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A FILOCALIA DOS PADRES NÉPTICOS[1] COLETADA PELO NOSSO SANTO E TEÓFORO PADRE, ATRAVES DA QUAL, POR MEIO DA FILOSOFIA DA PRÁTICA ASCÉTICA E DA CONTEMPLAÇÃO, O INTELECTO É PURIFICADO, ILUMINADO E TORNADO PERFEITO.
[1] Padres Népticos, aqueles que possuem Nepsis (do grego νῆψις): Nepsis é um estado de perpétua atenção, consciência e de perfeita sobriedade.
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☩ NOTAS DO ORGANIZADOR O índice pode ser encontrado nas últimas páginas. Os textos da Filocalia Grega traduzidos para o português aqui compilados foram retirados do blog http://precedejesus.blogspot.com.br/ e http://precedejesus1.blogspot.com.br/ , de Tito Kehl.
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PREFÁCIO DE
NICODEMO O HAGIORITA
Deus, a Natureza benevolente, a perfeição mais que perfeita, a Origem melhor e mais bela, criadora de tudo o que há de bom e belo, tendo decidido por toda a eternidade, em seu princípio teárquico, deificar o homem, e, tendo colocado previamente, desde o começo, este objetivo em si mesmo, criou o homem no tempo que considerou bom. Ele tomou da matéria para fazer o corpo, e de sua própria natureza para colocar nele uma alma. Neste pequeno mundo do corpo, ele a pôs como um grande mundo pelo número de potências e por sua eminência. Assim ele fez dele um guardador da criação sensível e um iniciado da criação inteligível, segundo Gregório o grande teólogo. Com efeito, que era o homem? Na verdade, nada além de uma imagem e um ícone cheio de todas as graças, criado por Deus. Tendo Deus a seguir lhe dado a lei de sua ordem, como uma prova de sua liberdade, ele soube que deveria daí em diante retirar-se na presença desta lei. Como diz o Eclesiástico [1], ele foi deixado ao seu próprio discernimento, livre para escolher conforme lhe parecesse bom o que lhe fosse apresentado. Se ele mantivesse a ordem, ele deveria receber como recompensa a graça anipostática da deificação, tornar-se Deus e irradiar a mais pura luz, na eternidade. 2
Mas – ó perversidade do ciúme! – aquele que introduziu o mal desde o começo não suportou que a deificação fosse posta em marcha. Ele concebeu o ciúme contra o Criador e contra a criatura, como diz são Máximo. Contra o Criador, para que não fosse reconhecida a celebrada potência da bondade que, com sua energia, deifica o homem. Contra a criatura, para que não lhe fosse possível participar, pela deificação, a tamanha glória sobrenatural. O maligno, em suas intrigas, enganou o infeliz homem. Por meio de sugestões aparentemente preciosas, ele fez de tal modo que o homem transgrediu a ordem divina. Ao destacá-lo da glória de Deus, aparentemente o rebelde venceu como queria, uma vez que ele conseguiu evitar a cumprimento das eternas recomendações de Deus. Mas segundo o oráculo divino, o conselho de Deus referente à deificação da natureza humana permanece na eternidade, e os pensamentos de seu coração passam de geração em geração [2]. As razões da Providência e, portanto, as razões do Juízo, que tendem para este objetivo, sempre acompanharam imutavelmente o século presente, bem como o século futuro, como explica são Máximo. No final dos dias, nas entranhas de sua misericórdia, ele pediu ao Verbo do Pai, à divina Origem, de anular as recomendações dos príncipes das trevas, e de ir mais longe para colocar em prática a recomendação antiga e verdadeira, que ele estabelecera no princípio. Assim tendo se encarnado pela bem-aventurança do Pai e a sinergia do Espírito Santo, ele tomou em si toda a natureza e a deificou. Depois, tendo nos confiado a obra divina de seus salutares mandamentos, e tendo nos concedido por meio do batismo a graça perfeita do Espírito Santo, ele semeou nos corações como que uma semente divina. Segundo o Evangelista, a nós que levamos nossa vida segundo seus mandamentos vivificantes e as passagens espirituais de uma idade a outra, a nós que por meio deste exercício guardamos a graça inextinguível, ele permitiu ao final carregarmos os frutos, tornarmo-nos por esta graça filhos de Deus [3], e sermos deificados, alcançando o homem perfeito, na medida da plenitude de Cristo [4]. 3
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[1] Eclesiastes XV, 14. [2] Salmo XXXIII, 11. [3] Cf. João I, 12. [4] Cf. Efésios IV, 13.
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Tal era, em uma palavra, a finalidade, a conclusão de toda a economia do Verbo ao nosso respeito. Mas aqui temos motivo para gemer amargamente, como diz João Crisóstomo. Porque teríamos usufruído de tamanha graça, teríamos sido dignos de tal nobreza, que nossa alma, purificada pelo Espírito no batismo, brilharia mais do que o sol, pois teríamos recebido como crianças este esplendor semelhante a Deus. Ora, cegos que fomos pela ignorância, mas acima de tudo pela noite escura das preocupações da existência, apagamos de tal modo graça sob as paixões, que estávamos a ponto de extinguir em nós totalmente o Espírito de Deus, quase como aqueles que responderam a Paulo que sequer haviam escutado que havia um Espírito Santo [5], e que estávamos como que na partida, quando ainda não começara nossa graça. Ora essa, como somos fracos, incapazes de fazer desaparecerem a malícia e nossa tendência intempestiva para o sensível! O espantoso é que, quando ouvimos dizer que a graça age em outros, ficamos enciumados, e não acreditamos que a energia da graça seja capaz de operar no século atual. 6
O que acontece com eles? Primeiro o Espírito, que cumulou de sabedoria os Padres e, como conseqüência da nepsis – a sobriedade e a vigilância – a atenção em tudo e a guarda do intelecto, lhes revelou como descobrir a graça, como uma maravilha, em verdade, no coração mesmo da ciência. Por outro lado, a prece contínua a nosso Senhor Jesus Cristo Filho de Deus [6], devo dizer, não apenas com o intelecto, nem só com os lábios (o que, com efeito, ocorre normalmente de forma espontânea em todos os que escolhem fazer ato de piedade, e do que qualquer um é capaz com facilidade). Esta oração é concedida aos que voltaram seu intelecto inteiramente para a interioridade do homem. E é um deslumbramento. Assim, por dentro, nas profundezas mesmas de seu coração, eles invocaram o santo nome do Senhor esperando a sua piedade, atentos às palavras cruas da oração e só a elas, não percebendo nada mais nem do exterior nem do interior, para manter o intelecto inteiramente sem forma e sem cor. As razões deste trabalho, e sua matéria, se podemos dizê-lo, provêm do ensinamento do Senhor, que tanto dizia: “O Reino dos céus está em vocês [7]”, como dizia: “Hipócrita, purifique antes o interior da taça e do prato, e então o exterior também será puro [8]”. Isto não deve ser tomado na ordem sensível, mas se aplica ao nosso homem interior. Como escreve com justeza o apóstolo Paulo aos Efésios: “É por isso que eu dobro o joelho diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que ele lhes conceda ser em potência fortificados pelo seu Espírito, no seu homem interior, e que ele faça com que Cristo habite em seus corações. [9]” Podemos encontrar testemunho mais claro? Em outra parte: “Cantando, disse ele, e celebrando o Senhor nos seus corações. [10]” Está ouvindo? Ele disse: “no coração”. O que é confirmado pelo Corifeu dos apóstolos: “Até que brilhe o dia, disse ele, e que a estrela da manhã se levante em seus corações [11].” E isto, que é necessário a todo homem votado à piedade, o Espírito Santo o ensina igualmente em muitas páginas do Novo Testamento, como podem perceber os que se debruçam e refletem sobre elas. 7
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Graças a este trabalho dedicado ao Espírito e à ciência, tanto quanto possível ligado à obra dos mandamentos e à ação das demais virtudes éticas, graças ao calor suscitado no coração à invocação do santo nome e pela energia espiritual que brota desta invocação, as paixões são consumidas. “Pois nosso Deus é um fogo que consome o mal.” Pouco a pouco o intelecto e o coração são purificados e unem-se um ao outro. Ora, quando eles estão purificados e unidos, é mais fácil conduzir-se conforme os mandamentos salutares. Logo os frutos do Espírito aparecem na alma, e abundam os bens. Numa palavra, é-nos permitido voltar rapidamente à graça perfeita do Espírito, que nos foi dada no batismo, que está em nós, mas que foi misturada às paixões, como uma brasa em meio às cinzas, e que se incendeia com todo o
[5] Cf. Atos XIX, 2. [6] Cf. I Tessalonicenses V, 17. [7] Lucas XVII, 21. [8] Mateus XXIII, 26. [9] Efésios III, 14-17. [10] Efésios V, 19. [11] II Pedro I, 19.
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esplendor na alma, para que esta seja reconhecida, tenha sua inteligência iluminada e que, por conseguinte esteja terminada, e deificada. A maior parte dos Padres menciona aqui e ali este trabalho em seus escritos. Eles o fazem para aqueles que conhecem a razão. Mas sem dúvida alguns deles previram que nossa geração ignoraria e negligenciaria este estudo salutar. Tendo explicado precisamente o modo prático do estudo por certos métodos naturais, eles não hesitaram em no-lo transmitir, a nós seus próprios filhos, como uma herança paterna. Eles honraram este estudo com diferentes nomes. Eles o chamaram de começo de todo trabalho que praz a Deus, de abundância de bens, de sinal puríssimo do arrependimento, de ação que aproxima da verdadeira contemplação pelo intelecto. E todos eles nos exortam a que nos consagremos realmente a esta obra. Mas eu me lamento com o que acontece aqui, e o sofrimento me corta as palavras. Pois estes livros, e muitos outros ainda, que tratam da atenção e da nepsis e que são chamados de népticos, significam de fato, no amor da sabedoria, o trabalho da purificação, da iluminação e da perfeição, para falarmos como o Areopagita. Todos, da mesma forma, como outros tantos meios e órgãos necessários, vão na mesma direção e têm como único objetivo a deificação do homem. Mas, tanto devido à sua antigüidade como por sua raridade, eles fizeram falta. Permitam-me dizer que eles jamais foram editados. E, se alguns sobreviveram, foram comidos por vermes e deteriorados de todas as maneiras. Eles são mencionados quase como se nunca tivessem existido. Eu acrescentarei que a maior parte dos nossos caíram na negligência, e se ocupam de muitas coisas, quero dizer, das virtudes corporais, das virtudes ativas, ou, a bem dizer, somente dos instrumentos das virtudes, e passam toda a sua vida nisso. A única coisa necessária, a guarda do intelecto e a prece pura, eles sequer sabem que negligenciam, fora de toda ciência. O risco está aí, que faltem totalmente a concisão e a doçura de tal trabalho, que a graça se ensombreça e se extinga, e que com ela seja subtraída a obra que nos une ao nosso Deus. (Como dissemos, esta união era a vontade anterior de Deus, em sua benevolência, desde o princípio. Quanto ao fim, que é o objetivo supremo – a criação em vista do ser, e a economia do Verbo que nos encaminha ao ser-no-bem, e ao serno-bem-eterno – isto é simplesmente o que Deus fez tanto no antigo como no novo Testamento). Aonde, outrora, muitos dos que viviam no mundo, os próprios reis e todos os que passavam seu tempo nos palácios, a cada dia tomados por uma quantidade de encargos e preocupações inerentes aos seus cargos, não perseguiam senão uma única obra, a de orar continuamente em seus corações (como encontramos tantos nas Crônicas), atualmente, devido à negligência e à ignorância, tornou-se raro – e que vergonha! – e bem difícil encontrar tais homens, não apenas dentre os que vivem no mundo, mas mesmo entre os monges e aqueles que vivem em solidão. Uma vez que estão privados desta obra, e embora levem adiante o combate, cada qual como pode, cada qual esforçando-se pela virtude, estes não colherão porém nenhum fruto. Pois sem a lembrança contínua do Senhor, sem o coração grávido desta lembrança, sem o intelecto purificado de todo mal, é impossível dar fruto. Pois foi dito: “Sem mim vocês nada podem fazer”, e também: “Aquele que permanecer em mim dará muitos frutos”. Eu o reconheço, então. Para o fato de faltarem os que se distinguem pela santidade e que vivem mesmo após a morte, para o fato de que são tão pouco os que se salvam nestes tempos, não há outra causa do que esta: nós negligenciamos esta obra que leva à deificação. Se a sua inteligência não for deificada, diz um Padre, é impossível ao homem ser santificado, e nem sequer salvo. O que o Sábio de Deus revela aqui é terrível, até para ser ouvido: ser salvo e ser deificado são uma só e mesma coisa. Mas o mais grave é que estamos privados até mesmo dos livros que poderiam nos levar lá. Ora, sem eles, é quase impossível alcançar o fim. Mas eis que surge João Mavrogordatos, este homem bom, amante de Cristo, plenamente dotado de todas as qualidades mais importantes que conduzem à generosidade, ao amor pelos pobres, à hospitalidade e a todas as virtudes, continuamente ardente de zelo pelo bem comum.
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Foi ele quem, inspirado pela graça de Cristo, que quer salvar e deificar todos os homens, transformou em alegria nossas lamentações e resolveu o insuperável. Com efeito, propondo a cada um os meios para a deificação, ele fez-se por assim dizer pés e mãos a fim de contribuir por meio desta obra ao aconselhamento eterno de Deus, como ele disse. Que glória e que grandeza! Pois aqui está o que jamais foi publicado antes. Eis o que estava oculto, destinado à obscuridade e ao abandono, estes textos esquecido, comidos de vermes, jogados e dispersos por aí. Ei-los aqui, eles que, pela via da ciência, conduzem à pureza do coração, à sobriedade e ao despertar do intelecto, à rememoração da graça que está em nós, e podemos acrescentar: à deificação. Reunindo-os num mesmo livro, João Mavrogordatos os edita à luz do dia. E era preciso. Era preciso que alguém expusesse tudo o que se refere à iluminação divina, e que o fizesse à luz de uma edição. Com isto, de um lado ele alivia aqueles que sabem quantas penas custam a transcrição dos manuscritos e, de outro, simultaneamente ele desperta o amor por sua aquisição, quero dizer o amor ao próprio ato, naqueles que não sabem. Você tem portanto em mãos, caro leitor, graças a ele, sem dificuldade e facilmente, o presente livro espiritual, este livro que é o tesouro da nepsis, a guarda do intelecto, o ensinamento místico da noera proseuchè – a prece espiritual – este livro que é uma admirável exposição da praktiké – a virtude ativa –, um guia da contemplação infalível, o Paraíso dos Padres, a áurea catena das virtudes, este livro que é uma conversa permanente com Jesus, a trombeta que anuncia a graça, em uma palavra o próprio órgão da deificação, o bem, mil vezes desejado acima de todos os outros, meditado e buscado desde muitos anos, porém inencontrável. É por isso que você, leitor, deve sentir-se obrigado pela necessidade e por toda a justiça, de orar ao divino com o coração ardente para seu benfeitor e seus colaboradores, a fim de que também eles, que se deram ao trabalho, alcancem a justa medida da deificação, e sejam os primeiros a provar seus frutos. Mas aqui alguém poderá objetar que os testemunhos deste livro não deveriam ser publicados, uma vez que são estranhos ao entendimento da maioria das pessoas, e que estas coisas não são isentas de perigos. Responderemos em duas palavras. Também nós, caro amigo, não entramos nesta empresa por nossas próprias idéias, mas partindo do exemplo de outros. De um lado, temos o exemplo da Santa Escritura, que pede a todos os fiéis, sem distinção, que orem continuamente e que tenham sempre o Senhor diante dos olhos: seria portanto ímpio dizer que existe um impedimento, ou que é impossível seguir os mandamentos do Espírito, segundo o grande Basílio. Por outro lado, temos o exemplo da tradição escrita dos Padres: de fato, Gregório o Teólogo pede a todos aqueles de quem estava encarregado que se lembrassem de Deus mais do que respirassem. João Crisóstomo consagrou três sermões inteiros à prece contínua do intelecto, e em numerosas falas ele exorta todo mundo a orar sempre. Da mesma forma Gregório o Sinaíta, por onde passava, ensinava este trabalho salutar. E o próprio Deus, ao enviar milagrosamente um anjo do alto, selou esta verdade, fechando aboca do monge que contestava, como poderemos ver ao final deste livro. E que mais dizer, quando mesmo os que vivem no mundo, que passam seu tempo nos palácios imperiais, e que, como dissemos, possuem esta meditação como obra incessante, que dizer quando eles confirmam o fato, sendo capazes por si sós de fechar a boca dos contraditores? E se alguns se desviaram um pouco, o que há de espantoso nisto? Na maior parte das vezes, foi por presunção que eles se perderam, como diz Gregório o Sinaíta. Quanto a mim, penso que a causa desta derivação é a seguinte: eles não seguiram rigorosamente e em tudo o ensinamento dos Padres sobre este trabalho. Mas a causa não estaria no próprio trabalho, longe disto. Pois este trabalho é santo, e é basicamente por meio dele que deveremos ser liberados de todo erro. De fato, diz Paulo, os mandamentos de Deus que conduzem à vida, aplicado segundo a lei, levaram alguns à morte. Mas isto não aconteceu por causa do mandamento. Mas como, então? Porque o mandamento é santo, justo e verdadeiro? Devido à perversidade das tramas do mal? Porque então? Devemos acusar o mandamento divino por causa do pecado de alguns? Devemos também negligenciar este trabalho salutar, porque alguns se perderam? Absolutamente. Nem um, nem outro. Mas, antes de mais nada, tenhamos confiança n’Aquele que disse: “Eu sou o caminho e a verdade”, e coloquemos mãos à obra, com toda a humildade e em estado de luto. Com efeito, se alguém se desembaraçou de sua presunção e do desejo de agradar aos homens, mesmo que seja agredido por toda uma falange de demônios, estes não conseguiriam se aproximar dele, conforme o ensinamento dos Padres.
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Sendo as coisas assim, e como este livro expõe o irreprochável, em tudo e por tudo, e de todos os lados, como foi dito, este convite da Sabedoria será daqui para frente muito oportuno: tomá-lo nas mãos, e proclamar em alto e bom tom o apelo que a todos convoca para a mesa espiritual deste livro. Vocês que não desdenham o festim de Deus, vocês que não buscam pretexto alegando a colheita, os animais e as mulheres, como aqueles que se subtraíram ao convite no Evangelho, venham, venham. Comam neste livro o pão gnóstico da Sabedoria, e bebam o vinho que alegra o coração com toda a inteligência e que o separa de todo o sensível e de todo o inteligível, pela deificação no êxtase. Embriaguem-se da embriaguez que dá a verdadeira sobriedade. Venham, todos vocês que tomam parte da vocação ortodoxa, leigos e monges, vocês que se esforçam por encontrar o Reino de Deus em si mesmos, bem como o tesouro escondido no campo do coração, Jesus Cristo, doce e humilde, a fim de, com a seu intelecto libertado do cativeiro inferior e de sua perdição, e com o coração purificado das paixões pela invocação contínua de nosso Senhor Jesus Cristo e pelas demais virtudes auxiliares que são ensinadas neste livro, vocês estejam unidos a si próprios e através de si próprios a Deus, conforme a oração do Senhor ao Pai, quando ele disse: “Para que todos sejam um como nós somos um”, e que, assim unidos a Ele e inteiramente transformados pela posse e o êxtase do Eros divino vocês sejam plenamente deificados na noera aisthesis – o sentido do intelecto – na plerophoria – a plena certeza indubitável – e que vocês cheguem ao objetivo último de Deus, glorificando o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a Divindade única em sua divina Origem, a ela toda a glória, a honra e a adoração pelos séculos dos séculos. Amém.
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TOMO I, VOLUME I
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ANTÔNIO, O GRANDE († 356) Antônio o Grande, nosso Pai, o Corifeu do coro dos ascetas, viveu no reino de Constantino, por volta do ano 330. Ele foi contemporâneo de Atanásio, que escreveu a história de sua vida. Ele levou ao extremo a virtude e a impassibilidade. Embora tenha sido um homem simples e iletrado, foi-lhe concedido do alto ensinar a sabedoria do Espírito, que instrui os pecadores e as crianças. Com seu intelecto iluminado pela graça desta sabedoria, ele explicou diversos e numerosos princípios espirituais, e aos que o interrogavam ele deu respostas muito sábias, para grande benefício da alma, como podemos ver nos escritos dos Padres do deserto. Além destes testemunhos, ele nos deixou 170 capítulos que estão reportados no presente livro. Que é ele o verdadeiro autor destes pensamentos, João Damasceno e outros o confirmam. A textura das frases exclui a dúvida. Entretanto, ela permite interpretações aos que as examinam minuciosamente. Seja como for, os pensamentos são contemporâneos de uma santa antigüidade. Não é de espantar, assim, que as expressões procedam de uma escrita das mais simples, arcaica e sem pesquisas. O espantoso, é que tamanha simplicidade coloque o leitor no caminho da salvação e de tanto bem, a ponto de nele florescer a convicção, a ponto de nele instilar o regozijo. Direto ao ponto em que brilha a doçura e a certeza da vida evangélica. Aqueles que provarem deste mel em seu intelecto certamente alcançarão este prazer. *
Estes 170 capítulos, atribuídos a santo Antônio, e que constituem o texto inicial da grande Filocalia grega, são a um tempo um paradoxo e um símbolo. O Paradoxo é evidente. O texto, o mais antigo da antologia, possui toda uma fórmula. Ele anuncia os dados e o alcance do combate espiritual. Mas ele é côo que estranho ao apoio bíblico e eclesiástico do corpus filocálico: nenhuma citação direta das Escrituras, nenhuma menção ao nome de Cristo, nenhuma referência à comunidade cristã. Apenas encontramos, no capítulo 141, e como uma breve interpolação, uma confissão das pessoas da Trindade. Mas o símbolo não é menos claro. Existe aí como que um duplo enraizamento da tradição hesiquiasta no nome de santo Antônio e em suas “exortações” que, para a crítica moderna, não são mais do que uma compilação de escritos estóicos tardios revistos por um monge cristão. Ou então se trata da redação direta de um tratado cristão que utiliza premissas estóicas daquilo que os Padres chamarão mais tarde de “filosofia pratica”. Em todo caso, a osmose é total. A esperança cristã repousa inteiramente na “conduta virtuosa”. Simplesmente Deus, a imortalidade, a vida eterna, a salvação, o Reino dos céus, constantemente invocados, mas como que separados do Evangelho, substituem aqui a ataraxia. Assim, a salvação depende menos da redenção do que do princípio da causalidade. O homem é imortal porque é dotado de intelecto e de razão, não porque tenha sido remido pela encarnação do Filho de Deus. Um abismo. Mas um abismo 13
fecundo, cheio de palavras-chave do vocabulário hesiquiasta (o logos e o nous, a razão e o intelecto) que, para os Padres, são as próprias mediações que unem Deus e o homem, desde que a razão se faz carne em Cristo e que o intelecto se resolve em prece do coração e em deificação luminosa. A osmose total não é, assim, gratuita. Mas nestas condições, a atribuição do texto a santo Antônio não poderia ser senão simbólica. Apenas as datas coincidem aproximadamente: do século I ao IV de nossa era para os 170 capítulos, e o II e IV para santo Antônio, que foi nos desertos do Egito o Pai do monaquismo cristão: assim, Antônio e suas exortações apenas têm em comum o fato de serem os primeiros testemunhos daquilo que iria se seguir depois. O lugar dos 170 capítulos à frente da antologia filocálica, por paradoxal que seja, é, portanto, exemplar. Estes capítulos significam no mínimo que o estoicismo, esta esfera fechada em que a um tempo se refinava e petrificava a filosofia antiga, acabou por se abrir à esperança cristã, ou, em todo o caso, por lhe servir de suporte. Ele chegará aos monges, ao longo dos séculos, pelo exercício da humildade e da compaixão evangélicas, atribuindo a “filosofia prática” unicamente a prece do coração, portanto à pura espera da graça. Mas o símbolo está preservado. Na longa história do monaquismo cristão, este texto, a seu modo, corresponde exatamente àquilo que foi a experiência decisiva de santo Antônio: uma gestação.
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TI, VI – ANTÔNIO, O GRANDE - Exortações sobre o comportamento dos homens e a vida virtuosa.
