Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa COM pessoas com deficiência visual Organizadoras Marcia Moraes e Virgínia Kastrup Copyright 2010 by NAU Editora Esta obra foi digitalizada a fim de tornar acessível o seu conteúdo a pessoas com deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este arquivo não pode ser distribuído distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. Editoras: Angela Moss e Simone Rodrigues Revisão de texto: Érika Ferreira Projeto gráfico e editoração: Gabriela Saldanha Werneck Foto
e Capa: Laura Pozzana e Simone Simone Rodrigues
Fotografia de peça da coleção didática do projeto: “A Célula ao alcance da mão” (Museu de Ciências Morfológicas IBC/UFMG) Conselho Editorial: Alessandro Bandeira Duarte Cristina Monteiro de Castro Pereira Francisco Portugal Maria Cristina Louro Berbara Pedro Hussak Vladimir Menezes Vieira CIP-BRASIL. – CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ____________________________ ___________________________________________ _________________________ ________________ ______ E96 Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual / Marcia Moraes, Virgínia Kastrup, organizadoras. - Rio de Janeiro : Nau, 2010. 288 p. Acompanhado de CD em bolso Inclui bibliografia ISBN 978-85-85936-84-6 978-85-85936-84-6 1. Deficientes visuais - Psicologia. 2. Distúrbios da visão. 3. Sentidos e sensações. 4. Arte - Psicologia. 5. Integração social. I. Moraes, Marcia. II. Kastrup, Virgínia. III. Título: Arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual. visual. 10-4154. CDD: 152.14 CDU: 159.931 19.08.10 31.08.10 021158 ____________________________ ___________________________________________ _________________________ ______________________ ____________ NAU Editora Página 1
Rua Nova Jerusalém, 320 CEP: 21042-235 - Bonsucesso, RJ Tel: (21) 3546-2838
[email protected] www.naueditora.com.br www.naueditora.com.br 1ª edição - 2010 - 1000 exemplares exemplares
SUMÁRIO Prefácio Elcie Masini pag.4 Introdução Marcia Moraes e Virgínia Kastrup pag.7 SEÇÃO 1- CONSTRUINDO UM MÉTODO E UM PROBLEMA DE PESQUISA PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual Marcia Moraes pag.15 Atualizando virtualidades: construindo a articulação entre arte e deficiência visual Virgínia Kastrup pag.32 SEÇÃO 2 - MOVIMENTOS DO CORPO E DA CLÍNICA Oficina de Movimento e Expressão com deficientes visuais: uma aprendizagem coletiva Laura Pozzana pag.47 Composições do não ver: contando histórias Camila Araújo Alves, Carolina Cardoso Manso, Josselem Conti de Souza Oliveira, Julia Guimarães Neves, Liz Eliodoraz, Luciana de Oliveira Pires Franco, Thadeu Gonçalves, Vandré Vittorino, Marcia Moraes pag.61 Tateando, fabricando, explorando, implementando, parangoleando um dispositivo clínico Alexandra C. Tsallis, Bernardo Antônio. A. P. de Souza, Elisa Junger, Jessica David, Leonardo Reis Moreira, Renata Machado, Rodrigo Pires Madeira, Virgínia Menezes, Willy H. Rulff pag.74 A bengala como um instrumento lúdico na orientação e mobilidade do deficiente visual Vera Regina Pereira Ferraz e Lucia Maria Filgueiras pag.87 Página 2
SEÇÃO 3 - ACESSIBILIDADE EM MUSEUS Acesso à Arte e Cultura para pessoas com deficiência visual: direito e desejo Viviane Panelli Sarraf pag.97 Acesso tátil: uma introdução à questão da acessibilidade estética para o público deficiente visual nos museus Filipe Herkenhoff Carijó, Juliana de Moura Quaresma Magalhães, Maria Clara de Almeida pag.110 SEÇÃO 4 - LITERATURA E CEGUEIRA Do mítico ao mágico, da alegoria ao realismo: a literatura e suas metáforas sobre a cegueira Joana Belarmino pag.125 Literatura para quê? Maria Helena Falcão Vasconcellos pag.134 Literatura, devir-consciente devir-consciente e algumas considerações acerca do conto Em terra de cego de H. G. Wells Maria do Carmo Cabral pag.141 SEÇÃO 5 - POLÍTICA E CIDADANIA Deficiência e política: vidas subjugadas, narrativas narrativas insurgentes Bruno Sena Martins pag.150 Cidade Acessível: igualdade de direitos e particularidades particularidades da pessoa com deficiência visual Jéssica David, Ximene Martins Antunes, Veronica Torres Gurgel pag.166 SOBRE OS AUTORES pag.177
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PREFÁCIO Esta obra organizada por Márcia Moraes e Virgínia Kastrup oferece ao leitor um cenário que o torna protagonista de um mundo de inventividade, na trama de uma trajetória de sensibilidade e humanismo, ao desvelar modos diversos de percepção e de expressividade. Inventividade que põe em foco a questão da verdade, e não mais a da certeza, conforme esclarece a afirmação de Ricouer: "Há uma certeza imediata da consciência e esta certeza é inexpugnável. Mas se esta certeza é invencível enquanto certeza, é duvidosa enquanto verdade. Sabemos agora que a vida intencional, tomada em toda sua espessura, pode ter outros sentidos que este sentido imediato. A mais longínqua, a mais geral e a mais abstrata possibilidade do inconsciente, precisamos confessar, está inscrita nesta distância inicial entre a certeza e o saber verdadeiro da consciência."1 A ênfase na compreensão da verdade, no desvelar da autenticidade de cada sujeito, sem mistificação, sem encobrimentos, está imbricada na proposta deste livro. Mostra-se na busca de recuperar o sentido da experiência2, assinalando as implicações ideológicas dos embasamentos filosóficos que definem as interpretações científicas e as do senso comum, ou as de qualquer outro tipo de encobrimento do que ocorre na complexidade das situações de um mundo vivido. Evidencia-se no entendimento da cognição e da produção da subjetividade como uma via longa que requer um mútuo vir e ir entre o sujeito e o mundo e o desvelar da verdade ao longo de um caminhar em direção a um constante devir. O texto comove pelo entusiasmo e descobertas dos autores em suas dialéticas reflexões, nas muitas dimensões que abordam sobre experiências e pesquisas com pessoas com deficiências visuais, nos domínios da psicologia, das artes plásticas e literárias e das práticas corporais. As descrições sobre as oficinas de expressão e experimentação corporal e de literatura, entremeadas de discussões teóricas, propiciam em sua diversidade o enriquecimento de nuances e sensibilidades nos mútuos convívios com a alteridade; ilustram o dizer de Hölderlin – o poeta da filosofia existencial –, a voz poética de Heidegger: "Rico em méritos, é no entanto poeticamente que o homem habita esta terra." A narrativa sobre os Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual, seus objetivos no cenário em que se desenovela a proposta de ampliar o universo psicológico, artístico e social das pessoas com deficiência visual, é rica em méritos e poeticamente enternece. No aprofundamento da pesquisa engajada – situada e alicerçada no solo das vivências – os autores vão delineando dispositivos de intervenção de uma prática performativa que se faz com o outro, em parceria, na construção do conhecimento ao aprofundar especificidades do próprio perceber. Assinalam, nos textos que compõem o livro, especialmente, os diversos modos do Página 4
ver e do não ver e a afirmação da potência inventiva das variações dos modos de existir sem ver. O inesgotável desejo de compreender dos autores transparece em suas caminhadas entre diferentes perspectivas teóricas, mesclando filósofos, artistas, psicólogos e educadores. Diferencia-os progressivamente na especificidade de suas ideias, em contraposições dentre as quais cabe citar: a abordagem da enação de Varela em oposição à concepção de deficiência visual como falta ou déficit, articulada em torno da noção de norma; o modelo da autoprodução do sistema cognitivo e do coengendramento do sistema e do domínio cognitivo pela ação em oposição ao modelo da representação cognitiva, que vem sofrendo fortes questionamentos; os estudos sobre produção de subjetividade de Varela, juntamente com a contribuição de Deleuze e Guattari nos estudos sobre produção de subjetividade positiva e transdisciplinar da deficiência visual, em oposição ao enfoque nos fatores psicodinâmicos dos comprometimentos comuns da personalidade da pessoa, relacionados à deficiência visual. Reconcilia-os integrativamente ao assinalar complementaridades entre autores e enfoques dentre os quais cabe citar: a articulação entre os Disability Studies e os estudos de ciência, tecnologia e sociedade (CTS) vistos como ferramentas que permitem desnaturalizar o tema da deficiência e, ao mesmo tempo, subverter a concepção de deficiência como déficit; as semelhanças entre o devir dos Disability Studies, como aponta Latour, para uma prática que articula atores bastante heterogêneos e os estudos CTS quando propõem investigação das práticas locais e heterogêneas. Os autores, em sua trajetória e obra, mostram que, como ocorre com aqueles que enxergam, os diferentes momentos perceptivos não se fazem pela integração fragmentada de seus elementos. A percepção e a manifestação expressiva e artística dos objetos emergem no âmbito da história individual e coletiva e na maneira própria de quem as inventou. A percepção é considerada sob outra perspectiva, não mais de um processo psicofisiológico, mas sim da relação da pessoa com o objeto percebido, no contexto de sua cultura – em sua experiência perceptiva. Os psicólogos, arte-educadores e os participantes com deficiências visuais desnudam para o leitor, em suas trajetórias, que a apreensão e a expressividade estética não podem dissociar-se do mundo em que o inventor habita. Não se restringem ao caráter belo, mas envolvem aspectos sociais e culturais mais justos em encontro contínuo e reflexivo com pessoas e objetos, no dia a dia – força silenciosa do conhecimento que participa e convida a participar do mundo circundante. Os pesquisadores não se detêm em apontar possibilidades e limites entre Psicologia e Arte, ilustram complementaridades dessas áreas ao resgatar o essencial do que se propuseram investigar: a constituição do universo do conhecimento e da expressividade artística de pessoas com deficiências visuais, no respeito e consideração aos caminhos de suas percepções. Com desvelo, descrevem diferentes momentos e situações dessa experiência, sem divagar e nem perder a diretriz da investigação, consistentes com a diversidade de seu embasamento teórico. No campo das ciências sociais, retomam Law – referência fundamental reconhecida em ciências sociais – para definir o caráter performativo das práticas, enfatizando mais uma vez a consistência da trajetória que resultou nesta obra: que o papel das ciências Página 5
sociais é subverter qualquer concepção unívoca de realidade, afirmando um mundo múltiplo e heterogêneo. Neste livro, o leitor percorre uma trajetória, a de duas psicólogas e seus autores colaboradores, em uma experiência situada em Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual, e compartilha atos de inventividade: de condições que propiciaram a pessoas com deficiência visual a expressão de seu perceber, senso estético, sua vitalidade e sua autonomia. Como protagonista do cenário de inventividade que a obra oferece, o leitor amplia suas perspectivas sobre a percepção e expressividade no domínio da arte a fronteiras desconhecidas, que resgatam mistérios da individualidade e da subjetividade e permitem vislumbrar que um universo ainda muito vasto está para ser descoberto sobre o potencial humano. São Paulo, inverno de 2010. Elcie Masini notas: 1 RICOEUR, P. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 89. 2 Experiência concernindo àquele saber silencioso, o Lebeswelt (o mundo da vida) husserliano, o antepredicativo, o não ainda tematizado – raiz de toda atividade racional.
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Introdução Marcia Moraes e Virgínia Kastrup O volume que está em suas mãos é apresentado tanto em versão impressa quanto em versão digital, esta última presente no CD encartado no final desta obra. A versão digital é legível pelos programas de computador, que transformam em áudio os documentos apresentados em formato de texto. Dessa forma, em consonância com a política e a filosofia de nossas práticas de pesquisa e intervenção, entregamos a você, leitor, uma obra acessível, legível por pessoas com diferentes condições visuais. Os textos que compõem esta coletânea fazem proliferar diversos modos do ver e do não ver. O que pulsa nos trabalhos que estão neste livro é a afirmação da potência inventiva das variações dos modos de existir sem ver. O que move as pesquisas realizadas pelos autores que se reúnem nesta coletânea é afirmar a possibilidade de intervir no cenário da deficiência visual para subverter qualquer concepção essencialista de deficiência, propondo dispositivos de intervenção que redistribuam eficiência e deficiência de modo mais simétrico. Intervenções que ativem as pessoas com deficiência visual, que as tome como experts, como parceiras na construção do conhecimento. Trata-se de afirmar a pesquisa como uma prática performativa que se faz com o outro e não sobre o outro. A expressão “pesquisar com”, sintetizada na grafia PesquisarCOM, tem a dimensão de um verbo mais do que de um substantivo. Indica que para sabermos como é viver sem ver e o que é cegar é preciso acompanhar este processo em ação, se fazendo na prática cotidiana daquelas pessoas que o vivenciam. O pesquisar com o outro implica uma concepção de pesquisa que é engajada, situada. Nos textos que compõem esta coletânea, bem como nas conexões que este livro fará com outros livros e com outras práticas, é possível tecer outras versões de deficiência. Fazer existir a variação é uma questão política, uma questão de política ontológica. Que mundo queremos para nós e para os outros? Que realidades queremos produzir? Fazer existir a diferença, a multiplicidade, neste momento, usando os recursos da pesquisa-intervenção e a escrita de textos científicos, é um modo de resistir à normalização, aos processos que fazem existir a deficiência apenas como falta. O livro busca articular três campos distintos: a psicologia, a arte e a deficiência visual. Ele constitui um dos resultados do Projeto de Pesquisa Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas com Deficiência Visual,3 que reuniu pesquisadores, professores e alunos de graduação e pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Benjamin Constant. O objetivo do projeto é experimentar e, ao mesmo tempo, investigar a articulação de diferentes domínios da arte – artes plásticas, literatura, práticas corporais – com o campo da deficiência visual. Uma parte do projeto foi desenvolvida por meio de dispositivos de pesquisa-intervenção, como foi o caso das oficinas de expressão e Página 7
experimentação corporal. Outra parte foi realizada por meio de discussões teóricas entremeadas com oficinas, como ocorreu na Jornada de Estudos sobre Literatura e Cegueira, que ocorreu em outubro de 2008. A Jornada teve três eixos: 1) a presença da deficiência visual em romances, contos, crônicas e poesias que veiculam diferentes representações da cegueira; 2) o papel dos textos literários na produção e transformação das relações entre cegos e videntes; 3) os efeitos da literatura na vida da pessoa cega. Além de promover mesas redondas com professores e pesquisadores cegos e videntes – Joana Belarmino (UFPB), Maria Helena Falcão Vasconcellos (UFJF), Maria do Carmo Cabral (NUCC-UFRJ) e Maria da Glória de Souza Almeida (IBC) –, foram realizadas oficinas de leitura para adultos e crianças, também reunindo cegos e videntes4. Uma terceira parte do projeto, que teve como tema a acessibilidade em museus, foi realizada por meio de uma investigação teórica articulada a visitas a museus cariocas e paulistas, realizadas pela equipe de pesquisadores e pessoas deficientes visuais. Estes últimos foram parceiros efetivos em todos os momentos da pesquisa, colaborando tanto na discussão dos problemas quanto na elaboração dos resultados da pesquisa. Viviane Sarraf, da Fundação Dorina Nowill e Museus Acessíveis, também foi uma importante interlocutora neste domínio. A equipe clínica do projeto trabalhou com o método da pesquisa-intervenção. Enfim, o projeto promoveu a investigação de experiências estéticas e analisou os efeitos de práticas artísticas, indicando a indissociabilidade das duas faces da arte: o fazer e a fruição, que participam igualmente da invenção e reinvenção existencial. Um dos pontos que marca a originalidade das pesquisas é pautar o entendimento da cognição e da produção da subjetividade das pessoas com deficiência visual em autores que indicam um caminho fecundo e, sobretudo, positivo. É o caso da abordagem da enação de Francisco Varela. Pelo caminho indicado por Varela, recusamos uma série de proposições negativas sobre a deficiência visual, como aquela que afirma que os cegos enfrentam grandes dificuldades, pois “80% das informações acerca do mundo externo nos chegam através da visão”. A partir desta afirmação, supostamente fundada em estudos científicos de última geração, os cegos conheceriam em torno de 20% do mundo real. Varela concorre para a análise crítica dessas colocações, apontando que elas estão longe do consenso e da evidência científica. Ao contrário, caracterizam uma certa abordagem da cognição – a abordagem cognitivista – que é pautada na teoria da informação e, em última análise, no modelo da representação, que vem sofrendo fortes questionamentos nas últimas décadas. As críticas de Varela ao cognitivismo computacional são contundentes e trazem, no lugar do modelo da representação, o modelo da autoprodução do sistema cognitivo e do coengendramento do sistema e do domínio cognitivo pela ação. O trabalho de Varela, juntamente com a contribuição de Deleuze e Guattari nos estudos sobre produção de subjetividade, concorrem para uma concepção positiva e transdisciplinar da deficiência visual. Uma outra referência teórica importante do projeto de pesquisa situa-se na articulação entre os Disability Studies e os estudos de ciência, tecnologia e sociedade (CTS), este último domínio marcado pelas contribuições de Bruno Latour, Vinciane Despret, John Law e Annemarie Mol, entre outros autores. Os Disability Studies compõem uma interessante área da pesquisas e intervenções nas pesquisas sobre deficiência. Trata-se Página 8
de um movimento social e acadêmico que teve início principalmente nos países de língua inglesa e que propôs uma ampla revisão da noção de deficiência, definindo-a não mais como algo que se localiza no corpo individual, mas como efeito de uma sociedade opressora e produtora de exclusão. O chamado modelo social da deficiência, proposto nos trabalhos de M. Oliver e de outros autores, é um marco importante na reconfiguração do campo porque propõe que a deficiência seja entendida socialmente, e não mais biologicamente. Trata-se de um passo importante na desnaturalização da deficiência e, é importante sublinhar, tal desnaturalização abre espaço para a politização da tema, para a reinscrição dos debates sobre deficiência no cenário dos direitos e não mais da caridade ou da assistência. As pessoas com deficiência assumem o protagonismo neste movimento ao afirmarem o lema do “nada sobre nós sem nós”. Nas pesquisas que compõem este livro, tal revisão da questão da deficiência se faz notar principalmente na articulação entre o modelo social da deficiência e a linha de pesquisas abertas pelos chamados estudos de ciência, tecnologia e sociedade, ou estudos CTS. Se, de um lado, é possível traçar uma distinção entre o sentido do termo social nos campos dos Disability Studies e nos estudos CTS, de outro lado, parece-nos possível dizer que a guinada social que os Disability Studies propõem é um passo de capital relevância para que seja dada mais uma volta, depois do social, como propõe Latour, uma mudança de direção no sentido da prática, entendida como multiplicidade que articula atores bastante heterogêneos, humanos e não humanos. Mais do que buscar uma identidade social da deficiência, os estudos CTS propõem investigação das práticas nas quais a deficiência é feita, realizada. Práticas locais e heterogêneas, que produzem, dia após dia, realizações muito distintas do que é a eficiência e a deficiência. No campo das ciências sociais, Law tem sido uma referência fundamental para definir o caráter performativo das práticas, indicando que o papel das ciências sociais é subverter qualquer concepção unívoca de realidade, afirmando um mundo múltiplo e heterogêneo. Os Disability Studies e os estudos CTS são duas linhas de investigação do tema da deficiência que marcam as pesquisas que compõem esta coletânea; são ferramentas que nos permitem desnaturalizar o tema da deficiência e, ao mesmo tempo, subverter a concepção de deficiência como déficit. Este duplo movimento é efetuado por uma concepção de pesquisa, PesquisarCOM, que toma como norte o caráter performativo, pragmático, dos dispositivos de pesquisa. Isto é, a pesquisa é uma prática produtora de realidades e não desveladora de uma realidade já dada. O outro com o qual pesquisamos não é o alvo passivo de nossas intervenções. O outro a quem nos dirigimos é ativo no processo de pesquisa, já que é com ele que as questões a serem investigadas são formuladas. Trazendo à cena os resultados das pesquisas desenvolvidas, o livro busca contribuir para a inclusão da pessoa com deficiência visual na vida cultural da cidade, sobretudo no que diz respeito à fundamentação cognitiva para o desenvolvimento de tecnologias sociais mais avançadas e eficientes. Seu diferencial é metodológico, na medida em que tais pesquisas foram realizadas, em todas as suas etapas, com pessoas com deficiência visual. Como principais beneficiários dessas tecnologias e protagonistas da discussão, mostrou-se imprescindível sua participação ativa na Página 9
construção do conhecimento. Isso foi efetivamente realizado, e o sucesso do projeto deveu-se, em grande parte, à instalação de uma Estação de Trabalho Inclusiva no Instituto Benjamin Constant, com equipamentos, computadores, softwares e outros itens que permitiram o trabalho conjunto de pessoas videntes e com deficiência visual. Todos os textos que compõem essa coletânea foram apresentados por pesquisadores, professores e alunos em eventos científicos, nacionais e internacionais. Tais encontros foram ocasiões de submeter à comunidade científica tanto a metodologia PesquisarCOM como os resultados efetivos das pesquisas empreendidas pelo grupo. Todos os temas estudados são vinculados à linha de pesquisa Cognição e Subjetividade do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ e à linha Subjetividade, Política e Exclusão Social do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF. O livro foi organizado em cinco sessões. Na primeira sessão – Construindo um método e um problema de pesquisa – procuramos apresentar a indissociabilidade de duas questões do livro: a metodologia e a colocação do problema. Partindo do que alguns autores definem como uma guinada para a prática nos estudos sobre as ciências, Marcia Moraes discute os modos pelos quais a cegueira é feita (enacted) em algumas práticas voltadas para pessoas com deficiência visual. O texto problematiza uma certa concepção de cegueira: aquela que se define como falta ou déficit e que é articulada em torno da noção de norma. Apostando no caráter performativo das práticas, a autora afirma a potência inventiva dos modos de existir sem ver. Inserindo a pesquisa como uma importante prática no campo da deficiência visual, o texto propõe que os dispositivos de pesquisa sejam redesenhados, a fim de distribuir de modo mais simétrico deficiência e eficiência. Isto é, pesquisar não implica retratar uma realidade já dada, mas sim construir um mundo, fazer existir realidades. É neste sentido que a autora pergunta: em que mundo queremos viver? Propõe o PesquisarCom como uma maneira de intervir no campo da deficiência visual, tomando o outro como sujeito ativo, expert, que propõe questões e que, por esta via, faz proliferar múltiplos modos do não ver. O PesquisarCom subverte ao mesmo tempo concepções clássicas de pesquisa e de deficiência. Na vertente da pesquisa, importa sublinhar que o outro não é interpelado como objeto, como sujeito passivo, mas como expert, como alguém COM quem o conhecimento é produzido. Na vertente da deficiência, trata-se de ir além de qualquer concepção essencialista de deficiência, afirmando a multiplicidade como substantivo. O capítulo de Virgínia Kastrup, Atualizando virtualidades: construindo a articulação entre arte e deficiência visual, discute a potência da arte e seu papel nos processos de produção de subjetividades a partir de uma pesquisa realizada na oficina de cerâmica do Instituto Benjamin Constant. Procurando elucidar tal mecanismo de produção, analisa também a questão da acessibilidade das pessoas com deficiência visual aos museus e o papel do mediador no acesso à experiência estética. A segunda sessão – Movimentos do corpo e da clínica – é composta de três capítulos. O capítulo de Laura Pozzana, Oficina de Movimento e Expressão com Deficientes Visuais, é o relato de uma oficina de movimento e expressão com deficientes visuais realizada no Centro de Convivência do IBC. O texto descreve como a Página 10
prática corporal inspirada no Sistema Rio Aberto ganhou nuances a partir de uma aprendizagem coletiva. Depois de dois anos, com o tempo e os acontecimentos, revela a ampliação das conexões de cada participante consigo, com os outros, com a prática e com o mundo. O texto Composições do não ver – Contando histórias, de Camila Araújo Alves, Carolina Cardoso Manso, Josselem Conti de Souza Oliveira, Julia Guimarães Neves, Liz Eliodoraz, Luciana de Oliveira Pires Franco, Thadeu Gonçalves, Vandré Vitorino e Marcia Moraes, é construído a partir de uma narrativa, a história de Candeia e da cegueira que o atingiu já na vida adulta. Através desta narrativa, os autores discutem as relações entre corpo e deficiência, tendo como referência o dispositivo de pesquisa "Oficina de Experimentação Corporal", realizado com pessoas cegas e com baixa visão do Instituto Benjamin Constant. A Oficina é apresentada como uma arena performativa que faz proliferar os modos de existir do ver e do não ver. Corpo e deficiência são articulados longe do referencial biomédico, segundo o qual a deficiência é algo que se localiza no corpo individual, fruto de uma doença ou lesão. Seguindo a definição de corpo proposta por autores como Bruno Latour e Michel Serres, os autores apostam que ter um corpo é ser afetado e efetuado pelo mundo. Assim, Candeia reinventa a cegueira na medida em que vai sendo afetado e movido por mais elementos. De uma articulação da cegueira com a imobilidade, Candeia vai experimentando outros modos do cegar. Na Oficina de Experimentação Corporal, as pesquisadoras intervêm no sentido de ampliar o campo das afetações, oferecendo oportunidades de experimentação do corpo que modificam o modo como Candeia lida com a cegueira. O capítulo de Alexandra C. Tsallis, Bernardo Antônio. A. P. de Souza, Elisa Junger, Jessica David, Leonardo Reis Moreira, Renata Machado, Rodrigo Pires Madeira, Virgínia Menezes e Willy H. Rulff busca acompanhar o desenrolar de processos de subjetivação que surgiram durante os encontros de um dispositivo clínico de grupo com pessoas cegas no Instituto Benjamin Constant. Esse dispositivo colocou em ação proposições da prática clínica que levaram em conta as singularidades do ver e não ver ali presentes. No contexto de uma pesquisa-intervenção, a equipe foi conduzida à experiência de depaysement/desterritorialização (Despret, 2001), que resultou na aposta da produção de outros modos de organização sensorial do fazer clínico. O texto A bengala como um instrumento lúdico na orientação e mobilidade do deficiente visual, de Vera Regina Pereira Ferraz e Lucia Maria Filgueiras, aborda uma experiência de utilização da pré-bengala com crianças classes de educação infantil e ensino fundamental no Instituto Benjamin Constant nas aulas de Orientação e Mobilidade (O.M.). O estudo indica um benefício considerável quando a introdução é realizada de forma lúdica e integrada à vida cotidiana da criança. A terceira sessão – Acessibilidade em museus – inclui dois textos que abordam o problema da acessibilidade de pessoas com deficiência visual a museus. O capítulo Acesso à Arte e Cultura para Pessoas com Deficiência Visual: Direito e Desejo, escrito por Viviane Panelli Sarraf, discute o direito das pessoas com deficiência visual ao acesso às manifestações artísticas e culturais, bem como o seu desejo de conquistar esse acesso. Mostra-se, a partir de entrevistas feitas pela autora com deficientes visuais, que esse público possui forte desejo de participar das manifestações culturais que ainda lhes são Página 11
inacessíveis, e que as iniciativas inclusivas já existentes, ainda que pouco comuns e longe de serem ideais, podem produzir experiências culturais e artísticas extremamente positivas. O capítulo apresenta, ainda, tanto a história da legislação e das lutas por esse direito quanto seu estado atual. O capítulo Acesso tátil: uma introdução à questão da acessibilidade estética para o público deficiente visual nos museus, de Filipe Herkenhoff Carijó, Juliana de Moura Quaresma Magalhães e Maria Clara de Almeida, fornece uma introdução crítica à questão da acessibilidade estética para o público deficiente visual no âmbito dos museus de arte. O capítulo apresenta a complexidade do problema e aponta caminhos para uma inclusão efetiva, realizando uma análise das principais estratégias e políticas de inclusão, tais como a disponibilização de originais e réplicas para o toque. Toma em consideração o funcionamento do tato, desnaturaliza a concepção do toque como danificador e insiste sobre a necessidade de se levar em conta a dimensão expressiva da experiência com a arte, destacando problemas e méritos em estratégias já existentes, bem como possibilidades de desenvolvimento futuro. A quarta sessão – Literatura e Cegueira – traz três textos que foram apresentados na I Jornada de Estudos sobre Literatura e Cegueira. O primeiro é da autoria de Joana Belarmino e é intitulado Do Mítico ao Mágico, da Alegoria ao Realismo: A Literatura e suas Metáforas sobre a Cegueira. Através de uma escrita que transita entre a linguagem literária e coloquial, o artigo aprecia a cegueira como metáfora na literatura, particularmente nas obras de André Gide, José Saramago e Ernesto Sábato. O pano de fundo da narrativa é a ideia filosófica que Gaston Bachelard apresenta em “A Chama de uma Vela”. Penumbra e iluminação, claro e escuro – é nessa trama metafórica onde se vai buscar uma compreensão para esses construtos literários que, se são em si mesmos obra de criação literária, alimentam-se sobretudo da cultura humana naquilo que ela possui de mítico, mágico, alegórico e racional. Partindo da pergunta-título – Literatura para quê? –, o capítulo de Maria Helena Falcão Vasconcellos pensa a palavra poética como poderosa aliada na aprendizagem-experiência de um fecundo modo de existência que opere uma receptividade ativa às forças do vivo de que estão prenhes os fatos em que nos movemos. O texto traz fragmentos de textos literários, se detendo em dois contos de Mia Couto: O cego Estrelinho e Águas do tempo. Neles os personagens vivem a experimentação de uma nova percepção do mundo, um processo de aprendizado de um estilo outro de existir, que não o mais habitual. O terceiro texto Literatura, devir-consciente e algumas considerações acerca do conto “Em terra de cego” de H. G. Wells, de Maria do Carmo Cabral, aborda a leitura literária e seus efeitos sobre o leitor. Partindo do conceito de práticas de leitura de Roger Chartier, a autora propõe o conceito de leitura de acolhimento ou à espreita. Articula esta ideia com o conceito de devir-consciente de Depraz, Varela e Vermersch (2003), apontando a potência de experiências desse tipo. Por fim, apresenta e comenta o conto Em terra de cego, do escritor inglês Herbert George Wells, que fala das aventuras e desventuras de um vidente numa terra de cegos, fazendo pensar o leitor. A quinta sessão é dedicada ao tema Política e Cidadania. No capítulo Deficiência e política: Vidas subjugadas, narrativas insurgentes, Bruno Sena Martins argumenta que a realidade vivencial das pessoas com deficiência persiste sendo marcada por Página 12
fortes condições de marginalização social e exclusão econômica. Tal perpetuação acontece a despeito das sucessivas transformações legislativas e das políticas sociais que foram sendo introduzidas nas últimas décadas. Conforme sugere o texto, a superação deste quadro passa por um radical questionamento dos termos pelos quais a deficiência é pensada e por uma transformação das dinâmicas democráticas acostumadas a negligenciar as vozes das pessoas com deficiência. Vozes que, ao encontro de um modelo social da deficiência, transportam instigantes propostas de transformação social. O capítulo Cidade Acessível: igualdade de direitos e particularidades da pessoa com deficiência visual, de Jéssica David, Ximene Martins Antunes e Veronica Torres Gurgel, investiga três situações cotidianas – pegar um ônibus, atravessar uma rua e desviar de orelhões – que ilustram as dificuldades com que um deficiente visual se depara ao circular por uma cidade organizada com base em parâmetros visuais. Discute também a necessidade dos deficientes visuais participarem mais ativamente na formulação de leis e políticas públicas que devem ser elaboradas em função das particularidades cognitivas das pessoas com deficiência visual. Mais que constituir uma mera coletânea de textos sobre deficiência visual, o livro inaugura uma nova abordagem na psicologia brasileira e abre um novo campo de problemas teóricos, metodológicos e políticos na pesquisa em deficiência visual que começam agora a ser enfrentados. Nesse campo novo, a questão da falta e da negatividade cede lugar a um conhecimento positivo sobre a maneira de viver e conhecer da pessoa com deficiência visual. Os textos aqui reunidos tratam da articulação entre arte e cegueira, abordando diferentes temas e domínios da arte – oficinas de expressão e experimentação corporal, artes plásticas, acessibilidade a museus e literatura – que interessam a pesquisadores, professores, profissionais e alunos tanto da área de artes quanto da de deficiência visual. Não temos a pretensão de oferecer respostas definitivas para a complexa articulação entre a deficiência visual e a arte. No entanto, acreditamos ter aberto um caminho fecundo, onde a experimentação combina com a pesquisa, enfrentando o desafio de compreender a potência de tal agenciamento e de analisar seus efeitos. Nesta medida, estamos certos de ter ampliado tanto o campo da deficiência visual quanto o da psicologia, bem como de estar formando jovens pesquisadores no campo da psicologia. Os projetos continuam em andamento e temas novos desafiam nossa curiosidade, como é o caso da audiodescrição de filmes. Novos grupos de pesquisa são formados, levando a frente e consolidando a metodologia PesquisarCOM. Eles estão disponíveis na página www.uff.br/artesedeficienciavisual que, como não poderia deixar de ser, possui condições de acessibilidade e constitui um espaço de divulgação de textos teóricos e informações úteis para pesquisadores, profissionais, estudantes e demais interessados na área de deficiência visual, sejam eles videntes ou cegos. Agradecemos à FAPERJ - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, que apoiou financeiramente o projeto Práticas artísticas e construção da cidadania com pessoas com deficiência visual; ao CNPq, pelas bolsas concedidas aos pesquisadores e aos alunos; à CAPES, pelas duas bolsas de Pós-Doutorado, na Inglaterra (Lancaster University) e na França (Conservatoire National des Arts et Métiers), onde parte da pesquisa foi desenvolvida, à Pró-reitoria de Extensão da Página 13
Universidade Federal Fluminense, pelas bolsas de extensão concedidas aos alunos, ao Instituto Benjamin Constant (IBC), que concedeu o espaço para a montagem da Estação de Trabalho Inclusiva onde o projeto foi desenvolvido. No IBC encontramos o apoio necessário à realização de nossas pesquisas, o que só foi possível graças ao empenho e dedicação de: Érica Deslandes Magno Oliveira (Direção Geral), Maria da Glória de Souza Almeida (Chefia de Gabinete), Elcy Maria Andrade Mendes, (Assessoria da Direção Geral), Márcia Lopes de Moraes Nabais (Direção do Departamento de Estudos e Pesquisas Médicas e de Reabilitação), Adávia Fernanda Correa Dias da Silva (Supervisora da Divisao de Reabilitação e Preparação para o Trabalho e Encaminhamento Profissional – DRT), Girlaine Maria Ferreira Florindo e Cristiane Vales Maciel (Chefes da DRT). Os trabalhos que realizamos contaram ainda com a acolhida de vários outros profissionais do IBC, aos quais registramos nossos sinceros agradecimentos: Leonardo Rajagabaglia, Ana Fátima Berquó Carneiro Ferreira, Marcelo Miranda Petini , José Francisco de Souza, Maria Rita Campello Rodrigues , Clara Fonseca, Gisele de Jesus Cipriano Rodrigues e Monique Brito Barbosa. Por fim, esta obra não existiria se não tivéssemos contado com as pessoas com deficiência visual que participaram das pesquisas, compartilhando os problemas e soluções que marcaram todo esse processo de produção coletiva do conhecimento. Nosso agradecimento especial a Adriana Costa Pinheiro, Alcei Chrisóstomo Garcia, Alexandre Carlos Barel, Alfredo Roberto de Souza, Antonio Mousinho Sobrinho, Artur Luiz Santos Silva, Carlos Roberto Godoy de Mello Junior, Catharina de Azevedo da Cunha, Deivison Luiz Dias, Deivison Menezes, Denivaldo da Silva, Edson de Souza Pia, Edvan Borges, Elizete Maria Pereira, Eronides Pereira de Lucena, Frederico João Meiler, Geovania dos Santos Francisco, Gilberto Paulo de Araújo, Gonçalo Rodrigues Melo, Irene dos Santos, Ismael dos Santos, Jaci Sant'Ana, Joel Carlos de Oliveira, Jorge Luiz Gomes da Silva, José Carlos Rosa Lira, José Emilson dos Santos, Julia Maria Casimiro Alves, Luis Ramos, Luiz Antônio de Moraes, Manoel Jezler, Marcelo Batista , Maria Amélia Barbosa, Maria Beatriz Gonçalves Souza, Maria das Graças Mesquita Guimarães, Maria de Lourdes Santos, Maria Fátima Oliveira Pacheco, Maria Inês Ribeiro, Maria Luzia do Livramento, Mariana Cochrane Carvalho dos Santos, Marina Merida Magalhães, Marlene Amorin Oliveira, Marlene Carneiro, Marlene Lauriano, Mery Danan, Mirian Lima Bizarria, Nelci Lidorio, Ney Gomes de Oliveira, Nilda da Silva, Nilton Soares da Costa, Nilza Marinho dos Santos Raimundo Caitano Paiva, Raphael Rodrigues dos Santos, Regina Maria Ribas, Rulino Miguel , Sérgio Abdala, Sônia Costa Pinheiro, Sueli Machado Botelho, Thiago Vieira, Virgínia Fortunato Antunes, Virgínia Menezes, Wagner Jesus Bassú, Waldir Domingues Lopes, Wilson Dias da Silva.
notas: 3 Projeto financiado pela FAPERJ através do Edital N.º 12/2008: Programa de Apoio à Construção da Cidadania da Pessoa com Deficiência. 4 Vidente é o termo utilizado para designar aqueles que não enxergam. Tal terminologia é adotada em todos os capítulos que compõem esta coletânea. Página 14
Seção 1- Construindo um método e um problema de pesquisa PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual Marcia Moraes A bailarina e o mal entendido promissor O filósofo Gilles Deleuze (1988) afirmava que os homens raramente exercitam o pensamento e, quando o fazem, é mais sob um choque, um golpe, do que no elã de um gosto. Pois bem, leitor, te digo: se tenho pensado algo, é assim, no golpe, no atrito, no embate com o mundo, com os outros, com o campo de pesquisa. É no estranhamento do encontro com o outro que um pensamento pensamento pode advir. O pensamento não se reduz à recognição, ao reconhecimento reconhecimento de si mesmo ou de alguma forma dada e definida de antemão, mas, ao invés disso, o pensar envolve outras aventuras, encontros inusitados com o mundo. De minha parte, considero que a vida seria muitíssimo tediosa se o tempo todo estivéssemos às voltas com o já sabido, a encontrar no mundo apenas aquilo que nos é familiar, aquilo que, de algum modo, já estava em nosso pensamento. Faço minhas as palavras do filósofo quando diz que “há no mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição. O que pode ser encontrado pode ser Sócrates, o templo ou o demônio” (Deleuze, (Deleuze, 1988, p. 231). No caso que ora te apresento, o encontro foi com a deficiência visual, ou antes, com a multiplicidade de modos de existir da deficiência visual. Por isso, leitor, convido-te a percorrer estas linhas para que acompanhes os problemas que as agitam, para que faças as suas interpelações, para que sublinhes os limites, contrassensos e disparates que este texto porventura faça existir. No percurso da pesquisa de campo na área da deficiência visual5, fui, desde o início, tomada pelo problema de como intervir num certo cenário levando em conta o referencial do outro6. Explico-me: em um momento inicial da pesquisa, quando fazia observações participantes num grupo de jovens e crianças cegas e com baixa visão, vinculado a uma Oficina de Teatro, deparei-me com um tipo de intervenção que, centrada no referencial do vidente, fazia fracassar uma jovem menina cega congênita, que representaria o personagem de uma bailarina numa peça teatral, naquele momento ainda em fase de ensaios. A menina não tinha os mesmos referenciais que os videntes acerca de uma bailarina e de nada adiantavam as intervenções meramente verbais e visuocêntricas7 visuocêntricas7 que lhe apontavam as ações de seu personagem: girar, levantar os braços, agir com leveza. Ela fazia os movimentos na medida em que ouvia o que lhe era dito, mas logo vinham outras observações: “o braço não deve ser levantado assim, cuide de encolher a barriga, não, não é assim que a bailarina gira, preste atenção nos pés, bailarina anda na ponta dos pés...”. Página 15
Ou seja, a bailarina assentada no referencial vidente não era incorporada pela jovem. E, para ela, importava que a sua bailarina fosse bonita para quem enxerga, afinal, na plateia do teatro haveria pessoas cegas, com baixa visão e videntes. E era ela mesma quem dizia: “ah, eu não quero pagar mico não, minha mãe vai me assistir e eu quero estar bem bonita no palco!!” Isso me parecia bastante pertinente, a menina não queria fazer a bailarina de qualquer jeito, ela queria que a bailarina fizesse sentido para ela e para os videntes. Note, leitor, para ela e os videntes – este “e” faz toda diferença. Do que se trata? Bom, se seguirmos pela língua portuguesa, trata-se de uma conjunção aditiva, o “e” indica uma relação de soma, de inclusão. Não vou me estender pelos meandros desta nossa língua tão difícil – nem tenho competência para isso! – mas, o que interessa é que a bailarina que a menina queria encenar devia articular, reunir cegos e videntes. Era, portanto, uma bailarina que estava num espaço entre cegos e videntes. Logo, com este singelo “e” a menina afirmava que a bailarina assentada apenas nos referenciais dos videntes não incluía os cegos – não permitia, portanto, portanto, que o “e” entrasse em ação. O que parecia estar ocorrendo, ao contrário, era a lógica do “ou”, isto é, enquanto a bailarina lhe era apresentada exclusivamente exclusivamente pelo referencial do vidente, a menina falhava, era ineficiente, deficiente: deficiente: ou fazia a bailarina tal como um vidente a faria, ou fracassava. O “ou” é uma conjunção de exclusão, conjunção alternativa, que separa, segrega. Por que retomo este episódio8? Porque foi a partir de encontros como este que comecei a me perguntar pela possibilidade de uma psicologia cujas intervenções estivessem no espaço do “e”, isto é, interessava-me interferir naquele cenário, mas construindo uma relação aditiva, que se produzisse a partir da interseção, levando em conta o referencial do outro, tomando como positiva a pista que a menina dava: uma intervenção que pudesse se fazer no espaço entre cegos e videntes, e não dos videntes para os cegos. Foi a partir desta, e de outras situações, que comecei a buscar, como Moser (2000), um outro ponto de partida, a partir do qual fosse possível interferir nas definições do que é o normal e do que é o humano, do que é eficiente e deficiente. Sim, Sim, leitor, não era nada óbvio, nem tampouco “natural”, menos ainda “uma questão de fato indiscutível”, que aquela menina não era eficiente para encarnar uma bailarina. Na relação entre aquela menina e a personagem da bailarina, o que lhe era exigido encenar, havia uma distância, um lapso, um mal entendido: a bailarina que ela encenava aparecia aos outros, aos videntes e àqueles que tinham baixa visão, como um equívoco. Mas tal equívoco, longe de ser algo essencial, natural, autoevidente, era alguma coisa ordenada naquele cenário, naquela articulação singular que reunia cegos, videntes, pessoas com baixa visão, um personagem em vias de ser encarnado, o palco, o roteiro da peça, a plateia. Era neste arranjo heterogêneo de coisas e pessoas que a menina fracassava. Ali, naquele arranjo, a menina era deficiente. O mal entendido que este arranjo articulava fazia-se notar já quando a menina, interpelada a fazer “direito” a bailarina, dizia não entender o que era este “fazer direito”. Neste ponto, uma pista se abria. O mal entendido em questão estava em consonância com aquilo que Despret (1999) denomina mal entendido promissor. Para a autora, o mal entendido promissor é aquele Página 16
"...que produz novas versões disto que o outro pode fazer existir. O mal entendido promissor, em outros termos, é uma proposição que, da maneira pela qual ela se propõe, cria a ocasião para uma nova versão possível do acontecimento." (Despret, 1999, p. 328-330) O fato de que a menina “não entendesse o que era fazer direito a bailarina” não é, pois, sem importância. Tratava-se Tratava-se de um acontecimento relevante na medida em que abria a possibilidade para que a menina fosse interpelada não como um sujeito dócil, passivo às intervenções. Como Despret (2009) sinaliza, sinaliza, pesquisar com o outro implica tomá-lo não como “alvo” de nossas intervenções. Não se trata de tomar o outro como um ser respondente, um sujeito qualquer que responde às intervenções intervenções do pesquisador. Ao contrário, o mal entendido promissor anuncia novas versões do que o outro pode fazer, isto é, ele anuncia que o outro que interrogamos é um expert, ele pode fazer existir outras coisas, no caso, outros modos de ordenar a deficiência deficiência visual em articulação com a bailarina, com o palco, com plateia. O mal entendido é promissor justamente porque abre outras vias de realização para um fenômeno; abre, enfim, uma bifurcação, ali onde parecia haver uma certa ordenação estável de coisas. O que se abre, portanto, é uma instabilidade, a possibilidade possibilidade de uma deriva, de uma variação. Era o que estava em questão no episódio. A menina, de algum modo, resistia às intervenções, interrogava: interrogava: “como assim, a bailarina é leve?”, “o que é esta leveza?”, “ponta do pé? como é andar na ponta dos pés?” Estas eram algumas das muitas questões que ela levantava e que colocavam em xeque aquele modo de intervir, do vidente para o cego. Ou seja, o que estava em ação naquele cenário era uma redistribuição de expertise, já que o saber sobre a bailarina não estava apenas do lado daquele que propunha as intervenções, mas também do lado daquela a quem tais intervenções eram dirigidas. A menina, ao ser interpelada pelo outro, interpela este outro de volta. Indica, com isso, quais são as questões que lhe devem ser formuladas para que ela possa de fato performar uma bailarina. Interessante notar que, se tomamos o mal entendido promissor como uma positividade do dispositivo de intervenção, o que ele produz é uma redistribuição das capacidades capacidades de agir: no lugar da distribuição assimétrica, assimétrica, que separa o pesquisador do pesquisado, entra em cena uma outra distribuição da capacidade de agir, isto é, aquele que é interpelado interpelado torna-se ativo no sentido de participar ativamente do dispositivo de intervenção. Assim, o mal entendido promissor, longe de ser um parasita no dispositivo de intervenção, é aquilo mesmo que o move, é aquilo que nos coloca diante do fato de que a experiência experiência de interrogar o outro envolve um processo de transformação que não se passa apenas para o interrogado, senão também para aquele que interroga. O episódio da bailarina permite retomar algumas questões presentes no debate acerca dos modos de intervir que nós, pesquisadores, pesquisadores, adotamos. De um lado, uma intervenção intervenção que se faz sobre o outro. Neste tipo de dispositivo, mantemos com com o outro uma relação no registro da docilidade, da passividade, do controle, da “ortopedia” (Despret, 2004a, 2004b, 2009). Neste dispositivo, como disse, a capacidade de agir está do lado do pesquisador, já que é ele, em última instância, quem sabe quais são os fins daquela intervenção. De outro lado, um dispositivo de intervenção que se faz com o outro na medida em que é construído em articulação articulação com Página 17
aquilo que interessa ao outro. O que importa sublinhar, no entanto, é que, em ambos os casos, a relação pesquisador/pesquisado implica um processo de transformação. O que diferencia um modo ou outro de lidar com esta transformação é o que ele inclui e faz valer como positivo, como realidade; e o que ele exclui como parasita, como erro a corrigir. No primeiro caso, a jovem deve se conformar a um modelo de bailarina que guia e norteia as intervenções, e o que nisso não se encaixa deve ser descartado. No segundo caso, a menina é ativa, ela constrói junto com o outro a bailarina, ela dá pistas daquilo que pode vir a ser uma bailarina que seja construída no espaço do “e”, no espaço que está entre cegos e videntes. A história da bailarina – e outras tantas – exigia que, como pesquisadora, eu buscasse táticas e arranjos teórico-práticos que problematizassem certas distribuições de eficiência e deficiência. O que quero dizer com “distribuições de eficiência e deficiência”? Quero dizer, leitor, que eficiência e deficiência não são duas realidades dadas em si mesmas, já delimitadas de antemão. Ser deficiente não é algo que uma pessoa é em si mesma. Mas algo que ela se torna, quando articulada em certas práticas. Logo, do ponto de vista que adoto neste texto, carece de sentido falar de deficiência longe das práticas nas quais ela é produzida e articulada. No episódio da bailarina, o que ocorria era que, naquele tipo de prática, ela era feita deficiente, não-eficiente para encarnar aquele personagem que lhe era designado. Poderia ser diferente? Sim, poderia. Como reencenar esta distribuição da eficiência e da deficiência? Como interferir para subverter o que conta como eficiência, como normalidade? Onde, e de que modo, a deficiência é produzida, colocada em ação? Estas são as questões que orientam a escrita deste artigo. Penso que, a esta altura, tu, leitor, estarás a perguntar: “que diabos você quer dizer com 'distribuição da eficiência e da deficiência'? Uma pessoa deficiente é uma pessoa deficiente, não? E distribuição: o que é isso? Conheço distribuição de doces em dia de Cosme e Damião, com carros pelas ruas, crianças correndo, alegres, dentes à mostra, mãozinhas cheinhas de balas e outras gulodices; distribuição de renda, coisa complicada em nosso país, apesar de nosso atual líder andar por aí a dizer 'que nunca antes neste país...'; distribuição de senhas, chatice em tudo o que é banco; mas distribuição de eficiência e deficiência... o que tudo isso significa, afinal?” Querido leitor, quantas perguntas! Noto que exiges que eu caminhe passo a passo, cobras explicações cuidadosas, cautelosas. Concordo contigo: a viagem deve ser mais lenta a fim de termos tempo para construirmos juntos algo a ser por nós partilhado. Do realismo euro-americano à guinada prática: a política ontológica A fim de dar conta das questões que levantei no item anterior, faz-se necessário avançar um pouco mais nas reflexões acerca dos modos de intervir e pesquisar. Law (2003, 2004) aponta que os métodos de pesquisa em ciências – tanto humanas quanto naturais – têm sido fortemente marcados por um certo realismo, que o autor denomina de “realismo euro-americano”. Trata-se, com esta expressão, de sublinhar alguns princípios gerais que orientam e embasam certos modos de pesquisar. Seguramente, Law (2003) Página 18
pretende indicar modos de pesquisar e de lidar com o tema do conhecimento que se afastam de tal realismo. No entanto, quando aponta para as suposições que neste último subjazem, o autor sublinha também os pressupostos que se fazem notar tanto em nossa vida cotidiana quanto em muitos métodos, projetos e relatos de pesquisa. Se o autor delimita algumas pressuposições desse realismo, é para colocar em questão o que conta ou não como realidade. E é justamente este ponto que me interessa na argumentação de Law (2003, 2004), porque, note leitor, o que este autor sublinha é que o que conta ou não como realidade é variável, não está dado de antemão. Trata-se, em suma, de um enfoque que aposta numa concepção de realidade que é construída em certas práticas. Assim, ao descrever as pressuposições do realismo euro-americano, Law (2003) vai sinalizar que tais pressuposições constroem “uma certa” realidade, mas não “a” realidade. De um modo geral, o realismo euro-americano tem como eixo principal a concepção de que há uma realidade lá fora, independente de nós e de nossas ações. A esta suposição geral acrescentam-se outras como decorrência: a) a realidade lá fora é anterior a nós, isto é, o real sempre precede qualquer tentativa de conhecê-lo; b) o real é preciso, delimitado e definido; c) a realidade lá fora é uma só, única. Uma só realidade, passível de ser conhecida de muitas perspectivas. Estas diferentes perspectivas são, isso é importante, diferentes modos de conhecer algo que é único. O mundo lá fora permanece o mesmo, a despeito de ser conhecido de muitos modos. Assim, para o realismo euro-americano há a possibilidade de que o real seja conhecido, plenamente conhecido, por um sujeito do conhecimento asséptico, capaz de abordar o real sem nele se misturar, garantindo, ao contrário, que o resultado do seu conhecimento seja preciso, delimitado, definido, independente e anterior a qualquer intervenção. Law (2003, 2004) afirma que os métodos de pesquisa em ciências sociais estão, em geral, comprometidos, senão com todo o pacote do realismo euro-americano, pelo menos com partes dele. Pois é justamente neste ponto que Law (2003, 2004) pretende fazer diferença e é por isso que o trabalho do autor me interessa. A questão que ele levanta é: o que fazemos quando em nossas práticas de pesquisa lidamos com realidades que são múltiplas, hetorogêneas, fugidias, complexas? Como lidamos – metodologicamente – com o que é fugidio, híbrido, isto é, com aquilo que não se encaixa no realismo euro-americano9? O que está em jogo? A questão levantada por Law (2003) aponta para o fato de que, quando o conhecimento está centrado nos limites do realismo euro-americano, aquilo que no campo de pesquisa aparece como fugidio é alterizado, é tornado outro por relação ao que se espera do objeto: que ele seja claro, definido, independente. Ora, dito de outro modo, é o pacote do realismo euro-americano que faz partes da realidade aparecerem como confusas. Mas há nisso algo mais – e de suma importância. É que isso que aparece como confuso é permanentemente excluído do campo de pesquisa, seja porque é atribuído a uma falha no conhecer – isto é, há algo que é híbrido, mas que não é conhecido por uma falha técnica, porque o método não o alcança –, seja porque o que é híbrido está no lugar do erro a ser controlado, domesticado com Página 19
o refinamento do método. Assim, Law (2003) salienta que, quando assumimos o pacote do realismo euro-americano, estamos implicados numa política que sistematicamente exclui aquilo que escapa aos seus quadros de referência. Tais discussões sobre método estão intimamente ligadas a formas muito distintas de lidar com as questões da presença, ausência e alterização. Presença diz respeito ao que comparece em nossos relatos de pesquisa. Ausência é aquilo que, mesmo não estando de fato presente, é um pano de fundo, uma copresença. E alteridade, ou alterização, é o que é tornado outro, excluído, deixado de fora. O manejo da presença, da ausência e da alterização faz toda a diferença. O que deixamos de fora dos nossos relatos? Por que o fazemos? O que incluímos? Por que incluímos em nossos textos estes e não aqueles outros relatos? Para Law (2004), tais perguntas são capitais nos debates sobre método. Mas, nesse ponto, uma advertência se faz necessária: isto não é uma reclamação, uma queixa. Aquilo que conhecemos é relacionado com, dependente de e produzido com o que não conhecemos. Falar em método de pesquisa é, para Law (2003, 2004), implicar-se numa articulação de presença, ausência e alterização. O problema está quando se pretende que tudo pode se tornar presente e conhecido. Porque, neste caso, supõe-se, de um lado, a possibilidade de um sujeito do conhecimento, que pode tudo ver, tudo saber, tudo conhecer. E, de outro lado, uma realidade que um dia será totalmente conhecida. Estas duas suposições correlatas estão embutidas no pacote do realismo euro-americano, que Law (2003, 2004) quer subverter. Disso, o autor retira algumas conclusões: a) no realismo euro-americano, o processo de articular presença, ausência, alterização é sempre reprimido, numa política de sistemática exclusão. b) se o conhecer lida com uma realidade que existe lá fora, dada de antemão, então o caráter produtivo de nossas práticas também desaparece. Isto é, no realismo euro-americano o conhecer é um processo desinteressado, que em nada contribui para a construção da realidade. Mas, se atentamos para o método como um processo que articula presença, ausência e alterização, diz Law (2003), há nisso uma performatividade, uma produtividade. Nossas práticas são performativas. c) logo, como consequência do que foi dito nos itens anteriores, podemos perguntar se as realidades são construídas, são feitas; então, que realidades estão sendo feitas em nossas práticas de pesquisa? Fique atento, leitor, porque esta é uma questão eminentemente política. Este é um ponto de virada importantíssimo que marca os trabalhos de Law (1997, 1999, 2003, 2004), Moser (2000), Mol (2002, 1999), entre outros autores. As práticas são performativas, isto é, fazem existir realidades que não estavam dadas antes e que não existem em nenhum outro lugar senão nestas e por estas práticas. Aqui há uma guinada, uma virada sinalizada por outros autores como uma virada para a prática10. O que está em jogo é colocar as práticas em primeiro plano, entendendo que "...a prática designa as ciências “se fazendo”, ela engloba o ajuste de instrumentos, a escritura de artigos, as relações de cada praticante com os colegas, mas também com tudo isto e todos Página 20
aqueles que contam ou poderiam contar em sua paisagem. Nada está pronto. Tudo está por negociar, por ajustar, alinhar e o termo prática designa a maneira pela qual tais negociações, ajustes, alinhamentos constringem e especificam as atividades individuais sem por isso determiná-las." (Stengers, 2006, p. 62-3) Ora, o que Stengers sinaliza é que nada está pronto, a realidade é construída, é performada nas e pelas práticas. Há uma subversão do realismo euro-americano. Não há uma realidade lá fora, dada. O que conta ou não como realidade é produzido, feito. Ou antes, o que está sendo afirmado é que o próprio realismo euro-americano é construído, performado em certas práticas de pesquisa e outras práticas cotidianas que o fazem existir dia após dia, momento após momento. O termo em inglês para indicar este caráter performativo das práticas é enact, termo que aponta para dois sentidos distintos: como encenar, representar um papel; e como fazer existir, promulgar, fazer no sentido de quando dizemos, por exemplo, que “o congresso nacional promulgou (fez existir) uma nova lei”11. Nas palavras de Mol: “É possível dizer que nas práticas os objetos são feitos [enacted] (...) isto sugere também que em ato, e apenas aqui e acolá, alguma coisa é – sendo feita [being enacted]” (Mol, 2002, p. 32-33). Então, quando Law (2003, 2004), Mol (2002) e outros autores sublinham o caráter performativo das práticas é para marcar que a realidade é feita, não está dada. E, mais do que isso, o que tais autores colocam em cena com esta subversão do realismo euro-americano é que há uma dimensão política em tal subversão. Se dissermos que a realidade é construída, imediatamente outra questão se faz pertinente: que realidade? Há aí uma implicação recíproca entre o real e o político: uma política ontológica. Política ontológica é uma expressão utilizada por Mol (1999) e por Law (2003). Nas palavras de Mol: "...a combinação dos termos ontologia e política sugere-nos que as condições de possibilidade não são dadas à partida. Que a realidade não precede as práticas banais nas quais interagimos com ela, antes sendo modelada por estas práticas. O termo política, portanto, permite sublinhar este modo ativo, este processo de modelação, bem como o seu caráter aberto e contestado." (Mol, 1999, p. 2) A realidade é, portanto, feita, construída em práticas situadas histórica, cultural e materialmente. Assim, sublinha Mol, melhor seria falar em ontologias, no plural, para marcar que as realidades são múltiplas. Não são plurais, são múltiplas. Não é que existam muitas formas de lidar e de falar sobre a realidade – porque, neste caso, haveria, como dissemos acima, uma única realidade, perspectivada diferentemente. Falar de multiplicidade implica, para Mol, um outro conjunto de metáforas. É preciso falar em intervenção e fazer existir (enact). Estas duas metáforas permitem falar de uma realidade que é feita, e não observada de longe. Permitem, ainda, falar de intervenção, interferência naquilo que Law indicou quando mencionou o manejo da presença, da ausência e da alterização. Se interferimos no mundo em que vivemos é para subverter o que conta como presença e o que é alterizado, tornado Outro. A intervenção nos coloca diante do fato de que nossas práticas não são neutras, elas são vetores que produzem Página 21
