentaneamen te, os alagoanos se recordassem dos tempos remotos em que tudo era permitido. Numa beira de praia ou no meio do mato, ocorrera a conjunção entre a índia caeté que sabia comer (e comia até os prelados!) e o luxurioso refugo cristão vindo daquela Europa jun cada de tribunais e fogueiras, bibliotecas e confessio nários onde padres gordos ou ascéticos também de voravam os cristãos, ao arrancar a confissão de seus pecados nefandos ou o segredo de suas carnes que também sonhavam. E quando a índia e o branco se levantaram saciados da areia — e pelas pernas de ambos escorria a espuma virginal de um esperma bíblico — Deus os abençoou e disse: Crescei, e multi plicai-vos e enchei a Terra, e sujeitai-a e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves do Céu, e sobre todos os animais, que se movem sobre a terra. 115
Disse também Deus: Eis aí vos dei eu todas as ervas, que dão as suas sementes sobre a terra; e todas as árvores, que têm em si mesmas a semente de seu gênero, para vos servirem de sustento a vós, e a todos os animais da Terra, a todas as árvores do Céu, e a tudo o que tem movimento sobre a terra, e em que há a l ma vivente, par a que ten te n ha m que comer. come r. E assim se fez. E viu Deus todas as coisas, que tinha feito, e eram muito boas. Ainda estava escuro quando Piolho de Onça dei xou a festa, fingindo ir urinar. Os cantos dos pri meiros galos, no luzir da madrugada, o haviam adver tido da proximidade da hora em que sua mão se levantaria, mais uma vez a serviço da morte. Rece bera a incumbência de matar o homem que escrevia cartas anônimas. Já estivera várias vezes no Palácio Velho, andando pelos seus corredores escuros e de gradados, e que cheiravam a mijo, e pisando nos degraus carunchosos. De uma vez, chegara mesmo, no escuro, a afundar o pé num tolete de merda. Mas, na escuridão mais fechada, saberia andar por todo aquele labirinto. Sua presença na festa da pensão da Dina era a resposta prévia a qualquer suspeita. Em meia hora faria o serviço. E, sem que notassem a sua ausência momentânea, voltaria para apreciar o pessoal dançando tangos e velhas canções de car naval. E, na volta, haveria de ouvir o poeta Armando Wucherer comparando o romper da aurora a um rajá agonizando em seu palácio de púrpuras e topázios. Ao passar pela estação da Great Western, que estava em silêncio como se nenhum trem fosse partir naquela manhã, apesar de luzes vermelhas na escuri dão, Piolho de Onça sentiu sede. Tomaria, depois, uma cerveja gelada — disse a si mesmo, como quem se promete uma recompensa. 116
As constelações já haviam sido banidas do céu, que se esverdeava. Tinham-se tornado sujos e amas sados os lençóis limpos e brancos onde jovens casais emparedados pela noite haviam fornicado. Alguém sonhava que descobria uma botija de ouro escondida pelos holandeses. Os goiamuns começavam a sair de suas locas. E as luzes do farol se tinham apagado: o dia já ensinava o caminho dos navios. O professor Serafim Gonçalves desceu os degraus da pensão da Dina pouco depois da saída de Piolho de Onça. A gordura não lhe pesava. Sentia-se lépido, após a noite em claro. Na calçada, fungou, depois respirou fundo, e seus pulmões receberam o ar de uma madrugada tornada viva e odorante pelo mar perto. A rua estava deserta. A medida que ia cami nhando, as notas do tango se distanciavam, e a festa se desagregava, como se já fosse memória e passado. "A nau do Estado já começou a singrar o mar trai çoeiro çoeir o da infl in flaç ação ão.. .. " Ouviu Ouvi u um rumor ru mor de passo pas soss às suas costas. Regardou. Não era ninguém. Um cheiro de açúcar mascavo mantinha, na desolação da noite, o sinal dos movimentos e rumores industriosos do dia. Levantou a cabeça para o céu. Poucas estrelas. Manchas de um vermelho ferruginoso já abriam ca minho para as claridades. Quando baixou os olhos, viu, quase à sua frente, o marinheiro norteamericano. Como se há muitos anos, talvez desde a infância, tivesse marcado aquele encontro, o professor Serafim Gonçalves se aproximou da aparição radiosa e ima culada. O marujo era belo, forte, louro. E iria partir no dia seguinte — segredo convertido em distância e esquecimento.
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o
INTRUSO
E L A RIA, quando quando amava. amav a. Er a , a princípio, um sorriso de lábios finos, quase retos, que se abriam mudamente, revelando dentes que não eram tão brancos quanto ele o desejaria. Esse sorriso se ampliava, e fazia do amor uma coisa alegre e clara, um rastilho de inocência que mascarava a pesada satisfação animal. Mais de uma vez, o bacharel a envolveu como se dissesse: não quero o teu amor, quero apenas o teu sorriso belo e clemente que, na penumbra dos dias e na escuridão das noites, resvala para o abismo dessa grande alegria sonegada aos ho mens. Deitado sobre ela, segurando-lhe a cabeça com ambas as mãos, vendo as suas pálpebras se franzirem no começo do êxtase, e o seu sorriso abrir-se como uma ruga radiosa, assistia àquele momento em que o prazer, em vez de converter-se numa sucessão de gritos e grunhidos, cavava no horizonte incerto do mundo um pequeno abismo de luz e doçura. Arti culado num conjunto de sons que não diziam nada, a não ser o próprio amor doado e devolvido — e breve e definitivo como um gesto, uma onda guardada eter namente no côncavo de uma mão, o fragmento de uma estrela caída — o sorriso deixava de ser apenas a dádiva de um corpo habitado pela verdade dos sen tidos despertos. Saído de si mesmo, das duas rugas que o guardavam, ele o atingia como uma luz de farol ou um apito de navio — isto é, como se fosse algo longínquo, vindo das distâncias oceânicas e estelares, dos imensos espaços puros situados além da dor e 119
da sordidez dos homens. E o bacharel se via mo mentaneamente ferido pela interrogação e perplexi dade: por que aquele sorriso logo nela, como uma síntese inesperada de seu corpo sôfrego e banal? E foi para vê-la sorrir, e acompanhar o trajeto desse sorriso até que ele se convertesse numa longa alegria sonora, na crescente música de suspiros e de sílabas de uma linguagem indecifrável, que passou a amar de luz acesa. Seus olhos se agarravam à súbita beatitude do rosto esclarecido pelo júbilo como se naquelas rugas dilatadas, no nariz fremente, nas pálpebras inquiet inqu iet as (e mesmo no risco ri sco das sobra sob rance ncelh lhas as feitas a lápis, lápi s, na t es t a breve e na s orel or elha hass peque pe quena nas) s) es esti ti vessem reunidos todos os emblemas da vida, de uma existência esplêndida e definitiva que depois se dis persava nas pequenas veias azuis, no halo dos seios, no sulco das ancas, até nas unhas pintadas de um vermelho que já se desbotava. Enquanto ele pudesse ouvir e contemplar, na noite mais clara do que o próprio dia, aquele riso vindo das profundezas do êxtase, estaria a salvo do perigo e da morte. E mesmo quando o riso se transmudava em arquejo e silên cio, ele se sentia resgatado e protegido. Era um ani mal cativo — mas a sua jaula era a eternidade de uma jubilação que cruzara as fronteiras da miséria e da culpa, para redimi-lo e reunir em torno de dois corpos cansados ou satisfeitos tudo o que se achava fragmentado ou disperso. Ela abria as pálpebras, e nos seus olhos castanhos e sem história ele via apenas a substância fulgente das horas, dura e infatigável como um diamante; e mesmo nos gestos equívocos de suas mãos que sabiam reacender o amor, buscan do nas cinzas a fogueira escondida, ele encontrava o sinal de uma pureza que não se dissolvia ou se degra dava quando seus lábios eram selados pelo espasmo pertinaz. E ele sentia que, no mundo, o amor é uma
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j a u l a o u u m a i l h a — a l g o q u e e n c e r r a o h o m e m , como se ele fosse um animal perigoso e condenado, alguma coisa separada da verdade dos circos e da imensidão dos oceanos. O amor não é a vida, não é a realidade da vida, refletia o bacharel, enquanto lhe pousava no ombro uma cabeça que procurava ouvir as batidas de seu coração. O amor é um intruso, como uma raposa no centro de uma cidade ou um adúltero num leito conjugal. O mundo está situado num ter ritório além ou aquém do amor, dentro dos muros do tédio ou do terror, do olvido e da indiferença. É um mundo de gestos automáticos e palavras iguais — enquanto o amor era a linguagem misteriosa daquele riso que lhe dava alegria e plenitude sem que ele precisasse decifrá-lo; era aquela fatia de doçura e mistério que o nutria em sua longa viagem pelas trevas. O bacharel sentiu a mão arqueada buscar em seu corpo o fogo sumido do desejo. Era como alguém que, ajoelhado diante de uma fogueira aparente mente apagada, procura o graveto esbraseado. Nas cinzas cin zas do mu n d o , o amor er e r a aqui aq uill ço: ço : o fogo ocul to da vida, que só poderia ser encontrado pelos que se ajoe lhavam para descobri-lo nos despojos do tempo ou no refugo das horas vazias. Ela continuava buscando em seu corpo a centelha perdida. E ele, a cabeça apoiada no travesseiro alto, as mãos estendidas até os joelhos, os olhos fechados de quem finge dormir, sabia que ela estava quase achando o que procurava. Mesmo que não fosse a chama do amor, mas uma moeda perdida entre as dunas, ou um alfinete na escada em espiral de um farol, ou um perfume nas velhas arcas que guardam vestidos de noiva e daguerreótipos, ela haveria de encontrar — porque ela era a procura, em toda a sua muda pertinácia. Os que procu pr ocu ram ra m enco en co nt ra m (dizia o bachar bac har el a si mesmo , desejando espreguiçar-se, mas não o fazendo para não
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perturbar, com qualquer movimento, a tenacidade daquela busca), pois a procura já é o encontro e a descoberta. Os olhos que sonharam a verdade da vida sabem enxergar, na vastidão da areia da praia, a moeda perdida — e, nela, procura e encontro são cara e coroa. De um lado está a efígie da vida, um halo dourado como a luz de um farol ou o romper da aurora que redime a noite sofrida e degradada pela ofensa continuada dos homens; e do outro lado está a imagem do amor, os dois corpos que venceram a estranheza e a indiferença, e, unidos dentro de si mesmos desafiam o horror e a morte. Aqui eu estou acima ou além da morte — dizia o bacharel a si mes mo, à sua nudez cheia de pêlos. Aqui eu estou segu rado à vida como quem se agarra a um corrimão para não cair no abismo do nada. Enquanto esta luz estiver acesa, nada temerei: o perigo está nas trevas que escondem o ódio encomendado e a mão assassina. Entre o riso longo e exultante e o silêncio espaçado a vida assumiu a forma do amor e esplende como um sol — o sol belo e breve das moedas achadas na praia, e que as areias guardam como se fossem conchas ou estrelas-do-mar. Entre os gestos e palavras que abrem as portas do espasmo e o pudor súbito dos corpos sa ciados, no coração de um tempo imóvel como uma pedra, sinto-me ao abrigo da morte. Estes seios que se inclinam docemente, e que pesam tanto como as estrelas levíssimas, proclamam que hei de viver en quanto souber conservar-me fiel a este instante. En costo a cabeça a este ventre que guarda o rumorejo das entranhas da vida. Mais acima, escuto, no cora ção infiel, o mesmo ritmo que lateja nas galáxias, a mesma e pura verdade dos astros que jamais confiam o seu segredo aos abismos. Minha boca se detém, finalmente, diante de teus lábios finos e exatos. Teus dentes não são tão brancos quanto eu o desejaria. 122