EXORTAÇÕES SOBRE O COMPORTAMENTO DOS HOMENS E A VIDA VIRTUOSA
1. É abusivo dizer que os homens são dotados de razão. Não são racionais aqueles que se deixam ensinar pelas palavras e os livros dos sábios antigos. Mas são racionais aqueles cuja alma é dotada de razão e que são capazes de discernir o que é o bem e o que é o mal. Fugindo de tudo o que é mau e nocivo, eles se consagram ao estudo do que é bom e útil. São eles, e somente eles, que podemos chamar verdadeiramente de homens dotados de razão. 2. O homem dotado de razão na verdade não tem senão uma coisa no coração: obedecer e agradar ao Deus do universo, e conformar sua alma com a única preocupação de lhe ser agradável, dando-lhe graças pela realidade e a força de sua providência por meio da qual ele dirige todas as coisas, seja o que for que lhe aconteça durante a vida. De fato, seria fora de propósito agradecer pela saúde do corpo aos médicos que nos prescrevem remédios amargos e desagradáveis, enquanto recusamos a Deus a gratidão por coisas que nos parecem penosas, como se não soubéssemos que tudo o que acontece é como deve ser, e para nosso bem, pelos cuidados da providência. Pois o conhecimento de Deus e a fé nele são a salvação e a perfeição da alma. 3. A temperança, a resignação, a castidade, a perseverança, a paciência e similares, são as correspondentes potências virtuosas consideráveis que recebemos de Deus para resistir às dificuldades do momento, fazerlhes frente e nos socorrer. Se exercermos e mantivermos estas potências, perceberemos que daí em diante nada mais de difícil, doloroso e intolerável nos acontece, com o pensamento de que tudo é humano e pode ser dominado pelas virtudes que estão em nós. Os que não têm a inteligência da alma não pensam assim, pois eles não compreendem que tudo acontece para o bem e como se deve, para nosso benefício, a fim de que brilhem as virtudes, e que sejamos coroados por Deus. 4. Se você pensa que ter dinheiro e mostrar opulência não passam de aparência ilusória e passageira, se você sabe que a vida virtuosa que agrada a Deus o resgata das riquezas, e se você refletir seriamente nisto e guardar na lembrança, você não mais gemerá, nem se lamentará, você não acusará ninguém, mas em tudo dará graças a Deus, vendo aqueles que são piores do que você apoiarem-se sobre a eloqüência e o dinheiro. Pois este é para a alma um mal tão grave como a cobiça, a ambição e a ignorância. 5. É examinando a si mesmo que o homem dotado de razão experimenta o que lhe convém e lhe é útil, o que é apropriado à alma e lhe é vantajoso, e o que lhe é estranho. E é assim que ele evita o mal que é nocivo à alma, por ser-lhe estranho e separá-la da imortalidade. 6. Quanto mais modestamente vive a pessoa, mais ela é feliz, porque tem poucas preocupações. Ela não precisa se inquietar com servidores e com trabalhadores, ela não procura possuir animais. Pois os que se deixam acossar pelas preocupações e tombam diante das dificuldades que elas lhes ocasionam acabam por desgostar-se de Deus. Mas então este ciúme que não está senão em nós irriga a morte, e ficamos a errar pelas trevas de uma vida de pecado, sem conhecermos a nós mesmos. 7. Não se deve dizer que é impossível ao homem alcançar uma vida virtuosa, mas sim que isto não é fácil. Esta vida não está ao alcance de qualquer um. Mas partilham a vida virtuosa aqueles, dentre os homens, que se consagram à piedade e cujo intelecto é amado por Deus. Pois o intelecto comum está voltado para o mundo, ele é mutante, ele nutre tanto bons como maus pensamentos, ele se altera por natureza e se dirige para a matéria. Mas o intelecto amado por Deus sabe preservar-se do mal que a negligência suscita no homem.
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8. Os homens incultos e ignorantes transformam em zombaria as palavras dos outros e recusam-se a ouvilos quando sua ignorância é repreendida; eles querem que todo mundo seja como eles. Da mesma forma, os homens depravados em sua vida e seu comportamento arrumam-se para que todo o mundo seja pior do que eles; eles imaginam que, em meio a tantos vagabundos, serão considerados irrepreensíveis. A alma descuidada se perde e se suja na malícia que lhe apresenta o deboche, o orgulho, a avidez, a cólera, a agressividade, a fúria, a brutalidade, os queixumes, a inveja, a cupidez, a rapacidade, a dor, a mentira, o prazer, a irresponsabilidade, a tristeza, a preguiça, a doença, a raiva, a vergonha, a fraqueza, o erro, a ignorância, as mentiras, o esquecimento de Deus. É por estes males, e por outros semelhantes, que a pobre alma que se separou de Deus é castigada. 9. Aqueles que desejam levar uma vida virtuosa, piedosa e louvável, não devem ser julgados por seu comportamento, que pode ser simulado, nem por sua conduta, que pode ser enganadora. Mas como os artistas, os pintores e os escultores, é por suas obras que eles revelam sua conduta virtuosa e amada por Deus, e que eles rejeitam como armadilhas todos os prazeres maus. 10. Aos olhos daqueles que possuem um juízo são, ser rico e bem nascido, mas possuir a alma inculta e a vida desprovida de toda virtude, equivale a ser infeliz, assim como é feliz aquele que a sorte fez nascer pobre e escravo, mas cuja vida é ornada de virtudes. Assim como os estrangeiros se perdem pelos caminhos, também os que não têm nenhum cuidado com a vida virtuosa se perdem deixando-se enganar pelas ilusões. 11. Devemos chamar “criador de homens” àquele que é capaz de domar as naturezas incultas a ponto de fazê-las amar a instrução e a cultura. Da mesma maneira, aqueles que transformam os desviados inspirando-lhes uma conduta virtuosa que agrada a Deus, também devem ser chamados “criadores de homens”, pois eles remodelam os homens. Pois a doçura e a temperança são para as almas humanas uma felicidade e uma boa esperança. 12. É preciso que os homens se conduzam em verdade como convém a seu comportamento e sua conduta. Uma vez operado este redirecionamento, torna-se fácil conhecer as coisas de Deus. Com efeito, aquele que venera a Deus com todo seu coração e com toda sua fé, recebe da providência divina a possibilidade de dominar a cólera e a cobiça. Ora, a cobiça e a cólera são a fonte de todos os males. 13. Que leve o nome de homem aquele que é dotado de razão ou aquele que aceita se corrigir. Quem não se corrige é chamado indigno do nome de homem: isto é próprio dos seres inumanos. Devemos fugir destes, pois é impossível àqueles que vivem no mal serem contados entre os imortais. 14. Se verdadeiramente a razão nos acompanha, ela nos torna dignos de sermos chamados de homens. Mas se abandonamos a razão, é apenas pela conformação dos membros e pela voz que diferimos dos animais sem razão. Que o homem inteligente reconheça assim que ele próprio é imortal, e ele terá aversão por toda cobiça desregrada, que é causa da morte para os homens. 15. Cada uma das artes, organizando a matéria que lhe é própria, revela sua virtude. Um trabalha a madeira, outro o bronze, outro o ouro e a prata. Do mesmo modo, nós que ouvimos falar da conduta feliz e virtuosa que agrada a Deus, devemos mostrar em verdade que somos homens dotados de razão por nossa alma, e não apenas pela conformação do corpo. Ora, a alma que é verdadeiramente dotada de razão e amada por Deus conhece diretamente todas as coisas da vida. Ela ora a Deus com todo seu amor e lhe rende graças na verdade, dirigindo a ele todo seu desejo e todos os seus pensamentos. 16. Assim como os pilotos têm um vigia para dirigir o navio e não atirá-lo contra algum banco submarino ou um rochedo, também os que aspiram à vida virtuosa devem examinar cuidadosamente o que fazer e o
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que evitar. Que eles considerem que seu bem está nas verdadeiras leis, as leis divinas, cortando pela raiz as ambições prejudiciais da alma. 17. Assim como os pilotos e condutores de carros, à força de atenção e cuidados, chegam aonde querem, também os que cultivam a vida reta e virtuosa devem ter o cuidado de levar uma vida que convenha e agrade a Deus. Pois aquele que quer, e que compreende que pode se acreditar, toma o caminho da imortalidade. 18. Considere que são livres, não os que a sorte fez livres, mas os que o são por sua vida e seu comportamento. Pois não devemos chamar livres de verdade os príncipes que vivem no mal e no deboche: eles são escravos das paixões da matéria. A liberdade e a felicidade da alma consistem na pureza fiel e no desdém pelo que acontece. 19. Lembre-se de que é preciso sem cessar dar seu testemunho aos olhos dos outros, mas por sua conduta virtuosa e pelas próprias obras. É assim, não pelas palavras mas pelos atos, que os doentes descobrem e reconhecem, em seus médicos, os benfeitores e salvadores. 20. A marca da alma dotada de razão e virtuosa está no olhar, no caminhar, na voz, no riso, nas ocupações e nas conversas. Pois tudo se transforma e se readapta para se tornar mais nobre. O intelecto amado por Deus guarda suas portas, vigilante e sóbrio, interditando a entrada à infâmia dos maus pensamentos. 21. Reflita você mesmo, e reconheça que os magistrados e as autoridades têm poder somente sobre os corpos, mas não sobre a alma. Guarde sempre consigo esta convicção. Se eles ordenam uma violência, ou um absurdo, ou uma injustiça nociva à alma, não devem ser obedecidos, mesmo que maltratem seu corpo, pois Deus criou a alma livre e capaz de decidir por si mesma se ela faz o bem ou o mal. 22. A alma dotada de razão dedica-se a se livrar da ambição, do orgulho, da arrogância, da falsidade, do ciúme, da rapacidade e dos vícios que lhes assemelham. Todos esses vícios são obra dos demônios e de uma vontade má. Mas um esforço e um cuidado perseverantes corrigem tudo isso no homem cujo desejo não se orienta para os prazeres fáceis. 23. Aqueles que vivem com pouco e não procuram tudo obter, escapam aos perigos e não precisam ser vigiados. Quanto aos que dominaram a cobiça em todas as coisas, estes encontram facilmente o caminho que leva a Deus. 24. Não é necessário que os homens dotados de razão possuam muitos relacionamentos. Eles só têm necessidade de relacionamentos úteis, dirigidos pela vontade de Deus. É assim que os homens retornam à luz e à vida eterna. 25. Os que aspiram a uma vida virtuosa amada por Deus devem se afastar do orgulho e de toda glória falsa e vã, e se esforçar para bem endireitar sua vida e seus pensamentos. Pois o intelecto amado por Deus e sempre igual é o caminho que nos eleva a Deus. 26. A ninguém adianta saber falar se lhe falta a conduta da alma que é agradável e apraz a Deus. Mas a fonte de todos os males é o erro, a mentira e a ignorância de Deus. 27. É o cuidado com a vida mais bela e com a alma que torna os homens bons e amados por Deus. Pois aquele que procura a Deus o encontra: ele domina toda cobiça e não se separa da oração. Este homem não teme os demônios.
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28. Os que se perderam por causa das esperanças desta vida e não sabem senão em palavras levar a vida mais bela, são um pouco como pacientes que buscam os remédios e os instrumentos da medicina, mas que não sabem servir-se deles nem se inquietam com isto. É por isso que, quando estamos em falta, não devemos jamais acusar nossos pais ou qualquer outra pessoa, mas apenas a nós mesmos. Pois se a alma se abandona à negligência, torna-se para ela impossível vencer. 29. A quem não sabe discernir o que é bom do que é mau, é impossível julgar quem é bom e quem é mau. Pois o homem é bom se ele conhece a Deus; mas se ele não é bom, ele de nada sabe e nunca terá este conhecimento. Pois o bem é o modo de conhecimento de Deus. 30. Os homens bons e amados por Deus não denunciam o mal de outrem senão na sua presença, e cara a cara. Eles jamais reprovam os ausentes. E eles não aceitam escutar os que assim acusam os outros. 31. Que em suas conversas seja banida toda duração. Pois a modéstia e a reserva ornam o homem dotado de razão, mais ainda do que as virgens. O intelecto amado por Deus é a luz que ilumina a alma, como o sol ilumina o corpo. 32. Em todas as provações que couberem à sua alma, lembre-se de que aos olhos dos que têm o justo cuidado e a vontade de manter em ordem e em segurança o que lhes pertence, não é a posse perecível das riquezas que é considerada agradável, mas as doutrinas retas e verdadeiras: são elas que os fazem felizes. Pois o rico pode ser despossuído e pilhado pelos que são mais poderosos do que ele. Mas a virtude da alma é o único bem seguro e inviolável, o único também que, após a morte, salva a quem o possui. Os que pensam assim não serão arrastados pelos fantasmas da riqueza e dos prazeres. 33. Não convém que homens instáveis e incultos se tenham por eminências. O homem eminente é aquele que agrada a Deus, que se cala na maior parte das vezes, ou que fala pouco e não diz senão o que é preciso e agradável a Deus. 34. Os que aspiram a viver na virtude e no amor de Deus, cuidam das virtudes da alma como de um bem próprio, como de suas próprias delícias eternas. Quanto às coisas que passam, eles desfrutam delas na medida do possível, e conforme o que Deus dá e quer. A tudo eles usam com toda alegria e gratidão, mesmo se estas coisas lhes forem racionadas. Pois comer bem e bastante alimenta o corpo e sua matéria. Mas o conhecimento de Deus, a temperança, a bondade, a bem-aventurança, a piedade e a doçura deificam a alma. 35. Aqueles que, dentre os poderosos, obrigam a que sejam feitas ações deslocadas e nocivas, enquanto que a alma foi criada livre, não são, portanto, senhores. Eles podem aprisionar o corpo, mas não a vontade, pois o homem dotado de razão é seu senhor por Deus seu Criador, que é mais forte do que qualquer poder, qualquer imposição e qualquer potência. 36. Os que consideram como uma infelicidade a perda de dinheiro, de filhos, de servidores ou de qualquer outro bem, saibam que devemos antes de tudo contentarmo-nos com o que Deus dá, e devolver-lhe com entusiasmo e gratidão, quando preciso, sem sermos afetados por esta privação, ou antes por esta restituição, pois aqueles que se servem daquilo que não lhes pertence não cessam de devolver. 37. É obra do homem justo não vender sua liberdade em troca de bens que lhe sejam oferecidos, mesmo que sejam muitos. Pois as coisas da terra são como que um sonho, e a riqueza não passa de uma ilusão incerta e efêmera.
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38. Que os que são verdadeiramente dignos de serem chamados de homens se dediquem a conduzir suas vidas no amor a Deus e à virtude a fim de que sua vida virtuosa brilhe no meio dos outros homens. Assim como a púrpura, por pouca que seja, salpicada sobre a brancura de uma vestimenta, a enfeita de beleza e a faz distinguir e reconhecer, também estes homens manterão com mais segurança o cuidado com as virtudes da alma. 39. Os homens sábios devotam-se a bem examinar sua força e os recursos da virtude que trazem na alma, se eles querem estar prontos para se opor a todas as paixões, na medida de suas possibilidades, que lhes são naturalmente dadas por Deus. Seus recursos, são a temperança face às seduções da beleza e a toda cobiça nociva à alma, a perseverança face às penas e privações, a paciência face ao insulto e à cólera, além das correspondentes virtudes. 40. É impossível que um homem se torne subitamente sábio e bom. É preciso um estudo assíduo, a perseverança, a experiência, o tempo, a ascese, e o desejo pela boa obra. O homem bom e amado por Deus, aquele que em verdade conhece a Deus, não cessa de fazer em abundância tudo o que agrada a Deus. Mas estes homens são raros. 41. Não convém aos menos dotados dos homens, os que se desesperam de si mesmos, tratar com negligência e desdém a conduta virtuosa amada por Deus, sob pretexto de ser-lhes inacessível e fora de alcance. Ao contrário, eles devem colocar nisso todas as suas forças e cuidar de si, pois mesmo que não possam atingir os cumes da virtude e da salvação, entretanto, por seu esforço e seu desejo, ou eles se tornam melhores, ou ao menos não se tornam piores, o que para a alma não é pouco benefício. 42. Por sua natureza racional, o homem se liga a esta faculdade misteriosa e divina da razão. Mas por sua natureza corpórea, ele se aparenta aos animais. Alguns, pouco numerosos, verdadeiramente homens e verdadeiramente dotados de razão, de todo o coração dirigem ao seu Deus e Senhor seus pensamentos e afinidades, e o manifestam por seus atos e por uma vida virtuosa. Mas a maior parte dos homens, que não têm a inteligência da alma, desprezam esta filiação divina e imortal, para se voltar à afinidade com o corpo, afinidade morta, infeliz e passageira, e não pensam senão nas coisas da carne, como os animais sem razão, ligando-se aos prazeres. Assim eles se separam de Deus e, por efeito de sua vontade, separam a alma dos céus e a arrastam para o abismo. 43. O homem dotado de razão, lembrando-se de que participa do divino e que está unido a ele, jamais se apaixonará por seja lá o que for de terrestre e vil. Ele mantém seu intelecto voltado para o que é celeste e eterno. E ele sabe que a vontade de Deus é a salvação do homem, uma vez que Deus é para os homens a causa de todos os bens e a fonte da beatitude eterna. 44. Quando você tiver que se haver com alguém que disputa e combate a verdade e a evidência, corte imediatamente a disputa e afaste-se deste homem cuja inteligência está petrificada. Da mesma forma, com efeito, com que uma água ruim estraga os melhores vinhos, também as conversas sem sentido corrompem aqueles que consagram a vida e o pensamento à virtude. 45. Se nos esforçamos por todos os meios para escapar da morte do corpo, muito mais deveríamos fazer para escapar à morte da alma. Diante daquele que quer ser salvo, não existe, com efeito, outro obstáculo que a negligência e a irresponsabilidade da alma. 46. Aqueles que têm dificuldade em compreender o que lhes é vantajoso e o que lhes é dito a respeito do bem são considerados doentes. Mas quando aqueles que compreendem a verdade discutem
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impudentemente, é a razão que está morta e seu comportamento é selvagem. Eles não conhecem a Deus e sua alma não está iluminada. 47. Deus, com sua palavra, destinou as espécies animais a diferentes usos sucessivos. Algumas devem ser comidas, outras devem servir. E ele criou o homem para contemplar suas vidas e suas obras e para reconhecê-las e interpretá-las. Que os homens se apliquem, assim, a não morrer sem antes contemplar e entender Deus e suas obras, como os animais desprovidos de razão. O homem deve saber que Deus tudo pode, e que nada se opõe Àquele que pode tudo. A partir do nada ele fez, e fez tudo o que quis com sua simples palavra, para a salvação dos homens. 48. O que está no céu é imortal, por causa da bondade inerente ao que é celeste. Mas o que está na terra tornou-se mortal por causa do mal terrestre inerente que está nela. E este mal, pela negligência e pela ignorância a respeito de Deus, atinge aqueles a quem falta a inteligência. 49. A morte, se o homem souber compreendê-la, é imortalidade. Mas para os ignorantes, que não a compreendem, ela é verdadeiramente a morte. Não é esta morte que devemos temer, mas a perdição da alma que está na ignorância de Deus. É isto, para a alma, que é temível. 50. O mal é uma afecção da matéria. Assim, não é possível que o corpo permaneça estranho ao mal. A alma dotada de razão, que compreende isto, ataca este peso da matéria que é o mal. Recusando-se a carregar tal peso, ela se volta para o conhecimento do Deus do universo, considera daí para diante o corpo como um inimigo e um adversário em quem não se pode confiar. É assim que a alma recebe a coroa de Deus, ao superar as provações do mal e da matéria. 51. Se a alma discerne o mal, ela toma aversão a ele como a um animal malcheiroso. Mas se o mal é ignorado, ele é amado por quem o ignora, e então ele captura a este. Pois o mal sujeita a quem o ama. Então o pobre infeliz não vê nem compreende aonde está seu bem, mas pensa que o mal o adorna de belezas, e então se regozija com isto. 52. A alma pura, que é boa, recebe de Deus a luz e o esplendor. Então o intelecto compreende o que é bom e suscita palavras amadas por Deus. Mas quando a alma é suja pela lama do mal, Deus se afasta dela, ou melhor, ela se separa de Deus. Os demônios do mal então penetram em seu pensamento, e começam a lhe sugerir ações ímpias, adultérios, violências, roubos, sacrilégios e outros malfeitos, que são todos obras do demônio. 53. Aqueles que conhecem a Deus enchem-se de todas as bem-aventuranças da bondade. Aspirando às coisas do céu, eles desdenham as coisas desta vida. Tais homens não agradam à maioria, nem tentam agradá-la. Assim, muitos dentre os que não compreendem nada, não apenas os detestam, como zombam deles. Em sua pobreza, eles aceitam suportar tudo isso, sabendo que o que parece um mal à maioria, aos seus olhos é o bem. Pois aquele cujo intelecto se abre às coisas celestes, crê em Deus e compreende que todas as coisas são criações de sua vontade, enquanto que aquele cujo intelecto não se abre, jamais acreditará que este mundo é obra de Deus e que ele foi feito para a salvação do homem. 54. Aqueles que estão cheios do mal e embriagados pela ignorância não conhecem a Deus, pois suas almas não são nem sóbrias nem vigilantes. Ora, Deus é inteligível. Ele não é visível em si, mas ele se manifesta plenamente no visível, como a alma no corpo. É impossível que o corpo se mantenha sem a alma, assim como é impossível que todo o visível, tudo o que é, possa se manter sem Deus.
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55. Porque o homem vem para a existência? Para que, meditando sobre as obras de Deus, ele o contemple e glorifique Aquele que as fez para o bem do homem. Mas é a inteligência que recebe o amor de Deus. Ela é o bem invisível, que Deus concede aos que dela são dignos, por sua conduta virtuosa. 56. Livre é quem não está sujeito aos prazeres, mas domina o corpo pela sabedoria e pela castidade, e se contenta, com toda a gratidão, com os bens que lhe são dados, ainda que sejam racionadíssimos. Pois o intelecto amado por Deus e a alma, quando estão de acordo, pacificam todo o corpo, mesmo conta a vontade deste. Se a alma o quer, toda revolta do corpo é reabsorvida. 57. Quem não se satisfaz com o que possui presentemente para viver, mas quer sempre mais, sujeita-se às paixões que perturbam a alma e lhe impõem pensamentos e imaginações. Pois possuir mais é um mal em si. Assim como uma túnica grande demais atrapalha quem disputa uma corrida, também o desejo de aumentar as riquezas impede a alma de combater e ser salva. 58. As condições nas quais nos encontramos malgrado nós mesmos e sem que o desejemos são uma prisão e um castigo. Assim, ame aquilo que você possui atualmente. Pois se você o assumir de má vontade, você estará punindo a si mesmo por sua própria conta. Na verdade, não existe senão um caminho: o desprezo pelas coisas do mundo. 59. Assim como recebemos de Deus a visão para que possamos distinguir, dentre as coisas que temos diante dos olhos, o que é branco do que é negro, também a razão nos foi dada por Deus para nos permitir discernir o que é bom para a alma. Mas a cobiça, separando-se da razão, engendra o prazer e não permite que a alma seja salva ou que ela se una a Deus. 60. O que é conforme a natureza não é pecado. O pecado é a escolha do mal. Comer não é pecado. Pecado é comer sem dar graças, sem decência nem temperança. Pois convém guardar em vida o corpo fora de toda imaginação perversa. O olhar, se é puro, tampouco é pecado. O pecado está em olhar com inveja, com orgulho ou com indiscrição. É não escutar pacificamente, mas com hostilidade. É não guardar a língua para a ação de graças e a prece, mas deixá-la dizer não importa o quê. É não usar as mãos para socorrer os outros, mas servir-se delas para matar e roubar. Desta forma, cada um dos nossos membros peca por si só, fazendo mal em lugar do bem, contra a vontade de Deus. 61. Se você duvida de que cada uma de suas ações é vista por Deus, considere que você, que é homem e poeira, é capaz de num instante observar e conhecer toda sorte de lugares. Com mais forte razão pode Deus, ele que vê o universo como um grão de mostarda, e que criou e alimentou todas as coisas como quis. 62. Quando você fecha a porta de sua casa e fica só, saiba que um anjo designado por Deus a cada homem estará com você. É este anjo que os gregos chamam de daimon interior. Ele não dorme jamais. É impossível enganá-lo. Ele está sempre com você, ele vê tudo e a escuridão não o atrapalha. Com ele, Deus está em toda parte. Pois não existe lugar nem matéria aonde Deus não esteja, uma vez que ele é maior do que tudo e tem todos os seres em sua mão. 63. Se os soldados são fiéis a César porque César lhes garante o alimento, com muito mais razão devemos nos aplicar a dar graças com nossas bocas, sem jamais nos calarmos, e agradecer a Deus que a tudo criou para o homem. 64. A gratidão e a conduta virtuosa são os frutos do homem que mais agradam a Deus. Ora, os frutos da terra não amadurecem em uma hora: é preciso tempo, a chuva, cuidados. Da mesma forma, os frutos do homem não brilham senão pela ascese, o estudo, o tempo, a perseverança, a obstinação e a paciência. Mas
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mesmo que, ao ver em você estes frutos, alguns o considerem um homem piedoso, desconfie sempre de si mesmo enquanto você viver em um corpo, e considere que nada daquilo que vem de você agrada a Deus. Saiba que, de fato, não é fácil um homem permanecer até o fim puro de toda falta. 65. Nada entre os homens é mais precioso do que a palavra. Assim é que a palavra permite servir a Deus rendendo-lhe graças. Mas se nos servimos dela para dizer o mal e blasfemar, nós condenamos nossa alma. Invocar seu nascimento ou qualquer outra razão, quando se está em falta, é assim obra de um homem insensato; foi livremente e por sua própria conta que ele permitiu uma palavra ruim ou uma má ação. 66. Se nos esforçamos para cuidar das paixões do corpo para evitar a zombaria daqueles com quem encontramos, com mais razão devemos nos esforçar para curar as paixões da alma, uma vez que seremos julgados na presença de Deus, para que não sejamos submetidos à desonra e ao ridículo. Pois nós somos livres. Assim, mesmo quando sentimos em nós o desejo de más ações, não querer fazê-las é possível, está ao nosso alcance levar uma vida que agrade a Deus. Jamais alguém poderá nos forçar a fazer algo de mal, se não quisermos. Combatendo assim, seremos de fato homens dignos de Deus, e viveremos como anjos no céu. 67. Se você quiser, você será escravo das paixões. Se você quiser, e você é livre, você não será sujeito às paixões. Pois Deus o criou livre. E aquele que sobrepuja as paixões da carne recebe a coroa da incorruptibilidade. Pois se não houvesse paixões não haveria virtudes, nem as coroas dadas por Deus aos homens que delas são dignos. 68. Aqueles que não veem onde está seu benefício e não sabem aonde está o bem, são cegos na alma. Seu discernimento foi extinto. É melhor não nos ligarmos a estes, para não cairmos fatalmente nos mesmos erros, cegos e imprudentes. 69. Não devemos nos irritar com aqueles que estão em falta, mesmo se o que fizeram é reprovável e merece um castigo. Mas devemos endireitar os que tombam, em nome da própria justiça. Às vezes é preciso castigá-los, em sua pessoa ou de outro modo. Mas não devemos nos irritar nem nos deixar levar assim, pois a cólera age unicamente pela paixão, e não de maneira judiciosa e justa. Não devemos aprovar aqueles que se deixam levar indevidamente pela piedade. Mas é por causa do bem e da justiça que é preciso castigar os que fazem o mal, nunca pela paixão da cólera. 70. Somente os bens da alma são seguros e invioláveis. São a conduta e o conhecimento virtuosos, e o exercício das boas obras, que agradam a Deus. Pois a riqueza é um guia cego e um conselheiro sem inteligência. Aquele que usa a sua riqueza servindo-se dela para o prazer, perde sua alma insensível. 71. Os homens não devem adquirir nada de mais. Se por acaso eles têm muito, será bom para eles saber que tudo nesta vida é, por natureza, corruptível, tudo desaparece facilmente, se degrada e se destrói. Assim, eles não devem se inquietar com o que quer que aconteça. 72. Saiba que as dores físicas são naturais do corpo, uma vez que este é corruptível e material. Diante de tais sofrimentos, a alma instruída deve armar-se de perseverança e paciência, e não reprovar a Deus por haver criado o corpo. 73. Aqueles que participam dos Jogos Olímpicos não recebem a coroa por vencerem um, dois ou três adversários, mas após terem vencido a todos os que enfrentaram. O mesmo acontece com o homem que quer ser coroado por Deus. Sua alma deve dedicar-se à sabedoria, não somente nas coisas do corpo, mas em tudo o que se refere a perdas e ganhos, invejas, alimentos, a vanglória, as injúrias, a morte e as afecções análogas.