realidades. Da cegueira como déficit à multiplicidade das cegueiras O que tudo isso tem a ver com as pesquisas que realizo no campo da deficiência visual? Bom, leitor, como se diz na linguagem popular, tem tudo a ver. Nas primeiras linhas deste texto, eu interrogava a possibilidade de subverter um certo ordenamento que faz existir a deficiência como falta, como fracasso, como ineficiência. Onde esta realidade da deficiência como fracasso é produzida? Em que arranjos materiais ela é feita? No caso da bailarina, vimos que uma intervenção dirigida dos videntes para os cegos produzia a deficiência como ineficiência ou, com outras palavras, as singularidades, os interesses da menina no fazer a bailarina eram alterizados, deixados de lado, corrigidos. Tal concepção de deficiência como déficit é feita em diversas outras práticas cotidianas, em relatos de pesquisa, em publicações sobre deficiência visual. A fim de seguirmos algumas destas práticas, destaco o livro de Carroll (1968), intitulado Cegueira. Analisando o sumário, vemos que o autor define a cegueira através de 20 perdas, agrupadas em 6 blocos: perdas básicas em relação à segurança, perdas nas habilidades básicas, perdas na comunicação, perdas na apreciação, perdas relacionadas à ocupação e à situação financeira, perdas que implicam a personalidade como um todo. A segunda parte do livro é dedicada a indicar os modos de reabilitar e restaurar as perdas vividas pelos cegos. E, sobre esta reabilitação da pessoa que adquiriu a cegueira, o autor afirma que “a esperança de funcionamento normal como ser humano deve substituir a esperança de visão normal e a pessoa que ficou cega deverá ser auxiliada a recuperar as habilidades primárias” (Carroll, 1968, p. 84). O que me interessa destacar com a citação deste texto é que nele é colocada em ação uma concepção de cegueira que retoma alguns pontos do pacote do realismo euro-americano. Porque nele a cegueira: a) tem contornos bem definidos, delimitados através de 20 perdas; b) está atrelada a uma estratégia de intervenção pautada em princípios de reabilitação e restauração, tomando como norte o “funcionamento normal como ser humano” (Caroll, 1968, p. 84). Que realidade é produzida aí? Uma realidade da cegueira como algo dado, marcado pela perda de uma função sensorial e que convoca a uma prática restauradora, orientada por uma ambição de reconduzir a pessoa cega a uma normalidade perdida. Ora, leitor, parece-me que este discurso nos conduz a um tipo de prática de intervenção no cenário da deficiência visual que retoma aquela assimetria de que lhe falava no início do texto. Isto é, aquele que intervém para restaurar as perdas que marcam a cegueira está no lugar de quem detém o saber sobre o outro, sobre a pessoa com deficiência visual. Numa intervenção assim ordenada, acaba-se por produzir uma distribuição assimétrica de eficiência e deficiência, isto é, aquele que intervém o faz em nome da eficiência a ser alcançada; aquele que é “alvo” da intervenção aparece como alguém a quem falta eficiência. Moser (2000) indica que as práticas de reabilitação das pessoas com deficiência são, muitas vezes, orientadas por um princípio de normalização, por uma ambição de restituir às pessoas com deficiência a normalidade perdida. Orientadas por este parâmetro ideal de normalidade, as práticas de reabilitação, Página 22
inseridas no discurso da inclusão, não cessam de produzir, paradoxalmente, exclusão, marginalização e subalternização das pessoas com deficiência. “Medidas contra esta norma, as pessoas com deficiência serão sempre constituídas como Outro, como deficiente e dependente; elas nunca serão eficientes para qualificar-se como pessoas eficientes e competentes” (Moser, 2000, p. 201). Não se trata, com isso, de dizer que a reabilitação é nociva ou que toda reabilitação deve ser descartada. Trata-se, sim, de indicar que, em certas práticas orientadas pela ambição de fazer a pessoa com deficiência retornar à norma12, aí, nestas práticas, a deficiência é alterizada, é produzida como Outro – no sentido também sublinhado por Law (2003) – frente a uma normalidade a ser alcançada. Nestas práticas, a deficiência é, portanto, feita, ordenada como ineficiência, como falta, déficit. Resgato uma frase que está no início deste texto e que diz que a deficiência não é algo que uma pessoa é, nela mesma, mas algo em que ela se torna. Se colocarmos as práticas em primeiro plano, é possível seguir os múltiplos arranjos que fazem existir as cegueiras. Entendendo, leitor, que tal afirmação é ontológica, isto é, as cegueiras não existem em nenhum outro lugar senão em tais práticas, as cegueiras são feitas, dia após dia, hora após hora, em cada arranjo, em cada ordenamento que reúne coisas, pessoas, bengalas, tecnologias assistivas, políticas públicas. Insisto que não se trata de dizer que as cegueiras são plurais, porque dizer que são plurais é considerar ainda uma realidade feita de pequenas unidades separadas, discretas. O que é afirmado, ao contrário, é a multiplicidade das cegueiras. Por que multiplicidade? Porque tais modos de ordenar, de articular as cegueiras, se conectam, ora sobrepondo-se um ao outro, ora entrando em tensão, ora se coordenando e se conjugando. Para esclarecer o que quero dizer, sigo as conexões do texto de Carroll (1968) e noto que ele é base para outro texto, o Programa de Capacitação de Recursos do Ensino Fundamental: deficiência visual, documento publicado pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação Especial (MEC/SEE, Brasil, 2001), este último referência necessária no campo da educação e da reabilitação da pessoa com deficiência visual no Brasil. Ora, o texto de Carroll (1968) não é “apenas um texto”. É uma materialidade que produz efeitos, conecta-se, articula-se com outros textos, com outras práticas, produz, enfim, uma certa realidade da cegueira . Isto é, se seguimos as conexões do texto citado, vemos que ele é articulado a outras práticas, a outros cenários e que, por esta via, ele, de algum modo, concorre para estender a concepção de cegueira como déficit. A cegueira performada no texto de Caroll (1968) não vem sozinha: ela traz consigo modos e modulações de outros objetos e práticas. É justamente aí que se coloca a questão: há uma multiplicidade marcada por pontos de conexões, por articulações que alargam, ampliam uma certa concepção de cegueira . Sem dúvida, tais deslocamentos – traduções, como Latour (2001) os denomina – implicam derivas, traições, desvios. As conexões do texto de Carroll (1968) com o documento citado acima, publicado em 2001 pelo MEC/SEE, implicam desvios. Sublinhamos dois importantes deslocamentos que se fazem notar nas articulações entre estes dois textos. O primeiro diz respeito à própria concepção de cegueira. No trabalho de Carroll (1968), a concepção de cegueira Página 23
está diretamente atrelada a um discurso biomédico que a circunscreve ao corpo biológico e à falta da visão. Tudo o mais que caracteriza a cegueira é, em última instância, causado por esta marca corporal, ou seja, é um corpo “defeituoso” que produz todos os efeitos que o texto mapeia: perda da autoestima, perda da mobilidade, etc. Já no trabalho produzido pelo MEC/SEE, a esta concepção biomédica de cegueira é acrescida outra, social, que se faz notar em certas passagens do texto, como por exemplo quando se afirma, a respeito das atividades de Educação Física com pessoas com deficiência visual, que: "...podemos querer enquadrar as pessoas em padrões de movimento, mas esse objetivo, uma vez alcançado, reduzirá o papel da Educação Física frente ao projeto pedagógico que busca a formação do homem, sua autenticidade, originalidade, independência, flexibilidade e maneira particular de ser e estar no mundo (...) cabe dar conta do homem integral." (Brasil, 2001, p. 160) E mais adiante: "...as atividades propostas não devem ser desenvolvidas como treinamento ou mera instrução. Devem contemplar o nível de desenvolvimento, a liberdade de ação autoiniciada, privilegiando o movimento criativo. Dessa forma, elas favorecerão as descobertas e as oportunidades de integração social." (Brasil, 2001, p. 164) Assim, ainda que tomando como base o texto de Carroll (1968), o documento de 2001 produz um importante deslocamento da concepção de cegueira, fazendo-a existir numa versão biopsicossocial. É precisamente por isso que, num segundo deslocamento em relação ao texto de Carroll, este documento inclui as narrativas das pessoas com deficiência visual, o que aponta para um modo de ordenar a questão da deficiência visual levando em conta a participação e a reflexividade das pessoas que não enxergam. Neste ponto, parece-me que este texto abre a possibilidade de que a eficiência e a deficiência sejam diferentemente ordenadas e distribuídas, já que há mais atores em cena: o contexto social, as ações autoiniciadas, a criatividade, as narrativas das pessoas cegas e com baixa visão são atores importantes neste novo ordenamento da deficiência visual. E, mais uma vez, insisto, leitor, que este documento de 2001 é um texto de base para as práticas de reabilitação com pessoas com deficiência visual. Então, nesse texto, a deficiência já não é mais circunscrita ao corpo individual, mas é ampliada, envolve outros agentes, outros atores. No volume que está em suas mãos, você, leitor, encontrará diversos textos que fazem proliferar outras cegueiras, longe da concepção que a reduz a um déficit ou falta. O que pulsa nos trabalhos que estão neste livro é a afirmação da multiplicidade das cegueiras, a potência inventiva das variações dos modos de existir sem ver. O que move as pesquisas realizadas pelos autores que se reúnem nesta coletânea é afirmar a possibilidade de intervir no cenário da deficiência visual para subverter o pacote do realismo euro-americano, propondo dispositivos de intervenção que redistribuam eficiência e deficiência de modo mais simétrico. Intervenções que nos ativem a todos, que tome as pessoas cegas como experts, como parceiras na construção do conhecimento. Página 24
Trata-se de afirmar a pesquisa como uma prática performativa que se faz com o outro e não sobre o outro. A expressão “PesquisarCOM”13 tem a dimensão de um verbo mais do que de um substantivo. Indica que, para sabermos o que é cegar, é preciso acompanharmos este processo em ação, se fazendo, na prática cotidiana daquelas pessoas que o vivenciam. O pesquisar com o outro implica uma concepção de pesquisa que é engajada, situada. Pesquisar é engajar-se no jogo da política ontológica. Que realidades produzimos com nossas pesquisas? Seguir os modos de ordenar a deficiência visual, acompanhar as versões de deficiência que são feitas (enacted) cotidianamente, seguir as pistas que tais versões abrem, trilhar pelas bifurcações, pelas variações, eis alguns dos pontos que norteiam o pesquisar com o outro e não sobre o outro. Interpelar o outro não como sujeito dócil, como um sujeito qualquer, mas antes, como um expert, como alguém que pode conosco formular as questões que interessam no campo da deficiência visual. Criar dispositivos de intervenção que ativem os outros, que nos engaje a todos num processo de transformação. Engajar-se na política ontológica é também tomar uma posição epistemológica, porque se trata de afirmar um conhecer situado, performativo, não neutro. Como subverter a concepção de deficiência como falta? Pelo que dissemos aqui, o que está em jogo não é o inconformismo. A subversão e a resistência se fazem nas práticas: justamente ali onde são tecidas, encenadas as múltiplas concepções de deficiência. Se a realidade não está dada, se não há uma realidade da cegueira, única, dada, “lá fora”, onde e como poderia ser diferente? Os textos reunidos neste volume procuram tecer outras versões de deficiência – e ainda, nas conexões que farão com outros livros, com outras práticas. Fazer existir a variação é uma questão política, uma questão de política ontológica. Em que mundo queremos viver? Que realidades queremos produzir? Fazer existir a diferença, a multiplicidade, neste momento usando computador, internet, papéis, textos, é um modo de resistir à normalização, aos processos que fazem existir a deficiência como falta. Política ontológica e deficiência visual: por um outro mundo comum No campo da política ontológica da deficiência, em particular da deficiência visual, não podemos deixar de reconhecer o importante papel que os Estudos sobre Deficiência – Disability Studies (Oliver, 1996) – desempenharam a partir dos anos 70 do século XX14. Trata-se de um movimento social, político e intelectual que ocorreu primeiramente nos países de língua inglesa e que consistiu numa insurgência das pessoas com deficiência contra qualquer concepção individualizante e biologizante da deficiência. A concepção de deficiência proposta por este movimento é a de um modelo social, isto é, a deficiência longe de ser uma falta ou uma falha corporal, é o efeito de uma opressão social, de uma sociedade excludente. O que se vê, no século XX, é uma passagem de uma sintaxe biomédica para outra, de viés político-emancipatório: a deficiência passa a ser tematizada no campo dos direitos humanos. Esse deslocamento de uma concepção de deficiência para outra se faz notar na articulação entre as publicações da Organização Mundial de Saúde (OMS) a respeito do tema e o Página 25
movimento dos Estudos sobre Deficiência. A OMS publicou, nos anos 80 do século XX, um documento intitulado International International Classification Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps (ICIDH), que foi revisto com a publicação, em 2001, de outro texto sobre o assunto, o International Classification of Functioning, Functioning, Disability and Health (ICF)15. Que mudanças existem entre um documento e outro? E que relevância isso tem para o que discutimos neste texto? O ICIDH, de 1980, estabelece uma relação de causalidade causalidade entre as perdas ou anormalidades corporais (impairments), (impairments), as restrições de habilidades provocadas pelas lesões (disabilities) e as desvantagens sociais que daí resultam (handicaps). (handicaps). Assim, leitor, para resumir, conforme este documento, a deficiência deficiência seria entendida no seguinte esquema: – anormalidades corporais (impairment) – restrições de habilidades (disability) – desvantagem social (handicap). Ora, o que está dito no esquema acima é que um corpo com lesões tem restrições de habilidades que levam a desvantagens desvantagens sociais. Mas observe, leitor: o que move essa cadeia causal é o corpo com lesão. Neste enfoque, portanto, a deficiência está situada no corpo, marcado pela lesão ou pela anormalidade. anormalidade. Este é o ponto de origem da deficiência, o que causa em última instância as desabilidades e as desvantagens sociais. Os Estudos sobre Deficiência (Oliver, 1996) se insurgem precisamente contra esta concepção de deficiência e contra a lógica causal que ela coloca em ação: na perspectiva de tais estudos, as desvantagens desvantagens sociais não são causadas pelas lesões corporais, mas antes por uma opressão social dirigida às pessoas com deficiência. deficiência. É importante sinalizar que tais documentos da OMS visam construir uma linguagem universal no que toca ao tema em questão, permitindo, por exemplo, a comparação entre dados de diferentes países, criando um solo comum para a concessão de benefícios, para a organização organização de serviços de saúde e cuidado. Assim, a revisão da concepção de deficiência presente no ICF é fundamental porque desnaturaliza desnaturaliza e politiza a questão. Sem dúvida, como indicam Diniz, Medeiros e Squinca (2007), o ICF é um dos efeitos da força política dos Estudos sobre Deficiência: com a revisão do documento da OMS, passou-se de uma classificação que tinha por base os corpos com lesões para uma concepção onde o que está em jogo é a relação entre o indivíduo e a sociedade. Assim, a deficiência deixa de estar atrelada a uma tragédia individual que se inscreve no corpo para ser um efeito das relações entre o individuo e o seu ambiente social. No enfoque do modelo social, o ICIDH despolitizava despolitizava a deficiência porque a reduzia, no final das contas, ao corpo, ao biológico. As desvantagens sociais tinham, no documento de 1980, um papel secundário. Assim, no documento de 2001, a revisão de termos ganha relevância política porque o que está em jogo é refazer as condições a partir das quais a deficiência deficiência é feita, é produzida como realidade. Não mais uma realidade estritamente biológica, mas, antes de tudo, uma realidade complexa, em que o biológico e o social interagem. Diniz, Medeiros e Squinca (2007) salientam que, no novo vocabulário proposto, deficiência16 (disability) passa a ser um conceito guarda-chuva, porque reúne as lesões corporais, as limitações de atividades e as restrições na participação. Mas o ponto fundamental é que deficiência (disabiltiy) passa a estar atrelada a uma experiência sociológica, Página 26
política, de opressão. Note, então, querido leitor, que temos aí uma mudança de rumo, uma virada: a deficiência é efeito, é o resultado de uma sociedade que exclui e oprime. Está claro para você, leitor, que essa controvérsia, que envolve também a escolha de termos, não é arbitrária, não é, de modo algum, algo a ser desconsiderado? desconsiderado? Na escolha dos termos há um jogo político fortíssimo, articulado articulado a um embate sobre o que contará ou não como realidade: política ontológica. Assim, na língua inglesa a expressão “disabled people” ganha força política porque reforça a ideia de “pessoas tornadas deficientes” por condições sociais opressoras. Este modelo social coloca em ação outros atores, inserindo no debate político a voz da pessoa com deficiência. Interessante Interessante notar que Oliver (1996) aponta que o modelo biomédico, individualizante da deficiência, está inserido numa certa lógica de cuidado e de assistência que toma a pessoa com deficiência como objeto passivo, alvo de intervenções cujas autorias tendem a fugir-lhes. Assim, Oliver (1996) destaca que, em muitas das práticas de cuidado vigentes ainda no século XX, as pessoas com deficiência tomam tomam o lugar do doente/paciente. doente/paciente. É neste sentido que ele afirma que a própria noção de reabilitação está, muitas vezes, imbuída de valores individualizantes individualizantes e biologizantes, biologizantes, fazendo-se notar nas práticas de psicólogos, médicos, assistentes sociais e outros agentes de cuidado que tomam o outro como alvos de suas intervenções. Desse modo, Oliver (1996) e outros autores no campo dos Estudos sobre Deficiência, entram no jogo da política ontológica para definir uma outra realidade da deficiência, de modo a produzir diferentemente as distribuições de eficiência eficiência e deficiência. Não se trata mais de demandar benefícios assistencialistas, assistencialistas, mas de lutar por plenos direitos, por igualdade de oportunidades de trabalho e educação. Na esteira deste movimento, produziram-se outras realidades para a deficiência. deficiência. No entanto, ainda que considerando a extrema relevância política do modelo social da deficiência, o que me parece um desafio ainda aberto é lidarmos com este tema não mais buscando apenas uma identidade, seja ela natural, biológica ou social. Porque, se é certo que os Estudos sobre Deficiência deslocam deslocam a questão da deficiência para outro cenário, também é certo que este movimento ainda se pauta numa concepção de deficiência cujo norte é uma identidade social: a sociedade é que é excludente. A pergunta que levantei neste texto consistiu justamente justamente em interrogar o campo dos estudos e das práticas relacionados relacionados à deficiência, em particular à deficiência visual, longe de qualquer princípio identitário, longe de qualquer essencialismo. essencialismo. A guinada para a prática, de que falei anteriormente, nos coloca diante do desafio metodológico e político de lidar com a deficiência como multiplicidade, de seguir seus ordenamentos em ação, ali e acolá, e de fazer existirem outras definições de homem e de norma, definições mais amplas, mais heterogêneas, mais híbridas. Se, neste momento em que me aproximo da conclusão deste artigo, retomo a pergunta que levantei no início – que realidade fazemos existir com nossas práticas? –, é para afirmar que o que pulsa nas pesquisas que realizo e naquelas que estão neste livro não é a ambição de encontrar uma definição última de deficiência visual, não é o desejo de demarcar o “universo” da deficiência visual. Mas antes, o que fervilha entre estas linhas é a afirmação de um multiverso, isto é, um mundo livre das unificações Página 27
prematuras (Latour, 2002b), mundo comum porque múltiplo e heterogêneo. A composição deste mundo comum nos engaja na difícil tarefa de produzi-lo, a cada dia, em nossas práticas de pesquisa, nos momentos em que decidimos o que conta ou não como “dado” de pesquisa, no momento em que nos engajamos na prática de relatar aquilo que nós pesquisamos. Pesquisar é, neste sentido, engajar-se numa política ontológica que, em última instância, produz o mundo em que vivemos. Por isso, leitor, o convite que te faço é ambicioso: convido-te a ler os textos que se seguem, ciente de que eles foram tecidos, amarrados, conectados por um coletivo que se colocou como desafio refazer as condições de pesquisar no campo da deficiência, entendendo que o que está em jogo não é tanto observar o objeto de estudo, mas performá-lo, fazê-lo existir. notas: 5 Refiro-me ao Projeto de Pesquisa e Extensão Perceber sem Ver, por mim coordenado, cujo início ocorreu no ano de 2003 e que continua em andamento até os dias de hoje. O projeto é financiado pela Faperj e pelo Cnpq. 6 Na literatura brasileira sobre de deficiência visual, destaco Masini (1994) e Belarmino (2004) que apontam para este mesmo problema, lançando mão de discussões bastante pertinentes nesta área. Remeto o leitor também aos textos de Kastrup; Pozzana; Tsallis et al., incluídos nesta coletânea. 7 Sobre o visuocentrismo, como um modo de agir e conhecer centrado no sentido da visão, veja Belarmino, 2004. 8 Para mais detalhes sobre este caso, ver Moraes (2008, 2007). 9 Neste ponto, é importante considerar que as argumentações de Law não seriam possíveis sem a contribuição de autores como Latour (1987, 1994, 1997, 2001, 2002a, 2002b, 2002c) e Foucault (1984, 2000), os quais, cada um a seu modo, problematizam e colocam em xeque isso que se definiu como realismo euro-americano. euro-americano. 10 Stengers comenta sobre a guinada prática: “Após a virada linguística fala-se hoje na América da virada prática (...) trata-se destacadamente de deixar de de lado a relação relação polêmica organizada em torno das vinhetas epistemológicas confrontando confrontando os fatos prontos e as teorias” (Stengers, 2006, p. 61). 11 Ver: http://dictionary.reference.com/browse/enact 12 Martins (2 (2006) re retoma Fo Foucault (1 (1984) pa para tr traçar a história destas práticas de reabilitação em suas articulações com a hegemonia da normalidade que, desde o século XVIII, marca as apreensões sócio-culturais da cegueira como deficiência deficiência visual. Neste sentido, o autor afirma que a partir do século XVIII “identifica-se “identifica-se o nascimento de um investimento na cegueira marcado claramente pelos discursos e práticas da medicina, vocacionado vocacionado a negligenciar as condições sociais mais amplas da vivência da cegueira e a privilegiar os discursos de profissionais em detrimento da reflexividade das pessoas cegas. Estamos perante uma lógica médica que funda um investimento de saberes sobre a cegueira que, na impossibilidade da cura, propõe a reabilitação e, na impossibilidade da adesão à norma, propõe a possível supressão do desvio, com a perene subalternidade que daí advém”. (Martins, 2006, p. 85) Página 28
13 Cf também Moraes, 2008; Alvarez e Passos, 2009; Pozzana e Kastrup, 2009. 14 Cf. o artigo de Bruno Sena Martins inserido nesta coletânea. 15 Para a argumentação que se segue foi fundamental a leitura de Diniz, Medeiros e Squinca (2007) e de Farias e Buchalla (2005). 16 A tradução destes termos para o português é controvertida. Farias e Buchalla (2005) apresentam uma definição de termos distinta daquela proposta por Diniz, Medeiros e Squinca (2007). Estes últimos autores criticam a tradução do ICF para o português, coordenada por Buchalla, na opção que se fez por traduzir disability por incapacidade. Para Diniz, Medeiros e Squinca (2007), o uso termo disability não foi casual, foi uma provocação à tradição biomédica que, durante séculos, circunscrevia a deficiência como desvio por relação à norma. Para estes autores, havia um objetivo político por traz da escolha do termo disability para compor o ICF: a questão era desestabilizar a hegemonia biomédica. Neste sentido, discordando de Farias e Buchall (2005), Diniz, Medeiros e Squinca (2007) propõem a tradução de disability por deficiência. Em nossos trabalhos, optamos também por esta tradução. Referências bibliográficas: ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS, E.; KASTUP, V.; ESCÓSSIA, L. Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009. BELARMINO, J. Aspectos comunicativos da percepção tátil: a escrita em relevo como mecanismo semiótico da cultura. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004. BRASIL. Programa de Capacitação de Recursos do Ensino Fundamental: deficiência visual, Ministério da Educação/Secretaria de Educação Especial, conteudistas Marilda Moraes Garcia Bruno e Maria Glória Batista da Mota, 2001. CARROLL, T. Cegueira. São Paulo: Campanha Nacional de Educação dos Cegos do Ministério da Educação e Cultura, 1968. DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DESPRET, V. Hans, Le cheval qui savait compter. França: Les Empêcheurs de Penser en Rond-Seuil, 2004-a. __________. The body we care for: figures of anthropo-zoo-genesis. Body and Society, 10 (2-3), p. 111-134. 2004-b. __________. Lecture ethnopsychologique du secret. Deux parties. Texto apresentado no Ciclo de Conferências As Ciências da Emoção e a Clínica na Contemporaneidade. UERJ, 2009. mimeo. __________. Ces émotions que nous fabriquent. Paris: Lês empecheurs de penser en rond, 1999. Página 29
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Atualizando virtualidades: construindo a articulação entre arte e deficiência visual17 Virgínia Kastrup Entender a cognição das pessoas cegas em sua positividade, ou seja, analisar suas singularidades para além da visão negativa da deficiência, é um problema ao mesmo tempo teórico e político. Como aponta Zina Weigand (2008), a representação negativa do cego é muito antiga. Desde a Idade Média, as fábulas e o teatro profano trazem a figura do cego bufão, desajeitado e grosseiro, bem como do cego mendigo, geralmente acompanhado de um guia. Também é muito comum a figura do falso cego, que explora a caridade das pessoas. Tais personagens podem inspirar o riso, o terror, a repugnância ou a compaixão. Muitas vezes a ausência de visão simboliza o obscurecimento da inteligência e mesmo uma cegueira moral. De modo geral, a cegueira vem associada a uma condição degradante, à pobreza, a viver pedindo nas ruas e na porta das igrejas. Outras vezes, o cego é apresentado como uma pessoa dotada de uma vidência especial e de uma capacidade mística. Há incontáveis aplicações metafóricas do termo cegueira no domínio do conhecimento e no domínio moral, significando confusão do juízo, privação da reflexão, do discernimento e da razão. Neste contexto, a pintura de Brugel A parábola dos cegos, que data do século XVI, é um caso exemplar. O quadro traz uma fileira de homens cegos, dotados de um olhar vazio e de um andar vacilante e inseguro. Vão amparados uns nos outro. Cegos conduzindo cegos, a impressão é que todos vão tombar num precipício. A parábola dos cegos é a parábola de uma conduta insensata, sob a égide do cegamento do espírito. A obra faz referência à heresia e ao distanciamento da fé religiosa, mas até hoje constitui uma imagem forte, que provoca arrepios e horror. Embora seja possível perceber mudanças na representação da cegueira na atualidade, ainda prevalece uma visão negativa, com ênfase na deficiência. Acreditamos que a arte e a experiência estética podem ser fortes aliadas para a mudança desse cenário. A experiência estética não se define pelo objeto ao qual ela corresponde – uma obra de arte, por exemplo – nem pelo traço especial da beleza. Também não é aquela meramente divertida ou que gera entretenimento. A experiência estética é caracterizada por uma certa qualidade da sensação e está mais próxima do estranhamento e da problematização do que da mera experiência de reconhecimento. Ela afeta, surpreende, mobiliza, espanta, faz pensar e provoca uma suspensão na nossa maneira habitual de perceber e viver. Ela coloca a cognição – habitualmente voltada para a vida prática, a recognição e a solução de problemas – num estado especial, transpondo seus limites ordinários. Pode produzir tanto interesse e aproximação quanto afastamento e repulsa. No primeiro caso, ficamos absortos e ocorre a fruição da experiência estética; no segundo, nos distanciamos, buscando segurança naquilo que é conhecido e trivial, evitando o movimento de saída de si. A maioria dos artistas e filósofos, como é o caso de Bergson (2006a; 2006b), Merleau-Ponty (1984), Dewey (1980) e Deleuze (s/d; Deleuze e Guattari, 1993) concordam que a experiência estética não ocorre apenas frente a obras de arte, mas irrompe no seio na vida, Página 32
sempre que ela deixa de ser uma banalidade. No entanto, a arte produz, de modo especial, experiências estéticas. A arte faz ver, amplia a percepção. De todo modo, não devemos colocar a arte num campo de transcendência, nem a experiência com a arte num âmbito restrito a seres supostamente especiais – aqueles que possuem cultura, no caso dos apreciadores, ou genialidade, no caso dos artistas. A apreciação de uma obra de arte depende menos de ter cultura do que de uma percepção sensível. Por sua vez, as oficinas de práticas artísticas nos campos da saúde mental, dos trabalhos comunitários e das deficiências têm dado provas do quanto os processos de criação podem produzir resultados surpreendentes. A arte pode abrir caminhos e perspectivas inusitadas inusitadas para pessoas com deficiência visual, tanto cegas quanto com baixa visão. Isto vale tanto para as que já nasceram cegas quanto para aquelas que vieram a perder a visão precoce ou tardiamente. No caso de pessoas com deficiência visual adquirida, ter a vida atravessada pela perda da visão, de forma súbita ou insidiosa, é na maioria das vezes uma experiência radical que pode produzir, em certos casos, efeitos devastadores, que podem se prolongar por meses e até anos. Como relata um homem que entrevistamos: “Quando me aconteceu esse problema da visão, foi de uma hora pra outra. Não foi assim, de ter um pouquinho e levar um susto amanhã, não. Foi na hora. Aí eu fiquei mais traumatizado com isso. (...) Aí eu não vi mais. (...) Então eu fiquei muito tempo lá, fiquei uns quatro anos jogado no sofá. O sofá chegou a ficar com um buraco onde eu estava sentado”18. A experiência da perda da visão pode assumir a extensão de uma experiência de perda generalizada, generalizada, ou seja, o sentimento de que tudo foi perdido: a alegria, o trabalho, mas também a dignidade e a autonomia, enfim, o lugar no mundo. Mais do que perda da identidade, experimenta-se, muitas vezes, a perda do mundo a seu redor, pois a interrupção de rotinas leva consigo uma rede de relações e, enfim, grande parte das conexões com o mundo. As pessoas sentem-se solitárias e atingem um grau de extrema vulnerabilidade. Com as referências anuladas, tudo parece liquidado (Kastrup, 2008). Como aponta L. Vygotsk (1997), as pessoas que nascem cegas não sofrem diretamente a experiência da perda, mas, habitando um mundo cujos códigos sociais e demais parâmetros utilizados na vida diária são na maioria das vezes visuais, não tardam a ter a experiência da deficiência. A plenitude de sua vida e a amplitude de seu território existencial depende bastante dos cuidados e da estimulação que recebem, bem como das oportunidades que lhes são oferecidas. Se elas são insuficientes ou ausentes, corre-se o risco de um desenvolvimento comprometido e de uma vida às vezes extremamente limitada (Hatwell, 2003). Como entender a potência da arte em lançar a pessoa para além de seus atuais limites? Como trazer à cena outras atualizações da subjetividade da pessoa cega ou com baixa visão, que vão além da deficiência? Como fazer perceber que a pessoa que não dispõe da visão não cabe na crosta identitária do deficiente, mas compreende outras virtualidades? Nosso objetivo é colocar esses problemas, que nem sempre fazem parte dos estudos no campo da deficiência visual e não são, de modo algum, triviais. É, em seguida, buscar solucioná-los por meio de uma discussão teórica que passa pela filosofia de Bergson, pelos estudos da produção da subjetividade de Deleuze e Guattari e pela psicologia da arte e da deficiência visual, sempre tomando como base a abordagem da Página 33
cognição inventiva (Kastrup, 2007a). O virtual e o atual Para entender o papel da arte na ampliação da percepção, tanto de cegos quanto de videntes, lançamos mão do conceito de virtual proposto pelo filósofo Henri Bergson. O conceito de virtual visa dar conta de um real que se define como duração, em oposição à concepção de um real pré-formado, todo feito desde sempre. O conceito de duração aponta o caráter temporal do real – incluídos aí a subjetividade e o mundo – sublinhando sublinhando sua dimensão criadora. Bergson formula uma ontologia criacionista, onde o virtual é uma espécie de todo aberto, que se atualiza de diferentes maneiras, configurando diferentes formas. Isto significa que as formas existentes no presente só podem ser entendidas se nos colocarmos, de saída, no virtual (Bergson, 1990, p.111). Pensando através do par virtual-atual, Bergson Bergson dá elementos conceituais para um entendimento da invenção e reinvenção das formas que não se confundem com a realização realização de possíveis. Se pensarmos com o par possível-real, consideramos consideramos a invenção e reinvenção de formas – objetivas e subjetivas – como um processo de realização. Procurando distinguir a atualização de virtualidades da realização de possibilidades, Gilles Deleuze esclarece que "o processo de realização é submetido a duas regras essenciais, aquela da semelhança e aquela da limitação" (Deleuze, 1991, p. 100). Tudo aquilo que existe no presente seria a realização de uma das possibilidades pré-existentes pré-existentes num conjunto fechado e dado de antemão. Não haveria verdadeira criação, mas apenas limitação e seleção a partir de uma totalidade marcada marcada por limites que não podem ser ultrapassados. Ao contrário, a atualização tem por regras a diferença, ou a divergência, e a criação. Podemos dizer que a atualização de virtualidades é um processo de diferenciação, cujo resultado não estava dado de antemão. Nesta direção, podemos pensar atualizações efetivamente novas, que não estavam contidas num conjunto de possíveis pré-existentes. pré-existentes. Quando se trabalha com o par virtual-atual, virtual-atual, deve-se pensar também o movimento inverso – a virtualização – que vai do atual ao virtual. Falamos em virtualização quando as formas constituídas se desmancham e involuem na direção ao todo aberto de onde emergiram. Ao serem lá relançadas e banhadas novamente na virtualidade, abrem-se abrem-se a novas transformações, transformações, continuando seu processo de criação e modificando também as próprias condições de invenção de novas formas. Conforme veremos, a experiência estética coloca a subjetividade num processo de virtualização, virtualização, acionando processos de criação e de diferenciação. Nesta medida, tal experiência experiência promove a virtualização ou a problematização problematização da subjetividade. subjetividade. No caso das oficinas de práticas artísticas, a potência da arte não se esgota no domínio técnico sobre uma certa matéria: argila, argila, música, o próprio corpo, etc. Por outro lado, na apreciação apreciação estética, a finalidade não é o acúmulo de saber e de cultura. Em ambos os casos, a formação profissional é uma possibilidade, mas não é o objetivo maior da experiência com a arte. O mais importante é que, acessando virtualidades, novas atualizações da subjetividade podem ter lugar. É comum que a falta da visão produza um efeito de Página 34
totalização da subjetividade. A pessoa cega é percebida, sobretudo pelos videntes, apenas pelo limite de sua deficiência. No entanto, há duas maneiras de lidar com o limite. A primeira é considerar o limite como algo que não pode ser transposto. A segunda é tomar o limite tendo em vista sua transposição. Seguindo a segunda direção, os estudos sobre produção de subjetividade de Deleuze (1990) e Guattari (1987; Guattari e Rolnik, 1986) convidam a um entendimento de pessoas cegas e com baixa visão para além dos limites de sua deficiência e da crosta identitária que constitui a camada mais externa e endurecida de sua subjetividade. Convidam também ao desenvolvimento de dispositivos e estratégias, estratégias, no campo das práticas artísticas e da apreciação estética, que possam efetivamente acionar processos processos de reinvenção de si e do mundo, incluindo num mesmo coletivo, comum e heterogêneo, cegos e videntes. A produção de subjetividades coletivas: coletivas: a arte como estratégia de alterização Nos últimos anos, o conceito de subjetividade tem sido objeto de uma série usos equivocados. Muitas vezes ele é confundido com a noção de sujeito – a qual ele visa tirar de cena –, com a noção de psiquismo – que porta uma referência referência psicológica e internalista que ele não possui – e mesmo com a noção de indivíduo – que não apenas lhe é distinta, mas mesmo antagônica. Em seu sentido mais preciso, o conceito de subjetividade, subjetividade, tal como foi formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, é indissociável da ideia de produção (Deleuze, 1992; Guattari e Rolnik, 1986; Guattari, 1993). A subjetividade é produzida por vetores múltiplos e heterogêneos: políticos, culturais, econômicos, ecológicos, fisiológicos e tecnológicos, dentre outros. A novidade do conceito de subjetividade é conferir à subjetividade um caráter de produção e uma dimensão coletiva (Guattari, 1992; Escóssia, 2004; Kastrup, 2007a). Muitas vezes imagina-se que dar conta da dimensão coletiva da subjetividade é reconhecer sua constituição a partir de fatores sociais: modelos instituídos de conduta, padrões de ação legitimados, regras e representações sociais. De acordo com tal perspectiva, as interações sociais modelam os indivíduos e conferem às subjetividades características de semelhança semelhança e identidade. Este modo de pensar caracteriza o construtivismo social. De acordo com tal perspectiva, a subjetividade é feita de uma espécie de estofo social, onde os laços sociais constituem constituem o único ingrediente na fabricação dos fatos subjetivos. subjetivos. Considera-se que normas, leis jurídicas, a economia, a mídia e o mercado proveem uma grade de construção da subjetividade. Segundo Bruno Latour (2002), o construtivismo social tem a vantagem de superar o naturalismo, ou seja, o realismo fundado nas leis da natureza, mas conduz a uma falácia, pois, conferindo aos laços sociais o estatuto de coisas, dá lugar a uma espécie de realismo social. Latour argumenta que é o processo de sua produção que é social, e não a matéria de que são feitos os fatos. Sublinha, então, que é preciso distribuir melhor os papéis desempenhados pelos diversos atores que participam desse processo, incluindo aí pessoas e coisas. Para Guattari (1992), a produção de subjetividades coletivas não depende apenas de relações sociais. A mera existência de Página 35
relações sociais nada garante. Se tais relações são fundadas na identidade, ou seja, apenas em laços familiares, em ideias comuns ou em regras compartilhadas, as outras pessoas não chegam a constituir elementos de alteridade. O outro não é, na verdade, um outro, mas uma outra versão do si-mesmo. Na obra de Deleuze e Guattari, o conceito de subjetividade coletiva é entendido em dois níveis: o aquém e o além do indivíduo. Cito palavras de Guattari: “o termo coletivo deve ser entendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afectos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos” (Guattari, 1992, p. 20). O nível aquém do indivíduo corresponde ao plano das forças, linhas e vetores heterogêneos – políticos, econômicos, fisiológicos, artísticos, tecnológicos, linguísticos, ecológicos, etc. – que participam da produção da subjetividade. O nível além do indivíduo é o nível social, aí compreendidos os grupos, as comunidades e as instituições. O conceito de subjetividade coletiva deve ser entendido a partir de relações de alteridade, as quais não se limitam a relações com pessoas, mas incluem relações com coisas e a própria relação consigo. Quanto a este último ponto, é preciso sublinhar que a alteridade não é algo que se encontra exclusivamente no exterior, ou seja, não se define espacialmente, por uma lógica binária interior-exterior. Ela é, antes, um plano que perpassa o interior e o exterior, atravessando a subjetividade e o mundo. A noção de alteridade encontra suas raízes na fenomenologia de Husserl, para quem ela é a estrutura fundamental da consciência. Segundo Natalie Depraz (1994), a alteridade é algo que não se dá diretamente à percepção e à consciência, mas podemos acedê-la através de uma relação consigo em que a atenção incide sobre algo cuja percepção direta é difícil, problemática. Mesmo assim, pode haver, através da apercepção, um devir-consciente da alteridade que nos habita de modo inconsciente. François Zourabichvili (2004, p. 18-19) aponta um limite da fenomenologia pelo fato dela pensar a alteridade apenas em seu aparecer na consciência, em seu movimento de gênese, não destacando que a alteridade possui a potência da diferenciação da subjetividade, de devir-outro, que aponta mais diretamente para sua inclinação plural e coletiva. Nem sempre acessamos a alteridade que existe em nós. Às vezes é difícil para nós, videntes, perceber que não somos uma identidade perfeita, que não somos iguais a nós mesmos, que a cisão, a contradição, a ambiguidade e a incompletude nos habitam. No entanto, somos efetivamente cindidos, contraditórios, ambíguos, incompletos e imperfeitos. Às vezes também é difícil perceber que a alteridade que nos habita não é a nossa fraqueza, mas a nossa força, já que é por essa diferença interna que somos capazes de transpor nossos limites e experimentar a fecundidade de processos de transformação que nos lançam para além de nós mesmos. Por isso, a experiência dessa alteridade em nós mesmos, dessa diferença interna, é condição para a abertura à diferença do outro. A subjetividade é coletiva pelas relações de alteridade que estabelece consigo mesmo e com o mundo. Nesta medida, o caráter coletivo da subjetividade não se limita a um problema teórico. A subjetividade é mais ou menos coletiva, dependendo do modo como ela se configura em formas concretas. Guattari afirma: “em certos Página 36
contextos sociais e semiológicos a subjetividade se individua: uma pessoa, tida como responsável por si mesma, se posiciona em meio a relações de alteridade regidas por usos familiares, costumes locais, leis jurídicas. Em outras condições, a subjetividade se faz coletiva, o que não significa que ela se torne por isso exclusivamente social” (Guattari, 1992, p. 19-20). Podemos dizer, então, que as subjetividades podem se orientar no sentido do individuo ou no sentido do coletivo. A subjetividade individualizada se define por uma identidade e se afasta do plano virtual de onde emergiu. Preponderam relações de tipo homogêneo e que dão lugar a experiências de recognição. Já a subjetividade coletiva mantém ativas suas conexões com o plano virtual e busca relações de tipo heterogêneo. A relação com a alteridade e o encontro de diferenças produz uma tensão que é criadora. É importante sublinhar que, por mais que uma subjetividade seja individualizada, ela pode reconectar-se com o plano virtual. As experiências artísticas de alterização são recursos de que lançamos mão para viabilizar a passagem da subjetividade individualizada para a subjetividade orientada para o coletivo. É importante insistir que a subjetividade pode tornar-se coletiva tanto através de relação com pessoas quanto com coisas, ambas passando por uma relação consigo mesmo e com o plano de alteridade onde o coletivo se faz presente em nós. Não é suficiente relacionar-se com outras pessoas sem perceber sua diferença. É preciso constituir o outro como outro. Por outro lado, não ver a diferença como inferioridade depende da capacidade de encontrar em si sua própria alteridade, ou seja, algo que está presente como um outro em mim. Do ponto de vista dos estudos da produção da subjetividade, a alterização é um movimento de saída de si, ou seja, do domínio das vivências subjetivas, da história pessoal, das preocupações egóicas e do julgamento, enfim, da posição de recognição. Nesta medida, o movimento de alterização constitui o encontro com uma outra dimensão da subjetividade, que constitui seu plano coletivo de produção. O encontro com a alteridade que nos habita é, muitas vezes, acionado por uma experiência de estranhamento e problematização, tal como acontece na experiência estética. Trata-se aí de uma experiência limite, onde a polaridade sujeito-objeto se desmancha momentaneamente. Mas tal desmanchamento não relega tais experiências a um estatuto de mera desconstrução, pois, mesmo considerando que elas desconstroem, em certa medida, a subjetividade constituída, são produtoras de novos arranjos e, enfim, de uma outra política de relação consigo e com o mundo. Nesta direção, tomarei tanto as oficinas de práticas artísticas quanto a apreciação estética em seu papel de atualização de virtualidades da subjetividade. Sobre as oficinas de práticas artísticas As oficinas de práticas artísticas têm sido amplamente utilizadas como dispositivos de produção de subjetividade em campos os mais diversos. Dentre eles, podemos destacar seu lugar na chamada reabilitação de pessoas com deficiência visual. Sua função, muitas vezes, é apresentada como sendo a de ocupação do tempo e de saída da ociosidade; outras vezes, é a capacitação profissional que ganha destaque. Embora essas funções não sejam estranhas ao dispositivo oficina, não tocam o ponto essencial. Em Página 37
nosso entendimento, o que caracteriza, em primeiro lugar, a oficina é que ela é um espaço de aprendizagem inventiva. A aprendizagem inventiva (Kastrup, 2007a) não se resume a um processo de solução de problemas, mas inclui a invenção de problemas, ou seja, a experiência de problematização. Também não equivale a um processo de adaptação a um mundo pré-existente, mas consiste na invenção de si e do o próprio mundo. Em segundo lugar, as oficinas são espaços de fazer junto. Trabalha-se em grupo num processo de criação coletiva. Em terceiro lugar, o processo de aprendizagem inventiva se faz através do uso da arte, que envolve o trabalho com materiais flexíveis, que, por sua vez, se prestam à transformação e à criação. Os participantes da oficina estabelecem com tais materiais agenciamentos, que são relações de dupla captura (Deleuze e Parnet, 1998), se transformando ao mesmo tempo em que transformam tais materiais. Numa pesquisa sobre o funcionamento da atenção durante processos de criação em portadores de deficiência visual adquirida, numa oficina de cerâmica do Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, tivemos ocasião de verificar que, além da atenção à argila, há uma dimensão da atenção que surge como atenção a si (Kastrup, 2008). Este “lado de dentro da experiência” surge como suporte explicativo para o fato do trabalho na oficina produzir também efeitos notáveis de produção de subjetividade ao mesmo tempo em que ocorre a produção das peças de cerâmica. Neste caso, o processo de criação é, ao mesmo tempo, um processo de autocriação. A oficina de cerâmica funciona desenvolvendo estratégias de alterização que produzem subjetividades coletivas na medida em que o barro, em sua dimensão de alteridade, aciona no aprendiz experiências de estranhamento e problematização que ocorrem no plano pré-egóico. A prática da cerâmica aciona afetos impessoais, que não se confundem com sentimentos e emoções subjetivas (Deleuze e Guattari, 1993). O encontro com o barro é também ocasião para o encontro consigo mesmo, com as forças de alteridade que habitam o próprio aprendiz de ceramista. No processo de trabalho regular utilizam-se rotinas cujo objetivo é criar um campo estável de sedimentação e acolhimento de experiências afetivas inesperadas, que fogem ao controle do eu. A regularidade dos encontros tem como efeito a criação de uma familiaridade com tais experiências e o aprendizado do acolhimento da alteridade em si e nos outros. É nesta medida que as oficinas de arte são estratégias muito potentes de produção de subjetividade. Clara Fonseca (2005; 2006), que coordena a oficina, afirma que dá aulas, mas não ensina nada. Não há nada a ser ensinado, pois “está tudo já com eles”. É neste sentido que afirmamos que a prática com a cerâmica virtualiza a subjetividade, produzindo, num movimento de vaivém, novas atualizações. Pelo lado de dentro da experiência, entra-se em contato com a alteridade do campo de forças moventes que habita a subjetividade, para além das formas aparentemente fechadas da identidade do eu. No caso dos cegos, a experiência da deficiência, produzida num mundo cujo paradigma é marcadamente visuocêntrico, é deslocada, dando momentaneamente lugar a uma experiência da potência e da invenção. No caso de pessoas que perderam a visão, o trabalho na oficina de cerâmica coloca em marcha um longo e laborioso trabalho de reinvenção de si e do mundo, cujos limites devem ser, dia após dia, ultrapassados. Quando a perda da visão abre a possibilidade de desenvolvimento de Página 38
processos de criação, esta perda pode acabar por acionar processos de reinvenção, atualizando outras virtualidades da subjetividade19. Virtualização e atualização são dois movimentos inversos e, ao mesmo tempo, complementares, que se articulam numa espécie de vaivém. Além de possibilitar o encontro com a matéria maleável do barro, o encontro com pessoas que mantêm diferentes relações com a cegueira e com as professoras ceramistas, a oficina é um espaço de aprendizagem inventiva na medida em que propicia o encontro com a virtualidade de si, produzindo a experiência concreta de invenção de si e do mundo. "Na atenção a si, numa espécie de autopercepção, o sujeito não toma a si como objeto. Não se duplica em observador e observado, mas experimenta uma atenção direta, que o conceito de awareness serve para nomear. Depraz, Varela e Vermersch (2003) falam em awareness e utilizam a expressão becoming aware para nomear esta experiência de encontro com a dimensão de virtualidade de si. A expressão não possui uma tradução exata para o português, aproximando-se de 'dar-se conta' ou de um ato de ciência, tal como comparece na expressão 'tomar ciência' de alguma coisa. O termo awareness guarda um sentido dinâmico, referindo-se a algo que atinge a atenção de modo direto e súbito, possuindo, além do sentido de registro, o de sua manutenção (Kastrup, 2006). Através do trabalho com a cerâmica, pessoas que vivem a experiência da perda da visão podem encontrar, em si mesmas, ou melhor, na virtualidade de si mesmas, recursos para reinvenção de sua história." (Kastrup, 2008, p. 193) Sobre a acessibilidade a obras de arte: o papel do mediador Uma outra entrada da arte na vida das pessoas cegas se dá por meio do acesso a museus, exposições e centros culturais. Temos ressaltado a necessidade de distinguir acessibilidade física e acessibilidade cultural, bem como entre acesso à informação sobre arte e acesso à experiência estética (Almeida, Carijó e Kastrup, 2010)20. É imprescindível o acesso à experiência estética, mas ainda há muito que se avançar em relação a este ponto. Há grande necessidade de expandir e qualificar, no Brasil, as políticas públicas, bem como as estratégias e dispositivos inclusivos para pessoas com deficiência visual. No cenário internacional, autores como Fiona Candlin (2003; 2004) têm ressaltado a necessidade de desenvolver projetos e políticas públicas que efetivamente contemplem a capacidade e a especificidade cognitiva dos deficientes visuais. Por exemplo, a mera adaptação de uma pintura à percepção tátil (através da equivalência entre cores e texturas) pode não ter qualquer sentido para uma pessoa cega congênita. Disponibilizar meia dúzia de esculturas ao toque numa sala separada também é uma política inclusiva muito limitada. Informações em braille sobre as obras e os artistas podem ser muito úteis. Disponibilizar essas informações é uma estratégia bem-vinda e mesmo necessária, mas não chega a propiciar a experiência com a obra de arte. Temos necessidade de políticas mais amplas e avançadas. Talvez sejamos obrigados a reconhecer que algumas obras criadas para serem vistas não se prestam efetivamente à percepção tátil direta. Por outro lado, a arte contemporânea, interativa e multissensorial, pode abrir um leque Página 39
interessante de possibilidades. São questões que se colocam, que precisam ser discutidas e fazer parte da nossa agenda21. Para isto, é preciso ter claro que os deficientes visuais serão os usuários de tais serviços, o que faz deles os principais avaliadores dos projetos de acessibilidade. Nesta medida, a construção de qualquer programa dessa natureza deve contar com cegos em sua equipe. Todavia, é importante ressaltar que, para que sua participação seja realmente efetiva, eles devem não apenas participar da avaliação dos resultados, depois do projeto pronto e já implementado, mas de todas as etapas de sua elaboração. Para que a ida a um museu possa dar lugar a experiências estéticas, temos que criar condições propícias para a apreciação das obras. A percepção estética é aberta e receptiva e, de modo geral, requer mais tempo do que a mera experiência de recognição. A experiência de recognição corresponde a uma resposta rápida e automática: isto é um pássaro, isto é uma cabeça. A experiência estética, ao contrário, implica numa suspensão. Ela consiste em se deixar impregnar pelo objeto percebido e em mergulhar nele com atenção, evitando a interrupção precipitada. Como acontece com qualquer pessoa, a visita de uma pessoa cega a um museu pode ser bastante enriquecida por um mediador qualificado. Habitualmente, a mediação é entendida como uma ponte entre a arte e o público, entre a obra e o percebedor, tomados como duas realidades pré-existentes. No entanto, Mirian Celeste Martins (2005) sublinha a necessidade de ir além de tal definição, propondo, no lugar da metáfora da ponte, o entendimento do trabalho de mediação como um “estar entre muitos”. De fato, há múltiplos vetores que compõem o cenário da mediação: a obra – original ou reprodução, com seus efeitos diversos; o artista – com seu processo de criação, sua história, seu contexto específico e o movimento ao qual está ligado; o público – com seu repertório pessoal e cultural; o curador; o museólogo; a mídia; as singularidades e repertórios dos próprios mediadores; tudo isto sem falar das circunstâncias e do momento em que aquela mediação acontece. Acrescenta, ainda, que todo público, em função de seu repertório, possui sempre necessidades especiais (Martins, 2005a, p. 7). A mediação pode acontecer em circunstâncias muito diversas. Pode haver preparação prévia, quando a visita é previamente programada. Neste caso, pode haver leitura de textos sobre o artista, o movimento ao qual está ligado, pesquisa na internet, orientada ou não, e diversas outras estratégias. O objetivo da preparação é criar uma atitude de curiosidade, disponibilidade e abertura para a apreciação da obra de arte. A mediação também pode se prolongar após a visita, com discussão e troca de impressões e de experiências. Para Martins, o objetivo da mediação é abrir brechas para o acesso à obra, devendo ser implementada de modo sensível, cuidadoso e fundamentado. As informações são importantes, mas não substituem o encontro do corpo com a obra, ou seja, a experiência direta. Enfim, a mediação é um convite a embarcar numa viagem estética, através de questões provocadoras, jogos perceptivos e troca de impressões, interpretações e proposições. O que se tem em vista é a qualidade da experiência estética e dos encontros que ocorrem no espaço dos museus, exposições e centros culturais. Martins acrescenta: “É por isto que uma atitude investigativa é vital. É com nosso olhar sensível e pensante, com a pele antenada, com o corpo receptivo, que nos deixamos capturar para o diálogo com o que o museu nos presenteia” Página 40
(Martins, 2005b, p. 14). Sublinha, por fim, que os mediadores jamais devem fornecer chaves únicas de leitura, ainda que baseados num livro ou manual de história da arte, nos advertindo do perigo de colocar na voz do mediador uma interpretação que seria a única correta. Sua conclusão é que, em última análise, mediar é “criar espaços de recriação da obra” (idem, p. 18). Superando a metáfora da ponte, a mediação é concebida como uma intricada rede envolvendo uma diversidade de atores, cuja amplitude e complexidade varia e deve ser inventada caso a caso. No caso da mediação voltada para pessoas com deficiência visual, não há regras pré-definidas. No entanto, é possível enumerar algumas pistas para sua implementação, que dizem diretamente respeito à formação do mediador. Em primeiro lugar, é fundamental que o mediador esteja advertido de que não existe “o cego”, mas que o campo da deficiência visual inclui pessoas muito distintas. Há uma primeira grande distinção entre cegos e portadores de baixa visão, que possuem funcionamentos cognitivos distintos e, por isto, vão exigir estratégias mediadoras diferenciadas. Existem também profundas diferenças entre a cegueira congênita e a cegueira adquirida e, no segundo caso, entre cegos precoces e tardios. Quem nunca viu não possui a percepção da perspectiva e da sobreposição de diferentes planos. Por exemplo, quando vemos uma paisagem, os objetos distantes aparecem com um tamanho menor do que aqueles mais próximos. No entanto, do ponto de vista da percepção visual, a constância de tamanho é mantida. O mesmo vale para a forma e o brilho. Para um cego congênito, cuja plataforma perceptiva é eminentemente tátil, isto não acontece. Já a pessoa que ficou cega mantém e utiliza sua memória visual, com uma nitidez e uma eficiência que depende do momento em que a visão foi perdida. Todas essas diferenças, que dizem respeito a um funcionamento cognitivo peculiar, são significativas e têm consequências para a percepção e a atenção mobilizada na experiência estética. Também não devemos nos esquecer de que há pessoas cegas que sequer foram alfabetizadas, enquanto outras têm formação superior e mesmo diploma de pós-graduação em diferentes áreas do conhecimento. Como qualquer outra pessoa, algumas têm interesse por arte e outras, nem tanto. Algumas conhecem muito bem literatura, outras gostam de ir a museus, a concertos e de assistir filmes. Outras sequer tiveram a oportunidade de entrar em contato com certas manifestações artísticas. Há também aquelas que efetivamente não se interessam por este domínio como, aliás, muitos videntes. Pensando que nossos desejos, interesses e todo tipo de conexão com o mundo depende de um processo de produção, é certo que a implementação de processos culturais inclusivos deve ter em conta o problema da formação do público. O que se deve ter no horizonte é o aumento do público com deficiência visual nos museus, exposições e centros culturais. É necessário também conhecer algumas das características do funcionamento cognitivo do tato. Distinto da visão, que é um sentido gestáltico e de apreensão imediata da forma, o tato é um sentido que se dá por fragmentos sucessivos. Para a apreensão da forma, a percepção háptica, que é o tato exploratório, envolve as mãos e os braços, o que requer uma atenção sustentada e a mobilização da memória de trabalho. Por este motivo, a percepção tátil possui, em geral, uma velocidade mais lenta, que contrasta com a instantaneidade da visão. Por sua vez, o tato é Página 41
especialmente sensível a materiais, texturas, peso e temperatura, o que pode e deve ser explorado no contato com as obras de arte22. É preciso estar advertido de que os deficientes visuais têm a atenção bastante voltada para os demais sentidos, sobretudo para o tato. Cegos adquiridos, sobretudo os tardios, têm que aprender a redirecionar a atenção que habitualmente é investida na visão (Carijó, Almeida e Kastrup, 2008). Se uma pessoa se encontra neste momento, sua apreciação tátil de uma obra de arte pode demandar um tempo maior de exploração, que não deve ser apressado ou interrompido. Um outro item a ser observado é que jamais devemos privar um cego da experiência estética, antecipando com palavras aquilo que ele pode perceber diretamente. De modo geral, em qualquer atividade de mediação, não devemos tentar substituir a experiência por palavras. A descrição verbal e os comentários devem ser encarados como um suplemento da experiência direta, nunca substitutos dela. Cabe ainda sublinhar que se deve evitar qualquer tipo de simplificação ou infantilização da mediação pelo fato das pessoas serem deficientes visuais. Por fim, devemos evitar o risco do visuocentrismo. Devemos estar cientes que cegos e videntes têm diferentes maneiras de perceber e estar no mundo, sem que a maneira vidente seja a mais espontânea, natural ou correta. O cego não possui uma percepção inferior, mas distinta da nossa. Praticando a hospitalidade Podemos dizer que as oficinas de práticas artísticas e a arte acessível para deficientes visuais são práticas de hospitalidade, no sentido definido por René Schérer (2000). As práticas de hospitalidade são práticas de encontro e acolhimento de diferença, de alteridade. A economia das práticas de hospitalidade não é a do interesse e da contrapartida, mas sim das trocas, dos agenciamentos, e também da oferta e do dom. Não se busca admitir o outro em sua alteridade por tolerância ou concessão. Trata-se de oferecer práticas de hospitalidade, o que implica em reciprocidade. Quando nós, videntes, criamos, juntamente com as pessoas cegas, um território de experimentação estética, oferecemo-nos também a tais práticas. Fazemos junto, fazemos com. Trata-se aí de uma reciprocidade fundamental, que a ambiguidade da palavra hôte em francês expressa bem. Pois ela designa tanto o hospedeiro, o que recebe, quanto o hóspede, o que é recebido. O hospedeiro se inclina frente ao hóspede e se honra em recebê-lo. Oferecer a hospitalidade, receber o outro em sua alteridade, acolhê-lo, é também se oferecer às práticas de hospitalidade, experimentando uma distância em relação a si mesmo, uma distância íntima, que desloca a posição individualista que nos faz ver o mundo e os outros a partir de nós mesmos. Tais práticas e tais encontros são capazes de produzir nos videntes um processo de produção de subjetividade mais aberta para a alteridade e mais voltada para o coletivo. Pode produzir uma mudança de perspectiva, de atitude, uma espécie de conversão a um ponto de vista da alteridade. Trata-se de mudar o olhar sobre os outros e sobre nós mesmos. Como afirmamos acima, a hospitalidade com o outro envolve a hospitalidade consigo mesmo, o acolhimento da própria diferença interna, que nos habita e constitui. Página 42