Começas a sorrir. Tua saliva me nutre. Em teu delta negro e resvalante, as tuas águas me molham. De olhos fechados, atravesso mais uma vez a mentira do tempo, desço as escadas em espiral de todos os faróis imaginários que iluminaram a minha insônia, ultrapasso os portões da madrugada e, na praia, vejo os navios balouçando no mar, avanço pelas dunas e começo a enfiar os pés na areia enegrecida e salobra. Nesta água negra e cheia de miasmas, terminam todos os mares da terra, todos os mundos que estão além do mundo, e findam todos os rios. És como a água negra de minha infância — aquela que me fa lava dos estaleiros apodrecidos e onde eu ainda podia ver, nos barcos eternamente incompletos, as vérte bras dilaceradas da partida e da viagem, enquanto as gaivotas gritavam como se o sol quisesse cegá-las. És seminal como a água e a terra. És o princípio da vida, verdade matinal do mundo parida pela noite, gerada nas entranhas impassíveis da aurora. És bela como as ondas do mar. Minha boca anda pelo teu corpo como se fosse uma formiga. Quantas léguas em ti, como é longo o caminho entre o teu umbigo e o negr ne gror or de teus pentel pen tel hos! Gas to séculos entr en tr e eles. Abraçado às tuas pernas, vejo os dias se sucede rem às noites, ouço os galos cantando, os navios ga nindo como cães, as rodas das carroças esfolam o sigilo do mormaço que faz tremer o horizonte das tardes. Beijo os teus seios ao mesmo tempo maternais e esponsalicios. Resgatado pela beleza nupcial de teu corpo, tornado puro pelas tuas formas puras e com pletas, fico cego de lágrimas. Meu pranto engrossa os rios e os mares, fustiga os vapores, esconde as calçadas sujas dos armazéns portuários, descora as bandeiras dos semáforos, avaria as montanhas. Só agora sei que os homens choram de alegria. Só agora aprendi que a alegria é o grande rio onde os homens 123
nadam como peixes. Foram tuas mãos aparentemen te desastradas que me ensinaram o caminho da água. E tua voz enrouquecida pelo amor me desperta do sono milenar em que eu estava. Acordado, começo em ti o meu dia lento e minucioso de formiga. Tua língua industriosa me atinge como a onda mais alta no cume do mar encrespado. E de tua garganta saem palavras roucas quando, sugada pelo dia resplandente, vês os lençóis se converterem em areias e dunas, e um mar gelatinoso e cheio de algas jorra de tuas entranhas. A tarde se muda numa noite viscosa. E é de novo dia. E é de novo noite. E é de novo além do dia e da noite, onde o tempo é apenas um lençol amarfanha do numa cama desfeita, e o ritmo da vida se regula por duas respirações arfantes. E giro em redor de ti como se fosses um planeta. Recebes a luz do meu amor sábio e insensato. E te molha o suor de minha agonia. E te cinge a treva de minha incerteza. Desço mais uma vez às tuas jazidas, lá onde és dádiva e segredo, fome e clamor. Mergulhado nessa matriz es cura, vejo teu corpo dançar como um navio entre as ondas túmidas. Deixo inscrito em teu dorso o hieró glifo de minha paixão. Beijo teus pés, para que eles se lembrem de mim quando eu for ruína e pó e epi táfio. Sugo teus peitos, fontes gêmeas da vida infi nita. Meus dedos fecham tuas pálpebras, para que nada vejas, e sejas só lembrança e plenitude entre muralhas. Lamento, em silêncio, que teus cabelos não sejam finos e longos e não tenhas uma cabeleira lumi nosa como a dos cometas. E te sinto crescer de novo em mim, planta longa e espaçosa, paisagem cheia de horas e lugares. E, semelhante às bandeiras, teu riso se levanta no ar, acende as luzes da tarde, depõe em mim o emblema da eternidade que há de continuar minha quando, varado por um tiro, eu cair morto entre as pedras da rua... 124
A JANELA
No HOSPITAL de São Vi
cente, uma janela se abriu e a freira que sofria de insônia recebeu no rosto a aragem da madrugada. A brisa vinda do mar refrescou-lhe o rosto — um rosto sem idade, que as rugas não franziam. Mais uma vez ela estava em sua sua janela, imóvel e ereta. Não precisava debruçar-se para ver a desola ção da noite. E como a luz do quarto em que se en contrava estivesse apagada, não seria vista de fora. Era como uma sombra entre sombras, no silêncio da antemanhã — um silêncio de vento e água, na cidade que surgira dos maceiós, cheia de nomes de água: Levada, Trapiche da Barra, Ponta da Terra, Vergel do Lago, Bebedouro, Poço, Riacho Doce, Bica da Pe dra, Volta d'Água. Como todas as noites, levantara-se após algumas horas de um sono breve e compacto que, esvaído, pa recia sempre ter esgotado todas as suas reservas de indolência e cansaço. Vestira o hábito e começara a peregrinação pelos corredores desertos e mal ilumina dos até fixar-se na janela. E era como se existisse uma fronteira entre a sua consciência despertada e a madrugada. Já sentindo no corpo a força para os trabalhos diários, contemplava o fim da noite como se o sonho estivesse nas coisas. Ou como se o sonho fosse as próprias coisas: o oitão do hospi tal, a praça vazia, as casas corcundas, a fachada da cadeia onde criaturas amarelas apodreciam olhando 125
as grades, as sentinelas que, no quartel, assistiam ao sucedimento dos dias e das noites, os dois quadros (um Sagrado Coração e um retrato de Getúlio Var gas) que ornamentavam a sala. Embora todas as madrugadas ela viesse para aquela janela, como quem procura um refúgio ou apenas obedece maquinalmente a um hábito — ou quer receber nas narinas acostumadas ao cheiro do iodofórmio o vento do mar que, atravessando a ci dade, vai caminho das lagoas e grotas serranas — não conseguia afeiçoar-se à evidência de que era mais um dia no tempo que estava sendo vencido na desolação e na treva. Para ela, era a mesma madru gada que se expunha aos seus olhos, uma substância intocável e insubstituível, mesmo quando algum fi gurante inesperado, como um bêbedo ou um cão tresnoitado, atravessava o largo vazio. O silêncio da noite gasta não significava o fluir do tempo, a marcha das estrelas no céu de Deus. O tempo havia parado, as horas não avançavam, as cobras dormiam em seus ninhos, os coqueirais se estendiam imóveis junto às dunas, os peixes dormiam no mar, e os marimbon dos em suas casas. Na noite interminável dos que sofrem de insônia, o tempo não é um degrau ou uma onda, um fragmento jogado na torrente glacial ca vada entre constelações, mas o olho fixo de uma co ruja que, engastada numa cornija, mira ironicamente a escuridão imutável de uma eternidade às avessas. Quando o dia raiasse, aquela madrugada se esvazia ria como um balão para encher-se de novo no mo mento em que ela, não lhe vindo mais sono para dormir, se levantasse outra vez na escuridão, pro curando com os pés as sandálias velhas. No dia anterior, ela fora ao necrotério, a pretexto de procurar um enfermeiro, mas na verdade dese ja j a n d o ver ve r a f i s i o n omi om i a do h o m e m que qu e s e s u i c i d a r a . 126
Era um rosto afilado como o de uma raposa. Ac torná-lo tumefacto e amareloso como a pele de uma cobra papa-ovo, a morte lhe conferira uma certa irra cionalidade, o que levava a freira a pensar na raposa morta a pauladas naquela mesma manhã, no centro da cidade cidad e (que (q uem m lhe co nt ar a a hist hi stóri óriaa fora o enfer enf er meiro que ela fingia procurar no necrotério, e que era o seu informante habitual). Dele soubera que o suicida, homem casado, tinha uma manceba — mas, ao ver o seu rosto, não observou nele qualquer sinal de posse. Como todos os mortos, ele era só pobreza e priv pr ivaç ação ão,, seqüestr seqües trado ado par a sempr e do que fora for a o amor e o êxtase, o desatino ou a perplexidade. Ela aprendera que os suicidas não vão para o céu, suas almas são jogadas nas profundas do inferno. Mas aprendera também que, graças à misericórdia divina, mesmo na mais infinitesimal partícula de tempo há lugar para a salvação. Alexandre Viana estava con dena de nado do a um infe in fern rno o de fogo (e por que n ã o de gel ge l o e frio fr io?) ?) ou se encont enc ont rava, rav a, naquele momen to, to , na grande sala de espera que era o purgatório, à espera de que, no final dos tempos, se abrissem para ele as portas do paraíso? A morte era ambígua. E do rosto intumescido não vinha qualquer esclarecimento ou sinal de escala. Apertando o rosário, ela tornava a pensar naquela região frígida que consumia eterna mente as almas. E o inferno era o deserto branco e imóvel, que vira uma vez num cinema em Penedo. Nenhum lobo percorria aquela solidão, ora rasa como uma mesa coberta por uma toalha alvíssima, ora si nuosa e ondulada, mas despida de qualquer vibração em suas curvas lentas e intocáveis. O inferno era o vazio luminoso, a geleira pulcra e infindável, ca vada e estendida sob um céu também branco e sem estrelas, num tempo feito do vácuo das noites e dos dias abolidos. E era também o silêncio — não o silên127
cio dos mortos congelados ou apodrecidos, das almas soterradas para sempre no esquecimento, mas o pró prio silêncio das coisas reduzidas à sua essência de pedra escondida no coração do gelo, de formas dis solvidas num horizonte insubstancial, longo espaço sonegado em si mesmo, e onde jamais haveriam de ressoar o uivo prolongado de um lobo faminto ou solitário, ou o arfar de um homem aterrorizado. E ela estremeceu, como se sentisse, vindo através dos anos como um grande vento escoteiro, o frio acumulado na tela de cinema. Aquela imagem às vezes tremida de um inferno iluminado pelo seu brancor se fixava no âmago de sua insônia como se quisesse resgatá-la da solidão. Mas Deus não conhecia o inferno, embora o tivesse criado. E o inferno era o nada ondulan te, a ausência petrificada, o frio absoluto. A freira pensou em Alexandre Viana como se ele tivesse sido uma raposa que, na madrugada longa, fora perseguida por caçadores invisíveis e, finalmen te, sacrificada. Assim, na verdade, eram todas as cria turas: acossadas por um grande caçador que as aba tia para que elas pudessem penetrar no verdadeiro ja j a r d i m d a vida vi da.. E m s u a r o t i n a m a t i n a l p e l a s e n f e r marias, acostumara-se a conhecer as feras humi lhadas. Aquela mulher que tinha manchas negras por todo o corpo e a prostituta que exibia o seu roupão cor de vinho como se envergasse um para mento já estavam marcadas para morrer, como Ale xandre Viana no momento em que se amancebara, a raposa percebida pelo guarda do posto policial, ou o carroceiro que fora tomar banho de mar e mor rera afogado. Encolheu-se, como se o vento que vinha do mar a tivesse arrepiado. Todos os seres, no mundo, cami nhavam caminho da morte. Também ela era um ani mal prometido ao frio absoluto. Mas essa morte pes128