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74. Não busquemos a boa conduta amada por Deus, pelo louvor dos homens. Devemos escolher a vida virtuosa para a salvação da alma. Pois a morte está presente diante dos nossos olhos a cada dia, e as coisas humanas são cheias de incertezas. 75. Está em nosso poder viver sabiamente, mas não está em nosso poder enriquecer. Porque então é preciso condenar a alma, quando ela sonha por um instante com uma riqueza que não temos meios de adquirir? Mas se não desejamos senão a riqueza, porque corremos sem inteligência, ignorando que a humildade precede todas as virtudes, do mesmo modo como a gula e a cobiça das coisas desta vida precedem todas as paixões? 76. Os sábios devem lembrar-se continuamente: se suportamos nesta vida as pequenas penas passageiras, nós os homens usufruiremos após a morte de um imenso prazer e de delícias eternas. Desde logo, aquele que combate as paixões e que quer ser coroado por Deus, se ele cair, não deve se desencorajar, nem permanecer em sua queda desesperando de si. Mas é preciso que ele se levante, retome o combate, e busque novamente a coroa. Até o último suspiro é preciso lembrar-se desta queda que lhe sucedeu. Pois os golpes que o corpo recebe são a armadura das virtudes e asseguram a salvação da alma. 77. As dificuldades da vida propiciam aos homens dignos, aqueles que levam adiante o combate, ser coroados por Deus. É preciso assim que, ao longo de sua vida, eles façam morrer seus membros a todas as coisas do mundo. Pois um morto não se preocupará mais com estas coisas. 78. Não convém que a alma que é dotada de razão e que combate, se deixe ficar facilmente apreensiva e medrosa diante das provas que lhe acontecem, se ela não quiser ser ridicularizada por sua preguiça. Pois a alma perturbada pela imaginação das coisas do mundo esquece o que ela deve a si mesma. São as virtudes da alma que nos abrem o caminho aos bens eternos. A causa dos castigos está no mal que os homens fazem a si mesmos. 79. O homem dotado de razão é combatido pelos sentidos de sua natureza racional, por meio das paixões da alma. Ora, existem cinco sentidos no corpo: a vista, o olfato, a audição, o paladar e o tato. A infeliz alma é capturada pelos cinco sentidos quando ela se submete às quatro paixões que lhes correspondem. Estas quatro paixões são a vanglória, a loucura insensata, a cólera e a lassidão. Portanto, a partir do momento em que, com prudência e reflexão, o homem levou a bom termo o combate e dominou as paixões, ele não é mais combatido. Sua alma está em paz, e ele recebe a coroa de Deus por sua vitória. 80. Dentre aqueles que se encontram num albergue, alguns recebem um leito, outros não o obtêm e deitam-se no chão, onde roncam tanto quanto os que dormem em sua cama. Após passarem a noite e deixarem pela manhã os leitos, eles partem juntos, cada qual levando apenas o que possui. O mesmo acontece com todos os que chegam a este mundo. Tanto os que viveram pobremente quanto aqueles que passaram a vida entre a glória e a riqueza, todos saem da vida como do albergue. Eles não levam consigo nada daquilo que fazia as delícias e a riqueza do mundo. Eles não levam senão suas próprias obras, boas ou más: aquilo que fizeram durante a vida. 81. Só porque você possui um grande poder, não é razão para ameaçar alguém de morte por qualquer coisa. Saiba que, por natureza, também você está submetido à morte, e que a alma se despe do corpo como de sua última túnica. Reconheça isto com clareza. Seja doce, faça o bem, e dê graças continuamente a Deus. Pois aquele que não é complacente não tem em si a virtude.
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82. É impossível e inconcebível escapar da morte. Isto bem o sabem os homens verdadeiramente dotados de razão, dedicados às virtudes e aos pensamentos amados por Deus. Eles recebem a morte sem gemidos, sem medo e sem luto, lembrando-se de que ela é inexorável e que ela liberta dos males desta vida. 83. Não devemos odiar aqueles que negligenciam a conduta virtuosa que agrada a Deus e não se preocupam com a justa doutrina amada por ele, mas lamentá-los, pois eles são privados de juízo, cegos de coração e de reflexão. Eles tomam o mal como bem, e esta ignorância faz com que se percam. Com sua alma sem inteligência, esses infelizes não conhecem a Deus. 84. Recuse-se a conversar sobre a piedade e a vida virtuosa com muitas pessoas. Não digo por maldade, mas porque, pensão eu, você se arrisca a ser ridicularizado por pessoas irracionais. Pois o semelhante unese ao semelhante. Ora, aqueles que se dispõem a escutar estas conversas são poucos. Na verdade, são raríssimos. Assim, é melhor não falar sobre nada, senão daquilo que Deus quer para a salvação dos homens. 85. A alma se compadece do corpo, mas o corpo não se compadece da alma. Assim, quando o corpo está moribundo, a alma sofre com ele. E quando o corpo está vigoroso e se sente bem, a alma experimenta a mesma alegria. Mas quando a alma se põe a refletir, o corpo não acompanha esta reflexão. Ele permanece abandonado a si mesmo. Pois a reflexão é um estado da alma, assim como a ignorância, o orgulho, a perfídia, a cupidez, o ódio, a inveja, a cólera, o desdém, a vanglória, a estima, a discórdia, o sentido do bem. Tudo isto é suscitado pela alma. 86. Conceba as coisas de Deus. Seja piedoso, sem inveja, bom, casto, doce, contente tanto quanto possível, afável, alheio às disputas. Possua estas virtudes e as que lhes assemelham. Pois esta é a fortuna inviolável da alma: agradar a Deus pelo exercício dessas virtudes, não julgar ninguém, não dizer de ninguém: “Fulano é mau, ele pecou”. É melhor nos ocuparmos de nossos próprios males e examinarmos se nossa própria conduta agrada a Deus. Porque afinal, que sentido faz nos preocuparmos se o outro é mau? 87. Um homem verdadeiramente digno deste nome dedica-se à piedade. Ora, é piedoso aquele que não deseja para si o que não lhe pertence. Mas todas as coisas criadas são alheias ao homem. Assim, desprezeas, porque você é a imagem de Deus; e o homem é a imagem de Deus quando sua conduta é reta e agrada a Deus. Mas é impossível ao homem tornar-se tal se ele não renunciar às coisas desta vida. Aquele que possui um intelecto amado por Deus sabe que todo o bem da alma e toda a piedade provêm daí. O homem amado por Deus não se apoia em ninguém quando ele próprio está em falta. Esta é a marca da alma que foi salva. 88. Aqueles que procuram adquirir pela força os bens passageiros, aqueles que acalentam o desejo pelas obras do mal, ignorando a morte e a perdição de suas almas, e que, infelizes, recusam-se a enxergar onde está seu benefício, estes não se dão conta daquilo que os homens deverão sofrer pelo mal que causaram, após sua morte. 89. O mal é uma afecção da matéria. Deus não está em causa. Ele deu aos homens o conhecimento, o saber, o discernimento do bem e do mal, e a liberdade. É a negligência e a irresponsabilidade dos homens que engendram as paixões do mal. Portanto, Deus não é sua causa. Os demônios caíram na maldade depois de uma escolha deliberada. O mesmo acontece com a maior parte dos homens. 90. Aquele que faz da piedade a companhia de sua vida não permite ao mal entrar em sua alma. E se o mal não penetra nela, a alma permanece ao abrigo do perigo e da infelicidade. Nem as enganações do
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demônio, nem os golpes da sorte prevalecerão nestes homens. Pois Deus os livra do mal. Eles vivem sob sua guarda, longe de toda infelicidade, semelhantes a ele. Se os elogiarem, eles rirão de quem os elogia; se os ofenderem, não responderão aos insultos. Pois eles não se comovem com o que é dito ou não dito a respeito deles. 91. O mal anda de mãos dadas com a natureza, como a ferrugem com o ferro, ou as excreções com o corpo. Mas não foi o ferreiro quem fez a ferrugem, nem os pais que fizeram a excreção. Da mesma forma, Deus não criou o mal. Ao contrário, ele deu ao homem o conhecimento e o discernimento, para que ele pudesse fugir do mal, sabendo que este é nocivo e condenável. Assim, quando você ver alguém feliz por ser rico e poderoso, cuidado para não invejá-lo. É o demônio que cria esta ilusão. Mas tenha imediatamente a morte diante dos olhos, e você não cobiçará jamais nem o mal, nem as coisas deste mundo. 92. Nosso Deus deu a imortalidade às coisas do céu e fez mutáveis as coisas da terra. Ele colocou a vida e o movimento no universo. A tudo ele criou para o homem. Assim, não se deixe cativar pelas imagens deste mundo que lhe chegam pelo demônio, quando ele introduz em sua alma maus pensamentos. Mas procure imediatamente os bens celestiais, e diga a si mesmo: “Se eu quiser, eu tenho em mim o poder de rechaçar também este ataque da paixão. Mas se eu não o fizer, é porque quero satisfazer meu desejo.” Continue assim com este combate, que pode salvar sua alma. 93. A vida é a união e a conexão do intelecto, da alma e do corpo. A morte não destrói o que estava unido, mas dissolve seu conhecimento. Pois tudo é salvo por Deus, mesmo depois da dissolução. 94. O intelecto não é a alma, mas um dom de Deus para salvar a alma. O intelecto que agrada a Deus ultrapassa e aconselha a alma. Ele a incentiva a desdenhar tudo o que é efêmero, material e corruptível, e a se apegar aos bens eternos, incorruptíveis e imateriais, a caminhar como um homem num corpo, observando e contemplando através dele as coisas celestes, as coisas de Deus, e todas as coisas deste tipo. O intelecto amado por Deus é assim o benfeitor e o salvador da alma humana. 95. Por meio da dor e do prazer, a alma que está no corpo é imediatamente exposta às trevas e à perdição. A dor e o prazer são como que humores do corpo. Para enfrentá-los, o intelecto amado por Deus aflige o corpo e salva a alma, como um médico que corta e cauteriza. 96. As almas que não são conduzidas pelas rédeas da razão nem governadas pela inteligência capaz de pressionar, atacar e vencer as suas paixões, ou seja, a dor e o prazer, como a animais irracionais, estas almas se perdem, a partir do momento em que a razão é arrastada pelas paixões, assim como o condutor do carro é derrubado pelos cavalos. 97. Não conhecer a Deus, que criou o universo para o homem e que lhe deu o dom da inteligência e da razão, para que o homem ganhe asas para se unir a Deus, concebê-lo e glorificá-lo, é uma grave enfermidade, é a ruína e a perdição da alma. 98. A alma está no corpo. A inteligência está na alma. E a razão está na inteligência. Quando é concebido e glorificado por ela, Deus imortaliza a alma atribuindo-lhe a incorruptibilidade e as delícias eternas, ele que por sua simples bondade fez existir todas as criaturas. 99. Em sua benevolência e bondade, Deus criou o homem livre e lhe deu o poder de agradá-lo, se ele quisesse. Ora, o homem agrada a Deus enquanto não existe mal nele. E se os homens louvam as belas
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obras e as virtudes de uma alma santa e amada por Deus, e se condenam as infâmias e as más ações, quanto mais Deus, que quer que o homem seja salvo. 100. Os bens, o homem os recebe da bondade de Deus. Para isto ele foi criado por Deus. Mas os males é o homem quem atrai para si. É dele que vem a malícia que está nele, a cobiça e a insensibilidade. 101. A alma que perdeu a razão, embora imortal e senhora do corpo, sujeita-se aos prazeres, sem compreender que as delícias do corpo lhe são nocivas. Mas, insensível em sua loucura, ela só pensa nessas delícias. 102. Deus é bom, o homem é mau. Nada é mau no céu, nada é bom na terra. Mas o homem dotado de razão escolhe o melhor. Ele reconhece o Deus do universo. Ele lhe dá graças e o celebra. Diante da morte, ele tem aversão pelo seu corpo, ele não deixa falarem os sentidos, sabendo que eles trabalham para sua perdição. 103. O homem mau quer ter sempre mais, e despreza a justiça. Ele não considera que a vida é incerta, instável e passageira, e que a morte é inflexível e inexorável. Mas, desprovido da graça e sem inteligência, o velho, como madeira podre, não serve mais para nada. 104. É experimentando o que nos entristece que nos tornamos sensíveis aos prazeres e à alegria. Quem não tem sede não sente prazer em beber. Quem não tem sono não tem prazer em dormir. Quem nunca teve tristeza não conhece o sentido da alegria. Da mesma forma, não desfrutaremos dos bens eternos se não desdenharmos os bens passageiros. 105. A palavra é servidora do intelecto. Aquilo que a inteligência quer, a palavra interpreta. 106. O intelecto a tudo vê, mesmo o que está nos céus. Nada o ensombrece, senão o pecado. Mas se ele é puro, nada lhe é inacessível. O mesmo acontece com a palavra: nada lhe é indizível. 107. Pelo corpo, o homem é mortal. Mas pelo intelecto e pela palavra, ele é imortal. Mesmo se você se cala, você pensa. E se você pensa você fala. Pois é no silêncio que a inteligência engendra a palavra. E a palavra de reconhecimento dirigida a Deus é a salvação do homem. 108. Quem diz palavras desprovidas de razão não tem inteligência, pois fala sem compreender. Então considere o que é importante fazer para a salvação da sua alma. 109. A palavra dotada de inteligência e que secunda a alma é um dom de Deus. Do mesmo modo, os discursos cheios de palavrório, que buscam as dimensões do céu e da terra, ou as grandezas do sol e das estrelas, são uma invenção do homem que desperdiça seu esforço. O homem bem falante procura em sua oratória vã o que não serve para nada. É como tirar água com uma peneira. Pois tais homens não poderiam jamais encontrar o que está em causa aqui. 110. Ninguém pode ver o céu nem compreender o que existe nele, a não ser o homem que tem o cuidado de manter a vida virtuosa, que conhece e glorifica Aquele que criou este céu para nossa salvação e nossa vida. Pois este homem amado por Deus sabe que nada existe sem Deus. Deus está em tudo e em toda parte, uma vez que ele é infinito. 111. Assim como o homem deixa o seio materno nu, também a alma deixa, nua, o corpo. Uma o deixa pura e luminosa. Outra coberta de marcas por suas faltas. Outra o deixa negra por todas as suas quedas.
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Desta forma, a alma dotada de razão e amada por Deus, lembrando-se dos males que se seguem à morte, leva uma vida de piedade, a fim de não cair condenada por suas faltas. Quanto aos que não creem, estes vivem na impiedade e no pecado, e desprezam as coisas do além: sua alma é desprovida de inteligência. 112. Assim como, ao sair nu do seio materno, você não se lembra do que era este seio, também ao deixar o corpo, você não se lembrará de como era ele. 113. Assim como, depois de sair do seio materno, você se tornou mais forte e maior no seu corpo, também ao sair do corpo, puro e sem mácula, você se tornará mais forte, você será incorruptível, pois você viverá nos céus. 114. Assim como o corpo nasce quando termina sua gestação no seio materno, também é necessário que a alma saia do corpo, quando ela atinge o limite que lhe foi assinalado por Deus naquele corpo. 115. O que você fez da sua alma quando ela estava no seu corpo ela fará com você quando deixar o corpo. Pois quem, aqui em baixo, fez a alegria e as delícias do corpo, construiu sua própria infelicidade após a morte. Ele condenou sua alma por falta de inteligência. 116. Assim como o corpo não consegue sobreviver se deixar, imperfeito, o seio materno, tampouco a alma, se deixar o corpo sem ter alcançado o conhecimento de Deus por meio de uma conduta virtuosa, poderá ser salva e unir-se a Deus. 117. O corpo unido à alma passa das trevas do seio materno à luz do dia. Mas a alma unida ao corpo permanece ligada às trevas do corpo. Assim, convém ter aversão e endireitar o corpo, na medida em que ele se mostra adversário e inimigo da alma. A abundância e o prazer das comidas despertam no homem as paixões do mal. Mas a temperança reabsorve as paixões e salva a alma. 118. Para o corpo, a visão são os olhos. Para a alma, a visão é a inteligência. Assim como o corpo sem olhos é cego, não vê o sol iluminar a terra e o mar, e não pode usufruir da luz, também a alma que não tem uma boa inteligência e uma conduta virtuosa é cega: ela não conhece nem glorifica a Deus criador e benfeitor do universo, e ela não pode desfrutar de sua incorruptibilidade e de seus bens eternos. 119. A ignorância de Deus é uma anestesia e uma loucura da alma. Pois o mal nasce da ignorância. Mas o bem nos homens provêm do conhecimento de Deus e salva a alma. Portanto, se você se dedica a não realizar suas vontades, se você é sóbrio e vigilante, e se você conhecer a Deus, você levará até as virtudes a sua inteligência. Mas se você se aplica a satisfazer as vontades perversas para não procurar senão o prazer, então, embriagado com sua própria ignorância de Deus, você vai se perder como os animais sem razão, pois você não pensa nos males que o aguardam após a morte. 120. A providência é aquilo que acontece por necessidade divina, como o fato do sol nascer e se por todos os dias, ou de a terra dar frutos. Assim também é dito que a lei é aquilo que acontece por necessidade divina. Mas tudo é feito para o homem. 121. Tudo o que Deus faz em sua bondade, ele o faz pelo homem. Mas tudo o que o homem faz, ele o faz para si mesmo, tanto o bem como o mal. Não se espante com a felicidade dos bandidos, porque também as cidades alimentam seus carrascos sem por isto louvar seus maus pendores, mas servindo-se deles para castigar os que merecem. Da mesma maneira, Deus permite que bandidos oprimam o mundo, a fim de por meio deles corrigir os ímpios. Mas depois, também eles serão entregues ao Juízo, porque não foi para servir a Deus, mas por se deleitarem em sua própria malícia, que eles fizeram mal aos homens.
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122. Aqueles que veneram os ídolos não iriam, infelizes, se perder cada vez mais longe da piedade, se eles pudessem ver e saber com o coração o que de fato veneram. Mas, contemplando a harmonia, a ordem e a providência que presidem a tudo o que Deus fez e faz sempre, eles conheceriam Aquele que a tudo isto fez pelos homens. 123. Em sua desonestidade e sua injustiça, o homem pode matar. Mas Deus não cessa de dar a vida, mesmo àqueles que são indignos dela. Por repartir com abundância e por ser bom por natureza, ele quis que o mundo fosse, e o mundo existiu. E ele existe sempre, para o homem e para sua salvação. 124. Está ao alcance do homem compreender o que é o corpo, ou seja, que ele é corruptível e efêmero. E o mesmo homem compreenderá também o que é a alma, a saber, que ela é divina e imortal, criada pelo sopro de Deus, e unida ao corpo para ser provada e deificada. Ora, quem compreende o que é a alma adota a vida reta que apraz a Deus. Ele não obedece mais ao corpo. Mas ele vê a Deus por meio de sua inteligência, e nela ele contempla os bens eternos que Deus deu à alma. 125. Deus que é bom e reparte sempre em abundância deu ao homem o poder de fazer o bem e o mal, atribuindo-lhe uma consciência a fim de que, contemplando o mundo e o que está no mundo, ele possa conhecer Aquele que a tudo fez pelo homem. Mas o ímpio pode querer conhecer, e não compreender. Pois lhe é dado não crer, lhe é permitido não achar nada, lhe é facultado conceber o contrário da verdade, na medida mesma em que o homem tem o poder de escolher entre o bem e o mal. 126. Esta é a ordem de Deus: quando cresce a carne, a alma se enche de inteligência, a fim de que entre o bem e o mal o homem possa escolher o que quiser. Mas a alma que não escolhe o bem torna-se desprovida de inteligência. Assim, todos os corpos têm uma alma, mas não podemos dizer que toda alma tenha intelecto. Pois o intelecto amado por Deus cabe aos homens sábios, santos, justos, puros, bons, misericordiosos, e aos homens piedosos. E a presença do intelecto é para eles um socorro no caminho para Deus. 127. Uma única coisa não é possível ao homem: tornar-se imortal. O que lhe é possível é unir-se a Deus, se ele compreende que pode. Se ele o quiser, com efeito, se o conceber, crer, amar, o homem, por uma conduta virtuosa, torna-se companheiro de Deus. 128. O olho contempla o visível, e o intelecto concebe o invisível. Pois o intelecto amado por Deus é a luz da alma. Aquele cujo intelecto é amado por Deus tem seu coração inundado de luz e vê a Deus com sua inteligência. 129. Ninguém é mau, se for bom. Mas quem não é bom, certamente está entregue ao mal e ama o corpo. Ora, a primeira virtude do homem é o desdém pela carne. Separar-se do efêmero, do corruptível e do material, se for de livre e espontânea vontade e não por necessidade, faz de nós os herdeiros dos bens eternos e incorruptíveis. 130. Quem possui inteligência sabe aquilo que é, a saber, que o homem é corruptível. Ora, aquele que conhece a si mesmo sabe que todas as coisas são criaturas de Deus e que foram criadas para a salvação do homem. Pois está ao alcance do homem ter uma justa concepção de todas as coisas e sobre todas elas possuir uma fé justa. Este homem sabe então com toda certeza que aqueles que desprezam as coisas do mundo não precisam fazer muito esforço, mas recebem de Deus depois da morte as delícias e o repouso eternos. 131. Assim como o corpo sem a alma é morto, também a alma que não é dotada de inteligência é estéril e não pode ser herdeira de Deus.