Andando pela cidade, o cego nos chama a atenção e nos faz pensar. Podemos evitar olhar para ele, tornando-nos voluntária e momentaneamente cegos para aquela realidade que nos lembra de nossa vulnerabilidade e de como estamos sujeitos, em nossa existência, aos acasos e à imprevisibilidade. Podemos também observá-lo e perceber que, por trás de sua aparente deficiência e fragilidade, existe uma figura de resistência, que constrói sua vida enfrentando dia a dia um sem número de obstáculos físicos e sociais. Quando vemos pessoas cegas trabalhando e criando em oficinas de práticas artísticas, sempre nos surpreendemos. Numa entrevista, Clara Fonseca (2006) conta que, na ocasião em que criou a oficina de cerâmica no Instituto Benjamin Constant, costumava pensar e mesmo advertia as demais professoras ceramistas a evitarem o uso de expressões como “olha aqui” ou “veja como se faz”. Mais tarde, afirmou, quando percebemos que eles viam, não nos preocupamos mais com este tipo de coisa. Os cegos têm sua própria maneira de perceber e tais expressões fazem parte de seu vocabulário cotidiano. Certo dia, observando o trabalho na oficina, presenciamos uma cena curiosa. Uma peça que havia sido iniciada na aula anterior por um dos participantes havia desaparecido. A professora notou que a peça não estava na prateleira onde o rapaz costumava habitualmente guardar seus trabalhos. Perguntou onde ele havia deixado da última vez, mas ele não estava certo de tê-la guardado no local de costume. A professora não conseguiu encontrá-la. Outras pessoas se mobilizaram, mas ninguém conseguiu achar. Até que o rapaz se levantou da cadeira e resolveu empreender sua própria busca. Depois de apalpar diversas peças espalhadas pelas muitas prateleiras da oficina, retornou todo sorridente com a peça na mão e disse: “Eu conheço o meu trabalho” (P10). Rimos juntos da situação inusitada, que embaralhou momentaneamente os limites entre o ver e o não ver, entre a deficiência e a eficiência. Para nós, pesquisadores videntes, situações como esta dão lugar a experiências estéticas, no sentido em que provocam a suspensão de juízos anteriores e de um suposto saber sobre a cegueira, evidenciando também o quanto aprendemos convivendo, observando e escutando as pessoas cegas. Observar uma pessoa cega num museu pode ser, para os videntes, uma experiência estética, no sentido de que também coloca em questão o que significa ver e não ver. Tomando um exemplo mais comum, é difícil ficarmos indiferentes ao vermos uma pessoa cega apreciando uma escultura através do tato. Percebendo sua concentração e o sorriso revelador de uma descoberta inusitada, podemos nos dar conta, às vezes pela primeira vez, de que há uma apreciação estética para além da visão. Podemos pensar também nos limites da própria visão e no papel da arte para sua ampliação. Num texto em que comenta a obra de Lygia Clark, e que tem o título curioso de “Olhar cego”, Hubert Godard (2006) afirma que a força da arte encontra-se menos na invenção de objetos novos do que na produção de mudanças na posição do olhar. Tais mudanças vão justamente na direção do olhar cego, que permite a apreensão direta de um campo de forças, desmanchando momentaneamente a separação sujeito-objeto. Não estando mediado e limitado pela história pessoal do percebedor, o olhar cego – que não é exclusivo da visão, mas constitui uma dimensão de todos os sentidos – possibilita um mergulho na experiência, permitindo captar diretamente as forças presentes na obra de arte e atuando, por Página 43
esta razão, na produção da subjetividade. Nesta medida, podemos concluir que as práticas artísticas e a experiência estética podem ampliar a percepção de cegos e videntes, atualizando virtualidades inusitadas e concorrendo para a produção de subjetividades mais abertas para a alteridade e mais voltadas para o coletivo. notas: 17 As ideias aqui apresentadas foram desenvolvidas no contexto projeto Práticas artísticas e construção da cidadania com pessoas deficientes visuais, realizado numa parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Instituto Benjamin Constant (IBC). Agradecemos à FAPERJ e ao CNPq pelo apoio. 18 Entrevista concedida por um dos participantes (P6) do projeto Atenção e invenção na produção coletiva de imagens. Apoio CNPq (2005-2011). 19 Outras oficinas desta natureza ocorrem no contexto do projeto de pesquisa Práticas artísticas e construção da cidadania com pessoas deficientes visuais. Cf. o texto de Laura Pozzana, bem como o de Camila Araújo Alves, Carolina Manso, Josselem Conti, Julia Neves, Liz Eliodoraz, Luciana Franco, Thadeu Gonçalves, Vandré Vitorino e Marcia Moraes, ambos nesta coletânea. 20 Cf. também o texto de Filipe Herkenhoff Carijó, Juliana de Moura Quaresma Magalhães e Maria Clara de Almeida, nesta coletânea. 21 Cf. o texto de Viviane Sarraf, nesta coletânea. A pesquisadora também oferece um excelente mapeamento da situação dos museus de arte e ciência no Brasil em www.museuacessivel.incubadora.fapesp.br. 22 Para saber mais sobre as características do tato cf. Hatwell, I, Streri, A. & Gentaz, E. (Orgs) (2000) Toucher pour connaître. Paris: PUF. Referências bibliográficas: BERGSON, H. L´effort intellectuel. In: BERGSON, H. L´énergie spirituelle. Paris: PUF, 1990. __________. A percepção da mudança. In: O pensamento e o movente: ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006a. __________. O possível e o real. In: O pensamento e o movente: ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006b. __________. O pensamento e o movente (Introdução) In: O pensamento e o movente: ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006c. CANDLIN, F. Blindness, art and exclusion in museums and galleries. Jade 22.1, p. 100-110, 2003. __________. Don’t touch! Hands off! Art, blindness and conservation of expertise. Body Society 10, p.71-90, 2004. CARIJÓ, F., ALMEIDA, M. C. E KASTRUP, V. Redirecionamento Página 44
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Seção 2 - Movimentos do corpo e da clínica
Oficina de Movimento e Expressão com deficientes visuais: uma aprendizagem coletiva Laura Pozzana Este texto apresenta o relato da experiência de uma oficina de movimento e expressão que se realiza no Centro de Convivência23 do Instituto Benjamin Constant (IBC) desde abril de 2007. Trata-se de uma aula inspirada nas práticas do Sistema Rio Aberto, escola de origem argentina, que trabalha no sentido de despertar a presença de cada um e abrir espaços para a expressividade dos afetos. Através da prática corporal, busca-se criar condições de convergência entre aquilo que se sente e se pensa e aquilo que se faz, ou seja, entre a experiência e a ação, entre experiência e movimento. O que está no horizonte é uma ampliação das conexões de cada um consigo mesmo e com o mundo. Tenho formação em Psicologia, onde a questão do corpo sempre direcionou meus estudos, e também uma formação como instrutora do Sistema Rio Aberto, em que a experimentação corporal é instrumento de aprendizagem24. O Rio Aberto é uma escola de desenvolvimento humano fundada em 1966 pela psicóloga Maria Adela Palcos. Desde então, faz práticas de acompanhamento e transformação de si, que atuam no sentido de despertar o homem para sua própria história e para a vida coletiva. Parte-se da consideração que a vida é movimento. Tradicionalmente, somos marcados pela forte cisão entre corpo e mente, corpo e mundo, indivíduo e sociedade. Há um dualismo produzido através dos hábitos que contraímos. Porém, a vida não é, por princípio, cindida. "Como em nossa cultura a reflexão está divorciada da vida corporal, o problema mente-corpo transformou-se em tema central da reflexão abstrata. O dualismo cartesiano não é uma solução e sim a formulação deste problema. Supõe-se que a reflexão é estritamente toda mental, e assim surge o problema de como está ligada com a vida corporal." (Varela, 1992, p. 55) Tanto para a Psicologia como para o Rio Aberto e para as práticas que lidam com o homem, deficiente visual ou não, é com o corpo vivo, o mundo que o engendra e é por ele engendrado, que importa trabalhar. A afirmação de Francisco Varela ajuda a dizer que, ao consideramos o corpo em nossas práticas, buscamos exatamente darmo-nos conta da continuidade entre o fazer e o criar, o conhecer e o agir. Se há uma separação entre mente e corpo, indivíduo e coletividade, sujeito e objeto, ela se dá para nós, humanos, e como efeitos de certos modos de vida. O homem, no seu viver cotidiano, se movimenta e age de forma mecanicizada, automática e condicionada, em geral sem a experiência dos acontecimentos que o atravessam mental, emocional e fisicamente. Assim, o homem se identifica dentro de um limitado número de características e qualidades, restando pouco espaço para Página 47
expressões genuínas e inventivas. Trabalhar com o movimento e a expressão dos afetos em curso é uma aposta na ampliação do território existencial de cada um na medida em que perceber, agir e criar se dão juntos, em planos que se tocam. Francisco Varela retorna a Mencius, um dos primeiros confucionistas do século IV a.C., e ressalta que o desenvolvimento de uma pessoa virtuosa parte da premissa de que a natureza humana é capaz de florescimento e que as pessoas podem cultivar esse crescimento. Tal afirmação traz uma noção de desenvolvimento bastante simples: “las capacidades básicas están dadas y cuando se las nutre adecuadamente generan las cualidades deseadas” (Varela, 1996, p. 30-31). Consideramos a noção de desenvolvimento presente no trabalho do Rio Aberto como um cultivo, assim como nas aulas de movimento do IBC. Assim, presta-se atenção ao desenvolvimento humano de forma que os aprendizados sobre o mundo e sobre nós mesmos caminham juntos, lado a lado. Aprendemos através dos livros, das relações que temos com os outros e aprendemos sobre nós mesmos, sobre nossos pés, nossos gestos, através de como percebemos, sentimos e pensamos. Essa aprendizagem tem um estofo comum, é matéria do mundo. O Rio Aberto tem um enfoque que não estritamente o terapêutico. Ao invés de colocar o terapêutico em primeiro plano, propõe o desenvolvimento. Ao invés de pretender tratar de uma doença, coloca em primeiro plano o problema do crescimento. Considera que o ser humano está em contínua transformação. Mas, como, através dos hábitos e da educação, tendemos à mecanicidade e ao adormecimento, precisamos de práticas que nos acordem no processo ao mesmo tempo individual e coletivo (Pozzana, 2008). Tudo que faz parte da vida cotidiana pode ser um instrumento para o aprendizado e o desenvolvimento do homem. Não é preciso retirar-se do mundo para buscar um caminho de realização e plenitude. Para o trabalho de desenvolvimento, precisamos estar lado a lado, no lugar onde efetivamente estamos. Com a proximidade entre o Instituto de Psicologia da UFRJ e o IBC, um dia pensei que um trabalho que vinculasse minhas duas formações, propondo uma atividade corporal regular, pudesse ser uma boa prática de produção de subjetividade com deficientes visuais25. Digo isto não só para os participantes (deficientes visuais), como também para mim, para o IBC, para a Psicologia e para o aprimoramento de práticas efetivas que colaborem na construção de um mundo comum que reúna as diferenças (Latour, 2003). A oficina partiu da intuição de que uma prática de movimento e expressão que trabalhe com uma atenção voltada para aquilo que se faz pudesse ser forte aliada para os deficientes visuais, pois poderia ser um campo de experimentação e de construção de relações a partir da corporeidade de cada um. Assim, procurei o IBC e ofereci-me, a princípio, como voluntária. Em 2008, esta atividade passou a integrar o projeto de pesquisa Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais26. O grupo foi formado por 20 pessoas ligadas ao Centro de Convivência do IBC – deficientes visuais (cegos e também pessoas com baixa visão), que têm entre 45 e 70 anos de idade. No primeiro ano as práticas aconteceram uma vez por mês com uma hora de duração. No segundo ano, estas atividades começaram a acontecer de 15 em 15 dias e, de maio em diante, os encontros passaram a acontecer toda sexta-feira, de 11h às 12h. Cerca de 7 a 10 pessoas frequentam estas aulas desde o princípio; algumas Página 48
saíram e outras entraram durante o período. O objetivo principal deste texto é compartilhar algumas observações realizadas, assim como problematizações que nasceram destes dois anos de aula, para seguirmos atuando e refletindo na produção de conhecimento e de cidadania. Começo narrando uma apresentação de uma aula inspirada no Sistema Rio Aberto. Em seguida, analiso o percurso do trabalho e de seus efeitos nos participantes, no dispositivo e também em mim (instrutora das atividades). Como metodologia de escrita, ao longo da discussão, realizo um atravessamento, trazendo alguns trechos das aulas retirados de um diário de campo – parte do método da cartografia que me acompanha em trabalho de pesquisa e intervenção. A cartografia27 é um método de investigação utilizado em pesquisas de campo voltadas para o estudo da subjetividade. Para abarcar a complexidade e a processualidade que acompanha cada prática, colocando problemas, buscando o coletivo de forças em cada situação, a cartografia se apresenta como rica ferramenta de produção de conhecimento. Mais do que procedimentos metodológicos delimitados, a cartografia é um modo de conceber a pesquisa e o encontro do pesquisador com seu campo. Ela é produzida a partir das percepções, sensações e afetos vividos pelo pesquisador nesse encontro que não é neutro nem isento de interferências. 20 de abril de 2007 foi o primeiro dia de aula. Primeiros contatos, encontros, sustos e surpresas. A vida segue seu rumo. Cheguei meia hora antes para ver a sala. Logo depois, chegou Fernando Casariego, meu companheiro de formação no Rio Aberto, que esteve comigo neste trabalho por alguns meses (sem grandes contratos, por interesse em participar). Fomos ao encontro das pessoas que seriam os participantes da aula. Eles estavam na sala 145, onde acontecem diversas atividades. Lá havia um grupo de cegos, todos sentados numa salinha, conversando, sorrindo e ouvindo o bolero que tocava na vitrola. Notei como havia prazer naquela escuta musical coletiva. Fomos apresentados em voz alta. Parada na porta de entrada, senti estranhamento, como se eu tivesse muito distante deles, quase longe dali. Como me apresentar? Aos poucos, fomos nos encaminhando para a sala onde faríamos a atividade. Eles andavam em fila, uns tocando nos outros; alguns conversando, outros calados. De cara, pareciam dispostos para o que viria. Observo que os cegos vão se orientando a cada movimento, rindo e brincando uns com os outros. Eu e Fernando ficamos mais de fora, curiosos com aquele modo (aninhado) de andar juntos. Eles se tocavam, uns de bengala, outros sem, uns concentrados e outros entusiasmados. No meio do caminho, um deles me diz: “Vou fazer xixi e depois vou lá”. Suspensão. Pergunto-me se ele não se perderá, mas confio que a coisa segue comumente assim. Afinal, penso, eu estava chegando na “casa” deles. A sensação de estar perdida se dava em mim. Algum tempo depois, estávamos na sala localizada no segundo andar da educação física. Pedi que eles apoiassem suas bolsas no canto e, se possível, tirassem os sapatos. Isso causou certo tumulto, pois muitos deles têm receio de largar a bolsa e a bengala, mas com calma isto foi bem resolvido. Observei que essa chegada não é nada trivial. Alguns não queriam largar suas coisas, dizendo que não saberiam resgatá-las. Alguns queriam fazer a aula com a bengala dobrada no bolso. Fui acompanhando e ajudando como podia. Página 49
Chamei-os para o centro da sala, dando a mão para um, para outro, até formarmos uma bela roda. Todos juntos éramos aproximadamente 20 componentes. Apresentei-me e apresentei o Fernando como meu ajudante, que também falou com eles. Depois, falei sobre o trabalho do Rio Aberto como uma possibilidade de experimentarmos o movimento, nos mover diferentemente e nos relacionarmos com aquilo que ia acontecendo. Disse que não tinha experiência em trabalhar com deficientes visuais e que aprenderia com eles. Alongamo-nos juntos, fizemos movimentos articulares e circulares. Notei logo em alguns dos participantes um enrijecimento das pernas, do tronco e do pescoço. Também senti dificuldade em deixar claro verbalmente o que eu fazia corporalmente e fui mais devagar. Alguns perguntavam: “Está certo? É assim?!” Isto me tensionava e me contava sobre como eles estavam recebendo as indicações. Depois, com a música, nos encontramos e compartilhamos expressões alegres, suscitadas pelo som de Carlos Malta e Pife Muderno. Palmas ao final da música, como expressão de um prazer trocado (compartilhado). O tempo desta primeira aula passou sem ser percebido. Indiquei, numa pausa com silêncio, que cada um observasse e registrasse suas impressões. Parecia que pouco tinha acontecido, mas eu estava em contato com muitas sensações e não sabia ainda nomear tudo aquilo. Seguimos em aprendizado, pensei. Na segunda aula, logo ao entrar na sala, uma senhora pediu para falar comigo. Ela veio me dizer que eu tinha esquecido de apresentar a sala para eles. Assim, comecei a atividade aprendendo com os acontecimentos e descrevendo para o grupo o que me parecia importante. Com o Fernando se locomovendo e emitindo sons pelos diferentes cantos, buscamos apresentar o tamanho do espaço. A Roda na ampliação do corpo Nas aulas de movimento e expressão, a roda é um método de trabalho. A distribuição dos participantes numa configuração circular delimita um espaço existencial aberto ao tempo e facilita os atravessamentos de forças coletivas. A roda, enquanto encontro de pessoas voltadas para um centro vazio, é uma facilitadora nesse processo. Nela, o instrutor propõe movimentos e acompanha os presentes através de uma sintonia com aquilo que vai acontecendo no encontro de corpos. A roda proporciona também a possibilidade de girar, gerar, intensificar e distribuir as energias ali presentes em excesso ou estagnação. A roda facilita o aspecto circular da experimentação, movendo todos juntos para a direita ou para a esquerda, em movimento de translação, como fazem os planetas em volta do sol, ou cada um em torno do seu próprio eixo, em movimento de rotação. O movimento pode dar-se também para frente e para trás, quando todos se aproximam ou se afastam do centro. Este aspecto circular pode se dar também no plano perceptivo, quando abre-se o mundo sensível no encontro dos corpos, quando cada um toca e é tocado, emite um som e é escutado. Cabe ressaltar ainda que a mobilidade em roda convoca diferentes maneiras de pisar e de articular. Na dinâmica da roda, cada um é convocado à mobilidade a partir da percepção presente, e não de regras dadas a priori. De modo geral, a roda colabora para a criação de corpos mais dinâmicos, sensíveis e conectados com a atmosfera que o circunda. Página 50
O instrutor, que é quem conduz a atividade, lida com aquilo que propõe de forma corporificada, não tenta convencer ninguém de nada. Essa condução deve chegar aos participantes como um convite. Trata-se mais de contagiar do que de explicar, mais de fazer mover do que de fazer entender. Muitas vezes faz-se o uso de imagens e de descrições de posturas corporais para convocar experiências próprias, como é o caso quando o instrutor indica para deixarmos a cabeça pender sobre o peito, fazendo com que “o queixo toque o coração”. Nesta mesma postura, pode-se dizer também que “a nuca se abre e floresce para o alto”. O instrutor, a partir de suas sensações e disposições, pode ir descrevendo pontos intensivos por onde transita (chamando a atenção para algumas composições). Por exemplo: “sentimos as extremidades de nosso corpo irradiando como estrelas de cinco pontas” para se referir à abertura (à permeabilidade) das mãos, dos pés e da cabeça para o mundo (e para si); ou “coluna alinhada, pés firmemente apoiados no chão, joelhos relaxados a ponto de permitirem uma pulsação com a terra, diafragma liberado para a livre circulação do ar, rosto sereno, garganta e alto da cabeça respirados”. O instrutor ressalta, após um certo despertar corporal, que somos “canais, espaços comunicantes entre céu e terra”. O instrutor experimenta um corpo nesse espaço “entre céu e terra”, compartilha sua experiência e contagia a partir desse lugar. Aqueles que assim se dispõem experimentam algo comum e se comovem ao sentir uma experiência. Trata-se de uma indicação a ser experimentada por cada um e não de um ponto de chegada ou uma verdade a ser adotada por todos (Pozzana, 2008). Joana Belarmino, professora da Universidade Federal da Paraíba e cega de nascença, participou como convidada do Colóquio Ver e não Ver, onde falou numa mesa intitulada “O que percebemos quando não vemos?28”. De suas palavras, extraio um trecho que conta sobre os efeitos na subjetividade destas indicações imagéticas, mais que tudo poéticas, encontradas (no caso da sua fala) na literatura. Gosto dessas concepções vagas, isentas de cientificidade, porque elas me ajudam a repercutir essa questão dentro de mim mesma, no meu nicho particular onde sou pessoa cega e de onde parto para perceber o mundo. Gosto dessas concepções, porque elas me conduzem ao lugar da emoção, da afetividade, da poética e da estética, da memória e das recordações. (Belarmino, 2007) Do mesmo modo, as palavras usadas nas aulas na condução do movimento corporal, feita por um instrutor, buscam contribuir na criação de condições para que experiências encarnadas, emocionais, se deem em cada um. Na prática criada pelo Rio Aberto, com o intuito de abrir espaços arejados, almeja-se muitas vezes o deslocamento e o esvaziamento de si, trabalhando no sentido da suspensão da ação, dos pensamentos e das posturas habituais. Busca-se viabilizar a presentificação dos participantes, liberando, com a expiração do ar e com o desmanchamento das formas, o corpo para os sentidos. Fazendo surgir a experiência do corpo, abrindo espaço para a consciência própria do corpo29, colocamo-nos atentos àquilo que ocorre ao corpo em conexão com o mundo. As aulas, de modo geral, acordam presenças, contribuindo para ativar os processos de subjetividade em curso. Ao proporcionar uma experimentação Página 51
corporal, possibilita-se uma ampliação das conexões corporais que nos constituem. Conduzir? Imitar? Como? A imitação é um aspecto central do método do Rio Aberto, que serviu como inspiração para as aulas no IBC. O modo como geralmente o instrutor conduz o movimento na roda é através da imitação. Assim, os participantes são convidados a se moverem com o instrutor por outras vias que não as habituais. Quando um instrutor faz movimentos, dançados ou não, com expressividade ou com uma simples atenção ao que faz, leva os participantes a experimentar com ele. O instrutor parte dos corpos presentes, da atmosfera criada, incluindo aí gestos, rumores, posturas, expressões e afetos. Os participantes começam a repetir os movimentos da maneira mais fiel possível. Esta repetição busca principalmente convocar a presença de cada um, trabalhar a atenção, trazendo-a para aquilo que se faz. A proposta é que, com a repetição do movimento, vão se abrindo frestas por onde novos movimentos emergem, trazendo variações, inspirações, novidades. De início, a repetição se assemelha ao ato de copiar, macaquear, fazer igual ao outro. Aos poucos, na medida em que os participantes vão se habitando ao movimento, o contágio entre os corpos ganha força, os indivíduos vão deixando de controlar aquilo que fazem, podendo confiar o corpo à sabedoria de conduzir-se (afetar e deixar-se afetar). Dizemos, com isso, que a consciência corporal ganha espaço na consciência intencional e o corpo se conecta mais com o seu entorno. Os corpos se movem pensantes e emocionados. Os participantes imitam o movimento que reverbera e não a forma destituída de vida. A imitação vai ganhando corpo através daquilo que é irradiado. Trata-se de uma imitação suis generis, pois a repetição não é feita de forma mecânica. Considerando que o gesto feito pelo instrutor é composto por inúmeros fatores (ideias, pensamentos, sons, imagens, desejos), a rigor não podemos distinguir de onde parte o movimento, quem está imitando quem. O fato de repetir e estar naquilo que se repete engendra contemporaneamente novos movimentos, afetos, sensações. Como bem trabalhou Gabriel Tarde (1976), trata-se de uma imitação inventiva, que conecta as presenças num movimento comum, que se propaga e se cria. Ao conceituar imitação, Tarde diz que ela seria “toda gravação inter-espiritual, por assim dizer, seja querida ou não, passiva ou ativa (1976, p. 6) e também “uma ação à distância de cérebro para cérebro” (1976, p. 230). A imitação é o movimento pelo qual algo se repete e se propaga. Imitamos sem saber que estamos imitando e, muitas vezes, à distância, por reverberação. Imitar alguém é reverberar com a vida no outro. Deste modo, na roda durante a oficina de movimento e expressão, a imitação proporciona uma reverberação onde uma vida é compartilhada e uma atmosfera é criada. Tarde afirma que a imitação ocorre principalmente do interior para o exterior do homem (1976, p. 230). Ao imitarmos alguém, imitamos, sobretudo, aquilo que os move e não suas aparências externas. Há uma ressonância de crenças e desejos: irradiação (Pozzana, 2008, p. 76). Ao conduzir a oficina de movimento e expressão que acontece no IBC, uma questão concreta se colocou: como conduzir uma Página 52
atividade utilizando o método da imitação em uma roda onde a maioria dos participantes não vê? Como instrutora, fui deparando-me na prática com este problema. Logo constatei que era preciso indicar com a fala o que eu estivesse fazendo corporalmente. No caso, pensei que, para ocorrer a imitação, uma mediação seria necessária. Eu devia falar o que estava fazendo para que eles pudessem fazer comigo. Assim, fazíamos juntos. Muitas vezes, eu precisava ir ao encontro deles e fazer com eles, no contato dos corpos. Um modo de fazer ia sendo inventado. A necessidade de trabalhar com o toque se impôs e a importância da palavra encarnada foi se explicitando com o tempo. Creio que até aqui apresentei um chão (uma base) para que o leitor possa agora acompanhar de perto as práticas que estavam em jogo e quais os efeitos delas nos participantes, assim como em mim e na dinâmica da aula. Articulações com acontecimentos em aula Para que o leitor não se apresse em perguntar sobre a condição visual de cada um dos participantes, é preciso dizer que demoramos a saber de alguns e não sabemos muito ainda. Perguntar como? E o que fazer com as respostas? Será que podemos experimentar, antes de perguntar, para buscar uma sintonia através do contato e não da informação? Questões e agitações nos acompanham. No início do quarto mês de aula, disse que queria saber mais deles. Perguntei como era a condição visual de cada um e se alguém não via nada. Todos tinham forte comprometimento. Uma mulher afirmou ter uma visão tubular, um senhor disse que diferenciava luz e escuridão, outro falou ver vultos não definidos, outro disse que só via nas laterais, alguns tinham resíduo visual e baixa visão. Não me lembro de ninguém ter dito ser completamente cego. Curioso, pois até ali nunca os vi fazendo um movimento direcionado pela visão. Achei boa essa abertura através da conversa. Como não podia trabalhar a partir da imitação stricto sensu – geralmente usada por mim e em qualquer aula do Rio Aberto com pessoas que veem – fui me perguntando como indicar movimentos com o corpo e no espaço. A descrição minuciosa dos movimentos e das articulações corporais foi uma saída. Mas não bastava. Pois, ao dizer para que colocassem os pés paralelos, observei que muitos que não podiam ver não tinham a experiência disso (outros, sim). Precisavam de um toque. Quando a indicação era para levantar do chão a perna direita e girar o pé de forma circular, notei movimentos diferentes: um dobrava o joelho da perna que havia levantado e girava só o pé, outro girava o pé sem dobrar a perna, um terceiro rodava tudo junto, um outro ainda levantava muito a perna e havia também quem pouco a levantava. Poderia seguir fazendo combinações entre partes do corpo implicadas no movimento, articulações e ritmos convocados, pois o simples ato de levantar uma perna fazia com que alguns suspendessem os ombros, por exemplo. Movimentos realizados automaticamente, por hábitos contraídos e também como reflexo de tensões ou preocupações geradas pela novidade trazida para a roda e ainda não corporificadas. Na posição de quem vê parecia não haver sintonia entre os diferentes movimentos e a indicação dada. Muitas articulações estavam em jogo e em direções diferentes. Articulação, aqui, Página 53
tomada em sentido ampliado, inclusive entre aquilo que um fala e o outro escuta, como alguém se apoia e se utiliza do chão, articulações com o outro e mesmo com a respiração. Precisei sustentar este suposto desencontro para afinar o contato e a fala que toca. Assim como precisei deixar de lado muitas vezes certo desejo de controle e organização. Este aspecto apareceu com frequência nesse aprendizado coletivo. Ainda em relação aos momentos em que havia uma distância entre a indicação dada por mim (instrutora) e os participantes, como já foi pontuado, era recorrente que alguns perguntassem se estavam fazendo certo ou não. Como é o caso de uma mulher, que parecia bem ressentida com a sua condição de deficiente visual e, por muitas vezes, interrompia a atividade para reclamar, falar que era cega, que precisava de atenção especial e que não estava entendendo nada. Fui esclarecendo para todos que não havia movimento certo ou errado e que eles buscassem experimentar, com seus próprios corpos e modos de mover, como estas indicações podiam lhe parecer. Ao mesmo tempo, eu me perguntava como compartilhar melhor estas indicações. Como tocar também com a palavra? Percebia em alguns pouca paciência (nesta mulher em particular) para escutar e fazer novas combinações com o corpo. Após três aulas, esta mulher já estava mais acolhedora consigo e podia, sem reclamar, experimentar as indicações recebidas, conduzir-se pelo espaço e perceber-se nos acontecimentos em curso. No final da quarta aula, em um momento de observação de si, lanço no ar a pergunta: algo que fizemos hoje chamou mais atenção? Como estou neste momento? Pausa. Tal mulher, parecendo outra, com uma fala emocionada, diz para o grupo que precisa trabalhar seu preconceito consigo mesma. Não posso afirmar que caminhos a levaram a esta percepção, mas, em contato com ela, posso dizer que alguma experiência a tocou e a fez olhar para si na sua relação com os outros (assim como consigo). Aconteceu uma constatação de sua condição visual, uma intensificação de certo estado, acompanhado de raiva e tristeza, mas também algo prazeroso circulou por ela, que a fez sentir-se viva e desejar aceitar-se. Uma dificuldade encontrada foi no uso da música. Geralmente, a música serve como apoio ou fundo para o movimento quando o instrutor se move e é imitado pelos participantes contemporaneamente em roda. Nessas aulas, no entanto, era complicado indicar coisas com a fala e, ao mesmo tempo, ouvir a música, de modo que, na maioria das vezes, eu indicava e depois colocava a música para experimentarmos com ela. Na música nos encontrávamos, principalmente nos momentos onde, com ou sem indicação, todos se moviam mais livremente, levados por ritmos e melodias. Sem sair muito de seus lugares, os participantes emitiam sons, cantavam quando conheciam a letra, dançavam em pares quando se esbarravam e às vezes ousavam experimentar movimentos novos, como levantar os braços e abaixar o tronco. Estes momentos livres com música traziam alegria. Pude percebê-los experimentando os efeitos das ondas sonoras, do movimento corporal e novas nuances em si, com emoção e inspiração. Uma pessoa, durante a atividade, relatou não dançar assim há muito tempo. Naquele dia, o prazer do movimento estava no ar e atravessou o espaço coletivamente. Observo também que não indicar muito o movimento os deixava meio paralisados, pois ficavam esperando a referência dos outros e do espaço. Talvez por isso dançar junto em roda era adequado e Página 54
tranquilizador, revelando-se um bom método. Como esta configuração trazia calor e dinamismo, muitos se deixavam levar pelo outro e ousavam experimentar movimentos novos e ampliados. De mãos dadas, sentíamos mais liberdade para nos mover, fator no mínimo paradoxal. No curso desse aprendizado coletivo, um dia aconteceu do aparelho de som quebrar. Eu costumava pegar o som na sala da coordenação do Centro de Convivência, próxima à entrada do IBC. Vez por outra, pedia para alguém me ajudar na instalação das caixas de som e na ligação da aparelhagem à eletricidade. Por acaso, neste dia ninguém havia me ajudado. Comecei a atividade com alongamento, atenção à respiração e aquecimento das articulações. Depois, indiquei que eles se movessem livremente no sentido de acordar partes do corpo que pudessem estar com preguiça ou pouco ar. Enquanto isso, fui ligar o som e... nada. Sem ver direito, enfiei o fio do som na tomada de 220 volts. Tentei mais uma vez e nada. Voltei para a roda e disse que naquele dia iríamos compor e dançar com nossos sons, pois o aparelho não estava querendo funcionar. Rimos e, daí, partimos, fazendo cara de A, cara de E, de I, de O e de U. Depois, movendo o rosto, a boca e a língua e fazendo sons estranhos. Cada um fazia um som e, ao mesmo tempo, era levado pelo som dos outros, acontecendo uma imitação e uma variação coletiva. Depois, começamos a acentuar mais o ritmo, batendo os pés no chão e fazendo som de tambor. Foi curioso como alguém nessa hora falou alto que estávamos sendo como os índios, éramos uma tribo. Dali, sugeri que eles fossem pelo espaço articulando o som com os movimentos corporais. Alguns entraram na proposta com bastante intensidade e outros faziam de forma mais recolhida, quase imperceptível. Mas todos estavam entregues aos sons que atravessavam a sala. Alguns minutos depois, falei: Stop! Estátua! Com calma, disse para eles ficarem numa postura de estátua e acentuassem numa forma corporal o que sentiam naquele momento. Exagerando. Sentindo por dentro que forma era aquela, que partes do corpo estavam em jogo, o que essa estátua estava expressando. Depois, seguimos com movimento, sons e ritmos feitos por eles. Indiquei que eles fizessem uma outra estátua, que fosse diferente da primeira. Mais que tudo, para trabalhar com a criação deles. Na sequência, pedi que se juntarem em trios. Indiquei que eles contassem um pouco no trio como eram as estátuas que cada um fez; depois, que as três estátuas se juntassem, formando uma composição, e dessem um nome para a obra. Eram 6 trios e todos pareciam concentrados na experimentação. Algumas das denominações foram: Árvore Podada, Deficiência (um não via, o outro não ouvia e o terceiro não falava), Mulheres, Montanha, Encontro e Chuva. Ao final, eles falaram ter gostado daquele dia. Um senhor pediu para encerrar e, bem alto, foi acentuando: fá, fé, fí, fó, fui!!!!! Todos bateram palmas. Foi interessante a riqueza do material existencial, imagético, concreto. Foi um pouco tenso o som falhar na hora e eu me dar conta de que falhei também. Será? Afinal, duas tomadas com voltagens diferentes, uma ao lado da outra, com pouca diferenciação, podia dar no que deu (para deficientes visuais ou não). Acaso, lição ou destino? Outro ponto, para mim, digno de observação, foi eu ter tido dificuldade para gravar os nomes dos participantes durante um bom tempo. Talvez por estar preocupada com o desenrolar da aula. Senti que meu olhar (exacerbado) atrapalhava um contato concreto entre Página 55
eu e eles. Com o tempo, fui inventando maneiras de presentificá-los na roda comigo. Na chegada, muitas vezes, fechávamos uma roda, eu conduzia um momento de pausa de movimentações e ações externas – escuta das sensações – e cada um dizia seu nome, invocando a presença. Ressaltei que cada um falasse seu nome de modo forte, como se estivesse chamando por si, projetando a voz no espaço, sentindo o corpo no nome. Enquanto alguém chamava seu nome, contando de si a partir de uma tonalidade e de um lugar concreto, os outros escutavam e depois buscavam repetir assim como haviam escutado. Tratava-se de uma imitação do outro por ondas sonoras. Ao repetirmos o modo como cada um chamava seu nome, podíamos compartilhar alguns afetos comuns presentes na fala de cada um dizendo seu nome. Tratava-se de uma abertura para perceber o outro na voz, nas letras acentuadas, nos ritmos e no tom. E, ao ter seu nome repetido pelos outros, sentia-se um reverberar de si nos outros, uma chamado potencializado pela roda. Esta proposta foi incorporada e, certa vez, partiu deles o pedido: “Vamos falar os nomes daquele jeito?!” Depois das férias de final de ano, recomecei as atividades em março. Fui recebida com muito carinho pelos participantes. Fiquei surpresa ao perceber como eles se lembravam de mim e de meu nome. Esta surpresa dizia respeito à minha dúvida em relação à conexão que existia entre mim e os participantes. Nessa chegada, com relaxamento e alegria, observei que eu também me lembrava de muito deles, de seus modos de falar, movimentos particulares e até mesmo de seus nomes. Foi uma espécie de susto, um despertar. Considerações sobre aprendizagens Movermo-nos juntos em roda é uma forma de intensificar as forças presentes e gerar comunhão. É experimentar cumplicidade no presente. Geralmente, isso se dá também com a possibilidade de nos vermos uns aos outros. Na nossa sociedade, é através da visão que muitas vezes julgamos, controlamos e impomos limites à experiência. Se o instrutor conduz sem reprimir, criticar ou julgar, contagiando os outros para aquilo que faz, ele acaba por dar permissão para que cada um se mova diferentemente, com expressividade. Assim, há um movimento coletivo em produção, que permeia e ultrapassa limites e formas instituídas, abrindo para novas possibilidades. Com os deficientes visuais o que se faz coletivamente acontece em um plano onde o aspecto visual pode estar presente, mas não é um vetor central. Com o toque e com o tom da voz, compartilhamos o gosto, a atenção, a candura, a irritação e afetos vários. Há comunhão. É curioso notar como ao final das aulas muitos participantes agradecem – a mim, a Deus e aos outros – pelo encontro. Falam do prazer de se mover, da dança, da alegria sentida. Alguns comentam o gosto pela música, pela brincadeira, pelo fato de ser tocado e receber uma massagem do companheiro. Duas vezes comentaram comigo que percebem como a aula produz neles mudanças: sentem-se cansados antes da aula e saem de lá bem dispostos. Lembro de uma senhora bem idosa dizer que “aquilo era melhor do que remédio”. E outra senhora, que além do problema visual também tem uma deficiência auditiva e um rosto meio tortinho, diz sempre que faço bem a ela. Penso que isto se dá pelo fato de estar sendo tocada e movida com afetos concretos e tangíveis, com um tempo dedicado à percepção da sensibilidade produzida. Como sinal de que gostam da oficina, Página 56
podemos ressaltar o fato dos participantes trazerem seus familiares para me conhecer. Fato que provavelmente acontece em outras aulas do IBC e que conta de uma construção coletiva de um compartilhamento dos aspectos positivos de nossas experiências. Após o dia que trabalhamos sem som, fui percebendo cada vez mais a importância que a palavra encarnada tem na experiência dos deficientes visuais. Emitir pequenos sons e se mover pelo espaço, como prática de aula, são ações que nascem juntas e criam consistência e precisão no gesto e na expressão. Assim como os nomes ditos em voz alta e imitados pelos outros, que nos permitiam um contato com os presentes, eram também um chamado para si. Foi o caso das palavras criadas na tradução de um movimento que eu estava propondo, isto é, de um movimento que eu já estava fazendo com eles, mas que, para ser compartilhado, precisava de uma outra maneira de tocá-los e convidá-los. Posso afirmar, após um tempo de prática, que esta fala não era apenas uma mediação para a imitação do movimento. A fala nascia do movimento e fazia corpo com a reverberação dos corpos presentes. Considero que este tempo foi cheio de aprendizagens para os participantes e para mim, instrutora de movimento. Foram momentos dedicados ao prazer de estar em movimento e de produzir conexões. Conexões consigo, com as próprias sensações, com limitações e necessidades; conexões com o outro, na experiência de dar-se conta da importância, da distância e da aproximação nas relações. E conexão com a terra, com os pés, com o ar, com a música e com o espaço físico. Ao final, costumamos dar as mãos e fazer uma pausa para perceber como estamos e por onde transitamos naquele dia. Neste momento, é comum alguém fazer espontaneamente uma oração ou um agradecimento coletivo, explicitando a entrega das presenças, o encontro afetivo e o alimento recebido. Arriscaria dizer que se trata de uma comunhão de sensações e uma confiança na roda, que é força para o surgimento de uma autoconfiança. A partir de minha formação no Rio Aberto, entendo que este aspecto espiritual que brota na roda pode ser entendido como conexão vital com aquilo que de mais concreto acontece nas nossas células e nos espaços que nos circundam. Nesse sentindo, a prática corporal acorda o corpo e a alma, o material e o espiritual, o racional e o emocional, o celular e o cósmico30. Sem separação, pois se trata do viver com todas as suas nuances. Na perspectiva do Rio Aberto, o trabalho com a espiritualidade parte da necessidade de nos conectarmos mais diretamente com aquilo que está acontecendo, situando-nos entre a inteligência da mente, da razão, e a inteligência das células, do sensível. “Conectar-se com as células é um convite”, diz Maria Adela durante uma aula: “Nossas células se espiritualizam e nossos espíritos se materializam”. É importante sublinharmos que aquilo que chamamos espírito é corpo, deve ser entendido como matéria sutil, ou, ainda, corpo sutil. Em Uma ética para o novo milênio, Dalai Lama pensa a espiritualidade como responsabilidade universal: "Antes de mais nada [a espiritualidade] é um apelo por uma reorientação radical que nos distancie da preocupação com nossa própria pessoa. É um apelo para nos voltarmos para a ampla comunidade de seres com os quais estamos ligados, para a adoção de uma conduta que reconheça os interesses dos outros paralelamente aos nossos." (2000, p. 34) Página 57
"O objetivo da prática espiritual e, consequentemente, da prática ética é transformar e aperfeiçoar o kun long [a disposição]." (2000, p. 44) Com a prática, podemos ampliar nossa capacidade perceptiva, ganhar consciência e abertura para nos movermos em conexão com o cosmos. Portanto, ao afirmar um trabalho que inclui a espiritualidade, não estamos defendendo um princípio religioso específico, com preceitos a serem seguidos. Não se trata de uma doutrina na qual se deve acreditar. Ao contrário, trata-se, mais uma vez, de experimentar, de criar conexões com aquilo que nos move e nos rodeia. Para concluir, considero relevante compartilhar que até o momento de escrever este texto, ou seja, na posição de instrutora ou professora (como eles me chamam), pensava estar conduzindo esta aula de movimento e expressão, mesmo tendo clareza da necessidade de aprender muito para trabalhar com deficientes visuais. Porém, depois deste trabalho de escrita e reflexão, observo que fui conduzida pelos participantes e por seus modos de perceber e agir. No limite, fomos todos conduzidos pelos acontecimentos, por algo que nos atravessava, algo que ultrapassa a condição de deficiente visual ou vidente, algo aquém e além de nós, de nossa capacidade de controle e mesmo de completa compreensão. Trabalhamos juntos acordando poros (espaços) para que a vida siga gestando-se viva (criando-se). E isto nos parece uma boa estratégia na criação de um mundo comum. Ao final da primeira aula fiquei com a impressão de não tinha acontecido muita coisa, talvez nada espetacular. Mas eu sentia estar em contato com uma experiência nova, que não sabia ainda nomear. Seguimos. Hoje, consigo considerar esta impressão como algo positivo, um solo sensível de onde brotam palavras intensas, relações concretas e uma vida se fazendo. De modo geral, o Rio Aberto é uma prática que possibilita desenvolvermos uma percepção mais sutil e o conhecimento do presente, das relações e dos afetos que nos compõem. Tateando com os cegos, em movimento, sigo aprendendo e propondo maneiras de perceber e acompanhar aquilo que emerge na experiência viva e coletiva. notas: 23 O Centro de Convivência se define por ser um espaço de troca e sociabilidade para os deficientes visuais que já passaram por um processo de reabilitação. 24 Um encontro entre a Psicologia e o Rio Aberto está presente textualmente em minha dissertação de mestrado, publicada como livro. Conf. POZZANA L. O Corpo em Conexão: Sistema Rio Aberto, Niterói: EdUFF, 2008. 25 Para discutir a relação entre corpo e deficiência visual, cf. o capítulo de Moraes e outros, inserido nesta coletânea. 26 Pesquisa financiada pela FAPERJ. 27 Conferir: Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Passos, Kastrup e Escóssia (orgs.), Editora Sulinas, 2009. 28 O texto preparado para a mesa “O que percebemos quando não vemos?”, assim como a gravação da fala de Joana Belarmino no Colóquio Ver e não Ver, encontra-se disponível no site http://www.psicologia.ufrj.br/verenaover/ Página 58
29 Este tema da consciência própria do corpo é bem trabalhado por José Gil (2004) com a noção de corpo-consciência em contraposição a noção cartesiana do corpo exterior à consciência do sujeito. Conf. também o terceiro capítulo de O Corpo em Conexão: Sistema Rio Aberto (POZZANA L., EdUFF, 2008). 30 Acordar, no caso, se refere ao despertar e ao estar de acordo. Referências Bibliográficas: BELARMINO, J. O que percebemos quando não vemos? In: Colóquio Ver e Não Ver 2007. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. Disponível em: www.psicologia.ufrj.br/verenaover. Acesso em 30 de julho de 2009, BIANCHINI, F.C. Ballet em crianças deficientes visuais: Monografia apresentada à Comissão Julgadora da UNIBAN como exigência para obtenção do título de Fisioterapeuta, sob a orientação de: Profa. Dra. Andréa Sanchez Navarro e co-orientação de: Dr. Alberto Gastaldo, SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2000. Disponível em: www.ciafernandabianchini.org.br. Acesso em 25 de julho de 2009 DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Trad. de Maria Luiza Newlands. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2000. GIL, José. A Imagem-Nua e as pequenas percepções: estética e metafenomenologia. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1996. __________. Movimento total: o corpo e a dança. Trad. de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2001. __________. Abrir o Corpo. In: FONSECA T.M.G., ENGLEMAN S. (orgs.). Corpo, Arte e Clínica. Coleção Conexões Psi; Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 13–28, 2004. KASTRUP, Virgínia. O método da cartografia e os quatro níveis da pesquisa-intervenção. In: CASTRO, Lúcia Rabello de; BESSET, Vera (org.). Pesquisa-intervenção na infância e na adolescência. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2008. LATOUR, Bruno. How to talk about the body? The normative dimension of science studies. 2002. Mimeo. __________. Um monde pluriel mais commun: Entretiens avec François Ewald. Éditions de l’aube, 2003. MASINI, E.F.S. A Experiência Perceptiva é o solo do conhecimento de pessoas com e sem deficiências sensoriais. Psicologia em Estudo, Maringá, v.8, p. 39-43, jan./jun. 2003. MORAES, Marcia. A contribuição da antropologia simétrica à pesquisa e intervenção em psicologia social: uma oficina de expressão corporal com jovens deficientes visuais. Psicologia & Sociedade. v.20, Porto Alegre, 2008. MERLEAU-PONTY, J. F. Fenomenologia da Percepção. 2ª edição. Trad. de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Editora Martins Página 59
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Composições do não ver: Contando histórias Página 60
Camila Araújo Alves, Carolina Cardoso Manso, Josselem Conti de Souza Oliveira, Julia Guimarães Neves, Liz Eliodoraz, Luciana de Oliveira Pires Franco, Thadeu Gonçalves, Vandré Vitorino, Marcia Moraes 1) Prefácio – Palavras em movimento O som do motor ao girar das chaves anuncia uma nova corrida: pé no acelerador, mão na marcha, carro na pista. Nosso motorista é Candeia31, que passa as horas do dia atrás do volante, levando todo tipo de gente pelas ruas da cidade. Todos na praça o conhecem, famoso por suas piadas e sambas de final de semana. Seu corpo, já de idade, não é mais tão fiel à cadência da música, mas ainda arrisca bordejos pelo salão. Lembra de quando serviu ao exército, época em que marchava, pulava e rastejava. “Bons tempos aqueles”32, lembrava Candeia. Hoje, sente as dores que insistem em acompanhar o avançar da idade, deixando apenas às boas lembranças a destreza do corpo juvenil. Quilômetros rodados, sobe rua, desce ladeira, cuidado com a lombada, sinal fechado, hora de parar. Um passageiro faz sinal. Pelo caminho, Candeia conversa para passar o tempo. Há quem diga que um dia ele acabará se perdendo por causa das longas histórias. Grande engano! O balançar do ônibus faz seu corpo se engajar no movimento das ruas, indicando que a curva mais acentuada é a da padaria do Seu João e que a lombada fica à beira da grande avenida. Já não se sabe se o carro movimenta o corpo ou se o corpo movimenta o carro. A narrativa que apresentamos neste artigo é fruto do Projeto de Pesquisa e Extensão Perceber sem Ver33, cujo objetivo é seguir as pistas dos arranjos singulares atravessados pelo ficar cego. Abordamos a cegueira não como um conceito extraído da medicina ou referenciado à noção de déficit ou incapacidade. Procuramos acompanhá-la na história de cada sujeito, nos diferentes modos de ordenamento34, muitas vezes fluidos, outras vezes enrijecidos, que aparecem quando seguimos as narrativas de quem passa por essa experiência. Esse formato de apresentação do trabalho procurou também aí sua inspiração: a produção de conhecimento na pesquisa se faz a partir de um processo local, situado, que consiste em seguir as narrativas daqueles que perderam a visão (Law e Mol, 1995, Law, 1999). Neste enfoque, afirmamos que, nas práticas cotidianas singulares, as concepções de cegueira são feitas, refeitas, reordenadas (Martins, 2006a). Isso não significa ignorar o fato da ausência ou diminuição da função visual, mas sim entender que as práticas cotidianas fazem existir diversas concepções de cegueira, o que nos permite seguir as invenções e criações do estar cego, longe de qualquer viés essencialista, fatalista. Percebemos, ao longo dos anos de pesquisa, que a deficiência visual não é homogênea, nem em seus graus, nem na forma como é vivenciada. Acompanhamos histórias em que a cegueira esteve firmemente atrelada a uma ideia incapacitante, outras em que representou a possibilidade de vida e ainda as que passaram de uma condição para a outra. Começamos então a percorrer as múltiplas falas produzidas sobre a cegueira, e uma delas estará atravessando Página 61
o presente trabalho. Importante lembrar que a narrativa tem o foco em um personagem, mas que a composição da escrita, das intervenções, das mudanças de lugar e das reverberações dependem e são sempre parte de uma rede que não tem centro nem oferece lugar privilegiado a nenhum de seus atores. Quando usamos a noção de rede, referimo-nos a uma composição formada por séries de elementos animados e inanimados, conectados e agenciados. Ela se define pelas conexões que estabelece. As entidades que a compõem, sejam naturais ou sociais, podem, a qualquer momento, redefinir sua identidade e suas mútuas relações, trazendo novos elementos e organizações (Latour, 1994; Moraes, 2004). Nosso trabalho discorre sobre as muitas conexões que marcam o processo do cegar tal como narrado através de Candeia. Também importa aqui dedicar uma breve apresentação àquele que inaugura esse artigo. Candeia tem setenta e cinco anos, dos quais trinta e seis passou percorrendo as ruas da cidade do Rio de Janeiro como motorista de ônibus. Há cerca de três anos perdeu a visão completamente e, há pouco mais de um, participa do trabalho que realizamos no Instituto Benjamin Constant (IBC)35. Neste período, estivemos acompanhando sua história e as composições que pôde criar a partir dos encontros conosco, com os outros participantes e com as intervenções do trabalho. Faremos um recorte, traduzido nas narrativas, onde iremos percorrer algumas pistas que ele trazia sobre a formulação de novos arranjos em sua vida. O ato de compor indica formar algo a partir de outros elementos, criar, arranjar. Não podemos deixar de falar sobre a importância do corpo nesse processo. Ele é a via primeira de contato com o mundo, qualquer que seja a qualidade desse vínculo. Somos também compostos por essa materialidade que talvez tenha ficado esquecida ou considerada menor pela afirmação cartesiana. Na tradição fundada a partir do pensamento cartesiano, o corpo ocupa o lugar de um puro mecanismo, isento de intenções e desejos (Chauí, 1998). Para qualquer que seja nossa intervenção no mundo, dependemos de aparatos materiais, seja o próprio corpo, seja o outro, sejam instrumentos diversos. A materialidade não é tomada aqui no sentido de um objeto passivo e completamente estranho; ela importa na medida em que é relacional (Law e Mol, 1995). São os atores humanos e não humanos compondo a rede. A história de Candeia não seria diferente. O ônibus foi um dos aparatos que tanta vivacidade trazia a seu cotidiano. Por tanto tempo esteve acomodado na poltrona do motorista que ambos já compunham uma mesma força na condução do veículo. Como nos disse Serres (2004), o corpo se constrói no e a partir do encontro – o encontro com o carro, com as ruas, com as pessoas. É no espaço do entre que acontece um encontro, não sendo possível definir o que é um e o que é outro. Nesta perspectiva, o corpo é compreendido como efeito, e não como essência ou substância. Assim, o corpo e o meio estabelecem uma relação de co-variação. O corpo36 se transforma na medida em que é afetado pelo mundo e, reciprocamente, afeta e transforma seu entorno (Latour, 1999). 2) Sofá – estagnação do verbo Após o longo dia de trabalho, a noite cai e traz consigo a hora do samba de roda. Embalado pelo som de pandeiros e tamborins, Candeia ocupa todo o salão rodopiando sua companheira Amélia. Página 62
Quando tocou a última nota de Ainda é cedo, de Cartola, uma escuridão tomou conta do salão. “Foi no último gole da cerveja. Tomei o último gole e tudo ficou escuro, depois voltou. Mal sabia que aquele era o início da minha cegueira”. Com o passar do tempo, a luz não voltou, mas o samba continuou. Candeia deixou de dançar. Seu corpo parou. O que era apenas um repouso do cansaço do dia vira agora um modo de vida, um modo que se confunde com a imobilidade do sofá. Candeia não quer se levantar de lá, tem medo, está triste. Para ele, a surpreendente cegueira começa a se tornar sinônimo de imobilidade: se não pode dirigir, também não pode se mover. A cegueira é recebida na sala de casa, enraizando seu corpo no sofá e imprimindo-lhe suas marcas. A falta de movimento faz com que suas pernas, já envelhecidas e cansadas, fiquem sem força e equilíbrio. Um círculo vicioso se instala: quanto menos Candeia se movimenta, menor é sua capacidade de se mover. Não quer mais levantar, tem dificuldades de achar o caminho do banheiro e da cozinha, tem vontade de esbravejar, de reclamar, de acusar. Mas com quem? Quem seria o culpado de sua cegueira? “Candeia não sai do sofá, fica o dia inteiro lá parado, não levanta para nada, me pede tudo, até um copo de água!”, reclama sua esposa Amélia." Através de nossas investigações, compreendemos que a ligação entre cegueira e deficiência é uma produção histórica engendrada por discursos e práticas (Martins, 2006a, Belarmino, 2004). Atualmente, a concepção da deficiência como um desvio ou um déficit incapacitante se atualiza em muitos momentos da vida cotidiana e se configura como uma grande barreira na vida daqueles que se tornam cegos e de seus familiares. O território construído em torno da cegueira foi sendo produzido como se o fato de se tornar cego fosse, por si só, incapacitante. Candeia, ao se deparar com a recente cegueira, remonta em seu corpo a ligação entre cegueira e deficiência tão difundida historicamente. Fundamentado em uma leitura foucaultiana acerca da loucura, Martins (2006a, 2006b, 2006c) afirma que, na modernidade iluminista, as configurações de saber acerca da cegueira estão calcadas na concepção de deficiência visual, isto é, na concepção de que a ausência de uma função sensorial é um desvio, uma patologia em relação a uma norma corporal. Assim, o autor salienta que a marginalização da cegueira na modernidade vai ser investida por uma certa forma de poder que se funda “nos efeitos positivos que engendra, na sua capacidade de emanar saberes e fazer proliferar discursos, produzindo realidade” (Martins, 2006a, p. 79). São os discursos da biomedicina que se apropriam da cegueira fazendo existir uma concepção de cegueira como desvio, tragédia e infortúnio frente a uma normalidade corporal almejada. Tal concepção de cegueira marca o pensamento ocidental moderno e, segundo Martins (2006a, 2006b), torna-se hegemônica. Nesta concepção, a prática e o discurso médicos sobrecodificam a cegueira, obliterando as reflexividades e normatividades das pessoas com deficiência visual. Desafiando esta concepção hegemônica de cegueira, o século XX vê surgir uma série de movimentos sociais de pessoas com deficiências que lutam para afirmar que a deficiência é um efeito de condições sociais excludentes. Em outras palavras, na perspectiva de tais movimentos sociais, a ausência de uma função sensorial como a visão não é, em si, patológica ou anormal; a deficiência é um sentimento que decorre de condições sociais Página 63
incapacitantes porque inacessíveis. Em inglês, as palavras impairment e disability37 demarcam esta distinção. Impairment indica a ausência de parte ou totalidade de um membro, ou a existência de um membro, órgão ou mecanismo corporal defeituoso. Já disability indica desvantagem ou restrição da atividade causada por uma organização social excludente, não acessível. Disability é um efeito da opressão social (Martins, 2006a). Os anos pós-guerra são marcados por esta outra concepção de deficiência. A questão que se faz pertinente é a de reabilitar, inserir socialmente as pessoas com deficiência. O que está em jogo neste cenário é que a noção de deficiência passa a estar articulada não a uma falta corporal, biológica, mas a um processo de exclusão social que deve ser revertido. Tal movimento coloca em cena outros atores e a deficiência passa a ser tematizada como uma questão de direitos humanos, de acesso à informação, ao trabalho, à educação plena. Merece destaque que, quando apresentamos tais concepções de deficiência, não pretendemos sublinhar uma evolução de uma concepção a outra, mas sim indicar que a noção de deficiência é construída em certos arranjos político-sociais. E mais, importa salientar que estas concepções de deficiência e de cegueira, convivem, se entrelaçam, se articulam, sem que uma supere a outra. O que se pode notar neste cenário é que as concepções de cegueira articulam-se entre aquelas biologizantes, e que portanto naturalizam e despolitizam a questão da deficiência, e aquelas que investem na concepção de cegueira e de deficiência como efeito de um contexto social opressor e marginalizante. 3) Sumário – cada coisa em seu lugar Em sua casa, a rotina se modifica. Amélia já não tem tempo para trabalhar ou se cuidar – agora, é os olhos do marido. "Eu me sinto uma pessoa inútil, porque praticamente em casa não tem como fazer nada. O que um cego vai fazer? Nada!", Candeia diz. A casa e a esposa ficam a serviço das ordens e necessidades de Candeia. Com o passar do tempo, Candeia vai descobrindo a necessidade de manter tudo em seu lugar. Amélia sempre gostou da casa a seu modo e, a cada arrumação, uma nova discussão se arma. Candeia explica que os objetos deveriam ficar sempre no mesmo lugar: se havia deixado o chinelo embaixo da cama, era ali que ele deveria estar. Amélia assim o fez. A casa não poderia ser mexida, refletindo o corpo imóvel de Candeia, que não ia mais as manhãs à padaria comprar o pão e o jornal, nem tinha mais contato com os seus amigos da praça. O sofá tornou-se o assento de seu ônibus e a televisão, o seu veículo de acesso ao mundo. Seus movimentos se restringiam apenas ao alcançar das mãos. "Meu cotidiano em casa é: ver televisão, almoçar, jantar, às vezes aparece um amigo para conversar." Seus pés, antes ágeis nos pedais, hoje andam em falso, tateando o chão com cuidado e medo por não saber onde dará o próximo passo. "Quando eu ando pela minha casa vou arrastando o pé para ver se não tem nada no caminho, se não fizer isso posso me machucar ou machucar o meu gato, que volta e meia leva um pisão no rabo." Como dito anteriormente, uma vez que a cegueira foi apropriada pelo idioma da biomedicina, ela passou a ser articulada como déficit, falta, desvio por relação a uma norma corporal Página 64