soal não lhe pesava. Guardava-a em si mesma — algo semelhante ao rosário cujas contas seus dedos per corriam quase mecanicamente todos os dias ou ao escapulário que lhe pendia do pescoço. Significava o fim de sua insônia. Animal dócil e paciente, silen cioso e reflexivo, ela dormiria, eternamente, no re gaço quente de Deus, liberta de todas as interroga ções que não ousava fazer ao capelão ou à madre superiora. Ao cair sobre ela, a morte seria doce e cle mente como a chuva. A sua atenção se concentrava na morte dos outros, naquele hospital onde muitos já entravam trazendo no rosto a marca do finamento próximo. Quando menina, evitava matar as formigas; cami nhava com cuidado, olhando o chão. Uma vez, cho rara ao ver um passarinho morto. Levada para es tudar na escola do convento, como interna, fora-se habituando ao silêncio e à solidão. Naquele tempo, ela era ainda uma criança, não sabia ou não podia escolher — mas aceitara o caminho que os outros, ju j u l g a n d o c o n h e c ê - l a mel me l h o r , l h e h a v i a m i n d i c a d o , como se ela fosse uma formiguinha de Deus. Tor nara-se freira. Passara a usar uma aliança na mão esquerda, como as mulheres casadas. Era a esposa de Cristo. Nos dias de noviciado, presumia que sua existência futura transcorreria num colégio de frei ras, entre meninas aprendendo a bordar e brincando de roda, e os arranjos de flores na capela iluminada. Assim, viveria como uma espectadora, longe das mi sérias e abjeções do mundo, distanciada da humilha ção e da dor, e rezando pela salvação de milhões de criaturas desconhecidas. Mas depressa esses pecado res sem rosto, aos quais dedicava as suas orações, fo ram sendo substituídos. E ali estava o rosto amarelado de Alexandre Via na, fino como o focinho de uma raposa. Deus não 129
quisera que ela se mantivesse à margem da vida, no convento que ao anoitecer era o refúgio das ando rinhas. No Hospital de São Vicente, ela participava, quase em silêncio — tão parca era em palavras e gestos — das misérias e podridões do mundo. Cuida va de mulheres cujas entranhas apodreciam lenta mente, de homens de barriga d'água, de meninos opilados e velhos encarangados que respiravam como antigos foles avariados. Em certos momentos, salteava-a o pensamento de que o mundo era vil e feio, talvez se tratasse apenas de um rascunho de Deus, mero borrão divino. Enxotava, porém, a idéia auda ciosa e confusa e, apertando nos dedos as contas do rosário, passava a admitir que tudo, desde uma cons telação a uma doença venérea, tinha um sentido. A vida tinha um sentido, por mais absurda ou sinuo sa que pudesse parecer. A prática da caridade tinha um sentido. A sua insônia tinha um sentido, condu zia-a na travessia da noite a uma ilha de silêncio em que, esperta e refeita das canseiras diárias, poderia desfiar os seus pensamentos como se fosse um rosário. Mesmo as suas dúvidas e indagações haveriam de sig nificar algo. Uma madrugada, ela estava à janela, quando passou ao perto um grupo de boêmios e cachaceiros vindos de alguma farra ou peixada. Seus ouvidos se encheram da bela cantiga que parecia subir, airosa e com as suas palavras úmidas de orvalho, para os céus onde sumiam as constelações: A sempre-viv semp re-vivaa é uma um a fulô m isteriosa, ela é cheirosa, mas porém não tem perfume. Mandei Mandei fazer fazer um broqu broq u é pra minha amada, mas sendo ele da bonina disfarçada tinha o brilho da estrela matutina. Adeus, m enina, enina, sereno sereno da madrugada... madrugada... 130
Aqueles noiteiros, com as suas cantorias, estavam acima da doença e da morte, da insônia e do tempo paralisado. Mas que sabia ela do que ocorria além do hospital e das palavras altas do mundo? Desde o começo, a sua vida fora amor e aceitação. Tinha pie dade até das formigas que seus pés pisavam inadver tidamente. Jamais os seus olhos de adolescente se tinham demorado num rapaz. O seu primeiro e único amor fora um amado invisível e todavia presente em todas as coisas. Ele se tornara o sentido de sua vida. aquecera o seu corpo franzino e frio, impunha-lhe ta refas penosas e servis. Uma vez, tivera que retirar da enfermaria o urinol usado pela prostituta de roupão cor de vinho que tinha uma doença na madre. Mas, neste e em outros lances de sua vida de freira de hos pital, jamais a assaltava a idéia de que ela estivesse ajuntando merecimento para a recompensa divina. Cercada de seres ofendidos pela doença e aferrados à certeza da vida mesmo quando a agonia já os ron dava claramente, ela aceitava a evidência de que o hospital era a sala de espera da morte. Aqueles rebotalhos humanos, que se estendiam nos lençóis encardidos das camas da enfermaria, eram compará veis aos retirantes que as secas e as enchentes acumu lavam nos pátios e plataformas das estações ferro viárias. Eles iam partir, não sabiam para onde nem por ordem de quem. Gente miúda, povo miúdo, cafuçus, caminhavam como sonâmbulos ou judeus er rantes. Só tinham, de seu, o dia e a noite. A quem encontrariam, no fim dos trilhos? Ao capataz de uma fazenda? A Deus? A freira estremecia, lembrando-se subitamente de outros mundos que excluíam as ima gens da dor e da deambulação. Além do paredão da cadeia e da calçada do quartel, das casas encorcundadas e da escuridão da noite, erguia-se o mundo dos que a nada e a ninguém procuravam ou esperavam 131 131
— e estendia-se o mundo daqueles que aguardavam a aparição da raposa no alvor da madrugada para matá-la a cacetadas. Logo essa raposa se transfor mava num homem, assumia a forma do cadáver de Alexandre Viana no necrotério, e a freira experimen tava um certo desnorteamento, ao sentir, nas profun dezas de si mesma, lá onde dormiam as respostas às suas perguntas de insone, a existência de um vínculo entre a morte de uma raposa e o sacrifício de um homem, pelo suicídio ou pelo assassinato. Quando entrara para o convento, vinda de uma pequena casa de dois quartos no meio de um arrozal (ela dormia na mesma cama com uma irmã mais velha), o que mais a impressionava era a grandura das salas e corredores, na velha construção que, com os seus vários pavimentos e lances de escadas, e altos móveis severos, tinha o ar majestoso de um palácio. Nos seus primeiros tempos de interna, várias vezes se perdera nas salas e corredores vazios. Era como se estivesse num labirinto. Sim, o mundo era um labi rinto. Debruçada a uma das altas janelas, procurava orientar-se: embaixo, havia um jardim interno, com uma fonte de azulejos no centro. Dálias vermelhas e brancas curvavam-se ao peso de sua mesma formo sura. Um bico-de-papagaio, florido, avermelhentava o espaço entre duas pilastras. Passarinhos cantavam ou voavam: coderos, trinca-ferros, beija-flores, xe xéus, sabiás, todos os pássaros de sua infância. Rolabostas zumbiam. Perdida no labirinto, ela olhava o ja j a r d i m de D e u s , c hei he i o de r o s a s e a z a l éia éi a s . Que Qu e d e g r a u s seus pés deveriam subir ou descer, para atingi-lo? Qual a escadaria que a conduziria àquela fonte de água pura, aos dourados cravos-de-defunto que se recusavam a lembrar a morte, brilhando na manhã de sol, aos lírios que proclamavam a glória eterna de Deus? 1 3 2
Agora, j un t o a outra out ra j a ne l a (aquel (a quel a que, que, at atra ravés vés dos anos e da insônia, se convertera finalmente na sua sua janela, já que a do convento fora apenas o lugar de uma espreita provisória), ela pensava nas cria turas perdidas no labirinto da vida, como o carro ceiro afogado, Alexandre Viana, a mulher de man chas negras, a prostituta de roupão cor de vinho, e tantas outras. Os que se perdem atingem a janela de onde se vê o jardim de Deus? Onde, na escuridão das salas e corredores de qualquer palácio velho e degradado pelos morcegos e lacraias, está a escadaria da salvação? E por que uns são salvos e redimidos, e outros são lançados na danação de um inferno de gelo e fogo, recusa e desamor? Ela era uma pobre freira de hospital, ignorante e gasta pela insônia, e não podia ou sabia responder a perguntas tão grandes. Apegava-se ao seu rosário para que não a contundissem interrogações acima de sua capacidade de compreender um mundo onde ela diluía a sua vida, cumprindo os trabalhos mais incômodos, e pro curando transformar em fé e esperança o que já ostentava o emblema da morte. Irmã.. Ir mã.. . Er a i r mã do suici sui cida, da, da leprosa, da mu lher do roupão cor de vinho, dos guardas que haviam abatido a raposa, dos flagelados amontoados nas estações. Essa fraternidade ligava-a ao mal, ao terror e à morte. Fazia-a cúmplice de tudo. A mão que se levantara para brandir o cacete que esfacelara a ra posa era também a sua. Fora ela que acionara o gati lho do revólver de Alexandre Viana. Não, ela não estava fora do mundo, o seu hábito de freira não a separava dos seres e das coisas. Era um elo da imensa corrente, uma conta do rosário do mundo. Deus não a chamara para que ela se afastasse da vida, mas para que a contivesse, como uma chaga viva, em seu coração palpitante. Tinha certeza de que havia um 133
corredor entre a janela (qualquer janela, mesmo aquel aqu elaa em que via a al alvur vuraa final fi nal da noi no i t e) e o j a r d i m que era o fim do labirinto. Aquela madrugada estacionada no tempo, que não era nem hoje nem ontem e mais parecia um arre medo de eternidade, haveria de abrir-se, com o alvo r ar do dia, p a r a o sol que aqu a quec ecee os h o men me n s e os passarinhos e ilumina os carreiros das formigas. Mas talvez o mundo fosse apenas o sonho de Deus. Não fora criado ainda, existia simplesmente como um plano ou uma intenção divina. A raposa, os guardas que brandiam cacetes, o rosto inchado de Alexandre Viana, as manchas no pescoço da mulher leprosa, as doenças da mulher de roupão cor de vinho — tudo isto era sonho. A sua própria insônia fazia parte do sonho de Deus. Após se demorar nesse pensamento, a freira o afastou de seu espírito. Não, Deus já criara o mundo, dividindo a luz das trevas, separando as águas e a terra, pondo luzeiros no firmamento do céu que ser vissem para mostrar os tempos, os dias e os anos, fazendo o homem à sua imagem e semelhança, macho e fêmea. Deus não sonhava. Deus era a realidade. Deus era a insônia eterna: de sua janela Ele contem plava todas as suas criações, a raposa e o guarda armado de cacete, o suicida e a leprosa, a lacraia e o peixe alojado na barriga do carroceiro afogado, as dálias pesadas de tanta beleza e as andorinhas aninhadas nos beirais do convento, quando noitecia. Era um Deus terrível, que criara, ao mesmo tem po, o sono e a insônia, o navio e a tempestade, a caça e o caçador, a seca e o chuvoeiro, a raposa e o guarda que esmigalhara, com um cacete, o focinho belo e selvagem de um animal que se perdera nos labirintos da cidade como um inocente longe do paraíso. E ela, uma pobre freira, inclinava-se diante dos inescrutá134