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132. Deus só escuta o homem. É somente ao homem que Deus se revela. Deus ama o homem, até o ponto de fazer dele um deus. Somente o homem é digno de adorar a Deus. É para o homem que Deus se transfigura. 133. É para o homem que Deus fez o céu adornado de estrelas. Para o homem ele fez a terra. E os homens a cultivam para si mesmos. Os que não percebem esta providência de Deus têm a alma desprovida de inteligência. 134. O bem não é visível, assim como as coisas do céu. Mas o mal é visível, como as coisas da terra. O bem é aquilo que não se pode comparar. Assim, o homem que possui inteligência escolhe o melhor. Pois somente ao homem Deus e suas criaturas são inteligíveis. 135. O intelecto se manifesta na alma, e a natureza no corpo. A inteligência é a deificação da alma, mas a natureza do corpo é a dissolução. Assim, em todo corpo existe uma natureza. Mas nem toda alma possui inteligência, e é por isso que nem toda alma é salva. 136. A alma está no mundo, pois foi engendrada. Mas o intelecto está acima do mundo, pois ele não foi engendrado. A alma que conhece o mundo e que quer ser salva traz em si constantemente uma lei inviolável. Ela toma consciência de que o combate e a provação acontecem agora, de que não lhe é permitida uma conciliação no Juízo e de que ela se perde ou se salva por causa do menor prazer perverso. 137. Deus fundou sobre a terra o nascimento e a morte. E ele fundou no céu a providência e o destino. A tudo ele fez para o homem e sua salvação. Dispondo de todos os bens, Deus criou para os homens o céu, a terra e seus elementos, por meio dos quais lhe é facultado o usufruto destes bens. 138. O que é mortal está subordinado ao que é imortal. Mas o que é imortal está a serviço do mortal, ou seja, os elementos do mundo estão a serviço do homem graças ao amor que, em sua natural bondade, o Deus criador leva ao homem. 139. Aqueles que nasceram pobres e que não têm o poder de prejudicar ninguém, não poderão ser contados dentre os que traduzem a piedade em obras. Mas aquele que tem o poder de prejudicar e se recusa espontaneamente a empregá-lo para fazer o mal, e que, ao contrário, trata com doçura os mais humildes por amor a Deus, este receberá os bens em retorno, logo após a morte. 140. Graças ao amor que leva o homem a Deus que nos criou, são numerosas as vias que levam o homem à salvação, que atraem as almas e as elevam até os céus. Pois as almas humanas recebem as recompensas pela virtude, e os castigos por suas faltas. 141. O Filho está no Pai, o Espírito Santo está no Filho, e o Pai está em um e no outro. É pela fé que o homem conhece tudo o que é invisível e inteligível. A fé é o assentimento voluntário da alma. 142. Aqueles a quem uma necessidade ou as circunstâncias obrigaram a se atirar num rio caudaloso serão salvos se forem sóbrios e vigilantes. Pois mesmo que estejam a ponto de se perder, e ainda que as correntes sejam violentas, eles poderão se salvar agarrando-se a qualquer coisa na margem. Mas os que estão embriagados, ainda que saibam nadar com perfeição, vencidos pelo vinho afogam-se na correnteza e desaparecem do mundo dos vivos. Da mesma forma, a alma atirada aos redemoinhos e aos turbilhões das correntezas desta vida, se ela não se conhece ao emergir do mal da matéria, se ela, que é divina e imortal, não sabe que não está ligada à matéria efêmera, frágil e mortal senão com o intuito de ser aí provada, e se em sua perdição ela se deixa arrastar pelos prazeres do corpo, então, desprezando a si mesma, ébria de
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ignorância, incapaz de se assumir, ela se perde e é levada para longe dos que se salvam. Como um rio, de fato, o corpo muitas vezes nos leva a prazeres que não têm cabimento. 143. A alma dotada de razão, que mantém firmemente sua boa resolução, conduz como um cavalo o ardor e o desejo, suas paixões privadas de razão. Se ela as domina, pressiona, se assenhora delas, ela é coroada e julgada digna da vida no céu. Ela recebe de Deus que a criou a recompensa por sua vitória e suas provações. 144. A alma verdadeiramente dotada de razão, quando vê a felicidade dos bandidos e a prosperidade dos indignos, não se perturba imaginando aquilo que eles desfrutam nesta vida, como aqueles que, dentre os homens, são desprovidos de razão. Pois ela conhece claramente a instabilidade da fortuna, a incerteza da vida presente, a brevidade da existência e a integridade do Juízo. Esta alma crê que Deus não a esquecerá e lhe dará o alimento de que ela necessita. 145. A vida do corpo e o desfrute dos bens terrestres obtidos pelas riquezas e poder, são a morte da alma. Mas o sofrimento, a paciência, a pobreza assumida com ação de graças, estas são a vida e as delícias eternas da alma. 146. A alma dotada de razão não concebe senão desdém pela criação material e por esta vida efêmera. Ela escolhe as delícias do céu e a vida eterna, que ela recebe de Deus por sua conduta virtuosa. 147. Quem usa uma roupa suja de barro, suja assim a roupa de quem se encosta nela. Da mesma forma, os desonestos cuja intenção e conduta não são direitos, quando se encostam nas pessoas simples e lhes dizem o que não deve ser dito, sujam suas almas como a lama, com aquilo que lhes fazem ouvir. 148. O começo do pecado é a cobiça com a qual se perde a alma dotada de razão. Mas o começo da salvação e do Reino dos céus é o amor que surge na alma. 149. Se o ferro é negligenciado e não recebe a manutenção devida, à força de permanecer sempre abandonado sem servir a nada, acaba comido pela ferrugem e já não tem mais nem utilidade nem beleza. O mesmo acontece com a alma. Se ela permanece inerte, se não se dedica a viver na virtude e a se voltar para Deus, se ela se priva da proteção divina por causa de suas más ações, em sua negligência ela se destrói sob o efeito do mal que ataca a matéria do corpo como o ferro se destrói sob o efeito da ferrugem, e não possui mais nem beleza nem utilidade em vista da salvação. 150. Deus é bom, impassível, imutável. Mas se nós consideramos razoável e verdadeiro que Deus não muda, podemos nos perguntar como ele se alegra com os bons e se zanga com os maus, como se irrita com os pecadores e é benevolente quando homenageado. A resposta é que Deus não se alegra nem se irrita, pois alegrar-se e entristecer-se são paixões. Da mesma forma, não há como homenageá-lo com presentes, pois então ele seria dominado pelo prazer. Ora, é impossível, a partir das coisas humanas, ver no divino o bem e o mal. Deus é bom, e ele não nos faz senão o bem, jamais o mal, pois em tudo isto ele permanece sempre igual. Também nós, se, por nossa semelhança, perseveramos no bem, também nós nos unimos a Deus. Mas se, por dissenso, nos entregamos ao mal, nós nos separamos de Deus. Vivendo na virtude, ligamo-nos a Deus; mas levados ao mal, fazemos dele nosso inimigo, cuja irritação não é gratuita, uma vez que os pecados impedem a Deus de brilhar em nós e nos atiram aos demônios que nos castigam. Se, pelas orações e pelo bem que fazemos, obtemos a absolvição de nossas faltas, não é por termos honrado a Deus ou tê-lo feito mudar, mas porque, curando nosso próprio mal com nossas ações e nosso retorno ao divino, desfrutamos novamente de sua bondade. Isto equivale a dizer então que Deus se afasta dos desonestos, e que o sol se esconde diante dos que são privados de visão.
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151. A alma dotada de piedade conhece o Deus do universo. Pois a piedade não é outra coisa do que cumprir a vontade de Deus, vale dizer, conhecê-lo sendo generoso, sábio, doce, benevolente tanto quanto possível, afável, cordato, em suma, fazendo tudo o que agrada à sua vontade. 152. O conhecimento de Deus e o temor a Deus são o remédio para as paixões da matéria. De fato, quando a alma é habitada pela ignorância de Deus, as paixões não podem ser curadas; elas permanecem nela e a corrompem. É como uma ferida inveterada carcomida pelo mal. Mas Deus não é a causa disto, ele que transmitiu ao homem a ciência e o conhecimento. 153. Deus cumulou o homem de ciência e conhecimento. Pois ele se dedica a purificá-lo das paixões e do mal voluntário, e ele quer, em sua bondade, fazer o mortal alcançar a imortalidade. 154. Em uma alma pura cativa de Deus, o intelecto vê verdadeiramente o Deus que não foi engendrado, o Deus invisível e inefável, o único puro para os corações puros. 155. A coroa da incorruptibilidade, a virtude, a salvação do homem, consiste em suportar as adversidades com coragem e gratidão. Dominar a cólera, a língua, o ventre e os prazeres, é também um grande auxílio para a alma. 156. É a providência divina que dirige o mundo. Nenhum lugar está privado dela. A providência é a razão absoluta que modelou a matéria para dela fazer o mundo. Ela é o criador e o artesão de tudo o que existe. Pois é impossível que a matéria tenha sido organizada sem o poder decisivo da razão, que é a imagem, a inteligência, a sabedoria e a providência de Deus. 157. A cobiça consciente é a raiz das paixões daqueles aparentados às trevas. A alma que tem esta visão da cobiça não conhece a si mesma. Ela ignora ter sido formada pelo sopro de Deus. Ela assim é arrastada ao pecado, sem considerar, por falta de inteligência, os males que se seguirão à morte. 158. A recusa de Deus e o amor à vanglória são uma grave e incurável doença da alma, e sua perdição. Pois o desejo do mal é a privação do bem. Ora, o bem consiste em fazer abundantemente tudo o que é bom e agrada ao Deus do universo. 159. O homem é o único ser capaz de receber a Deus. Ele é o único, dentre os seres vivos, com quem Deus conversa, à noite por meio dos sonhos, de dia através da inteligência. Assim, continuamente, ele anuncia e apresenta previamente aos homens que são dignos disto os bens que os esperam. 160. Nada é difícil para quem crê e quer compreender a Deus. Se você deseja contemplá-lo, observe a ordem do mundo e a providência que rege por meio da razão divina tudo o que foi criado e tudo o que existe. Observe que tudo foi feito para o homem. 161. É chamado de santo aquele que é puro de todo mal e de todas as faltas. Não haver nenhum mal no homem é de fato um alto grau de virtude, que agrada a Deus. 162. O nome designa o ser dentre todo os demais. Seria inconcebível que Deus, sendo um só, tivesse outro nome. Pois o nome de Deus significa: “Aquele que não teve começo e que a tudo fez para o homem”. 163. Se você tem más ações na consciência, expulse-as da alma, à espera do bem. Pois Deus é justo e ama o homem.
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164. O homem conhece a Deus e é conhecido por Deus na medida em que se esforça para jamais separarse dele. E o homem não se separa de Deus quando é bom e domina todo prazer, não por falta de recursos, mas por vontade e temperança. 165. Faça o bem a quem lhe fez o mal, e você terá a afeição de Deus. Não acuse seu inimigo diante de ninguém. Pratique a caridade, a reserva, a temperança, e as virtudes análogas. Pois nisto consiste o conhecimento de Deus: seguir seu exemplo, pela humildade e as virtudes desta ordem. Porém estas obras não estão ao alcance de qualquer um, mas apenas das almas dotadas de inteligência. 166. Por causa daqueles que, em sua impiedade, ousam dizer que existe uma alma nas plantas naturais e nas cultivadas, eu escrevo este capítulo endereçado aos mais simples. As plantas tem vida física, mas não alma. O homem é chamado de animal dotado de razão, porque ele possui o intelecto que é capaz de receber a ciência. Quanto aos outros animais, que vivem sobre a terra e nos ares, eles são dotados de voz, porque eles possuem um espírito e uma alma. Todos os seres que crescem e declinam são seres vivos, a partir do momento em que vivem e crescem, mas nem todos possuem alma. Existem quatro espécies dentre os seres vivos. Uns são imortais e possuem alma, como os anjos; outros possuem um intelecto, uma alma e um espírito, como os homens; outros possuem um espírito e uma alma, como os animais. E outros possuem apenas a vida, como as plantas. Nestas, a vida se organiza sem alma, nem espírito, nem intelecto, nem imortalidade. Mas as demais espécies não poderiam existir sem a vida. Por outro lado, toda alma, e inclusive toda alma humana, está em permanente movimento de um lugar para outro. 167. Quando a idéia de um prazer se apoderar da sua imaginação, vigie para não se deixar invadir por ela. Apresse-se a se lembrar da morte e observe o quanto será melhor para você saber que superou mais esta perdição do prazer. 168. Assim como a paixão é inerente ao nascimento – pois tudo o que vem à vida está destinado à corrupção – também o mal é inerente à paixão. Portanto, não diga que Deus não pode extirpar o mal: os que dizem isto não passam de insensatos e tolos. Pois seria preciso que Deus suprimisse a própria matéria, porque as paixões são feitas de matéria. Deus suprimiu o mal entre os homens dando-lhes o intelecto, a ciência, o conhecimento, o discernimento do bem, a fim de que, sabendo o quanto o mal nos é nocivo, possamos dele fugir. Mas se o homem se separa de seu intelecto, então ele passa a seguir o mal e a nele se glorificar, como se estivesse lutando apanhado numa rede, incapaz de levantar a cabeça, e de ver e conhecer a Deus, que criou todas as coisas para a salvação e a deificação do homem. 169. Os seres mortais se recusam a conhecer antecipadamente sua morte. A imortalidade é dada à alma santa pelo bem que ela traz em si. Mas a alma insensata e infeliz encontra a morte por abrigar em si o mal. 170. Quando você se recolhe à sua cela dando graças, relembrando as benesses de Deus e de toda sua Providência, você se regozija por estar cheio de bons pensamentos, e o sono do seu corpo é a vigilância da sua alma. Fechar os olhos é uma verdadeira visão de Deus. E o seu silêncio, que é a gestação do bem, fazendo-o ouvir o louvor que você ergue a ele, dá glórias ao Senhor do universo. De fato, quando o homem se separa do mal, sua simples ação de graças agrada mais a Deus do que todos os sacrifícios preciosos. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém.
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ISAÍAS, O ANACORETA
Nosso santo Padre Isaías o anacoreta viveu ao redor do ano 370. Ele foi contemporâneo do Abade Macário o Grande. Noite e dia ele meditava sobre as sagradas Escrituras e, bebendo das fontes da salvação a água abundante da sabedoria espiritual, ele redigiu muitos textos belíssimos que, sob diferentes aspectos sempre úteis à alma, constituem todo um livro. Tomando à parte este pequeno tratado, nós o propomos àqueles que desejam trabalhar a guarda de seu intelecto. Pois ele ensina em termos breves como refutar as sugestões dos pensamentos, como possuir uma consciência irreprochável, como meditar em segredo e manter em perfeita impassibilidade e conhecimento de causa as três partes da alma.
De todos os Isaías mencionados nas fontes monásticas egípcias dos séculos IV e V, o mais célebre é o autor de tratados ascéticos que se espalharam por todo o Oriente cristão. Infelizmente, não encontramos nestes tratados muitas informações autobiográficas. Sabemos apenas que o abade Isaías começou sua vida monástica no Egito, provavelmente em Sceta, aonde esteve em relação com diversos personagens mencionados nas Sentenças dos Padres do Deserto: João, Anoub, Poêmio, Paphnúcio, Amoun, Pedro, Lot, Agatão, Abrahão, Sisoés, Or, Atreu. Talvez tenha sido discípulo e Ammoés e Aquilas. Quando se tornou ele mesmo um ancião, já estava cercado de discípulos, dentre os quais destacou-se um de nome Pedro que recolheu cuidadosamente seus ensinamentos para por sua vez transmiti-los aos seus próprios discípulos. Do Egito, onde se achava ainda em 431, Isaías foi para a Palestina, vindo a morrer recluso num mosteiro perto de Gaza em 11 de Agosto de 491, sem haver aderido ao Concílio de Calcedônia [1]. 13
A obra escrita de Isaías é apresentada em seções ou capítulos denominados logoi, cujo número e ordem variam bastante nos manuscritos e edições. Também o conteúdo de cada qual às vezes varia de uma coletânea a outra. É porque a maior parte dos logoi são compilações de trechos díspares nos quais reconhecemos sentenças, apoftegmas, exortações morais ou cartas endereçadas seja a um discípulo, seja a um grupo de monges. É provável que o conjunto que possuímos tenha sido reunido e colocado em ordem por Pedro no fim da vida do mestre ou logo após sua morte. R. Draguet apontou na obra de Isaías diversos copticismos, mas se certas palavras do mestre foram pronunciadas em copta, é quase certo que o conjunto dos escritos tenha sido redigido em grego. Em todo caso, o Ascéticon copta que conhecemos foi seguramente traduzido do grego, assim como o Ascéticon siríaco.
[1] Esta ao menos é a tese proposta por G. Krüger e normalmente admitida hoje em dia, apesar das objeções formuladas por R. Draguet. 13
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Estreitamente ligada e aparentada a toda a literatura apoftegmática, a obra de Isaías é interessante, em primeiro lugar porque ela nos traz um eco fiel do ensinamento dos grandes monges do Egito, mas com um caráter mais didático e mais sintético. Através das diversas recomendações do ancião, percebemos como uma filigrana o motivo que os inspira e a preocupação essencial do anacoreta do deserto: como encontrar e manter continuamente a hesychia, a bem-aventurada quietude indispensável ao monge? Luta contra os pensamentos, leitura e meditação das Escrituras, trabalho manual e austeridades, todas as observâncias e ocupações prescritas são regradas e medidas de modo a assegurar ao solitário as condições mais favoráveis à verdadeira liberdade do coração. Isaías não desdenha descer até os detalhes mais minuciosos da vida cotidiana, mas tampouco teme abordar as realidades mais profundas da vida espiritual. Ele insiste constantemente nas disposições interiores: tudo deve ser feito “com ciência”, ou seja, com discernimento, retidão e pureza de intenções. A humildade, virtude primeira e fundamental, é mencionada muitas vezes, mas é mais freqüentemente designada por seus efeitos, em especial pela “não-estima” de si e o afastamento da vontade própria.
Tudo isto já constava do ensinamento dos Padres do deserto, mas encontramo-lo em Isaías sob uma forma original e com um cunho pessoal que revelam um discípulo que se tornou um mestre eminente da espiritualidade. Podemos admirar especialmente sua discrição e seu equilíbrio, seja nas relações entre o corporal e o espiritual ou nas exigências respectivas da vida solitária e da vida comunitária.
Enfim, notaremos o lugar central ocupado por Cristo na ascese, concebida como uma imitação fiel de Jesus em sua vida, sua paixão e sua morte. O tema de “subir na cruz”, que parece ser uma descoberta de Isaías, pois não o encontramos em parte alguma antes dele, é ligado ao ensinamento de são Paulo sobre o batismo que nos identifica ao Cristo crucificado. Toda ascese leva a uma libertação das paixões que, em Isaías, nada tem de estóico, pois se trata do desabrochar pleno da vida do Espírito naquele que ama o Senhor Jesus com “inteiro amor”.
A obra de Isaías é o fruto de uma rica meditação das Escrituras com um recurso freqüente às interpretações alegóricas. Além Ada influência predominante dos Padres do deserto, notaremos ainda a de Evagro, que é inegável. Isaías certamente irradiou poderosamente em todas as Igrejas do Oriente. Quando em vida, ele teve amigos tanto nos meios que haviam aderido ao Concílio de Calcedônia como entre os que não o haviam aceitado. Para todos os cristãos, ele permanece um mestre da autêntica espiritualidade.
Todos os textos de Isaías inseridos na Filocalia acham-se na tradução grega de Augustinos.
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CAPÍTULOS SOBRE A GUARDA DO INTELECTO
1. Existe no intelecto a cólera conforme a natureza (que é perdoada) contra as paixões. Sem a cólera, não haveria pureza no homem, se ele não se irritasse contra tudo o que nele é semeado pelo Inimigo. Quando Jó passou por isto, ele injuriou seus inimigos dizendo-lhes: “Infames e desprezíveis, desprovidos de todo bem, vocês que eu considero indignos de se misturar aos cães de meus rebanhos. [2]” Quem deseja obter a cólera conforme a natureza, deve afastar todas as suas vontades, até que ela se estabeleça no estado natural do intelecto. 14
2. Se, estando a ponto de afastar o Inimigo, você o vê fraquejar e bater em retirada, não deixe que seu coração se rejubile, pois a malícia dos demônios vem depois deles. De fato, eles preparam uma guerra pior do que a primeira: eles a deixam na retaguarda da cidadela, com ordens para não se mexer; se você se levantar para marchar de encontro a eles, eles fogem mostrando fraqueza. Se neste momento seu coração se gloria por tê-los perseguido, e se você deixar a cidadela, levantar-se-ão alguns que estavam na retaguarda e outros adiante, que cercarão a pobre alma sem fuga possível [3]. A cidadela é a oração. A resistência, a resposta de Jesus Cristo. A marcha é a cólera. 15
3. Devemos nos manter, bem-amados, no temor a Deus, guardando e observando a prática das virtudes, sem escandalizar nossa consciência, mas vigiando-nos no temor a Deus, até que a própria consciência se liberte conosco para realizar a união entre ela e nós; então ela se tornará nossa guardiã, mostrando-nos cada ponto em que falhamos. Se não a obedecermos, ela se afastará de nós e nos abandonará, e nós cairemos nas mãos dos inimigos, que não terão mais piedade, como ensina nosso Mestre quando diz: “Entre em acordo com seu adversário enquanto você ainda está a caminho [4]”, etc. Diz-se que a consciência é um adversário, porque ela se opõe ao homem quando ele quer satisfazer as vontades da carne, e se o homem não a escuta, ela o entrega aos seus inimigos. 16
4. Quando Deus quer que o intelecto se submeta a ele com todas as suas forças e que ele não tenha outro sustento do que ele, ele o fortalece, dizendo: “Não tema, Jacó, meu filho, pequeno Israel [5]”, e também: “Não tema, pois eu o resgatei, eu o chamei por seu nome, você é meu. Se você atravessar os rios, eu estarei com você, e as águas não o submergirão. Se você atravessar o fogo, você não será queimado, as chamas não o consumirão, pois eu sou o Senhor seu Deus, o Santo de Israel, Aquele que salva. [6]” 17
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5. Se então o intelecto escutar estas palavras de incentivo, ele desafiará o Inimigo, dizendo: “Quem é este que me dá combate? Que se apresente diante de mim! Quem é este que me julga? Que se aproxime de mim! Eis que o Senhor é meu socorro, quem me prejudicará? Pois todos se desgastarão, como uma roupa velha comida de vermes. [7]” 19
6. Se seu coração realmente detesta o pecado, ele é um vencedor que se afastou de tudo o que faz nascer o pecado. Coloque o castigo diante de seus olhos e saiba que seu defensor permanece com você. Se você não o entristecer, mas chorar em sua presença dizendo: “Só você possui a misericórdia para me redimir, Senhor, pois eu sou incapaz de escapar das mãos dos inimigos sem seu auxílio”, e se você vigiar seu coração, ele o preservará de todo mal. [2] [3] [4] [5] [6] [7]
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Jó XXX, 1. Cf. Josué VIII. Mateus V, 25. Isaías, XLI, 14. Isaías, XLIII, 1-3. Isaías, L, 8-9.
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7. O monge deve fechar todas as portas de sua alma, ou seja, seus sentidos, para não cair por sua causa. E quando o intelecto percebe que ele não está mais sob o poder de ninguém, ele se prepara para a imortalidade reunindo seus sentidos e fazendo deles um só corpo. 8. Se o intelecto se liberta de todas as esperanças do mundo das coisas visíveis, é o sinal de que o pecado está morto em você. 9. Se o intelecto é libertado, aquilo que o separa de Deus desaparece. 10. Se o intelecto é libertado de todos os seus inimigos e celebra o sétimo dia, ele está em outro mundo, pensando nas coisas novas e incorruptíveis. Daí em diante, “aonde o corpo estiver, aí se reunirão as águias. [8]” 20
11. Os demônios contêm suas enganações por um tempo, esperando que o homem relaxe seu coração imaginando ter um descanso, e assim, de um só golpe, eles se precipitam sobre a pobre alma e a capturam como um pardal [9], e se apoderam dela humilhando-a sem piedade com todos os pecados cujo perdão é mais difícil do que aqueles pelos quais ela rogava inicialmente. Permaneçamos assim no temor a Deus e vigiemos nosso coração, cumprindo com nossa ascese e guardando as virtudes que fazem obstáculo à malícia dos inimigos. 21
12. Nosso Senhor Jesus Cristo, conhecendo a grande crueldade [do demônio] e cheio de piedade pela raça dos homens, ordenou com firmeza de coração: “Estejam prontos a toda hora, pois vocês não sabem a que horas virá o ladrão [10], para que ele não os encontre adormecidos. [11]” E também: “Vigiem para que seus corações não fiquem pesados pela glutoneria, a embriaguez e as preocupações da vida, e para que a hora não chegue de surpresa. [12]” Domine seu coração vigiando seus sentidos, e se sua memória estiver em paz com você, você capturará os ladrões que a roubam, pois aquele que examina rigorosamente seus pensamentos reconhece aqueles que querem entrar apenas para sujar tudo. Com efeito, eles perturbam o intelecto para torná-lo distraído e preguiçoso. Mas aqueles que compreendem sua malícia permanecem imperturbáveis, orando ao Senhor. 22
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13. Se o homem não odeia toda atividade deste mundo, ele não poderá servir a Deus. Este serviço não é outra coisa do que não ter nada estranho no intelecto quando rezamos para ele, nenhum prazer sensível quando o louvamos, nenhuma malícia quando o cantamos, nenhum ódio quando o adoramos, nenhuma inveja má que nos entrave quando conversamos com ele ou quando nos lembramos dele. Pois todas estas trevas formam uma muralha que envolve a pobre alma impedindo-a de servir a Deus com pureza enquanto permanecer aí. Elas a seguram no ar e não a deixam ir ao encontro de Deus para louvá-lo em segredo, orando na suavidade do coração a fim de ser iluminada por ele. É por isso que o intelecto fica obscurecido e não consegue progredir conforme a Deus, por não ter tido o cuidado de afastar estas coisas com ciência. 14. Quando o intelecto resgatar as faculdades da alma das vontades da carne e as fizer atravessar o mar, a coluna da divindade separará a alma das vontades da carne; então, se Deus permitir que a arrogância das paixões se lance sobre a alma tentando manter em pecado suas faculdades, e se o intelecto suplicar a Deus em segredo incessantemente, ele enviará seu socorro e dissipará tudo de um só golpe.
[8] Mateus, XXIV, 28. [9] Lamentações, III, 51. [10] Mateus, XXIV, 42-43 [11] Marcos XIII, 36. [12] Lucas XXI, 34.
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15. Eu lhe suplico, enquanto você viver num corpo, não relaxe o coração. Pois, assim como o cultivador não pode confiar na semente que cresce em seu campo, pois ele não sabe o que advirá antes de ter colhido e armazenado, também o homem não pode relaxar o coração enquanto houver um sopro em suas narinas [13]. E assim como o homem ignora até o último suspiro se alguma enfermidade o afligirá, também é impossível a ele relaxar o coração enquanto respirar; assim, ele deverá sempre pedir a Deus com grandes lamentos para obter sua ajuda e sua misericórdia. 25
16. Quem não encontra socorro no momento do combate não pode confiar na paz. 17. Quando alguém se separa daqueles da mão esquerda, passa a conhecer exatamente todos os pecados que cometeu contra Deus, porque ninguém vê seus pecados se não estiver distanciado deles por uma dolorosa separação. São os que chegaram até aí que encontram as lágrimas, as súplicas e a vergonha diante de Deus lembrando-se de sua ligação perversa com as paixões. Lutemos, assim, na medida de nossas forças, irmãos, e Deus nos assistirá segundo a abundância de sua misericórdia. E se nós não guardamos nossos corações como nossos pais, ao menos façamos o possível para guardarmos nossos corpos sem pecado, como o quer Deus, e acreditemos que, quando a fome nos assaltar, ele terá piedade de nós como teve de seus santos. 18. Aquele que entrega seu coração à verdadeira procura de Deus na piedade não pode pensar que ele agrada a Deus, pois enquanto sua consciência reprovar-lhe seja lá o que for contra a natureza, ele não terá obtido a liberdade. De fato, enquanto houver alguém que desaprova, existirá alguém que acusa, e, enquanto houver uma acusação, não haverá liberdade. Se enfim você perceber que, enquanto você ora, absolutamente nenhuma malícia o acusa, então você está verdadeiramente liberto e penetrou no santo repouso segundo sua vontade. Se você perceber que o bom fruto se fortalece e que a embriaguez do inimigo não o sufoca mais [14], que os adversários recuaram - não por si mesmos, seguros de sua esperteza, mas por que você já não luta contra os sentidos -, se a nuvem encobriu a tenda [15] e o sol já não o queima de dia nem a lua à noite [16], se você tem em si todo o necessário para erguer e manter a tenda segundo a vontade de Deus [17], então a vitória chegou a você vinda dele. E daqui em diante ele mesmo cobrirá a tenda, porque ela lhe pertence. 26
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Enquanto durar a guerra, o homem permanecerá no temor e no tremor, vencedor ou vencido hoje, vencido ou vencedor amanhã, pois a luta aperta o coração. Ao contrário, a impassibilidade não tem mais o que combater, pois ela recebeu o prêmio, e ela não precisa mais se inquietar com a sorte dos três que são distintos, porque eles fizeram as pazes entre si graças a Deus. Estes três são o corpo, a alma e o espírito, segundo o Apóstolo [18]. Assim, quando os três se tornam um pela operação do Espírito Santo, eles não podem mais ser separados. Não pense, portanto, que você está morto para o pecado enquanto você seguir sendo assaltado pelos inimigos, seja na vigília, seja no sono. Pois enquanto o pobre homem estiver neste estado, ele nunca estará seguro da vitória. 30
19. Quando o intelecto se fortalece e se prepara para acompanhar a caridade que extingue todas as paixões do corpo [19] - da alma e do corpo -, então este se torna paciente e solícito, ele odeia a inveja e o orgulho, ele não pensa no mal, pois isto é o amor. A cólera se torna conforme à natureza, dentro do coração, ela não 31
[13] Jó, XXVII, 3. [14] Mateus, XIII, 25. [15] Números IX, 15. [16] Salmo CXX, 6. [17] Esdras II, 68. [18] 1 Tessalonicenses VII, 14. [19] Texto de Augustinos.