almejada. Este tipo de entendimento acerca da deficiência visual marca muitas das experiências das pessoas com deficiência visual. No entanto, Martins (2006a) salienta que as experiências vividas pelas pessoas acometidas pela cegueira apontam para múltiplos modos de existir sem ver, longe da concepção de deficiência como déficit. Tal registro diz respeito às invenções e possibilidades criadas e vividas por essas pessoas. Assim, como dissemos no item anterior, as concepções de cegueira oscilam entre aquelas que são biologizantes e que fazem da falta da visão um desvio, uma falha; e aquelas que definem a deficiência como fruto de um contexto social opressor e excludente. Nosso trabalho de pesquisa situa-se entre tais concepções. Isso porque, ainda que considerando a relevância dos movimentos sociais no campo da deficiência, parece-nos que estes movimentos buscam definir a deficiência por uma identidade não mais natural, mas, antes, social. Assim, seguindo Law (1999) afirmamos que, tanto numa quanto noutra perspectiva, o que está em jogo é a construção de uma concepção identitária da deficiência, seja ela social ou natural. Martins (2006a) elabora a mesma análise quando afirma que tanto em um cenário quanto no outro as reflexividades, as narrativas das pessoas com deficiência estão ausentes, esquecidas, relegadas ao segundo plano. É por este motivo que tal autor convoca as ciências humanas e sociais a retomarem este tema investindo nas narrativas das pessoas com deficiência visual, porque é através destas narrativas que são desafiadas as concepções hegemônicas de cegueira. Isto é, para o autor, importa seguir os processos de transformação que uma pessoa passa quando acometida pela cegueira. Estes processos indicam uma construção que se faz no corpo, encarnada, vivida, encenada no cotidiano, palco onde são reinventadas as concepções de cegueira longe daquelas de déficit, falta; mas também longe da homogenização que demarca a deficiência como um efeito do contexto social. 4) Encontrando novos personagens – outros diálogos A notícia de sua cegueira percorreu a cidade. Rapidamente chegou aos lugares que costumava frequentar – no ponto final do ônibus, na roda de samba, faziam falta suas piadas e seus passos no salão. Passou a receber telefonemas e visitas que duravam horas. Numa dessas, um amigo, também motorista, contou que outro dia levou um passageiro cego a uma instituição que atendia quem tinha perdido a visão. Curioso, fez várias perguntas ao passageiro, que lhe deixou seu contato caso quisesse saber algo mais. Candeia não deu ouvidos. O que faria neste lugar, já que não voltaria a enxergar? Amélia e seu amigo insistiram tanto que ele aceitou ir. Passados os exames, Candeia se matriculou na reabilitação38 do IBC. Lá, passou a participar de diversas aulas – artesanato, sensibilização do tato, Braille, Orientação e mobilidade. Um novo mundo de possibilidades começa a se desvelar para Candeia. Seu corpo, antes articulado com o sofá de sua casa e sua esposa, agora passa a ensaiar novas conexões. Já apresentamos algumas palavras sobre o modo como abordamos o corpo neste trabalho e agora iremos aprofundar um pouco mais a Página 65
questão. Entendemos o corpo como resultante de uma produção, como fruto da conexão de diversas redes múltiplas e heterogêneas. Isso quer dizer que o tomamos como um efeito, e não como algo pré-estabelecido. Segundo Latour (1999), o corpo não é um objeto isolado; por isso, ter um corpo é aprender a ser afetado, efetuado, deslocado. Para este autor, ter um corpo é ser constantemente posto em movimento por meio de conexões com elementos os mais díspares e heterogêneos. Desta forma, o corpo não está dado e, portanto, não possuímos um corpo, no sentido de um objeto isolado que se confunde com o corpo anatômico; o que está em jogo é que, na medida em que somos afetados pelo mundo, nós adquirimos um corpo. Para Latour (1999), adquirir um corpo é um empreendimento progressivo que produz, ao mesmo tempo, o mundo sensorial e o mundo sensível. Em outras palavras, o autor compreende o corpo como uma superfície cognitiva, que se produz a partir dos encontros com o mundo: quanto mais conexões este corpo fizer, mais real ele será e mais realidade produzirá. Portanto, entendemos, neste trabalho, que é a partir do corpo que habitamos um mundo e que criamos este mesmo mundo, ou seja, que produzimos modos de vida. O corpo assume variações enquanto modos de existência, ele produz a diferença. O corpo é, então, definido a partir da capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo e de transformar-se neste processo. Conforme Latour (1999) dizemos que o corpo é: "...uma interface que se torna mais e mais descritível quando aprende a ser afetada por mais elementos. O corpo é então não uma residência provisória de algo superior – uma alma imortal, o universal ou o pensamento – mas o que deixa uma trajetória dinâmica pela qual nós aprendemos a registrar e a nos tornar sensíveis para aquilo de que o mundo é feito. Tal é a grande virtude desta definição: não há sentido em definir o corpo diretamente, mas apenas tornando o corpo sensível ao que estes outros elementos são. Ao focar o corpo, estamos imediatamente – ou melhor, mediatamente – dirigidos para aquilo que sensibilizou o corpo." (Latour, 1999, p. 1) Seguindo as pistas de Latour, Serres diz que o sentido “primeiro”, que nos permite nos reconhecer como um corpo, é o tato, tomando-o no sentido de interface, de contato, ou seja, aquilo que nos liga ao mundo. Antes que possamos ver ou ouvir, sentimos o contato, o qual nos ajuda a perceber nosso contorno corporal ao mesmo tempo em que nos lança ao mundo, que nos serve de meio para nos relacionarmos com as coisas. Em consonância com Latour, Serres indica que todos os nossos sentidos são posteriores ao tato. Ele nos diz: “O tato parece predominar, reunir o sentido comum, soma dos cinco sentidos” (Serres, 2001, p. 11). Em sua obra, Serres (2001) utiliza a metáfora da tapeçaria tanto para refletir sobre os sentidos e o corpo quanto para falar do modo como apresentamos nossas reflexões sobre o assunto. A tapeçaria se apresenta como textura, como forma de apresentação dos sentidos ao tato. Ao tocarmos a tapeçaria, nossa pele é conectada a ela de uma maneira própria. O corpo que consegue sentir a suavidade da textura já é um corpo produzido pela tapeçaria. Dito de outro modo, o toque da tapeçaria modifica o corpo que a toca, produz nele a suavidade. Este, por sua vez, modifica o modo como a tapeçaria é percebida. Os sentidos não se Página 66
distinguem do que sentem. No mar de sensações, apresentado nas tapeçarias, encontramos sempre a textura dos tapetes, o entrelaçamento de seus fios e os nós de suas conexões. "Generalizando esta hipótese, diríamos que o tecido, o têxtil, o estofo dão excelentes modelos de conhecimento, excelentes objetos quase abstratos, primeiras variedades: o mundo é um amontoado de panos." (Serres, 2001, p. 79). Assim, parece-nos possível afirmar que, para Serres (2001, 1993) e para Latour (1994, 1999), a cognição não é o atributo de um sujeito dado, mas sim o efeito das afetações entre corpo e mundo. Conhecemos a partir de nossos engajamentos práticos, de nossos contatos com o mundo. Para Serres (2001, 2004), ainda, fazer um corpo é deixar-se tatuar pelo mundo, é constituir-se a partir de suas mediações e afecções. O corpo se constitui como relação, como conexão. Assim, nossos contatos com o mundo são estabelecidos a partir de uma superfície tênue: nossa pele. São estes contatos que fabricam o corpo e, ao mesmo tempo, a cognição. "Atônito, o público não sabe mais se deve calar-se ou rir. De fato a roupa do rei anuncia o inverso do que ele pretende. Composição descombinada, feita de pedaços, de trapos de todos os tamanhos, mil formas e cores variadas, de idades diversas, de proveniências diferentes, mal alinhavados, justapostos sem harmonia, sem nenhuma atenção a combinações, remendados segundo as circunstâncias, à medida das necessidades, dos acidentes e das contingências, será que mostra uma espécie de mapa-mundi, o mapa das viagens do artista, como uma mala constelada de marcas? O lá fora, então, nunca é como aqui. Nenhuma peça se parece com qualquer outra, nenhuma província poderia jamais ser comparada com qualquer outra, e todas as culturas diferem." (Serres, 1993 p. 2) Desse modo, através da narrativa que colhemos com Candeia, vamos seguindo os modos pelos quais seu corpo afeta e é afetado pelo mundo a sua volta: corpo-samba, corpo-sofá, corpo-Braille, corpo-experimentações... Múltiplos ordenamentos da cegueira, múltiplas formas de afetar e ser afetado, Candeia reinventa a cegueira em seu cotidiano: da imobilidade do sofá às novas articulações com elementos díspares e heterogêneos. 5) Primeiro capítulo – inaugurando linhas no diário da oficina Candeia encontrou dificuldades em certas atividades. Não se interessou pelas aulas de Braille, se sentia velho para aprender algo que acreditava não lhe ter grande serventia. As aulas de orientação e mobilidade se configuravam como um grande desafio, pois esbarravam em uma das suas maiores dificuldades em relação à sua recente cegueira, já que, para ele, a falta de visão se articulava com a impossibilidade de se mover. Um colega insistia, dizia que, se ele não se exercitasse, aquela aula de nada adiantaria “Candeia precisa de um trabalho prévio, deste jeito não é possível aprender a se locomover com a bengala, ele mal tem equilíbrio para andar sem a bengala, imagina com? Não tem força nas pernas e o pior, não se levanta do sofá de sua casa para nada, se ele continuar assim não dá, já falei para ele... ele Página 67
precisa se mexer, senão, quando ele quiser se mexer, não vai dar mais!!!” Do samba de roda, Candeia agora estava em uma roda de gente na Oficina de Experimentação Corporal. Entramos em contato com Candeia logo no início das Oficinas de Experimentação Corporal no setor de reabilitação, em março de 2008. Neste momento, mais atores começam a participar da rede que compõe a sua vida e sua cegueira, pois se incluíam agora, o IBC, o sair de casa, o ônibus que teria que tomar, as pessoas que passou a conhecer, as oficinas que começou a frequentar, entre outros. A ligação entre seu corpo e o sofá de sua casa, neste momento, começa a se enfraquecer. Como neste período Candeia estava com muita dificuldade de andar, grande falta de equilíbrio e dores por todo corpo, foi indicado para participar da Oficina de Experimentação Corporal. Na primeira Oficina, percebemos sua enorme dificuldade de se locomover; além disso, precisava de ajuda para se sentar e levantar do chão e não conseguia sentar em roda sem que tivesse a parede para lhe apoiar as costas. Em nossa primeira conversa, Candeia nos fala: “O que eu procuro no IBC é andar melhor, minhas pernas estão fracas e desequilibro muito, mal consigo andar dentro de casa.” Com esta fala, percebemos que, de alguma forma, algo diferente da conexão entre cegueira e imobilidade se processava em sua vida: Candeia queria andar. Em nossa pesquisa, criamos algumas estratégias para a colheita39 das narrativas pessoais das pessoas cegas. Além de entrevistas semiestruturadas com os reabilitandos e seus acompanhantes, inauguramos, há três anos, as Oficinas de Experimentação Corporal, espaço criado para acompanhar os modos pelos quais as pessoas vivenciam a falta de visão e reordenam suas experiências corporais. Oferecidas duas vezes por semana a dois grupos de pessoas cegas e com baixa visão, participantes do programa de reabilitação oferecido pelo IBC, estas oficinas têm a finalidade de promover, de modo lúdico, experimentações corporais e sensoriais com pessoas que perderam a visão recentemente ou estão em vias de perdê-la. Tais experimentações têm o objetivo de promover, de algum modo, experiências que coloquem em questão os padrões corporais estabelecidos ou que, de alguma forma, possibilitem a criação de novos territórios corporais que incluam a falta de visão. Nas Oficinas, nosso objetivo é criar dispositivos de intervenção que mobilizem e modifiquem o corpo, fazendo-o diferir, derivar, ampliando, dessa forma, as possibilidades de conhecimento de si, do outro e do espaço. Não abordamos, como dissemos em outro item, o corpo como objeto natural e mecânico, mas antes como algo que é construído, feito a partir das conexões e dos encontros com o mundo. Quando falamos em construção, apontamos para o processo através do qual o corpo é feito, processo que envolve um engajamento prático, efetivo com o mundo, e que mobiliza elementos heterogêneos. Assim, nas Oficinas de Experimentação Corporal, lidamos com corpos que foram acometidos com a perda de um sentido, corpos que se modificaram e que passam por um processo de variação, de transformação, que consiste em aprender, ou antes, reaprender a ser afetado, movido e efetuado pelo mundo. Estas variações do corpo são, para nós, ocasião de invenção de novos caminhos para o Página 68
perceber. Desse processo resulta uma experiência perceptiva inteiramente original e singular. Em nosso trabalho de campo, registramos os dados através de notas tomadas em diários de campo. Estes diários são digitalizados, lidos e discutidos por toda a equipe da pesquisa. Nele encontramos registros de tais processos de variação e de transformação que envolvem o tornar-se cego. São registros diversos que, se de um lado apontam para o sentimento de perda que o ser acometido pela cegueira envolve, de outro, indicam a invenção de novos modos de estar no mundo. Candeia e os outros participantes da Oficina inauguram linhas no diário de campo com as possibilidades de reinventar a cegueira. 6) Neologismos – invenções da escrita Nas Oficinas seguintes decidimos começar por um trabalho com os pés, já que estes são um dos responsáveis pelo equilíbrio e pelo andar. Não só Candeia falava dos desequilíbrios dos passos, mas também outros participantes apontavam para a mesma questão. Quando lhes pedimos que massageassem os próprios pés, Candeia nos disse: “Faz duas semanas que eu não toco o meu pé”. As Oficinas foram seguindo e Candeia estava diferente, ficava à vontade, conversava com todos, percebia e experimentava seu corpo. Em um dos encontros, trabalhamos com vários tipos de elásticos. Pedimos para que eles experimentassem em seus corpos a propriedade do esticar do elástico. Candeia nos disse: “Gostei do trabalho com o elástico, ele movimentou muito nossos corpos”. Parecia que algo diferente estava se processando em sua vida, estava com gosto por se movimentar. Em outra Oficina, chegou contando que no dia anterior havia saído com seu neto para caminhar. Candeia parecia estar fazendo novas redes e reconstruindo um corpo. Certa vez nos disse: “Quando a gente fica cego, a gente vira criança novamente, tem que aprender tudo de novo. Quando a gente vê, a gente sabe uma teoria; quando ficamos cegos, é preciso aprender outra teoria”. Percebíamos que novas “teorias” estavam em pleno processo de fabricação, teorias criadas a partir de um processo intenso de produção, onde Candeia podia experimentar suas possibilidades, fazer novas conexões e rearranjos das redes que teciam a sua vida. Com o passar do tempo, percebíamos Candeia mais seguro e com vontade de descobrir as potencialidades de seu corpo. Em uma outra ocasião, realizamos um trabalho com os apoios (partes do corpo que lhe sustentam e que tocam o chão). Fizemos vários tipos de experimentações, que incluíam a percepção dos apoios necessários para levantar e descer ao chão, para caminhar; experimentamos vários caminhos possíveis para fazer esse movimento. Neste mesmo dia, Candeia constatou: “Tenho o joelho fraco de tanto jogar futebol. Para eu subir do chão, preciso apoiar minhas mãos – elas sim me dão firmeza para levantar”. Candeia estava criando novas possibilidades de movimento, novas possibilidades para si, novas possibilidades para seu corpo. Por meio de atividades que envolvem a experimentação de materiais, consciência corporal, noções de espaço, dança, equilíbrio, atenção, contato, dramatizações e sensibilização, o grupo participante da Oficina é levado a experimentar e se deparar com seus corpos e com a possibilidade de recriá-los, de reinventar Página 69
a si mesmos, assim como as suas experiências acerca da cegueira, possibilitando, desta forma, a criação de outras conexões a partir destas experimentações. Podemos definir nossa Oficina como um espaço performativo no qual a cegueira é colocada em cena de múltiplos e heterogêneos modos. Neste processo, a própria cegueira também tem a oportunidade de ser recriada, afirmando, deste modo, seu caráter de produção. Além disso, as experimentações também estão voltadas para recolher e captar as invenções e estratégias já criadas pelos participantes para lidar com sua cegueira, e então abrimos um espaço para que estas invenções sejam tematizadas e partilhadas. Neste momento, nossa pesquisa se afina com Spink (2003), quando ele nos fala do conceito de co-construção na pesquisa. Para o autor, o pesquisador e pesquisado passam por um processo de transformação recíproca, de tal modo que as questões da pesquisa são negociadas com o grupo, são ali modificadas, transformadas. Nosso objetivo é seguir os modos pelos quais a cegueira existe, os modos pelos quais ela vai se constituindo através de arranjos bastante heterogêneos que articulam humanos a não humanos, materialidades a socialidades (Law & Mol, 1995). São estes elementos que fazem existir as cegueiras. Candeia, certa vez, nos chamou a atenção: “Olha como eu estou descendo a escada. Agora desço sozinho”. O descer a escada sozinho se amplifica e contagia outros espaços fora da Oficina de Experimentação Corporal, como quando ele nos conta que levou o neto para passear na pracinha ou quando dançou com a esposa em uma festa. São movimentos simples e singulares que mostram a desestabilização de um discurso único de cegueira. Nosso objetivo está em acompanhar esse processo, ampliando a rede de conexões que interferem nas ações cotidianas de viver sem a visão, de andar com ou sem a bengala, de criar estratégias as mais diversas para atravessar a rua, de articular-se a dispositivos os mais variados, relógios, regletes, sons, odores, softwares, temperaturas e tantos outros. O que chama atenção nas narrativas das pessoas com deficiência visual, colhidas durante as Oficinas e em entrevistas, é o fato de que elas apontam para múltiplos modos de ser da cegueira, e o que move esta pesquisa é a afirmação da potência inventiva de tal multiplicidade. 7) Contação de histórias – descobrindo outro jeito de contar No final do ano de 2008, quando fazíamos um balanço das atividades daquele ano e nos despedíamos para as férias de janeiro, Candeia fala: “Se paramos de nos movimentar, começamos a enferrujar (...) Hoje em dia estou fazendo mais coisas, me sinto mais leve, tô com vontade até de jogar futebol.” E prosseguiu: “Eu trabalhava com o público. Não tenho visão, mas tenho orientação. Pelo andar do ônibus, pelas curvas que ele faz, sei onde estou. É um fenômeno. A nossa mente é que nos carrega. Não fiquei rico na minha situação financeira, mas fiquei na minha saúde. Tenho minha mulher, meus filhos, então estou bem. Fiquei muito surpreso com um amigo que me ajudou”. Com estas falas, Candeia nos dizia acerca de como vinha reconstruindo as conexões entre seu corpo, a recente cegueira e a mobilidade. Apontava-nos outras possibilidades de conexão da sua vida com, por exemplo, a saúde, com a sua capacidade de orientação e as novas descobertas acerca de seu Página 70
corpo e de como poderia se locomover. Sua cegueira, agora, passara a ter outras conexões que não só com a imobilidade e o sofá de sua casa. É interessante sublinhar que, para Candeia, a orientação espacial, antes totalmente pautada na visão, passa a estar atrelada a outras formas de organização dos sentidos e da experiência corporal. Destacamos ainda que a sua fala aponta para a mente como um fenômeno encarnado, atrelado ao andar do ônibus, às curvas. Dito com outras palavras, para ele, ser guiado pela mente significa ser afetado pelo mundo – as curvas, o andar do ônibus, uma vez conectados às experiências corporais, engendram modos até então inéditos de conhecer o caminho percorrido. Podemos aqui também mencionar as materialidades das quais todos nós dependemos; corpo como suporte primeiro dessa materialidade; corpo como via fundamental de intervenção e afetação do e no mundo. Quando iniciamos as Oficinas de Experimentação Corporal no setor de reabilitação do IBC, encontramos modos diversos de experimentar os corpos acometidos pela cegueira. Em muitas destas experiências, era possível seguir as marcas de uma concepção de cegueira como falta e incapacidade. As atividades oferecidas na Oficina de Experimentação Corporal envolveram uma experimentação do próprio corpo, dos seus limites, das suas potências. Propusemos atividades lúdicas que articulavam sons diversos, texturas e outros materiais heterogêneos. Levamos a cabo aquilo que Serres propõe quando afirma que “o corpo em movimento federa os sentidos e os unifica nele” (Serres, 2004, p. 16). As experimentações corporais permitem que estas pessoas experimentem de outro modo os seus corpos e o mundo a sua volta, da mesma forma que faz, nas palavras de Serres, o montanhês: escalando uma rocha, contempla e acaricia com suas fortes mãos todo o universo que se encontra ao seu alcance. É no contato com a montanha, com suas sinuosidades, seus enigmas, que o mundo se faz presente a ele. Trata-se de uma experiência encarnada, articulada ao tato, ao contato, mais do que a uma visão de sobrevoo. Apostamos na potência deste tipo de experiência quando propomos às pessoas com deficiência visual recém adquirida que experimentem ludicamente os seus sentidos. Como já dito acima, as narrativas dessas pessoas assumem a potência de desafiar o discurso hegemônico da cegueira porque abrem caminhos para muitas outras formas de existir sem a visão. Martins (2006a) sublinha que, desde o século XVIII, a cegueira é, de um lado, identificada à ideia de tragédia e, de outro lado, a uma capacidade superior de visão, como se o cego pudesse ver sem os olhos, ver para além das aparências. Nestes dois extremos estão o “ceguinho, coitadinho” ou o cego que enxerga além, que detém um saber maior. De uma forma ou de outra, o que está em questão é um lugar hierarquizado e, por isso, excludente. O que nos interessa, então, não é falar sobre a deficiência visual, mas produzir conhecimento com aqueles que passam pela experiência de perder a visão, engajando-nos numa prática que se dá com o outro e não sobre o outro (Moraes, 2007, 2006). Quando falamos da deficiência visual, buscamos um referencial singular, que admite tantas outras formas de existir da cegueira. notas: 31
Os nomes utilizados neste trabalho são fictícios a fim de Página 71
preservar o anonimato das pessoas que foram acompanhadas neste processo de pesquisa. 32 Todas as falas colocadas entre aspas neste artigo são referentes a notas dos diários de campo de 2008, Projeto Perceber sem Ver, a partir das Oficinas de Experimentação Corporal, da qual falaremos mais adiante. 33 Agradecemos à Faperj, ao Cnpq e à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Fluminense pelo apoio recebido para a realização desta pesquisa/extensão. 34 Modos de ordenamento é um conceito proposto por Law (1994, p. 95) para indicar o processo social como um verbo, mais do que como um substantivo. Isto é, o social é um processo contínuo, precário, marcado por sua heterogeneidade e multiplicidade. Este conceito implica a aposta de um deslocamento de uma concepção de social como algo dado, estabilizado para a afirmação de um contínuo processo precário de fabricação e construção de ordenamentos. 35 Centro de referência nacional no campo da deficiência visual, situado na cidade do Rio de Janeiro. Para conhecer mais sobre o IBC, consulte o site http://www.ibc.gov.br/ 36 Para uma concepção de corpo que segue esta mesma direção, cf. o capítulo de Laura Pozzana, inserido nesta coletânea. 37 Não encontramos, em português, palavras que possam traduzir claramente estes dois termos. Por isso, optamos por mantê-los em inglês. 38 Este setor atende pessoas que adquiriram a cegueira na idade adulta e que buscam (re)aprender modos de viver sem a visão, seja através do uso da bengala, da leitura e da escrita através do sistema Braille, e atividades da vida diária, seja através de uma série de oficinas de artes. 39 Utilizamos a expressão “colheita de narrativas” em lugar do tradicional “coleta de dados” para fazer menção ao modo como lidamos com as informações do campo. O termo colheita parece-nos mais adequado à metodologia que utilizamos porque a conotação do termo envolve um processo de semear, de preparar o solo antes de recolher dele os frutos. É precisamente este o viés que utilizamos em nossa metodologia, isto é, as narrativas que colhemos são frutos de um modo de pesquisar que envolve o outro, um pesquisar que se faz a partir de um engajamento prático com o outro, num processo de transformação recíproca. Neste sentido, como o leitor verá mais adiante, as intervenções que propomos são partilhadas e negociadas com o grupo de pessoas com deficiência visual. Salientamos que este modo de entender as relações com o campo de pesquisa está presente em Spink 2003; Law e Mol, 1995. Referências Bibliográficas: BELARMINO, J. Aspectos comunicativos da percepção tátil: a escrita em relevo como mecanismo semiótico da cultura. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004. CHAUÍ, M. Janela da Alma, Espelho do Mundo. In: NOVAES, A. (org). O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1998. LATOUR, B. How to talk about the body? 1999. Disponível em: Página 72
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Tateando, Fabricando, Explorando, Implementando, Parangoleando um dispositivo clínico Alexandra C. Tsallis, Bernardo Antônio. A. P. de Souza, Elisa Junger, Jessica David, Leonardo Reis Moreira, Renata Machado, Rodrigo Pires Madeira, Virgínia Menezes, Willy H. Rulff O movimento foi uma das inspirações de Hélio Oiticica na criação dos seus parangolés: as cores, detalhes, camadas, texturas, formas e materiais destas obras de arte – ou antiarte, como preferia Oiticica – só fazem sentido quando esvoaçantes por aí. Uma vez que saia da inércia, um parangolé nunca mais será o mesmo, bem como aquele que se mexe juntamente com ele. É sempre uma co-criação a cada momento. A obra inventa o artista ao mesmo tempo em que o artista cria a obra. Em movimento: é como se encontra o Dispositivo Clínico, a possibilidade de reinventar-se a cada instante e recriar-se a partir de encontros nos instiga. Na verdade, melhor seria dizermos que ele se realiza enquanto duplo movimento: um, de ir a campo com nossas questões e outro, de deixar-vir o campo com suas próprias questões. Para expressar esse parangolé, apostamos na polifonia. Assim, quando um singelo “eu” aparecer no decorrer do texto, na verdade o que temos é um emaranhado de “nós” que se coadunam40. O nosso foi ganhando, no decorrer do trabalho, assim como na escrita do próprio texto, um contorno que extrapola os autores: ele se distribui entre todos aqueles que se dispuserem ao movimento. Tateando o campo Lembro do nosso primeiro encontro no Instituto Benjamin Constant e as primeiras impressões que tive de cada participante. Um deles era Toddy41, um senhor de 64 anos que, com a ajuda de sua bengala, dirigiu-se ao fundo da sala. Sentou-se afastado dos demais participantes e familiares, guardou a bengala e, com os braços cruzados, esperou silenciosamente o início do encontro. Minha primeira impressão de que ele era uma pessoa reservada foi, em parte, confirmada durante sua apresentação. Toddy, sempre inquieto e gesticulando muito, logo nos disse que não pode ser frágil, pois o mundo é competitivo e ele não quer se vitimizar por ser cego. (...) No decorrer dos encontros, continuava difícil acessar um lado mais íntimo de Toddy, sua fortaleza, montada em torno de seus comentários polêmicos e discursos de superação, parecia impenetrável. Vira e mexe ele diz: “Eu tenho um colete. Venho para cá de colete.” Essa frase soa como uma aposta: ao mesmo tempo que pede para ficar longe, convida para estar perto. (...) Após poucos meses de grupo, este atendimento parecia mais intenso do que em outros dias para Toddy, ele falava e gesticulava muito. Estávamos sentados em roda e eu estava em frente a ele, sentada ao lado de Leda, a pessoa com a qual ele discutia. Ela tentava falar, mas ele não deixava. Aquela intensidade tinha assumido tal forma que ninguém conseguia intervir junto a Toddy, ele já não escutava. O assunto em pauta era sobre um chat de pessoas cegas, que funcionava através de um Página 74
telefone. A pessoa ao meu lado dizia que não queria participar e ele insistia de forma veemente: “Você não precisa se preocupar. Se eu tô dizendo que é seguro [referindo-se ao chat], você pode acreditar.” Ele seguia nessa linha, só que seu tom era cada vez mais alto, falava cada vez mais rápido. Ela, por sua vez, escutava e tentava em vão falar e explicar-se. Fui ficando tensa com aquela discussão e me cobrava, como facilitadora, retomar um processo de escuta mais efetivo para aquele encontro. Quais os pré-requisitos que temos quando nos propomos a trabalhar clinicamente? Certamente essa pergunta pode receber diferentes respostas dependendo do lugar do qual nos dispomos a responder enquanto psicólogos clínicos. É possível imaginar que nos referimos aqui às diferenças entre abordagens teóricas da Psicologia. No entanto, deixemos de lado essa possibilidade de resposta e recoloquemos a pergunta em outros termos: antes mesmo das diferentes abordagens teóricas, quais são nossos pré-requisitos sensoriais? De que maneira nossos sentidos se organizam e podem se cristalizar em um determinado fazer clínico? A partir da implementação de um Dispositivo Clínico (DC) com pessoas42 que em algum momento de suas vidas ficaram cegas, tivemos a oportunidade de revisitar a clínica psicológica. Começamos a nos interrogar sobre quais os efeitos que se produzem na clínica quando nossa organização sensorial privilegia certos sentidos em detrimento de outros, ou seja, o que fabricamos quando trabalhamos a partir de um determinado arranjo sensorial? Sem dúvida, é possível fabricar muitos mal-entendidos. No compartilhar dessa experiência com aqueles que não veem, pudemos problematizar a herança sensorial silenciosa com a qual trabalhamos na clínica. O campo foi o território onde sentimos na carne os efeitos dessa herança, bem como o quão promissores podem ser esses mal-entendidos. O Dispositivo Clínico é um projeto de pesquisarCOM43 que implementou um grupo de atendimento terapêutico para receber pessoas com deficiência visual do setor de reabilitação do Instituto Benjamin Constant. Propusemos o DC não como uma clínica PARA os cegos; pelo contrário, apostamos no processo que se constituiu fundamentalmente COM os cegos. Afinal, "É pelo seu lado de dentro que a experiência vai cavando e modulando a subjetividade." (Kastrup, 2008b). Nesse sentido, foi de dentro do DC que o COM se tornou uma experiência concreta e tangível. O dispositivo foi composto por uma equipe para atender a dois grupos de oito pessoas, reabilitandos cegos ou com baixa visão, triadas pelo próprio IBC. Ele contou com quatro psicólogas, que formaram duplas para ocupar o lugar de facilitadores do processo. Além delas, participaram quatro estagiários em cada grupo, alunos de graduação de Psicologia, dois deles podendo intervir junto ao grupo e outros dois elaborando diários de campo, cujo objetivo era produzir material reflexivo sobre encontros. Os atendimentos clínicos aconteceram uma vez por semana com cada grupo, com tempo marcado e duração aproximada de duas horas. O período foi estabelecido ao início do trabalho e teve a duração de dez meses. Nesse prazo, mais do que a resolução de questões, objetivou-se fomentar um processo de reflexão de si que pudesse se articular ao encontro sem depender dele. Sendo assim, o objetivo central do dispositivo foi abrir um espaço de troca e escuta para as questões que atravessavam aquelas pessoas, entendendo-as em sua Página 75
singular diferença. Para explicitar o próprio nome escolhido, qual seja, Dispositivo Clínico, vale trabalhar cada um dos termos em separado. Foucault (1979) define o termo dispositivo como “um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos.” (p. 244). Tomando como base essa noção, Deleuze (1990) pergunta “O que é um dispositivo?” e inicia sua resposta afirmando: "Em primeiro lugar, é uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear. É composto por linhas de natureza diferente e essas linhas do dispositivo não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras. (...) Dessa maneira, as três grandes instâncias que Foucault distingue sucessivamente (Saber, Poder e Subjetividade) não possuem, de modo definitivo, contornos definitivos; são antes cadeias de variáveis relacionadas entre si. (...) Desemaranhar as linhas de um dispositivo é, em cada caso, traçar um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que Foucault chama de 'trabalho em terreno'." (p. 1) Seguindo nessa direção, Gomart e Hennion (1999) ressaltam que "o poder gerador dos dispositivos depende da sua capacidade para criar e fazer uso de novas capacidades nas pessoas que passam por eles” (p. 220). A essa última proposição, acrescentaríamos que os dispositivos podem gerar novas capacidades também em não humanos, a partir dos próprios efeitos engendrados nas suas articulações com humanos. Não raro, durante nossos encontros, pudemos presenciar bengalas, celulares, portas, bem como outros não humanos, ganharem novas conexões (Kastrup e Tsallis, 2010). O termo clínico é pensado em sua articulação com a noção de dispositivo e congrega a ideia de conceber aqueles encontros enquanto um campo experiencial. Nesse sentido, a potência de vida de cada um foi o espaço, por excelência, da produção de uma singularidade. Em contrapartida, a heterogeneidade deu suporte para a constituição do grupo, assim como para a ampliação dos territórios reflexivos de nosso próprio modo de conceber a clínica em ação. “O que caracteriza um dispositivo é sua capacidade de irrupção naquilo que se encontra bloqueado para a criação, é seu teor de liberdade em se desfazer dos códigos, que dão a tudo o mesmo sentido. O dispositivo tensiona, movimenta, desloca para outro lugar, provoca outros agenciamentos. Ele é feito de conexões e, ao mesmo tempo, produz outras” (Kastrup e Barros, 2009, p. 90). Dessa forma, tornou-se necessário ancorarmo-nos à ideia de uma clínica ampliada4. Esta se diferencia de uma clínica científica e cartesiana ao tomar o sujeito em sua temporalidade e historicidade, pautada em um tempo não linear, mas de coexistência, possibilitando, assim, a abertura a multiplicidades e devires. Em outras palavras, "clínica aqui passa a ser entendida Página 76
como tecnologia da subjetividade inventando sempre novas formas de reordenar a existência" (Paulon, 2004, p. 269). Não tivemos por objetivo, então, revelar uma verdade que pudesse estar por trás do sujeito, mas promover novos modos de ser e estar no mundo que propiciassem uma reconfiguração de territórios existenciais. Isso possibilita compreender o grupo terapêutico não como um mero aglomerado de indivíduos isolados, mas como a resultante de um processo contínuo de construção. Como consequência dessa opção, recusamo-nos a estabelecer as bases de trabalho sobre a noção de uma identidade do cego, ou seja, não entendemos o grupo como um lugar em que papéis já estivessem pré-definidos em função da deficiência visual. Vale destacar que não partimos da ideia de que exista uma psicologia da cegueira previamente estabelecida ou mesmo de uma ambição em criar essa tal especialidade em Psicologia. Pelo contrário, entendemos que assumir qualquer uma das posições extremas – de que não existe diferença alguma ou de que são pessoas totalmente diferentes – permanece distante da experiência concreta da deficiência visual. Ver e não ver produzem, igualmente, efeitos e singularidades que devem ser acompanhados e investigados. Em outras palavras, a cegueira produz múltiplos mundos que não se esgotam no negativo de um mundo vidente. A deficiência visual é entendida não como uma questão meramente biológica, mas que se forja entre vetores coletivos pelos quais transitam indagações que congregam, desde os aspectos pragmáticos até os existenciais, envolvidos na experiência de não ver (Kastrup, 2007b). Neste sentido, a cegueira não precisa ser entendida tendo como ponto de partida um patamar identitário. Especificamente no DC, isso significou estar ancorado na singularidade que emergiu daquele e naquele encontro. Isso fez com que a deficiência visual (DV) fosse um, e não o único, vetor de atravessamento desse dispositivo, que era compartilhado por todos que estavam sendo atendidos. Foi acompanhando este vetor em comum em sua articulação com diversos outros vetores, como, por exemplo, os de gênero e os culturais, que pudemos chegar a perguntar sobre nós mesmos, sobre nossas intervenções enquanto psicólogos. Fabricando uma beirada Em um movimento de afetação e experimentação, a presente proposta assumiu como eixo central a plena fabricação de estratégias clínicas. Do ponto de vista local, procuramos, através de gestos, escutas, palavras, olhares e silêncios, acompanhar os enredos de cada participante, percebendo-os em sua singularidade. Buscamos, a partir de cada encontro, fomentar a potência de cada história, assim como ampliar os modos de habitar territórios existenciais diversos, compondo em grupo a nossa potência de criação. Sob esta perspectiva, buscamos construir o que Guattari (2005) denomina de um “grupo sujeito”, ou seja, um grupo capaz de pensar sua própria posição, de abrir-se para o outro e para os processos criadores. Um grupo que tenha por base um coeficiente ampliado de abertura ou transversalidade, o que significa a disponibilidade para operar com vetores distintos daqueles já conhecidos, repetitivos e habituais. Eu acreditava que aquele impasse entre Toddy e Leda era resultante da falta de escuta, assim optei por dizer: “Bom, Toddy, Página 77
vamos tentar escutar a posição do outro. É importante que possamos nos escutar”. Infelizmente, trata-se de mais uma fala não ouvida. Em um determinado ponto, percebo que estou na beirada da cadeira na qual estava sentada. Tínhamos no DC uma série de questões que nos colocavam frente à nossa capacidade de lidar com a alteridade, com a diferença que é produzida no encontro com o outro. Uma diferença que não se dá apenas do lado de fora ou no “entre” da relação, mas é também uma diferença que nos habita, nos confronta e convoca para que busquemos novos espaços de reflexão. É nesse encontro com a alteridade que se pode ampliar o pouco conhecimento significativo acerca da subjetividade das pessoas com deficiência visual. “Mesmo entre os psicólogos ainda existe desconhecimento das peculiaridades e diferenças entre cegueira congênita e adquirida, cegueira total e baixa visão, perda súbita e gradual da visão, bem como entre o cego que recebeu cuidados, estimulação e educação apropriados, e aqueles que não dispuseram de tais oportunidades” (Kastrup, 2007b). Na cegueira congênita, o mundo dos videntes não representa um parâmetro cognitivo, uma vez que essas pessoas jamais experienciaram o mundo a partir desse sentido. Portanto, a vivência do não ver passa a ser construída pelos dados fornecidos por um outro. Já na cegueira adquirida, permanecem dados cognitivos relativos à visão. Dessa forma, a experiência do não ver encontra-se marcada pela experiência da perda. Na mesma linha, é importante considerar as pessoas com baixa visão, denominação que se refere àqueles com ainda resquícios de percepção visual (Carijo, Almeida e Kastrup, 2008b). A beirada da cadeira estava ali, presente em minhas pernas, enquanto eu olhava Toddy fixamente. Aqueles sinais em meu corpo eram o indicativo de que a situação precisava tomar outra direção, pelo menos para mim, sim. Subitamente, me pergunto: que estou fazendo aqui desse jeito, nada disso está presente para ele? Quem está sentindo a beirada sou eu, quem o olha sou eu e ele não sabe nada disso que se passa comigo. “O que eu estou fazendo aqui?” Essa pergunta me levanta da cadeira ao mesmo tempo em que pergunto ao Toddy: “Posso sentar aí do seu lado?” Ele assente, mas ainda está imerso em sua própria fala. Mudei de lugar. Ali, sentada ao lado dele, via um novo cenário, sentia-me mais calma. Em minhas pernas não havia mais a beirada, podia preencher o assento da cadeira. Dessa maneira, o DC nos lança sobre o incerto campo da invenção, no próprio sentido etimológico da palavra, em um campo que nos faz lidar com os restos arqueológicos (Kastrup, 2004). O desafio é aprender a lidar com tal imprevisibilidade, não apenas no sentido de tolerá-la, mas de conseguir tirar partido dela, incluindo-a no processo de invenção (Kastrup, 2008b, p. 9). Nesse sentido, as formulações teórico-metodológicas, tanto da Teoria Ator-Rede (ANT), proposta por Latour (2006, 2005a, 2005b, 2002a), Despret (2001), quanto do método cartográfico (Deleuze e Guattari, 1995; Moraes, 2008; Alvarez e Passos, 2009 e Pozzana e Kastrup, 2009) criam subsídios para que possamos partilhar de um modo de pesquisa que denominamos PesquisarCOM. Cada um dos autores, a seu modo, preconiza que a produção de Página 78
conhecimento e o trabalho de campo não devem ser tratados como instâncias estanques. Pelo contrário, precisam se articular, formando um todo que seja capaz de doar vitalidade, tanto aos processos de pesquisa quanto àqueles vividos no campo. Em particular, a questão metodológica neste trabalho representa um importante tópico, já que, tanto nas proposições da ANT quanto nas da cartografia, ela ocupa um lugar central na produção do conhecimento sobre o campo. Frente a isso, faremos aqui um breve exercício de articulação rumo à investigação ou, no sentido etimológico da palavra, caminhar pelos vestígios. As pistas de trabalho do cartógrafo destacadas por Kastrup (2008b e 2007a) serão amalgamadas com aquelas propostas pela ANT. A primeira delas destaca a importância de perceber que o que se está cartografando é um processo, um movimento; portanto, qualquer tentativa de fechamento será sempre provisória. "A proposta de Deleuze e Guattari não é de um método histórico ou longitudinal, e sim de um método geográfico e transversal. A opção é pela geografia, onde a processualidade ocorre a partir de uma configuração de vetores, forças ou linhas que atuam simultaneamente. As configurações subjetivas não apenas resultam de um processo histórico, mas portam em si mesmas processualidade e guardam a potência do movimento." (Kastrup, 2009, p. 5) Eu continuava com a necessidade de que Toddy pudesse ouvir outras posições, pudesse escutar a fala das outras pessoas. Ter trocado de lugar parecia resolver a necessidade de movimento apenas parcialmente, eu continuava a desejar a escuta efetiva. Mas, com aquela pequena troca de lugar, já não eram meus olhos que me contavam desse desejo. Meus sentidos estavam se deslocando: agora meus ouvidos o escutavam com maior incômodo devido à proximidade das cadeiras. A cartografia sempre tenta capturar um coletivo de forças em ação, portanto, de forças que atuam em um território existencial. Desse modo, faz-se essencial que ela possa desenhar o campo problemático habitado pela subjetividade. Contudo, a tarefa é, a partir desses dados do campo, conseguir produzir conhecimento. É nesse âmbito que a ANT pode ser útil em seu modo de compreender o próprio texto em Ciências Humanas. Será nele que se realizarão os experimentos rumo à produção de conhecimento acerca daquilo que está sendo estudado, o que faz com que o texto corresponda ao laboratório. "Porque este texto, dependendo do modo como está escrito, irá ou não capturar o ator-rede que você deseja estudar. O texto, em nossa disciplina, não é uma história, não é uma bela história, ele é o equivalente funcional de um laboratório. Ele é um local para tentativas, experimentos e simulações. Dependendo do que acontece nele, existe ou não um ator e uma rede sendo traçada." (Latour, 2002b, p. 3) É possível dizer que a ANT, bem como a cartografia, se comportam mais como um modo de abordagem dos fenômenos do que propriamente teorias explicativas (Latour, 1999; Deleuze e Guattari, 1995). Nesse sentido, os actantes44 devem ser acompanhados por meio de suas trajetórias, bem como pelos efeitos Página 79
que são produzidos a partir de suas articulações. Eles não habitam o mundo para cumprir uma dada teoria, isto é, não são elementos a serviço de uma estrutura. Pelo contrário, eles fazem a diferença, eles são insubstituíveis no cenário. Agora eu ouvia Toddy pertinho, ele estava presente para mim em outro sentido. Pois bem, falei novamente, só que agora ao seu lado, não mais a sua frente, não mais de longe, mas de perto: “Toddy, vamos escutar o que o outro tem a te dizer?!” Nada. Ele continuava a falar sem trégua, continuava sem escutar. Comecei a sentir vontade de ficar novamente na beirada da cadeira. Aquilo produzia, sobre mim, um efeito estranho: tornava presente minha necessidade de movimento. Entre videntes, a iminência desse gesto costuma ser lida de forma imediata e produz rapidamente uma sequência de efeitos, “ela quer falar”, “quer sair da situação”, entre outros. Ali, era absolutamente ineficaz. Esse trabalho foi marcado por uma proposta metodológica que visa fundamentar o conhecimento aliado às narrativas de todos os envolvidos na pesquisa, em consonância com o que diversos autores têm afirmado na atualidade (Varela, s.d; Varela, Thompson e Rosch, 2003; Latour, 2001, 1999; Mol e Law, 2000, 2003). Sob essa perspectiva, o conhecimento é entendido como um processo de co-construção, de transformação recíproca entre pesquisador e pesquisado. Desse modo, não se trata, portanto, de uma pesquisa feita sobre cegos ou para cegos, mas COM eles, transformando-os em coautores do conhecimento. Isso significa defender que as estratégias de ação se configuram mais relevantes para os sujeitos pesquisados não quando se originam exclusivamente desse lugar de autoridade que o pesquisador ocupa, mas à medida que são construídas conjuntamente, partindo dos impasses e das questões que afetam e surgem do próprio grupo. Trata-se de uma metodologia que rompe com distinções a priori entre sujeito e objeto, cego e vidente, pesquisador e pesquisado. Desloca-se o pesquisador do lugar central de onde emanaria todo o conhecimento, uma vez que trabalha com a constante construção e negociação dessas distinções. Assim, à medida que se propõe a acompanhar os modos pelos quais os sujeitos narram e vivem a deficiência visual, esse trabalho buscou fazer proliferar as singularidades, os diversos e heterogêneos modos de existir com deficiência visual, positivando os múltiplos modos de ver e de não ver. Explorando territórios Tendo como base a proposta teórico-metodológica descrita acima, nos encontramos diante de uma clínica que precisa dar conta da tarefa de repensar os diversos encontros possíveis entre o ver e o não ver. Para reconstruir essa trajetória clínica, o modo como Despret (2001) concebe o contraste e sua potência de criar estados de dépaysement/desterritorialização45 foi um importante aliado para tornar tangíveis nossas próprias organizações sensoriais durante o DC. Mais uma vez, lá estava a beirada da cadeira. Começo a me perguntar: “Já estou ao lado dele e novamente sinto a beirada da Página 80
cadeira, o que é isso, o que ela quer?” Faço mais um movimento: seguro a mão dele e repito: “Toddy, vamos escutar o que o outro tem a te dizer?!” Ele faz menção de registrar o que digo, mas não o suficiente pra aquietar sua fala. Lá estava eu, Toddy, a beirada da cadeira, a mão de Toddy, minha mão e nada de escuta. Muito bem, sigo e seguro sua outra mão. Entre os sicilianos se diz que uma pessoa pára de falar se lhe segurarem as mãos. Será? Consigo uma nova brecha na fala dele, eu a aproveito e repito: “Toddy, vamos escutar o que o outro tem a te dizer?!” Nesse momento, estava próxima a ele, minha fala era tangível, literalmente tangível. A noção de contraste não deve ser lida como um conceito distante da concretude do mundo. Pelo contrário, ela uma tem como aspecto central a possibilidade de relativizar e rever o caráter de evidência das concepções que são elaboradas em uma determinada cultura e/ou experiência. Assim, o movimento dos etno-psicólogos (Nathan, 2001) de interrogar os “outros”, em terras distantes, sobre o conhecimento produzido em suas culturas reflete a busca por coisas novas e desconhecidas, mesmo que sejam difíceis de serem traduzidas. Vale ressaltar que esse novo e não familiar pode se referir não somente ao que se estuda em outras culturas, mas também pode dizer respeito a tudo aquilo que, no momento do trabalho de campo, surge como disruptivo e gerador de impasses durante a pesquisa. Dessa forma, o fazer ciência, a partir do contraste, pode ser guiado sobre a via da reflexão, fazendo com que a prática científica mostre um interessante caráter de hesitação diante de suas certezas. Nesse sentido, a lição do contraste é aquela que nos sugere que devemos questionar aquilo que nos é evidente, aquilo que para nós é familiar e fazer o movimento, que não é sem esforço, de ir ao encontro do “outro”, que possui outros imperativos distintos dos nossos. Essa postura nos conduz à experiência do dépaysement/desterritorialização. Esse movimento não tem como finalidade tomar o “outro”, os outros modos de existir no mundo, como referência a ser seguida em detrimento dos parâmetros e concepções que são os nossos. O que se deseja mesmo é tomar essa outra referência como algo que nos remete a nós mesmos, que nos permite estranhar aquilo que, para nós, já se encontrava estabilizado, definido, que parece incontestável. Em outras palavras, estranhar aquilo que tem o caráter de evidência para que, nesse encontro com o “outro”, possamos nos perder para nos reencontrar de uma nova maneira, em uma outra condição. Embora eu e Toddy estivéssemos de mãos dadas, ele retoma a fala. É verdade que a intensidade já é outra; com isso, eu aproveito e repito a mesma frase, mas não o mesmo gesto. “Toddy, vamos escutar o que o outro tem a te dizer?!” Já estávamos com as duas mãos dadas e o que fiz foi apoiar aquele enlace sobre o peito de Toddy. Ele e eu repousamos as mãos: “Sim, posso ouvir. Diga.” Naquele momento, ouvimos os dois, com as mãos dadas e repousadas sobre o peito dele. Leda pode falar: “Calma, Toddy, eu entendo tudo isso. Só não quero participar do chat. Obrigada pela sua ajuda, sei que o senhor quer meu bem.” A escuta não estava nos ouvidos, ela era, naquele momento, tátil. Ele não parecia inclinado a continuar falando, sua fala e meu corpo já não estavam na beirada, podíamos escutar. Página 81
Nesses termos, a noção de dépaysement/desterritorialização está intimamente vinculada ao procedimento do contraste. Assim, no encontro com o que não nos é familiar, é preciso cultivar a hesitação, parar um pouco diante desse outro mundo. Buscar não interrogá-lo segundo nossos próprios termos e sim segundo os imperativos que estão presentes ali. Nas palavras de Despret (2009), “qual é a pergunta que devo lhe fazer para aprender algo interessante sobre você?”. Como resultado dessa proposição, temos um conhecimento que se produz em abertura e disponibilidade em relação ao “outro”. Em poucas palavras, o hesitar se enraíza em um território que o nutre de possibilidades. Parangoleando um Dispositivo Clínico Ao apostar em uma concepção da cegueira enquanto abertura para outras dimensões perceptivas e cognitivas de estar no mundo, foi possível buscar estratégias terapêuticas condizentes para nossos encontros. No DC, isso se manifestou na premência de criar recursos que dessem conta da experiência singular de cada um, de modo que todos nós deixássemos de lado a tentativa de superação da alteridade para acolher o que havia de potente ali. O desafio estabelecido foi tentar não compreender a cegueira a partir da visão, mas acompanhar e fazer emergir outras configurações para se estar no mundo, reinventando a condição de não ver, bem como a própria visão no manejo terapêutico. Esse enlace foi, sem dúvida, marcante. Permitiu-me mudar de posição, pemitiu-me escutar com as mãos. É comum que se diga que os olhos de um cego são as mãos, mas creio que os ouvidos de Toddy são mãos dadas sobre o peito. Ele estava diferente ao final daquela sessão. O abraço de tchau durou mais tempo, ele me balançava de um lado para o outro suavemente e dizia obrigado. Nunca conseguimos saber exatamente o que se passa com o outro. Ainda assim, a suavidade com a qual me balançava contava de uma suavidade nele. A veemência tinha encontrado novas possibilidades de energizar Toddy. Na situação vivida, o recurso exclusivamente verbal, que utilizamos de início, mostrou-se insuficiente para o manejo clínico daquele encontro. Isso nos levou a interrogar sobre uma possível negligência acerca da organização sensorial que estava presente no campo e através da qual operávamos de maneira naturalizada. À alteridade centrada a princípio entre o ver e o não ver somou-se a insuficiência do recurso verbal. O impasse protagonizado pela sensação de beirada da cadeira funcionou aqui como uma metáfora dessa experiência de movimento dos sentidos. É fundamental destacarmos que a sensorialidade em movimento foi algo que atravessou a todos, equipe e participantes. Embora, na situação com Toddy, os diários de campo enfatizem os efeitos na equipe, essa reinvenção atravessou a todos no DC. Criou-se, portanto, a possibilidade de recorrer aos outros sentidos, que não só a visão e a fala, como estratégias de construção da clínica no interior do DC, ou seja, todos nós entramos em um processo de reorganização sensorial. O que não era ouvido poderia ser tocado. O que não era visto poderia ser sentido. As expressões faciais, posturas e gestos, poderiam ser reinventadas também por um movimento de sentidos de todos aqueles que ali estavam. Página 82
Não seria justo dizermos que esses efeitos se deram a partir do episódio com Toddy. Na verdade, ele funcionou, em nossas discussões, como um catalisador, nos fez perceber os novos sentidos clínicos que estávamos experienciando. Durante o encontro final deste grupo, o movimento já não acontecia na beirada, tampouco tinha como ponto de partida um psicólogo; ele simplesmente acontecia. A experiência não tinha um ponto de origem específico, mas era facilmente reconhecível por todos que estavam presentes. Eu estava nervosa, não era um nervosismo afobado, mas um nervosismo emocionado. Era nosso último encontro. Aquele grupo ia acabar, ou melhor, ia parar de acontecer naquele formato. Ele agora ganharia o mundo, ia começar a acontecer de outros jeitos. Estávamos praticamente todos ali presentes, de verdade presentes. Alguém pergunta para Daniel: “o que você tem hoje?” Ele responde: “Eu não estou escutando mais. Agora não sei como vou ficar.” Eu entendi. Ele estava se referindo ao aparelho de audição que vinha parando de ajudá-lo a ouvir. Ele já tinha perdido a visão e agora a audição. Fiquei com uma sensação de ilha opressiva, não sabia o que fazer. Toddy diz, nós vamos passear, vamos estar perto. Dali, começam a combinar um encontro no shopping. Aquela saída me parecia boa, os encontros do DC estavam ganhando o mundo. O “perto” daquela frase era bastante concreto. Tudo parecia mais ameno, mas Daniel começa a chorar e eu volto a ter a sensação de ilha. Acho que era a metáfora que conseguia me falar daquela angústia. O silêncio da sala era audível. Sem mais nem menos, não sei quem começou o movimento, sei que fomos aproximando as cadeiras, fomos dando as mãos. As lágrimas já estavam por toda a parte. Todos nós chorávamos. Não era um choro tenso, era um choro compartilhado, ele serenava aquela despedida. O choro acompanhava aquela ilha, tocava suas margens. Toda ilha tem seu oceano, o nosso era aquele. Nós passamos a nos reinventar, deslocando-nos, aproximando-nos, experimentando o toque como possibilidade. Esse dado foi marcante, possivelmente por termos trabalhado com pessoas com cegueira adquirida e não congênita. A referência aos recursos visuais são muito fortes nessas situações. Mesmo quando conversam com outros cegos, gesticulam para explicar rapidamente algo e não é raro escutar perguntas do tipo: Como assim? Você mostrou o que? Aqui aonde? No DC, fomos sendo convidados a experimentar uma reorganização dos nossos sentidos. Seguir pelos vestígios da gesticulação e pegar nas mãos da pessoa que fazia a pergunta, movimentá-las de forma a reproduzir o gestual que havia sido feito. Ao sentir, através dos movimentos do seu próprio corpo, os diálogos se sensorializavam de modo múltiplo e inesperado. Eu creio que a mudança literal de lugar trouxe mais presença aos nossos encontros. A proximidade física foi o sinal necessário para que Toddy conseguisse escutar o que os outros tinham a dizer. A partir daí, ele pôde mudar de posição. Ele permitiu a proximidade e o toque, abriu uma porta em sua fortaleza que deixou o grupo em movimento. Aos poucos, Toddy pôde mostrar seu lado sensível. O colete que usava tinha botões que podiam ficar abertos ou fechados. Página 83
Quem sabe possamos começar a conceber a ideia de uma clínica cuja sensorialidade seja dinâmica? Em outras palavras, um processo terapêutico onde os sentidos sejam organizados e reorganizados inventivamente? A clínica com a cegueira não faz do tato um mero apêndice, mas sim um aliado que aponta para um modo de existir potente na criação de vínculos. Nesse sentido, o mal entendido produzido na experiência com Toddy se fez promissor quando vivemos nosso último encontro. Assim, podemos nos apropriar de nossas heranças sensoriais sem precisar deixá-las invisíveis. Em síntese, nossa experiência no DC nos fez revisitar a clínica em sentidos que vão além da singularidade deste trabalho e, para não encerrar, deixemos o parangolé vivo: qual o nosso fazer clínico quando colocamos a sensorialidade em movimento? As respostas serão sempre locais, não há modelos, apenas mundos possíveis. notas: 40 O jogo de pronomes se refere às transcrições dos diversos trechos dos diários de campo produzidos no transcorrer do Dispositivo Clínico. Assim sendo, mantivemos a primeira pessoa do singular, embora tenham sido vários esses “eus” no campo. Já no decorrer do presente texto, usaremos a primeira pessoa do plural. Padronizar o texto dessa forma tem um motivo específico: desejamos que a diferenciação entre a transcrição do diário e a discussão do texto não aconteça somente através do recurso visual da troca de fonte de letra. 41 Toddy é uma referência a um achocolatado em pó. Nos últimos encontros, pedimos que cada participante escolhesse um nome que o representasse para figurar no material da pesquisa. Toddy escolheu seu nome por ser “algo ligado a energia”, que ele viu em um comercial e gostou. Um de nós, membros da equipe de atendimento, comentou naquele momento que era a “energia que dá gosto”, fazendo uma confusão com a propaganda de outro achocolatado, o Nescau. Nas propagandas do Toddy, ele é referido como “seu companheiro de aventuras” ou “o sabor da verdade”. Todas estas referências ganham movimento singular quando pensamos nos trechos do diário de campo que compõe este artigo. 42 Os participantes eram todos adultos, com idades variando de 18 a 64 anos. 43 Este termo tem como objetivo salientar as dimensões interativa e processual do fazer pesquisa. Nesta perspectiva, não só o pesquisador é quem propõe as questões de pesquisa, mas também aqueles que participam dela. A pesquisa se dá no ato de interagir com o meio que está sendo estudado. Assim, vale dizer que o termo é também um verbo, um “PesquisarCOM”. Cf o texto de Márcia Moraes, nesta coletânea. 4 Essa noção de clínica ampliada surge na década de 60 a partir de Guattari, onde a clínica é atravessada pelos agenciamentos coletivos de produção de subjetividade, implicando transformações no seu processamento (Costa, F. T.; Moehlecke, V. e Fonseca, T. M. G., 2004). 44 Termo utilizado por Latour (2001), a partir de uma interlocução com a semiótica, para explicitar a simetria existente entre atores humanos e não humanos. 45 Como não há uma correspondência exata para o termo dépaysement em português, optamos por utilizar em conjunto com a palavra desterritorialização, por apresentar uma aproximação de sentido com o termo original. Página 84
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A bengala como um instrumento lúdico na orientação e mobilidade do deficiente visual Vera Regina Pereira Ferraz e Lucia Maria Filgueiras Este texto discute uma experiência realizada com crianças deficientes visuais utilizando a pré-bengala em aulas de Orientação e Mobilidade (O.M.) no Instituto Benjamin Constant46. Trata-se de uma experiência inovadora, pois não há consenso entre professores de deficientes visuais sobre a adoção da bengala nas classes de educação infantil e ensino fundamental. Alguns professores alegam que, utilizada por crianças, a bengala ou similar pode causar acidentes ou danos a pessoas ou ao próprio ambiente. As opiniões são, muitas vezes, preconceituosas, sem levar em consideração os benefícios que podem ser obtidos por meio de um processo de aprendizagem conduzido de modo cuidadoso. O assunto é controvertido e são poucas as instituições que atendem crianças cegas que adotam o ensino da bengala. Acreditando que os benefícios do uso da pré-bengala justificam sua introdução, realizamos uma experimentação com uma pré-bengala, utilizada de modo lúdico, com crianças de classes de alfabetização, com o intuito de verificar seus efeitos no aprendizado das técnicas básicas de O.M. e na vida cotidiana dessas crianças. Diversos autores indicam uma introdução precoce da bengala. Felipe (2004) afirma: "Quanto mais cedo melhor. As vivências pré-bengala devem ser trabalhadas tão logo a criança adquira marcha independente sem apoio. A partir do momento que ela consegue segurar e manter a bengala à frente do corpo, introduzem-se manipulações semelhantes as técnicas diagonal, varredura e deslize". (Felipe, 2004, p. 45) No patinho, modo, as caminhar
nosso caso, optamos por um trabalho lúdico utilizando um brinquedo similar a uma bengala, fazendo com que, desse crianças pudessem assimilar as diversas técnicas do independente.