veis desígnios de Deus e aceitava, no silêncio de sua insônia, o mistério eterno do mundo. No silêncio da alva do dia, o galo cantou. Era um galo de plumagem dourada, resplandecente, e sua crista rubra rivalizava com a vermelhidão da aurora. Magnífico, exultante, cantou, jubilosamente, no es plendor da manhã nascente, acordando os que dor miam e sonhavam, e proclamando a glória de Deus enquanto suas esporas aguilhoavam a terra inteira. Pela calçada do hospital passou um homem enor me e barrigudo, acompanhado por um marinheiro louro. Minutos depois, novos passos ressoavam na calça da do hospital. Era o bacharel, que passara a noite na cama de uma senhora casada, cujo marido viajara para a Bahia. Na praça deserta, ele ia remoendo as frases dos embargos que deveria apresentar ao Tri bunal de Apelação. Em seu espírito, uma palavra fulgurava. Estava decidido a chamar o tribunal de colendo. A palavra vinha do latim, não poderia deixar de ser apreciada pelos desembargadores. Tribunal! Também vinha do latim, como lhe ensinara, no Re cife, o seu professor de Direito Romano. O bacharel lembrou-se da noite passada quase toda em claro, da profusão dos gestos e carícias sob o brilho da lâm pada. Gostava de fazer amor de luz acesa, principal mente quando se tratava de mulher casada — era como se a evidência da culpa e da traição, ou a som bra de um perigo, nutrisse o seu prazer. Em certo momento, o lençol branco que os cobria lhe pa recera frio e funerário como uma mortalha. Saciados, o pudor os emudecera. O espanto do que tinham feito no tresnoite interminável deixara em ambos cicatri zes de reserva e silêncio. Apagaram a luz. Virada para a parede, ela encolheu o corpo que o cansaço tornara vazio de oferendas, e procurou nele aconchego para 135
o dorso que voltara a ser puro e intato após ter sido ofendido pelo êxtase. Ele dobrou as pernas, para acolhê-la, num simulacro de proteção — e havia algo de demencial no assoprar do vento na praia, agitando o folharéu dos coqueiros, e no arruído dos gabirus no forro do teto. O apito de um vapor que aportalecia naquele instante, partindo a treva, interrompeu o meio-sono dela; e, aprisionado em seu eterno pre sente, ele a sentiu fremir entre os seus braços como um grande pássaro invisível. Agora, tendo alcançado a calçada da Rua Nova, e recordando-se daquela casa onde ele anoitecia mas não amanhecia, pergunta va-se: serei um crápula ou isto não tem importância? será que todos os homens são como eu, e os mais puros e provectos e mais cheios de poréns não pas sam de criaturas perversas que escondem culpas in confessáveis? Perto do Liceu Alagoano, o canto dos galos o tranqüilizou. Era a promessa de que o mundo se tornaria luminoso como o quarto em que passara a noite na vigília insensata do seu amor culpado. Vindo o sol, a sua su a puni pu ni çã ção o ( t r a m a da noite noi te e da treva) seria adiada. A freira fechou a janela.
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A NOITE E OS NAVIOS
NA NOITE da morte da
raposa, ele fora dormir mais cedo do que de costume. Depois do jantar, começara a sentir uma certa malimolência — talvez a circunstância de não ter visi tado a sepultura de sua mãe o incomodasse. Teriam bastado alguns passos, para cumprir o pequeno ritual. E, da janela do seu quarto, vendo a escuridão que correspondia ao mar escuro e as luzes dos navios fun deados ( u m deles era er a um navio nav io de guer gu er ra no r t e americano, tanto assim que marinheiros louros, ves tidos de branco, se haviam espalhado pelos bares do centro da cidade, tomando cerveja, e pelas pensões da Rua do Capim e de Jaraguá), procurava expul sar do pensamento aquele espinho que o feria, em bora desprovido de remorso ou de um simples arre pendimento. Tinha a certeza de que, mesmo indo ou tras vezes ao cemitério, como ocorrera antes, seus passos erradios não o aproximariam do túmulo de sua mãe. Já começara a amanhecer quando os degraus da escola do Palácio Velho rangeram. Passos cautelosos iam se aproximando do seu sono, e, na fímbria entre o sonho e o despertar, as hipóteses foram fluindo. Talvez fosse seu pai que, rendido finalmente à necessidade de um lugar para morrer, tivesse renun ciado às pequenas viagens e cavações, e às falácias dos lucros em negócios miúdos e velhacazes que sua imaginação engrandecia, e se encontrasse do outro 137
lado da porta, no fim de um longo trajeto em que as suposições e informações falsas ou precárias mais de uma vez o tinham desviado, e pronto para con fessar o seu erro — e talvez a sua vilania — ao filho desconhecido e já tornado um homem como ele, cheio de ressentimentos e rancores. Como os cães que pressentem o instante supremo da agonia, e têm diante dos olhos todas as luzes fan tásticas de uma vida transcorrida ao rés do chão, ali estava o seu pai, presumivelmente decidido a ocupar no coração do filho o lugar até aqui livre e indevassável. As pequenas viagens tinham-no fatigado. Ele estava cansado da longa espera nos cais, nos bancos das estações onde os paus-de-arara aguardavam trens imaginários que os levariam para o Sul, nas salas de espera das repartições em que não lhe davam a menor atenção, e as horas transcorriam baças e fraudulen tas como se o tempo andasse às arrecuas, como os caranguejos. Os sapatos furados (que chapejavam quando ele pisava), a velha roupa de casimira azul que, na verdade, fora roubada de um companheiro de quarto em Sergipe, as cartas de recomendação, dadas de má vontade, que haviam amarelecido em seus bolsos — por não saber localizar os destinatá rios ou simplesmente porque estes não existissem, tivessem sido substituídos por outros burocratas ou se houvessem recusado a recebê-lo — eis tudo o que ele trazia, como uma cristalização de sua espera. Aprendera, finalmente, que tudo é passagem. Entre geografias erodidas, pranchas podres e seres curiosos ou enigmáticos, os caminhos e diálogos se haviam es vaecido. E, com um ar de cão batido, ali estava ele, do outro lado da porta, após ter procurado, durante meses ou talvez anos, aquela gota de esperma pingada de seu corpo já afetado por várias doenças simultâ neas nea s ( u m a dor dor na espinha, espi nha, um corr co rr iment im ent o que lhe 138
manchava as cuecas encardidas, uma tosse que não o deixava dormir e incomodava os outros hóspedes das espeluncas), e convertida num homem que era o seu herdeiro, muito embora ele nada tivesse a legar, a não ser o seu ar de rebotalho, a roupa fur tada de um jogador de bozó em Aracaju, as cartas de apresentação que se esfarelavam em seus bolsos, e uma passagem de trem obtida numa delegacia de polícia e jamais utilizada. Era o seu pai. E em sua promessa de convívio brotava, já, a interrogação indesviável — ele queria saber onde sua mãe estava sepultada, pois na procura do filho perdido recolhera a certeza de sua morte, tanto assim que o garoto fora internado no orfanato, e depois estudara contabili dade. A veemência das batidas na porta traía algo de autoritário que não se afeiçoava à imagem ou versão de um pai procurando um filho. Então, admitiu que havia na visita um certo e inexplicável teor de ar bítrio. Não, não era o seu pai. Este sumira para sempre, entre o mítico e o anedótico, decerto se finara numa espelunca ou num hospital para indigentes, no Rio ou em São Paulo — ele que talvez só soubesse andar nas pequenas cidades, onde as pessoas, mesmo desconhecidos ou hostis, ou temerosas de seu contato às vezes viscoso, lhe asseguravam um campo de ma nobra ajustado às suas ambições ínfimas. A metró pole o engolira para sempre, sem que jamais lhe tivesse ocorrido ao espírito turvado pelo cansaço e amargor que, certa vez, em Maceió, ele gerara, como se fosse um deus desatento, uma criatura à sua ima gem e semelhança. Sem que ele tivesse se levantado da cama e acen dido a luz, uma claridade leitosa invadia o quarto. A porta se escancarou. Agarraram-no, e em breve ele 139
descia os degraus da escada rangente do Palácio Velho. A noite se esvaíra, dissolvendo os navios e reve lando os telhados enegrecidos pelas chuvas. Fora, escorria uma claridade de cal. Todos os transeuntes vestiam roupas brancas, de uma brancura semelhan te à dos uniformes dos marinheiros norte-americanos — embora, à porta de uma casa lotérica que perten cia ao banqueiro Hortêncio, e onde se bancava jogodo-bicho, estivesse imóvel um velho vestido de casi mira azul. As portas das casas de ferragens e dos armarinhos já estavam abertas. As calças coronhas de Guabiraba eram brancas. Maloqueiros e vendedo res de quebra-queixo e rolete de cana contemplavam um cartaz de cinema. Gonguila e os outros engraxa tes estavam curvados sobre sapatos brancos — a úni ca exceção eram os sapatos do banqueiro Hortên cio, de duas cores. E ao seu lado, de pé, o professor Serafim Gonçalves esperava, fingindo não enxergar um mendigo de trapos brancos que lhe estendia a mão. Ne nhum Nenh um dos dos homen ho menss que o l adea ad eava vam m (e ambos ambo s usavam óculos escuros, mais para lhes esconder os rostos do que pa r a os prote pro teger ger do sol fulg fu lgent ent e) lhe lh e dissera chus nem bus. Mas ele sabia para onde estava sendo levado. E o que mais o surpreendia era que, em toda a sua vida, desde o momento em que os rumores no quarto de sua mãe o haviam acordado até agora — com todas as etapas no orfanato, no curso de contabilidade, no balcão do armazém, cui dando de fretes ou embarques, ou em seu quarto, escrevendo cartas anônimas — não lhe tivesse ocor rido à mente que se aproximava o instante daquela visita. O seu nome constava de um livro negro como o dos cartórios. Não deixariam de vir buscá-lo. Ele não seria esquecido. Mais cedo ou mais tarde o seu 140