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permite que nada contra a natureza oprima o espírito, e, com sua força, o intelecto resiste às coisas que são contra a natureza, até conseguir afastá-las das coisas conformes à natureza. 20. Examine-se a cada dia, irmão, observando seu coração: que paixões existem nele perante Deus? Rejeite tudo isso de seu coração, a fim de que nenhuma sentença nefasta caia sobre você. 21. Vigie assim seu coração, irmão, e tome cuidado com os inimigos, pois eles são espertos em sua malícia. E em seu coração fique certo destas palavras: “É impossível ao homem fazer o bem enquanto ele faz o mal, ao passo que o homem pode fazer o mal sob pretexto de fazer o bem.” Por isso nosso Salvador nos ensinou a vigiar, dizendo: “Estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e são poucos os que o encontram. [20]” 32
22. Portanto, vigie a si mesmo, para que nada da perdição o desvie do amor a Deus, e domine seu coração. Nas se deixe desencorajar, dizendo: “Como posso guardá-lo, sendo um pecador?”. Pois quando um homem abandona seus pecados e se volta para Deus, sua penitência o regenera e o faz inteiramente novo. 23. Em toda parte a divina Escritura, a antiga como a nova, fala da guarda do coração. Primeiro Davi o Salmista exclama: “Filhos dos homens, até quando terão vocês o coração tão pesado? [21]”. E também: “Seu coração é vão. [22]” De todos aqueles cujos pensamentos são vãos, ele diz: “Pois ele diz em seu coração: jamais estremecerei! [23]” E ainda: “Pois ele diz em seu coração: Deus esquece [24].”, e outras coisas do tipo. Com efeito, o monge deve considerar o objetivo da Escritura, a quem ela fala e quando ela fala; ele deve sustentar continuamente o combate da ascese e tomar cuidado com os ataques do Adversário. Como um piloto, ele deve navegar sobre as ondas conduzido pela graça, sem se afastar da via reta, atento apenas ao caminho e entretendo-se com Deus na hesíquia, com sua razão inquebrantável e o intelecto liberto de todas as confusões. 33
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24. O tempo, com efeito, exige de nós a oração, como se fôssemos pilotos diante dos ventos, da tripla borrasca e das tempestades dos espíritos. Pois nós estamos expostos aos ataques dos pensamentos da virtude e do vício, e é dito que o mestre das paixões é o pensamento piedoso e amigo de Deus. De fato, convém aos hesiquiastas que somos, discernir e separar com sabedoria, sobriedade e vigilância as virtudes dos vícios, nos aplicarmos a esta ou àquela virtude em presença dos irmãos e dos padres, a trabalhar uma ou outra quando estamos a sós; convém examinarmos qual é a primeira virtude, a segunda e a terceira; quais paixões são psíquicas, quais corpóreas; a partir de qual virtude o orgulho golpeia o intelecto; qual é acompanhada da vanglória, qual leva à cólera e qual engendra a gula. Devemos destruir “os pensamentos e toda potência altaneira que se levanta contra o conhecimento de Deus. [25]” 37
25. A primeira virtude é a ausência de preocupações, ou seja, a morte perante todos os homens e perante todas as coisas. Então nasce o desejo por Deus e este engendra a cólera conforme à natureza, que vai oporse a tudo o que o inimigo semeia. A partir daí o temor a Deus encontra no homem um lugar de eleição, e pelo temor manifesta-se a caridade. 26. É preciso rejeitar os assaltos do pensamento ao coração por uma recusa piedosa no momento da prece, para que não deixemos os lábios ocupados em falar com Deus enquanto o coração se dedica a coisas inconvenientes. Pois Deus não aceita uma prece suja e desprezível de um hesiquiasta. Assim é que [20] [21] [22] [23] [24] [25]
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Salmo IV, 3. Salmo V, 10. Salmo IX, 27. Salmo IX, 31. 2 Coríntios X, 5. Salmo CXXIV, 1.
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Escritura atesta que devemos supervisionar os sentidos da alma. Se a vontade do monge está submetida à lei de Deus e se seu intelecto conduz segundo a lei tudo o que está em seu poder, vale dizer todos os movimentos da alma, em especial a cólera e a cobiça, submetendo-as à razão, então praticamos a virtude e cumprimos a justiça. A cobiça volta-se para Deus e para as suas vontades, a cólera é exercida contra o diabo e o pecado. O que estamos buscando? A meditação secreta. 27. Se uma obscenidade for semeada em seu coração, mantenha-se na sua cela e vigie para resistir à malícia, para que ela não se apodere de você. Apresse-se em se lembrar de Deus que o vê e diante de quem estão a descoberto os pensamentos de seu coração. Diga à sua alma: “Se você teme que pecadores como você vejam seus pecados, quanto mais a Deus, que tem os olhos sobre tudo?”; desta reflexão nascerá em sua alma o temor a Deus, e se você permanecer com ele, você se manterá bom, imperturbável em meio às paixões, segundo está escrito: “Aqueles que confiam no Senhor são como o monte Sião: aquele que habita Jerusalém jamais estremecerá.” Em tudo o que você fizer, lembre-se de que Deus vê tudo o que você pensa e você não pecará mais. A ele a glória por todos os séculos. Amém.
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EVAGRO, O PÔNTICO Evagro, este homem sábio e admirável viveu por volta do ano 350. Ele recebeu do grande Basílio o cargo de leitor. Ele foi ordenado diácono pelo irmão de Basílio, Gregório de Nice. Ele foi iniciado nos textos sagrados por Gregório o Teólogo, que fez dele arquidiácono, quando ele recebeu a administração da Igreja de Constantinopla, segundo Nicéforas Calixto. Depois, tendo renunciado às coisas do mundo, ele mergulhou na vida solitária. Dotado de uma real sutileza de inteligência e de uma grande habilidade em expressar seu pensamento, ele deixou numerosos escritos, como o tratado dirigido aos hesiquiastas e os capítulos, de grande valia, sobre o discernimento das paixões e dos pensamentos, que escolhemos para expor neste livro.
Evagro, dito o Pôntico por ser originário da província do Ponto na Ásia Menor, nasceu cerca de 345 em Ibora, não distante de Anésia aonde Basílio e Gregório iniciaram sua vida solitária em 357. Ordenado leitor por são Basílio, Evagro foi em seguida elevado ao diaconato por são Gregório de Nazianze, que o levou consigo para Constantinopla em 380. Mas logo, a fim de fugir a uma violenta paixão que teve pela esposa de um alto funcionário, ele se expatriou e foi para Jerusalém, onde Melânia a Velha o convenceu a renunciar ao mundo e se fazer monge no Egito. Depois de passar dois anos em Nitria, Evagro retirou-se para o deserto das Kellia, onde viveu até sua morte em 399. Ele foi discípulo de Macário de Alexandria e também se relacionou com o outro Macário, fundador de Sceta. Ele fez parte de um grupo de monges letrados que se distinguiram pela fervorosa aderência às doutrinas origenistas.
A obra escrita que ele deixou testemunha esta dupla herança. Os extratos que nos fornece a Filocalia foram tirados sobretudo dos tratados ascéticos, nos quais não encontramos nenhuma das opiniões controversas que levaram à condenação do autor das Centúrias gnósticas no Concílio de Constantinopla em 553.
Encabeçando esta antologia vem o Esboço ou Hypotypose, ou ainda, com outro título, Bases para a vida monástica. Destinado, com efeito, aos iniciantes, este tratado descreve os traços específicos do estado monástico e de suas condições essenciais: celibato, renúncia do mundo, pobreza, solidão, trabalho manual e meditação sobre os fins últimos.
O livro seguinte, Capítulos sobre o discernimento das paixões e dos pensamentos ou Dos diversos pensamentos, trata do combate espiritual. Ele expõe com sutileza e profundidade a estratégia por meio da qual os demônios suscitam no monge os maus pensamentos e a maneira de detectar e repelir os ataques. Sob o título de Capítulos
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Népticos, a Filocalia acrescenta a seguir cinco extratos do Tratado prático ou O monge, dos quais dois se referem aos ensinamentos dos anciãos do deserto, em especial Macário.
A este florilégio apresentado na Filocalia grega sob o nome de Evagro, convém acrescentar o tratado Da prece, atribuído a são Nilo pela tradição grega e que deve ser restituído a Evagro, como I. Hausherr demonstrou de forma decisiva. Este tratado constitui uma das obras mais extraordinárias de Evagro, e nele encontramos os elementos mais valiosos de seu ensinamento místico.
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TI, VI – EVAGRO, O PÔNTICO – Ensaio monástico que ensina o modo de exercer a ascese e a hesíquia.
ESBOÇO MONÁSTICO QUE ENSINA O MODO DE EXERCER A ASCESE E A HESÍQUIA 1. Está dito em Jeremias: “Você, não tome esposa neste lugar, pois eis o que o Senhor disse dos filhos e filhas engendrados neste lugar: ‘Eles perecerão de enfermidade mortal’ [26]”. Estas palavras mostram que, como diz o Apóstolo, “o homem casado se preocupa com as coisas do mundo, do modo de agradar à sua esposa, e ele fica dividido. A mulher casada também se preocupa com o mundo e com a maneira de agradar ao seu marido [27]”. E é claro que o que diz o Profeta: “Eles perecerão de uma enfermidade mortal” não se refere apenas aos filhos e filhas nascidos da vida conjugal, mas também dos filhos e filhas engendrados no coração, ou seja, os pensamentos e os desejos carnais; também eles perecerão por assim dizer no entendimento doentio, enfermo e lânguido deste mundo e não renascerão para a vida celeste. “Mas aquele que não é casado, diz o Apóstolo, preocupa-se com as coisas do Senhor e com o modo de agradar ao Senhor [28]”, e este produzirá os frutos perpétuos e imortais da vida eterna. 38
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2. Assim é o monge e é assim que ele deve ser: abster-se de esposa, não procriando nem filhos nem filhas neste lugar acima referido, acima de tudo um soldado de Cristo, imaterial e sem preocupações, desembaraçado de todos os cuidados com negócios e com atividades de qualquer tipo, como ainda diz o Apóstolo: “Ao se alistar no exército, ninguém se deixará envolver pelas questões da vida civil, se quiser satisfazer a quem o alistou no regimento [29]”. 41
Que assim caminhe o monge, sobretudo o que abandonou toda a matéria deste mundo e corre para os magníficos e esplêndidos troféus da hesíquia. Como é magnífica e esplêndida a ascese da hesíquia, sim, verdadeiramente magnífica e esplêndida! Pois seu jugo é doce e seu fardo é leve [30]. Doce é a vida e deleitosa a prática. 42
3. Você quer mesmo, bem-amado, assumir a vida monástica tal como ela é e buscar os troféus [esplêndidos e magníficos] da hesíquia? Deixe para trás as preocupações do mundo, os príncipes e os poderes que dele se ocupam, ou seja, desembarace-se da matéria e das paixões, sem nenhuma concupiscência, a fim de que, tornado alheio a este embaraço, você possa bem praticar a hesíquia. Pois se não nos subtrairmos a tudo isso, não teremos como levar a bom termo esta vida. Contente-se com uma alimentação frugal e barata, em pequena quantidade e fácil de achar. E se, sob pretexto de hospitalidade, lhe vêm ao pensamento alimentos mais caros, deixe-o ir-se e não o siga, pois com isto o Adversário coloca uma armadilha para desviá-lo da hesíquia. Você sabe como o Senhor Jesus condena a alma que se preocupa com essas coisas – Marta – dizendo a ela: “Porque perturbar-se com tantas coisas? Apenas uma lhe é necessária”, a saber, disse ele, escutar a palavra divina; e depois disto tudo fica fácil. É por isso que ele acrescenta a seguir: “Pois Maria escolheu a melhor parte, a que não poderá ser-lhe tirada [31]”. Você tem ainda o exemplo da viúva de Sarepta e dos alimentos que ela ofereceu ao Profeta [32]. Se você só tiver pão, sal e água, você poderá com isto obter a recompensa por sua hospitalidade. E se nem isto você possuir, receba seu hóspede com a melhor das disposições e ofereça-lhe 43
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[26] Jeremias XVI, 2-4. [27] 1 Coríntios VII, 33-34. [28] 1 Coríntios VII, 32. [29] 2 Timóteo II, 4. [30] Cf. Mateus XI, 30. [31] Lucas X, 41-42. [32] Cf. 1 Reis XVII, 10-11.
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TI, VI – EVAGRO, O PÔNTICO – Ensaio monástico que ensina o modo de exercer a ascese e a hesíquia.
uma palavra edificante, de maneira a obter a recompensa da hospitalidade. De fato, foi dito: “Uma palavra é melhor do que aquilo que se dá [33]”. Eis o que você deve meditar a respeito da esmola. 45
4. Vigie, portanto, para não querer ter riquezas para distribuí-las aos pobres, pois esta é mais uma artimanha do Maligno, que muitas vezes conduz à vanglória e atira o intelecto numa multidão de preocupações. No Evangelho você encontra a viúva de quem o Senhor Jesus deu testemunho que, com duas moedinhas, superou os ricos no tocante à intenção e ao valor. Com efeito, “estes, disse o Senhor, tiraram um pouco do supérfluo de seus tesouros, enquanto que ela ofereceu toda a sua subsistência [34]”. 46
Quanto às roupas, não deseje ter demais. Fique com aquelas que bastam para as necessidades do corpo. “Coloque todas as suas preocupações no Senhor e ele tudo fará para você [35]”. “De fato, ele cuida pessoalmente de nós [36]”. 47
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Se você ficar sem comida nem vestes, não tenha vergonha de aceitar o que outros lhe oferecem, pois esta vergonha é uma espécie de orgulho. Mas se você tiver o bastante, dê a quem falta. É assim que Deus quer que suas crianças sejam providas. Eis porque o Apóstolo, escrevendo aos Coríntios, disse a respeito dos indigentes: “Que o seu supérfluo ajude na penúria destes, a fim de que o supérfluo deles remedie a sua penúria e que assim haja uma equanimidade, como está escrito: ‘Aquele que tinha muito não tem tanto, e o que tinha pouco não ficou sem’. [37]” 49
Tendo assim o necessário para o presente, não se preocupe com o futuro, quer se trate de um dia, uma semana ou um mês. Quando amanhã chegar, ele mesmo fornecerá o que é necessário, se você, acima de tudo, buscar o Reino dos céus e a justiça de Deus. De fato, disse o Senhor: “Procurem o Reino de Deus e sua justiça, e tudo o mais lhes será dado em acréscimo. [38]” 50
5. Não tenha servidor, para que através dele o Adversário não provoque um escândalo e não perturbe o seu pensamento com alimentos custosos, pois você não poderá mais, sozinho, cuidar dele. E se lhe ocorrer um pensamento relativo ao bem estar corporal, pense no que lhe é melhor, quero dizer o bem estar espiritual. Com efeito, e em verdade, o bem estar espiritual vale mais do que o corporal. E mesmo que o Adversário coloque em sua cabeça os benefícios que poderá auferir o rapaz, não o obedeça. De fato, não é trabalho para nós, mas para outros santos Padres que vivem em comunidade. Cuide apenas de seu próprio benefício e preserve a condição de hesíquia. Não queira viver com os homens que estão ligados às coisas materiais e amarrados de todos os lados. Viva só, ou com irmãos desembaraçados da matéria e que pensam como você. Pois quem vive com os homens que estão ligados às coisas materiais e tomados pelos negócios, partilhará necessariamente, ele também, dos embaraços e da escravidão das servidões humanas, tais como as conversas vãs e todas as outras calamidades: cólera, tristeza, loucura das coisas materiais, medo e escândalo. Tampouco se deixe prender pelos cuidados de famílias ou pelas afeições ao próximo, mas antes evite sua freqüentação, para que eles não o façam perder a hesíquia da cela e não o envolvam em seus próprios assuntos. Como diz o Senhor: “Deixe que os mortos enterrem seus mortos [39]; você, venha e siga-me”. Inclusive, se sua própria cela é demasiado acessível, fuja e não a conserve, não relaxe por estar ligado a ela. Faça tudo o que puder, aja sempre de maneira a poder praticar a hesíquia e para ter tempo livre para se dedicar a fazer as vontades de Deus e a se manter em luta contra as potências invisíveis. 51
[33] Eclesiástico XVIII, 16. [34] Marcos XII, 44. [35] Salmo LIV, 23. [36] 1 Pedro V, 7. [37] 2 Coríntios VIII, 14-15, cit. Êxodo XVI, 18. [38] Mateus, VI, 33. [39] Mateus VIII, 22.
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6. Se você não consegue alcançar a hesíquia nas suas redondezas, dirija sua intenção para o exílio e apresse-se em fixar aí seu pensamento. Faça como um bom homem de negócios, avaliando tudo em função da hesíquia e retendo principalmente as coisas que seja úteis e coerentes com ela. Quanto ao mais, eu lhe digo, prefira o exílio. Pois ele o desembaraça dos incômodos de sua própria terra natal e tira partido apenas daquilo que aproveita à hesíquia. Evite as estadias nas cidades e persevere no deserto. “Eis, diz o santo rei, que fugi para longe e permaneci no deserto [40]”. Tanto quanto possível, não vá nunca à cidade, pois você não verá ali nada que lhe convenha, nada útil nem aproveitável para seu modo de vida. “Eu vi, diz ainda o santo rei, a iniqüidade e as disputas na cidade [41]”. Procure, portanto, os lugares afastados e tranqüilos. Não tema o eco. Se você enxergar os espectros dos demônios, não tenha medo e não abandone o estado que é todo nosso benefício. Persevere sem temor e você verá “as maravilhas de Deus54[42]”, o socorro, a solicitude e todas as demais certezas de salvação. Com efeito, é o homem bem-aventurado que diz: “Eu esperei aquele que me salvou do desencorajamento e da tempestade55[43]”. Que nenhum desejo de agitação vença seu propósito. Pois “a inconstância com a cobiça solapa um espírito inocente [44]”. Daí sobrevêm inúmeras tentações. Tema a queda e mantenha-se sedentário em sua cela. 52
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7. Se você tem amigos, evite estar constantemente com eles. Pois, vendo-os poucas vezes, você extrairá mais proveito. Mas se você se der conta de que está se prejudicando por eles, não se aproxime mais. É preciso, com efeito, que seus amigos lhe sejam úteis e que compartilhem seu modo de vida. Fuja dos encontros com amigos perversos ou polêmicos e não more com nenhum deles. Mais do que isto, repila seus maus projetos, pois eles não estão ligados a Deus e não permanecem com ele. Que seus amigos sejam homens pacíficos, os irmãos espirituais e os santos Padres. É assim, realmente, que o Senhor os denominou quando disse: “Minha mãe, meus irmãos e meus pais são aqueles que fazem a vontade de meu Pai que está no céu [45]”. Não freqüente pessoas agitadas nem vá festejar com elas, para que não o arrastem em suas ilusões e o desviem da disciplina da hesíquia, pois é a paixão que se encontra neles. Não dê ouvidos aos seus propósitos e não acolha os pensamentos de seu coração, pois eles são verdadeiramente funestos. Que seu desejo se volte para os fiéis da terra e que o desejo de seu coração seja o de invejar sua compunção. De fato, foi dito: “Meus olhos estão fixos nos fiéis da terra para fazê-los assentarem-se comigo [46]”. Mas se um daqueles que vivem segundo o amor de Deus convidá-lo a comer com ele, e se você o quiser, faça-o, mas volte logo para a sua cela. Tanto quanto possível, jamais durma fora dela, a fim de que sempre permaneça com você a graça da hesíquia, e você poderá assim, sem empecilhos, permanecer fiel ao seu propósito. 57
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8. Não seja amante de bons pratos nem das ilusões da fruição, pois, como diz o Apóstolo “quem vive da fruição está morto [47]”. Não encha seu ventre com alimentos que são para os mundanos, para que sua concupiscência não o contamine e não o faça desejar a sua mesa. Com efeito, foi dito: “Não se perca locupletando o ventre [48]”. E se você for constantemente convidado a deixar sua cela, recuse. Pois a permanência prolongada fora da cela é nociva, ela desfaz a graça, obscurece o entendimento, extingue o fervor. Veja como uma jarra de vinho que permanece por longo tempo em seu lugar, sem ser remexida, torna o vinho claro, decantado, perfumado. Se, ao contrário, ela é transportada de um lugar para outro, ela produzirá um vinho opaco, misturado e que mostra todas as desagregações da borra. Compare-se a esta 59
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[40] Salmo LIV, 8. [41] Salmo LIV, 10. [42] Êxodo XIV, 13 [43] Salmo LIV, 9. [44] Sabedoria IV, 12. [45] Mateus XII, 50. [46] Salmo C, 6. [47] 1 Timóteo V, 6. [48] Provérbios XXIV, 15.
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jarra e faça esta experiência tão útil, rompa relações com a maioria das pessoas para que seu intelecto não seja distraído e para que não se perturbe sua condição de hesíquia. Tenha o cuidado de trabalhar com as mãos noite e dia, se possível, a fim de não ser um peso para ninguém e mais ainda para distribuir, como o recomenda o santo apóstolo Paulo [49], para triunfar com isto também sobre o demônio da acídia e para eliminar toda a demais concupiscência do inimigo. Pois o demônio da acídia se faz acompanhar do ócio e encontra-se “na concupiscência”, como foi dito [50]. Fazendo comércio, você não evitará o pecado. Vendendo ou comprando, ceda um pouco, para sua própria desvantagem, sobre o preço justo, para que não aconteça que, arrastado pelas negociações mesquinhas e minuciosas que a ganância comercial inspira, você não caia nas causas de dano para a alma, nas disputas, nos falsos juramentos, nos perjúrios, e que, por causa de tais procederes, você não se desonre e não cubra de vergonha a santa dignidade de nossa profissão. Adote esta idéia, evite comprar e vender por si mesmo. É preferível, se possível, atribuir este assunto a algum outro, a um homem confiável, a fim de que, estando com o espírito tranqüilo, você desfrute das esperanças belas e felizes. 61
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9. Tais são as vantagens que lhe trará a vida da hesíquia. Vou agora expor a série de coisas que ela contempla. Você, escute-me e faça o que eu lhe ordeno. Sentado em sua cela, recolha seu intelecto, lembre-se do dia de sua morte, veja o cadáver que será seu corpo, sinta suas penas, condene a vaidade deste mundo, encha-se de cuidado e zelo para poder permanecer sempre dentro do mesmo firme propósito da hesíquia sem fraquejar. Lembre-se também das condições presentes no inferno, observe como estão as almas lá embaixo, em que amargo silêncio, em que gemidos terríveis, em que horror, em que agonia, em que espera, a tortura interminável e as lágrimas da alma que não podem ser secadas. Mas lembre-se também do dia da ressurreição e do comparecimento diante de Deus. Imagine este julgamento apavorante e temível, evoque o que está reservado aos pecadores: a vergonha diante de Deus e de seu Cristo, dos anjos, dos arcanjos, das potências e de todos os homens, todos os suplícios, o fogo eterno, o verme que não morre, o tártaro, as trevas, e, além de tudo isto, o ranger de dentes, os terrores e os tormentos. Mas evoque também os bens que estão reservados aos justos: a segurança diante de Deus pai e de seu Cristo, dos anjos, dos arcanjos, das potências e de todo o povo dos santos, o reino e seus dons, a alegria e a felicidade. Destas duas perspectivas, guarde em sua memória: sobre a condenação dos pecadores, chore, gema e coloque roupas de luto, temendo que também a você isto aconteça. Mas quanto aos bens reservados aos justos, rejubile-se, exulte e se alegre; esforce-se para poder desfrutá-los; quanto aos outros, trate de escapar deles. Vigie para nunca se esquecer disto, quer você esteja dentro ou fora de sua cela, não separe seu entendimento desta lembrança a fim de que, no mínimo, você evite os pensamentos impróprios e nocivos. 10. Jejue tanto quanto puder diante do Senhor. O jejum lava as transgressões e os pecados, embeleza a alma, santifica o entendimento, põe em fuga os demônios e predispõe à aproximação com Deus. Comendo uma vez ao dia, não deseje uma segunda refeição, para não ser perdulário nem perturbar o entendimento. Assim você terá em abundância para as obras de bem-aventurança e poderá mortificar as paixões do corpo. Mas se chegam irmãos e você se vê obrigado a comer uma segunda e uma terceira vezes, cuide para não gemer nem se afligir; regozije-se e submeta-se à realidade, e, comendo pela segunda ou pela terceira vez, dê graças a Deus por cumprir a lei da caridade e de ter o próprio Deus como administrador de nossas vidas. Pode acontecer que o corpo esteja enfermo e que seja preciso comer duas ou três vezes ou mesmo freqüentemente; [esteja pronto para esta eventualidade] e não se aflija. Não devemos permitir que os labores corporais do nosso estilo de vida sejam mantidos durante as doenças, mas podemos renunciar a algumas coisas para recuperar a saúde mais depressa e retomar os mesmos labores de nossa vida. A respeito da abstinência de alimentos, a palavra divina não proibiu comer nada, mas ela diz: “Eu lhes dei
[49] 1 Tessalonicenses II, 9; Efésios IV, 28. [50] Cf. Provérbios XIII, 4.