Orientação e mobilidade A Orientação e Mobilidade é uma disciplina que tem como objetivo principal ensinar pessoas deficientes visuais a se locomoverem com segurança. Juntamente com Atividades de Vida Diária47, constitui o diferencial da grade curricular desse grupo de crianças. Para uma pessoa cega, a capacidade de se locomover no espaço, ou seja, sua mobilidade, é considerada pela maioria dos autores como a maior de todas as dificuldades. Fraiberg e Freedman (1964) e Hatwell (2003) referem-se à movimentação no espaço como um dos maiores problemas a serem superados pelo indivíduo cego. Por este motivo, a inclusão da O.M. como disciplina curricular torna-se indispensável para as crianças deficientes visuais. Quanto antes a pessoa cega ou de baixa visão tiver acesso a este conhecimento, mais cedo alcançará autonomia no seu caminhar e, Página 87
consequentemente, segurança ao se locomover. Neste sentido é que propomos a adoção da pré-bengala, bengala para crianças, já que esta permite a detecção de obstáculos, inclinações do solo, depressões e outras características do espaço. Segundo Mariño e Figueiredo (1988), a O.M. pode ser definida como a capacidade de deslocamento intencional de uma parte a outra a partir de estímulos internos e externos. Esta capacidade implica e depende do conhecimento do meio (orientação), do domínio de habilidades motoras (mobilidade) e do desejo de se mover. A orientação mobiliza a percepção tátil, auditiva e olfativa para conhecimento da posição dos objetos do meio circundante. Por meio da percepção não visual, ela vai construir seu mapa mental. O uso do brinquedo como pré-bengala O uso da bengala por crianças pode ser introduzido de forma lúdica durante as aulas de O.M., criando a oportunidade delas se locomoverem de forma mais livre e independente, expandindo seu ambiente de vida. Ao utilizarmos um brinquedo, conferimos às aulas de O.M. um aspecto menos rígido, amenizando seu caráter disciplinar. Além da aquisição do conhecimento sobre o espaço e a correção da postura, as aulas são momentos de brincadeira, algo tão importante para todas as crianças, tanto as que enxergam como aquelas que nada veem. Por isso, o ato de brincar e a opção pelo lúdico são o fio condutor nas aulas de O.M. para crianças, constituindo o ponto fundamental de nossa metodologia. Para Vygotsky (1989), o desenvolvimento da criança não pode ser pensado sem que se considere a questão da ação e é neste contexto que se situa o conceito de brincar. O brincar é uma importante forma de comunicação e é por meio dela que a criança pode experimentar seus desejos e seu cotidiano de forma simbólica. "No início da idade pré-escolar, quando surgem os desejos que não podem ser imediatamente satisfeitos ou esquecidos e permanece ainda a característica do estágio procedente de uma tendência para a satisfação imediata desses desejos, o comportamento da criança muda. Para resolver essa tensão, a criança em idade pré-escolar envolve-se num mundo ilusório e imaginário, onde todos os desejos não realizáveis tornam-se reais, e esse mundo ilusório é o que chamamos de brinquedos." (Vygotsky, 1991, p. 106) De acordo com Vygotsky (1984), no início do desenvolvimento do brincar, a atividade da criança pequena depende diretamente de objetos concretos e das ações que eles permitem. Mas, aos poucos os objetos perdem sua força determinante e a criança começa a agir independente daquilo que se vê. Quando um gesto ou uma palavra transforma um objeto em outro ou uma ação em outra, produz novos sentidos. Quando Vygotsky discute o papel do brinquedo, refere-se especificamente à brincadeira de “faz de conta”, como brincar de casinha, de escolinha ou brincar de andar a cavalo usando um cabo de vassoura. A brincadeira de “faz de conta” é uma situação em que a criança é levada a agir num mundo imaginário. No caso de brincar de dirigir um ônibus, a situação é definida pelo significado estabelecido pela brincadeira – os bancos do ônibus, o motorista, os passageiros – e não pelos elementos concretamente presentes – as cadeiras da casa, por exemplo. Ao brincar de carrinho com uma peça de madeira de um jogo de Página 88
construção, a criança se relaciona com o significado em questão (o carrinho) e não com a peça do jogo que tem nas mãos. Esta serve como uma representação de uma realidade ausente e ajuda a criança a começar a separar o significado dos objetos concretos. Isto contribui para ela se libere dos limites e da determinação das situações. O brinquedo provê, assim, uma situação de transição entre a ação da criança com os objetos concretos e suas ações com os significados produzidos. Sendo assim, as ações com o brinquedo se dão a partir dos significados construídos para os objetos, contribuindo claramente para o desenvolvimento da criança (Oliveira, 1974). Deste modo, é esperado que a escola, e principalmente a educação infantil (pré-escola), promova situações lúdicas, onde o brinquedo seja utilizado com uma função pedagógica, reconhecendo seu papel na aprendizagem. Pensando nesta direção, o brincar com a pré-bengala adquire seu sentido no aprendizado do caminhar com segurança, autonomia e liberdade, expandindo o ambiente de vida da criança com deficiência visual. Na visão sócio-histórica de Vygotsky, a brincadeira e o jogo são atividades típicas da infância, nas quais a criança recria a realidade usando sistemas simbólicos. São atividades sociais e inseridas em um contexto. O brincar é também uma atividade humana criadora, na qual imaginação, fantasia e realidade se combinam na produção de novas possibilidades de interpretação, de expressão e de ação das crianças, assim como de novas formas de construir relações sociais com outros sujeitos, crianças e adultos. No processo da educação infantil, o papel do professor é de suma importância, pois é ele quem cria os espaços de aprendizagem, disponibiliza materiais, participa das brincadeiras, ou seja, faz a mediação da construção do conhecimento. Por meio de brincadeiras de “faz de conta", ele pode avaliar certas dificuldades e também propor estratégias de superação das mesmas. No caso do ensino de O.M. para a criança deficiente visual, o deslocamento espacial, que às vezes é carregado de ansiedade, através da brincadeira pode assumir um caráter lúdico e prazeroso. Ao empurrarem carrinhos, seja de boneca ou de outro tipo, poderão perceber que aquela brincadeira supre uma de suas necessidades, ou seja, elas podem caminhar protegidas, evitando colisões. O carrinho vai à frente de seu corpo, antecipando obstáculos ou desníveis do solo, entre outras surpresas do caminho. O brinquedo é importante para qualquer criança em desenvolvimento, seja ela dotada ou não de visão. A criança que dispõe de visão busca espontaneamente os objetos e é atraída por eles. A criança que não enxerga necessita de uma estimulação especial para se movimentar e conhecer o seu entorno. Ela precisa ser estimulada por outras fontes sensoriais, principalmente táteis e sonoras, para se movimentar e explorar o mundo a sua volta. Bruno (1993a), em seu livro O desenvolvimento integral do portador de deficiência visual, da intervenção precoce à integração escolar, ressalta como brincar amplia o mundo da criança com deficiência visual. "O brincar se dá quando a criança, ao interagir com o meio, sente-se produtora de ação, o que lhe dá prazer. Isto ocorre bem cedo, quando a criança adquire os primeiros esquemas de ação para interagir, surgindo assim os esquemas lúdicos ou imitativos. A imitação nasce com a repetição ativa ao imitar e repetir aquilo que desperta o interesse e lhe dá prazer." (p. 46-47) Página 89
Como para qualquer criança, para a criança deficiente visual brincar é uma importante atividade. A brincadeira evita que ela se isole e podemos ajudá-la a brincar e a descobrir como são os objetos, como eles funcionam, como estão dispostos no espaço e qual a relação entre eles, estimulando suas percepções táteis auditivas, olfativas e gustativas. Todo o seu corpo deve estar em ação. Movimentações corporais são extremamente importantes, principalmente aquelas que estimulam a criança a descobrir o seu corpo e o ambiente a sua volta. Por exemplo, com brincadeiras atrativas e prazerosas como empurrar cadeiras, carrinhos de bonecas e outros, proporcionamos ao mesmo tempo divertimento e uma forma lúdica de realizar atividades de O.M. Desta forma, contribuímos para o desenvolvimento, estimulando-a também a descobrir o mundo por meio do brinquedo. A orientação e a mobilidade na deficiência visual Martin e Bueno (2003b) definem a orientação como um processo cognitivo que permite instaurar e adequar a posição que a pessoa ocupa no espaço por meio de informação sensorial. A mobilidade, no sentido amplo, é a habilidade de deslocar-se de um lugar para outro. Para que a mobilidade seja bem ajustada, ela deverá ser realizada de maneira segura, independente e eficaz. Ambos os conceitos estão interligados, pois um não pode ser entendido sem o outro. No livro Psychologie Cognitive de La Cécite Precoce, Hatwell (2003) destaca que a ausência da visão tem influência sobre o desenvolvimento postural e motor da pessoa cega. A visão responde em grande medida pela estabilização corporal e pelo equilíbrio, bem como atua na iniciação e controle dos movimentos. A cegueira afeta a postura porque esta é organizada a partir das percepções proprioceptivas e vestibulares e da visão. Na falta da visão, o deficiente visual depende da informação do próprio corpo e do sistema vestibular para manter a postura e o equilíbrio. Além disto, a pessoa cega encontra dificuldade para caminhar e manter seu equilíbrio durante o movimento, sobretudo pela falta da pré-visão. Seu caminhar requer uma intensa atividade cognitiva, pois, além de se preocupar com a sua mobilidade, é preciso estar atento ao caminho, ou seja, à sua orientação espacial. De acordo com Hatwell (1993), a cabeça abaixada é uma das características da postura da pessoa cega. Outra possibilidade é olhar para o alto. Ambas as posturas da cabeça são causadas pela ausência da mirada e pelo não alinhamento na altura dos olhos. Para localizar um som, os cegos tendem a virar a orelha direita para essa fonte sonora. Durante um diálogo, é comum que uma pessoa cega posicione a cabeça lateralmente em relação à pessoa com quem está conversando. Quando este posicionamento é adotado durante a locomoção, a cabeça e o corpo ficam em planos diferentes, o que afeta a postura global e a manutenção de uma trajetória retilínea. A criança com deficiência visual pode ter seu desenvolvimento afetado por tais particularidades geradas pela falta de visão, mas estas podem ser atenuadas através de estimulação adequada. O treino nas técnicas de O.M. visa um melhor desenvolvimento postural, que trará por certo efeitos positivos para sua orientação e deslocamento espacial. A principal dificuldade ocasionada pela cegueira é a Página 90
ausência de pré-visão, ou seja, a capacidade de antecipar a presença de objetos no espaço. A pessoa cega presta atenção às informações sensoriais atuais e recorre também a conhecimentos anteriores disponíveis em sua memória. Por exemplo, fazendo regularmente um determinado caminho, a pessoa sabe quais obstáculos, desníveis no solo e outras características do trajeto serão encontrados e, com este conhecimento, ela poderá se desviar quando necessário. Sendo assim, a ausência da pré-visão pode ser fonte de uma forte ansiedade, pois os riscos de colidir com um obstáculo e de perder seu caminho são, muitas vezes, consideráveis. No entanto, deve-se lembrar que as diferenças individuais são muito significativas, podendo atenuar ou acentuar determinadas características. As condições perceptivas e cognitivas da locomoção autônoma em grandes espaços devem responder a vários critérios: a segurança, a eficácia que permite atingir a meta proposta, o conforto que torna o deslocamento agradável, a harmonia dos movimentos e a independência física das pessoas com ausência de visão. A nosso ver, a O.M. pode ser um meio de promover todos esses aspectos. Nossa experiência utilizando a bengala como instrumento lúdico Introduzimos, em 2004, a atividade de Orientação e Mobilidade nas classes do primeiro ano do ensino fundamental no Instituto Benjamin Constant. O trabalho com a pré-bengala foi iniciado no sentido de verificar se eram pertinentes ou não as ideias contrárias ao uso da pré-bengala, ou mesmo da bengala tradicional adequada à estatura da criança. Optamos por um trabalho lúdico, fazendo com que as crianças assimilassem diversas técnicas do caminhar independente utilizando um brinquedo similar a uma bengala. A ideia foi buscar um brinquedo que desempenhasse as funções da bengala: percepção tátil, à distância, de referências espaciais e detecção de obstáculos. Para estas funções podem ser utilizados brinquedos como carrinhos de madeira, carrinhos de boneca ou raquetes feitas de bambolê. Em nossa experiência, o material lúdico utilizado como pré-bengala consistiu num bastão de madeira com uma haste e duas rodinhas, que tinha, em sua extremidade inferior, um patinho de madeira que, quando empurrado, produzia um estímulo sonoro com o bater de suas asas. Nossa ideia foi introduzir a bengala evitando o caráter estigmatizador que normalmente a acompanha. A expectativa era de que a pré-bengala fosse encarada como uma espécie de prolongamento do corpo para a captação das informações do espaço, ou simplesmente como um objeto que ajuda na locomoção. No caso, procuramos evitar a rejeição da bengala devido à representação social negativa que ela ainda possui, ligada à desvalia da pessoa cega. Utilizamos a pré-bengala conjugada com estratégias lúdicas durante o caminhar com o propósito de favorecer o deslocamento da criança com autonomia e independência o mais cedo possível, evitando que ela venha a se machucar com quedas e colisões. De forma lúdica, estimulamos a coordenação dos movimentos, a locomoção e a organização postural, ao mesmo tempo em que procuramos despertar o interesse pelo próprio deslocamento espacial, aguçando a curiosidade da criança para a exploração de espaços desconhecidos. Página 91
Durante o trabalho estivemos atentas para que a criança permanecesse com a cabeça alinhada na altura dos olhos. Buscamos também favorecer a formação dos conceitos de lateralidade, noção de posição e de sentido, bem como o desenvolvimento da orientação espacial e coordenação motora global. Mas o mais importante era a atmosfera lúdica do trabalho, favorecida pelo uso do brinquedo. Tudo começava com um convite a “levar o patinho para passear”. Em nosso estudo, de caráter piloto e experimental, trabalhamos com duas crianças. Uma delas, aqui denominada C1, tinha a idade de seis anos e era cega congênita. A outra, denominada C2, tinha sete anos, estava em processo de perda da visão, possuindo uma visão bastante reduzida. As brincadeiras/treinos ocorreram duas vezes por semana, com duração de cinquenta minutos. O início do trabalho ocorreu em 2007 e finalizou no ano seguinte. Como orientação metodológica da pesquisa, utilizamos a observação participativa realizada durante as aulas. As atividades foram registradas num diário de campo. Foram também realizadas entrevistas com as crianças e suas respectivas mães (aqui denominadas M1 e M2) ao final do trabalho, cujo objetivo foi fazer uma avaliação de seus efeitos na vida cotidiana das crianças. Dentre os objetivos a serem alcançados na experiência, podemos destacar como os mais importantes: 1) utilizar a pré-bengala aprendendo, através da brincadeira, a caminhar de maneira independente com a maior segurança possível; 2) propiciar um ambiente de aprendizagem onde a criança deficiente visual utilizasse de forma adequada e eficiente a informação proveniente de todos os sentidos de que ela dispõe para orientar-se de maneira eficaz no espaço. Caminhar empurrando o brinquedo/patinho tinha também como objetivo fazer com que essas crianças descobrissem novos espaços do local, no caso, sua escola (IBC), e como se desviar dos obstáculos, fazendo-as sentirem-se mais seguras para se locomover. Durante as aulas, não houve a preocupação de ensinar técnicas específicas, mas ensinar como a pré-bengala, mesmo sendo um brinquedo, podia atuar como um instrumento de percepção importante no seu deslocamento. Durante as primeiras brincadeiras treinos, foi solicitado às crianças que percorressem o trajeto da sala de aula até o banheiro. Elas deveriam sair da sala de aula, atravessar o corredor passando em frente às portas das diversas salas que servem como pontos de referência, até encontrar a porta do banheiro. Iniciamos o trabalho utilizando somente o tato, passando as mãos na parede e fazendo o rastreamento para reconhecimento do espaço. Depois desse reconhecimento preliminar do ambiente, passamos então a dar maior atenção à proteção superior e à proteção inferior do corpo. Nesse momento, surgiu uma pequena dificuldade, pois a proposta era caminhar sem tocar com as mãos nas paredes. Passamos, então, a utilizar a pré-bengala, fazendo-as caminhar e repetir o mesmo percurso com a companhia do patinho. Posteriormente, partimos para um novo trajeto, mais complexo, que tinha como ponto inicial o primeiro andar do IBC, mais precisamente o refeitório, e como ponto final a nossa sala de aula, que fica no segundo andar. O trajeto envolvia caminhar pelo corredor, encontrar as escadas e subir, para então acessar o segundo piso, onde se encontram as salas de aula. Durante esse trajeto, passávamos por vários obstáculos, como pilastras, portões e vãos, dentre outros. Para que este trajeto fosse concluído, foi Página 92
necessário que os alunos percorressem o caminho e memorizassem diversas pistas no ambiente e, posteriormente, elaborassem um mapa mental do mesmo. Este não é um trajeto fácil e as crianças o repetiram diversas vezes até que pudessem memorizá-lo. Cabe destacar que ao longo do trabalho pudemos perceber uma melhora progressiva no caminhar das crianças. Foi possível perceber que, com os treinos consecutivos, elas foram adquirindo uma maior confiança nos deslocamentos, em decorrência das informações que a pré-bengala/patinho lhes proporcionava, principalmente quando eram detectados obstáculos antecipadamente, evitando colisões ou tropeços. Vale sublinhar também que, durante todo o treino, não ocorreu nenhum episódio de utilização da pré-bengala com outro fim que não o de orientar o caminhar. Para isso, foi feito um trabalho de conscientização tanto com as crianças como com seus pais. Foi dito aos responsáveis que, sempre que pudessem, deveriam lembrar aos seus filhos que a bengala serve para ajudá-lo a caminhar e não para bater nos colegas ou nos objetos. Durante as entrevistas, as crianças (C1 e C2) relataram sua experiência, bem como suas mães (M1 e M2). O trabalho enfrentou dificuldades no inicio, como relatou esta mãe. M2: "Mesmo usando a pré-bengala, ele se deslocava com muita insegurança. Não conseguia concentração para as instruções que estavam sendo dadas." Uma das crianças (C2) tinha certo preconceito tanto com a bengala como com a cegueira. Muitas vezes mencionava que enxergava, mesmo sabendo que não conhecia os caminhos da escola. A mãe afirmou que, antes do aprendizado com a pré-bengala, a criança tinha bastante dificuldade de se locomover sozinha na escola. M2: "Ela tinha medo principalmente de descer as escadas sozinha, de ir até o refeitório, ela só ficavam comigo lá embaixo (no térreo da escola), lanchando o que eu trazia. Ela descia e ficava comigo lanchando, ficava ali na praça, não saía e ficava ao meu redor. Era muito apegada a uma coleguinha dela, mas, quando ela não vinha para a escola, aí é que ela não saía mesmo." Foi relatada pela mãe a existência prévia de uma certa resistência da criança em relação ao uso da bengala. M1: "Eu lembro que no inicio ele apresentava uma resistência de usar, ele ficava meio assim, porque nem sei... Acho que é meio normal, porque percebo que várias crianças têm isso. Acho que eles têm um pouco de vergonha... de andar com um instrumento na mão, diferente das outras crianças." A ideia era que a pré-bengala se constituísse em um recurso lúdico e, ao mesmo tempo, um estímulo para que ela se motivasse no deslocamento. Parecia que uma das crianças (C2) não gostava da pré-bengala, pois não se considerava cega. Como tinha percepção de luz, se movimentava de maneira rápida, mas, em diversos momentos, sua visão era insuficiente e ela esbarrava nos objetos. Ela não revelava insegurança para se locomover, todavia sua orientação não Página 93
era muito boa. Parece que o patinho, ou seja, a forma da pré-bengala, diferente da bengala tradicional, tornou-a menos resistente ao uso desse instrumento para se locomover. Com as aulas treino-brincadeira, esta situação foi se amenizando e a criança passou a conhecer melhor a escola. C2: "As aulas e a pré-bengala me ajudaram a conhecer o colégio. Hoje eu já conheço o colégio e não preciso nem usar a bengala. Para mim, que enxergo um pouco, a bengala não ajuda tanto, mas, quando eu perder toda visão total vai ajudar." O processo foi descrito por uma das crianças como produzindo a experiência de conhecer novos espaços dentro da escola. C1: "A tia hoje foi comigo até o refeitório, hoje a gente passeou no pátio interno, passei pela Cantina do Zezinho." Uma outra fala indica o desejo de ter as aulas, lembrando a ocorrência de reclamações quando a criança considerava que algo estava atrapalhando o trabalho. M1: "Ele reclamava às vezes um pouco do trânsito, porque tem gente na frente, que tem gente que não sai da frente, que tem gente que não respeita a aula, que ele está passando, porque tem o trânsito, tem gente que fica na frente e que não sai." O relato desta mãe também deixa isto claro, indicando como o treino favoreceu à mãe e à filha, que hoje circula de forma mais autônoma, dando também liberdade para a mãe. M2: "Ela ficou mais esperta, eu fiquei mais tranquila. Você percebeu que este ano eu não estou mais no colégio, ela está andando sozinha e segura. E eu posso ficar despreocupada e fazer as minhas coisas." Surgiram relatos de que a atividade melhorou de forma progressiva e que, aos poucos, se fez presente fora das aulas. A criança parecia gostar de andar em casa com a pré-bengala. M2: "Bem, já foi um processo de independência, assim, isso foi uma coisa clara para mim e para o meu marido. Ele começou a brincar em casa." Nesta fala, aparece indicado como as aulas de orientação e mobilidade ampliaram para a criança seu conhecimento do mundo e, inclusive, como ela já consegue guiar outras pessoas. M2 relatou a fala do filho: "Por que eu já conheço outros caminhos, caminhos que eu não sei muito bem, para lá... lá na frente... lá no futuro, eu vou poder andar sozinho sem depender de ninguém." O relato também demonstra o desejo de independência e de autonomia: Página 94
C2: "Já sei guiar, agora eu ajudo ao meu amigo. Como ele não tinha orientação e mobilidade, eu o ajudava com as coisas que eu já sabia." Considerações Finais Pelas experiências narradas, o aprendizado antecipado da Orientação e Mobilidade com a introdução da pré-bengala com crianças cegas apresenta resultados relevantes e promissores, tanto no seu cotidiano escolar como em sua vida fora da escola, tornando-as mais seguras em seus deslocamentos. Percebemos que a motricidade dessas duas crianças apresentou melhoras, bem como a postura, o controle de tronco e da cabeça, proporcionando melhores condições para o seu caminhar. O estudo sugere que as técnicas de O.M. aprendidas no espaço educacional possibilitam às crianças deficientes visuais a utilização de um dispositivo importante que os levará a exercer mais cedo sua independência, autonomia e cidadania. Por intermédio das experiências vividas, as duas crianças apresentaram um comportamento mais seguro, o que, em princípio, parece de grande ajuda para se locomoverem com agilidade no futuro, quando caminharem sozinhas nas ruas da cidade ou em espaços desconhecidos. A O.M. parece repercutir também em outros aspectos do desenvolvimento da criança, abrindo mais cedo um canal entre o não ver e o sentir. Neste sentido, concordamos com Martin e Bueno (2003), que a aplicação das técnicas de orientação e mobilidade favorece o desenvolvimento psicomotor e, juntamente com a antecipação do uso da bengala, possibilitam acesso a atividades sócio-culturais na família, na escola e na comunidade, numa perspectiva inclusiva. Na experiência que realizamos, o brincar facilitou a aceitação da bengala estilizada pelas crianças e nos faz prever uma melhor aceitação da bengala no futuro. Quando a criança percebe que a bengala lhe ajuda em seus deslocamentos, parece que a resistência é minimizada. Através da experiência realizada parece possível concluir que a inclusão precoce da pré-bengala é bem vinda, desde que realizada de modo cuidadoso e lúdico. Não se percebeu nenhuma intenção das crianças no sentido de utilizar a pré-bengala para outros fins que não o de auxiliá-las em seus deslocamentos. Nosso estudo analisou o desenvolvimento do trabalho realizado com duas crianças. Outros estudos devem ser realizados no futuro que testem o uso com outras crianças, contemplando os diferentes perfis e o amplo espectro de casos no âmbito da deficiência visual. Enfim, entendemos que, quanto antes a criança tiver acesso às técnicas de O.M., bastante favorecida pelo uso da pré-bengala, mais cedo ela andará com maior segurança, amenizando o que é considerado como uma de suas maiores dificuldades causada pela deficiência visual, ou seja, o domínio do espaço. notas: 46 IBC – Centro de referência nacional para as questões da deficiência visual. MEC-SEESP, 2008. 47 Disciplina onde são ensinadas tarefas do cotidiano como dar laço, encher copos de água, abotoar e desabotoar, entre outras tarefas. O deficiente visual necessita aprender essas tarefas Página 95
formalmente na escola, tendo em vista que, pela falta de modelos onde se espelhar, não assimila atitudes corriqueiras do cotidiano. Referências Bibliográficas: BRUNO, Marilda M. G. O desenvolvimento integral do portador de deficiência visual: da intervenção precoce à integração escolar. São Paulo: Laramara-Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual, 1993. FELIPE, João Álvaro de M. et al. Caminhando Junto: Manual das habilidades Básicas de Orientação e |Mobilidade. Brasília: Ministério da Educação- secretaria de Educação Especial, 2004. FRAIBERG, S., Fredman, DA. Studies in the ego development of the congenitally blind child. Psychoanalytic Study of the Child, 19, p. 113-169, 1964. OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1993. HATWELL, Y. Psychologie Cognitive de La Cécite Precoce. Paris: Dunod, 2003. MARIÑO, C.G., FIGUEIREDO, A.S. La educación del niño ciego en la familia, en los primeros años de vida. Playa: Editorial Pueblo y Educación, 1998. MARTÍN, M. B. e BUENO, S.T. Deficiência visual: aspectos psicoevolutivos e educativos. São Paulo: Ed. Santos, 2003. PIAGET, J. A psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. UNESCO e Espanha. Ministério da Educação e Ciência. Declaração de Salamanca e Linhas de Ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília: Corde, 1994. VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. __________. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989. __________. Pensamento e linguagem. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1991.
Seção 3 – Acessibilidade em museus Página 96
Acesso à Arte e Cultura para pessoa com deficiência visual: Direito e desejo Viviane Panelli Sarraf Introdução - O Direito de Acesso à Arte e Cultura para as Pessoas com Deficiência Visual Este texto apresenta e analisa o direito das pessoas com deficiência visual a terem acesso às manifestações artísticas e culturais. Este direito vai além da garantia dos direitos humanos adquiridos, ele entra no campo simbólico48, uma vez que qualquer pessoa só parte em busca da arte e da cultura se isso for de seu desejo. A arte e a cultura não fazem parte do rol de necessidades básicas e vitais da sociedade, já que ninguém precisa, em termos fisiológicos, das mesmas para sobreviver. É justamente por essa razão que as atividades sócio-educativas no âmbito cultural entram no campo simbólico. Ter acesso às mesmas representa estar incluído socialmente em esferas que alimentam o espírito, e não o corpo. Ao longo da história ocidental o acesso à arte e à cultura integrou as atividades ligadas às elites e aos intelectuais, mas, na atualidade, os espaços culturais e artísticos invadiram a vida da população em geral por meio das políticas de acesso, necessárias à sua legitimação na contemporaneidade. O direito de participar das manifestações e espaços artísticos e culturais é garantido em primeira instância pela Declaração Internacional de Direitos Humanos, publicada em 1948 na França. Desta Declaração consta o primeiro direito básico adquirido, que se relaciona ao acesso às atividades aqui abordadas: “o direito de ir e vir”, isto é, o direito que todos temos de circular livremente pelos ambientes públicos e acessar os benefícios provenientes de suas ofertas sociais, quaisquer que sejam. O segundo direito identificado que se relaciona com a temática é aquele que afirma que: “... toda pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam” (ONU, 1948). Utilizando como referência a Declaração Internacional de Direitos Humanos, é possível afirmar que a defesa do direito existe há mais de 60 anos, mas o abismo que separa a prática cotidiana da garantia do direito para as pessoas com deficiência visual ainda impede que ele seja plenamente exercido. No que se refere aos direitos das pessoas com deficiência especificamente, é possível identificar alguns documentos, leis e normas que defendem o direito de acesso aos benefícios sociais, que foram redigidos e mobilizaram mudanças ao longo do século XX. Entre estes está a Declaração de Salamanca, que inspirou o contemporâneo Movimento de Inclusão Social, com sua afirmação “nada para nós, sem nós”, legitimando a plena participação da pessoa com deficiência em tudo que lhe diz respeito: leis, projetos, programas, políticas, produtos e outros. A citação abaixo resume o escopo do movimento de Inclusão Social e um de Página 97
seus marcos. "Os anos 90 marcam o movimento denominado 'International Inclusion', com a adoção da filosofia de inclusão social com o intuito de promover mudanças sociais gerais. Segue-se a promulgação da Declaração de Salamanca (1994), que provocaria um grande debate conceitual e metodológico sobre a educação formal oferecida às pessoas com deficiência." (Nowill e De Masi, 2006 p. 59) No entanto, a inclusão dessa população na sociedade pode ser considerada um acontecimento recente. O próprio termo “inclusão” começou a ser utilizado e defendido na década de 1980, durante a criação do Movimento de Inclusão Social, nos EUA, com a participação de representantes do mundo todo, da ONU e da UNESCO, em 1981, considerado então o “Ano da Pessoa com Deficiência”. Antes da data citada, o termo utilizado para definir a aproximação dessa população com a sociedade era “integração”. No conceito de integração, a maior responsabilidade era atribuída ao desenvolvimento pessoal e superação de barreiras do indivíduo, enquanto a sociedade incumbia-se de receber a pessoa para o convívio, mas sem a preocupação de adaptar os espaços e sistemas sociais existentes. "A sociedade, em todas as culturas, atravessou diversas fases no que se refere às praticas sociais. Ela começou praticando a exclusão social de pessoas que – por causa das condições atípicas – não lhe pareciam pertencer à maioria da população. Em seguida, desenvolveu o atendimento segregado dentro de instituições, passou para a prática da integração social e recentemente adotou a filosofia da inclusão social para modificar os sistemas sociais gerais". (Sassaki, 1997, p. 16) Atualmente, presenciamos o movimento de Inclusão Social, já citado, que trouxe muitas melhorias para a vida da pessoa com deficiência ao desenvolver ações que visam preparar os ambientes, produtos e serviços que considerem as diferenças e a diversidade. Dentro do pensamento e conceitos desenvolvidos pela filosofia da inclusão social, o que alcança maior força e motivo de militância é a acessibilidade. Esse conceito trabalha com uma forma de concepção de ambientes, produtos e serviços que consideram o uso de todos os indivíduos, independente de suas limitações físicas e sensoriais. O conceito busca a melhoria da qualidade de vida da população por meio do atendimento às diferenças dos seres humanos. No Brasil, desde 1985, existe a Norma Técnica de acessibilidade da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) – NBR 9050, que afirma que a acessibilidade é a possibilidade e condição de alcance, percepção e entendimento para a utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário, equipamento urbano e elementos. A primeira versão dessa norma foi redigida entre os anos de 1983 e 1985, com a participação de profissionais que trabalhavam com a questão das deficiências e das próprias pessoas com deficiência, lideranças do movimento de inclusão. Segundo o texto atual da norma citada, advindo de sua última revisão em 2004, acessível é o espaço, edificação, mobiliário, Página 98
equipamento urbano ou elemento que possa ser alcançado, acionado, utilizado e vivenciado por qualquer pessoa, inclusive aquelas com mobilidade reduzida. O termo acessível implica acessibilidade física, intelectual, cognitiva e atitudinal. Portanto, acessibilidade em espaços e ofertas de arte e cultura significa que as exposições, espaços de convivência, serviços de informação, programas de formação e todos os demais serviços básicos e especiais devem estar ao alcance de todos os indivíduos, perceptíveis a todas as formas de comunicação e com sua utilização de forma clara, permitindo a autonomia dos usuários. Esses espaços, para serem acessíveis, portanto, precisam que seus serviços estejam adequados para serem alcançados, acionados, utilizados e vivenciados por qualquer pessoa, independente de sua condição física ou comunicacional. Mesmo com os direitos humanos adquiridos, com as conquistas do Movimento Internacional e Nacional de Inclusão Social e com normas de acessibilidade que oferecem subsídios teóricos para a viabilização de adequações em espaços culturais e artísticos, o direito de acessar a arte e a cultura ainda é uma utopia para a pessoa com deficiência visual. Não podemos deixar de reconhecer e louvar as iniciativas isoladas de acessibilidade em arte e cultura, mas essas não configuram uma nova concepção de propostas artísticas e culturais inclusivas por sua concepção e natureza. Segundo Nowill e De Masi: “Ao longo da história, constata-se que muito se fez para o atendimento das necessidades das pessoas com deficiência, tanto no campo médico, como no educacional e laboral. No entanto, persiste a questão da exclusão” (Nowill e De Masi, 2006, p. 59) Na terceira parte do texto são apresentadas as opiniões das próprias pessoas com deficiência visual sobre seu desejo e direito de acessar a arte e a cultura, de forma que as constatações históricas aqui apresentadas podem ser ilustradas pelas falas dos indivíduos aos quais esse artigo se dedica. Foram convidadas a contribuir com suas opiniões pessoas de diferentes idades, formações e interesses para conferir caráter fidedigno da diversidade entre as pessoas com deficiência visual e semelhanças no que se refere à importância do acesso à arte e à cultura. A garantia do Direito à Inclusão Cultural na teoria e na prática O número de espaços culturais e artísticos no Brasil é superior a duas mil unidades, segundo o Cadastro Nacional dos Museus e Centros Culturais do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, realizado no ano de 2006. É possível afirmar que a oferta de acessibilidade em espaços culturais e artísticos do país é quase insignificante, não chegando a 1% dos estabelecimentos. Esta realidade afasta a população de pessoas com deficiência visual das instituições culturais, pois, para a maior parte dessa população, a eliminação de barreiras arquitetônicas e comunicacionais são imprescindíveis para o uso dos serviços culturais. No que diz respeito à legislação específica de acesso à arte e à cultura no Brasil, é possível constatar que, apesar da existência de legislações e normas técnicas para áreas como edificações, transporte público, educação, saúde e trabalho, até este momento não existe uma política pública para o acesso de pessoas com deficiência em espaços culturais. O único documento Página 99
oficial existente é a “Instrução Normativa n° 1, de 25 de novembro de 2003, que dispõe sobre a acessibilidade aos bens culturais imóveis acautelados em nível federal, e outras categorias, conforme especifica” – redigida pelo IPHAN. Apesar da existência do documento e de sua disponibilidade no endereço eletrônico do órgão em questão, não existem registros, publicações, relatórios ou mesmo evidências consolidadas das ações já realizadas que seguem essa normativa. Encontram-se apenas casos isolados de museus pertencentes ao sistema federal, como o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, em que foram implantadas adequações físicas, seguindo os conceitos de acessibilidade da NBR 9050, possíveis por meio de projetos patrocinados por iniciativa privada. Em países mais desenvolvidos, como a Inglaterra, Espanha, Estados Unidos da América e Austrália, existem políticas públicas de acesso à arte e à cultura. O DDA – Disability Discrimination Act, legislação inglesa de garantia de respeito e acesso para pessoas com deficiência, por exemplo, apresenta em seu texto os parâmetros ideais de acessibilidade em espaços culturais, considerando os requisitos de locomoção, comunicação e inclusão social. Dentro das responsabilidades das políticas públicas de acesso à arte e à cultura, consta a providência de subsídios financeiros, materiais, recursos humanos e programas de formação para espaços culturais, com o objetivo de desenvolver programas de inclusão qualificados para pessoas com deficiência e demais públicos não habituais. No âmbito da arte e dos movimentos artísticos simpáticos à inclusão social podemos citar exemplos de exposições de artistas que utilizaram e/ou utilizam abordagens sensoriais. Nessas exposições é possível perceber que o interesse e envolvimento do público em geral é maior do que o habitual nos casos que apresentam apenas a comunicação visual. Podemos utilizar como referência as obras de artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark e Cildo Meireles; os dois primeiros, expoentes do movimento Neoconcreto brasileiro, que começou a questionar os suportes tradicionais das obras de arte e sua interação com o público; após a realização de experiências exaustivas com composições de desenhos e pinturas de natureza geométrica que lidavam com a percepção visual, esses artistas começaram a experimentar suportes diferenciados e incluir em suas criações questionamentos ligados à cultura popular brasileira, à diversidade cultural e à sensibilidade do ser humano. Oiticica desenvolveu trabalhos com linguagens contemporâneas, como instalações e performances envolvendo outros indivíduos; propôs os “Penetráveis”, instalações baseadas em planos de diferentes cores ligadas ao clima tropical brasileiro; os “Bólides”, objetos táteis, visuais e olfativos com referências de parcelas materiais da cultura brasileira e os “Parangolés”, obras de arte para o corpo, feitas a partir de tecidos ligados às indumentárias de escolas de samba e às manifestações populares. Estes últimos tinham como proposta que as pessoas os vestissem e se manifestassem livremente, para que, então, a obra fosse apresentada da maneira adequada, em movimento. Lygia Clark também iniciou sua carreira com composições bidimensionais que brincavam com a percepção visual do espectador. Após algumas experiências ligadas à psicanálise e terapias alternativas, começou a criar obras que privilegiavam a participação do público, como os “Bichos”, esculturas geométricas Página 100
que pressupunham a interação do público na descoberta de suas formas inusitadas; e o despertar da sensibilidade humana com obras como “O Eu e o Tu”, macacões emborrachados contendo materiais que simulavam partes do corpo do homem e da mulher para serem vivenciados por duplas, proporcionando uma intimidade proibida entre indivíduos. Posterior à fase de experimentações ligadas ao corpo humano, Clark iniciou a produção de objetos com caráter terapêutico – propostas de arte desvinculadas de materiais convencionais, os “Objetos Relacionais”, confeccionados com matérias simples e de baixo custo, como sacos plásticos, água, elásticos, conchas e pedras. Essas propostas tinham como objetivo proporcionar o autoconhecimento do interlocutor por meio do uso ilimitado dos mesmos para reflexão e terapia. Cildo Meireles, artista contemporâneo brasileiro, utiliza, em suas criações, objetos do cotidiano, com questionamentos em relação à linguagem artística e à política (com maior presença em suas criações das décadas de 1970 e 1980). Um de seus trabalhos de grande destaque é o “Espelho Cego”, uma caixa contendo material moldável em seu interior, onde as pessoas podem deixar o registro de suas mãos. Assim como o espelho visual, a imagem está em constante mutação, pois sempre que exposta pode ser manipulada pelo público. Nas exposições recentes de trabalhos dos artistas, foi possível presenciar um crescimento significativo no número de visitantes em museus como a Pinacoteca do Estado de São Paulo: “Lygia Clark”, 2006 e “Hélio Oiticica”, 2005; Museu de Arte Moderna de São Paulo: “Lygia Clark”, 2000 e na “Bienal de Artes de São Paulo”: edições de número 24, em 1998, e 25, em 2002, evento artístico de relevância internacional. A possibilidade de interação sensorial com a arte gerou mídia espontânea para as exposições que atraíram visitantes “de primeira viagem” aos museus. O volume e diversidade de públicos proporcionaram às instituições experiências que, em alguns casos, foram utilizadas em outras propostas interativas e inclusivas. Exemplo disso foi a exposição “Poética da Percepção”, do curador Paulo Herkenhoff, realizada entre os anos de 2007 e 2008, que reuniu, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no Espaço Cultural VIVO de São Paulo, obras de arte brasileiras dos séculos XIX ao XXI, que apresentam relação sensorial em sua natureza. Entre as obras se encontravam propostas de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Cildo Meireles, entre outros. Outro exemplo foi a exposição “Arte para Crianças” realizada em 2009 no SESC-Pompéia em São Paulo, onde artistas plásticos contemporâneos, como Amilcar de Castro, Yoko Ono e Cildo Meireles, foram convidados a criar instalações e obras para a interação das crianças, o que culminou em propostas sensoriais. Os exemplos provenientes das exposições e criações de artistas que lidaram com os sentidos e com as diferenças sociais e culturais mostram que a mediação e o acolhimento nos espaços culturais são mais eficazes e atingem seus objetivos nas propostas de relacionamento sensível com os visitantes. O uso excessivo de recursos visuais e das informações intelectualizadas já vem sendo questionado desde a década de 1960, tanto pelo pensamento de Guy Debord, que influenciou o movimento estudantil ligado à revolução cultural, quanto pelos artistas contemporâneos, influenciados pelas criações e conceitos de Marcel Duchamp. Debord, em seu texto “A Sociedade do Espetáculo”, alertou Página 101
que: “... a crítica que atinge a verdade do espetáculo o descobre como a negação visível da vida; como a negação da vida se tornou visível” (DEBORD, 1967, p. 16, grifo do autor). Em oposição ao hipnotismo próprio da cultura do espetáculo, em 1968, na França, os estudantes iniciaram uma revolução cultural, que também contribuiu para uma mudança na postura dos espaços culturais. Os revolucionários ambicionavam uma apresentação dos conteúdos artísticos e culturais que respondesse às necessidades da obra e do público, com modos de representação mais didáticos do que os ligados apenas à contemplação da obra de arte. "Durante aquele período de manifestações, também os museus se converteram em espaços de contestação. O que se ambicionava nesse movimento, no tocante aos museus, era que as instituições museológicas deixassem de ser apenas depositárias de bens artísticos e culturais, passivas e elitizadas, bastião da tradição, para se tornarem instrumentos ativos e democráticos do conhecimento humano." (Resende, 2002, p. 30) Nesse sentido, artistas sintonizados com o espírito de época começaram a explorar a “crítica institucional” em suas propostas artísticas, inspiradas principalmente pelos ready-mades de Duchamp49. A crítica a noções redutivas institucionais de “espaço de arte” foi anteriormente explorada pelas vanguardas históricas e, neste movimento, a partir da década de 60, resgatadas com maior coesão e efeito. O centro dessa crítica institucional era o conceito de “cubo-branco”, que representava um lugar imaculado, livre das interferências sociais, ideal à apreciação da obra de arte como objeto sagrado. Essa mesma crítica institucional, potencializada nos anos 60, continuou presente nos questionamentos da arte contemporânea que, no entanto, ampliou as fronteiras do “cubo-branco”, trazendo questões como negação do belo, convívio com as diferenças, diversidade cultural, linguagens apropriadas de outras áreas e apelo sensorial das obras de arte como subversão do espaço cultural, bem como uma ampliação das noções de lugar, uso e função da arte. Com base nesses conceitos da arte contemporânea, as ações culturais inclusivas começaram a se desenvolver como crítica institucional, deixando de lado a exclusividade da militância por direitos constituídos própria dos movimentos sociais. A principal mudança vem ocorrendo nas propostas inovadoras de mediação cultural, ainda em desenvolvimento, voltadas ao respeito à diferença e às diferentes formas de comunicação e percepção. Analisando as informações contidas nessa parte do texto, é possível afirmar que o direito de acesso à arte e cultura para pessoas com deficiência, além de ser uma questão ética em busca da cidadania, tem embasamento em leis e normas nacionais e internacionais. A natureza da arte e da cultura institucionalizada também mostra que a inclusão vem conquistando espaço em suas propostas e linguagens. Assim, é possível afirmar que as pessoas com deficiência visual representam hoje um desafio para essa área, uma vez que já tomam parte das ofertas culturais existentes, mas ainda precisam de mudanças físicas e conceituais para exercer seu direito de fato. O desejo das pessoas com deficiência visual em fruir a arte e Página 102
usufruir as manifestações e patrimônio cultural Nesta parte do texto apresentarei e analisarei as questões pertinentes ao desejo de acesso à arte e à cultura das pessoas com deficiência visual. Para que essa análise seja realizada de forma a corresponder aos verdadeiros anseios dessa população, convidei pessoas com deficiência visual para prestarem depoimentos sobre a importância da arte de da cultura em suas vidas. O convite foi realizado de forma aleatória, a pessoas com deficiência visual com as quais mantenho relações de amizade e/ou profissional. As pessoas consultadas são diferentes no que se refere à aquisição da deficiência visual, ocupação e classe social, o que, no entanto, não altera a intenção da coleta de depoimentos: comprovar que a arte e a cultura são opções de lazer almejadas por essa população. A intenção de apresentar os relatos reais foi comprovar que existe desejo de participar da vida artística e cultural da comunidade por parte das pessoas com deficiência, o que geralmente causa dúvida para quem não convive cotidianamente com essa população. Pode-se notar, por meio desses depoimentos, que as afirmações e constatações históricas sobre as conquistas do Movimento de Inclusão Social constituem o repertório dos consultados que de alguma forma integraram e integram esse movimento e a filosofia do mesmo, seja em sua criação, na década de 1980 – como Dorina de Gouvêa Nowill – ou em sua fase mais atual – como MAQ, Marco Antonio Queiroz e Antônio Carlos Grandi, dois representativos militantes da inclusão. O acesso à arte e cultura, como já afirmado, não é uma necessidade, e sim um desejo, que está ligado ao campo simbólico. Da mesma forma que as pessoas ditas normais têm o direito de experimentar e selecionar suas preferências de lazer, as pessoas com deficiência visual também devem ter esse direito. Por mais que as ofertas artísticas e culturais se apresentem prioritariamente visuais, o acesso às mesmas pode ser proporcionado de diferentes maneiras: descrições, leituras alternativas e sensoriais, mediações alternativas, acesso tátil, auditivo, olfativo e gustativo, entre outros. Além de falar sobre as pessoas com deficiência, é necessário esclarecer que o papel dos espaços culturais em incentivar esse direito e desejo é fundamental. O incentivo só é possível por meio de novas e diversificadas ofertas culturais acessíveis, que possibilitem a essas pessoas experimentar situações culturais inusitadas. É por meio do hábito que o indivíduo desenvolve a apreciação e gosto por atividades de lazer, mas essas atividades precisam estar acessíveis às necessidades da deficiência visual. A seguir apresentarei os depoimentos com os nomes dos colaboradores e, posteriormente, realizarei uma análise, destacando alguns pontos relevantes apresentados. "Se é importante possibilitar o acesso às manifestações culturais, artísticas, esportivas a todas as camadas da sociedade, é imprescindível que este acesso seja propiciado aos deficientes visuais. Faço esta afirmação com a certeza de ter experimentado as duas situações. Foi após ter adquirido a deficiência visual que passei a valorizar muito mais a oportunidade de acesso ao mundo das artes e do conhecimento. A ausência de um dos sentidos aguça os outros; no caso da deficiência visual, o tato, a audição, o olfato. Uma visita a um jardim sensorial, por exemplo, oferece uma Página 103
sensação muito mais valiosa do que a feita na condição de vidente. O mesmo pode-se afirmar com relação a uma visita a um museu cujo acervo já tenha passado pelas adaptações necessárias a fim de tornar-se acessível. Assistir a um concerto de música clássica, a um espetáculo teatral, a um show, são ocasiões que renovam o espírito e deixam lembranças indeléveis!!" (Marieta Epel Boimel, 2009) "A cultura é indispensável na vida de qualquer cidadão. A cultura é o corolário das atividades que dão ao homem a oportunidade de apreciar o belo e a arte. O homem, através da cultura, cresce, desenvolve-se e torna-se mais aberto ao bem, à justiça e ao conhecimento de si mesmo e de seu potencial. Com a arte, eu compreendo a grandeza inerente às obras da criação, à verdade da justiça e à presença do amor." (Dorina de Gouvêa Nowill, 2009) "Somos um casal de pessoas cegas e estamos experimentando sensações novas ao termos a oportunidade de acesso a um curso de fotografia oferecido pelo MAM, “Imagem e Percepção”. Eu, particularmente, fui para esse curso para acompanhar meu marido, que gosta muito de tirar fotografia. Entretanto, quando conheci a proposta do curso, fiquei entusiasmada. É maravilhoso uma pessoa cega construir uma imagem por meio de suas percepções e poder registrar essa imagem. Tivemos, também, a oportunidade de assistirmos à ópera “Cavalleria Rusticana” com áudiodescrição. Somente desta forma uma pessoa cega pode entender uma ópera. Eu tive o privilégio de participar de algumas iniciativas de acessibilidade em museus, dando treinamento para profissionais que trabalham em ações educativas dentro de espaços culturais. Considero fundamental que a arte e a Cultura estejam ao alcance de todos e também das pessoas com deficiência visual, que têm outras percepções que não a visão, para abstrair o que um artista quer transmitir com sua obra." (Maria Regina Lopes e Adeildo Silva, 2009) "Meu nome é Regina e perdi a visão aos sete anos de idade em consequência de um glaucoma congênito. Desde pequena tenho o hábito de apoiar o rosto nas mãos quando estou preocupada ou quando preciso refletir sobre alguma coisa. Uma amiga, observando essa minha atitude, dizia sempre que eu a fazia lembrar a escultura "O Pensador", de Auguste Rodin. Isso despertou em mim um desejo enorme de conhecer a escultura. Há cerca de 10 anos, tive essa oportunidade, e aquele foi para mim um momento emocionante. Poder tocar aquela obra de Arte tão linda fez até com que eu achasse que eu era privilegiada por ser cega, pois as pessoas que enxergam podiam apenas olhá-la. O relato desse episódio de minha vida tem o único objetivo de enfatizar que o acesso a toda e qualquer manifestação artística ou a toda e qualquer forma de lazer é um direito de todas as pessoas deficientes, pois, antes de sermos deficientes, somos pessoas e todos sabem que a Arte e o lazer são partes integrantes da vida de todo ser humano desde a pré-História." (Regina Fátima Caldeira Oliveira, 2009) "Como frequentador de teatros, cinemas, museus e exposições, mesmo depois de perder minha visão, há dez anos, gostaria de ter meus direitos à acessibilidade assegurados através do que já é Página 104
regulamentado pela Lei de Acessibilidade (5296/2004), uma vez que, como cidadão, eleitor, contribuinte consumidor de bens e serviços, tenho direito ao acesso a cultura e entretenimento como qualquer outra pessoa. O acesso à cultura é indispensável para a formação do cidadão pleno e consciente. Através de recursos de audiodescrição em cinemas e teatros, audioguias e placas de identificação em braile em museus e exposições, sinalizações e demais recursos de acessibilidade, é possível que se atendam os deficientes visuais. Embora sejam escassas, iniciativas louváveis já estão ocorrendo, mas ainda há muito para ser feito." (Antonio Carlos Grandi, 2009) "Minha primeira experiência tátil em museus após ter adquirido cegueira em 1978, com 21 anos de idade, foi no museu da Pinacoteca de São Paulo. Quando entrei na Pinacoteca de São Paulo, no final do ano de 2003, com minha esposa, filho e sogro, conduzido pelo artista plástico Alfonso Ballestero e rodeado por Amanda Tojal, fui pego de surpresa em meio de tanta emoção. A primeira escultura que toquei foi de Moema... Abrindo os braços e tocando, ou tentando tocar, em tudo, para "ver" além de pedaços, soube então que era Moema, morta, à beira do mar, onde a água e areia tinham quase o mesmo nível, e minha emoção foi me tomando, um arrepio subiu-me pela coluna, um nó se fez na garganta, senti um sei lá o que de felicidade: a arte da escultura estava novamente possível em minha vida! O mesmo aconteceu, cinco anos depois, com o cinema. A audiodescrição, feita por Graciela Pozzobon, que é a descrição das imagens das telas de cinema e televisão, deu-me de volta outra arte. Só sei que estou vivendo o futuro que muitos cegos imaginaram. Ainda pouco, ainda mínimo, mas que é o início da oportunidade igual para todos, a verdadeira razão de ser do desenho universal, a acessibilidade pensada, trabalhada, desenvolvida por pessoas que estão além de todas as dimensões que são, em si, a própria arte. A arte está em nossas mãos!" (Marco Antonio de Queiroz – MAQ, 2009) Analisando os depoimentos apresentados pelos sete colaboradores que aceitaram ceder um relato de suas experiências e opiniões é possível destacar alguns pontos comuns: 1. Todos os colaboradores acreditam que o acesso à arte e à cultura faz parte da vida de todos os indivíduos, independente de ter ou não deficiência. Etsa constatação é possível na leitura e interpretação da fala de todos os consultados, na citação de diferentes modalidades artísticas e culturais, no conhecimento de diferentes linguagens e no relato de experiências de produção e apreciação. 2. Ter acesso à arte e à cultura faz parte de seu direito de cidadão e auxilia na formação do ser humano. Da mesma forma, por meio de diferentes afirmações e constatações, o grupo apresentou que o acesso à arte e cultura é essencial no exercício da cidadania e que impulsiona o desenvolvimento pessoal e social. 3. Não é muito comum encontrar iniciativas/espaços de arte e cultura que proporcionem a inclusão de pessoas com deficiência visual. Alguns dos depoentes citaram nomes de espaços e instituições, outros citaram atividades, mas tanto na afirmação quanto na exemplificação não encontramos, em nenhum momento, uma Página 105
passagem que constate que as ofertas culturais e artísticas em geral são acessíveis. 4. Existem muitas providencias a serem tomadas por parte dos espaços de arte e cultura para que estejam devidamente acessíveis às pessoas com deficiência visual. Em algumas passagens de forma contundente, em outras de forma mais velada, é possível perceber que as pessoas com deficiência visual consultadas concordam que o conjunto brasileiro de espaços de arte e cultura ainda não se encontra acessível às necessidades das pessoas com deficiência visual. No que diz respeito ao desejo de acesso à arte e à cultura, em âmbito particular, algumas questões relevantes para a reflexão proposta ocorreram isoladamente, em um ou mais depoimentos. A seguir, essas questões destacadas e comentadas: No depoimento de Regina Fátima Caldeira Oliveira, ela conta que se interessou em conhecer a escultura “O Pensador”, de Rodin, por conta de uma amiga que sempre se referia à mesma, ao comparar seu gesto de preocupação. Mesmo sem a visão ou parte dela, os referenciais de arte e cultura estão presentes de diferentes maneiras no cotidiano dessa população. De tanto ouvir falar da obra de Rodin, Regina ansiou por conhecê-la. Em determinada oportunidade, pôde tocá-la, o que julgou um privilégio diante das pessoas que só podem vê-la. No depoimento de Maria Regina Lopes, ela afirma que ingressou no curso de fotografia para acompanhar seu marido, que já apreciava a prática, mas que ficou fascinada ao perceber a possibilidade de criação de imagens bidimensionais mesmo com a deficiência visual. Podemos interpretar esse fato da seguinte maneira: a colaboradora descobriu por meio da prática artística que é possível criar imagens utilizando diferentes percepções. O que, no entanto, é pouco oferecido às pessoas com deficiência visual, por conta do estigma da ausência de visão. No depoimento de Dorina de Gouvêa Nowill, a colaboradora constata que, por meio do conhecimento da arte, desenvolve sua capacidade de apreciação do belo, seu senso de justiça e sentimento de amor. A ação de apreciar e refletir sobre obras de arte e manifestações culturais tem o potencial de criar relações e realizar conclusões de fatos da vida real, uma vez que a arte mimetiza a realidade com diferentes objetivos de acordo com os movimentos artísticos e com o espírito de época. Marco Antônio Queiroz e Marieta Boimel relatam com entusiasmo o prazer em ter acesso à arte e à cultura em diferentes oportunidades, mais ligadas aos demais sentidos da percepção (audição, olfato, tato) e aquelas onde a visão é muito importante, mas pôde ser substituída por outras formas de comunicação e mediação. No caso de Marco Antônio, ele relata a felicidade de retomar uma atividade muito apreciada enquanto tinha a visão. Já no depoimento de Marieta, a mesma afirma que, em alguns casos, a ausência de visão torna a atividade mais prazerosa, pela possibilidade de perceber as manifestações artísticas, culturais e naturais com os demais sentidos, geralmente pouco utilizados pelo grande apelo visual da comunicação contemporânea. No depoimento de Antônio Carlos Grandi, a questão da luta pelo direito de integrar a vida cultural da comunidade é Página 106
enfatizada pela politização do colaborador. A consciência e conhecimento de seus direitos e de sua importância como cidadão no que diz respeito ao cumprimento de seus deveres civis leva-o a mostrar, de forma direta, que existem muitas adequações a serem realizadas para que a inclusão cultural da pessoa com deficiência visual se torne uma realidade, mas também constata que existem iniciativas que realizam ações válidas. A análise dos aspectos gerais e particulares dos depoimentos das pessoas com deficiência que se propuseram a contribuir com esse texto possibilita afirmar que a arte e a cultura são fundamentais em suas vidas. O desejo pelo acesso à informação, conhecimento e criação artística/cultural é contundente, ele vai além da consciência do direito adquirido por diferentes declarações e leis. Conclusão - Desejo e Direito aliados em busca do exercício da cidadania e da construção de uma sociedade mais justa Como já afirmado em outras partes deste texto, o acesso à arte e cultura integra o campo simbólico do ser humano, uma vez que proporciona prazer, satisfação e realização pessoal. O exercício do direito de acesso a esses benefícios sociais tem como possibilidade democratizar os resultados positivos, estendendo-os à parte da população que ainda não se aventurou ou não teve oportunidade de inclusão em iniciativas artísticas e sociais. É possível afirmar que o desejo pela arte e cultura é inerente ao indivíduo e, por essa razão, faz-se necessário garantir o direito de acesso às mesmas. No entanto, no Brasil, esse direito ainda não é garantido por lei para as pessoas com deficiência visual. Podemos afirmar que a consciência por parte dos produtores, gestores e agentes de arte e cultura caminha para a consideração da inclusão cultural, mas ainda não promove mudanças substanciais no cenário em questão. As políticas públicas e leis têm a função de garantir os direitos básicos da população. Segundo a análise realizada nesse texto, o desejo de acesso à arte também pode ser interpretado como um direito básico. Não poder realizar um desejo inerente à natureza humana é algo muito frustrante e pode acarretar prejuízos no desenvolvimento pessoal, social e na autoestima. O estigma da deficiência visual impõe que as atividades que envolvem a comunicação visual, como criação artística, exposições de arte, científicas, históricas, cinema, teatro, ópera, espetáculos de dança e manifestações que utilizam linguagens híbridas, são proibidas às pessoas que não possuem a visão. A imagem social estereotipada da pessoa com deficiência visual restringe seu contato com arte e cultura ao que pode ser ouvido, tocado, cheirado e provado; no entanto, como colocado no início desse texto, todo ser humano tem o direito de ir e vir e de participar da vida cultural da comunidade. Para que estes direitos e desejos sejam exercidos são necessárias mudanças na organização convencional das atividades em questão, o que atualmente é plenamente possível por meio das novas tecnologias, avanços de pesquisas acadêmicas na área e, principalmente, pelas conquistas e sensibilização social conquistado pelo Movimento de Inclusão Social. A aplicação do conceito de acessibilidade a produtos, Página 107
serviços, espaços e à criação artística e cultural vem sendo colocada em prática e recebendo legitimação social por parte não apenas do seu público beneficiário, as pessoas com deficiência, mas também de todos aqueles que desejam vivenciar a cultura de uma maneira diferente e inclusiva, menos elitizada e intelectualizada. Além de beneficiar as pessoas com problemas de visão, idosos, crianças em fase de alfabetização, familiares e amigos das pessoas com deficiência visual, as adequações para inclusão proporcionam aos indivíduos esgotados pelo apelo da comunicação visual a possibilidade de perceber a arte e a cultura com seus outros sentidos. notas: 48 Quando afirmo que o desejo pela inclusão cultural entra no campo simbólico do ser humano, refiro-me à esfera daquilo que não é essencial em termos físicos de sobrevivência. Estar incluído em ofertas e espaços culturais representa igualdade com os demais indivíduos no campo social de status, dentro de um hall de atividades que apresentam, ainda, caráter excludente e exclusivo. Para esse uso, tenho como referência o autor Gilbert Durand que, em seu livro “A Imaginação Simbólica”, trata com profundidade a questão. 49 Esses objetos utilitários, transfigurados de seus cotidianos e apresentados como obras de arte a partir de 1913 em espaços de arte consagrados, como Salões e Museus de Arte, estão na base da crítica institucional. Referências Bibliográficas: ACKERMAN, Diane. Uma História Natural dos Sentidos. 1ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. AXEL, Elizabeth Salzhauer; LEVENT, Nina Sobol. Art Beyond Sight: A Resource Guide to Art, Creativity, and Visual Impairment. Nova Iorque: Art Education for the Blind Inc. e American Foundation for the Blind Press, 2003. BAVCAR, Evgen; TESSLER, Elida; BANDEIRA, João (org). Memória do Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. CANO, Begoña Consuegra. El acesso al patrimônio histórico de las persona ciegas y deficiente visuales. 1ª edição. Madrid: ONCE, 2002. COELHO NETO, José Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999. COSTA, Darcilene Batista. Tela interior: público cego em museus de arte – o reverso revelado. Belém: IAP, 2002. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993. FOUNDATION DE FRANCE - ICOM, MINISTERIO DE CULTURA y ONCE. Museus Página 108
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Acesso tátil: uma introdução à questão da acessibilidade estética Página 109
para o público deficiente visual nos museus50 Filipe Herkenhoff Carijó Juliana de Moura Quaresma Magalhães Maria Clara de Almeida Introdução A ideia de que os deficientes devem dispor do mesmo acesso que possuem todos os cidadãos às diversas esferas da vida social torna-se mais forte a cada dia. Em particular, é hoje ponto pacífico que os deficientes devem possuir acesso à arte e que os séculos de exclusão que fizeram de museus e galerias de arte locais pouco convidativos a esse público é um grave equívoco e uma situação a ser revertida o quanto antes51. Munidos desta convicção, muitos museus e centros culturais lançam-se num esforço, inédito em sua história, de trazer para dentro de suas portas um tipo de visitante novo: o deficiente visual52. Trata-se, de fato, de um movimento inédito, uma vez que, salvo raras exceções (entre as quais podemos citar algumas obras de arte contemporânea, como as de Lygia Clark e Hélio Oiticica), as artes plásticas foram tradicionalmente concebidas como pertencentes exclusivamente ao domínio visual. Entretanto, apesar do insight que assaltou os museus nas últimas décadas, a inclusão de pessoas com deficiência visual nesses espaços não se deu de maneira imediata e sem dificuldades. Muito pelo contrário, até hoje são frequentes as discussões sobre como implementá-la53, e persistem obstáculos significativos. No Brasil, os museus que possuem programas de acessibilidade são poucos e, mesmo neles, as propostas encontram-se em estado incipiente. Podemos dizer com segurança que as barreiras ao acolhimento de pessoas com deficiência visual, dentre aquelas que se interpõem à inclusão, em museus, dos deficientes em geral, são as que exigem mais inventividade para serem contornadas. Afinal, receber pessoas que apresentam perda parcial ou total do sentido visual requer não somente uma reorganização do espaço físico do museu – algo já custoso – mas, o que é um desafio ainda maior, requer também a invenção de estratégias que viabilizem a apreciação, por pessoas sem visão, de obras de artes plásticas e visuais. Fornecer acesso a obras tão visuais quanto pinturas e esculturas é uma tarefa para a qual não existe padrão ou caminho pré-definido. Não está claro o que se deve fazer para dar acesso, através do tato e de outros sentidos, a um acervo que sempre se pretendeu e foi visual. Fazê-lo de uma maneira que desperte o interesse de todos os públicos, e não apenas dos deficientes visuais, é algo ainda mais difícil; trata-se, porém, de uma meta que caracteriza o horizonte de uma inclusão efetiva. Neste capítulo, buscamos introduzir o leitor à questão do acesso aos museus através de uma discussão sobre os próprios objetivos das iniciativas inclusivas atualmente em curso no Brasil54, sobre seus métodos, estratégias, pressupostos e sobre o valor que, implícita ou explicitamente, atribuem às modalidades sensoriais não visuais, notadamente ao tato. Buscamos mostrar que a concepção que o senso comum possui da modalidade tátil pode em muito beneficiar-se de uma discussão sobre o seu funcionamento e sobre sua dimensão estética potencial. Em linhas gerais, a discussão sobre a acessibilidade de Página 110