nome se faria claro e legível entre garranchos e ca rimbos, nódoas de tinta e rasuras nascidas de propi nas e surdos conciliábulos. Agora, ele atravessava a porta do edifício que, de fachada fuliginosa, aparecera, certa vez, num de seus sonhos — um sonho entre musical e lúgubre, em que ele ia à praia com outros meninos do orfanato, acha va na areia uma pequena concha branca e rósea que crescia desmedidamente em suas mãos, e depois todos entravam numa jaula cuja chave se perdia. A sala de espera estava cheia de criaturas expectantes. Umas tinham o olhar espantadiço dos que temem algo como uma afronta ou uma violência. Outras mal podiam manter-se em pé, ou se derreavam nos bancos, estrovinhadas, pestanejando em luta contra o sono. Eram pobres gentes cansadas de esperar, ha bituadas às queixas e pedimentos — como seu pai nas delegacias que davam passagens gratuitas aos flagelados fla gelados,, ou nas sal as de esper es per a das re part pa rt iç ões õe s onde se podia obter, à custa de muita insistência, uma carta de recomendação que logo amarelecia nos bol sos. Mas ele não se deteve para ver essas pessoas an siosas ou perseguidas, ou talvez já previamente con denadas. Tudo o que lhe ficou na retina foi uma imagem de relance, em que rostos e braços e roupas se amontoavam numa semi-escuridão, pois atraves sou várias portas e compartimentos de tabique e foi levado para um lugar que deveria corresponder aos fundos do edifício. E algumas grades lhe lembraram as jaulas do circo visto na infância (ou num sonho de sua meninice, quando estava no orfanato). Numa dessas jaulas reais ou imaginárias um leão velho e fedorento, importunado pelas moscas, lançava sobre os visitantes, mesmo que estes fossem crianças órfãs, um fastiento olhar de nojo, como se na espécie hu mana houvesse algo de repelente que o fazia odiar 141
um mundo de há muito convertido numa nebulosa de letargia e vômito. Foi deixado numa sala iluminada por uma luz baixa, coberta por um abajur verde. Na parede, um retrato de Getúlio Vargas. A princípio, presumiu que a sala estivesse deserta. Mas, como alguém que se levanta de debaixo de uma mesa, decerto após ter apanhado um requerimento caído, um vulto ganhou forma e consistência na cadeira aparentemente vazia, tornou-s tor nou-see pres pr esen ente te no suor que l he esc escorr orria ia pelo co co larinho, na respiração de cardíaco, na pena que arranhava o papel. — Seu nome? Ele era um bunda-suja, não tinha nome. Ou o perdera, num dos passeios dos meninos do orfanato, ou no caminho do cemitério, quando fora assistir ao sepultamento de Alexandre Viana. Ou o esquecera. Poderia alegar que suas cartas não tinham assina tura nem remetente: eram cartas anônimas. Sim, era um homem sem nome, um escorralho da vida, como os milhares ou milhões de criaturas que ocupavam as pequenas e grandes cidades, enchendo os bondes, os ônibus, os caminhões, os trens e os navios, ou rei vindicando algo difícil ou impossível de ser obtido, como uma passagem, uma carta de recomendação, um internamento num orfanato ou num hospital, ou uma ordem de soltura. — Meu nome é Ninguém — poderia dizer isto, se naquele instante lhe houvesse ocorrido que a sua falta ou ausência ou não-direito de nominação se engastaria numa frase que abolisse qualquer perfil humano. Mas como dizê-lo? O abajur que cobria a lâmpada não era mais verde. Tornara-se vermelho, intrigando-o, chocando-o, já que as mudanças do mundo não correspondiam a mágicas ou milagres. Com que voz dizer o seu não-nome? Sabia que, se 142
abrisse a boca, nada seria articulado. E assim como não tinha nome, também não tinha voz, nem letra ou sinal para torná-lo presente ou aceitável na ordem do mundo. Na verdade, havia milênios que sua boca estava lacrada. Numa aurora rupestre, quando o ca pricho dos deuses já decidira o seu anonimato, nas grutas de estalactite o seu silêncio pendia, num conúbio de matérias animais e vegetais, como uma gota cristalizada ou um morcego. Não disse nada. No fundo de uma consciência ainda comprimida pelo sono interrompido, sabia que, quaisquer que fossem as suas respostas, não merece riam fé, não ressoariam na mente do seu interlocutor, resvalariam como uma moeda que, de pedra em pe dra, termina encontrando o rumo do esgoto. Estava no reino das perguntas, e não das respostas. Mesmo que tivesse um nome, este não seria aceito, e sim repelido como uma falsidade ou um álibi, ou aceito condicionalmente, numa sucessão de entredúvidas, até que as investigações e sindicâncias o confirmas sem. Estava no reino das perguntas que já surgem com as respostas atadas ou coladas aos pontos de interrogação. Viu-se deixado sozinho, abandonado. Encontrouse, de novo, entre perguntas sem respostas. Alguém suspendera o fio da lâmpada que passou a iluminar do alto, escondendo o rosto do homem que o inquiria. O abajur, agora, era amarelo, da mesma cor da lâm pada, mas essa transformação não mais o perturba va. Habituara-se às metamorfoses — e estas, muda das em rotina, poderiam até passar despercebidas. — Por que não visitou o túmulo de sua mãe? Apesar de nenhuma palavra lhe ter saído da boca, o escrivão pachorrudo escrevia a sua resposta, numa operação caligráfica que demandou horas ou talvez mesmo dias, pois, enquanto estava arranhando o pa143
pel com a sua pena, os sinos da catedral bateram várias vezes, inclusive em dobre de finados, o portão do cemité cemi téri rio o rangeu, rang eu, navios api ap i ta r am longe, ba curaus voaram raso, e o compartimento em que se achavam — e que ora se alargava e ora se reduzia, de acordo com as conveniências burocráticas — co nheceu a luz e a escuridão alternadas. — E a cama do imperador Dom Pedro II? E o escrivão rascanhava o papel. Saibam quantos esta virem que, no ano de 1859, a província das Alagoas foi visitada por Sua Majes tade o Senhor Dom Pedro II e a Sereníssima Senhora Dona Teresa Cristina. Primeiro, o imperador esteve na cidade de Penedo, dali seguindo para conhecer a Cachoeira de Paulo Afonso. Embarcou, depois, para a Bahia, a fim de encontrar-se com a imperatriz. E, exatamente no último dia daquele Ano de Cristo, o imperador e sua prezadíssima consorte aportaram a Maceió. Após o desembarque, foram à matriz de Nossa Senhora dos Prazeres, e ali assistiram ao sole níssimo Te Deum em ação de graças pela feliz viagem que haviam feito. Agradecido o Altíssimo, Dom Pe dro II e Dona Teresa Cristina rumaram para o paço imper imp eria iall (que (q ue o tempo, a Repú Re públ bl i ca e os morcego morc egoss e lacraias haveriam de transformar no apodrecido Palácio Velho). Uma comissão ad hoc, nomeada pelo Dr. Manoel Pinto de Souza Dantas, presidente da província, havia ornamentado o palácio, para que os visitantes reais se sentissem como no paço de São Cristóvão. A cama destinada ao casal imperial era vasta, solene e nupcial, e conciliava, na madeira de lei trabalhada a capricho por artesãos experientes e na maciez de seu colchão de pena de pato, a grandeza do Império que se estendia, como um continente, do Amazonas ao Prata, e os sigilos da intimidade con ju j u g a l . D u r a n t e os onze on ze dias di as p a s s a d o s na p r o vín ví n c i a , o
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imperador visitou a cidade velha de Alagoas, as vilas do Pi Pila la r ( j á famosa pela excel exc el ênc ia dos dos seus bagr ba gres es)) e Santa Luzia do Norte, a fábrica de tecidos que era um testemunho do vertiginoso desenvolvimento eco nômico da região, as vilas de Porto de Pedras e Porto Calvo e a ex-colônia militar Leopoldina. Um grande baile que, como uma jóia, ficou para sempre crave jad j ado o na m e m ó r i a de nos no s s os a voe vo e ngos ng os,, foi ofer of erec ecii do ao casal imperial. Cavalheiros de casacas e fardas des lumbrantes e damas que se moviam, lépidas e encan tadoras, em seus vestidos de seda e cetim, encheram o palacete da Assembléia Legislativa Provincial, na véspera da partida do imperador, o qual não escondia o seu entusiasmo pelo progresso de Alagoas e as bele zas da paisagem, outrora canibalesca, e estava até mesmo pensando em fazer um soneto sobre as praias de Maceió ou as lagoas cercadas de coqueirais. E Suas Majestades gostaram tanto do baile e da aco lhida fidalga, e da lhaneza e valimento do povo — e dos quitutes e bolos e doces nativos que mantinham a sua categoria mesmo diante dos vinhos preclaros de Portugal e de França — que, ao voltar para a Capital do Império, Dom Pedro II agraciou vários cavalheiros alagoanos. O dono do edifício transfor mado em paço imperial recebeu, em troca da hospe dagem magnificente, o título de barão de Jaraguá, enquanto, dos seus três cumpinchas, um saía comen dador da Ordem de Cristo e os dois outros alcança vam o status de oficiais da Imperial Ordem da Rosa. Os responsáveis pelo êxito do baile — valsou-se até o amanhecer, e um diplomata da comitiva imperial comparou Maceió a Versalhes! — foram também dis tinguidos pela generosidade do monarca. Os dois ba rões, o de Atalaia e o de Jequié, receberam o título de barão com grandeza. O juiz de Direito da Capital, o comandante superior e o capitão do porto (este um 145
capitão-de-marcapit ão-de-mar- e-guerra e-guer ra refo r efo rmado ) virar am come n dadores da Imperial Ordem da Rosa, enquanto o ins petor da tesouraria geral, o inspetor da tesouraria provincial e o inspetor da saúde pública eram nomea dos oficiais da mesma ordem. Ao juiz municipal da Capital e ao juiz de órfãos, conferiu Sua Majestade o hábito da Ordem Imperial da Rosa. E o inspetor da instrução pública e um cavalheiro chamado Raposo ganharam o hábito da Ordem da Cristo. Após a par tida de Suas Majestades, o barão de Jaraguá trancou a sete chaves os aposentos em que o régio casal se hospedara. Todos sabem que Dom Pedro II, no to cante a fidelidade conjugal, não era flor que se chei rasse, e tinha a quem puxar. Além do mais, ao tempo de sua afortunada viagem à província das Alagoas, já j á o r ç a v a p e l os deze de zess ssei eiss a n o s q u e el elee c o n v o l a r a n ú p cias com a sereníssima Teresa Cristina. Mas, fri sando ele, então, pelos 34 anos, e encontrando-se em toda a sua força de homem (e tendo mesmo ingerido, naqueles dias ditosos, alguns alimentos de irrefutá vel teor afrodisíaco, tais como sururu, siri e cama rão), não era de desprezar-se a hipótese de que, em sua permanência em Maceió, e dormindo em cama tão esponsalícia, tivesse cumprido os seus sacratíssimos deveres de esposo — tão descurados ou mal cumpri dos na Capital do Império! Não faleciam, pois, moti vos para que aquela cama de jacarandá maciço — amorosamente feita por marceneiros que, sob a sábia orientação do barão de Jaraguá, procuraram imitar ou recriar o estilo Dom João IV — fosse posta a salvo de curiosidades inidôneas ou indecorosas, ou de frases de tenções dobradas, juntamente com a cômoda, o armário e o espelho que eram também verdadeiras obras d'arte e quintessências do rococó alagoano. Os tempos se passaram; e os anos se esconderam, desbotados, nos traslados das certidões dos cartórios, 146