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todas as coisas em forma de legumes [51]”, “comam indistintamente [52]” e “Não é o que entra pela boca que suja o homem [53]”. A abstinência de alimentos deve ser um trabalho de nossa livre vontade e de nossa alma. 63
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11. Suporte alegremente a vigília, o sono em leito duro e todas as demais austeridades, considerando a glória futura que lhe será revelada com todos os santos. É dito, com efeito, que “os sofrimentos do tempo presente não são nada comparados com a glória que será revelada em nós [54]”. Se você estiver abatido, ore, como está escrito [55], mas ore com temor e com tremor, com esforço, sobriedade, vigilância e atenção. É assim que se deve rezar, sobretudo por causa dos inimigos invisíveis, perversos e enganadores, que querem sempre nos causar prejuízos. Cada vez que eles nos vêem em oração, apressam-se a vir sugerir ao nosso intelecto aquilo que não deve ser pensado nem meditado durante a prece, a fim de levar cativo nosso intelecto e de tornar vãs, inúteis e ineficazes a demanda e a súplica contidas na prece. Pois vãs e inúteis são a prece, a demanda e a súplica que não são feitas como foi dito, como temor, tremor, sobriedade, vigilância e atenção. De fato, se nos aproximamos de um rei mortal, tremendo, com temor e circunspecção para lhe apresentar um pedido, não seria conveniente sentirmos muito mais ao nos apresentarmos assim a Deus, mestre do universo, e a Cristo, Rei dos reis e Príncipe dos príncipes [56], e lhe dirigirmos igualmente nossas súplicas e demandas? Certamente, pois a ele também dirigem hinos incessantes toda a multidão de espíritos angélicos que o temem e adoram em coro, que tremendo o glorificam, tanto ao Pai sem começo quanto ao Espírito santíssimo e coeterno, agora e para sempre, por todos os séculos. Amém. 66
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[51] Gênesis IX, 3.. [52] 1 Coríntios X, 25-27. [53] Mateus XV, 11. [54] Romanos VIII, 18. [55] Cf. Tiago V, 13. [56] Cf. 1 Timóteo VI, 15; Apocalipse XIX, 16.
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CAPÍTULOS SOBRE O DISCERNIMENTO DAS PAIXÕES E DOS PENSAMENTOS
[I] [57] 1. Dentre os demônios que se opõem à prática os primeiros a se apresentar ao combate são aqueles encarregados dos apetites da gula, os que nos sugerem a avareza e os que nos estimulam a procurar a glória humana. Todos os outros caminham atrás destes, recolhendo aqueles que eles feriram. Com efeito, não é possível cair nas mãos do espírito da fornicação, sem antes haver sucumbido à gula; não é possível deter a parte irascível se não a combatermos por via dos alimentos, das riquezas e da glória; não é possível fugir do demônio da tristeza se nos sentirmos privados de tudo isto ou se não os pudermos adquirir; tampouco escaparemos do orgulho, o primeiro broto do diabo, se não banirmos “a avareza, raiz de todos os males” porque, como disse o sábio Salomão, “a pobreza humilha o homem [58]”. Em poucas palavras, não é possível que alguém sucumba ao demônio, sem antes ter sido ferido pelos assaltantes da primeira fileira (protostátai). É por isso que foram estes os três pensamentos que o diabo outrora apresentou ao Salvador, convidando-o primeiramente a transformar as pedras em pães, prometendo-lhe em seguida o mundo inteiro se ele se prosternasse para adorá-lo, e em terceiro lugar dizendo-lhe que, se ele o obedecesse, ele seria glorificado por não sofrer dano algum de tal queda [59]. Mostrando-se superior a estas tentações, Nosso Senhor ordenou ao diabo que se retirasse; com isto ele nos ensina que não é possível afastar o diabo sem antes desprezar estes três pensamentos. 69
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[II] 2. Todos os pensamentos demoníacos introduzem na alma representações de objetos sensíveis: impressionado com eles, o intelecto carrega em si as formas destes objetos; e assim, é conforme o próprio objeto que ele pode reconhecer o demônio que se aproximou. Por exemplo, se em meu espírito forma-se o rosto de alguém que me fez mal ou que me desonrou, é a prova de que o pensamento do rancor e do ressentimento me fez uma visita; ou ainda, se sobrevierem lembranças de riquezas ou de glória, é evidente que será a partir destes objetos que poderá ser reconhecido aquele que nos atormenta. O mesmo acontece com relação aos outros pensamentos: partindo dos objetos você descobrirá quem está presente e faz essas sugestões. Não quero com isto dizer que todas as lembranças de tais objetos venham dos demônios – pois o próprio intelecto, por ser movido pelo homem, possui a faculdade natural de lembrar as imagens do que existe – mas apenas aquelas que forçam contra a natureza as partes irascíveis e concupiscentes. De fato, é por causa da perturbação destas potências que o intelecto comete em espírito o adultério e a violência, tornando-se incapaz de receber a imagem de Deus que lhe impôs sua lei, na medida em que esta claridade se manifesta à faculdade diretora [da alma] no momento da prece com a supressão de todas as demais representações ligadas aos objetos. [III] 3. O homem não pode desembaraçar-se das lembranças apaixonadas senão tomando cuidado com suas partes concupiscente e irascível, esgotando a primeira por meio dos jejuns, das vigílias e do sono sobre leitos duros, aprisionando a segunda através da longanimidade, da ausência de ressentimentos e das esmolas. Com efeito, é a partir destas duas paixões que se formam quase todos os pensamentos demoníacos que precipitam o intelecto “na ruína e na perdição”. Ora, é impossível a alguém triunfar sobre estas paixões se não desdenhar completamente as comidas, as riquezas e a glória, e até seu próprio corpo, por causa daqueles que tantas vezes tentam inflá-lo.
[57] As indicações entre colchetes referem-se às divisões da P.G. (Patrística Grega) LXXIX, 1199-1234. [58] Provérbios X, 14. [59] Cf. Mateus IV, 1-10.
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É assim absolutamente necessário imitar alguém que está em perigo no mar e que atira a carga pela amurada, devido à violência dos ventos e às ondas desenfreadas. Mas vigiem para não atirar a carga pela amurada diante dos homens, fazendo-lhes espetáculos; pois já receberam a paga, e um outro naufrágio, mais temível que o primeiro, seguir-se-á, com o demônio da vanglória insuflando o vento contrário. É por isso que Nosso Senhor, nos Evangelhos, instrui nestes termos o piloto, que é o intelecto: “Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu [60]”; e ainda: “Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa [61]”; e ele diz também: “Quando jejuardes, não tomeis um ar triste como os hipócritas, que mostram um semblante abatido para manifestar aos homens que jejuam. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. [62]” 72
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Mas é o médico das almas que devemos observar aqui: assim como pela esmola ele cura a parte irascível, pela prece purifica o intelecto, e pelo jejum extenua a parte concupiscente; desta maneira, “o homem novo renova-se à imagem de seu Criador [63]”, e nele, graças à santa impassibilidade, “não existe mais homem nem mulher”, nele “não existe mais grego ou judeu, nem circuncisos ou incircuncisos, nem bárbaro, nem cita, nem escravo, nem homem livre, mas somente o Cristo, que será tudo em todos. [64]” 75
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[IV] 4. É preciso procurar como, nas imaginações do adormecer, os demônios deixam uma marca e uma figura em nossa faculdade diretora. Pois estas coisas, parece, produzem-se no intelecto, seja por intermédio dos olhos quando ele vê, seja pelo ouvido quando escuta, seja por um sentido qualquer, ou então pela memória, que deixa marcas na faculdade diretora, não por meio do corpo, mas colocando em movimento aquilo que ela obteve por intermédio do corpo. Pois bem, parece-me que é colocando em movimento a memória que os demônios deixam marcas na faculdade diretora, visto que o organismo se mantém inativo durante o sono. Mas vejamos agora como eles colocam em movimento a memória: não seria por intermédio das paixões? Sim, evidentemente, porque aqueles que são puros e impassíveis não experimentam nada disso. Entretanto existe também um movimento simples da memória, provocado por nós ou pelas santas potências, graças ao qual, durante nosso sono, podemos reencontrar os santos, conversarmos e comermos com eles. Para tanto é preciso lembrar que as imagens que a alma recebe por meio do corpo são postas em movimento pela memória, sem o corpo; a prova disto está no fato de que freqüentemente experimentamos essas coisas mesmo dormindo, enquanto o corpo está em repouso. Assim como é possível lembrarmo-nos da água quer estejamos ou não com sede, podemos lembrar do ouro com ou sem cupidez, e do mesmo modo qualquer outra coisa. Que o intelecto encontre tais ou tais variedades de imagens será o indício do trabalho pernicioso daqueles lá. E é preciso ainda saber o seguinte: os demônios servem-se também de objetos exteriores para produzir uma imagem, como por exemplo o ruído das ondas para um navegador. 5. Quando arrastada contra sua natureza, nossa irascibilidade fornece uma enorme ajuda aos demônios para que atinjam seu objetivo, e se presta toda útil às suas odiosas maquinações. É por isso que, dia e noite, nenhum deles deixa um instante de perturbá-la; e quando eles a vêem abraçada com a doçura, apressam-se a encontrar justos pretextos para separá-las o mais depressa possível, a fim de que, colocando-se em prontidão, ela sirva aos seus pensamentos ferozes. Também é preciso não provocá-la sob [60] Mateus VI, 1. [61] Mateus VI, 5. [62] Mateus VI, 16. [63] Cf. Colossenses III, 10. [64] Cf. Gálatas III, 28.
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nenhum pretexto, justo ou injusto, e não atirar um funesto punhal contra os autores das sugestões. Conheço muitos que agem assim freqüentemente e se inflamam mais do que o necessário pelas razões mais fúteis. [V] Em função de que, diga-me, “você se atira tão depressa numa discussão”, se é verdade que você desprezou alimentos, riquezas e glória? E porque você alimenta seu cão, se faz profissão de nada possuir? Se ele late e ataca as pessoas, é evidente que você possui alguns bens no interior, que ele deve guardar. De minha parte, estou convencido de que um tal homem está longe da oração pura, sabendo que a irascibilidade é um flagelo para esta oração. E é de espantar que ele esqueça assim os santos, como David que clama: “Põe fim à tua cólera e renuncie à irascibilidade [65]”, como o Eclesiastes que proclama: “Afasta a cólera de teu coração e a malícia da tua carne [66]”, e como o Apóstolo, que prescreve “erguer as mãos em todo lugar sem cóleras nem disputas [67]”. Porque não nos instruirmos pelo antigo costume dos homens, que consistia em expulsar da casa os cachorros no momento da oração? Isto significa em termos velados que a irascibilidade não deve estar presente entre aqueles que oram. Vejam ainda: “A cólera dos dragões é seu vinho [68]”; ora, assim os Nazireus abstinham-se de vinho. Acrescento que um sábio pagão declarou que a vesícula biliar e a parte lombar não eram comestíveis pelos deuses, sem saber, penso eu, o que dizia. Para mim, são símbolos, a primeira da cólera e a segunda da concupiscência irrazoável. 77
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Quanto ao fato de que não devemos nos preocupar com as vestes nem com a alimentação, penso que é supérfluo escrever a respeito, porque o próprio Salvador, nos Evangelhos, profere esta proibição: “Não vos preocupeis consigo mesmos, com o que comereis ou bebereis, ou o que vestireis [69]”. Pois é isto o que fazem os pagãos e os descrentes que rejeitam a providência do Mestre e renegam o Criador, mas esta atitude é inteiramente estranha aos cristãos, uma vez que eles crêem que até mesmo “os dois pardais que se vendem por um centavo” estão sob a administração dos santos anjos. Entretanto os demônios têm também o hábito de enviar os pensamentos impuros da preocupação, para que Jesus se afaste devido à multidão de representações que ocupam o lugar do espírito e para que sua palavra se torne estéril, sufocada pelos espinhos da preocupação [70]. 81
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[VI] Portanto, depois de nos havermos desembaraçado dos pensamentos que provêm das preocupações, “coloquemos nossas preocupações no Senhor [71]”, contentando-nos com o que temos no presente [72]; e, adotando um modo de vida e vestimentas pobres, desnudemos em pleno dia os autores da vanglória. Se alguém pensa faltar à decência pela pobreza de suas vestes, que ele considere São Paulo que “no frio e na nudez [73]” alcançou a coroa da justiça [74]. E como o Apóstolo chamou de teatro e de estádio o mundo em que vivemos [75], vejamos se é possível, vestidos com os pensamentos da preocupação, correr “pelo prêmio do chamado do alto trazido por Cristo [76]” ou lutar contra “os principados, as potestades e as dominações destas trevas [77]”. Da minha parte não sei nada disto, uma vez que fui instruído pelo que se passa na 83
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[65] Salmo XXXVI, 8. [66] Eclesiastes XI, 10. [67] 1 Timóteo II, 28. [68] Deuteronômio XXXII, 33. [69] Mateus VI, 25. [70] Cf. Mateus XIII, 22. [71] 1 Pedro V, 7; cit. Salmo LIV, 22. [72] Cf. Hebreus XIII, 5. [73] Cf. 2 Coríntios I, 27. [74] Cf. 2 Timóteo IV, 8. [75] Cf. 1 Coríntios IV, 9; 1 Coríntios IX, 24. [76] Cf. Filipenses III, 14. [77] Cf. Efésios VI, 12.
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realidade sensível: nela, com efeito, nosso lutador se verá atrapalhado por sua túnica e será facilmente batido. É o que acontecerá também com o intelecto, sob os efeitos dos pensamentos preocupados, se é verdadeira a palavra que diz que o intelecto é firmemente ligado ao seu tesouro: “Aonde estiver seu tesouro, ali estará seu coração [78]. 90
[VII] 6. Dentre os pensamentos, há os que cortam e há os que são cortados: os maus cortam os bons e são cortados por eles. Sendo assim, o Espírito Santo permanece atento ao pensamento que primeiro foi colocado, e é a partir dele que ele nos condena ou aprova. O que quero dizer é o seguinte: eu tenho um pensamento de hospitalidade e o tenho por causa do Senhor, mas ele é cortado quando o tentador chega e sugere que eu seja hospitaleiro pela glória que isto traz. Outro exemplo: eu tenho um pensamento de hospitalidade tendo em vista mostrar-me aos homens, mas ele também é cortado, quando se introduz um pensamento melhor que orienta minha virtude para o Senhor constrangendo-me a não agir assim em função dos homens. Se assim, por nossos atos, a partir daí permanecermos com nossos primeiros pensamentos, ainda que postos à prova pelos segundos, receberemos a paga pelos pensamentos colocados antes, porque, por sermos homens, e por lutarmos contra os demônios, não termos a força para guardar incólume um pensamento reto nem, inversamente, para mantermos um maus pensamento sem tentação, por termos em nós as sementes da virtude. Mas se um dos pensamentos que cortam se prolonga, ele se instala no lugar do que foi cortado, e será segundo este segundo pensamento que daí em diante o homem receberá o impulso que o fará agir. 7. Após uma longa observação, aprendemos a conhecer a diferença que existe entre os pensamentos angélicos, os pensamentos humanos e aqueles que provêm dos demônios. Os dos anjos, para começar, perscrutam a natureza das coisas e buscam suas razões espirituais. Por exemplo: porque o ouro foi criado, porque ele é terroso e está disseminado nas profundezas do solo, e porque ele não é descoberto senão com muito esforço e pena; e como, uma vez descoberto, ele é lavado na água, colocado no fogo, e assim posto nas mãos dos artesãos que farão o candelabro da Tenda, o queimador de perfumes, o incensório, as taças [79] nas quais, pela graça de nosso Salvador, já não é um rei da Babilônia que bebe [80], mas Cleófas, que traz um coração ardente destes mistérios [81]. O pensamento demoníaco não sabe nem quer saber de nada disto, mas sugere sem a menor vergonha a simples aquisição do ouro sensível e prediz o desfrute e a glória que resultarão disto. Quanto ao pensamento humano, ele tanto visa a aquisição quanto perscruta o simbolismo do ouro, mas introduz no espírito apenas a forma simples do ouro, fora de qualquer paixão de cupidez. O mesmo vale para outros objetos, exercendo-se mentalmente a mesma regra. 91
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[VIII] 8. Existe um demônio a que chamamos de “vagabundo” e que se aproxima dos irmãos sobretudo nos começos da aurora; ele passeia o intelecto de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, de casa em casa; este é levado assim a simples encontros, depois chega aos conhecidos, tagarela longamente, e deste modo arruína, no contato destes encontros, seu próprio estado, distanciando-se insensivelmente da ciência de Deus e da virtude, esquecendo-se até de sua profissão. É preciso assim que o anacoreta observe este demônio: de onde ele parte e aonde ele chega, pois não é ao acaso nem aventureiramente que ele cumpre este longo circuito, mas é com a intenção de arruinar o estado do anacoreta que ele age desta maneira, para que o intelecto, inflamado por tudo isso e embevecido por esses encontros, caia rapidamente sob o demônio da fornicação, ou sob o da cólera, ou da tristeza, que mais do que todos prejudicam a clareza de seu estado. Mas nós, que temos como objetivo conhecer exatamente a engenhosidade deste demônio, não [78] Mateus VI, 21. [79] Cf. Êxodo XXXV, 4 ss. [80] Cf. Daniel V, 2-3. [81] Cf. Lucas XXIV, 32.
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lhe dirigimos a palavra em seguida nem lhe revelamos o que se passa: como ele produz os encontros em pensamento e de que modo ele arrasta insensivelmente o intelecto à morte, pois ele fugirá para longe: ele não admite ser visto enquanto faz estas coisas; e assim não saberemos nada daquilo que nos propomos a aprender. Mas deixemo-lo, dia após dia, chegar até o fim do seu jogo, para que, depois de termos aprendido a conhecer em detalhe suas maquinações, o coloquemos em fuga, desmascarando-o com uma palavra. [IX] Mas, como acontece de no momento da tentação o intelecto achar-se confundido e não conseguir perceber com precisão o que se passa, eis o que você deve fazer após a retirada do demônio: sente-se e rememore para si mesmo os eventos que aconteceram, de onde você partiu e aonde você chegou, em que ponto você foi tomado pelo espírito de fornicação, ou de cólera, ou de tristeza, e como, ainda, aconteceu o que aconteceu; observe estes detalhes e entregue-os à memória, a fim de poder desmascará-lo quando ele se aproximar; revele a ele o lugar secreto que ele guarda, e também que você não o seguirá mais até ali. Se você quiser enlouquece-lo de furor, desmascare-o assim que ele se apresente e, numa palavra, denuncie o primeiro lugar por onde ele entrou, e o segundo, e o terceiro: como ele não suporta a humilhação, isto será especialmente penoso para ele. A fuga do pensamento para longe de você será a prova de que você lhe dirigiu a palavra correta, pois é impossível a este demônio permanecer depois de ter sido abertamente desmascarado. À retirada deste demônio sucede um sono pesado, uma espécie de morte acompanhada de um grande esfriamento das pálpebras e bocejos sem fim, costas pesadas e inchadas: todos fenômenos que, graças a uma intensa prece, o Espírito Santo dissipará. [X] 9. A aversão que apresentamos aos demônios contribui de modo especial para a nossa salvação e favorece a prática da virtude; mas não temos a força para nutri-la em nós como uma espécie de bom embrião, porque os espíritos amigos do prazer a destroem e convidam a alma a voltar à sua amizade habitual; a esta amizade – ou melhor, esta gangrena dificilmente curável – o médico das almas cura com a solidão moral: de fato, ele permite que nós padeçamos certo terror com isto noite e dia, para que a alma retorne depressa à aversão primitiva, aprendendo com Davi a dizer ao Senhor: “Eu os odeio com uma aversão perfeita, eles se tornaram inimigos para mim. [82]” Pois ele odiava seus inimigos com perfeita aversão, aquela que não peca nem em ato nem em pensamento, e que é o maior sinal da primeira impassibilidade. 94
[XI] 10. Quanto ao demônio que torna a alma insensível, preciso falar dele? Pois, de minha parte, temo até escrever a seu respeito: como a alma sai de seu próprio estado quando ele chega e rejeita o temor a Deus e a piedade; ela deixa de considerar o pecado como pecado, não mais estima a transgressão como transgressão; o castigo e o julgamento eternos são lembrados por ela como simples palavras e a alma “se ri”, realmente, “do cismo que abrasará tudo”. Ela se diz temente a Deus, mas ignora o que ele prescreve; você arranha o peito enquanto ela se volta para o pecado, mas ela permanece insensível; você argumenta a partir das Escrituras, e ela permanece insensível; você lhe expõe a culpa que vem dos homens, e ela não se dá conta da vergonha que ela causa entre os irmãos; esta alma está privada de inteligência, como um porco com os olhos vendados que destrói seu chiqueiro. Este demônio é atraído por persistentes pensamentos de vanglória; é dele que foi dito: “Se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma criatura se salvaria [83]”. E, com efeito, ele se encontra entre aqueles que raramente visitam os irmãos, e a razão é evidente: diante 95
[82] Salmo CXXXVIII, 22. [83] Mateus XXIV, 22.
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do sofrimento de outros que são acossados por doenças, ou que vegetam nas prisões, ou sucumbem a uma morte súbita, este demônio se põe em fuga, pois a alma é pouco a pouco penetrada pela compunção e acede à compaixão quando a cegueira provocada por este demônio se dissipa. Tudo isto nos falta, por causa do deserto e porque os doentes são raros entre nós. [XII] Foi principalmente este demônio que o Senhor quis por em fuga nos Evangelhos, quando ele prescreveu ver os doentes e visitar os que estão na prisão: “Eu estava doente, disse ele, e vocês vieram me visitar, estava preso e vieram até mim [84]”. Mas é preciso também saber o seguinte: se um dos anacoretas que caiu diante deste demônio não concebeu pensamentos de fornicação, ou não deixou sua casa sob os efeitos da acídia, é porque este homem recebeu a castidade e a perseverança vindas do céu; bemaventurado é ele por possuir uma tal impassibilidade! Quanto aos que fazem votos de piedade e escolhem habitar com os seculares, que se acautelem contra este demônio. Quanto a mim, eu ruborizo diante dos homens só de falar dele ou de escrever daqui para frente a seu respeito. 96
[XIII] 11. Todos os demônios ensinam a alma a gostar do prazer: apenas o demônio da tristeza não quer fazê-lo, e ele chega até a destruir os pensamentos dos outros que estão ali, destroçando e secando todo o prazer da alma por meio da tristeza, se é verdade que “os ossos do homem triste secam [85]”. E se ele combate moderadamente, ele torna o anacoreta experiente, pois o convence a não se aproximar dos bens deste mundo e a evitar todo prazer; mas se ele se implanta daí para frente, ele engendra pensamentos que aconselham a alma a evadir-se, ou que a obrigam a fugir para longe. É o que o santo Jó sofreu e meditou, quando foi atormentado por este demônio: “Se eu pudesse, disse ele, dar a mão a mim mesmo, ou ao menos pedir a um outro que o fizesse por mim [86].” Este demônio é simbolizado pela víbora, este animal cuja substância natural, ministrada em dose suportável ao homem, destrói o veneno dos outros animais, mas se tomado em estado puro destrói o próprio ser vivo. É a este demônio que Paulo entregou o pecador de Corinto; é por isso que ele se apressou a escrever novamente aos Coríntios estas palavras: “Assim deveis agora perdoar-lhe e consolá-lo para que não sucumba por demasiada tristeza. [87]” Mas ele sabia que este espírito que aflige os homens pode também trazer-lhes um bom arrependimento: é a razão pela qual são João Batista chamava aos que são picados por este demônio e se refugiam junto a Deus de “raça de víboras”, dizendo-lhes: “Ao ver, porém, que muitos dos fariseus e dos saduceus vinham ao seu batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura? Dai, pois, frutos de verdadeira penitência. Não digais dentro de vós: Nós temos a Abraão por pai! Pois eu vos digo: Deus é poderoso para suscitar destas pedras filhos a Abraão. [88]” Mas todo homem que, a exemplo de Abraão, deixou sua terra e sua família [89], este se torna mais forte do que este demônio. 97
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[XIV] 12. Quem dominou a irascibilidade dominou os demônios, mas quem é escravo deles é totalmente estranho à vida monástica e está fora dos caminhos de nosso Salvador, pois o próprio Senhor disse “ensinar o caminho aos mansos [90]”. Assim o intelecto dos anacoretas se torna difícil de capturar, quando foge pelas planícies da doçura. Pois quase nenhuma virtude é tão temida pelos demônios como a mansidão; é ela que o grande Moisés possuía, ele que foi chamado de “o mais manso dos homens [91]”; e o santo Davi declarou ser digno da lembrança de Deus, ao dizer: “Lembre-se de Davi e de toda a sua 102
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[84] Mateus XXV, 36. [85] Cf. Provérbios XVII, 22. [86] Jó XXX, 24. [87] 2 Coríntios II, 7-8. [88] Mateus III, 7-9. [89] Cf. Gênesis XII, 1. [90] Salmo XXIV, 9. [91] Números XII, 3.