museus para o público deve atravessar dois níveis diferentes: o acesso ao espaço físico e o acesso às obras. Estes dois problemas são distintos e devem ser tratados separadamente. O acesso ao espaço físico refere-se à necessidade de se criar um ambiente transitável, que permita a locomoção da pessoa cega com o máximo de autonomia e segurança possível. Isto pode ser alcançado através da remoção de obstáculos, da criação de mapas táteis, da instalação de piso tátil, de indicações em Braille, entre outros. Em 2004, a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) publicou a NBR 9050, que consiste num conjunto de normas gerais de acessibilidade a serem seguidas pelos espaços de exposição. Apesar do alto custo desta reestruturação espacial e de todas as dificuldades envolvidas nas políticas institucionais de cada museu, podemos dizer que o acesso ao espaço é um problema conceitualmente bem resolvido. Afinal, ainda que a implementação das normas de acessibilidade ao espaço seja difícil, as normas estão disponíveis. Isso não é sem motivo, já que, no que diz respeito ao acesso ao espaço, está relativamente claro o que precisa ser feito, mesmo que seja difícil realizá-lo. Em compensação, nenhuma norma foi criada para estabelecer critérios de disponibilização das obras de arte ao público de cegos55. Esta ausência é, no fundo, a expressão do fato de que ninguém sabe ao certo o que fazer desta face do problema. Assim, cada museu se vê encarregado de criar suas próprias estratégias de disponibilização do acervo, ora permitindo que se toquem as obras originais, ora criando adaptações acessíveis ao tato. Por se tratar de um campo pouco explorado, tomamos como foco para nossa discussão o contato com as obras de arte por cegos e deficientes visuais, elegendo como recorte sua fruição tátil. Tal escolha se deve principalmente ao fato das principais estratégias de acessibilidade para esse público atualmente existentes no Brasil serem táteis. Como veremos, a promoção de acesso às obras, que, afinal de contas, constituem o objetivo principal da visita ao museu de arte, é povoada de controvérsias e indefinições que estão longe de serem resolvidas. A Proibição do Toque Um eixo fundamental envolvido nas controvérsias que povoam o campo da acessibilidade a museus para deficientes visuais é o tabu relativo ao toque nas peças, o qual é rotineiramente concebido como danificador. Através de uma análise mais minuciosa, entretanto, é possível perceber que a aparente incompatibilidade das obras de arte com o toque está calcada não somente na possibilidade de dano, mas também em estigmas relativos ao tato e ao cego. A presença de tais estigmas fica clara nos argumentos da historiadora da arte Fiona Candlin (2004), que busca desnaturalizar a noção de toque como produtor de dano, trazendo à cena outras possibilidades. No caso em que aquele toca é alguém considerado “importante”, o toque agrega valor ao objeto tocado, sobretudo se forem deixadas marcas. Já no caso dos curadores, que têm intenso contato com as obras, muitas vezes sem luvas, a possibilidade de danificação não é nem ao menos cogitada, como se o toque destes experts fosse neutro. O status do toque do grande público, por outro lado, é visto como radicalmente diferente graças ao sentido pejorativo que lhe é Página 111
historicamente atribuído por curadores e artistas plásticos, que o concebem como algo que trará sujeira e danos. Esta concepção é, no fundo, efeito da constituição de um saber e de um toque ingênuo, em oposição a um saber e a um toque especialista, ou da constituição de um toque danificador em contraponto a um toque atribuidor de valor. Em alguns casos, a resistência chega a se mostrar desproporcional aos danos reais que a exploração tátil continuada poderia provocar, como é o caso das peças feitas de materiais resistentes e que não se desgastam, além daquelas que, com a higienização das mãos antes do toque, não se danificam. O sucesso pedagógico do ritual de visita a um museu depende da posse de certa capacidade cultural, a qual pode ser identificada pela maior escolaridade, que possibilitaria a decodificação dos significados do museu. Tal escolaridade, é claro, está intimamente relacionada a uma classe social mais elitizada. Assim, o museu até hoje permanece como uma instituição voltada a poucos, um espaço de conservação. Hetherington (2000) afirma que ocorre nos museus uma primazia dos objetos sobre os sujeitos, daí ele ser concebido como um lugar de olhar, um lugar de não tocar. A ideia de se expandir o acesso aos museus e galerias de arte a um público mais amplo gera duas posições (Barr, 2005). De um lado, estão aqueles que defendem que tais instituições devem atentar ao cumprimento de um acesso mais amplo e criar políticas sociais de inclusão. De outro, os que consideram que os esforços em tornar a visita a museus mais interessante para um público mais amplo acabam decidindo diminuir o nível de dificuldade de ideias complexas, promovendo uma simplificação exagerada. Para estes, a arte seria intrinsecamente destinada a um círculo restrito. Nesse contexto, o público deficiente visual enfrenta uma situação bastante crítica no que diz respeito a seu acesso estético aos museus, já que a cegueira tem sido historicamente associada à incapacidade e mesmo à ignorância, em contraponto ao museu, tido como instituição erudita e formulada para o usufruto do público vidente. Essa associação entre cegueira e ignorância tem suas raízes no que Belarmino (2005) denomina paradigma visuocêntrico: a identificação do conhecimento com a visão, sendo os demais sentidos desqualificados enquanto agentes no processo cognitivo. Este projeto, de acordo com Humphrey (1994), pode ser encontrado inclusive em Platão, já que este faria uma clara distinção entre os sentidos superiores, a visão e a audição, e os inferiores, o olfato, o paladar e o tato, sendo os primeiros assim categorizados devido à sua capacidade de suscitar conhecimentos racionais. Charles Feitosa (2004) argumenta que essa hierarquia dos sentidos é o motivo pelo qual as obras de arte são feitas para a audição e a visão. Para Candlin (2006), tal hierarquia pode também ser encontrada nos argumentos de historiadores da arte do séc. XX, como Erwin Panofsky, Bernard Berenson e Alois Riegl, para os quais o tato não seria um sentido adequado para a fruição das obras de arte por ser um modo mais primitivo, imediato ou intuitivo, “carnal” (por ser proximal) e não intelectual, de perceber o mundo que a visão. Em contraposição, a arte estaria vinculada à transcendência do corpo, ao sublime e à racionalidade. Assim, realizando uma análise crítica da proibição ao toque no âmbito dos museus, fica claro que uma iniciativa de Página 112
acessibilidade que sublinhe apenas o caráter danificador do toque pode acabar por pecar em promover uma inclusão efetiva ao fundamentar-se em preconceitos e estigmas, muitas vezes sem se dar conta disto. Informação ou experiência estética? Para que possamos proceder a uma avaliação criteriosa das estratégias inclusivas, devemos, antes de mais nada, conhecer melhor algumas nuances do problema. É preciso distinguir os objetivos pretendidos pelas diferentes formas de se promover acesso. Afinal, de acordo com a forma como disponibilizamos obras para a apreciação tátil podemos atingir diferentes resultados. Uma primeira estratégia é priorizar a informação, valorizando o aspecto pedagógico da experiência com a arte. Em abordagens que se propõem a perseguir tal objetivo, são oferecidos ao público deficiente visual, através de audioguias ou de textos em Braille, informações sobre a história da arte, sobre determinado período ou movimento ou sobre a vida e obra do artista em questão. Descreve-se verbalmente a obra, expõe-se o contexto histórico, e assim por diante. Tudo isso concorre para produzir um visitante mais bem informado, melhor conhecedor da arte após a visita do que era antes dela. Mas, mesmo reconhecendo que a informação sobre arte é importante – saber as condições em que se criou certa obra, conhecer seu significado e sua importância na história da arte, ler ou ouvir sobre seu conteúdo –, é preciso também reconhecer que receber informação sobre uma obra não equivale a contemplá-la. Afinal, a experiência estética de uma obra de arte é algo que não se reduz à aquisição de informação. Assim, numa política diferente, pode-se tomar como objetivo a promoção de experiências estéticas por meio do contato direto com as obras. Tal orientação preocupa-se menos com o conhecimento formal que o público vai adquirir sobre as obras, movimentos e artistas, e mais com a emoção estética que a experiência com as obras pode despertar. Entretanto, embora a oposição informação x estética56 pareça clara, nem sempre os museus com programas de acessibilidade têm noção da diferença entre os efeitos produzidos por uma e outra forma de acesso. Não estamos dizendo que é preciso optar exclusivamente pela informação ou pela estética, mas sim que é muito problemático confundi-las, tomando-as como se, no fundo, fossem a mesma coisa. Não é que estética e informação estejam necessariamente opostas. É possível, sem dúvida, provocar experiências estéticas através de uma boa descrição verbal; inversamente, o contato sensorial com uma obra não necessariamente dá lugar a experiências estéticas. Entretanto, parece-nos claro que um programa inclusivo com propósitos estéticos é, em essência, diferente de um programa com propósitos informativos. Uma confusão entre essas duas dimensões leva muitos museus a se acreditarem perfeitamente acessíveis ao público deficiente visual quando, na verdade, sua proposta de inclusão alcança somente o nível da informação. Ora, a experiência estética é objetivo essencial de qualquer museu; deve estar presente, portanto, também naquilo que os museus oferecem aos cegos. Isto é especialmente verdadeiro para os museus de arte, mas também é válido para outros. Um museu de ciências onde não se fizesse nada além de fornecer informações ao visitante poderia ser perfeitamente substituído por um livro Página 113
igualmente informativo. O conceito de experiência estética De que estética falamos aqui? Afinal, o que se entende por experiência estética tátil? Quando tocamos neste ponto, corremos o risco de cair em um campo de imprecisões, dadas as diversas formas de se entender o termo estética. O senso comum muitas vezes considera que a principal característica da experiência estética seja o sentimento do belo. De acordo com essa perspectiva, uma verdadeira obra de arte é aquela que desperta sensações de beleza, harmonia e perfeição no espectador. Esta forma tradicional de entender a experiência estética parece-nos limitada, pois não é difícil citar exemplos de obras de arte cuja principal característica é a produção de estranheza, de angústia ou mesmo da própria feiura. Assim, quando falamos de experiência estética, não estamos nos restringindo à experiência do belo. Para explicarmos melhor o que entendemos por experiência estética, recorreremos às ideias de John Dewey (2005). Este autor busca mostrar que a arte não deve estar sobre um pedestal, afastada da experiência cotidiana. A arte não é isolável das condições humanas sob as quais foi trazida à existência e nem das consequências que ela gera na experiência vivida. Assim, o conceito de experiência estética não aponta para nenhuma transcendência, nem exige do sujeito uma forma de preparação especial, lentamente trabalhada na academia de arte. Ao contrário, Dewey faz notar que, na vida ordinária, vivemos situações comuns que possuem caráter estético: tempestades, viagens ou a degustação de um prato saboroso. A experiência estética gerada por uma obra de arte nada mais é do que uma forma mais intensa desta experiência estética primária, presente na vida cotidiana. É uma experiência destacada, marcante e com caráter de completude (cf. Dewey, 2005). É a partir dessa ideia de experiência estética que defendemos a possibilidade e a necessidade de uma estética tátil. Afinal, é certo que, em nossa experiência comum, nos deparamos com sentimentos estéticos ocorridos no domínio tátil. Tome-se, por exemplo, a sensação de tomar um banho de mar ou o encontro com um vento que nos coloca em um estado estético irrefutável. Assim como existem experiências de caráter estético ligadas ao tato em nossa experiência cotidiana, acreditamos que seja possível haver uma estética tátil na arte. Considerar a visão como o sentido estético por excelência e o tato como excluído de toda esfera estética57: eis uma forma de desconhecimento da potencialidade de nossos sentidos e de nossa cognição. Além disso, aceitar tal ideia é desconsiderar que pessoas cegas, por exemplo, são tão capazes de ter experiências estéticas quanto qualquer um, apenas dentro de um funcionamento cognitivo diferente. Este é o primeiro passo para que a diferença possa ser tratada com seriedade e com respeito à forma de viver de cada um. Uma boa proposta de acessibilidade é, então, aquela que não se ocupa somente dos direitos das pessoas cegas no que concerne ao acesso à informação e aos espaços, mas que vai além, buscando assumir um compromisso estético (Quaresma e Kastrup, manuscrito). É essencial que se criem iniciativas inclusivas de qualidade artística. Considerar que, para incluir pessoas cegas em museus, basta tornar o espaço transitável e permitir que se toquem peças é Página 114
muito pouco. Ora, o museu é mais que um espaço físico. Quando se exige e se conduz uma investigação sobre o modo como os deficientes visuais percebem o mundo, suas especificidades e potencialidades, pode-se então garantir condições mínimas para uma experiência estética, que vai além da mera atividade recognitiva usualmente oferecida nas propostas de acessibilidade. O que defendemos é uma inclusão mais inventiva e mais verdadeiramente tátil58. Além disso, consideramos que obras de qualidade desenvolvidas para o público cego despertarão o interesse também do público vidente, levando a uma inclusão efetivamente integradora. Muito longe deste quadro ideal, o que vemos hoje é uma espécie de ciclo vicioso. Propostas pouco refletidas impõem-se sob a égide da inclusão; ainda que altamente deficitárias, tais propostas são bem aceitas pela maior parte do público a que se destinam e por outros museus, dada a escassez de ofertas desta natureza; tal sucesso leva ao surgimento de propostas semelhantes às primeiras. Adaptações e estratégias de inclusão A seguir, analisaremos algumas das estratégias inclusivas mais comuns em museus e centros culturais: as adaptações de pinturas (tanto para o alto relevo quanto para as três dimensões), as estratégias multissensoriais, a produção de réplicas de esculturas e o uso de “kits táteis”. Veremos que as estratégias inclusivas costumam deixar a desejar no que diz respeito à sua adequação à modalidade perceptiva do tato, ora em sua dimensão expressiva, ora no que concerne ao respeito à capacidade cognitiva do deficiente visual (muito frequentemente infantilizado). Em geral, elas também deixam a desejar em sua visibilidade, divulgação e acessibilidade para o público vidente. Uma das maiores dificuldades que museus e centros culturais encontram ao abrirem suas portas ao público deficiente visual é a de tornar seu acervo de pinturas, gravuras e fotografias acessível a um público que não dispõe da visão para apreciá-lo. Em consequência disto, temos visto muitos esforços para a invenção de estratégias e dispositivos que permitam ao público deficiente visual apreciar estas formas de arte de maneira alternativa. Uma opção muito comum tem sido a criação de versões táteis, em alto ou baixo relevo, das obras em questão. O intuito é fazer dos contornos visuais contornos tangíveis, mantendo-se, assim, com um aparente alto grau de fidelidade, a bidimensionalidade do original. Alguns museus trabalham, de maneira alternativa ou complementar, com adaptações tridimensionais, que geralmente consistem em maquetes que reproduzem o conteúdo das obras. Assim, se um quadro retrata um casal sentado em um banco de praça, cria-se uma maquete que busca reproduzir este conteúdo geral, mantendo-se, tanto quanto possível, a disposição espacial dos elementos que participam da cena. A maquete geralmente implica numa eliminação de alguns elementos considerados menos importantes, de modo a facilitar sua exploração pelo tato. O público deficiente visual é convidado a tocar estas adaptações bi ou tridimensionais e, no caso de algumas maquetes em que as peças são destacáveis da base, recomenda-se o manuseio dos diferentes elementos, que se prestam a uma espécie de jogo de encaixe. Página 115
Uma terceira forma de dar acesso ao conteúdo das pinturas são as adaptações multissensoriais. Aqui, a disposição espacial dos elementos da obra costuma ser posta em segundo plano, visto que o objetivo é fazer emergir experiências sensoriais relacionadas ao conteúdo da obra. Uma prática comum é a disponibilização de materiais, como diferentes tecidos ou tipos de madeira, que exemplificam as características físicas daquilo que está sendo representado na pintura. Se o quadro apresenta uma jovem usando um vestido de seda, disponibiliza-se um retalho deste mesmo tecido para o toque. Também encontramos, por vezes, apelo aos sentidos olfativo, auditivo e gustativo como uma forma complementar de produzir sensações relacionadas ao tema da pintura. Através de um odorizador, posicionado ao lado da obra, que apresente um jardim repleto de rosas, emite-se, por exemplo, o perfume desta flor. Quanto às esculturas, a adaptação nem sempre se faz necessária. Afinal, elas são objetos tangíveis e tridimensionais. Assim, alguns museus optam por separar algumas das peças de seu acervo, disponibilizando-as ao toque do público deficiente visual. Isto só é possível, porém, quando as peças são feitas de material resistente, como bronze. Quando não é este o caso, os originais podem ser substituídos por réplicas feitas de outros materiais (por exemplo, de resina), às vezes em tamanho reduzido, às vezes nas dimensões originais. O problema da adequação cognitiva À primeira vista, todas as formas de adaptação de obras de arte que descrevemos parecem igualmente promissoras e capazes de atender às necessidades do público a que se destinam. Na verdade, é comum que sejam encaradas como ótimas soluções para o problema do acesso às artes plásticas. No entanto, uma avaliação mais detalhada revela que, em muitos casos, certas características básicas do funcionamento cognitivo do tato não são devidamente consideradas quando da concepção das adaptações. Como mostraremos a seguir, adaptações feitas sem se considerar o funcionamento próprio do tato muito frequentemente falham em fornecer as condições para que os cegos compreendam aquilo que lhes é oferecido. Inadvertidamente, muitas das formas mais comuns de fornecer acesso geram mais confusão do que inclusão. Vejamos o caso das réplicas em duas dimensões. Este tipo de reprodução apresenta sérios problemas, sendo, em geral, pouco compreensível e ineficiente. Isto ocorre por um motivo muito simples: a representação em alto relevo mantém a estrutura essencialmente visual da obra. Não raramente, recorre a elementos visuais que pouco ou nenhum sentido fazem para a modalidade tátil em seu funcionamento comum, como as leis da perspectiva e a sobreposição aparente de objetos em planos diferentes (ver Hatwell e Martinez-Sarocchi, 2006; Almeida et al., no prelo). Sentido tridimensional por excelência, o tato encontra imensas dificuldades na exploração de representações planificadas de objetos. Em sua atividade comum, esta modalidade perceptiva busca sempre as propriedades tridimensionais dos objetos e das formas. Por exemplo, o encontro com arestas, vértices e concavidades é extremamente importante para a identificação de objetos pelo tato59. Em representações planificadas, estes elementos estão ausentes, o que equivale a retirar do tato seus pontos de apoio. Página 116
Um segundo problema é que o tato, diferentemente da visão, não é um expert no reconhecimento da forma pura dos objetos, mas os reconhece principalmente através de suas propriedades materiais: de sua textura, de seu peso, de sua temperatura, de sua dureza ou maleabilidade (Lederman et al., 1990; Lederman, 1997) – propriedades que também estão ausentes no alto relevo. As adaptações de pinturas em relevo sofrem, portanto, de um duplo problema. De um lado, pressupõem a familiaridade com elementos visuais estranhos ao tato, tais como a perspectiva e a sobreposição. De outro, dão como única pista para a compreensão de seu conteúdo a forma dos objetos, destituídos aqui de suas propriedades materiais originais. Para o deficiente visual (assim como para qualquer vidente que as explore com o tato), as representações em alto relevo aparecem, na maior parte das vezes, como uma confusão generalizada, em que é difícil reconhecer o que quer que seja. Em comparação com esta forma de adaptação, as maquetes, tridimensionais, são muito mais apropriadas; a compreensão das obras é muito maior quando este recurso é utilizado, sobretudo se, na produção das maquetes, concede-se a devida atenção à escolha dos materiais. Menos complicado parece ser o caso da exposição de esculturas. As esculturas são tomadas, à primeira vista, como obras tanto visuais quanto táteis. Entretanto, quando observamos pessoas cegas tocando esculturas sem a ajuda de informações complementares, notamos uma dificuldade inesperada na compreensão das peças. Com frequência, os cegos enfrentam problemas no reconhecimento do conteúdo da obra (um fenômeno que também pode ser observado em videntes vendados explorando esculturas com as mãos). Este tipo de problema nem sempre aparece, mas o fato de se apresentar em algumas pessoas no contato com determinadas peças deixa evidente que a apreciação de esculturas não é tão natural assim para o sistema háptico. Mas por que, se as esculturas são objetos tangíveis e tridimensionais? Ora, na escultura, as propriedades materiais dos objetos representados encontram-se totalmente modificadas. Todos os diferentes elementos, todas as diferentes partes da peça apresentam as mesmas propriedades materiais – aquelas do material de que é feita. Se para a percepção tátil de um cabelo é central a identificação da textura, da maleabilidade e da temperatura, então, é de se esperar que a apreciação de certas peças (bustos, por exemplo) esbarre em alguns problemas. Aquele mesmo cabelo, que é tatilmente reconhecido por suas propriedades materiais específicas, passa, na escultura, a possuir as propriedades materiais do mármore, do bronze, da resina, etc. E, realmente, a modificação destas propriedades, essenciais para a percepção tátil, dificulta em muito a compreensão de algumas peças, fazendo da experiência com a obra uma atividade mais ou menos bem sucedida de reconhecimento, tornando improvável o contato estético com a obra de arte (Almeida et al., no prelo). É claro que isto não significa dizer que pessoas cegas não devam tocar esculturas. Em primeiro lugar, não é sempre que o reconhecimento das peças encontra-se prejudicado. Além disso, outros sentidos costumam ser atribuídos à experiência de tocar uma escultura. Por exemplo, o fato de se tratar de uma obra importante, ligada a um certo movimento ou produzida por um artista renomado, são razões pelas quais as pessoas podem querer tocar uma peça. Certos cuidados também são bem-vindos no caso da Página 117
exposição de esculturas, pois facilitam a apreciação das obras, como a seleção de peças não muito grandes, evitando-se fazer da exploração uma atividade cansativa, ou a disponibilização de peças que apresentem diferentes texturas, dando ao percebedor tátil mais pistas a explorar. O problema da expressão Vimos que uma desconsideração do funcionamento cognitivo do tato pode implicar na criação de adaptações bidimensionais de pinturas, gravuras e fotografias que permitem pouca ou nenhuma compreensão pelo público deficiente visual. Se, no que concerne a este tipo de adaptação, é urgente apontarmos um fracasso, há que se deixar claro, entretanto, que o fracasso deve ser atribuído ao museu e não aos deficientes visuais: é o museu que faz ao deficiente visual um convite equivocado, não são os deficientes que respondem de maneira inadequada. Ao colocar à disposição dos cegos adaptações como essas, o museu faz da experiência estética – e mesmo da informação – uma possibilidade remota, levando os visitantes a se perderem numa longa atividade de reconhecimento. Poderíamos imaginar que, em contraste, a estética comparece com maior frequência no caso da adaptação tridimensional de pinturas, visto que aí a tridimensionalidade e o uso de diferentes materiais garantem condições mais propícias para uma percepção tátil dotada de sentido. De fato, esta estratégia é mais bem sucedida que o alto relevo no que diz respeito ao acesso ao conteúdo do quadro, pois permite que o deficiente visual compreenda quais são os objetos representados e a posição relativa entre eles no espaço da obra. Assim sendo, ela certamente pode contribuir para a aquisição de conhecimento sobre um determinado movimento artístico ou determinado artista, se acompanhada de informações verbais pertinentes. Mas, apesar de todas estas vantagens, apreciar pinturas através desse tipo de adaptação ainda causa decepção. Em parte, esta decepção é fruto de uma espécie de infantilização presente em alguns usos dessa técnica, em que o que se apresenta ao deficiente visual não é mais que uma proposta de caráter lúdico (voltaremos a este ponto adiante). Mas a decepção decorre, principalmente, de não se proporcionar condições para a ocorrência de experiências estéticas. Com certeza, aqui, o caso é bem diferente daquele de adaptações em alto relevo, em que o fracasso resulta de uma falta de compreensão do próprio material. Afinal, quando a maquete é construída com os materiais adequados, os cegos são, em ampla medida, capazes de identificar os objetos. Mas o problema é que, quando se trata de arte, essa identificação, mesmo que presente, não é o bastante. O mero reconhecimento de objetos não é suficiente para a emergência de uma experiência estética. O problema maior, no caso das maquetes, está na perda da expressividade da obra. Segundo Arnheim (2002), a expressão refere-se à percepção de qualidades dinâmicas nos objetos, qualidades estas que são estruturais e que podem ser apreendidas por todas as modalidades sensoriais. Dizemos que uma pintura é agressiva, delicada, alegre, triste, doce, sombria, leve, etc. Todas estas qualidades, ingredientes básicos da experiência estética, estão para além da mera informação de que estamos diante da representação de uma mulher, de um vaso ou de uma árvore, de um pássaro ou de uma natureza morta. Importam, isso sim, as qualidades dinâmicas que estes elementos possuem. Nas palavras de Página 118
Arnheim: "Não se pode fazer justiça ao que vemos descrevendo-o somente pelas medidas de tamanho, configuração, comprimento de ondas ou velocidade. (...) Enquanto se fala sobre meras medidas ou registros de objetos visuais, há possibilidade de se ignorar sua expressão direta. Observamos: este é um hexágono, um dígito, uma cadeira, um pica-pau cristado, um marfim bizantino. Mas, assim que abrimos os olhos para as qualidades dinâmicas transmitidas por quaisquer dessas coisas, inevitavelmente vemo-las carregadas de sentido expressivo." (Arnheim, 2002, p. 437) Quando transpomos a cena de um quadro para uma maquete sem atenção a esse problema, perdem-se os elementos expressivos da pintura. É importantíssimo notar, porém, que isto não ocorre por qualquer deficiência inerente à experiência tátil: tal perda ocorre mesmo se a adaptação é explorada com a visão. Tudo o que resta são meras “coisas” e suas descrições. Ao adaptar obras de artes visuais para os cegos, estamos sempre correndo o grave risco de transpor objetos, sem nada transpor de sua expressividade – e, assim, de perder a liberdade de um voo, da tristeza da luz, do frescor de um jardim. Numa adaptação inexpressiva, resta ainda sentido pedagógico e lúdico, mas nenhum sentido estético. Elementos expressivos táteis, auditivos, poéticos, entre outros, podem ser recursos muito mais interessantes e estão ainda por ser mais bem explorados num esforço de proporcionar novas experiências. É preciso, urgentemente, abandonar a ideia de que a melhor forma de adaptação é aquela que reproduz conteúdos e elementos visuais como uma espécie de cópia tátil correspondente. O resultado desta orientação, a que poderíamos chamar representacional, são peças que agradam somente àqueles que, cegos ou videntes, esquecem-se que uma obra de arte não é um mero objeto e acreditam, por isso, que representações de objetos podem substituir uma obra de arte. É preciso criar adaptações expressivas, é preciso encontrar novos caminhos, dos quais a exploração da dimensão expressiva dos demais sentidos pode ser um dos melhores. O uso de kits A maioria dos museus acessíveis brasileiros oferece “kits” de acessibilidade. Tais kits consistem na reunião do material adaptado para o público deficiente, ou seja, das reproduções de obras do acervo do museu, incluindo tanto as réplicas bi e tridimensionais quanto recursos multissensoriais, como os expostos acima. Este material, via de regra, fica isolado do acervo em exposição, guardado em um armário ou baú, sendo recrutado apenas quando um deficiente visual visita o museu. É claro que, assim isolados, os kits possuem, para os museus, a vantagem de conservar melhor o material especial e de ocupar pouco espaço. Por outro lado, o uso de kits caracteriza uma iniciativa não integradora na medida em que o material destinado aos deficientes é segregado do restante do acervo. O visitante comum não chega a tomar conhecimento de sua existência. Claramente, pressupõe-se tanto que o material que compõe o kit deve ser preservado do toque de muitas pessoas quanto – o que é muito mais grave – que o contato com o material não proporcionaria ganho algum para os videntes. Por Página 119
isso, os kits acabam por contribuir para uma segregação ainda maior entre cegos e videntes dentro do espaço do museu. Além disso, os kits representam uma perda de autonomia para o público a que se destinam, já que, para acessá-los, é necessária a presença de um mediador. Para grupos de pessoas cegas que agendam sua visita com antecedência e desejam ser acompanhados por um mediador, este problema pode passar despercebido. Mas, quando uma instituição se pretende acessível e busca de fato incluir novos públicos, espera-se que crie condições para que a pessoa com deficiência possa ir a qualquer exposição a qualquer momento. Do contrário, torna-se impossível a visita que não foi planejada com antecedência. O uso do kit como principal ou único recurso revela uma desconsideração do fato de que um cego pode querer ir ao museu sozinho, ou mesmo acompanhado de um amigo, a qualquer momento, e de que ele pode fazer questão de caminhar e apreciar as obras por conta própria, como qualquer visitante tem o direito de fazer. Outro problema dos kits é que eles costumam restringir a visita do cego a uma porção muito pequena (geralmente irrisória) do museu. Se um cego chega à recepção de um museu que possui como única ou principal oferta um ou mais kits táteis, ele é imediatamente encaminhado, na maioria das vezes, à sala onde se encontram os kits. Num grande número de casos, fica logo evidente que estas – e apenas estas – são as salas às quais se espera que o deficiente vá. Em geral, os mediadores não possuem preparo para conduzir a visitação de um cego a partes do museu que não constam neste curto script. No fundo, os kits são uma espécie de museu alternativo dentro do museu. Quando o kit é a única ferramenta de que o museu dispõe, este museu alternativo é tudo a que os deficientes têm acesso e, reciprocamente, só é acessado pelos deficientes. Ora, como dissemos no início, incluir é fazer equivaler os direitos e oportunidades de pessoas com e sem necessidades especiais, em qualquer espaço social. Vistos por este ângulo, os kits portam algo de contrário à própria ideia de inclusão. Uma última objeção a ser feita quanto ao uso dos kits refere-se a uma confusão entre os distintos tipos de necessidade que diferentes visitantes podem apresentar. Às vezes, deparamo-nos com adaptações a princípio criadas para serem utilizadas por crianças ou por pessoas com déficit intelectual, mas que são oferecidas também ao público cego. Em outros casos, embora tenha sido criado especificamente para o público deficiente visual, o material é infantilizador e parece mais adequado para crianças. Parece haver aí uma confusão, como se a deficiência visual necessariamente determinasse alguma restrição intelectual. Este equívoco, que já mencionamos acima como uma das razões da exclusão ao longo da história, é ainda hoje mais frequente do que se imagina. É crucial que não se misturem as várias formas de deficiência em um único caldeirão, como se as necessidades de pessoas com deficiências diferentes fossem sempre as mesmas ou pudessem, de alguma forma, se equivaler. Um cego adulto, tal como um vidente adulto, vai a um museu de arte em busca de arte; não espera ser recebido com um material de caráter predominantemente lúdico e mais apropriado às crianças. É certo, como acabamos de afirmar, que as melhores propostas de inclusão devem ser aquelas cujo alcance abarque os mais diversos públicos: o material desenvolvido para atender às pessoas com deficiência visual pode ser interessante também para outros visitantes, inclusive para os Página 120
videntes, sejam adultos ou crianças. Porém, a extensão das propostas inclusivas para os muitos públicos deve estar baseada na adequação do material para todos eles. Caso contrário, o efeito pode ser diametralmente oposto ao que se esperava: em vez de se verem acolhidos, alguns deficientes visuais sentem-se “enganados”, infantilizados e inferiorizados por propostas que desconhecem seus verdadeiros limites e subestimam suas verdadeiras capacidades60. A complexidade da inclusão e seus efeitos para além das fronteiras do museu Buscamos apresentar de maneira introdutória o campo problemático da acessibilidade em museus para deficientes visuais e suas múltiplas facetas, que em muito transcendem o cumprimento das normas técnicas. Neste sentido, fica patente que um museu ou galeria que cumpra todas as normas de acessibilidade não necessariamente apresenta-se como esteticamente acessível. Isto requer uma política do toque pautada na compreensão das especificidades e potencialidades cognitivas do tato, no questionamento à naturalização do caráter danificador do mesmo, bem como na inventividade para transmitir o caráter expressivo de uma obra destinada à contemplação visual para a fruição tátil. Esta última exigência, por sua vez, requer a consciência de que uma adaptação não cumpre a função de reproduzir fielmente a obra original, já que normalmente seus aspectos materiais e tamanho, propriedades mais características do modo de conhecer e experimentar através do tato, são transformados. Ao contrário, sua potência reside justamente na recriação, na releitura da obra. Essa concepção tem como efeito uma maior abertura à criação e, consequentemente, à possibilidade de tornar palpável, para aquele que não enxerga, a expressividade da obra que ele contempla. A consideração de todos esses pontos que rondam o conceito de acessibilidade, em museus, para deficientes visuais tem uma finalidade: a criação de um terreno propício para o florescimento de experiências estéticas para este público, o que significa tornar sua experiência de ir ao museu mais significativa. Um ponto importante a ser considerado é que não estamos propondo que a permissão ao toque se dê de modo irrestrito, mas que seja feita uma análise caso a caso, conforme a fragilidade e raridade das obras em questão. De modo geral, entretanto, é necessário que a proibição do toque não seja determinada a priori, mas que sejam pesados os custos e benefícios da disponibilização das peças à apreciação tátil. Para que a acessibilidade possa dar-se de modo efetivo, acreditamos que deva ser erguida sobre dois pilares: a investigação cognitivo-estética e o engajamento político. O primeiro deve garantir que o paradigma visuocêntrico não se imponha de modo disfarçado, como no caso de adaptação para o tato de obras cuja estética permanece visual, com grande apelo para os aspectos formais, resultando pouco interessante ou até incompreensível ao tato. O segundo, por sua vez, pretende que seja aberto um canal de comunicação entre o museu e o público-alvo de sua acessibilidade e que este possa analisar crítica e experiencialmente a qualidade da inclusão que lhe é oferecida, sendo seu feedback legitimado por meio da revisão das propostas e mesmo no próprio planejamento das iniciativas. Sobre estes dois pilares, então, deve haver uma integração entre os aspectos científicos e políticos que envolvem a acessibilidade. Página 121
Como o paradigma visuocêntrico consiste em um desdém do valor cognitivo dos outros sentidos que não a visão, é de suma importância, no movimento de resistência que deve embasar toda a iniciativa de democratização da cultura para o público deficiente visual, que haja essa integração, de forma que a inclusão se mostre mais efetiva. Deste modo, buscamos evitar o risco de reproduzir tal estética adaptada a outros sentidos e acabar, perante a dificuldade de compreensão das adaptações, por reforçar ainda mais o pressuposto da soberania cognitiva da visão sobre os outros sentidos, realizando uma inclusão excludente. Em suma, os desafios para a realização de uma boa iniciativa de acessibilidade a museus para deficientes visuais são muitos e permeados por estigmas, controvérsias e desconhecimento. Entretanto, atentar a eles com cuidado é reconhecer que trazem consigo em germe a possibilidade para uma gradual, mas verdadeira, mudança paradigmática, que pode beneficiar tanto cegos como videntes. notas: 50 Este trabalho é fruto de uma pesquisa realizada junto ao NUCC-UFRJ (Núcleo de Pesquisas Cognição e Coletivos), sob orientação da professora Virgínia Kastrup, e contou com uma parte de campo, em que os autores realizaram visitas técnicas a diversos museus do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nas visitas aos museus do Rio de Janeiro, ocorridas em 2009, os autores foram acompanhados por um grupo de deficientes visuais do Instituto Benjamin Constant, que também participou de discussões que contribuíram de maneira importante para o presente texto. As visitas aos museus de São Paulo ocorreram por ocasião de um estágio realizado pelos autores sob orientação de Viviane Sarraf em 2008. Agradecemos calorosamente a Virgínia Kastrup, Viviane Sarraf e aos deficientes visuais que participaram do nosso grupo de discussão e visitação: Virgínia Menezes, Alexandre Barel, Valéria e Waldir. 51 A este respeito cf. também os capítulos de Sarraf e Kastrup inseridos nesta coletânea. 52 Para uma discussão histórica sobre a acessibilidade em museus, ver Sarraf (2008). 53 Ver, p. ex., Candlin, 2004, 2006; Sarraf, 2008; Almeida et al., no prelo; Quaresma e Kastrup, manuscrito. 54 Para maiores informações sobre os museus brasileiros que possuem programas de acessibilidade, consultar o site http://museuacessivel.incubadora.fapesp.br/portal, mantido pela RINAM (Rede de Informação de Acessibilidade em Museus), criada por Viviane Sarraf. 55 Nota sobre o acesso à informação. 56 Quem introduz esta distinção no que diz respeito à acessibilidade para deficientes visuais em museus são Hatwell e Martinez-Sarocchi (2006). 57 Esta posição, se no mais das vezes está apenas implícita, é manifestamente declarada no trabalho de certos autores (ver, por exemplo, RÉVÉSZ, 1950). Para uma perspectiva contrária, porém, ver Arnheim (1990) e Löwenfeld (1951). 58 Para uma discussão mais extensa, ver Almeida et al., no prelo. 59 Para uma discussão mais detalhada a este respeito, ver Gibson (1962); Almeida et al. no prelo. Página 122
60 Foi esse o caso, p. ex., de alguns dos deficientes visuais que participaram de nosso grupo de discussão e visitação a museus. Referências Bibliográficas: ARNHEIM, R. Perceptual aspects of art for the blind. Journal of Aesthetic Education, v. 24, p. 57-65, 1990. __________. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Edusp/Pioneira, 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 9050: Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos, 2004. BARR, J. Dumbing down intellectual culture: Frank Furedi, lifelong learning and museums. Museum and Society, v.3, p. 98–114, 2005. BELARMINO, J. Cegueira, cultura e mundividência tátil. In: Aspectos comunicativos da percepção tátil: a escrita em relevo como mecanismo semiótico da cultura. Tese de Doutorado. Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004. CANDLIN, F. Don’t touch! Hands Off!: art, blindness and the conservation of expertise. Body & Society, v.10, p. 71- 90, 2004. __________. The Dubious Inheritance of Touch: art history and museum access. Journal of Visual Culture, v. 5, p. 137-153, 2006. ALMEIDA, M., CARIJÓ, F, KASTRUP, V. Por uma estética tátil: sobre a adaptação de obras de artes plásticas para deficientes visuais. No prelo. DEWEY, J. Art as experience. New York: Perigee, 2005. FEITOSA, C. Explicando a arte com filosofia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. GIBSON, J.J. Observations on active touch. Psychological Review, v. 69, p. 477-490, 1962. HATWELL, Y, MARTINEZ-SAROCCHI, F. La lecture tactile des cartes et dessins et l’accès des aveugles aux oeuvres d’art. In: HATWELL, Y., STRERI, A., GENTAZ, E. (Ed.). Toucher pour connaître: psychologie cognitive de la perception tactile manuelle. Paris: Presses Universitaires de France, p. 267-286, 2000. HETHERINGTON, K. Museum and the visually impaired: the spatial politics of access. The Sociological Review, v.3, p. 444–463, 2000. HUMPHREY, N. A evolução e a gênese da consciência. Rio de Janeiro: Campus, 1994. LEDERMAN, S., KLATZKY, R., CHATAWAY, C., SUMMERS, C. Visual Página 123
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Seção 4 - Literatura e Cegueira Página 124
Do mítico ao mágico, da alegoria ao realismo: a literatura e suas metáforas sobre a cegueira Joana Belarmino Ao Modo de Introdução Eu trouxe um convidado comigo para me auxiliar nessa comunicação. Eu chamei, para dialogar conosco sobre cegueira e literatura, um filósofo. Mas um filósofo que abdicou da sua filosofia, um filósofo que saiu do rigor e da dureza do pensamento científico para pensar sobre literatura, poética e estética a partir da chama de uma vela. Alguns de vocês já sabem quem está comigo. É Gaston Bachelard, esse poeta do claro-escuro, esse filósofo do psiquismo humano. E por que ele? Porque, a partir da leitura de Bachelard, eu pude pensar na literatura e na cegueira como chama e penumbra, como claro e escuro, como luta e repouso. Por que o que é a literatura, senão essa espécie de chama a tentar iluminar o psiquismo humano, a tentar desenterrá-lo das suas múltiplas peles, a buscá-lo no fundo do pântano e a perdê-lo no momento mesmo de pura chama? Sim. Se quisermos pensar na literatura como um fenômeno da cultura, se quisermos tentar abarcar a literatura na sua universalidade, podemos dizer que, ao longo da sua história, ela sempre exercitou esse jogo entre a luz e a sombra, essa contemplação do espírito por dentro de espaços de penumbra e de escuro, ou evocando a luz, a iluminação. Então, posso dizer também que cegueira e literatura são lugares exemplares para esse exercício, para essa luta, para essa contemplação. Posso dizer que a literatura e a cegueira fazem parte da minha vida, como duas espécies de espirais que se tocam, se conjugam. Mulher cega, às vezes cometo literatura através de crônicas e contos, perseguindo um lugar, um modo de dizer, inventando mosaicos para as lacunas do não ver, apalpando a possibilidade de um estilo onde a palavra se afirme e diga o intervalo, a ausência, luta perene essa que sempre me deixa de mãos vazias, com fome de silêncios, enquanto mais palavras brotam do meu sentir o mundo. Mulher de escrita, às vezes percuto a cegueira como se se tratasse de concha marinha. Escuto seus ecos, escavo suas sombras, suas luminescências. Luta perene essa, por traduzir esse intervalo, essa zona de sombra entre o ver e o não ver, luta que sempre me deixa de mãos vazias, a sonhar uma biblioteca escura e silenciosa onde eu possa flagrar a chama de uma vela. Mas, antes que a gente se perca por esse caminho resvaladiço, vamos fixar aqui algumas questões, ao modo de pistas para a orientação nesta nossa jornada. De que modo a literatura tem abordado, ao longo de sua história, o fenômeno da cegueira? De que conteúdos e qualidades estéticas o romance, a crônica, a poesia e o conto têm adornado os seus personagens cegos? O título desta comunicação já anuncia um esboço de resposta. Do mito à alegoria, do mágico ao realismo, são estas as chaves privilegiadas de onde a literatura percute a cegueira, em obras que, se não são abundantes, esmeram-se em uma rica produção de sentidos variados sobre essa limitação sensorial e as múltiplas Página 125
formas como a ideia de cegueira é percebida/construída na cultura e na sociedade. Mas não quero que pensem que essas quatro palavras encerram todo o percurso literário em torno da cegueira. Creio que elas resumem tendências de abordagens mais ou menos recorrentes no âmago da criação literária, às quais dedicarei atenção nessa minha comunicação. Tampouco quero passar a ideia de que cada uma dessas abordagens aparece separadamente, em obras literárias particulares. O mito, a alegoria, a magia e o realismo são, por assim dizer, símbolos da cultura. Sendo a literatura um sistema de modelização da cultura, alimenta-se naturalmente dos seus símbolos, das suas práticas, dos modos de ser e pensar dos indivíduos e grupos sociais. Sendo a literatura uma espécie de interface tradutora da cultura, recolhe desta os seus ecos, suas ressonâncias, suas subjetividades, entrelaçando-as nas suas narrativas, nos seus construtos imagéticos, que reverberam depois nos processos de decodificação realizados pelos leitores de livros. Para explorar esses quatro enunciados, destacarei alguns autores e obras em particular, em que a cegueira ou foi o veio central da trama ou serviu para a composição de personagens dentro da narrativa. Neste meu percurso, não privilegiei uma época histórica em particular, mas fui atrás de alguns escritores que fazem parte do meu círculo mais íntimo de leituras e que privilegiaram a cegueira em suas obras. Ernesto Sábato, José Saramago e André Gide são os convivas principais desta nossa jornada. Nos limites desta comunicação, tenho consciência de que muitos nomes importantes ficaram de fora. O formidável personagem cego da biblioteca de Borges em O Nome da Rosa; ou a bela narrativa de Mia Couto em O Cego Estrelinho, uma trama onde se misturam magia e realismo num enredo poético de muita beleza são, entre tantos outros, exemplos de narrativas que bem poderiam aqui figurar. Para iniciarmos esta nossa jornada, como efeito de fundo, peço que construam na imaginação esse cenário de penumbra onde Bachelard nos convida a acender uma vela para nos quedarmos a contemplar sua chama. A Narrativa da Cegueira na Obra de José Saramago Há escritores que escrevem com tudo o que têm. Escrevem com o corpo, com o espírito, escrevem com a lactência de todos os sentidos, imprimindo em nós, leitores, uma riqueza tão grande de sensações que nos deixam maravilhosamente espantados. Pensei sobre isso quando lia Marcel Proust, e reencontrei essa mesma polissemia dos sentidos na obra de José Saramago. Poderia mesmo dizer que, em sua obra A Caverna, ele faz um belíssimo elogio ao sentido do tato, este sentido que aproxima, num mundo saramaguiano assombrado pelas possibilidades de um distanciamento tecnológico. A cegueira é também uma metáfora muito cara à sua narrativa. Em História do Cerco de Lisboa, a aparição do Almuaden cego nos apresenta, de modo leve e poético, um indivíduo perfeitamente incrustado na sua cultura, cumprindo um papel. É com sutileza que Saramago nos apresenta esta antiga dicotomia da cultura: cegueira Página 126
e luz. Mas aqui não é propriamente o narrador que fala, é a própria cultura que se apresenta. Acompanhemos o momento em que o nosso Almuaden entra em cena: "Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que a pode dar a natureza seria capaz de distinguir no oriente do céu a diferença inicial que separa a noite da madrugada, o almuadem acordou. Acordava sempre a esta hora, segundo o sol, tanto lhe fazendo que fosse verão como inverno, e não precisava de qualquer artefacto de medir o tempo, nada mais que uma mudança infinitesimal na escuridão do quarto, o pressentimento da luz apenas adivinhada na pele da fronte, como um tênue sopro que passasse sobre as sobrancelhas ou a primeira e quase imponderável carícia que, tanto quanto se sabe ou acredita, é arte exclusiva e segredo até hoje não revelado daquelas formosas huris que esperam os crentes no paraíso de Maomé." (Saramago, 1989) Ao longo da descrição, Saramago nos entremostra a cegueira do almuaden como se, fazendo par com a madrugada, fosse iluminando devagar aquela face. "A escada, em caracol, era trabalhosa de subir, de mais sendo este almuadem já velho, felizmente não precisava que lhe vendassem os olhos como às mulas das atafonas se faz para que lhes não dê o mareio." (Ibid., 1989) E é no arremate final desta apresentação, do topo do monte, que a genialidade de Saramago desvela a cegueira do Almuaden, coroada pela luz da manhã e, ao mesmo tempo, pela luz da oração que aflora da sua boca. "Aos pés do Almuadem há uma cidade, mais abaixo um rio, tudo dorme ainda, mas inquietamente. A manhã começa a mover-se sobre as casas, a pele da água torna-se espelho do céu, e então o Almuadem inspira fundo e grita, agudíssimo, Allahu akbar, apregoando aos ares a sobre todas grandeza de Deus, e repete, como gritará e repetirá as fórmulas seguintes, em extático canto tomando o mundo por testemunha de que não há outro Deus senão Alá, e que Maomé é o enviado de Alá, e tendo dito estas verdades essenciais chama à oração, Vinde ao azalá, mas sendo o homem de natureza preguiçoso, ainda que crente no poder Daquele que nunca dorme, o Almuadem repreende caridosamente esses outros a quem as pálpebras ainda pesam, A oração é melhor que o sono, As-salatu jayrun min an-nawn, para os que nesta língua o entendem enfim concluiu clamando que Alá é o único Deus, La ilaha illa llah, mas agora só uma vez, que é quanto basta quando se trate de verdades definitivas. A cidade murmura as orações, o sol apontou e ilumina as açoteias, não tarda que nos pátios apareçam os moradores. A almádena está em plena luz. O almuadem é cego." (Ibid., 1989) Vejam que perfeição de engaste temos aqui, nessa frase final, em que luz e cegueira se irmanam, a beleza da narrativa pintando a nudez de um quadro em que um cego desvela a luz da manhã. Um quadro em que a cegueira mesma faz parte da beleza dessa manhã que desperta. Mas é no seu livro Ensaio sobre a Cegueira que a pena do Página 127
escritor promove à condição de cegueira coletiva toda uma nação, uma cegueira branca, íntima luz, envolvendo num “mar de leite” tudo o que antes fora mundo visível. Em uma curta passagem do livro, Saramago cuida mesmo de distinguir essa cegueira inusitada da cegueira propriamente dita quando escreve: "...foi só passados alguns minutos que o ouvido distraído do médico começou a perceber um ruído inconfundível de picotagem, que imediatamente identificou, ali ao lado encontrava-se alguém a escrever em alfabeto braille, também anagliptografia chamado, ouvia-se o som ao mesmo tempo surdo e nítido do ponteiro ao perfurar o papel grosso e bater contra a chapa metálica do tabuleiro inferior. Havia portanto um cego normal entre os cegos delinquentes, um cego como todos aqueles a quem dantes se dava o nome de cegos, evidentemente tinha sido apanhado na rede com os de mais, não era a altura de pôr-se o caçador a averiguar, Você é dos cegos modernos ou dos antigos, explique-nos lá de que maneira não vê. Que sorte estes tiveram, além de lhes ter saído na rifa um escriturário, também poderão aproveitá-lo como guia, um cego com treino de cego é outra coisa, vale o que pesa em ouro." (Saramago, 1995) Ainda que diferente, a cegueira branca de Saramago permite ao escritor recuperar, dentro do tenebroso cenário criado para os seus personagens, toda a simbólica de uma cultura mítica, mágica, realística e alegórica. Os cegos de Saramago, caminhando inexoravelmente, em fila indiana, rumo à barbárie de um país de cegos, evocam, em muitas passagens do romance, a imagem bíblica de um bando de cegos a caminhar rumo ao precipício, a qual foi tão cara ao romance do início do século XX, Barranco de Cegos, escrito por Alves Redol, para denunciar o desmantelamento de uma sociedade agrária, comunitária, em favor de uma sociedade industrial de massas. É somente por via dos olhos da mulher do médico, única personagem a conservar a vista, que Saramago constrói todo o horror da sua narrativa. A cegueira é a situação extrema, o fundo do poço, a treva por onde o escritor tenta iluminar o espírito humano, percutir desde as suas misérias mais sórdidas às sutis delicadezas do espírito. Cegueira e animalidade andam juntas a defraldarem a luta pela ascensão e a grandeza do espírito humano. A cegueira como alegoria para o mal-estar de uma civilização é, imagino, o intuito maior da obra de Saramago. A cegueira branca, luminosa, como uma espécie de grito às avessas para um mundo a caminhar inexoravelmente rumo a barbárie. É no último parágrafo, no diálogo entre o médico e sua mulher, que Saramago dá o arremate final a essa alegoria: "Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava." (Ibid., 1995) Página 128
III Os Subterrâneos de Sábato: Alegoria, Magia e Surrealismo na sua Narrativa Sobre a Cegueira Do princípio ao fim, o terceiro e longo capítulo da obra do escritor argentino Ernesto Sábato, Sobre Héroes y Tumbas, o qual se intitula Informe sobre Ciegos, nos impele a uma viagem subterrânea até os alicerces do psiquismo humano, ali onde a cegueira é como uma espécie de chama, a descamar as múltiplas peles do imaginário sobre a morte, a sordidez, a magia, o misticismo, o mítico, numa narrativa alegórica ao mesmo tempo mórbida, obsessiva e poética. Já nos primeiros parágrafos do seu informe, Sábato nos entrega a lucidez obsessiva do seu narrador, frente a frente com a cegueira, a deflagrar nele todos os temores próprios da ideia de treva subterrânea, onde habitam os répteis frios e pegajosos, onde o grande mal se organiza e dissemina. "¿Cuándo empezó esto que ahora va a terminar con mi asesinato? Esta feroz lucidez que ahora tengo es como un faro y puedo aprovechar un intensísimo haz hacia vastas regiones de mi memoria: veo caras, ratas en un granero, calles de Buenos Aires o Argel, prostitutas y marineros; muevo el haz y veo cosas más lejanas: una fuente en la estancia, una bochornosa siesta, pájaros y ojos que pincho con un clavo. Tal vez ahí, pero quién sabe: puede ser mucho más atrás, en épocas que ahora no recuerdo, en períodos remotísimos de mi primera infancia. No sé. ¿Qué importa, además? Recuerdo perfectamente, en cambio, los comienzos de mi investigación sistemática (la otra, la inconsciente, acaso la más profunda, ¿cómo puedo saberlo?). Fue un día de verano del año 1947, al pasar frente a la Plaza Mayo, por la calle San Martín, en la vereda de la Municipalidad. Yo venía abstraído, cuando de pronto oí una campanilla, una campanilla como de alguien que quisiera despertarme de un sueño milenario. Yo caminaba, mientras oía La campanilla que intentaba penetrar en los estratos más profundos de mi conciencia: la oía pero no La escuchaba. Hasta que de pronto aquel sonido tenue pero penetrante y obsesivo pareció tocar alguna zona sensible de mi yo, algunos de esos lugares en que la piel del yo es finísima y de sensibilidad anormal: y desperté sobresaltado, como ante um peligro repentino y perverso, como si en la oscuridad hubiese tocado con mis manos la piel helada de un reptil. Delante de mí, enigmática y dura, observándome con toda su cara, vi a la ciega que allí vende baratijas. Había cesado de tocar su campanilla; como si sólo la hubiese movido para mí, para despertarme de mi insensato sueño, para advertir que mi existencia anterior había terminado como una estúpida etapa preparatoria, y que ahora debía enfrentarme con la realidad. Inmóvil, con su rostro abstracto dirigido hacia raí, y yo paralizado como por uma aparición infernal pero frígida, quedamos así durante esos instantes que no forman parte del tiempo sino que dan acceso a la eternidad. Y luego, cuando mi conciencia volvió a entrar em el torrente del tiempo, salí huyendo." (Sábato, 1961) Os cegos de Sábato, embora tenham rostos, vontades, vozes e Página 129
silêncios, são a chama que o impele ao mundo do desconhecido ou, como ele próprio assinala, "Y así, paulatinamente, con una fuerza tan grande y paradojal como la que en las pesadillas nos hacen marchar hacia el horror, fui penetrando en las regiones prohibidas donde empieza a reinar la oscuridad metafísica, vislumbrando aquí y allá, al comienzo indistintamente, como fugitivos y equívocos fantasmas, luego con mayor y aterradora precisión, todo un mundo de seres abominables." (Ibid., 1961) Nos limites dessa comunicação, eu não poderia tratar com propriedade de toda a riqueza simbólica do trabalho de Sábato. É certo que, ao longo do seu escrito, ele serve-se da cegueira como uma espécie de corrimão, de archote se quisermos, de campo de força, de onde investiga o mal, o mal subterrâneo, enraizado no espírito, nos recônditos mais insondáveis do psiquismo humano. Ainda que recorra a personagens cegos, de carne e osso, ainda que percuta, através destes, reflexões metafísicas, mágicas e míticas com respeito a estes cegos, Sábato fala de uma outra cegueira, uma cegueira que parece ao mesmo tempo iluminar, organizar e corromper. Tem-se, pois, na sua obra, um uso exemplar da cegueira como alegoria para uma realidade que pertence ao mundo criativo, ao mundo mágico-mítico, ao mundo simbólico onde se quer diluir as fronteiras entre o racional e o irracional, onde se deseja perscrutar essas zonas de sombra e de mistério. A cegueira, na obra de Sábato, é, pois, para nos lembrarmos de Bachelard, uma espécie de vela impiedosa, a iluminar e justificar esse périplo do seu personagem pelo território do mal. Cegueira, Estética e Poética na Obra de Gide A cegueira compõe um dos personagens principais da obra de André Gide, A Sinfonia Pastoral. A jovem Gertrudes, cega, vive na casa do pastor evangélico que torna-se seu tutor e o responsável direto por sua educação. Numa narrativa direta, é com muita delicadeza que Gide tece a trama dessa história em que, ao mesmo tempo em que o pastor molda o espírito da jovem, subtraindo-a de conhecer o pecado, a vilania, protegendo-a dos males do mundo, envolve-se emocionalmente com aquele espírito puro, terno, capaz de pressentir a beleza em tudo. A cegueira de Gertrudes oferta lume ao escritor para que discuta questões éticas e morais numa sociedade marcada pelas tradições religiosas, questões que assumem, dentro da obra, uma dramaticidade pungente. O que nos chama a atenção em A Sinfonia Pastoral é o que já classificamos como uma espécie de “modo tátil de pensar”, “mundividência tátil”, que André Gide consegue flagrar com muita maestria na fala de Judith. A cena passa-se num final de tarde, em que o pastor leva Gertrudes a um passeio pelo bosque. A meio de um diálogo ela diz: “... Se o senhor soubesse – exclamou ela então numa exaltação de alegria – se o senhor pudesse saber como eu imagino tudo isso facilmente. Veja! Quer que eu lhe Página 130
descreva a paisagem?... Há atrás de nós, acima e ao redor de nós, os grandes pinheiros, com gosto de resina, com troncos grenás, com longos e sombrios galhos horizontais que se lamentam quando quer curvá-los o vento. A nossos pés, como um livro aberto, inclinado sobre a estante da montanha, a grande campina verde e matizada, que a sombra azula, que o sol doura, e cujas palavras precisas são flores – gencianas, pulsatilas, ranúnculos, e os belos lírios de Salomão – que as vacas vêm soletrar com seus sinos, e onde os anjos vêm ler, já que diz que os olhos dos homens estão fechados. Na parte inferior do livro, vejo um grande rio de leite, enfumaçado, enevoado, cobrindo todo um abismo de mistério, um rio imenso, sem outra margem senão, ao longe, bem longe à nossa frente, os belos Alpes resplandecentes...”. (Gide, 1948) Encontramos aqui poesia. Encontramos aqui a sensibilidade do escritor, que soube transpor para o seu personagem um mundo tátil, ancorado na metáfora de um livro. Pedaço de natureza pensado como livro, do qual eu posso me apropriar, posso segurar, posso ler. Uma natureza que se expressa, que fala com suas flores abertas, que se lamenta com seus pinheiros cheirosos. Para aqueles que defendem a normalização, a homogeneização da cegueira a uma realidade visuocêntrica, esse trecho não passaria de verbalismo puro. Para aqueles que pensam na cegueira como uma visão de mundo que se estrutura a partir desse pacto entre todos os sentidos ativos e, ainda, um pacto entre esses sentidos e a cultura mais ampla, encontrarão na fala de Gertrudes um modo particular de apreender/perceber o mundo, o qual encontra na palavra articulada sua melhor plataforma de tradução. A título de conclusão, e para que depois possamos alimentar o debate sobre essas questões, eu gostaria de apresentar algumas polêmicas que surgiram principalmente a partir de obras como Ensaio sobre a Cegueira e Informe sobre os Cegos, que, no entender de muitas pessoas cegas, alimentam uma visão desfavorável acerca da cegueira, contribuindo assim para a estigmatização desses indivíduos frente à cultura. Aqui estamos diante de um dilema: sabe-se que uma obra literária, antes de ser produto de consumo, é uma transação íntima, solitária, entre o escritor e a sua criação. Criação esta que pode ser imprevisível, uma espécie de cavalo mal domado, a trotar impunemente pela seara da escritura. Será lícito segurar o freio dessa imaginação criativa, impondo-lhe compromissos com valores e modos de pensar politicamente adequados? Teria a obra Ensaio sobre a Cegueira toda a sua força narrativa, todo o seu cenário de horror, toda a sua dramaticidade, o cenário apropriado para se vislumbrar a compaixão humana em toda sua beleza, e até todo o realismo, se Saramago não tivesse ido até as últimas consequências na exploração da situação do seu “povo de cegos”? E, mesmo as cenas mais belas, como aquela do banho das três mulheres na varanda da casa da mulher do médico, como poderia reter essa beleza de ser esse banho uma cerimônia íntima e privada, desdobrando-se acima de uma cidade de cegos? Saramago precisava da cegueira como uma espécie de chama de vela para assombrar e fazer o caos no mundo do seu romance. Do mesmo modo, Fernando Vidal, personagem da obra de Ernesto Página 131
Sábato, necessitava crucialmente da cegueira para viver sua obsessão num mundo subterrâneo, corroído, fraturado, onde era a própria cegueira que organizava, reunia. Numa outra ótica, mesmo a cegueira de Gertrudes, limpa, poética, arranjo de ternura e beleza espiritual, mesmo essa cegueira é o lugar de onde Gide extrai reflexões sobre moral, ética, justiça e religião. O mundo imaginativo, essa realidade fluida, plástica, insubordinada, esse lugar de onde jorra a literatura, como poderíamos impor-lhe nossos interesses, nossas crenças, sem transformá-la numa outra coisa muito diversa de literatura criativa? Literatura e cegueira são, pois, duas realidades que se tocam, estranham-se, entranham-se uma na outra, realizando ora o fluxo da cultura, ora o refluxo para outros mundos, os mais subjetivos, mais recônditos mundos onde não há lugar para a lógica, a racionalidade, o politicamente correto. Mundos como aquele onde vive Fernando Vidal, ou mundos como o da mulher do médico, onde a solidão parece reverberar, como a única fala a ser ouvida. Entretanto, ouso dizer que, em todas essas obras, por caminhos diversos, podemos encontrar uma espécie de ponto de intersecção, uma espécie de convergência nas suas abordagens sobre a cegueira. Saramago, tal como Sábato, serve-se da cegueira para iluminar, para acentuar uma dada realidade subjetiva, interior, própria do território do espírito, ou, se quisermos, da psiquê humana. Do mesmo modo, ainda que em menor medida, Gide apropria-se da cegueira de Gertrudes para refletir sobre moral, religião, ética e justiça. Ainda que tais marcas não sejam visíveis, é como se, em cada uma dessas obras, se retomasse a ideia mítica de cegueira como “iluminação interior”, como se se revificasse o mito de Tirésias, adivinho da cidade de Tebas, que ficara cego ao tentar desvendar os segredos dos deuses. Podemos então, por força de metáfora, de aproximação, dizer que a cegueira, no âmago dessas obras literárias, é a chama da vela bachelardiana, a criar e alimentar ora realidades difusas, em zonas de penumbra ou de treva absoluta; ora cenários vívidos e clarividentes, plenos de beleza, numa cidade onde todos estão cegos. E ouso ainda um comentário final, sugerindo que, para além da chama de uma vela, a cegueira acaba sendo uma espécie de espelho às avessas, ao qual a literatura de Sábato, de Saramago e de Gide submete impiedosa ou ternamente os seus personagens. Referências Bibliográficas: BACHELARD, Gaston: A Chama de Uma Vela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. COUTO, Mia. O Cego Estrelinho. In: Estórias Abençonhadas. Lisboa: Editora Caminho, 1987. ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Coleção Mil Folhas. Porto: Público, 2000. Página 132
GIDE, André. A Sinfonia Pastoral. Rio de Janeiro: Editora Vechi, 1948. REDOL, Alves, Barranco de Cegos. Lisboa: Editorial Avante, 1982. SÁBATO, Ernesto. Informe Sobre los Ciegos. In: Sobre Héroes y Tumbas Argentina, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1961. SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995. __________. A Caverna. Lisboa: Editora Caminho, 2000. __________. História do Cerco de Lisboa. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989.