nas lápides dos cemitérios e no latim macarrônico dos sacristães. Na noite fechada, os bacuraus continuaram assus tando os cavalos passarinhadores, nos caminhos atra vessados por aguardenteiros e almocreves. E as marés se levantaram e baixaram. Picumãs enegreceram paredes. Gaviões-carrapateiros voaram no ar seco. O fragor de um rifle de papo amarelo mudou-se em silêncio. Ao anoitecer, um homem caiu morto. E as cercas foram caminhando na terra, marcando novas divisas. Com o rodar dos dias, traça e cupim proliferaram nas arcas e guarda-roupas que cheiravam a alfazema e a retratos antigos e roeram as camisolas das noivas. Novas insígnias e tabuletas se cobriram de fer rugem. E o vento ventava. E a chuva chovia. E as trombas-d'água inundavam os vales, arrasa vam casas e roçados. E a esperança do homem fez-se, ao cabo de tudo, ilusão e desengano, treva e trastempo. O tiro de uma espingarda ressoou ao amanhecer. E o sangue de uma raposa manchou o chão do uni verso. Santos apareciam no sertão, prometendo a terra para todos. Mas a terra tinha dono. Havia os que punham demandas e, na beira das estradas, as cruzes, marcando o lugar das tocaias, substituíam os mar cos geodésicos. Na noite imaginária que, nos cinemas, se unia à noite real, os alagoanos viram as fitas de Carlitos, O Lírio Partido, de Griffith, Madame du Barry, de Lubitsch, Os Dez Mandamentos e O Rei dos Reis, de 147
Cecil B. de Mille, A Viúva Alegre, de Stroheim e Ale luia, de King Vidor; e os assassinos tinham os olhos marejados de lágrimas diante das pungências inven tadas. Os navios apitavam, na noite sustentada pelas constelações. E as almas dos marinheiros ingleses mortos de febre amarela buscavam, no caminho do vento, a bandeira perdida. E as tanajuras pousavam docemente nas ilhas visguentas. E as pistolas antigas, de carregar pela boca e pela culatra, foram sendo substituídas pelas moder nas pistolas automáticas. Os primeiros Fords avançaram, dançando desen gonçados nas estradas poeirentas, que eram antigas sendas de ferradura alargadas pelo progresso, esma gando galinhas com os seus pneus altos e airosos, e espantando cachorros e porcos. Um dia um avião da Aeropostale cruzou o céu de Alagoas, na conquista do Atlântico Sul — e à noite as suas luzes eram sonoras estrelas errantes entre constelações sedentárias. Depois, o Graf Zeppelin surgiu entre as nuvens, e os alagoanos, armados ou pacíficos, pressentiram que a vida era o fluir de um rio perene e nos anos despregados das folhinhas as mudanças do mundo se acumulavam. Os hidroaviões começaram a descer na lagoa Mundaú, sobrevoando os mangues e os navios podres. E de novo a lua engordava o mar obscuro, e a rotina da vida continuava gerando, entre gestos e palavras de sentido enganoso ou oblíquo, bolor e de sesperança, o tédio e a morte. Artesão, o Tempo tecia a sua própria toalha de renda de labirinto. E vieram as fitas de Tom Mix e Buck Jones. 148
E, de repente, as doces chuvas de caju caíam so bre os telhados e os quintais, enxotavam os urubus e lavavam as balduínas avariadas na estação da Great Western. E aumentavam o número de automóveis que pa ravam, arquejantes, nos postos da Texaco. Na Igreja do Rosário, os anjos bochechudos não ouviam os pecados dos homens escorrendo nos con fessionários nem o guincho dos morcegos colados na abóbada. No crepúsculo da noite, as putas, cheirando a jas mim, se debruçavam pelas janelas das pensões da Rua da Lama. Houve vento, lua e sol; e chuvas de manga; e gritos e palavras de amor; e, em dias de ira e vindita, o sangue correu nas ruas, enodoando os paralelepí pedos e as mãos dos homens. E carregadores de pia nos tornavam musicais as ruas marcadas pela morte. Eram pianos ingleses, marca Broadwood ou Studard, e vinham nos navios fedorentos que também traziam bacalhau da Terra Nova, cortes de casimira, vaselina e aparelhos de louça. E as moças tocavam os Cantos dos Bosques de Viena. E flores de maconha se abriram, inebriantes, em terrenos cercados. E as memórias infiéis forjavam os desenhos da vida. E se foram sucedendo os homens para matar e os homens para morrer. Em certas tardes, gente subia escadas para ouvir, no Tribunal do Júri, as arengas do promotor e do advogado de defesa — e, no banco dos réus, o assas sino tinha a sensação de achar-se num teatro, como se as metáforas, togas e perdigotos houvessem alçado o seu caso pessoal a um nível nobre e polêmico, acima de sua existência suja e automática. 149
Luz branca. Eclipse. Luz encarnada. O farol ilu minava a noite cega e migratória. As suas luzes in candescentes varavam o oceano, tingiam o céu e o cume das ondas, alcançavam os navios, mas não lo gravam atravessar as janelas fechadas e os ferrolhos que escondiam as aranhas e as lacraias, os morcegos e os sonhos e segredos dos homens presos às suas ca mas como corujas engastadas em cornijas e muda dos em muros de pedra. Azuis e encarnadas, as bandeiras do semáforo er guido junto à casa do faroleiro, no alto da colina, anunciavam os navios, como antigamente, os canhões de carregar pela boca proclamavam, no ar ofuscante e dilacerado pelo vôo das gaivotas, a chegada dos vapores que, emissários do universo, traziam as sedas e perfumes da Europa, as novas leis do Império e as notícias da guerra do Paraguai. E, enquanto a torre troncônica do farol, em sua brancura de mandioca, guardava a porta do maroceano lavada pelas ondas palpitantes, Maceió dor mia o seu sono de carvão, abaixo ou acima, aquém ou além dos sóis inumeráveis e do assoprar do vento, dos estaleiros avariados e dos rios cabedais, dos fogosde-santelmo pousados como grandes mariposas tatalantes sobre os mastros dos navios e dos telhados cor de estrume, das casas de farinha e dos currais de peixe, dos cantos dos galos surpreendidos pelas au roras aborrecidas e das ilhetas negras das lagoas. Numa Sexta-Feira Santa, um alagoano ateu, para ganhar uma aposta feita numa buchada, e destinada a provar a inexistência de Deus, pôs um cigarro aceso entre os dedos da imagem de Nosso Senhor Morto exposta na catedral. Ficou troncho naquela mesma noite com uma congestão cerebral e viu no seu cas tigo a evidência de que Deus existia e Jesus Cristo fora crucificado para salvar toda a humanidade. E 150
quando ele passava nas procissões, numa opa negra como os seus pecados já perdoados por todos os sé culos seculorum, simbolizava, mais do que os santos nos andores, a misericórdia divina. Em Maceió, só Deus perdoa. Mas antes dos carros e dos galões de Gargoyle, de Lilian Gish movendo-se morosa e angelical na tela do Capitólio, e dos anúncios de Salutaris e Fratelli Vita, e do barulho das bolas e tacos no Bilhar do Comércio, quis o destino que um alagoano da mais pura cepa, o ínclito marechal Deodoro da Fonseca, que Deus haja, levantasse a sua espada contra o imperador e derrubasse o Império — o que, talvez, levou Dom Pedro II a rever, em sua velhice soneteira e amargurada de rei no exílio, o seu conceito sobre a fidalguia do homem alagoano. Outro alagoano, o briosíssimo marech mar echal al Flo ri ano Peixoto (pat riota ri ota fer voroso, que um dia esteve decidido a receber os in gleses à bala), sucedeu a Deodoro Deod oro da Fons Fo ns ec eca, a, le leva van n do este, decerto, a rever o seu conceito sobre os con terrâneos. Depois desse alvorejar republicano que ainda hoje enche de orgulho as crianças dos grupos escolares, e os seixeiros e estroinas de marca maior que passam as tardes nos bordéis, conversando amenidades e be bendo cerveja, nenhum alagoano conseguiu ascender à Presidência da República, embora um de seus filhos mais ilustres, o general Pedro Aurélio de Góis Mon teiro (que (q ue ajudou a derru der rubar bar a Repúbl Repú blic icaa Vel Velha, ha, e decerto ajudará, no momento azado, a destruir o Es tado Novo, de que foi um dos hábeis construtores), tenha todas as peregrinas qualidades de estadista para governar este grande País. E, no turbilhão do tempo, o palácio onde dormiu o casal imperial foi perdendo a sua esplendidez e, de cupim em cupim e de morcego em morcego, acabou 151
reduzido a uma enorme ruína, com os cômodos cheios de goteiras e de escuridões mofentas onde se refugia vam os maconheiros, as portas guenzas, as escadas rangentes e de degraus esborralhados, e transitado pela escória da cidade, não obstante alguns escritó rios de representações e oficinas de conserto de rádio aqui e ali, e uns quartos ocupados por estudantes e caixeiros. E a c a m a em que os mona mo na r c a s dormi dor mira ram m (e a ma ram?) terminou sumindo. Para uns, descendentes do Barão de Jaraguá, ou meros e apagados parentes colaterais — que formavam, na verdade, uma pobretalha atada aos pequenos empregos de guichê e bal cão, ou aplicando injeções de casa em casa; sendo que as mulheres viviam costurando para fora ou exer cendo ofícios como os de parteiras ou doceiras peritas em sequilhos, broas, doce chileno e rocambole — venderam a tal cama, a preço de banana, a um anti quário ou belchior do Recife, o qual fez um negócio da China, revendendo-a, meses depois, a um conde papalino de São Paulo, numa operação que incluiu, ainda, peças de um aparelho da Companhia das Ín dias, uma espingarda clavina e um urinol. Para outros, a cama perecera num incêndio, após haver passado alguns anos na alcova do Palácio dos Martí rios, requisitada pelo governo após a proclamação da República, talvez na mesma semana em que, num vapor paradoxalmente chamado de Alagoas, o impe rador banido singrava as costas alagoanas, em direi tura às formosas terras de França. E como verdade e mentira são, no fundo, farinha do mesmo saco, e a vida é baralha ou estrovenga, houve quem tivesse visto a cama nos lugares mais diversos: num puteiro, numa biboca, no Museu Im perial de Petrópolis, num leilão havido no Rio. Alguns asseguravam que a cama, andados os anos, fora parar 152
no palacete do banqueiro Hortêncio, que dormia nela. Engano ledo e cego: tratava-se de uma réplica, man dada fazer por Hortêncio, que se louvara em indica ções do presidente do Instituto Histórico de Alagoas, especialmente no tocante aos pés torneados. A cama verdadeira sumira. — E a cama do imperador Dom Pedro II? Quando ele, terminado o curso de contabilidade, arranjara aquele emprego em Jaraguá (aprendera, em poucos meses, todos os segredos do comércio de importações e exportações), e fora morar no Palácio Velho, não vira cama nenhuma. Alugara um quarto vazio, e o mobiliara com uma cama patente, com prada a prestação, um armário, uma mesa e uma cadeira. Perguntar-lhe onde estava a cama de Dom Pedro II era o mesmo que inquiri-lo sobre o para deiro de seu pai. Jamais os vira, nem soubera parte de um ou de outra. — Onde está o seu pai? Como explicar que jamais o conhecera? Em criança, era apontado como filho de uma rapariga. Ou filho da puta, para ser exato. Seu pai fora apenas um instante entre lençóis encardidos. E, estradeiro, sumira-se além da noite e dos navios, dos becos e ladeiras; atravessara ilhas onde moravam comedores de barro e roçados cultivados pelos comedores de ta najura; desaparecera atrás dos cajueiros e plantações de maconha, das dunas e vagas, dos trapiches salitro sos sobrevoados por gaivotas enrouquecidas e das lo cas de goiamuns. Era uma criatura sem nome, um vindiço habituado a fugir das espeluncas a unha de cavalo e a pedinchar passagens gratuitas para as suas viagens de trem e de navio rumo a um deus-me-livre qualquer, sempre longe de vista e fala. E decerto fora também, um dia, no crepúsculo da madrugada, arrancado de seu sono culpado e conduzido para uma 153