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mansidão. [92]” Por outro lado, o próprio Salvador nos ordenou sermos imitadores desta doçura, quando ele disse: “Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. [93]” E se alguém se abstém de comidas e bebidas, mas excita sua parte irascível com maus pensamentos, este se parece com um barco que se faz ao largo tendo um demônio como piloto. Assim é preciso vigiar, tanto quanto possível, o cão que mora em nós e ensiná-lo a não atacar senão os lobos e a não devorar as ovelhas, mostrando toda a doçura para com todos os homens. 104
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[XV] 13. Único dentre os pensamentos, o da vanglória possui muita matéria; ele abarca quase toda a terra habitada e abre as portas a todos os demônios, como o faria um reles traidor para uma cidade. Ele também humilha particularmente o intelecto do anacoreta, enchendo-o com uma multitude de palavras e de objetos e corrompendo suas orações, graças às quais ele se esforça por curar todas as feridas de sua alma. É este pensamento que faz crescer todos os demônios que haviam sido destruídos, e é graças a ele que eles todos encontram um acesso para as almas, tornando realmente o “novo estado pior do que o primeiro [94]”. Deste pensamento nasce também o do orgulho, que precipitou dos céus sobre a terra “o selo da semelhança e a coroa da beleza”. “Vamos! Deixemos sem tardança este lugar [95]”, de medo que abandonemos nossa vida a outros e nossa existência a pessoas sem piedade. Este demônio é afugentado por uma prece intensa e pela recusa em fazer ou dizer voluntariamente qualquer coisa que possa contribuir para a glória maldita. 106
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14. Quando o intelecto dos anacoretas adquiriu um início de impassibilidade, então ele adquire o cavalo da vanglória e rapidamente desfila pelas cidades, locupletando-se com os elogios, vinho puro trazido pela glória. Por um desígnio providencial, o espírito da fornicação que vem ao seu encontro e que o atira a alguma porcaria o ensina a não deixar seu leito antes de haver recuperado a saúde perfeita, e a não imitar os doentes indisciplinados que, mesmo carregando em si as seqüelas da doença, metem-se em caminhadas e banhos inoportunos e têm recaídas. É por isso que, permanecendo sentados, estejamos mais atentos a nós mesmos; assim, progredindo na virtude, seremos difíceis de sermos arrastados pelo mal; renovando-nos na ciência [96], receberemos por outro lado uma abundância de contemplações variadas; e também elevandonos pela prece, receberemos uma visão mais clara da luz de nosso Salvador. 108
[XVI] 15. Não posso escrever sobre todas as maquinações dos demônios e tenho vergonha de enumerar seus estratagemas, temendo pelos meus leitores eventuais mais simplórios. Escutem no entanto como é a engenhosidade do demônio da fornicação. Quando alguém adquiriu a impassibilidade da parte concupiscente e fez com que os pensamentos vergonhosos sejam doravante um pouco esfriados, este demônio introduz homens e mulheres que se divertem juntos, e torna o anacoreta espectador de ações e atitudes condenáveis. Mas esta tentação não é das que mais duram, pois uma oração intensa e um regime estrito unido às vigílias e ao exercício das contemplações espirituais a expulsam “como uma nuvem sem água”. Às vezes, ele ataca a carne e faz o anacoreta ceder a um abrasamento animal. O maligno demônio inventa ainda mil outros estratagemas que não precisamos publicar e confiar à escrita. Contra tais pensamentos é extremamente eficaz a ebulição da parte irascível dirigida contra o demônio, parte que ele teme mais do que tudo quando ela é perturbada a propósito de pensamentos e destrói suas representações. É isto que significa: “Encolerize-se e não peque mais. [97]” Aplicado à alma, é um remédio 109
[92] Salmo CXXXI, 1. [93] Mateus XI, 29. [94] Cf. Mateus XII, 45. [95] Provérbios V, 9. [96] Cf. Colossenses III, 10. [97] Salmo IV, 5.
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útil nas tentações. Mas o demônio da cólera também sabe imitar este outro: ele também inventa parentes, amigos e conhecidos maltratados por celerados, e induz a parte irascível do anacoreta contra aqueles que lhe aparecem em pensamento; é preciso estar atento a isto e arrancar rapidamente do intelecto tais imagens, de medo que, ligando-se a elas, ele não se torne na hora da prece um “tição fumegante”. Os irascíveis são vítimas destas tentações, pois estão acima de tudo sujeitos às inflamações da cólera; eles estão longe da prece pura e da ciência de Cristo nosso Salvador. [XVII] 16. As representações deste século foram confiadas pelo Senhor ao homem como ovelhas a um bom pastor, pois foi dito: “Ele deu ao mundo o seu coração [98]”; para ajudá-lo, ele acrescentou-lhe a parte irascível e a parte concupiscente, a fim de que pela primeira ele afugente as representações que são os lobos, e pela segunda ele cuide das ovelhas, ainda que as chuvas e os ventos se abatam sobre ele. Ele lhe deu também “um pasto”, para que as ovelhas possam pastar, “um lugar de verdes pastagens e uma fonte de águas refrescantes [99]”, “uma harpa e uma cítara”, “um bastão e um cajado”, para que ele retire do rebanho alimento e vestes e para que, com seu rebanho, ele “pise as forrações nas montanhas”, pois foi dito: “Quem apascenta um rebanho e não se alimenta de seu leite? [100]” É preciso assim que o anacoreta guarde noite e dia este pequeno rebanho, de medo que uma das representações se torne presa das bestas selvagens ou caia nas mãos de algum ladrão, e, se qualquer coisa semelhante acontecer neste “valezinho florido”, ele deve sem tardança arrancá-la “da goela do leão e do urso [101]”. A representação concernente a um irmão se torna presa dos animais selvagens, se a fazemos pastar em nós com antipatia; a que concerne à mulher, se a nutrimos com concupiscência vergonhosa; a do ouro e da prata, se ela for guardada com cupidez; e as representações dos santos carismas, se a fizermos passear no espírito em companhia da vanglória. O mesmo acontecerá com as outras representações, quando se tornam vítimas das paixões. 110
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[XVIII] O anacoreta não deve apenas vigiá-las de dia, mas ainda guardá-las à noite velando, pois ele pode também perder seu bem em imaginações condenáveis e más. É o que disse o santo Jacó: “Não lhe apresentei os animais despedaçados, mas eu os compensava com os meus. Você me pedia contas do que era roubado de dia e de noite. De dia, eu era devorado pelo calor, e de noite pelo frio, e não conseguia pegar no sono. [102]” Mas se, sob o efeito da fadiga, nos sobrevier uma certa acídia, refugiemo-nos por um momento sobre o rochedo da ciência, tomemos nossa harpa e toquemos com as virtudes as cordas da ciência; depois voltemos a apascentar nossa ovelhas ao pé do monte Sinai, a fim de que o Deus de nossos pais nos chame, a nós também, do interior do arbusto [103] e nos faça, a nós também, a graça de conhecer as razões “dos sinais e dos prodígios”. 114
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17. Pela contemplação de todos os mundos, Cristo devolve à vida a natureza racional que o pecado havia levado à morte. Mas a alma desta natureza morta pela morte de Cristo recebe do Pai a vida pelo conhecimento de si mesmo. É o que diz São Paulo: “Se nós morremos com Cristo, acreditamos que também viveremos com ele [104]”. 116
[98] Jeremias XXXI, 33. [99] Cf. Salmo XXII, 2. [100] 1 Coríntios IX, 7. [101] Cf 1 Samuel XVII, 34 ss. [102] Gênesis XXXI, 39-40. [103] Cf. Êxodo III, 1-4. [104] 2 Timóteo II, 11.
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18. Quando o intelecto, depois de despir-se do velho homem, reveste-se daquele da graça, então ele verá seu próprio estado no momento da oração semelhante à safira ou a uma cor celeste, aquilo que a Escritura denomina o Lugar de Deus, que foi visto pelos antigos sobre o monte Sinai [105]. 117
[XXI] 19. Dentre os demônios impuros, alguns tentam o homem enquanto homem, enquanto outros perturbam o homem enquanto animal não dotado de razão. Quando são os primeiros que nos visitam, eles jogam em nós representações de vanglória, de orgulho, de inveja ou de maledicência, todas coisas que não atingem os seres desprovidos de razão. Quando são os segundos que se aproximam, eles arrastam nossa irascibilidade e nossa concupiscência num movimento contrário à sua natureza; pois temos estas partes passionais em comum com os animais sem razão, embora dissimuladas por nossa natureza racional. É por isso que o Espírito Santo diz àqueles que sucumbem aos pensamentos humanos: “Eu declaro: Embora vocês sejam deuses, e todos filhos do Altíssimo, vocês morrerão como qualquer homem. Vocês, príncipes, cairão como qualquer outro [106]”. Aos que são arrastados num movimento animal, que diz ele? “Não seja como o cavalo ou o jumento, que não compreendem nem rédea nem freio: deve-se avançar para domá-los, sem o que eles não se aproximarão de você. [107]” Se é verdade que “a alma pecadora morrerá [108]”, é evidente que os homens que morrem como homens serão enterrados por homens, enquanto que os que morrem ou tombam como animais serão devorados por abutres ou corvos, cujos filhos tanto “invocam o Senhor [109]” como “refestelam-se no sangue [110]”. “Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça! [111]” 118
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[XIX] 20. Quando um dos inimigos o visitar para feri-lo e você quiser, como está escrito, “voltar contra seu coração sua própria espada [112]”, aja da seguinte maneira. Divida em você o pensamento que ele enviou: o que é ele? De quantos elementos se compõe e dentre estes qual o que mais atormenta o intelecto? Eis o que quero dizer: admitamos que ele tenha enviado a você um pensamento de avareza; divida-o assim: o intelecto que o acolheu, a representação do ouro, o ouro em si e a paixão da avareza; pergunte a si mesmo qual destes elementos é um pecado. É o intelecto? Mas como? Ele é a imagem de Deus. Não seria a representação do ouro? Que homem sensato ousaria dize-lo? Não seria o próprio ouro o pecado? Mas com que finalidade ele foi criado? Segue-se daí que é o quarto elemento a causa do pecado, o que não é nem um objeto subsistindo essencialmente, nem a representação de um objeto e muito menos o intelecto incorpóreo, mas um prazer inimigo do homem, engendrado pelo livre arbítrio, que constrange o intelecto a fazer um mau uso das criaturas de Deus: é este prazer que a lei de Deus está encarregada de circuncidar. No decurso de sua investigação, o pensamento, reabsorvido no seu próprio exame, será destruído, e o demoníaco fugirá para longe de você, pois seu espírito terá sido erguido nas alturas por esta ciência. 124
Se você não quiser utilizar a espada do inimigo, mas antes quiser abatê-lo com sua funda, lance, você também, uma pedra tirada de seu saco de pastor [113] e faça o exame a seguir: considere como os anjos e os demônios visitam nosso mundo, mas nós não visitamos seus mundos, porque não podemos nem unir os anjos a Deus nem tornar os demônios mais impuros; considere ainda como Lúcifer, que se levanta antes 125
[105] Cf. Êxodo XXIV, 10. [106] Salmo LXXXI, 6-7. [107] Salmo XXXI, 9. [108] Ezequiel XVIII, 4. [109] Cf. Salmo CXLVI, 9. [110] Cf. Jó XXXIX, 30. [111] Mateus XI, 5. [112] Salmo XXXVI, 15. [113] Cf. 1 Samuel XVII, 40.48 ss.
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da aurora, caiu sobre a terra [114] e como ele “considera o mar como um vidro de perfume e o Tártaro do abismo como um prisioneiro, e faz ferver o abismo como uma caldeira [115]”, perturbando todos os seres com sua malícia e tentando dominar a todos. A contemplação dessas coisas fere gravemente o demônio e derrota todo seu acampamento. Mas isto só acontece aos que atingiram um certo grau de pureza e que começam a entrever as razões dos seres. Quanto aos impuros, eles ignoram a contemplação dessas coisas, e ainda que eles as aprendam de outros e as repitam como um encantamento, eles não se farão ouvir, devido à espessa poeira e ao tumulto provocado pelas paixões nesta guerra. É preciso necessariamente que o acampamento dos estrangeiros esteja em calma, para que Golias saia sozinho ao encontro do nosso Davi [116]. Utilizemos do mesmo modo tanto a análise como esta forma de guerra em relação a todos os pensamentos impuros. 126
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21. Quando certos pensamentos impuros são postos em fuga rapidamente, busquemos a causa: de onde eles vieram? Será devido à raridade do objeto, pelo fato de ser difícil encontrar a matéria necessária, ou devido à impassibilidade presente em nós, que o inimigo nada pode fazer? Por exemplo: se um anacoreta que é atormentado por um demônio põe na cabeça que lhe será confiado o governo espiritual da capital, é evidente que ele não imaginará esta ideia por muito tempo, e a razão disto é fácil de ver a partir do que já dissemos. Mas se se tratar de qualquer cidade ou aldeia, e se ele ainda estiver na mesma disposição de espírito, feliz ele será por sua impassibilidade! Da mesma maneira, para os outros pensamentos, podemos encontrar um método semelhante a este que acabamos de experimentar. É necessário, para nosso ardor e nossa força, conhecer estas coisas, a fim de que saibamos se atravessamos o Jordão e estamos próximos da cidade das palmeiras [117] ou se continuamos a viver no deserto, expostos aos ataques dos estrangeiros. 129
O demônio da avareza parece-me revestir-se de muitas formas e ser muito hábil em enganar [118]: encurralado pela suprema renúncia, ele finge ser econômico e amigo dos pobres; ele acolhe generosamente os hóspedes que não são tão pobres assim, envia auxílio a outros que são abandonados, visita as prisões da cidade, resgata os que foram postos à venda; ele não larga as mulheres ricas e lhes indica aqueles que devem ser bem tratados; aos que possuem uma bolsa rica ele exorta a que a abandonem. E assim, após haver pouco a pouco enganado a alma, ele a encerra em pensamentos de avareza e a entrega ao demônio da vanglória. 130
[XXIII] Este último introduz uma multidão de pessoas que louvam o Senhor por tal administração e, insensivelmente, introduz também algumas pessoas que começam a falar entre si de uma prelazia; a seguir ele prediz a morte do prelado e acrescenta que o homem não escapará [de ganhar a prelazia] depois de todo o bem que fez. Assim, o infeliz intelecto, ligado nestes pensamentos, rechaça os que não aceitaram a ideia e apressa-se a cumular de presentes os que aceitaram, louvando-lhes o bom senso; aos que se revoltam, ele envia a lei e pede aos juízes que sejam banidos da cidade. Agora que estes pensamentos vão e vêm nele, eis que surge o demônio do orgulho que encena ininterruptos clarões no espaço da cela e envia dragões alados até finalmente provocar a perda do espírito. Quanto a nós, depois de termos pedido em nossas orações a desaparição desses pensamentos, vivamos na pobreza rendendo graças: pois “nós evidentemente não trouxemos nada a este mundo e dele nada levaremos; uma vez que temos alimentos e
[114] Cf. Isaías XIV, 12. [115] Jó XLI,23 [116] Cf. 1 Samuel XVII. [117] Cf. Deuteronômio XXXIV, 3. [118] Cf. P.G.: eumèchanos.
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vestes, contentemo-nos com isto [119]”, lembrando-nos de Paulo, que disse que “a avareza é a raiz de todos os males [120]”. 131
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22. Todos os pensamentos impuros que persistem em nós por causa das paixões fazem o intelecto decair “até a ruína e a perdição”. Pois assim como a representação do pão persiste no esfomeado por causa da fome e a representação da sede persiste no sedento por causa da sede, também as representações de riquezas e bens persistem devido à cupidez, e as representações das comidas e dos pensamentos condenáveis engendrados pelos alimentos persistem devido às paixões. A mesma evidência se impõe no que tange aos pensamentos da vanglória e a outras representações. Não é possível que um intelecto inchado por tais representações se apresente diante de Deus e cinja-se da coroa da justiça [121]. É por ser puxado em todas as direções por esses pensamentos que este intelecto triplamente desafortunado, nos Evangelhos, recusa a refeição da ciência de Deus [122]; e ainda, aquele cujas mãos e pés foram amarrados e que foi atirado às trevas exteriores [123], vestia uma roupa tecida com pensamentos: o que o convidara declarou que ele era indigno de tais bodas, pois a veste nupcial é a impassibilidade da alma racional que renunciou às ambições do mundo. A razão pela qual as persistentes representações de objetos sensíveis destroem a ciência será apresentada nos Capítulos sobre a oração. 133
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[XXIV] 23. Dentre os demônios que se opõem à prática, existem três assaltantes de primeira linha, aos quais segue todo o destacamento dos estrangeiros: são os primeiros a se apresentar ao combate e convidam as almas ao mal por meio de pensamentos impuros: são os encarregados dos apetites da gula, os que nos sugerem a avareza e os que nos empurram a procurar a glória entre os homens. Você que aspira à prece pura vigie sua irascibilidade e você que ama a continência domine seu ventre; não dê pão ao seu estômago até a saciedade e racione a água; vigie durante a oração e afaste de você o rancor; que as palavras do Espírito Santo não o abandonem e bata às portas da Escritura tendo as virtudes como mãos. Então levantar-se-á para você a impassibilidade do coração e você verá na oração seu intelecto semelhante a um astro.
[119] 1 Timóteo VI, 7. [120] 1 Timóteo VI, 10. [121] Cf. 2 Timóteo IV, 8. [122] Cf. Lucas XIV, 18 ss. [123] Cf. Mateus XXII, 2-14.
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CAPÍTULOS NÉPTICOS
1. [124] [29] Eis o que dizia nosso mestre santo e prático: é preciso que o monge esteja sempre pronto, como se ele fosse morrer amanhã, e, inversamente, que ele use seu corpo como se tivesse que viver com ele por inúmeros anos. Isto, com efeito, dizia ele, afasta os pensamentos da acídia e torna o monge mais zeloso e, por outro lado, mantém seu corpo em boa saúde, e mantém sempre constante sua abstinência. 136
2. [32] Aquele que alcançou a ciência e que colheu o prazer que ela oferece não se deixará mais convencer pelo demônio da vanglória, mesmo que ele lhe proponha todos os prazeres do mundo. Com efeito, o que pode ser prometido de maior que a contemplação espiritual? Mas, desde que ainda não experimentamos a ciência, exerçamo-nos ardentemente à prática, mostrando a Deus que nosso objetivo é fazer tudo em vista da ciência. 3. [91] É preciso também consultar os caminhos dos monges que nos precederam no bem e nos regrarmos por eles. Pois podemos encontrar muitas coisas bonitas ditas ou feitas por eles, como, por exemplo, isto: que um regime seco e regular unido à caridade conduz rapidamente o monge à impassibilidade. 4. [94] Fui visitar, em pleno meio-dia, o santo padre Macário e, queimando de sede, pedi para beber um pouco de água. “Contente-se com a sombra, disse-me ele, pois muitos dos que agora caminham ou navegam não têm sequer isto”. Em seguida, como eu lhe falasse da abstinência: “Coragem, meu jovem!, disse ele. Durante vinte anos inteiros, eu não tive o bastante nem de pão, nem de água, nem de sono. De fato, eu pesava o pão, media a água de beber e, apoiando-me contra a parede, roubava uma pequena parte do sono.” 5. [15] Quando o intelecto vagueia, a leitura, a vigília e a oração fixam-no. Quando a concupiscência se inflama, a fome, a provação e a anacorese a extinguem; quando a parte irascível está agitada, a salmódia, a paciência e a misericórdia a acalmam. Tudo isso no momento e na medida conveniente; pois o que é imoderado e inoportuno dura pouco, e o que dura pouco é mais nocivo do que útil.
[124] Indicamos entre colchetes o capítulo correspondente no Tratado Prático.
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NILO, O ASCETA Prólogo
Eu queimava com a febre das paixões impuras quando, como de hábito, o contato com sua piedosa carta me restabeleceu. Você reconfortou meu intelecto que era presa das maiores vergonhas e você imitou assim com grande felicidade o grande Preceptor e Mestre. Isto não é de espantar, pois a sua parte sempre foi excelente, como a de Jacó [125] o bendito . De fato, depois de haver trabalhado por Raquel e recebido Lia, você obteve também aquela a quem [126] desejava, tendo cumprido os sete anos convencionados . Quanto a mim, não negarei que, depois de haver [127] penado toda a noite, não apanhei nada . Mas, com suas palavras, atirei a rede e pesquei uma quantidade de [128] peixes, não muito grandes, penso eu, mas em número de cento e cinqüenta e três , e eu os envio a você na coroa da caridade, em outros tantos capítulos, para cumprir as suas ordens. 137
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Eu o admiro e invejo o excelente propósito que o fez desejar estes capítulos sobre a oração. Pois você não quer apenas os que estão ao alcance da mão e que existem, graças à tinta, nos pergaminhos, mas aqueles que a caridade e a ausência de ressentimentos fixam no intelecto. Como todas as coisas vêm aos pares, face a face, segundo o sábio Jesus [129], receba o que eu lhe envio ao pé da letra e também conforme o espírito, dado que sempre a inteligência prevalece sobre a letra; se aquela faltar, a segunda nem chega a existir. Assim, portanto, a oração comporta dois modos, um ativo e outro contemplativo; como acontece com os números, existe aquilo que é palpável, a quantidade, e o significado, a qualidade. 141
De fato, nós dividimos o tratado sobre a oração em cento e cinqüenta e três capítulos, oferecendo um conjunto [130] bastante evangélico . Você encontrará aqui o encanto de um número simbólico, uma figura triangular e uma hexagonal, que representam ao mesmo tempo o conhecimento da Trindade e a circunscrição do mundo presente. O número cem, em si mesmo, é quadrado; cinqüenta e três, triangular e esférico; vinte e oito, à parte, é triangular, e vinte e cinco, esférico; pois cinco vezes cinco é vinte e cinco. Você tem então no número vinte e cinco não apenas a figura quadrada para o quaternário das virtudes, mas também o círculo para o conhecimento verdadeiro deste 142
[125] [126] [127] [128] [129] [130]
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Cf. Gênesis XXX, 43. Cf. Gênesis XXIX, 20-30. Cf. Lucas V, 5. Cf. João XXI, 11. Eclesiástico XLII, 24; trata-se de Jesus, filho de Sirac, autor do livro do Eclesiástico (cf. LI, 30). Cf. João XXI, 11.
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mundo, por causa do curso circular dos tempos. Pois eles se desenrolam semana após semana, mês após mês, ano após ano, estação após estação, como vemos pelo movimento do sol e da lua, da primavera, do verão, e assim por diante. O triângulo pode significar também o conhecimento da Santíssima Trindade. Segundo outra interpretação, se você tomar cento e cinqüenta e três como triangular de uma multitude de números, você verá aí a prática, a contemplação natural e a teologia; ou ainda a fé, a esperança e a caridade, ouro, prata e pedras preciosas.
Isto quanto ao número. Quanto aos capítulos, você não os desdenhará por sua aparência humilde e saberá se adaptar tanto à abundância quanto à carência [131], lembrando-se daquele que não desprezou os dois vinténs da viúva e que os recebeu com mais contentamento do que a riqueza de muitos outros [132]. Reconhecendo assim o fruto da bemaventurança e da caridade, você os guardará para os seus verdadeiros irmãos, rogando-lhes que rezem pelo enfermo a fim de que ele se cure e que, carregando sua maca, ele caminhe daí por diante pela graça de Cristo [nosso verdadeiro Deus, a quem seja dada a glória pelos séculos dos séculos]. Amém. 143
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[131] Cf. Filipenses IV, 21. [132] Cf. Lucas XXI, 3.
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CAPITULOS SOBRE A PRECE 1. Se quisermos preparar um perfume de bom odor, devemos misturar em partes iguais, conforme a lei [133], o incenso diáfano, a canela, o ônix e a mirra. Este é o quaternário das virtudes. Se elas forem completas e iguais, o intelecto não será traído. 145
2. A alma purificada pelo cumprimento dos mandamentos [pela plenitude das virtudes] torna inquebrável a atitude do intelecto, e apto a receber o estado estável desejado. 3. A prece é uma conversa do intelecto com Deus; quanta estabilidade não deve ter a inteligência para tender, sem volta atrás, constantemente para o Senhor e conversar com ele sem nenhum intermediário? 4. Se Moisés, quando tentou se aproximar da sarsa ardente, foi impedido até que tirasse as sandálias dos pés [134], como pretende você ver Aquele que está acima de todo pensamento, sem se desembaraçar de todo e qualquer pensamento apaixonado? 146
5. Reze primeiro para receber o dom das lágrimas, a fim de amolecer pelo luto a dureza inerente à sua alma e para que, confessando contra você mesmo suas iniqüidades ao Senhor, você obtenha o seu perdão. 6. Use as lágrimas para obter sucesso em todas as suas demandas, pois o seu Senhor se alegra quando você ora com lágrimas. 7. Quando você verte fontes de lágrimas em sua oração, não se coloque no alto, como se você estivesse acima da maior parte dos seus semelhantes; o que houve foi simplesmente que a sua oração recebeu uma ajuda para que você pudesse com ardor confessar seus pecados e agradar ao Senhor com suas lágrimas. Não transforme em paixão o antídoto das paixões, se você não quiser começar irritando o doador da graça. 8. Muitos daqueles que choraram sobre seus pecados, esquecendo-se do objetivo das lágrimas, enlouqueceram ou se perderam pelo caminho. 9. Mantenha-se valorosamente e reze energicamente; afaste as preocupações e as cogitações que aparecerem, pois elas perturbam e agitam para enervar o seu vigor. 10. Quando os demônios o vêem cheio de ardor para a prece verdadeira, eles começam então a lhe sugerir idéias sobre certos objetos pretensamente necessários; logo eles excitam as lembranças ligadas a eles, forçando o intelecto a ir buscá-los; depois, como este não os encontra, ele se entristece e se lamenta. Então, no momento da prece, eles lhe rememoram os objetos de suas buscas e de suas lembranças, a fim de que o intelecto, levado a deter-se neles, perca a oração frutífera.