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Literatura para quê? Maria Helena Falcão Vasconcellos Os fatos são sonoros, mas entre eles há um sussurro. O que me impressiona são os sussurros. Lispector
Clarice
O título Foi lembrando a indagação de Holderlin: “Em tempos de indigência, poetas para quê?” que escolhi o título: Literatura para quê? Na verdade é a mesma pergunta: literatura é palavra poética. Podemos perguntar: quando Holderlin indaga “Em tempo de indigência, poetas para que?” de que indigência falava? Holderlin viveu no final do século XVIII e primeira metade do século XIX, e criticava o modo de perceber-se e perceber o mundo e o modo de produzir conhecimento decorrente da razão iluminista. Ele e outros pensadores de sua época atentavam para a pobreza de um modo asséptico de existir, que recusava um corpo a corpo com o mundo, analisando-o de longe, para dominá-lo e submetê-lo a uma relação utilitária. Em contrapartida, viam na relação amorosa com o mundo, na experiência poética, a possibilidade de saída da indigência. Hoje, há também um modo de estar no mundo, um modo de perceber-se no mundo, parece que majoritário, que é um modo indigente de existir; desdobramento da indigência de que falava Holderlin: dificuldade para fazer, daquilo que nos acontece, a experiência do presente vivo. O presente do que nos acontece a nós, videntes e não-videntes, seja lá o que aconteça, é nossa grande chance de ir inventando um modo de existir. Parece que muitas vezes desperdiçamos a possibilidade de fazer a experiência do presente vivo. Uma das indigências, quer dizer, uma pobreza de nossa época é a indigência da experiência da vida pulsante que nos convoca naquilo que nos acontece. Se for verdade que nós, videntes e não-videntes, carecemos de sensibilidade para viver experiências, pergunto: é possível aprender a viver uma experiência? Isso tem alguma coisa a ver com literatura? Repito: uma das indigências da atualidade é a dificuldade para vivermos a experiência. Dentre outras, duas coisas valorizadas em nossa atualidade dificultam a experiência do presente vivo. Primeiro, o excesso de informação que nos assalta. Somos bombardeados por informações e, muitas vezes, nos percebemos na obrigatoriedade de consumir mais e mais informação. Outra coisa é o excesso de opinião. A necessidade de proferir imediatamente opinião sobre qualquer coisa, esse tagarelar imprevidente que impede o silêncio, dificulta a experiência do presente vivo. Há verdadeira obsessão pela posse da informação e pela opinião supostamente pessoal. Mas não nos iludamos: o consumo de informação e a emissão de opinião não são experiência. Pelo contrário, o poder que oferecem o acúmulo de informação e a presteza na emissão de opinião anulam a possibilidade de dar-nos Página 134
conta do acontecimento que explode no baque violento do fora, interferindo na dobra que constitui a subjetividade. Excesso de informação acumulada e fome de emitir opinião não deixam espaço existencial para acontecer a experiência (Larrosa, 2002). Experiência/aprendizado Mas então o que é experiência? Encontramos em Heidegger uma boa descrição do que entendo aqui por experiência: Fazer uma experiência com algo, uma coisa, um ser humano, um deus, significa que algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós, nos avassala e transforma. Fazer não diz aqui de maneira alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro... (2003, p. 121) Fazer uma experiência, portanto, não é decisão e ação de um sujeito soberano, é algo que nos acontece; mais ainda, fazer uma experiência é dar-se conta de que algo nos alcança, de que algo se nos passa.61 Fazer uma experiência é um modo de estar no mundo, sofrendo forças invisíveis que tomam posse de nós, nos arrancam de nós e nos tombam para fora de nossos contornos, nos fazem outros. Esse é o grande aprendizado que nos cabe na atualidade; aprendizado de existir no fluxo de forças que constitui o mundo e vai esculpindo em nós as marcas de um estilo de existência. Fazer uma experiência, então, é operar uma receptividade ativa que se sensibiliza às forças do vivo de que estão prenhes os fatos. Urge engajar-nos neste aprendizado, abertura ao que nos acontece, não desperdiçando a única matéria-prima da construção de um si com o mundo: a matéria-prima de algo que se nos passa. É aqui que entra de cheio a literatura. O que pode a literatura? O que pode a palavra-em-estado-de-arte (Almeida, 2003)? A literatura é ingrediente poderoso para se aprender a experimentar as forças do vivo, invisíveis nos fatos que nos envolvem. Ela nos sensibiliza, nos torna porosos à potência que pulsa na matéria do universo. Esse é o aprendizado que nos apela. Apela a videntes e apela a não videntes. Aprendizado de uma mudança perceptiva. Ou seja, a proposta é modificar a frequência da percepção: passar do ruído completamente audível dos fatos aos sussurros entre os fatos. Clarice Lispector sintonizava com essa frequência perceptiva e impregnava com ela a palavra que escrevia. “Os fatos são sonoros, mas entre eles há um sussurro. O que me impressiona são os sussurros.” (Lispector, 1977, p. 31) Voltemos à pergunta: o que pode a literatura? A literatura, como qualquer outra modalidade de arte, pode provocar em nós uma abertura aos sussurros entre os fatos. Todos nós somos um tanto cegos, um tanto surdos, um tanto insensíveis às forças do corpo do mundo que tocam nosso corpo. Essas forças são inaudíveis e invisíveis a ouvidos e olhos exclusivamente empíricos, e requerem o aprendizado de um terceiro ouvido e um terceiro olho. Este aprendizado está referido a um tipo peculiar de sensação. Sensação vivida no corpo, sensação provocada pela atmosfera de virtualidades que evolam entre os fatos. Página 135
Essa modalidade peculiar de ver e de ouvir não é atividade natural em nós. O modo como habitualmente vemos, agarrados à face bruta do mundo empírico, foi aprendido. Tão habituados estamos a essa modalidade de visão e de audição que as consideramos absolutamente naturais. Num conto, o escritor moçambicano Mia Couto nos apresenta o cego Estrelinho e seu guia Gigito: "O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. Gigito conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão repartidamente incomum, extensão de um no outro, siamensal. E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão. O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimônia no viver. O sempre lhe era pouco e o tudo, insuficiente. Dizia deste modo: – Tenho que viver já, senão esqueço-me. Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que papaeira. O cego enchia a boca de águas: – Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito! A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava como nunca esteve São Tomé: via para não crer. O condutor falava pela ponta dos dedos. Desfolhava o universo, aberto em folhas. A ideação dele era tal que o cego, por vezes, acreditava ver." (p. 29-30) O manuscrito da mentira, o mundo rendilhado que Gigito minuciava, desfolhando o universo, aberto em folhas, não era o corpo do mundo fremente de virtualidades, captado pelo terceiro olho, pelo terceiro ouvido? O terceiro é sempre aquele que não se fixa na margem do objeto nem na margem do sujeito. O terceiro se situa num entre. Nem na margem esquerda, nem na margem direita do rio. Na terceira margem. Num outro conto, talvez Mia Couto se aproxime de Guimarães Rosa. Parece que Nas águas do tempo e Terceira margem do rio são contos aparentados. No conto de Mia Couto, um avô se dispõe pacientemente a iniciar o neto na abertura às forças que perpassam tudo aquilo que experimentamos empiricamente. Nas palavras do escritor moçambicano, acompanhemos o processo de iniciação do neto se robustecendo. Depois de remarem juntos até o lago, onde se perdem as duas margens do rio, e de terem sofrido, aí, experiência forte, "Ao amarrar o barco, o velho me pediu: – Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu? Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos são cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos. – Me entende? Página 136
Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, também o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito ele interrompeu o nada: – Fique aqui! E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os territórios interditos?" (p. 16) Em palavras de Mia Couto, o neto afirma: “Pela primeira vez eu coincidia com meu avô na visão do pano.” E, nas palavras finais, o conto relata a culminância do ritual de aprendizado aprendizado de modalidade nova de percepção: "Enquanto eu remava em demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem." (p. 17) Nessa nova qualidade de percepção é o corpo inteiro que é afetado. Nosso corpo não pode ser percebido como carne fatiada em pedaços com funções estanques: apenas olho pra ver, apenas ouvido pra ouvir, boca para degustar sabores, pele para a sensação do toque. Podemos criar para nós a percepção de um corpo sensibilizado, sensibilizado, “visitado pelos panos”, aberto ao atravessamento das sutis virtualidades do corpo do mundo. Um corpo que "...se transforma num único órgão perceptivo (...) não à maneira de um órgão sensorial, mas como corpo hipersensível às variações de forças, ao seu tipo, à sua intensidade, às suas mais finas texturas. Corpo particularmente sensível às vibrações e aos ritmos dos outros corpos." (Gil, 2004, p. 2) O que pode um corpo aberto a outros corpos, aberto em toda sua superfície, penetrado por forças cósmicas, através de todos os poros? Certamente pode ser ingrediente de um modo de existência rico e não indigente. Um modo de existência rico, na matéria efetiva, empírica, dos corpos, vê o invisível, ouve a voz não audível, toca, cheira e saboreia forças que são o mundo. Perceber estas forças na superfície excitada da pele inteira, que reveste o corpo. Fazer a experiência do que se nos passa de corpo inteiro. Naquilo que se nos passa germinam sentidos que, muitas vezes, se encarnam em palavras. Acredito que a arte, no nosso caso aqui, a palavra-em-estado-de-arte, palavra-em-estado-de-arte, palavra poética, literatura, literatura, seja um dos meios de nos entregarmos ao que vai nos acontecendo e de sermos sensíveis à potência do vivo em que estamos imersos. Entrar em contato com o texto literário, fazer a experiência experiência da linguagem poética é abrir-se ao aprendizado de um modo de existência potente. Palavra-em-estado-de-arte Página 137
A palavra-em-estado-de-arte palavra-em-estado-de-arte é nossa aliada na empreitada de aprendizado de outro modo de estar no mundo. É Clarice que afirma: “Sou grata a meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda verei muitas coisas” (1999, p. 76) Palavras não são apenas palavras, elas agem, elas nos movem, elas nos configuram; é com palavras que nós pensamos. A palavra falada caracteriza a condição humana. Larrosa sugere que definamos o ser humano como vivente dotado de fala, ou seja, de linguagem. Habitamos o mundo imersos em linguagem. É na linguagem linguagem que habita o sentido. A linguagem é a atmosfera em que nos movemos existencialmente, existencialmente, é nela que temos acesso ao real. Existimos linguajeiramente, linguajeiramente, sempre tentando dar conta de encontros que vão nos engendrando no mesmo ato que engendram mundos de sentidos. Mas não lidamos com a linguagem sempre do mesmo modo. Uma é nossa lida com a linguagem na vida prática do cotidiano. Essa é uma linguagem pragmática, a serviço da sobrevivência. sobrevivência. Dizemos que esse é um uso prático da linguagem. Como quando eu digo: – Você vira a esquina, no outro quarteirão fica a padaria. – Aqui está o livro de que lhe falei. Na palavra poética, mesmo que em expressão cotidiana, a linguagem funciona de outro modo, um funcionamento intensivo. É no funcionamento intensivo, intensivo, estendendo a palavra até seus limites, que está a peculiaridade da literatura. "Aquilo de que se vive – e por não ter nome só a mudez pronuncia – é disso que me aproximo através da grande largueza de deixar de me ser. Não porque eu então encontre o nome do nome e torne concreto o impalpável – mas porque designo o impalpável impalpável como impalpável, e então o sopro recrudesce como na chama de uma vela." (Lispector, 1995, p. 178) É verdade que os dois modos de funcionamento da linguagem se mesclam, mas são distintos. A linguagem prática pretende abarcar o real, dizê-lo com exatidão e clareza. A palavra que funciona assim: "...é uma palavra que pretende controlar o traço desconcertante que emerge no contato com o real. Ela busca exorcizar a incerteza. É linguagem autoritária no sentido de que pretende banir qualquer resquício de vazio, de dúvida e de não-saber...” (Vasconcellos, (Vasconcellos, 2007, pág. 129) Já a linguagem poética diz intensidades. Cabe-lhe dar língua ao encontro de fluxos, que instituem a experiência. Cabe-lhe Cabe-lhe dar língua ao sussurro entre os fatos. Este sussurro é uma camada difusa de forças intensivas, que lateja nos fatos. É na dureza e na ternura dos fatos que se agitam multiplicidades. A linguagem literária se sensibiliza a essa camada difusa e a encarna em palavras. O escritor, violentado pela potência da gostosura ou da crueldade dos fatos, toma o sussurro que ecoa entre os fatos como matéria-prima "...para criar mundos em corpo-de-dizer (...) ele capta o murmúrio indizível do ser. É essa mestria de fragilidade que institui a potência da obra de arte. Na palavra frágil balbucia, gagueja a multiplicidade." multiplicidade." (Vasconcellos, idem, Ibidem) Página 138
Videntes veem empiricamente os fatos, ouvem a sonoridade empírica dos fatos. Não videntes não veem empiricamente os fatos, mas ouvem a sonoridade empírica dos fatos. Porém, não videntes e videntes, precisamos todos apurar cada vez mais nossa habilidade de sentir o sussurro das forças inaudíveis e invisíveis invisíveis a olhos e ouvidos puramente empíricos. Na segunda parte do conto O cego Estrelinho, é Infelizmina que substitui o irmão convocado para a guerra. Ela vê um mundo diferente do descrito pelo irmão. "Infelizmina não tinha sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade. Aquele mundo ao qual o cego se habituara agora de desiluminava. Estrelinho perdia os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de queixar." E quando Gigito morreu na guerra, Infelizmina se calou mais fundamente. "A moça, essa, deixou de falar, órfã do irmão. A partir dessa morte ela só tristonhava, definhava. E assim ficou, sem competência para reviver. Até que a ela se chegou o cego e lhe conduziu para a varanda de sua casa. Então iniciou de descrever o mundo, indo além dos vários firmamentos. Aos poucos foi despontando um sorriso: a menina se sarava da alma. Estrelinho miraginava terras e territórios. Sim, a moça, se concordava. Tinha sido em tais paisagens que ela dormira antes de ter nascido. Olhava aquele homem e pensava: ele esteve em meus braços antes da minha actual vida. E quando já havia desvencilhado da tristeza tristeza ela lhe arriscou de perguntar: – Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde? E o cego, em decisão de passo e estrada, lhe respondeu: respondeu: – Venha, eu vou lhe mostrar o caminho!" Assim termina o conto de Mia Couto. É bom atentar que os três personagens irmanados – o neto, Estrelinho e Infelizmina – vivem a experimentação experimentação de uma nova dimensão da percepção do mundo. Os textos citados descrevem um processo de aprendizado de um estilo outro de existir, que não o mais habitual. Um modo de existir entramado nas forças que compõem o mundo. Mas não é apenas nesses enredos potentes que a literatura aprimora a competência de sentir as forças não visíveis e não audíveis a olhos e ouvidos puramente empíricos. A própria trama das palavras, que escreve forças e não simplesmente a face bruta dos fatos, nos sensibiliza ao sussurro do acontecimento. No trabalho de apuro da sensibilidade, podemos contar com a literatura, pois nas palavras do texto literário se agitam e sussurram forças do mundo. Por isso, na escuta do texto literário, no contato com a palavra poética, através da leitura dos olhos ou leitura das mãos, pode acontecer que algo se nos passe, que algo nos arranque de nós, nos tire do sério e nos faça tombar fora do contorno da rotina cotidiana. O contato com o texto literário como experiência experiência forte com a intensidade da linguagem atravessa e desloca a dimensão identitária de nosso existir, instaurando em nós o terceiro ouvido, o terceiro olho, que nos ensinam a ouvir e a enxergar o mundo com o corpo inteiro: sensibilidade outra. Essa sensibilidade Página 139
outra, acentuada ou inaugurada no encontro com a força da literatura, extravasa e se esparrama em outros encontros que, do mesmo modo, deslocam sentires e pensares. nota: 61 “se nos passa” é apresentada como tradução possível, por João Wanderley Gerardi, na tentativa de manter fidelidade à construção do texto de Larrosa em espanhol. Referências Bibliográficas: ALMEIDA, Julia. Estudos deleuzianos da linguagem. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. Lisboa: editorial Caminho S.A., 1997. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio Janeiro: Ed. 34, 1992. __________. Crítica e clinica. São Paulo: Ed. 34, 1997. GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções - Estética e Metafenomenologia. Lisboa: Relógio d´Água, 2005. HEIDEGGER, Martin. A essência da linguagem. In: A caminho da linguagem. Trad. de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária S.Francisco, 2003. LARROSA. Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. nº 19. Jan/Fev/Mar/Abr, 2002. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio Janeiro: Ed. José Olympio, 1977. __________. A paixão segundo G.H. Rio Janeiro: Francisco Alves, 1995. __________. Um sopro de vida. Rio Janeiro: Rocco, 1999. VASCONCELLOS, M. Helena Falcão. A escrita de Clarice Lispector gagueja o indizível. In: Literatura e presença: Clarice Lispector. Cerrados. Revista de pós-graduação em Literatura.- vol.1, N.1 (1992). Vol.16 N. 24. Brasília, DF: Universidade Federal de Brasília, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, 2007.
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Literatura, devir-consciente e algumas considerações acerca do conto Em terra de cego, de H. G. Wells Maria do Carmo Cabral "Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso (...). Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e dispomos de tantos mundos quantos artistas originais existem." (Proust, 1958, p. 142) A literatura nos oferece mundos os mais diversos. Pela literatura podemos experimentar outros tempos, outros lugares, outras vidas. E com a leitura do conto Em terra de cego62, do escritor inglês Herbert George Wells63, isso ocorre de forma intensa. Nele, encontramos uma realidade distinta da que vivemos. Com ele, entramos em um mundo de cegos, um mundo construído, habitado e comandado por cegos – e essa diferença de perspectiva pode ser transformadora. Neste capítulo, abordamos os efeitos da leitura literária sobre o leitor. Consideramos que a literatura enquanto arte tem a potência de fazer pensar, de produzir subjetividades e de transformar. O encontro com a literatura pode ser uma abertura para o desconhecido, envolvendo o encontro consigo e com a alteridade do texto, a invenção de si e do mundo, constituindo uma experiência de devir-consciente. A partir, principalmente, das pesquisas do historiador francês Roger Chartier (1999, 2001, 2003), percebemos a existência de diversas práticas de leitura. Desta forma, buscamos especificar de início qual leitura será tratada. Em seguida, inserimos a noção de devir-consciente (Depraz, Varela e Vermersch, 2003), assim como a idéia de que algumas leituras podem levar a uma experiência deste tipo. Por fim, apresentamos e comentamos o conto Em terra de cego, de Wells. Chartier investigou práticas de leitura que existiram ao longo do tempo. Segundo ele, os diferentes modos de ler se constituem a partir de múltiplos fatores, tais como o livro e o texto, os lugares e épocas em que ocorrem, os objetivos dos leitores, as formas de ler, as relações estabelecidas entre texto e leitor, entre outros. Assim, nas definições que Chartier propõe acerca das práticas de leitura, algumas questões se destacam: a) O que ler: referente às características formais e técnicas do texto, como o gênero literário, o estilo do autor, o leitor ideal, os protocolos de leitura, e às características do livro enquanto objeto material, sua forma final e como foi produzido; b) Para que ler: onde se inserem as razões de ler, os objetivos, interesses e expectativas do leitor quanto ao livro e à leitura; c) Como ler: relativo às práticas de leitura, que envolvem a modalidade física do ato de ler e a capacidade do leitor, o método, a forma e o ritmo da leitura, assim como a relação que se constitui entre o leitor e o texto; d) Efeitos da leitura: quanto às consequências do ato de ler, ao Página 141
que advém da leitura, ao que ela pode trazer para o leitor – descoberta, reconhecimento, estranhamento, informação, prazer, fruição, problematização, distração, transformação, fuga, desconforto, conhecimento, reafirmação, etc. Ao pensarmos a leitura a partir da perspectiva do leitor, operamos uma diferenciação entre uma leitura de aquisição de informação e uma leitura de acolhimento ou à espreita. A primeira diz respeito a uma prática eminentemente segura, confortável e inócua, onde o leitor apenas reafirma suas crenças e concepções de mundo, fazendo uma leitura autocentrada e isenta de risco. Esta prática está ligada a uma concepção de cognição como representação, na qual o leitor busca acumular conhecimentos, e não há abertura para que encontros aconteçam, nem para que ele possa se transformar ou questionar suas próprias ideias em decorrência dos efeitos da leitura. Entretanto, há outra maneira de ler, característica de uma cognição inventiva, que nomeamos de leitura de acolhimento ou à espreita. Neste tipo de experiência, o leitor possui uma disposição aberta para perceber e acolher o que pode vir do texto. Ao estabelecer uma relação intensa, de entrega, a leitura provoca uma abertura para o desconhecido, faz pensar, levando à invenção de outras possibilidades de relação consigo, com o mundo e com a alteridade. O leitor se questiona, se coloca em perigo e permite que ocorram transformações a partir do encontro com o texto e das ressonâncias que ocorrem nele. Apesar de possível, esse tipo de leitura não é trivial, não ocorre sempre, nem se dá da mesma forma para todos. A leitura de acolhimento envolve um tipo específico de aprendizado, um aprendizado que depende da prática, que é um cultivo e que tende a alcançar uma atenção aberta (Depraz, Varela e Vermersch, 2003), de entrega e de aceitação do texto lido. Além do cultivo, existe ainda uma questão de acaso e de sorte para que esses encontros aconteçam. Não há garantia, mesmo para quem já vivenciou essa experiência antes, mesmo quando lemos um autor que gostamos. Esta leitura exige prática e um movimento de desprendimento de si. Quando isso acontece, essa leitura de acolhimento leva a um mergulho na sombra, propiciando a transformação do leitor. Há na leitura literária uma força para provocar uma interrupção na correria do dia a dia (Zambrano apud Larrosa, 2003), constituindo-se uma forma de resistência ao excesso de informação existente na contemporaneidade. Argumentamos que uma leitura de acolhimento pode levar a uma experiência de devir-consciente. Natalie Depraz, Francisco Varela e Pierre Vermersch (2003) descrevem o devir-consciente como o tornar-se ciente de uma experiência presente. Um processo pelo qual pode surgir na minha consciência alguma coisa de mim mesmo que eu não tinha consciência, pois estava confuso, opaco, pré-refletido. Esses autores salientam que esta é uma experiência usual, que todos podem ter, mas que muitas vezes não se dão conta. Por isso, eles buscaram definir a estrutura dessa experiência, observando como ela ocorre em diversas práticas, tais como a meditação budista, uma aula de filosofia, uma sessão de psicanálise, a escrita, entre outras. A estrutura do ato de devir consciente é constituída pelo ciclo básico chamado redução, composto pela suspensão, redireção e acolhimento ou deixar vir (letting-go) e pela evidência intuitiva. Página 142
Existem ainda duas fases que podem ou não ocorrer, que são as etapas de expressão e validação. Com a leitura literária, podemos experimentar uma suspensão do que a fenomenologia chama de “atitude natural” – que é a nossa atitude usual de realizar julgamentos acerca do mundo externo. Em suspensão, o leitor sai da atitude natural e direciona sua atenção para a experiência, para o que está ocorrendo no momento. No decorrer da leitura de acolhimento, pode acontecer uma surpresa estética, o que leva a uma redireção da atenção do exterior para o interior, desencadeando uma relação consigo, na qual entramos em contato com a alteridade que nos habita. Essa relação não é, portanto, nem reflexiva, nem pertence à dimensão recognitiva. É uma relação de uma outra natureza, que envolve uma atenção a si, uma dobra sobre si mesmo. Após a leitura, ou mesmo em interrupções que ocorrem durante a própria leitura, coloca-se a necessidade de um tempo vazio. Nessa espera, há uma mudança na qualidade da atenção, que passa de uma atenção que busca para uma atenção que acolhe (etapa do acolhimento ou deixar vir). Se o leitor conseguir sustentar esse vazio sem preenchê-lo, permitindo que o texto ressoe nele, poderá ocorrer a evidência intuitiva, que completa a experiência de devir-consciente. A evidência intuitiva envolve o acesso ao plano pré-reflexivo e a emergência de algo que nos habitava, mas que não tínhamos conhecimento e que, por isso, pode nos surpreender e nos transformar. Em terra de cego "No universo infinito da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem do mundo..." (Calvino, 2003, p. 19) O conto Em terra de cego, de H. G. Wells, foi considerado por Ítalo Calvino uma grande fábula moral e política, uma meditação sobre a diversidade cultural e sobre o caráter relativo de qualquer pretensão à superioridade. Esta história foi escolhida para ser analisada pelo que traz de novidade e por sua potência para mudar nossa imagem do mundo. Ao longo da apresentação do conto, traçaremos um paralelo com a experiência de devir-consciente que o leitor pode experimentar a partir do texto. Para Alfredo Bosi, os textos literários são “uma formação simbólica grávida de sentimentos e valores de resistência (...) [que] podem exprimir tanto reflexos (espelhamentos) como variações, diferenças, distanciamentos, problematizações, rupturas e, no limite, negações das convenções dominantes no seu tempo” (Bosi, 2002, p. 10). Apostamos na necessidade de ruptura e de negação das convenções dominantes no nosso tempo. Acreditamos que o conto de Wells nos faz pensar e abre a possibilidade de nos constituirmos de outros modos. Ao inventar a terra dos cegos, Wells desvenda novas possibilidades de vida e de organização de uma sociedade. E, com isso, revela a existência de diversos mundos, de múltiplas realidades. Em uma leitura de acolhimento ou à espreita, o leitor entra em contato com a literatura de Wells com uma disposição aberta para acolher as diferenças e as novidades que vêm do texto, experimentando uma suspensão de sua atitude natural e uma surpresa Página 143
estética – que levam à redireção da sua atenção do exterior para o interior e o fazem entrar em contato com a alteridade que o habita. Após a leitura, com a espera, respeitando um tempo vazio para que o que foi lido possa ressoar, há uma mudança na qualidade da sua atenção: de uma atenção que busca para uma atenção que acolhe. Nessa atitude de deixar vir pode emergir uma evidência intuitiva a partir do que foi lido, com o acesso a algo que nos habitava, mas que não tínhamos conhecimento. Dessa forma, conclui-se uma experiência de devir-consciente, provocada pela leitura do conto. Essa evidência intuitiva pode ser diversa para cada pessoa, como a consciência de nossos próprios preconceitos, ou uma maior abertura para a alteridade, ou qualquer outra experiência transformadora suscitada por essa leitura. O que gostaríamos de salientar é que o leitor que faz uma leitura aberta, de acolhimento, sairá transformado da leitura do conto Em terra de cego de Wells. Vamos a ele. Wells narra que, nas regiões mais selvagens dos Andes, existia um vilarejo separado do resto do mundo há várias gerações: a Terra dos Cegos. A perda da visão de seus habitantes havia ocorrido de forma inexplicável e gradativa, dando tempo para que a população se adaptasse, construindo a cidade de acordo com suas necessidades. Quinze gerações depois, eles haviam se esquecido de muitas coisas e inventado outras. Eram fortes, hábeis e viviam tranquilamente. Por volta dessa época um montanhês inteligente e empreendedor chamado Núñez foi parar acidentalmente nesse lugar. E essa é a história do encontro desse homem com essa sociedade. Durante a escalada a uma montanha no Equador, Núñez guiava um grupo de ingleses quando enfrentaram uma avalanche. Durante a noite, ele caiu de um precipício e não foi mais visto. Porém, devido à neve, sobreviveu e, depois de andar por doze dias, chegou à Terra dos Cegos. Na primeira vez que avistou o vilarejo, suas casas “pareceram muito estranhas para seus olhos” e todo o aspecto do vale se tornava, à medida que o olhava, mais estranho e menos familiar para ele. As casas formavam fileiras contínuas de cada lado de uma rua central e eram multicoloridas, “de um colorido selvagem (...) de extraordinária irregularidade” (Wells, 2004, p. 499) e sem janelas. Um muro cercava todo o vale e existia um canal circular que irrigava o prado e as flores abaixo. Acima deste canal, lhamas pastavam. Os primeiros cegos que o encontraram “seguraram Núñez e o apalparam” (p. 501), considerando-o “uma criatura estranha”. “Ele fala”, argumentou um deles, “certamente é um homem”. Por fim, chegaram à conclusão que se tratava de um “homem selvagem” (p. 501), feito pelas forças da natureza e parido das rochas. Decidiram levá-lo aos anciãos, os sábios do lugar. Em seu contato inicial com a população de cegos, o provérbio: “Em terra de cego, quem tem um olho é rei” martelava em sua cabeça como um refrão. Entretanto, Núñez ficara atordoado com tantas pessoas querendo tocá-lo e, ao entrar nas casas sem janela, não conseguia enxergar, esbarrando em tudo e derrubando coisas. Além disso, ao tentar explicar de onde vinha e o que era a visão, eles consideravam suas palavras desconexas e sem sentido. Desta forma foi, imediatamente, considerado incapaz, imaturo, um verdadeiro idiota. Wells inventa uma sociedade diversa, com uma nova forma de vida, que questiona e inverte o padrão visuocêntrico. Delineia uma sociedade de cegos, construída e organizada para e pelos cegos, a Página 144
partir de seus parâmetros, necessidades e escolhas. Se, no livro Ensaio sobre a cegueira, Saramago recorre à cegueira enquanto metáfora, construindo uma situação caótica como consequência da perda da visão, neste conto, Wells constrói uma civilização possível sem a visão. Uma sociedade que funciona de maneira diferente da que conhecemos sendo, porém, verossímil, organizada e bem estruturada. Uma cidade que propicia uma vida digna e tranquila aos seus habitantes, ao contrário da impossibilidade, do caos ou da animalidade decorrentes da cegueira que encontramos no romance de Saramago. Nesse vale, os cegos estão em maioria absoluta e o diferente passa a ser aquele que vê. Apresentando particularidades, falando do desconhecido e mesmo considerando-se em vantagem, este estranho, vidente, tem dificuldades para se adequar a esse outro modo de viver e é percebido como um ser imperfeito e incapaz. O diferente, o que não é compreendido, é rechaçado, ridicularizado ou temido, e acaba sofrendo pressão para adequar-se. Alguns pontos suscitados por este conto dizem respeito à dificuldade de compreendermos e aceitarmos o que é diferente de nós e a uma incapacidade de enxergarmos e entendermos a realidade sob uma perspectiva que absolutamente desconhecemos. "Depois que sua precária tentativa de lhes explicar a visão tinha sido posta de lado como a versão confusa de um ser recém-criado descrevendo as maravilhas de suas sensações incoerentes, ele se conformou, um tanto espantado, em ouvi-los. E o mais velho dos cegos explicou a ele a vida, a filosofia e a religião, como o mundo tinha sido inicialmente um vazio oco nas rochas, e então surgiram, primeiro, coisas inanimadas sem o dom do tato, e depois as lhamas e umas poucas outras criaturas que tinham pouco sentido das coisas, e então os seres humanos, e enfim os anjos, que se podiam ouvir cantando e se agitando, mas os quais ninguém podia tocar." (Wells, 2004, p. 503) Os anjos que o ancião descreveu eram os pássaros que sobrevoavam o vale. Nesse sentido, vale observar como o ser humano constrói explicações para o que não compreende, e muitas vezes o faz de forma poética. O ancião continuou contando como o tempo havia sido dividido em quente e frio, “e como era bom dormir no quente e trabalhar no frio”. Explicando porque eles trabalhavam durante a noite, que era mais fresco e agradável, e dormiam durante o dia, por ser mais quente. Por fim, afirmou que Núñez devia ter sido “criado especialmente para aprender a servir à sabedoria que eles tinham adquirido e que, apesar de toda a sua incoerência mental e todo o seu comportamento estabanado, ele precisava ter coragem e fazer o melhor para aprender” (p. 504). Desde sua chegada, quatro dias se passaram “e o quinto dia encontrou o Rei dos Cegos ainda incógnito, como um estranho desajeitado e inútil entre seus súditos” (p. 505). Ele percebeu que não seria tão fácil tornar-se rei daquele lugar como havia imaginado e, enquanto pensava em como realizar “seu golpe de Estado”, ele resolveu fazer “o que lhe diziam e aprendeu as maneiras e costumes da terra dos Cegos” (p. 505). Sobre Núñez, concluíram que se tratava de um “homem selvagem”, que havia sido feito pelas forças da natureza, pela podridão, que foi parido pelas rochas e que veio para o mundo. O consideravam “uma criatura estranha”, áspera, com “pálpebras Página 145
piscantes” e cabelos duros como o pêlo de uma lhama. Refletiram que, como acabara de ser criado, seus sentidos ainda eram imperfeitos e ele não podia ouvir o caminho enquanto andava, por isso tropeçava, precisando ser levado como uma criança. E, como sua mente ainda não estava completamente formada, ele possuía apenas os começos da fala, utilizando muitas palavras sem sentido. Núñez ainda insistiu um pouco em explicar-lhes sobre a visão. Mas, com o tempo, o que era inicialmente incredulidade divertida da parte deles se transformou em uma atitude condenatória. Refutavam as descrições de mundo feitas por Núñez, confrontando-as com suas próprias crenças. "Disseram-lhe que não havia montanhas de modo nenhum, mas que o fim das rochas onde as lhamas pastavam era na verdade o fim do mundo, dali partia um teto cavernoso do universo, de onde vinham o orvalho e as avalanches; e quando ele se manteve firme na afirmação de que o mundo não tinha fim nem teto, ao contrário do que eles supunham, eles disseram que seus pensamentos eram pecaminosos." (Wells, 2004, p. 506) Ao perceber que suas palavras os chocavam, “desistiu de vez desse assunto, e procurou mostrar-lhes o valor prático da visão” (p. 507), relatando o que via para ser comparado com anotações que os cegos faziam sobre o que acontecia. Sua demonstração, porém, também falhou, uma vez que eles só tomavam nota do que acontecia dentro ou atrás das casas sem janelas, e “dessas coisas ele não podia ver ou dizer nada, e foi após o fracasso dessa tentativa, e da ridicularização que eles não conseguiram reprimir, que ele recorreu à força”. Descobriu, entretanto, “que era impossível para ele agredir um cego a sangue-frio” (p. 507). Após um confronto, acabou fugindo e “ficou fora do muro do vale dos cegos duas noites e dois dias, sem comida ou abrigo, e meditou sobre o inesperado” (p. 509). Como não encontrava maneiras de conquistar aquele povo, “finalmente rastejou de volta para o muro da Terra dos Cegos e tentou entrar num acordo” (p. 510). Disse que havia enlouquecido, mas que agora estava mais sábio e se arrependia de tudo o que tinha feito. Sua revolta foi encarada “como mais uma prova da idiotia e inferioridade gerais dele e, depois que o chicotearam, o indicaram para fazer o trabalho mais simples e mais pesado que tinham para alguém fazer, e ele, não vendo outro modo de vida, fez submisso o que lhe disseram para fazer” (p. 510). Ao mesmo tempo, continuou recebendo a visita dos filósofos cegos, que falavam “da pecaminosa leviandade de sua mente, e o repreenderam de tal maneira por suas dúvidas sobre a tampa de rocha que cobria sua panela cósmica que ele quase duvidou se na verdade não era vítima de alucinações ao não ver a tampa lá em cima” (p. 510-511). Ou seja, devido às dificuldades enfrentadas, acabou por submeter-se, dizendo o que queriam ouvir e depois, diante dos “ensinamentos” que ouvia, chegou mesmo a duvidar do que sabia. Assim, Núñez se esforçou para se tornar “um cidadão da Terra dos Cegos, e esse povo deixou de ser um povo generalizado; eles se tornaram individualidades familiares para ele, enquanto o mundo além das montanhas se tornou cada vez mais remoto e irreal” (p. 511). Com a convivência, ele aprendeu que não existe o cego, como Página 146
uma entidade única, mas pessoas cegas, diferentes entre si, com suas particularidades e características pessoais, da mesma forma como entre os videntes. Com o tempo, o vale se tornou o mundo para ele e, quando se apaixonou por Medina-saroté, filha caçula de seu patrão Yacob, pensou que poderia viver ali para sempre. Ela correspondeu ao seu amor, mas havia grande oposição à união deles, já que, apesar da aparente aceitação, ainda o consideravam “como um ser à parte (...), uma coisa abaixo do nível permissível para um ser humano”. O pai tentou convencer a filha a desistir, dizendo: “ele é um idiota. Sofre de alucinações; não pode fazer nada direito” (p. 512). Mas a moça estava apaixonada e decidida a casar-se. Resignado, Yacob foi falar com os sábios, buscando interceder em favor da filha. Argumentou que Núñez já estava muito melhor do que era antes, e que seria possível que um dia o julgassem tão bom quanto eles próprios. Então, um dos sábios afirmou: “Penso que muito provavelmente ele pode ser curado. (...) O cérebro dele é que é afetado” (p. 513). Mas o que o afeta? “Essas estranhas coisas que chamamos os olhos, e que existem para fazer uma depressão macia e agradável no rosto, são doentes, no caso dele, de uma maneira tal que afeta seu cérebro. São excessivamente estendidas, ele tem cílios e suas pálpebras se movem, e consequentemente seu cérebro está num estado de constante irritação e distração. (...) para curá-lo completamente, tudo que precisamos fazer é uma cirurgia bem fácil – ou seja, extrair esses corpos irritantes (...). E então ele ficará perfeitamente são e será um cidadão bem respeitável” (p. 513). Apesar das dúvidas de Núñez, Medina-saroté o convenceu a enfrentar os cirurgiões cegos. É importante destacar que a máxima autoridade local, representada pelos anciãos, atuou no sentido de buscar a cura, a normatização, a adaptação, frente à diferença, considerada como sinal de inferioridade, insanidade ou mesmo ameaça. No conto, os anciãos procuram agir em prol do que consideram o bem de todos. Assim, pretendem educar e curar Núñez, visando sua adaptação à sociedade local, tornando-o um igual. Não sendo capazes de entender a resistência dele frente à decisão pela cirurgia. "Durante a semana anterior à operação que deveria erguê-lo da servidão e da inferioridade para o nível de um cidadão cego, Núñez não dormiu nem um pouco (...) ele ficava sentado meditando ou andava sem rumo, tentando levar sua mente a suportar o dilema. Tinha dado a resposta, tinha dado o consentimento, e ainda assim não tinha certeza." (Wells, 2004, p. 515) Quando chegou o último dia de visão para ele, Núñez decidiu buscar um lugar solitário e ali ficar até que chegasse a hora de seu sacrifício. "Mas enquanto andava ergueu os olhos e viu a manhã, a manhã como um anjo em armadura dourada, descendo pelos picos... Pareceu-lhe que, diante desse esplendor, ele, e esse mundo cego no vale, e seu amor, e tudo, não eram mais do que um poço de pecado. (...) seguiu em frente, e passou pelo muro circular e saiu para as rochas, e seus olhos estavam sempre vendo o gelo e a neve iluminados pelo sol. Viu sua beleza infinita (...). Pensou naquele mundo grande e livre de onde tinha partido, o mundo que era o seu próprio mundo." (Wells, 2004, p. 515) Página 147
Continuou andando, escalando e, mesmo cansado e machucado, “sentia como se estivesse à vontade e havia um sorriso em seu rosto” (p. 516). Enquanto olhava para a “ilimitada vastidão do céu” e para o pôr-do-sol, com “o azul se aprofundando para o púrpura, e o púrpura para uma escuridão luminosa”, ele parou e ficou quieto, “sorrindo como se estivesse satisfeito simplesmente por ter fugido do vale dos cegos, no qual tinha pensado ser rei. O brilho do pôr-do-sol passou, a noite chegou, e ele ainda estava quieto, deitado, em paz e contente sob as estrelas frias e claras” (p. 517). O fim do conto é poético, mas triste, pois apesar de trazer a reafirmação dos ideais de cada um, demonstra uma impossibilidade de convivência intransponível. A despeito da novidade e do questionamento de padrões, o conto não apresenta uma solução. Ao final da história, sucumbe-se, mais uma vez, frente à intolerância. Como se uma convivência pacífica, com respeito entre as pessoas, fosse absolutamente inviável. Como se não fosse possível que pessoas diferentes vivessem junto e em paz, onde um não quisesse impor suas crenças e ideais ao outro, por não conseguir entender, conceber e muito menos aceitar outras formas de viver e de pensar. No fim, percebemos que essa forma libertária de vida e de convivência permanece como uma utopia ainda por vir. notas: 62 Este conto é de 1899 e pode ser encontrado no livro Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Ítalo Calvino. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 63 H.G. Wells também é o autor de A máquina do tempo (1895), A ilha do Dr. Moreau (1896), O homem invisível (1897), A guerra dos mundos (1898), entre outros. Referências Bibliográficas: BOSI, A. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CABRAL, M.C.C. Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UFRJ, 2006. CABRAL, M.C.C., KASTRUP, V. Leitura de Acolhimento: Uma Experiência de Devir Consciente. Psicologia: Reflexão e Crítica, 22(2), p. 286-293, 2009. CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. CHARTIER, R. Formas e sentido – Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003. CHARTIER, R. (org.) Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. Página 148
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Seção 5 – Política e cidadania
Deficiência e política: vidas subjudagas, narrativas insurgentes Bruno Sena Martins A concepção de deficiência desenhada no século XVIII – que nasceu e se consolidou alojada nas próprias estruturas culturais, sociais e econômicas em que assentam as sociedades modernas – viria a subsistir incólume até ao final da década de 60 do século XX, em que pela primeira vez foi seriamente denunciada a cumplicidade entre a noção de deficiência hegemonicamente estabelecida, as formas vigentes de organização social e as experiências de profunda marginalização então vividas pelas pessoas descritas pelo idioma da deficiência. A noção de deficiência que se instalou nas entranhas do advento moderno persiste vigorando nas sociedades ocidentais. No entanto, hoje é possível distinguir uma concepção hegemônica de deficiência de uma concepção contra-hegemônica, sendo ainda possível aquilatar os aportes que cada uma delas tende a imputar na vida social de significativas minorias populacionais. Interessantemente, ao mesmo tempo em que é possível consagrar a violência simbólica e vivencial que as representações modernas infundiram na experiência da deficiência, remetendo-nos para um longo tempo que assinala como as diferentes condições físicas se nutriram da experiência, é possível aceder a um tempo curto. Falo de uma temporalidade que nos reporta à década de 1970, a partir da qual é possível ler em que medida, nas diferentes sociedades, nas diferentes nações, os valores hegemônicos constituídos sobre as pessoas com deficiência foram desestabilizados como forma de negar o seu impacto excludente nas vidas de quem, utilizando a linguagem hegemônica, chamamos pessoas deficientes ou pessoas com deficiência. Na realidade, numa perspectiva radicalmente instigante, mais do que um conjunto de atributos objetivamente identificáveis ou definíveis, a opressão social será, porventura, a única coisa que as pessoas deficientes têm em comum (Wendel, 1997, p. 264). Portanto, ciente do perigo de universalizar uma diferença que assenta numa demarcação contingente, definida historicamente, ao referir-me às deficiências (físicas) em termos mais generalistas, viso contemplar elementos comuns da subalternização das pessoas deficientes. Aquelas mesmas que foram e vêm sendo identificadas no próprio processo histórico da emergência de movimentos políticos em torno das deficiências. O surgimento, nos finais da década de 1960, dos movimentos estudantis e das lutas pelos direitos civis constituiu uma profunda reestruturação das práticas e valores democráticos até então vigentes. Por um lado, foi aí achada a falência das formas tradicionais de participação política, assentes na representatividade partidária e na equação minimalista do exercício da cidadania ao voto. Isto num quadro em que as lutas de classe sindicalmente organizadas se estabeleciam como uma poderosa exterioridade à luta político-partidária. Por outro lado, o surgimento de tais reivindicações veio tornar clara a tensão oposicional entre a noção moderna liberal de cidadania e a Página 150
subjetividade individual (Santos, 1999, p. 204-208). Denuncia-se aí como a universalização dos sujeitos operada pela noção cidadania, sintetizada no princípio da igualdade de todos perante a lei, esmaece a diferença que reside na subjetividade dos indivíduos, nas suas narrativas pessoais, nas suas reflexividades, nas suas orientações sexuais, na diferença sexual, nas identidades adscritas à diferença dos seus corpos, etc. Portanto, a gênese de uma profusão de organizações insurgentes e reivindicativas nas décadas de 1970 e 80, sociologicamente definidas pela designação de “novos movimentos sociais”, reporta-nos para a dissensão que as lutas dos anos 60 estabeleceram em relação aos poderes estabelecidos e em relação ao modo como estes eram contrapostos no idioma dos direitos e da cidadania. Os novos movimentos sociais surgem, então, como uma pletora de coalescências políticas estabelecidas à margem dos campos ortodoxos de luta, fundando-se numa afirmação solidária de identidades em que o pessoal se torna político. Deste modo, surgiu toda uma constelação de lutas sociais que se vêm dirigir às diversas formas de opressão que marcam as vidas dos sujeitos, colocando-se na arena política as relações de poder que estão presentes na vida cotidiana, para além das fronteiras entre público e o privado e nas representações culturais. Por esta via deu-se um alargamento do panorama democrático e um aprofundamento da própria ideia de democracia, cunhada pela articulação de formas de contestação cujos propósitos indicam, não raras vezes, a necessidade de uma radical reconfiguração das traves econômicas e sócio-culturais em que se fundou a vida moderna. A aparição de toda uma miríade de organizações e movimentos sociais, assentes em solidariedades políticas que visavam as causas mais diversas, veio criar um inédito espaço de enunciação para a reiterada experiência de exclusão e depauperação vivida pelas pessoas com deficiência. Assim, nos anos 70, um pouco por todo o mundo, viriam a criar-se e a reformular-se estruturas organizativas que estabeleceram como propósito central, por vezes único, a visibilização das múltiplas formas de opressão a que estão sujeitas as pessoas com deficiência. Objetivo a que se juntou a necessidade de uma transformação social passível de reverter as lógicas propiciadoras dessa mesma opressão. Identifica-se, pois, uma convergência entre os novos movimentos sociais e políticos que se desenvolveram nas décadas de 60 e 70 e a articulação de vozes de contestação pelas pessoas com deficiência. Na minha leitura, a afinidade que ligou as pessoas com deficiência a esse advento sócio-político reside fundamentalmente no fato de se ter estabelecido uma leitura crítica da sociedade vocacionada a desvelar as múltiplas faces da opressão. Uma leitura que reconhece, ademais, em que medida o exercício da opressão se dá muitas vezes de forma insidiosa, inculcando-se de tal modo no corpo social que não é passível de ser apreendido pela perspectiva da violência e da coerção. Essa articulação dos percursos emancipatórios das pessoas deficientes com outras propostas de transformação social viria também a advir do fato de o corpo se ter tornado um locus privilegiado das lutas pelo significado – tendo sido aí amplamente denunciado o papel central que os valores embutidos nos corpos ocupam na legitimação da desigualdade social e das relações de dominação. Em particular, as pessoas com deficiência encontraram nos discursos antirracistas e feministas uma assunção Página 151
fundamental do incontornável lugar ocupado pelos discursos opressivos reificados nos corpos e nas suas diferenças, surgindo como absolutamente central a possibilidade de as pessoas definidas como deficientes debaterem as concepções essencialistas que ancoram a deficiência na incapacidade. No entanto, e ainda que a entrada em palco da insurgência ativa das pessoas com deficiência nos envie para a senda dos novos movimentos sociais, creio ser necessário que reconheçamos o caráter singular dos desafios que se colocaram às pessoas com deficiência para a enunciação das condições de opressão a que as sociedades modernas as votaram. Num primeiro momento, emerge a custosa valorização da diferença que consigna a identidade das pessoas com deficiência. A inculcação de solidariedades identirárias entre grupos marginalizados que se reconheceram alvo de formas similares de desqualificação e o consequente engendrar de um percurso emancipatório, dependeram fortemente da criação de novas plataformas de inteligibilidade. Novas configurações culturais em que os atributos distintivos catalisadores da lutas contra-hegemônicas e/ou minoritárias pudessem ser requalificadas, libertando-se do ônus da inferioridade. Honi Haber (1994, p. 125), num ensejo propositivo, sintetiza bem este imperativo: "…os grupos social e politicamente marginalizados precisam de continuar a construir a sua voz e a lutar pelo poder. Mas para fazer isso os indivíduos e os grupos têm que aprender primeiro a valorizar as suas diferenças. Isto deve acontecer antes das estratégias e demandas políticas poderem ser formuladas (ou talvez ambos aconteçam simultaneamente). Para valorizar as diferenças nós temos que aprender a reconhecer as diferentes identidades que existem não apenas na sociedade amplamente considerada, mas também em cada um de nós." (minha tradução) Assim, a valorização de diferenças opera como um duplo significante político: diretamente, pelo confronto que estabelece com a desqualificação produzida e reiterada pelas concepções dominantes e, indiretamente, pela capacitação dos sujeitos que assim se tornam capazes de estabelecer lealdades em torno da afirmação positiva de um atributo diferencial. Na verdade, é a este segundo aspecto que bell hooks64 (1995, p. 119) se dirige quando afirma a “auto-estima como uma radical agenda política”. A questão que se torna premente para uma avaliação dos desafios que se colocam à articulação política a partir das deficiências e, em contraponto com outras formas de assunção identitária, é o caráter infinitamente mais problemático da valorização e celebração da diferença que está na base dos esquemas classificatórios das deficiências físicas. As configurações materiais que identificamos como deficiências pertencem ao mundo fenomenológico. O fato de alguém não ver, não ter uma perna ou ter uma lesão na medula não é completamente redutível ao caráter contingente das apreensões culturais num dado contexto de crenças. Estamos, pois, perante a tal relação quiasmática entre a linguagem e a materialidade de que falava Judith Butler (1993, p. 69). Portanto, ao abordarmos as configurações físicas que nos surgem sob o conceito de deficiência, importa considerar que estamos perante condições que muitas vezes implicam ou estão associadas a experiências de privação e sofrimento físico que vão para além das formas de Página 152
opressão social. No caso da cegueira, aquele que conheço melhor, poderei referir, a título ilustrativo, situações tais como a dor física que muitas vezes acompanha a evolução de um glaucoma65; a frustração de uma mãe que não pode conhecer os olhos do filho, de cuja beleza tanto ouve falar; a maior tendência para a ocorrência de pequenos acidentes e quedas (embora este dado se associe muitas vezes ao modo como o ambiente físico é elaborado); a profunda experiência de privação sentida para quem perde a visão de repente; a impossibilidade de desempenhar profissões que realmente dependem da visão, ou de realizar atividades cotidianas, como conduzir um carro. Sendo possível e desejável uma valorização das pessoas com deficiência, das suas capacidades, dos seus intentos vivenciais e das suas propostas de transformação social, a pouco exequível celebração da diferença implicada por uma deficiência constitui uma especificidade político-identitária que importa relevar. O cerne da questão é que afirmações contra-hegemônicas que procuram valorizar a diferença, tais como Black is Beautiful ou Glad to be Gay, denotam uma positividade que as aparta, de algum modo, das pessoas com deficiência (neste particular, a definição da comunidade surda como uma minoria linguística constitui uma exceção). É exatamente pela presença fenomenológica deste “excesso de real” reconhecido pelo conceito de deficiência que se torna mais ardilosa uma desnaturalização ou dessomatização das hierarquias sociais e econômicas vigentes nas vidas das pessoas com deficiência, constituindo, por consequência, um dos elementos preponderantes que assiste à particular complexidade em se visibilizarem as condições de opressão a que estão sujeitas as pessoas com deficiência. Um outro elemento que singulariza os desafios que se estabeleceram, e estabelecem, nos movimentos políticos de pessoas com deficiência é, sem dúvida, o modo como a opressão social das pessoas com deficiência tende a ser escamoteada por uma atitude condescendente e paternalista por parte dos poderes e da sociedade num sentido mais amplo. Vindo ao encontro desta preocupação, bell hooks produz uma reflexão que creio ser particularmente estimulante para se pensarem as aporias políticas que residem no nexo entre a invisibilização da opressão social e a perpetuação de um status quo. Refletindo sobre a luta das mulheres e homens negros nos Estados Unidos da América, bell hooks expressa aquilo que parece assomar como uma paradoxal nostalgia em relação ao período que antecedeu às lutas pelos direitos civis nos anos 60. A assunção de uma tal quase-nostalgia por parte da autora deriva do fato de, perante à continuada vigência da “supremacia branca” nas vidas das pessoas afro-americanas, a sua capacidade resistente e militante ter sido francamente elidida no período que se seguiu à contestação pelos direitos civis. Embora reconheça as conquistas que advieram desse período de efervescência social, bell hooks atenta, sobretudo, para o modo como, a partir daí, se terá dado, fundamentalmente, uma transformação na natureza da opressão exercida sobre a população negra. A autora assinala em particular o fato de o racismo ter continuado a operar nas relações de poder a par da sua negação na arena social, tornando-se imperioso contemplar em que medida a subalternização dos afro-americanos pela “supremacia branca” surge esmaecida pelos discursos em que a integração social dos negros é celebrada como uma inequívoca conquista dos direitos civis. Página 153
O que esta leitura traz de instigante é o fato de assumir que só se poderão articular resistências à opressão estrutural quando, num dado contexto sócio-histórico, for possível dar visibilidade a essas mesmas estruturas de opressão. Deste modo, dirijo-me aos discursos e práticas congruentes com aquilo que Martine Xiberras (1993, p. 16) identifica como sendo uma das mais perniciosas formas de opressão: a compaixão. Ou seja, um conjunto de valores e procedimentos que se dirigem paternalistamente às pessoas com deficiência e que assumem o infortúnio e a inferioridade como dados que devem ser minorados na medida do possível. Identificamos, assim, como entraves que demarcam a articulação de um movimento social em torno da deficiência, a ideia de que dificilmente existe uma diferença que possa ser celebrada, e a constatação da prevalência de uma atitude social que, longe de ser abertamente hostil e violenta para as pessoas com deficiência, tende a ser compassiva, benevolente e provedora de formas minimalistas de suporte. No fundo, a dificuldade de se traduzir a vivência das pessoas com deficiência para uma linguagem reivindicativa de direitos. Se por um lado importa reconhecer estas aporias em relação aos restantes movimentos sociais identitários que proliferaram na década de 1960, por outro, é a tentativa da sua superação que permitiu que as pessoas com deficiência assumissem um lugar na vaga a que costumeiramente se chama de novos movimentos sociais. É aos discursos aí formulados que procurarei dedicar alguma atenção. Agendas emergentes A primeira insurgência ativa das pessoas com deficiência com um impacto assinalável deu-se nos Estados Unidos, na passagem da década de 1960 para a de 1970. Um contexto que se encontrava, então, profundamente marcado pelo impacto das pessoas que adquiriram deficiências na Guerra do Vietnam, pela convulsão social provocada, mormente, pela luta estudantil contra essa mesma guerra e pela defesa dos direitos das pessoas negras. O surgimento de um projeto de visibilização das condições das pessoas com deficiência deu-se a partir da cultura universitária, com a criação do primeiro “centro para a vida independente” (center for independent living), a partir de uma residência destinada a estudantes. A ideia do surgimento deste centro surgiu da identificação da necessidade de um espaço de suporte, gerido pelas próprias pessoas com deficiência, que lhes conferisse o necessário apoio para sua integração na sociedade (mainstream society), libertando as suas vidas do controle dos profissionais, desmedicalizando-as. Estes centros viriam a disseminar-se por todo o país, articulados com um amplo movimento social de pessoas com deficiência – donde se destacou a American Coalition of Citizens with Disabilities –, investido em pugnar pelo fim das relações de dependência e pela visibilização dos obstáculos presentes no meio envolvente (Barnes et al., 1999, p. 68; Barnes e Oliver, 1993, p. 10). Criou-se então aquilo que ficou designado como o Independent Living Movement, um movimento que se centrou na defesa dos direitos das pessoas com deficiência, e cuja emergência viria a ter repercussões noutros contextos. Entre eles, o contexto britânico, de onde emergem discursos que se mostram particularmente interessantes para a nossa análise. Isto é assim Página 154
tanto porque eles se tornaram influentes nas organizações internacionais de pessoas com deficiência e em outras sedes, como a OMS (Organização Mundial da Saúde), quanto porque nos conferem a mais interessante plataforma conceitual onde se vertem e subvertem as implicações da noção dominante de deficiência que a modernidade consolidou. Os discursos reivindicativos procedentes do contexto britânico estão imbuídos de uma reflexividade e de uma visão estrutural que se mostra preciosa para a apreensão e subversão dos legados modernos. O movimento das pessoas deficientes no contexto britânico viria a assumir uma fulcral importância com a criação, em 1974, de uma supraorganização onde se agregavam várias organizações de pessoas com deficiência: a Union of the Physically Impaired Against Segregation (UPIAS). A UPIAS surgiu por reconhecer o limitado alcance das principais organizações de pessoas deficientes que se haviam constituído antes dela: a Disablement Income Group, uma organização cujo objetivo era a luta contra a pobreza vivida pelas pessoas com deficiência; e a Disability Alilance, uma organização que lutava por propósitos semelhantes e que era constituída por algumas das mais importantes instituições da “velha guarda”, as instituições de pessoas deficientes geridas por profissionais (Oliver, 1996, p. 19-20). A UPIAS procurava superar as concepções que vinham alimentando a ideia de que a reivindicação central das pessoas deficientes deveria ser a de melhores pensões sociais. Ao invés, essa organização colocou no primeiro plano a necessidade de se transformarem, quer as concepções dominantes detidas em torno das pessoas com deficiência, quer a organização social que excluía as pessoas deficientes, remetendo-as à experiência da segregação e pobreza. Os influentes valores e discursos que presidiram a ação da UPIAS, e que constituem a estrutura fundamental do que se tornaria o “modelo social da deficiência”, visam, sobretudo, reconceitualizar a deficiência enquanto uma forma particular de opressão social. A matriz dessa insurgência destabilizadora ficaria reificada na formulação dos “Princípios Fundamentais da Deficiência” (“Fundamental Principles of Disability”), que foram publicados pela UPIAS em 1976. Uma formulação em cuja autoria se destaca o nome de Vic Finklestein, um importante ativista tanto em nível nacional como em nível internacional. O corolário da nova perspectiva aí contida ficaria significativamente sintetizado nas definições oferecidas aos conceitos de impairment e disability66: Impairment67: Ausência de parte ou da totalidade de um membro, ou existência de um membro, órgão ou mecanismo corporal defeituoso; Disability: Desvantagem ou restrição de atividade causada por uma organização social contemporânea que tome pouca ou nenhuma consideração pelas pessoas com impairments físicos e que, assim, as exclui da participação nas actividades sociais centrais. A deficiência física é, portanto, uma forma particular de opressão social. (apud Oliver, 1996, p. 22-23, minha tradução) Estas definições fundam-se numa separação crucial entre impairment, definida como uma condição biológica, e disability, reconceitualizada como uma forma particular de opressão social. A fronteira estabelecida entre estes dois conceitos, embora elabore uma essencialização do elemento físico, define-o sem referir à Página 155
consagrada noção de normalidade. Esta cristalização do impairment chama-nos a atenção para o fato de que estamos perante uma desconstrução imanente à estrutura conceitual da discursividade de partida. No entanto, isto não obsta à radical transgressão que reside nestas definições. Sobretudo pelo fato de a noção de disability, aquela que é primordialmente usada para identificar um dado grupo populacional (correspondendo, nesse sentido, à noção de deficiência utilizada na língua portuguesa), ter sido desvinculada da corporalidade para significar o conjunto de valores e estruturas que excluem determinadas pessoas das “atividades sociais centrais”. A reconfiguração do conceito de disability para a afirmação de uma opressão vigente torna-se particularmente eficaz na medida em que faz uso de uma sutileza linguística em que a designação das pessoas com deficiência, disabled people, é utilizada como a própria afirmação da situação de opressão social vivida por uma ampla minoria populacional. Ou seja, as disabled people são ali entendidas como as pessoas deficientadas/incapacitadas pelos valores e formas de organização presentes na sociedade: "Na nossa perspectiva, é a sociedade que incapacita as pessoas com impairments físicos. A deficiência é algo que é imposto sobre os nossos impairments pela forma como somos desnecessariamente isolados e excluídos de uma plena participação na sociedade. As pessoas com deficiência são, portanto, um grupo oprimido na sociedade." (UPIAS, 1976, apud Oliver, 1996, p. 33, minha tradução) Portanto, a partir das perspectivas desenvolvidas nos Princípios Fundamentais da Deficiência da UPIAS, a noção hegemônica de deficiência é disputada por uma outra, que retira as suas implicações das configurações do corpo que foram modernamente definidas, para trazê-las para a arena das relações sociais. É nos anos 70 que a secular noção de deficiência deixa de vigorar em termos monoculturais para passar a ser apreendida como uma leitura dominante, em relação à qual se erigem perspectivas alternativas oposicionais, que ficam formuladas de um modo particularmente consistente nas definições que a UPIAS consagrou. Significativamente, os valores daqui emanados viriam a constituir um importante catalisador. Por um lado, no modo como propiciou uma assunção identitária capacitante das pessoas com deficiência, que assim encontraram um projeto de transformação social que lhes permitiu libertarem-se dos fatalismos que vinham marcando as suas vivências. Por outro lado, pelo fato de os discursos e práticas das organizações de pessoas com deficiência terem encontrado ali um eixo importante para a articulação das suas vozes e das suas reivindicações em relação à exclusão social de um grupo populacional que até ali havia estado largamente silencioso/silenciado. Esta conceitualização, com evidente vocação para a transformação social e para a emancipação pessoal e política, estabelece um gritante contraste com as visões hegemônicas acerca da deficiência, tão bem epitomizadas nas definições propostas em 1980 pela OMS. De fato, as novas leituras, que os anos 70 nos trouxeram, acerca da temática da deficiência nutrem-se de uma visão dualista e oposicional que viria a ficar consolidada no desenvolvimento do “modelo social da deficiência”. O conceito de Página 156