sala onde o crivaram de perguntas sem respostas e o ultrajaram. — Reconhece esta letra? Como reconhecê-la, se a rigor não era letra de sua mão, mas um disfarce, uma reprodução quase sem pre canhestra das letras de imprensa que lhe prote giam o anonimato? Era como se, no carnaval, usasse uma máscara. Agora estava sozinho, num comparti mento estreito e abafadiço como um mictório. Entonteceu-o um cheiro de peixe podre. O mar havia apodrecido. Uma pia gotejava. Ou era a descarga de uma latrina avariada. Ou o ronco de um navio ga nhando força no bramido das águas. Ou uma balduína da Great Western, bufando com sede no pátio das manobras. A noite paria palavras. Ou era o uivo de uma raposa, livre e bela e ao abrigo da morte? — Fale. Pia navio latrina raposa. As palavras inchavam, tinham uma pele que se franzia. — Puta que o pariu. A pia a puta. A noite paria gaivotas. As palavras cheiravam a maresia, sumiam na escuridão como ilhas bebidas pela noite lacustre. — Fale, seu filho da puta. Na água negra e triunfante do mar que bebia as constelações, os navios avançavam, pesados como se só transportassem a morte. Pássaros grasnavam — ou eram gritos de homens em celas que haviam abo lido as horas claras do dia. — Fale, seu cachorro da moléstia. Mijou. E a mijada, negra, foi escorrendo pela cela, atravessou o corredor, atingiu os muros do Palácio dos Martírios, estendeu-se, rumorosa e interminável, até o oceano. 154
De repente, o barulho de motocicletas postas a funcionar ocupou o silêncio. Ele sentia que, agora, poderia falar. Murmurou algumas palavras: M a c e i ó , cemitér cemitério io,, nob obre re cont co nter errâ rânneo eo,, al f â ndeg a, meu pai,i, pa virtuosa consorte. Cada uma das palavras era clara, inconfundível, uma sonoridade na qual se entranha vam uma coisa ou uma paisagem. O rumor das moto cicletas crescia cada vez mais. Vossa Reverendíssima? Vossa Excelência? Senhor Bispo? Mesmo que gritasse até ficar rouco, ninguém o ouviria. Muralhas er guiam-se para isolá-lo do mundo. Então dormiu, as pálpebras ora pesadas, ora leves e sensíveis ao rangi do de uma mesa na noite calorenta ou aos gritos que dilaceravam o silêncio. Sonho Son hou: u: os garotos do i nt er nato na to culpava cul pavam-no m-no de ter perdido a chave da jaula. Voltou a ficar acordado, com os olhos ardidos, e uma dor apontando no estô mago. Não se lembrava de ter comido. Talvez sentisse fome. fome. Depois Depoi s recordou-se recordou- se de que, moment mome ntos os ant an t es ( ou dias antes), no compartimento iluminado por uma luz ba i xa ( ou u ma luz a l t a ) se queix que ixar araa de fome. f ome. — Fale, seu corno. Sonhou de novo: caminhava pela praia, ao pé das águas. Todos os navios estavam pintados de branco. O próprio mar era branco. Curvou-se à dor que lhe cavava o ventre — uma dor que não merecia, por maior que fosse a sua baixeza. O sangue lhe escorria pela boca que, aberta, não conseguia mais gritar, e pelas narinas arfantes. E ao líquido grosso se juntava a água fina das lágrimas. Sem palavras, pensou: Meu Deus. Mas era menos um apelo ou um pedido de socorro que uma interjeição estarrecida. Onde ele estava não havia Deus — era a jaula fedorenta dos homens. Dormiu. Sonhou que estava acordado. Ouviu os passos cautelosos de sua mãe aproximando-se de sua 155
cama, sentiu de novo nas narinas aquele cheiro ao mesmo tempo querido e detestado, estremeceu quan do a mão um pouco trêmula puxou o lençol de bra mante. Mas, desta vez, sua mãe não trouxera nenhu ma lamparina. A luz que iluminava o quarto vinha dos navios fundeados. E, depois, seu pai fugia a sete pés, sumia na escureza da noite. Mais uma vez sonhou que dormia. Sonhou que estava acordado. Sonhou que dormia. Desadormeceu. Escutou o fluir de um rio sem águas, e o avançar de navios que desafiavam a treva. Num desses navios que sulcavam águas coaguladas, ia Guabiraba. Acos sado pelos credores, estava fugindo de Maceió. E, apesar da distância e da noite cerrada, podia vê-lo, imóvel no tombadilho, a pestanejar. Todo vestido de branco, iria correr ceca e meca, perder-se nas encru zas do mundo. — Se quer comer, tem que dizer o nome, seu puto. Explicaram-lhe (mas quem?) que nas requisi ções de comida, deveriam figurar, obrigatoriamente, os nomes dos beneficiários. Rigorosos mecanismos de controle eram acionados, para evitar que os alimen tos fossem desviados por funcionários relapsos e cor ruptos. Os papéis, protocolados, tramitavam por várias seções, recebendo pareceres e carimbos, susci tando inspeções e sindicâncias. Além disso, nenhuma despesa poderia ultrapassar a verba correspondente. Em muitos casos o processo demorava semanas, anos, talvez séculos, até ser despachado. As autoridades superiores lutavam contra a estrutura arcaica da administração, queriam dar-lhe clareza e velocidade, mas os escrivães não paravam de arranhar, com as suas penas, papéis que o vento e a poeira iam ama relecendo. E, sem nome, voltara ao cubículo — não tinha voz ou identidade para requerer o almoço, ou o jan156
tar, ou o café que gostava de tomar com pão crioulo e muito açúcar. Ouvia os apitos dos navios que não voltariam nunca mais, sumidos nas geleiras brancas do inferno. Ouvia os motores das motocicletas. Quis deitar-se, mas não havia cama — mesmo porque o espaço, igual ao de um mictório, não o comportava. Sentou-se no chão de cimento, abraçando as pernas dormentes. As dores no estômago aumentavam. Não era mais fome o que se sent nt ia ia;; era er a algo se mel hant ha nt e, mas disti dis tinto nto — assim como o lugar em que estava se assemelhava a uma latrina, apesar de não existir, ali, nenhum vaso sanitário. Suas pálpebras pesavam. Quando fechava os olhos, e o sono começava a dissolvê-lo em nada, a claridade de milhões de sóis embutidos em abaju res de cores mutáveis o obrigava a manter-se acor dado, sob um teto ou firmamento dilacerado pelos raios e relâmpagos. O sono era uma evasão, uma fuga como a de seu pai ao deixar uma espelunca sem saldar a conta. Era preciso que ele continuasse des perto; pert o; des per to e sem nome, nome , despert desp erto o e com co m fome, desperto e sem poder responder às perguntas que go tejavam como a água da pia quebrada. Suas mãos pesavam como se, juntas, segurassem a concha rósea e branca que, menino de orfanato, achara na praia. Seus olhos deixaram de ver, toldados por uma es curidão crivada de relâmpagos. Caiu, enquanto a dor que lhe revolvia o ventre ia descendo para as virilhas. O chão de cimento era frio, como o vento ou a morte. Suas pálpebras pesavam cada vez mais — um peso de lágrimas ou de sangue que se grudava aos cílios. Viu-se seguro por mãos fortes e invisíveis, que tenta vam pô-lo em pé, mas seus joelhos não obedeciam, vergavam-se sempre. Um zumbido lhe encheu os ou vidos. Na tonteira vertiginosa, misturavam-se gritos e bufos de motocicletas. A dor subia para os pulmões, 157
e as narinas entupidas se dilataram, em busca de ar. Algo, nele, inchava como um balão. Vomitou o líqui do quente e espesso que lhe enchera a boca. Quis falar. As palavras não se levantavam da língua pesa da. Encolheu a barriga mais uma vez alcançada pela dor, levou ambas as mãos ao estômago. Meu Deus. Ele estava além da esperança e da piedade, onde ter minava a solidão. Nesse território negro e frio sua boca se movia inutilmente: os grunhidos jamais se apoderariam das palavras espatifadas. A mão direita inchava. Numa luz feita de trevas, seu espanto cres cia. Com aquela mão agora paralisada atravessara o silêncio e a solidão. Escrevera cartas. Sua mulher está traindo o insigne conterrâneo. Uma pessoa ami ga. ga. E, estirado na cama, os olhos fechados, a mente procurando recobrar a imagem de uma cabrocha de olhos verdes, cost co stumav umavaa esvair-s esvai r-see em vert igem ige m e êxtase graças àquela mão que soubera abrir-lhe, no escuro, o caminho do amor. Um fedor de bosta en trou-lhe pelas narinas já desentupidas — um cheiro de jaula, de leão fedorento afugentando moscas, um bafejo de focinho latrinário. Com os olhos duros e ensangüentados, tentou enxergar vultos que se apro ximavam, talvez para pô-lo de pé ou sentado, ou então estendê-lo no chão de cimento, já que não con seguia mais saber como estava, e sua posição variava de inst in st ante an te a insta ins tant nte, e, na esc escuri uridão dão vertigi vertiginosa. nosa. O vento entrava pelas frinchas das janelas, escancarava portas esborceladas. Ou não era o vento, e, sim, o urro intermitente de animais enjaulados, e que se prometiam vingar mesmo além do nada e da morte. Pelas suas pernas dilatadas pelo torpor, subia um formigamento. O vento. As formigas. O barulho da água caindo naquela bacia. As formigas se transfor mavam em letras de imprensa, formavam palavras Exm o. Sr. Presidente Presidente Getúmultiplicadas em frases. Exmo. 158
lio de
Vargas. Palácio do Catete. Abusando da confiança V. E x a . , o Sr. Intervento Interventorr Feder Federal al no Estad Estadoo de A l a g o a s . . . A dor que vinha de suas virilhas obrigou-o a agachar-se. E as palavras se foram dissolvendo, tor naram a ser minúsculas formigas pretas no chão de cimento. Tiritou de frio, encerrado na noite branca que o congelava. Seus dentes bateram. Com as pernas amortecidas, era como se estivesse amputado. Uma baba ferruginosa escorria de sua boca. Depois, envol veu-o um calor sufocante. Num intervalo entre a claridade e a escuridão, sentiu-se de cabeça para baixo. Talvez fosse a fome, ou algo que, além da fome, lhe esfolava as entranhas. Ele estava suspenso no teto, como uma luminária. Grades cobertas de ferrugem dilatavam-se nas trevas, e os morcegos que sugavam o tempo gelatinoso pen diam dos forros carcomidos como lâmpadas avaria das. E debaixo de todas as camas havia lacraias. Maceió era um grande cemitério. O mundo rodopiava. O mundo era um pião rodando numa calçada. Talvez fosse a sede. Ouviu ondas. E navios. Pisou uma praia ju j u n c a d a de c o n c h a s . E mba mb a l o u - o a mod mo d u l a ç ã o d o m a r abissal. E, num muro, uma mão anônima como a sua escrevia a carvão Abaixo o Estado Novo. De repente, o barulho das motocicletas foi dimi nuindo, até mudar-se num rumor de chave em fecha dura, ou de uma porta que estava sendo fechada.
Inexplicavelmente voltara ao seu quarto no Pa lácio Velho, sem que fosse necessário atravessar a rua cheia de sol, embora fosse noite, e subir todo aquele escadório. Alguém estava batendo à porta? Seria seu pai? Ou um marinheiro norte-americano? Na escuridão, deixava-se render à evidência de que, do outro lado da porta, havia alguém decidido a en159
trar em seu quarto. O medo apoderou-se dele. Não queria gritar nem interpelar o visitante misterioso. Tudo o que desejava era que o barulho na porta per tencesse à substância já inaudível e intocável do pesadelo dissipado. Coberto de suor, encolheu-se na cama. As pernas tremiam-lhe. Tinha vontade de urinar. Eminente conterrâneo... Alexandre Viana não se suicidou. suicidou . Morte. Morte. A Polícia Polícia
Foi sabe sabe
assassinad assassinadoo pelo pel o mas nã não.. o....
Sindicato Sindicat o
da
Então a porta se abriu. Fechou os olhos — mesmo que quisesse gritar, agora, as palavras não saíam mais de sua boca. Por um tempo infinitesimal, enquanto escutava uma respiração que enchia o seu quarto, deixou de ser um homem. O seu insensato amor à vida transformou-o num bicho, talvez numa raposa. Animal acuado e inocente, ele se tornava visível, na aurora nascente. E era o dia do caçador que emergia das trevas. Entre o pânico e a dor que fulgurava em suas entranhas e o fazia esvair-se e mais uma vez sentir-se de cabeça para baixo, entre a luz gelada e o nevoeiro, o silêncio e o estertor, ele se foi afastando vertiginosamente de si mesmo, e a própria dor calcinante se distanciava, levando-o com ela ou deixando-o abandonado na escuridão absoluta.
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Com Com uma obr obraa v a s t a , e já plename plenamente nte de defin finid idaa e consolidada, consolidada, Lêdo Ivo pode ser considerado considerado uma um a das figuras figu ras de maior destaqu destaquee na moderna moderna literatura brasileira, com ênfase especial no campo da poesia. Nascido Nascido em Maceió, Alagoas, Alagoas, a 18 de fevereiro fevereiro de 1924, fez sua formação intelectual no Recife, pó pólo lo clássic cl ássicoo de atração do Nordeste. Nordeste. Veio para o Rio de Janeiro Janeiro em 1943, onde on de continuou a atividade atividade jorna jorna lística líst ica iniciada na província, proví ncia, e à qual qu al ainda hoje continua fiel como um do doss expoentes expoentes da profissão. Estreou em 1944, aos vinte anos, anos, ainda estudante da Facul Fac uldade dade de Direito Direit o da Universidade Universidade do Brasil, com o livro As Imaginações. Seu nome projetava-se do anonimato para uma estréia cheia de rumor e de afirmação. Acolhido pela crítica com entusiasmo realm realmente ente incomum — Mu Murilo rilo Mendes, Mendes, Afonso Afonso Ari nos, Adonias Filho, Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Roger Bastide, Bastide, Sérgio Sérg io Milliet Mill iet e Má Mário rio de Andrad Andrade, e, este últim o connside co iderando-o uma " e s t r é i a deslum brante" brante" — Lêdo Ivo Iv o consolidou a posição posiç ão de relevo já conquistada com um segundo livro — Ode e Ele gia — editado editado em 1945. Mais uma um a vez, e agora pela voz de Álvaro Lins, Wilson Martins e Antônio Cân dido, o jovem poeta via reconhecida sua posição. Wilson Martins, por exemplo, escrevia que, "ao lado da capacidade capacidade emocional, emocional, o Sr. Lêdo Ivo possui como poucos pouc os em nossa no ssa literatura contemporânea a facili dade de reunir estranhamente estranhamente suas palavras, desper tando efeitos novos, revelando belezas desconhecidas, enriquecendo a capacidade de expressão da língua. Um Poeta, enfim". E Antônio Cândido destacava "a 161
ten tensão ininter terrupta da i n s p i r a ç ã o ; a energia gia admirá mirá vel com que o jovem poeta sustém os versos, arras tando dominadoramente a emoção emoç ão do leitor". Mas a atividade criadora do poeta, abundante e impetuosa, fez com qu quee sua obra, obra, já durante sua juventude, ju ventude, atingisse uma dimensão que outros só alcançam na maturida maturidade de.. E os t í t u l o s viera vieram m em sucess sucessão ão estimu estimu lante, numa cadeia de que o último elo é Finisterra (Prêmio Luísa Cláudio Cláu dio de Sousa, 1973, do Pen Clube do Brasil, Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e Prêmio de Poesia Poesia da Funda Fu ndaçã çãoo Cultural Cultu ral do Distrito Federal): Acontecimento do Soneto, Ode ao Crepúsculo, Ode à Noite, Cântico, Um Brasileiro em Paris e o Rei da Europa, Linguagem, Magias, Es tação Central, além de uma Lira dos Vinte Anos ( r e u n i ã o do dos pri primei meiros l iv ro s) , uma uma Antologia Poéti ca e 50 Poemas Escolhidos pelo Autor, este, editado pelo Ministério Ministério da Educação Educaçã o e Cultura. Cult ura. Toda essa essa in tensa atividade, no entanto, não ficou fic ou limitada lim itada à poesia. poesia. Lêdo Ivo é também ficcion ficc ionista ista e ensaísta, ensaísta, ten do publicado pu blicado os romances As Alianças (Prêmio Graça Ara Aranha nha de 1947), O Cami Ca minh nho o se m Aventu Aven tura ra e a novela O Sobrinho do General, e dois volumes de contos, Use a Passagem Subterrânea e O Flautim. Cronista em A Cidade e os Dias, que lhe valeu o título de Cida dão Carioca, Carioca, Lêdo Ivo Iv o escreveu ainda uma um a série de ensaios importantes — Lição de Mário de Andrade, O Pret Pr et o no B r a nc o, Para Pa raís ísos os de Papel, Ladrã Lad rão o de Flor, O Universo Poético de Raul Pompéia, Poesia Observada e o recente Modernismo e Modernidade, que completam e definem a personalidade literária do autor, inclusive pela modernidade e agudeza críti ca de que se revestem, características muito bem des tacadas, entre outros, por Alceu Amoroso Lima, Álva ro Lins e Agrippino Agrip pino Grieco. Como tradutor, tradut or, Lêdo Ivo Iv o verteu para nossa língua Uma Temporada no Inferno 162
e I l u m i n a ç õ e s , de Rimbaud. O Adolescente, de Dos toiévski, toiévsk i, estes dois depois de uma um a estada de dois anos em Paris. Paris. Sua poesia, poesia, aliás, também já ultrapas ult rapassou sou as fronteiras do Brasil, encontrando-se encontrando-se traduzida para o francês, francês, inglês, alemão, espanho espanholl e italiano. italiano. Lêdo Ivo é casado casado com uma um a mineira mineira de Montes Cla ros, Lêda, e tem três filhos: Patrícia, Maria da Graça (ambas (am bas já casadas) e Gonçalo. Gonçalo. Com Ninho de Cobras, Lêdo Ivo conquistou o pri meiro lugar lu gar no V Prêmio Walmap de Literatura Literatu ra de
1973.
Sua obra mais recente, Confissões de um Poeta, é um livro de memórias em que narra a sua expe riência humana e estética.
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OBRAS DE LÊDO IVO
As Imag Imagin inaç ações ões Ode e Elegia
(poesia), Pongetti, Rio, 1944. (poesia), Pongetti, Rio, 1945; 3ª edição, Orfeu,
Rio, 1967. As Alian Aliança ças s
(romance), Livraria Agir Editora, Rio, 1947.
Acon Acontec tecim imen ento to do Sone Soneto to
(poesia), O Livro Inconsútil, Barcelo
na, 1948. Ode ao Crepúsculo
(poesia), Pongetti, Rio, 1948.
(romance), Instituto Progresso Edito rial, São Paulo, 1948; 2ª edição, Edições O Cruzeiro, Rio, 1958. 0 Caminho sem Aventura
(poesia), (poesia) , Livrari Li vrariaa José Jos é Olym Olympio Editora, Edito ra, Rio, Rio, 1951; 2ª edição, Orfeu, Rio, 1969. 196 9. Cântico
(poesia), Livraria José Olympio Editora, Rio, 1951; 2.ª edição, Livros de Portugal, Rio, 1966.
Ling Lingua uagem gem
Ode Equatorial
(poesia), Edições Hipocampo, Niterói, 1951.
Acontecimento Acontecim ento do Soneto e Ode à Noite (poesia), Orfeu, Rio, 1951; 3.ª edição, Livros de Portugal, Rio, 1965.
Liçã Liç ã o de M ário ár io de Andrade (ensaio), Serviço de Documentação do Ministério de Educação e Saúde, Rio, 1952. O Preto no Branco
(ensaio), Livraria São José, Rio, 1955.
Um Brasileiro em Paris e O Rei da Europa (poesia), Livraria
José Olympio Editora, Rio, 1955; 2ª edição, Orfeu, Rio, 1968.
Uma Temporada no Inferno e Iluminações, de Jean-Arthur Rim(tradução), Editora Civilização Brasileira, Rio, 1957.
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Uma adm admiráv irável el cont contri ribui buiçã çãoo bra sileira à nova ficção na América Latina. DAVID WILLIAM FOSTER Um livro extraordinário. JOÃO CABRAL DE MELO NE TO Livro excepcional, que se isola em nossa bibliografia do gênero pela linguagem superiormente elaborada. ALMEIDA FISCHER Uma obra-prima do romance moderno em qualquer língua. ANTÔNIO NTÔNIO OLIN OLINTO TO Um ritmo de ação irresistível. HAROL AROLDO DO BRUNO BRUN O
Uma raposa percorre à noite uma ci dade aterrorizada, onde o Sindicato da Morte decide quem é culpado ou inoce in ocent nte. e. E como essa essa raposa, raposa, que que ter mina abatida pela polícia, o amor é um intruso na madrugada. Um homem, homem, que sabe demais, demais, também deve morrer. Mas qual vai ser a sua verdadeira morte? Torturado no xa drez de uma delegacia ou assassinado em seu quarto de observador solitário e rancoroso? Numa ditadura, todas as histórias são mal contadas. É o reino rein o da mentira: mentira: ninguém sabe sabe a verdad verdade, e, nem mesmo mesmo o ditador cujo retr retrato ato está está pen pen durado durado até nos prostíbul prostíbulos. os. Considerado uma obra-prima do ro mance moderno, Ninho de Cobras (Prêmio Naci Nacional onal Walmap) Walmap) foi sauda sauda do como como a maior maior contribui contribuição ção da lit lite e ratura brasileira à ficção de terror e violência violência da América Latina.