“modelo social da deficiência” foi cunhado pela primeira vez em 1983 por Michael Oliver, um sociólogo e ativista político que, a partir dos empreendedores conceitos do UPIAS, procurou constituir um corpo teórico capaz de conferir uma perspectiva holista dos problemas enfrentados pelas pessoas com diversos tipos de deficiência. Foi grande a importância das estruturas conceituais que germinaram deste itinerário, não só para o contexto britânico, mas para a luta das pessoas com deficiência no mundo. Prova disto é o fato de as definições da UPIAS terem sido adotadas pela seção europeia Disabled People International (DPI), a mais importante estrutura internacional de pessoas com deficiência, fundada em 1981; tendo-se tornado igualmente as definições operativas da BCODP, a organização que haveria de suceder à UPIAS enquanto estrutura “guarda-chuva” das organizações de deficiência no Reino Unido, ela própria membro fundadora da DPI (Oliver, 1996, p. 28; Barnes et al., 1999, p. 6-7). O modelo ou teoria social da deficiência que Michael Oliver desenvolveu parte exatamente da identificação de um conceito de deficiência entendido como profundamente incapacitante e contrário tanto à transformação social conducente à integração das pessoas com deficiência, quanto à visibilização da situação de opressão que a reclama. Essas concepções são denunciadas com uma leitura em que se assinala como dominante o “modelo individual/médico da deficiência”; no fundo, a sedimentação histórica que se procura superar – caracterizada por uma apreensão social das pessoas com deficiência, que se centra na anormalidade dos seus corpos –, em termos próximos daqueles cujos contornos exaurimos na leitura da deficiência como uma artefatualidade discursiva eminentemente moderna. Um modelo que se identifica enquanto inconciliável com a assunção de controle das pessoas deficientes acerca dos seus desígnios, e com a concomitante possibilidade de transformação dos contextos sociais e culturais da sua existência. O modelo individual/médico da deficiência, cuja vigência hegemônica nas sociedades ocidentais Michael Oliver (1990; 1996) denuncia, apresenta como correlato central a celebração de uma abordagem que, apropriando os discursos correntes e hegemônicos em torno da deficiência, poderá ser designado de “abordagem reabilitacional” (Striker, 1999). Embora o conceito de reabilitação se tenha inculcado após a primeira guerra mundial para os soldados que ficaram com alguma deficiência, ele apreende bem a lógica social que se dirigiu às pessoas tidas como deficientes, desde a sua objetificação como tal; uma lógica que tem sempre por referência uma normalidade que se considera prévia a qualquer ação. Assim, seguindo a leitura de Michael Oliver – uma leitura que, não tendo uma grande densidade histórica, identifica os valores e estruturas que tornam óbvias a transformação e a politização da deficiência –, deverá relevar-se, em primeiro lugar, o modo como, no modelo individual/médico da deficiência, as pessoas com deficiência são sujeitas a lógicas cuja autoria tende a escapar-lhes. Emerge aqui, quer o legado das instituições para pessoas deficientes de carácter privado e matriz filantrópica, quer as políticas e estruturas organizativas desenvolvidas pelo Estado. Sendo que, em ambas as situações, a capacidade de decisão acerca das vidas das pessoas com deficiência é remetida a peritos, profissionais e voluntários no seio de estruturas que tendem a consagrá-las como objetos passivos de cuidado e de estratégias que se desejam conducentes à superação das limitações de atividade Página 157
implicadas por uma deficiência. No fundo, esta leitura chama a atenção para o modo como um modelo hegemônico de apreensão da deficiência, que paulatinamente articulou a segregação institucional em asilos com a promoção da educação e da integração social, vigora numa lógica em que as pessoas deficientes não são reconhecidas como agentes centrais. Aspecto que apresenta uma evidente continuidade com as respostas caritárias que marcaram a pré-modernidade. O que Oliver desvela nesta passividade a que as pessoas deficientes são remetidas é a vigência de uma lógica medicalizada, por via da qual as pessoas deficientes se viam perante à arbitrariedade de terem que assumir, nas diversas esferas da sua vivência, o papel social do doente/paciente. Assim, Oliver atenta para a “medicalização da reabilitação” (1990, p. 53) – na verdade, a própria noção de reabilitação está já imbuída de valores médicos – para denunciar o papel de médicos, assistentes sociais, psicólogos, educadores e agentes de solidariedade na consagração das pessoas com deficiência enquanto objetos de tratamento e reabilitação. Daqui decorre a identificação de uma estrutura panóptica erigida para dar resposta à diferença suscitada pela deficiência e que vai operar uma completa “medicalização da vida” (Illich apud Barnes et al., 1999, p. 59), ainda que não haja nela médicos envolvidos. Portanto, a ênfase que os movimentos surgidos nos anos 70 conferiram à autodeterminação das pessoas com deficiência é, sem dúvida, produto da ideia de que a medicalização dos problemas sociais tende a ser adversa à sua politização, uma politização que se mostrava necessária para efetivar a transformação de horizontes. Mas é também avatar da proposição mais geral de que “ninguém pode libertar outrem, porque a liberdade é o acto de a tomar.” (Cooper, 1978, p. 91). Um outro aspecto que Michael Oliver faz constitutivo do modelo médico da deficiência é o calvário pessoal que resulta do fato de a lógica reabilitacional celebrar as possibilidades de integração pessoal investindo no suporte aos sujeitos, mas estabelecendo como postulados as enormes dificuldades a que as pessoas com deficiência deverão ser capazes de fazer face. Estamos perante a uma lógica que aceita aquilo a que alguém chamava, com propriedade, “o calvário da integração”; uma lógica que, na maior parte das vezes, tem como única ambição minimizar as consequências da deficiência. Sendo verdade que a legitimação da abordagem reabilitacional muito depende do papel simbólico desempenhado por casos emblemáticos de integração de pessoas com deficiência, o carácter excepcional destas situações é, por outro lado, bem expressivo do quão ilusório é um horizonte em que a realização das pessoas com deficiência seja feita dependente de um ciclópico esforço individual de acomodação. Aliás, a ênfase nas excepcionais narrativas das pessoas com deficiência que vingaram em superar preconceitos e obstáculos de várias ordens é bem captada por Tom Shakespeare. Este autor reflete interessantemente sobre as representações das pessoas com deficiência na cultura mediática e no cinema em particular. Nessas leituras, diz-nos Tom Shakespeare (1999, p. 164-165), é possível desvelar três estereótipos centrais: o inválido trágico; o amargurado, que procura se vingar do mundo e alcançar a cura a qualquer custo; e o herói que triunfa sobre a tragédia e as dificuldades que dela decorrem. É esta última representação que se articula com o mito fundador das possibilidades promovidas no seio de uma abordagem Página 158
reabilitacional. No fundo, o que Oliver retoma ao denunciar o nexo entre o modelo médico e a apreensão social das dificuldades impostas às pessoas com deficiência enquanto um desafio individual é, uma vez mais, o efeito da reificação de uma questão social no corpo físico. O autor identifica ainda o modo como as práticas e os discursos da reabilitação efetivam, na vida quotidiana das pessoas com deficiência, uma reverência à normalidade física e funcional dos demais sujeitos, uma perspectiva que Oliver informa com a sua própria narrativa, assim como com outras que lhe são próximas: "O objetivo de fazer regressar o indivíduo à normalidade é a pedra de esquina sobre a qual assenta toda a estrutura da reabilitação. Se, como aconteceu comigo após a minha lesão na medula, a deficiência não pode ser curada, as assunções normativas não são abandonadas. (…) A filosofia da reabilitação enfatiza a normalidade física e o alcance das capacidades que permitem ao indivíduo aproximar-se o mais possível de um comportamento de normalidade corporal." (Finkelstein apud Oliver, 1990, p. 54, minha tradução) Ou seja, refletindo, por via de experiências pessoais, sobre o modo como as pessoas com deficiência são “acolhidas” no médico/individual da deficiência, Michael Oliver como que denuncia o pernicioso lugar ocupado por uma normalização que impõe necessidades em vez de as reconhecer (Cooper, 1978, p. 10). Portanto, é fundado nas definições da UPIAS que Michael Oliver constrói um corpo teórico onde se identifica e recusa o modelo médico/individual e a abordagem que este promove, como uma estrutura que só poderá ser superada pela assunção de um modelo social por parte dos movimentos de pessoas com deficiência. Um modelo onde a deficiência é entendida como uma incapacitação, uma forma de opressão que se abate sobre as pessoas em cujo corpo esteja ausente a totalidade ou parte de um membro, ou onde exista um membro, órgão ou mecanismo corporal defeituoso. Esta visão dualista que Oliver, melhor que ninguém, consolidou como uma estrutura operativa na luta política apoia-se, interessantemente, numa luta do significado acerca da deficiência. Uma luta em que duas formas de entender a deficiência se debatem. É nesta contraposição que o autor e ativista vê a possibilidade de se negar a grande narrativa que marca a vida das pessoas com deficiência, a “narrativa da tragédia pessoal”. Assim, negar o modelo médico é negar a abordagem reabilitacional reconhecida como base central para que a deficiência seja pensada como uma tragédia pessoal e não como o produto de relações opressivas. Pela ótica da teoria social da deficiência, a natureza da experiência das mulheres e dos homens com deficiência emerge, fundamentalmente, como um produto de circunstâncias sociais e de imaginários culturais opressivos que importa recusar e transformar. A ideia central que esta influente proposta apresenta é a negação do infortúnio e incapacidade, afirmando-se, ao invés, as virtualidades de uma minoria populacional cuja realização e inclusão dependem do efetivo reconhecimento das diferenças que as deficiências transportam e da consequente desestabilização do status quo. No fundo, o modelo social da deficiência sugere que é a sociedade que importa reabilitar. Página 159
Experiência incorporada e discurso político Apesar do impacto do modelo social na capacitação das pessoas deficientes, na criação de movimentos políticos, na reconversão de instituições que, apesar de estarem registradas como organizações de solidariedade, assumiram uma postura reivindicativa, na articulação das diferentes deficiências, esta formulação não deixou de estar sujeita a um importante criticismo. Este tomou como mais importante argumento o fato de a reconceitualização da deficiência como uma forma de opressão não considerar as experiências de dor, sofrimento e privação que podem estar associadas à condição física da pessoa com deficiência: "…existe uma tendência no modelo social para negar a experiência dos nossos próprios corpos, insistindo que as nossas diferenças físicas e restrições são inteiramente criadas socialmente. Sendo as barreiras ambientais e as atitudes sociais uma componente crucial da nossa experiência de deficiência [disability] – e de fato incapacitam-nos –, tende-se a sugerir que isso é tudo o que existe, para negar a experiência pessoal de restrições físicas ou intelectuais, de doença, do medo da morte." (Morris apud Barnes et al., 1999, p. 91, minha tradução) Estas leituras críticas dirigem-se, mormente, para o perigo de que o reconhecimento da reflexividade social e das capacidades das pessoas com deficiência deem lugar a outro silenciamento. O silenciamento de experiências eminentemente físicas, passível de ocorrer quando se substitui o modelo médico, erigido sobre um centrismo somático, por um modelo social que reduza a experiência da deficiência à experiência da opressão. Este mesmo debate envia-nos para uma discursividade que poderá ser considerada como a mais emblemática “versão” do modelo social, a que a cegueira em particular diz respeito. Refiro-me às influentes ideias que Kenneth Jernigan sustentou em prol de uma afirmação positiva da cegueira e das pessoas cegas. Kenneth Jernigan foi, de 1968 a 1986, o presidente da National Federation of the Blind (NFB), a mais importante e mais representativa associação de pessoas cegas nos Estados Unidos, que conta hoje com mais de 50000 sócios. Kenneth Jernigan foi também uma figura importante no plano internacional, ocupou cargos importantes na União Mundial de Cegos, preservando-se como uma importante referência mesmo após a sua morte, em 1998. Através dos seus discursos e intervenções públicas, Kenneth Jernigan desenvolveu aquilo que ficou designado como a “filosofia positiva da cegueira”, uma construção que se tornou absolutamente constitutiva dos intentos da NFB. A necessidade de se constituir uma filosofia positiva decorreu da relação que Jernigan identificou entre os limites vivenciais que se colocam às pessoas cegas e os mitos que povoam os imaginários sociais em torno da cegueira: "O que nós pedimos da sociedade não é uma mudança de coração (o nosso caminho para o asilo tem sido sempre pavimentado por boas intenções), mas uma mudança de imagem, uma troca de velhos mitos por novas perspectivas." (Jernigan, 1970, minha tradução) Kenneth Jernigan entendia, pois, que a persecução de qualquer atividade em prol das pessoas cegas deveria tomar como Página 160
ponto de partida uma desmobilização das ideias de desastre irremediável que sobre elas se abatiam. Esta foi uma plataforma que se mostrou central na ação da NFB desde as lutas pelos direitos civis. Assim, da filosofia positiva que Jernigan inculcou releva uma afirmação que ficaria estabelecida até hoje como emblemática da NFB: "O verdadeiro problema da cegueira não é a perda de visão. O verdadeiro problema da cegueira é falta de compreensão e a ausência de informação que existe. Se uma pessoa cega tiver a instrução adequada e se tiver oportunidades, a cegueira é só um incômodo físico."68 (1970, minha tradução) Apesar do importante papel que estas formulações tiveram na mobilização das pessoas cegas no contexto americano, também elas foram alvo de contestação por menorizarem a relevância das experiências de sofrimento que podem estar diretamente associadas à condição física de uma pessoa cega. Aliás, esta filosofia positiva foi alvo de um interessante debate entre a NFB e outras associações de pessoas cegas, com particular destaque para o American Council of the Blind. De fato, pode-se alegar que tais elaborações – em que se acalenta a ideia da cegueira como um mero incômodo físico – fracassam em apreender determinadas experiências subjetivas vividas pelas pessoas cegas. Quando nos confrontamos com as ideias que são expressas no modelo social da deficiência ou na “filosofia positiva da cegueira”, assim como com as críticas que essas elaborações suscitam, somos levados a considerar em que medida as experiências das pessoas com deficiência tendem a decorrer num espaço in between. Isto é, em algum lugar entre as circunstâncias sociais e a tangibilidade fenomenológica das suas experiências corpóreas. No entanto, mesmo sendo possível afirmar que às formulações que configuram o modelo social da deficiência escapará um espectro de experiências pessoais, tal asserção não implica necessariamente que essas formulações estejam eivadas de incompletude. Creio que a emergência do modelo social da deficiência deverá ser lida por referência às coordenadas sociopolíticas que o reclamam e ao fato assinalado por Laclau (1996, p. 6), de todo o projeto emancipatório necessariamente se constituir numa historicidade em que a sua autoridade sobre o real não é senão a contingência do que se procura superar: “Dicotomias parciais e precárias têm que ser constitutivas do tecido social” (Ibidem, p. 17). As coordenadas sociopolíticas do surgimento da discursividade do modelo social da deficiência são bem explicitadas por Michael Oliver quando afirma que a negação das dores e privações associadas às condições físicas das pessoas deficientes não resultam de uma omissão por negligência. Afirma o autor que essa negação não é bem uma negação, mas sim uma tentativa pragmática de identificar os aspectos que podem ser transformados através da ação coletiva. Como reforça Mairian Corker, esse novo discurso da deficiência obedece ao princípio da “otimização da transformação social” (1999, p. 92). Ou seja, a afirmação da deficiência enquanto uma questão social visa negar ao mesmo tempo o fatalismo da marginalização de um significativo grupo populacional e a naturalização dessa marginalização nos corpos: “Referir a biologia, reconhecer a dor, confrontar os Página 161
nossos impairments têm permitido que os opressores recolham a prova de que, no fim de contas, a deficiência é “realmente” uma questão de limitações físicas (Shakespeare apud Oliver, 1996, p. 39, minha tradução). Portanto, a capacidade para fazer da deficiência uma questão social, à luz de um discurso questionador das representações e das formas de organização vigentes, deverá ser entendida como uma polarização oposicional, por via da qual se visa confrontar a sedimentação histórica por que se naturalizou/somatizou a experiência de exclusão vivida pelas pessoas com deficiência. É o desígnio de visibilização da opressão e de realidades sociais tão longamente ignoradas que assiste à pertinência da afirmação da deficiência como uma forma particular de opressão. Democracia e participação Quando analisamos as políticas estatais, não podemos esquecer que a apreciação das dinâmicas específicas que definem as medidas que se dirigem às pessoas com deficiência nos colocam, inevitavelmente, perante um outro fator constitutivo da política social: o fato de ela ser produto da luta política. Nesse sentido, sendo verdade que o quadro no qual a deficiência foi modernamente “inventada” apresenta uma poderosa vocação para a naturalização da subalternidade, os diferentes contextos sociais não deixam de apresentar matizes que muito se ligam ao papel a ser desempenhado pela intervenção politica e pela participação democrática. Na medida em que os que melhor conhecem as implicações dos desenhos sociais na vida das pessoas com deficiência são elas próprias, e na medida em que a sua agenda ocupa um lugar marginal nas formas representativas de democracia, torna-se fácil perceber a importância de uma ação sociopolítica a ser engendrada por via da democracia participativa. Tal dinâmica deveria ser capaz de articular a manifesta diferença implicada pela deficiência ? o mesmo é aludir aos estigmas que a apreendem socialmente ? com uma efetiva equalização de oportunidades. Isto mesmo é veiculado pelas “Regras Gerais” da ONU: “Os Estados devem promover e apoiar financeiramente e de outras formas a criação e consolidação de organizações de pessoas com deficiência, de associações de famílias e/ou de pessoas que defendam os seus direitos. Os Estados devem reconhecer o papel daquelas organizações no desenvolvimento das políticas em matéria de deficiência.” Num quadro em que os valores culturais e as práticas sociais ainda alimentam uma noção individual assistencialista, caritativa e reabilitacional da deficiência, e onde a vitalidade da democracia está fortemente coibida, como receber as propostas legislativas que se dirigem à criação de igualdade de oportunidades? Com inevitável prudência, evitando triunfalismos sem sentido e com uma forte consciência de que muitas vezes as leis, desarticuladas de outras dinâmicas, mudam para que tudo fique na mesma. É em si positivo que as leis caminhem à frente dos valores na medida em que, além do óbvio papel de punir e vigiar incumprimentos, elas podem cumprir um papel de pedagogia social, arrastar outras dinâmicas e novos discursos. A questão que convém reter, cautelarmente, é que, conforme afirma Boaventura Sousa Santos (1999, p. 155), “quanto mais caracterizadamente uma lei defende os interesses populares e emergentes, maior é a probabilidade de que ela não seja aplicada”. Página 162
A fragilidade da democracia participativa nas nossas sociedades, associada a uma cultura dominante marcada pela “narrativa da tragédia pessoal”, deve nos alertar à compreensão dos perigos que tantas vezes minam as transformações legislativas: 1- O perigo de, na prática quotidiana, os elementos da administração pública, os empregadores privados, os engenheiros e arquitetos, educadores e programadores culturais não estarem enculturados nos direitos das pessoas com deficiência. 2- O perigo de nos próprios tribunais se refletirem preconceitos e estereótipos. Os agentes judiciais não estão livres de preconceitos, se não forem culturalmente imbuídos num modelo social da deficiência; muitas vezes inscrevem nas suas decisões valores que ainda não estão familiarizados com a magnitude do desafio de uma sociedade inclusiva no que diz respeito às pessoas com deficiência. 3- O perigo de surgirem leis sem um sério esforço de envolvimento das organizações interessadas e da opinião pública. 4- O perigo de se confiar excessivamente na transformação legislativa quando esta não é acompanhada por mudanças nas representações culturais. Isto acontece porque muitas vezes se vê uma lei como o fim do caminho. Importa é que a lei contribua para uma pedagogia social e tenha efetividade nos tribunais, até porque os casos exemplares têm frequentemente um valor pedagógico. 5- O perigo de as leis transformativas serem redigidas com ambiguidades que fragilizam os seus propósitos transformativos, facilitando que sejam capturadas pelos valores instalados. Há, portanto, um caminho de transformação social mais amplo, que tem que nutrir e ser nutrido por uma desestabilização das representações dominantes da deficiência e por uma vitalidade democrática, identitária e cidadã. O modelo social da deficiência e as suas “versões” retiram a deficiência do corpo, conforme é naturalizada a partir dos discursos hegemônicos, para a relocalizar nas relações de opressão, aquelas que vêm forjando o esmagamento das aspirações das pessoas com deficiência. A assunção da deficiência como uma questão de cidadania e como uma questão de direitos tem importantes implicações: 1- Na politização da relação entre os Estados e as organizações das pessoas com deficiência, que assim passam a dialogar com os poderes estabelecidos como agentes de reivindicação, de luta contra a discriminação, de inclusão ativa e de transformação sociopolítica. 2- Na lógica que preside aos serviços que são prestados às pessoas com deficiência, não mais o assistencialismo reabilitacional, mas sim a assunção de que o imperativo de igualdade de oportunidades se cumpre pela capacitação dos sujeitos marginalizados e pelo derrubar das múltiplas barreiras que desqualificam as suas diferenças. 3- Na transformação cultural das concepções de deficiência, não mais trágicas e fatalistas, mas positivas e militantes, apostadas na afirmação dos múltiplos itinerários de realização a serem vividos numa sociedade inclusiva. 4- Na transformação da subjectividade das pessoas com deficiência, onde os valores hegemônicos promovem a interiorização de fatalismo e incapacidade, o idioma dos direitos afirma, e continuará afirmando, a insurgência das vidas subjugadas pelos edifícios da nossa cultura69. Página 163
notas: 64 "bell hooks", grafado em minúsculas, é o pesudônimo literário de Gloria Jean Watkins. 65 Glaucoma é uma doença que pode progredir lentamente ou de um modo rápido, pode ser hereditária ou adquirida no período de gestação, e que consiste numa ineficaz remoção do humor aquoso que provoca uma maior pressão no globo ocular. À medida que aumenta a tensão no globo ocular, a visão vai diminuindo progressivamente. 66 Conceitos a que, na língua portuguesa, só podemos aceder através de uma tradução muito grosseira e demarcação que equacione impairment a “deficiência” e disability a “incapacidade”. 67 No original: “Impairment: Lacking part of or all of a limb, or having a defective limb, organ or mechanism of the body. Disability: the disadvantage or restriction of activity caused by a contemporary social organization which takes no or little account of people who have a physical impairments and thus excludes them from participation in the mainstream of social activities. Physical disability is therefore a particular form of social oppression.” 68 No original: “The real problem of blindness is not the loss of eyesight. The real problem is the misunderstanding and lack of information which exists. If a blind person has proper training and if he has opportunity, blindness is only a physical nuisance". 69 Relativamente à tensão que muitas vezes se coloca às pessoas cegas no uso da bengala branca, uma assunção pública da cegueira nem sempre destituída de valores contraditórios, analisei noutro lugar (Martins, 2006) de que modo a hegemonia da “narrativa da tragédia pessoal” pode colonizar a subjetividade das pessoas com deficiência, repercutindo-se fortemente nos cotidianos, nos mundos da vida. Nesse sentido, relevo a decisiva relação entre a politização da deficiência e o forjar de uma subjetividade combativa e capacitada. Referências Bibliográficas: BARNES, C. The social model of disability: a sociological phenomenon ignored by sociologists? In: SHAKESPEARE, T. (org.). The disability reader: social science perspectives. Londres, p. 65-78, 1998. BARNES, C.; MERCER, G; SHAKESPEARE, T. Exploring Disability: a Sociological Introduction. Cambridge: Polity Press, 1999. BUTLER, J. Bodies That Matter: On the Discursive Limits of Sex. Nova Iorque: Routledge, 1993. COOPER, D. A Linguagem da Loucura. Lisboa: Editorial Presença, 1978. HABER, H. Beyond Postmodern Politics. Nova Iorque: Routledge, 1994. HOOKS, B. Killing Rage: Ending Racism. Londres: Penguim Books, Página 164
1995. JERNIGAN, K. Blindness: the Myth and the Image. 1970, disponível em . Acesso em 24 de Março de 2009. LACLAU, E. Emancipations. Londres: Verso, 1996. MARTINS, B. S. E se eu fosse cego: narrativas silenciadas da deficiência. Porto: Afrontamento, 2006. OLIVER, M. Understanding disability: from theory to practice. Nova Iorque: St. Martin's Press, 1996. SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e o político na Pós-Modernidade. Porto: Afrontamento, 1999. SHAKESPEARE, T. Joking a Part. Body & Society, v. 5, n. 4, p. 47-52, 1999. STRIKER, H-J. A History of Disability. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1999. WENDELL, S. Toward a Feminist Theory of Disability. In: DAVIS, L. (org). The Disability Studies Reader. Londres: Routledge, p. 260-278, 1997. XIBERRAS, M. Les théories de l´exclusion. Paris: Méridiens Klimcksiek, 1993.
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Cidade Acessível: igualdade de direitos e particularidades da pessoa com deficiência visual70 Jéssica David Ximene Martins Antunes Veronica Torres Gurgel A deficiência visual não se configura exclusivamente como um problema de natureza biológica, pois é também atravessada por vetores sociais, históricos e culturais, que precisam ser considerados para o seu amplo entendimento. Nesse atravessamento, destaca-se a necessidade de a cegueira71 ser compreendida a partir do contexto em que se insere, ou seja, um ambiente marcado hegemonicamente pelo paradigma visuocêntrico (Belarmino, 2004), organizado, portanto, em torno da visão. Tal paradigma está presente em diversas situações vividas pelas pessoas deficientes visuais em seus cotidianos, dentre as quais se destacam aquelas referentes à sua relação com a cidade. A vida dos cegos nas cidades tem sido marcada por limitações e pela exclusão, ao mesmo tempo em que surge uma demanda por uma participação mais efetiva e autônoma em todos os aspectos da vida social. A dificuldade crescente enfrentada pelos deficientes visuais em seu deslocamento diário ganha proporções alarmantes ao considerarmos o meio urbano da cidade do Rio de Janeiro. Não são raras as situações em que esse espaço torna-se intransitável a qualquer pessoa, cega ou vidente, devido às inúmeras barreiras existentes nos meios de transporte e nas vias públicas. Com frequência, deparamo-nos com ambientes restritivos ou espaços inacessíveis e estruturas excludentes. Em função dos diversos relatos de acidentes envolvendo três situações cotidianas em especial, foi realizada uma investigação sobre a forma como pessoas cegas as enfrentam. São elas: pegar um ônibus, atravessar a rua e desviar de um orelhão. Buscou-se entender as dificuldades que podem advir destas situações a partir de um estudo sobre as características da locomoção de pessoas com deficiência visual e da reflexão sobre maneiras possíveis de se amenizar tais dificuldades, permitindo o deslocamento da pessoa cega e seu acesso à cidade. Normas e política de acessibilidade De acordo com o Decreto 3.298, de 20/12/1999, pessoa portadora de deficiência é aquela que apresenta, em caráter permanente, perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gere incapacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal. No Brasil, uma pessoa é considerada portadora de deficiência visual quando apresenta acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20º (tabela de Snellen)72, ou ainda ocorrência simultânea de ambos. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), pela NBR 9050:1994, define acessibilidade como sendo “possibilidade e condições de alcance, percepção e entendimento para utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário, Página 166
equipamento urbano e elementos”. Assim, chegar, entrar e utilizar todas as instalações de edifícios públicos e privados deve ser possível a todos. Embora as normas técnicas sejam de uso voluntário, passam a ter força de lei quando mencionadas explicitamente no corpo legislativo. É o que acontece com as normas de acessibilidade, por exemplo, que passaram a integrar a legislação federal e estadual. Em 1985, foi criada a primeira Norma Técnica da ABNT relacionada ao tema. Esta, intitulada "Adequação das Edificações, Equipamentos e Mobiliário Urbano à pessoa portadora de deficiência" – NBR 9050, preconiza padrões como: 1. Sinalização luminosa e sonora nos acessos de estacionamentos com cruzamento de fluxos de veículos e pedestres (item 9.1.8); 2. Existência de dispositivo a ser acionado pelo portador de deficiência visual nas travessias de pedestres onde houver semáforo (item 9.1.9); 3. Comunicação auditiva dentro da cabine do elevador, indicando o andar onde o elevador se encontra parado – este padrão se aplica aos edifícios de uso público e de uso multifamiliar em que o número de paradas do elevador for superior a dois (item 10.3.3.3); 4. Comunicação tátil nos telefones públicos onde houver possibilidade de ligações interurbanas/internacionais (item 10.4.2). A Lei 10.098/00 determina a eliminação de barreiras e obstáculos que estejam nas vias e espaços públicos, nas edificações, nos meios de transporte ou de comunicação que limitem o acesso, a liberdade de movimento e a circulação com segurança das pessoas cegas (art. 1º combinado com art. 2°, II). Eis algumas das medidas que prescreve: 5. Atendimento, pelos veículos de transporte coletivo, dos requisitos de acessibilidade estabelecidos nas normas técnicas específicas (art. 16); 6. Os semáforos para pedestres instalados nas vias públicas deverão estar equipados com mecanismo que emita sinal sonoro suave, intermitente e sem estridência, ou com mecanismo alternativo, que sirva de guia ou orientação para a travessia de pessoas portadoras de deficiência visual, se a intensidade do fluxo de veículos e a periculosidade da via assim determinarem (art. 9º). Observa-se, porém, que algumas dificuldades relatadas pelos deficientes visuais em seu cotidiano não são previstas pelas leis, como, por exemplo, aquelas causadas por buracos nas calçadas. Além disso, mesmo quando alguns aspectos estão previstos, como a sinalização sonora dos semáforos, outros de igual importância são negligenciados. Isto fica evidente, por exemplo, no curto tempo que o sinal de trânsito fornece para a travessia e na falta de um piso tátil nas faixas de pedestres, o que permitiria um caminhar retilíneo. O presente texto é fruto de uma pesquisa realizada com deficientes visuais nos arredores do Instituto Benjamin Constant – escola e centro de reabilitação para pessoas com deficiência visual – e do Campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Utilizou-se um método que denominamos “entrevistas-passeio”: acompanhadas dos entrevistados, passeávamos Página 167
pela cidade. As entrevistas-passeio foram realizadas com três pessoas cegas da divisão de reabilitação do Instituto Benjamin Constant, sendo uma com cegueira congênita e duas com cegueira adquirida. Tal dispositivo surgiu a partir da necessidade de investigar os aspectos cognitivos envolvidos nas três situações do cotidiano eleitas para esta investigação, isto é, atravessar uma rua, pegar um ônibus e desviar de um orelhão, tal como já fora explicitado. Pedimos aos três participantes cegos que nos guiassem pelas ruas, indicando suas dificuldades, além das estratégias desenvolvidas para se deslocarem pela cidade. Deste modo, buscamos fundamentar um conhecimento atrelado a todas as narrativas envolvidas, num movimento de co-construção, que transforma reciprocamente pesquisador e pesquisado. Assim, não se trata de uma pesquisa feita para ou sobre cegos, mas com eles, em conformidade com o que diversos autores têm proposto na atualidade (Varela, s.d; Varela, Thompson e Rosch, 2003; Latour 2001, 1999, Mol 1999, 2002; Mol & Law, 2000, 2003). Essas formulações teórico-metodológicas subsidiam um modo de pesquisa que se tem desenvolvido, e do qual temos partilhado, denominado PesquisarCOM73 (Moraes, 2008; Alvarez e Passos, 2009 e Pozzana e Kastrup, 2009). Este articula produção de conhecimento e intervenção no campo, defendendo que as estratégias de ação se tornam mais relevantes na medida em que são construídas conjuntamente. Em geral, quando o tema deficiência está em discussão, são enfatizadas as diferenças entre deficientes e não deficientes, destacando-se, sobretudo, o que falta aos primeiros para se equipararem aos ditos “normais”. No caso da deficiência visual, muitas vezes essa forma equivocada de entendimento toma o limite sensorial como algo que incapacita o indivíduo física e intelectualmente. O cego não é percebido somente como alguém que não pode ver, mas, algumas vezes, como alguém incapaz de ser autônomo, interessante e produtivo. Do ponto de vista biológico, a limitação sensorial não implica, por si só, que o deficiente visual tenha prejuízos no seu desenvolvimento cognitivo (Hatwell, 2003). No entanto, como afirma Martins (2005), “o não-lugar que as pessoas com deficiência tendem a ocupar na nossa sociedade se deve, centralmente, às barreiras físicas, sociais e culturais que vêm negando a sua participação social” (p. 4). Entretanto, propor que os cegos possam participar ativamente das mais diversas esferas da vida social não corresponde a afirmar que eles são iguais aos videntes. Há que se levar em consideração que a cegueira possui particularidades, destacando-se, aqui, aquelas que podem atrapalhar a locomoção. Por outro lado, é possível circular pelo espaço público com autonomia, desde que condições específicas sejam atendidas, ou seja, as dificuldades podem ser amenizadas quando certos requisitos são preenchidos, permitindo um caminhar mais seguro pela cidade. A pessoa cega pode aprender a circular de forma autônoma por intermédio de um curso de orientação e mobilidade (como aquele ministrado no Instituto Benjamin Constant) e também desenvolvendo estratégias inventivas. Entretanto, consideradas as condições do espaço urbano de muitas cidades, o cego acaba dependente da ajuda dos videntes em diversos momentos, como se evidenciou na fala de uma das pessoas que entrevistamos: “Às vezes eu espero quinze Página 168
minutos para atravessar a rua. Se tivesse mais sinais sonoros, eu não ia ter que esperar tanto tempo”. Localização e deslocamento espacial: aspectos cognitivos, dificuldades e estratégias Segundo Yvette Hatwell (2003), os estudos cognitivos indicam que não há na cegueira qualquer deficiência de natureza intelectual. A principal dificuldade do deficiente visual diz respeito à percepção do espaço e à mobilidade espacial. Tal dificuldade resulta da falta de dados perceptivos provenientes do ambiente. Hatwell (2003) e Lenay et al. (2001) sustentam que a diferença cognitiva entre cegos e videntes diz respeito ao modo como eles se movimentam e à sua percepção do espaço, o que tem consequências para a locomoção na cidade. De acordo com Hatwell (2003), a locomoção autônoma é definida como sendo: a segurança que a pessoa tem ao andar, a eficácia para alcançar metas, o quão agradável e confortável é o deslocamento, a harmonia entre os movimentos e a independência física do pedestre. A localização e o deslocamento espacial estão presentes em muitas ações corriqueiras, como pegar um ônibus, atravessar uma rua ou desviar de um orelhão em uma calçada. Para os deficientes visuais, estas atividades podem ser marcadas por diversas dificuldades. A visão tem grande importância na organização postural, no controle do equilíbrio bípede e na locomoção à medida que ela fornece, continuamente, uma atualização dos referenciais espaciais externos ao corpo, completando as informações provenientes da propriocepção. Além disso, possibilita que se construa uma trajetória a partir das informações distantes e dos obstáculos presentes. No que diz respeito às propriedades espaciais do ambiente, nenhuma outra modalidade perceptiva é tão abrangente quantitativa e qualitativamente. Para Rieser et al. (1990), o vidente possui um fluxo visual contínuo, e é pela relação entre movimentos realizados e as progressivas mudanças de distância e direção entre os objetos e si mesmo que é possível a locomoção organizada pelo espaço. Embora o termo pré-visão (Hatwell, 2003) possa suscitar mal-entendidos, este não se refere estritamente à visão, não se tratando de um estágio que antecede à visão ou da capacidade de prever aquilo que ainda não aconteceu. Trata-se, pois, da possibilidade de perceber, à distância, obstáculos presentes na trajetória a ser percorrida. A locomoção dos cegos tem como uma de suas particularidades a ausência de pré-visão. Assim, os deficientes visuais têm dificuldades em perceber os objetos que se encontram no seu percurso antes do contato com o seu próprio corpo. A falta de pré-visão dificulta a antecipação e transposição de obstáculos. Isto, além de gerar insegurança na caminhada, resulta na necessidade de recorrer a traços mnemônicos (por exemplo, nomes de ruas e mapas cognitivos) e de voltar a atenção a informações provenientes de outras modalidades sensoriais, como a audição e o tato, para perceber se há obstáculos na trajetória. Ou seja, ouvindo o barulho de passos, sabe-se que há alguém vindo em sua direção; e tateando ou utilizando a bengala, pode-se perceber a presença de objetos ou pessoas que estejam no caminho. Embora outras modalidades sensoriais possam conferir certo grau de Página 169
pré-visão, este se dá em um campo muito limitado e pouco preciso. A propriocepção, também denominada “o sentido do próprio corpo” (Sacks, 1997), permite a construção de uma imagem corporal que se modifica a cada movimento e é fundamental para a manutenção do equilíbrio e prosseguimento da ação. Sem a percepção visual do próprio corpo e das consequências de seu deslocamento no ambiente, os cegos utilizam as informações proprioceptivas para assegurar seu equilíbrio. Porém, tais informações parecem ser menos precisas do que as fornecidas pela visão. Isso pode fazer com que um cego, mesmo que parado, tenha maior risco de desequilíbrio e queda do que um vidente. Tal instabilidade se agrava durante o deslocamento, sobretudo nos espaços urbanos, em função da forma como estes estão estruturados. O tato é a modalidade perceptiva que mais se aproxima da visão, e sua relevância funcional na vida prática das pessoas cegas é bastante destacada. De modo geral, é ao tato que os cegos mais recorrem para acessar informações espaciais e físicas do ambiente. Por meio da percepção tátil, os cegos constroem os referenciais ambientais para o seu deslocamento no espaço. O tato é um sentido proximal e permite acesso às informações do ambiente (forma, tamanho, orientação, distância, localização, etc.) que seriam perceptíveis à visão. Por depender do contato direto, a percepção tátil obriga o cego a procurar intencionalmente por barreiras exteriores com movimentos exploratórios, o que exige grande investimento da atenção. Além disso, devido ao seu campo perceptivo exíguo, o tato não fornece uma boa diferenciação entre figura e fundo, isto é, ele não proporciona referenciais estáveis que sejam capazes de configurar um sistema de referência exocêntrico. Portanto, o tato induz, com frequência, a um tratamento espacial egocêntrico, ou seja, baseado no próprio corpo ou em códigos de movimentos exploratórios. A escassa pré-visão proporcionada pelos sistemas alternativos à visão é uma das maiores dificuldades enfrentadas pela pessoa cega, conforme já foi colocado. A bengala é um dos mais antigos dispositivos técnicos que podem auxiliar na deambulação pelo espaço, pois, a partir da percepção tátil, ela confere uma espécie de pré-visão ao cego, tornando possível a ele obter informações antecipadas acerca de objetos presentes em seu caminho. Todavia, o alcance da bengala é muito restrito, de forma que essa pré-visão proporcionada por ela é limitada e não garante completa segurança à marcha. A bengala é utilizada por meio de um movimento de varredura, que permite verificar a presença de objetos, declives do terreno, tipo de solo, entre outros. Uma de nossas entrevistadas exemplificou esse importante papel comentando os buracos nas calçadas, tão comuns nas cidades e que surgiram diversas vezes ao longo do trajeto que percorremos. “Quando a bengala me avisa que tem um buraco, boto a bengala na frente e vou passando bem devagar. Se não fosse assim, teria um grande risco de cair”. No entanto, a bengala não permite que obstáculos aéreos e objetos como uma lixeira ou um orelhão sejam percebidos, o que ficou claro em nossas entrevistas-passeio: “Se quero uma lixeira para jogar alguma coisa fora, vou com a bengala; se não encontro, pergunto a alguém. Mas muitas vezes eu esbarro em uma”. A locomoção com a bengala é facilitada pelo uso de uma linha-guia, que, em uma cidade, pode ser um muro ou um meio fio. Essa linha-guia funciona como um referencial constante pelo qual o cego Página 170
se orienta, mantendo-se sempre à mesma distância dele. A utilização e a importância da linha-guia também se evidenciaram nas entrevistas-passeio. Uma de nossas entrevistadas nos solicitou, ao se despedir de nós: “Me coloca no muro pra eu ir seguindo a linha-guia. Indo pelo murinho eu não me perco”. Outra comentou que a linha-guia também permite um caminhar mais retilíneo. Assim como a visão, a audição é um sentido distal. Entretanto, a localização de uma fonte sonora às vezes é mais trabalhosa e, geralmente, mais imprecisa do que a localização visual, sobretudo porque a posição de um objeto pode variar em três dimensões no espaço (vertical, horizontal e sagital). Como o tato, a audição depende de uma apreensão sucessiva dos estímulos ambientais. Tal caráter confere a esse sentido uma especialização no domínio temporal que, investida de atenção, assume uma grande importância na localização e no deslocamento. É possível encontrar uma fonte sonora pela audição com base na ordem temporal em que os sons são ouvidos. Para isso, muitas vezes os cegos posicionam uma de suas orelhas na direção da fonte sonora, de forma que a outra fica o mais distante possível de onde provém o som. Assim, o som chega primeiro ao ouvido mais próximo à fonte sonora e depois ao outro, o que maximiza a diferença de tempo em que o som chega a cada um dos ouvidos (Hatwell, 2003). A audição humana tem uma capacidade limitada de discriminação. Ela não distingue facilmente sons de mesma amplitude e intensidade acústica que ocorrem simultaneamente. Isso faz com que a modalidade auditiva seja mais propensa a sofrer interferência de estímulos irrelevantes (Rosa e Ochaíta, 1993). Uma das entrevistadas comentou: “Quando está ventando complica muito, porque prejudica a escuta. Não escutamos os barulhos direito”. Para um deficiente visual, que precisa da audição para se orientar no espaço, torna-se muito difícil discernir um som pertinente de um som desconexo em meio a todo o ruído característico dos centros urbanos. É o que ocorre, por exemplo, quando o alerta sonoro de uma garagem se abrindo é mascarado pelo tráfego intenso. São poucos os referenciais espaciais que podem ser percebidos pelo olfato. Além disso, como essa percepção tem alcance restrito, a localização dos objetos e a estimativa de distâncias pelo olfato se tornam pouco precisas. Esta é uma modalidade perceptiva pouco lembrada e que parece pouco utilizada para a percepção espacial (Rosa, A. e Ochaíta, 1993). Nas entrevistas-passeio, nenhum dos participantes mencionou tal sentido. Atualmente, ainda são poucos os estudos referentes ao desenvolvimento e a utilização do olfato na ausência da visão.74 Normalmente, os cegos relatam utilizar os odores do ambiente para reconhecer objetos, pessoas e lugares (Hatwell, 2003). "Em ocasiões, talvez mais frequentes do que pensamos, usamos o olfato para distinguir e conhecer certos elementos do espaço. Assim, encontramos ou reconhecemos um estabelecimento, como uma padaria, pelo odor que dela exala. Desta maneira, quando associamos a um elemento ambiental um determinado odor, a lembrança parece ser bastante perdurável." (Rosa, e Ochaíta, 1993, p. 2008) A visão fornece referenciais externos fixos através dos Página 171
quais uma pessoa pode estar constantemente corrigindo sua postura. A cegueira afeta a postura, pois dificulta a constante calibração do próprio corpo em relação aos objetos do ambiente (uma vez que, na ausência de visão, essa calibração depende principalmente da propriocepção). A postura característica dos cegos, por sua vez, diminui os aportes sanguíneos necessários às diferentes partes do corpo, o que parece afetar a acuidade da propriocepção, gerando consequências para a manutenção do equilíbrio. A insegurança, diretamente relacionada à falta de pré-visão e ao constante risco de colidir com obstáculos, resulta em uma caminhada lenta e marcada por passos curtos. De acordo com Hatwell (2003), quanto menor for a velocidade de locomoção, maior será a “tendência a virar”, ou seja, a tendência a manter uma trajetória curvilínea. Em função de sua marcha lenta, os cegos possuem uma maior facilidade de sair de sua trajetória, uma vez que apresentam uma maior “tendência a virar”, o que constitui fator complicador para seu deslocamento. Para entender a “tendência a virar”, é preciso considerar tanto índices externos quanto índices corporais proprioceptivos. Uma assimetria acentuada da postura, por exemplo, tende a gerar um desvio da trajetória para o lado oposto àquele para o qual se está inclinado. Um som não pertinente pode afetar a trajetória, voltando-a em direção à fonte sonora. A “tendência a virar” existe em qualquer pessoa, mas se torna um fator de risco para o cego, já que este não possui um fluxo visual contínuo que facilite a correção constante da sua rota. Assim, ele pode se desorientar, por exemplo, ao atravessar uma rua, andando para frente e para a direita, ao invés de andar somente para a frente. Cidade que exclui A dinâmica da cidade, além de organizada sob um paradigma visuocêntrico, é marcada por mudanças contínuas e elementos temporários que podem constituir os mais diversos obstáculos. O mobiliário urbano está, em grande parte, disposto de maneira caótica pela cidade, sendo muitos os exemplos: cabines telefônicas e lixeiras sem sinalização, obras sem proteção ou cordão de isolamento, veículos estacionados irregularmente em calçadas, esgoto e bueiros abertos, ausência de sinais sonoros, toldos baixos avançados nas calçadas e outros obstáculos aéreos, pavimentação irregular, excesso de ruído, falta de faixas de segurança com sinalização para travessia de pedestre e degraus nas calçadas, dentre outros. Com um espaço urbano mal planejado e mal organizado, os acidentes são frequentes na vida dos cegos que se aventuram pelas ruas do Rio de Janeiro. Nossos entrevistados relataram alguns acidentes que sofreram ao se deslocarem sozinhos pela cidade. Um deles caiu em um bueiro aberto e quebrou todos os dentes. Outro sofreu um acidente em uma estação ferroviária, quando caiu entre a plataforma e o vagão de trem. Além disso, todos mencionaram as várias ruas esburacadas da cidade, enfatizando o quanto pavimentações irregulares dificultam sua locomoção, tornando-a mais lenta e perigosa. Uma queixa unânime foi relativa aos automóveis estacionados em cima de calçadas. Em uma das entrevistas-passeio, foi necessário que o participante passasse com cuidado e com auxílio de um vidente por entre o muro e o carro estacionado irregularmente na calçada, que já era bastante Página 172
estreita. Caso não houvesse um vidente por perto, a pessoa cega teria que se arriscar pelo meio da rua ou aguardar até que alguém se oferecesse para ajudá-la. Três situações difíceis: Desviar de um orelhão, atravessar uma rua, pegar um ônibus Nas entrevistas-passeio, pudemos observar as dificuldades enfrentadas nas três situações propostas. Desviar de um orelhão é uma tarefa que os três entrevistados mencionaram como sendo difícil. Isso decorre do fato de apenas a base do orelhão – que é menor do que sua parte superior – ser perceptível à varredura da bengala. Uma das pessoas entrevistadas relatou uma situação em que colidiu com o orelhão: “Uma vez não só trombei com um orelhão, como entrei dentro dele! E olha que eu nem queria telefonar. Podia ter um altinho em volta que nos avisasse, de alguma forma, que ali tem um orelhão”. Outros entrevistados também comentaram situações similares. Na frente do Instituto Benjamin Constant há esse tipo de marcação no orelhão, contudo, na mesma rua, logo adiante, bem como do outro lado da rua, já não se encontra tal sinalização. Atravessar uma rua foi citado como a maior das dificuldades para o deslocamento autônomo dos cegos. Uma das entrevistadas disse que, mesmo em frente ao Instituto Benjamin Constant, onde há sinalização sonora, ela não considera seguro atravessar sozinha. Outra comentou que os professores de Orientação e Mobilidade não aconselham que um cego atravesse sozinho uma rua em que não há sinais sonoros. Disse ainda que um reabilitando do Instituto Benjamin Constant foi atropelado desta forma porque estava com pressa e não esperou pela ajuda de um vidente. Além disso, há que se destacar que, mesmo quando há sinalização sonora, não se leva em consideração que o cego tende a ter uma marcha caracteristicamente mais lenta. Os sinais, em geral, não só demoram a abrir para os pedestres como fecham rapidamente, o que acarreta um tempo curto de travessia. Por esse motivo, muitas vezes a pessoa cega ou tenta andar mais depressa, arriscando-se a cair, ou precisa esperar pela ajuda de um vidente. Pegar um ônibus também depende da visão. Sem enxergar, não há como saber qual ônibus está se aproximando. Os entrevistados explicaram como lidam com essa dificuldade. Quando querem pegar determinando ônibus, pedem ajuda para alguém que esteja no ponto. Caso não haja ninguém, percebendo, através da audição, que um ônibus se aproxima, fazem sinal e perguntam ao motorista se aquele é o ônibus pelo qual esperam. Para saltar, pedem ao trocador ou ao motorista que avisem quando chegar o ponto em que precisam descer. No ponto de ônibus localizado em frente ao Instituto Benjamin Constant, há marcações em alto relevo na calçada que indicam sua presença aos deficientes visuais. Entretanto, na maior parte dos pontos de ônibus da cidade não há essa marcação, o que dificulta significativamente a sua localização. Atenção às Particularidades Cognitivas para Assegurar a Igualdade de Direitos Como foi ressaltado ao longo do texto, a principal dificuldade dos cegos diz respeito à sua mobilidade espacial. No entanto, embora a tarefa de circular pelo espaço seja dificultada por particularidades cognitivas geralmente relacionadas à Página 173
cegueira, um caminhar mais seguro e autônomo é possível desde que certas condições sejam contempladas – algumas das quais já previstas em lei. A partir das observações e entrevistas-passeio realizadas, ficou evidente que o mobiliário urbano disponível nos arredores do Instituto Benjamin Constant, local que se esperaria ser um dos mais adequados às necessidades da pessoa com deficiência visual, é bastante precário. O que se verifica é que, mesmo nessa região, a grande maioria dos cegos anda acompanhada por videntes. Para garantir o acesso amplo e de qualidade às vias públicas, é necessário que as leis de acessibilidade sejam aplicadas devidamente. Isso, no entanto, ainda não é suficiente. É preciso que o deficiente visual possa participar de forma ativa do processo de elaboração de tais leis. Afinal, ninguém melhor do que o cego para saber quais as principais dificuldades que a cegueira pode acarretar ao seu deslocamento espacial. Além disso, estudos cognitivos deveriam orientar a formulação de normas para sinalização do mobiliário urbano, de obras e meios de transporte. Por exemplo, a marcha dos deficientes visuais, caracterizada pela ausência de pré-visão (em certa medida compensada pelo uso da bengala), pela tendência a virar e por uma maior lentidão, deveria ser considerada ao se pensar um semáforo acessível. Este deveria ter um sinal sonoro, uma indicação no pavimento (para auxiliar o cego a manter uma rota retilínea) e um tempo mais longo para a travessia da rua. Por fim, é importante destacar que, na busca por uma cidade acessível, igualdade e particularidades cognitivas não se opõem. Não se trata de defender que não exista qualquer diferença ou de que sejam formas de experiência rigorosamente opostas; trata-se de entender que a igualdade de oportunidades é uma conquista que depende do reconhecimento de que cegos e videntes são diferentes, pois somente assim podem ser criadas as condições que atendam às particularidades das pessoas cegas. notas: 70 Publicado originalmente em versão modificada na revista Mnemosine Vol.5, nº1, p. 80-94, 2009. Foi escrito a partir de um trabalho apresentado nas 1ª e 2ª fases da XXVII Jornada Julio Massarani de Iniciação Cientifica, Artística e Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 71 A partir de meados da década de 1970, em lugar de "deficientes" ou "cegos", passou-se a utilizar "pessoas com deficiência visual", enfatizando a idéia de que o sujeito não se resume à sua deficiência. Mais recentemente, estes mesmos termos, “deficientes” e “cegos”, foram reapropriados politicamente por grupos ativistas, de modo a destacá-los como um grupo social com necessidades específicas a serem reivindicadas. Neste sentido, é extensa a discussão quanto à terminologia adequada: cegos, deficientes visuais, portadores de deficiência visual, portadores de necessidades especiais. No presente artigo, utilizaremos um vocabulário diversificado, como o faz a maioria dos deficientes visuais com os quais convivemos. 72 A tabela de Snellen, também conhecida como optótico de Snellen ou escala optométrica de Snellen, é um diagrama utilizado para avaliar a acuidade visual de uma pessoa. Consiste em um conjunto de letras de diferentes tamanhos dispostas de Página 174
forma randômica. 73 A este respeito, cf. o capítulo PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual, de autoria de Marcia Moraes, inserido nesta coletânea. 74 Cf. Murphy e Cain, 1985; Smith, Doty e Bulingame, 1993; Rosenbluth, Grossman e Kaitz, 2000. Referências Bibliográficas: ALVAREZ, J. e PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS, E. KASTRUP, V. e ESCÓSSIA, L. (org.) Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009. ASSOCIAÇÃO Brasileira de Normas Técnicas. Acessibilidade de Pessoas Portadoras de Deficiências a Edificações, Espaço, Mobiliário e Equipamento Urbanos. NBR 9050. Rio de Janeiro: ABNT, 1994. BELARMINO, J. Aspectos comunicativos da percepção tátil: a escrita em relevo como mecanismo semiótico da cultura. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004. HATWELL, Y. Psychologie cognitive de La cécité precoce. Paris: Dunod, 2003. KASTRUP, V. A invenção na ponta dos dedos: a reversão da atenção em pessoas com deficiência visual. Psicologia em Revista. 2007. LATOUR, B. A Esperança de Pandora. Bauru: EDUSC, 2001. __________. How to talk about the body? 1999. Disponível em: http://www.bruno-latour.fr/ LENAY, C., GAPENNE, O., STEWART, J. The Constitution of Spatiality in Relation to the Lived Body: a Study based on Prosthetic Perception, Symposium at the 3rd International Conference on Cognitive Science, Beijing, China, 2001. MARTINS, B. D. G. S. Políticas sociais na deficiência: Exclusões perpetuadas. 2005 http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/228/228.pdf. Acesso em dezembro de 2008. MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. USA: Duke University Press, 2002. __________. Ontological Politics. A word and some questions. In: LAW, J. & HASSARD, J. (Eds.) Actor Network Theory and After. Oxford, UK: Blackwell Publishers, 1999. MOL, A. & LAW, J. Embodied action, enacted bodies. The example of hypoglicaemya. 2003. Disponível em: http://bod.sagepub.com/ Página 175
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SOBRE OS AUTORES Alexandra C. Tsallis – Doutora em Psicologia Social (UERJ em associação com a Ecole des Mines - Paris). Pós-doutoranda do Programa de Psicologia (UFRJ). Pesquisadora do Núcleo de Cognição e Coletivos NUCC / UFRJ. Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) coordenando a Pesquisa "Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal". Atua nas áreas de Psicologia Clínica, Psicologia Social, Produção de Subjetividade e Deficiência Visual. Bernardo Antonio A. P. De Souza – Graduando em Psicologia (UFRJ). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na Pesquisa Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal. Bruno Sena Martins – Doutorando da Universidade de Coimbra, Portugal. Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Camila Araújo Alves – Graduanda em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista de inciação científica (PIBIC/Faperj) no projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver (2008 atual). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC). Carolina Cardoso Manso – Graduada em Psicologia e Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista CAPES. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Perceber sem ver. Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC). Elisa Junger – Bacharel em Psicologia, aluno do Curso de Formação de Psicólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Bolsista de Extensão PIBEX. Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na Pesquisa Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal. Filipe Herkenhoff Carijó – Aluno do curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected] Jéssica David – Graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Bolsista de Iniciação Cientifica PIBIC | CNPQ | UFRJ. É membro do Núcleo de Cognição e Coletivos (NUCC), do programa de pós-graduação do Instituto de Psicologia da UFRJ. Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC). Joana Belarmino – Jornalista, Mestre em Ciências Sociais e Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em literatura, escreve contos e crônicas, com publicações em coletâneas nacionais e internacionais. É membro do Clube do Conto da Paraíba. Página 177
Josselem Conti de Souza Oliveira – Graduanda em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista de Iniciação Cientifica (PIBIC/Cnpq) no projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver (2007 - atual) . Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC). Email: [email protected] Julia Guimarães Neves – Graduanda em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista de Iniciação Cientifica (PIBIC/Faperj - 2008 e 2009) e bolsista de extensão (Proex atual) no projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver (2007 - atual). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC). Juliana de Moura Quaresma Magalhães – Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista de iniciação científica PIBIC/ CNPQ/ UFRJ. Membro do Núcleo de Pesquisa Cognição e Coletivos (NUCC/UFRJ). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC). Laura Pozzana – Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com apoio do CNPq. Publicou O Corpo em Conexão: Sistema Rio Aberto (EdUFF, 2008), Leituras em Elos: o prazer em ler com crianças e adolescentes (Puc-Rio, 2009). É psicóloga do NUCC/UFRJ e instrutora de práticas corporais. Leonardo Reis Moreira – Bacharel em Psicologia e aluno do Curso de Formação de Psicólogo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na Pesquisa Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal. Liz Eliodoraz – Graduada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pós-graduanda em Terapia através do Movimento: corpo e subjetivação na Faculdade Escola Angel Vianna. Atriz e diretora de teatro. Lucia Maria Filgueiras – Doutora em Psicologia (UFRJ); Mestre em Educação (UFRJ); Especialista em Alfabetização de Deficientes Visuais (UNIRIO/ IBC), Especialista em Educação Física de Deficientes Visuais (UFRJ/ IBC). Publicou Processo de Ensino-Aprendizagem dos Alunos com Necessidades Educativas Especiais: O Aluno com Deficiência Visual (UNIRIO, 2008). Foi Coordenadora e Professora do I Curso de Formação de Professores de Orientação e Mobilidade do Instituto Benjamin Constant. Atualmente ministra aulas de Psicomotricidade no Instituto Benjamin Constant. Luciana de Oliveira Pires Franco – Graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduanda lato sensu em Psicanálise e Saúde Mental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ). Psicóloga do projeto de pesquisa Perceber Sem Ver. Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC). Página 178
Marcia Moraes – Professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Leciona na graduação e na pós-graduação stricto sensu em Psicologia/UFF. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), coordenadora da pesquisa Perceber Sem Ver. Bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPq. É autora de vários artigos sobre deficiência visual e sobre as articulações entre teoria ator-rede e psicologia. Em sua produção, destaca-se o trabalho intitulado A contribuição da antropologia simétrica à pesquisa e intervenção em psicologia social: uma oficina de expressão corporal com jovens deficientes visuais, publicado em Psicologia e Sociedade, vol. 20 (n. especial), 2008. Maria Clara de Almeida – Aluna do curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected] Maria do Carmo Cabral – Graduada em Administração de Empresas e em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pós-Graduação em Educação Infantil pela PUC/Rio e mestrado e doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Investiga principalmente os seguintes temas: leitura, literatura, aprendizagem, cognição, teoria da mente e produção de subjetividade. Atualmente trabalha no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. Maria Helena Falcão Vasconcellos – Doutora em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas de subjetividade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora associada ao NEC - FACED (Faculdade de Educação) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pela editora da UNICAMP, publicou Dias de violência - o quebra. Coordena o grupo de pesquisa Cultura, conhecimento e subjetividade e realiza pesquisa em oficinas literárias. Renata Machado – Bacharel em Psicologia e aluno do Curso de Formação de Psicólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na Pesquisa Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal. Rodrigo Pires Madeira – Bacharel em Psicologia e aluno do Curso de Formação de Psicólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na Pesquisa Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal. Thadeu Gonçalves – Graduando em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista de inciação científica (PIBIC/Faperj) no projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver (2008/2009). Vandré Vittorino – Bailarino contemporâneo pela Faculdade Escola Angel Vianna. Pós-graduando em Terapia através do Movimento: corpo e subjetivação pela mesma instituição. Vera Regina Pereira Ferraz – Especialista em Docência e Educação Página 179