[133] Êxodo XXX, 34. [134] Cf. Êxodo III, 5.
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11. Esforce-se por tornar seu intelecto surdo e mudo no momento da prece, e você poderá orar. 12. Se lhe sobrevier alguma provocação ou contradição e você se sentir irritado e perceber a cólera se levantar para dar o troco ou replicar, lembre-se da oração e do julgamento que o aguarda nela, e logo o movimento desordenado se acalmará em você. 13. Tudo o que você fizer para se vingar de um irmão que lhe fez mal, se tornará uma pedra de tropeço no momento da oração. 14. A prece é um broto da doçura e da ausência de cólera. 15. A prece é o fruto da alegria e da ação de graças. 16. A prece é a exclusão da tristeza e do desencorajamento. 17. Vai, vende tudo o que você possui e dê aos pobres [135]; depois, tome a sua cruz e renegue a si mesmo [136] para poder orar sem distração. 147
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18. Se você quiser orar dignamente, renegue a si próprio todo o tempo; e se você suporta todo tipo de barulho e agitação, aceite isto sabiamente para a oração. 19. Para cada pena que você suportar com sabedoria, você colherá o fruto no momento da oração. 20. Se você quer orar como se deve, não entristeça a ninguém, caso contrário será vã a sua corrida. 21. Deixe sua oferenda, como foi dito, diante do altar, e vá primeiro se reconciliar com seu irmão [137], para que depois, ao voltar, você possa orar sem perturbação. Pois a raiva cega a razão daquele que ora e entenebrece sua oração. 149
22. Aqueles que acumulam interiormente penas e rancores [e que pensam rezar] assemelham-se a alguém que tenta encher com água um balde furado. 23. Se você for perseverante, você rezará sempre com alegria. 24. Enquanto você estiver orando como se deve, apresentar-se-ão a você coisas tais que você considerará justo o uso da cólera. Ora, não existe cólera justa contra o próximo, em hipótese alguma. Se você procurar,
[135] Cf. Mateus XIX, 21. [136] Cf. Mateus XVI, 24. [137] Cf. Mateus V, 24.
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verá que sempre é possível arrumar as coisas sem cólera. Portanto, use de todos os meios para não se deixar explodir pela cólera. 25. Cuidado para que, sob pretexto de curar alguém, não se torne você mesmo incurável e não dê um golpe fatal à sua oração. 26. Se você se abstiver da cólera, você obterá a misericórdia; você provará que é demasiado prudente para se deixar enganar, e poderá ser contado entre aqueles que verdadeiramente oram. 27. Armado contra a cólera, você não admitirá jamais a concupiscência; pois é ela que fornece o material para a cólera, e esta perturba o olho do intelecto, destruindo assim o estado de oração. 28. Não ore somente nas atitudes exteriores, mas coloque sua inteligência no sentimento da prece espiritual, com grande temor. 29. Às vezes, mal iniciada a oração, você estará orando bem; às vezes, ao contrário, malgrado todos os seus esforços, você não alcançará este objetivo. É para que você procure sempre mais, pois, após obter este resultado, você o possuirá ao abrigo de todos os predadores. 30. Quando um anjo aparece, no mesmo instante todos aqueles que perturbavam desaparecem, e o intelecto encontra-se numa grande calmaria na qual ele reza alegremente. Às vezes, ao contrário, a guerra cotidiana nos acossa; o intelecto se debate sem poder erguer os olhos. É porque ele foi afetado pelas paixões. Porém, se procurar mais, ele encontrará; se bater vigorosamente, ser-lhe-á aberto. 31. Não ore para que se cumpram as suas vontades, pois elas não necessariamente coincidem com a vontade de Deus. Antes, conforme o ensinamento, reze dizendo: Que a sua vontade se cumpra em mim [138]; do mesmo modo, em todas as coisas, reze para que se faça a vontade de Deus, pois ele sempre quer o bem e o que for mais proveitoso para a sua alma, e você nem sempre busca a mesma coisa. 150
32. Muitas vezes, em minhas orações, eu pedi que se cumprisse aquilo que eu estimava bom para mim, e eu me obstinava em meu pedido, violentando tolamente a vontade de Deus, sem dirigir-me a ele para que a respeito ele ordenasse aquilo que soubesse ser o mais útil para mim; entretanto, ao receber a coisa, grande era minha decepção por não ter solicitado o cumprimento da vontade de Deus de preferência ao cumprimento do meu desejo, pois nada do que recebi de meu pleito era tal como aquilo que eu havia imaginado. 33. O que há de bom, senão Deus? Por conseguinte, deixemos com ele tudo o que nos concerne e ficaremos bem. Pois quem é bom, é necessariamente provedor de dons excelentes.
[138] Cf. Mateus, VI, 10.
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34. Não se aflija se você não receber imediatamente de Deus aquilo que você pede; é que ele quer ainda mais o seu bem, por sua perseverança em permanecer com ele na oração. De fato, o que existe de mais elevado do que conversar com Deus e recolher-se à sua intimidade? 35. A oração sem distração é a mais alta compreensão do intelecto. 36. A prece é uma ascensão do intelecto para Deus. 37. Se você quer orar, renuncie a tudo para obter o todo. 38. Reze primeiramente para ser purificado das paixões. Depois para ser libertado da ignorância e do esquecimento, e finalmente para se livrar de toda tentação e de todo o abandono espiritual. 39. Na oração, procure unicamente a justiça e o reino, ou seja, a virtude e a gnose, e todo o mais lhe será acrescentado [139]. 151
40. É justo orar não apenas por sua salvação, mas pela salvação de todo o seu povo, a fim de imitar uma postura angélica. 41. Verifique se você está realmente presente a Deus em sua oração, ou se você foi vencido pelos elogios humanos e levado pelo desejo de obtê-los, sob pretexto da duração de sua prece. 42. Quer você reze com os irmãos, quer só, esforce-se para rezar, não por hábito, mas com sentimento. 43. O sentimento [o caráter próprio] da prece é uma gravidade respeitosa acompanhada da compunção e da dor da alma no confessar as faltas, com gemidos secretos. 44. Se o seu intelecto divaga ainda durante o tempo da oração, é porque ele ainda não ora como monge, mas ainda permanece no mundo, ocupado em decorar a tenda exterior. 45. Ao rezar, vigie fortemente a memória, de modo a que, ao invés de lhe sugerir lembranças, ela o leve à consciência do seu exercício, pois o intelecto tem uma terrível tendência a se deixar confundir pela memória no momento da oração. 46. Quando você rezar, a memória lhe apresentará imagens de coisas antigas, ou de novos assuntos, ou o rosto de alguém que lhe fez mal. 47. O demônio é extremamente ciumento em relação ao homem que ora e ele usa de todos os artifícios para fazê-lo perder o objetivo. Ele não cessa de reavivar na memória o pensamento das coisas e de despertar na carne todas as paixões, a fim de entravar seu curso tão belo e seu êxodo para Deus.
[139] Cf. Mateus VI, 33.
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48. Quando, depois de muitos gemidos, o demônio perverso não conseguiu entravar a oração do justo [140], ele então se retira um pouco, mas logo toma a revanche sobre aquele que ora. Ele incendeia suas preces para destruir o estado excelente que se instalou nele pela oração, ou então ele o excita a algum prazer descabido para ultrajar o intelecto. 152
49. Depois que você rezou como convém, espere por aquilo que não convém; coloque-se virilmente em pé para vigiar o fruto da oração. A isto você foi predestinado desde o princípio: trabalhar e vigiar [141]. Depois de haver trabalhado, portanto, não deixe sem guarda o seu trabalho, caso contrário ele não terá lhe servido para nada. 153
50. Toda a guerra travada entre nós e os demônios impuros não tem outra motivação do que a prece espiritual. Pois esta lhes é hostil e odiosa; mas para nós, ela é salutar e agradável. 51. O que têm em vista os demônios quando despertam em nós a gulodice, a impureza, a inveja, a cólera, o rancor e as outras paixões? Eles querem que o nosso intelecto, perturbado por elas, não possa rezar como deveria, porque as paixões da parte irracional assumem a liderança e o impedem de se mover segundo a razão; isto é, segundo as razões dos seres enquanto objeto de contemplação, que o intelecto deveria usar para atingir a Razão (o Logos: o Verbo) de Deus. 52. Nós atingimos as virtudes (primeiro grau: a vida ativa) em vista das razões dos seres criados (segundo grau: contemplação inferior), e estas em vista do Verbo que as estabeleceu (terceiro grau: teologia); quanto ao Senhor, ele costuma aparecer no estado de oração. 53. O estado de oração é um hábito impassível que, por um amor supremo, transporta aos cumes intelectuais a inteligência ávida de sabedoria espiritual. 54. Não é somente a cólera e a concupiscência que devem ser dominadas por quem aspira a orar verdadeiramente; é preciso ainda desembaraçar-se de todo pensamento apaixonado. 55. Aquele que ama a Deus conversa incessantemente com Ele como com um Pai, despojando-se de todo pensamento passional. 56. Não é por termos atingido a apatheia (a impassibilidade) que iremos rezar verdadeiramente, pois podemos nos ater aos pensamentos simples e, mesmo assim, nos distrairmos em sua meditação, ficando, portanto, longe de Deus. 57. Digamos que o intelecto não se detenha nos pensamentos simples; nem por isto ele atingiu o lugar da oração, pois pode se encontrar na fase da contemplação dos objetos, divagando sobre suas motivações; ora, essas motivações, mesmo sendo expressões simples, imprimem, enquanto considerações de objetos, uma marca no intelecto que o afastam muito de Deus. [140] Cf. Tiago V, 16. [141] Cf. Gênesis II, 15.
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58. Suponhamos que o intelecto se eleve acima da contemplação da natureza corporal. Ainda assim ele não terá uma visão completa de Deus, pois ele pode se encontrar ainda sujeito à ciência das coisas inteligíveis, participando de sua multiplicidade. 59. Se você quiser orar, você precisará de Deus, que dá a oração a quem ora [142]. Invoque-o, portanto, dizendo: Santificado seja o seu nome, venha a nós o seu reino [143], vale dizer, o Espírito Santo e seu Filho único, pois é isto que ele ensinou quando ordenou adorar ao Pai em espírito e verdade [144]. 154
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60. Aquele que reza em espírito e em verdade, não busca nas criaturas os louvores que dedica ao Criador: é em Deus mesmo que ele louva a Deus. 61. Se você for um teólogo, rezará verdadeiramente; e se você rezar verdadeiramente, será um teólogo . 62. Quando o seu intelecto, tomado por um ardente amor a Deus, sai, por assim dizer, pouco a pouco da sua carne, quando ele rejeita todos os pensamentos que provêm dos sentidos, da memória ou do temperamento, ao mesmo tempo em que se enche de respeito e de alegria, então você pode se considerar próximo dos confins da oração. 63. O Espírito Santo, compadecido de nossa fraqueza, nos visita ainda que não estejamos purificados; se por acaso ele encontrar nosso intelecto orando com toda sinceridade, ele surgirá nele e dissipará toda a falange dos raciocínios e os pensamentos que o assediam e o transportará ao amor da prece espiritual. 64. Enquanto outros se servem das alterações do corpo para fornecer à inteligência raciocínios, conceitos e reflexões, ele, o Senhor, faz o contrário: ele se dirige diretamente ao intelecto para colocar aí a gnose conforme sua vontade; e, pelo intelecto, ele acalma o desequilíbrio do corpo. 65. Quem aspira à prece verdadeira mas explode em cólera ou guarda rancor, dá mostras de demência. Assemelha-se a alguém que quer ter uma visão aguda e para isto fura os olhos. 66. Não imagine que a divindade está em você quando estiver rezando, nem permita que seu intelecto aceite a impressão de uma forma qualquer; conserve-se imaterial diante do Imaterial, e assim, você compreenderá. 67. Tome cuidado com as armadilhas dos adversários: pode acontecer que, enquanto você estiver rezando com pureza e sem perturbação, se apresente repentinamente na sua frente uma forma desconhecida e estranha, para induzi-lo à presunção de nela localizar Deus e fazer com que você tome pela Divindade o objeto quantitativo que surgiu repentinamente aos seus olhos; ora, a Divindade não tem quantidade nem imagem.
[142] Cf. 1 Samuel II, 9. [143] Cf. Mateus VI, 9. [144] Cf. João IV, 24.
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68. Quando o demônio invejoso fracassa na tentativa de perturbar a memória durante a oração, ele tenta violentar a compleição do corpo para despertar na inteligência algum fantasma desconhecido e, assim, dar-lhe forma. O intelecto, acostumado a ver tudo conceitualmente, é, assim, facilmente subjugado: aquele que tendia apenas ao conhecimento imaterial e sem forma, se deixa iludir e toma a fumaça pela luz. 69. Mantenha-se em guarda, defendendo seu intelecto de todo e qualquer conceito, no momento da oração, para que ele seja firme na sua tranqüilidade própria (de sua natureza original). Então, Aquele que se compadece dos ignorantes virá em seu auxílio, e assim você receberá um glorioso dom de oração. 70. Você não poderá possuir a pureza da oração se estiver sobrecarregado de coisas materiais e perturbado por preocupações contínuas, pois a oração é a supressão dos pensamentos. 71. É impossível correr travado. O intelecto submetido às paixões não consegue encontrar o lugar da oração espiritual porque é arrastado em todas as direções pelo pensamento apaixonado e não consegue se manter inflexível. 72. Uma vez que o intelecto atingiu a prece pura, desembaraçada das paixões, os demônios já não o atacam pela esquerda, mas pela direita. Eles lhe representam uma visão ilusória de Deus em alguma imagem agradável aos sentidos, de modo a fazê-lo acreditar ter obtido completamente a objetivo da oração. Ora, dizia um admirável gnóstico, esta é a obra da paixão da vanglória e de um demônio cujo toque faz palpitar as veias do cérebro. 73. Eu penso que o demônio, ao tocar o local mencionado, configura à vontade a luz ao redor do intelecto, e assim a paixão da vanglória é posta em um raciocínio que o intelecto passa a moldar para localizar, aturdido, a ciência divina e essencial. E como a esta altura ele não é mais atacado pelas paixões carnais e impuras, mas ora verdadeiramente com pureza, ele imagina que nenhuma ação inimiga se exercerá mais obre ele. Assim, ele é levado a considerar como divina a aparição produzida nele pelo demônio por meio deste temível estratagema que consiste, como dissemos, em provocar no cérebro certas reações na luz que está ali presente, e assim apresentar uma forma ao intelecto. 74. O anjo de Deus, chegando subitamente, expulsa de nosso interior, com uma só palavra, toda ação adversa e devolve a luz do intelecto a uma atividade sem desvios. 75. Quando o Apocalipse fala dos anjos que tomam incenso para colocá-lo nas orações dos santos [145], creio que se trata desta graça operada pelos anjos. De fato, eles comunicam o conhecimento da oração verdadeira, de sorte que o intelecto permaneça daí em diante sem deflexões, desencorajamento ou acídia. 157
76. Os perfumes das taças são considerados como as preces dos santos oferecidas pelos vinte e quatro anciãos [146]. 158
77. Como taças, devemos entender o amor de Deus, ou seja, a caridade perfeita e espiritual na qual a oração se cumpre em espírito e em verdade. [145] Cf. Apocalipse VIII, 3. [146] Apocalipse V, 8.
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78. Se lhe parece que em suas orações você não tem necessidade de lágrimas pelos seus pecados, considere o quanto você está afastado de Deus quando você deveria estar com ele sem cessar, e você chorará mais calorosamente. 79. Certamente, se você tiver consciência dos seus limites, a compunção lhe será mais fácil; você chamará a si mesmo de miserável, como Isaías [147], porque, sendo impuro e tendo os lábios impuros, do meio do povo, quero dizer, do povo inimigo, você ousará se apresentar ao Senhor dos Exércitos. 159
80. Se você rezar verdadeiramente, atingirá uma grande plenitude, os anjos o escoltarão como a Daniel e o iluminarão quanto às razões dos seres. 81. Saiba que os santos anjos nos incitam à oração e que então eles se colocam ao nosso lado, felizes e orando por nós. Assim, se formos negligentes e acolhermos pensamentos estranhos, nós os irritaremos muito, por que, enquanto eles lutam bravamente por nós, nós sequer suplicamos a Deus por nós mesmos; desprezando seus serviços, nós abandonamos a Deus nosso Senhor para irmos ao encontro dos demônios impuros. 82. Reze como se deve e sem perturbação; salmodie com atenção [148] e harmonia, e você será como uma pequena águia planando nas alturas. 160
83. O salmodiar acalma as paixões e apazigua a intemperança do corpo; a oração faz o intelecto exercer sua atividade própria. 84. A oração é a atividade que convém à dignidade do intelecto; ela é o seu hábito mais excelente, adequado e completo. 85. A salmódia depende da sabedoria multiforme [149]; a oração é o prelúdio do conhecimento (gnose) imaterial e uniforme. 161
86. O conhecimento (gnose) é excelente, pois ele colabora com a oração despertando a potência intelectual do intelecto à contemplação da gnose divina. 87. Se você não tiver ainda recebido o carisma da oração e da salmódia, persevere: você o receberá. 88. Ele lhes contou uma parábola para mostrar que se deve rezar sempre sem relaxar [150]. Portanto, não relaxe por esperar, não se desencoraje por não haver recebido; você receberá em seguida. E ele concluiu a parábola assim: “Embora eu não tema a Deus nem me preocupe com os homens, ao menos, por causa do 162
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Cf. Isaías VI, 5. Cf. Salmo XLVI, 8. Cf. Efésios III, 10. Cf. Lucas XVIII, 1-8.
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embaraço que me faz esta mulher, eu lhe farei justiça. Assim, Deus também fará justiça aos que clamam por ele dia e noite, e prontamente. [151]” Então, tenha coragem e persevere valorosamente na santa oração. 163
89. Não queira que aquilo que lhe diz respeito se arranje segundo as suas idéias, mas segundo o bel prazer de Deus; assim você não terá preocupações e estará cheio de gratidão nas suas orações. 90. Mesmo que lhe pareça estar com Deus, cuidado com o demônio da luxúria, pois ele é muito enganador e extremamente ciumento. Ele é quase mais rápido do que o movimento, a sobriedade e a vigilância do intelecto, a ponto de arrastá-lo para longe de Deus ao mesmo tempo em que ele permanece ao lado deste último com temor respeitoso. 91. Se você se dedica à oração, prepare-se para os ataques dos demônios e suporte valorosamente seus golpes; pois eles se atirarão como feras sobre você e farão todo tipo de mal ao seu corpo. 92. Prepare-se como um lutador experiente para não vacilar, mesmo se de repente você vir um fantasma; para não se deixar perturbar, mesmo diante da figura de uma espada brandida contra você ou um relâmpago disparado contra seu rosto; para não deixar fraquejar minimamente sua coragem, mesmo diante de um espectro medonho e sangrento; mantenha-se firme e busque a bela profissão de fé [152], e você suportará com o coração leve a visão dos seus inimigos. 164
93. Quem suportar a agitação obterá também as consolações; e a quem for constante nos transes desagradáveis, não faltarão os agradáveis. 94. Tome cuidado para que os demônios enganadores não o enganem com alguma visão; esteja atento, recorra à oração e invoque a Deus, para que, se a representação vier dele, ela o esclareça por si só; se não, que ele se apresse a expulsar de você o sedutor. Tenha confiança: os cães não conseguirão ficar; se você se entregar a uma súplica ardente, sem voltar atrás, invisivelmente e sem se mostrar, o poder de Deus os fustigará e os expulsará para bem longe. 95. É bom que você não ignore o seguinte truque: às vezes, os demônios se dividem, e se você parece querer buscar auxílio [contra uns], os outros entram em cena sob formas angélicas e expulsam os primeiros, para que você se engane pensando serem verdadeiros anjos. 96. Esforce-se para adquirir muita humildade e muita coragem, e os insultos dos demônios não alcançarão a sua alma; nenhum flagelo se aproximará de sua tenda, porque ele dará ordens em seu favor aos seus anjos para que eles o guardem [153]; e os anjos expulsarão invisivelmente para longe de você todas as empreitadas hostis. 165
[151] Lucas XVIII, 4. [152] Cf. 1 Timóteo VI, 12. [153] Cf. Salmo XC, 10-11.
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TI, VI – NILO, O ASCETA – Capítulos sobre a prece.
97. Quem se dedica à oração pura escutará barulhos e agitações, vozes e insultos; mas ele não fraquejará, nem perderá o sangue frio, dizendo a Deus: “Eu nada temo, porque o Senhor está comigo [154]”, e outras coisas assim. 166
98. Quando você tiver tentações desse tipo, recorra a uma oração breve e veemente. 99. Se os demônios ameaçam aparecer subitamente nos ares, derrubá-lo e saquear seu intelecto, não se apavore; nem dê atenção às suas ameaças. Eles o amedrontam para ver se, decididamente, você ainda se ocupa com eles, ou se já conseguiu desprezá-los completamente. 100. Se é na presença de Deus, o Todo-Poderoso, Criador e Providência, que você está durante a prece, porque você traz a esta presença o absurdo de passar-lhe ao largo para ir ter medo de mosquitos e gafanhotos? Você não ouviu Aquele que disse: “Você temerá ao Senhor teu Deus” [155]? E também: “Ele, diante de cujo poder tudo treme e teme” [156]? 167
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101. O corpo tem o pão como alimento, a alma, a virtude, o intelecto a oração espiritual. 102. Reze não como o fariseu, mas como o publicano no lugar sagrado da oração, para que também você seja justificado por Deus [157]. 169
103. Faça todos os esforços para nada dizer contra ninguém durante a oração; será demolir tudo o que você edificou, e tornará sua oração abominável. 104. Que o devedor de mil talentos lhe sirva de lição: se você não se acertar com seu devedor, você tampouco obterá a remissão, pois está escrito: “Ele o entregou aos torturadores [158]”. 170
105. Não escute as exigências do seu corpo durante o exercício da oração; não deixe que a picada de uma pulga, de um mosquito ou de uma mosca o prive do maior benefício da oração. 106. Aconteceu que a um santo homem que orava, o maligno travou um combate tão furioso que, mal ele erguera as mãos e o inimigo travestiu-se em um leão que se levantou sobre as patas diante dele e cravou as garras nas pernas do atleta, sem deixar a presa para que abaixasse os braços. Mas ele não os abaixou até que tivesse terminado todas as suas orações habituais. 107. Algo assim aconteceu, como o sabemos, com João o Pequeno, ou melhor, o grandíssimo monge que levou a vida solitária num buraco: devido à sua intimidade com Deus, ele se tornou inalterável enquanto um demônio, sob a forma de um dragão enrolado a seu corpo, lhe torturava as carnes e arrotava em seu rosto. [154] [155] [156] [157] [158]
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Salmo XXII, 4. Deuteronômio VI, 13 e X, 20. Cf. Daniel VI, 26-27. Cf. Lucas XVIII, 10-14. Mateus XVIII, 24-35.
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108. Você também leu certamente as vidas dos monges de Tabenesa, aonde, diz-se, durante o sermão que o abade Teodoro fazia aos irmãos, duas víboras arrastaram-se sobre os seus pés; ele então, sem se perturbar, fez um arco sob o manto com as pernas para alojá-las até que terminasse a palestra. Então, ele as mostrou a todos, contando o que havia ocorrido. 109. A respeito de outro irmão espiritual, lemos que foi atacado por uma cobra durante o exercício da oração. Mas ele não se moveu até ter acabado suas orações habituais e não sofreu nada por isso, porque amou a Deus mais do que a si próprio. 110. Mantenha os olhos baixos durante a sua oração, renuncie à carne e à alma e viva segundo a sua inteligência. 111. Um outro santo que levava a vida solitária e orava corajosamente, foi assaltado por demônios que, por duas semanas, jogaram com ele como se fosse uma bola e molestaram-no lançando-o pelos ares e amparando-o numa rede. Mas nem por um instante eles lograram fazer seu intelecto descer de sua prece inflamada. 112. Um outro santo, cheio do amor de Deus e de zelo pela oração, encontrou, quando andava pelo deserto, dois anjos que o ladearam e caminharam com ele. Porém ele não lhes deu a menor atenção para não perder o melhor, pois ele se lembrou da palavra do Apóstolo: “Nem anjos, nem príncipes, nem potências poderão nos separar da caridade de Cristo. [159]” 171
113. O monge se torna igual aos anjos pela prece verdadeira. 114. Você aspira ver a face do Pai que está no Céu [160]: não procure, por nada deste mundo, ver uma forma ou uma figura no momento da oração. 172
115. Não deseje ver sensivelmente os anjos, nem as potências, nem Cristo, para não perder totalmente o bom senso e não acolher o lobo ao invés do pastor, adorando os demônios inimigos. 116. A origem das ilusões do intelecto é a vanglória; é ela que incita o intelecto a tentar circunscrever a divindade em imagens e formas. 117. Quanto a mim, direi um pensamento meu que já expressei em outras ocasiões: feliz é o espírito desligado de toda forma, no momento da oração. 118. Feliz é o intelecto que, numa prece sem distração, adquire sempre novos aumentos no amor a Deus. [159] Romanos VIII, 38. [160] Cf. Mateus XVIII, 10.
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119. Bem-aventurado o intelecto que, no momento da oração, se torna imaterial e desligado de tudo. 120. Feliz o intelecto que, durante a oração, atinge a perfeita insensibilidade. 121. Feliz o monge que toma todos os homens por Deus depois de Deus. 122. Feliz é o monge que vê a salvação e o progresso de todos como se fossem seus, com toda a alegria. 123. Feliz o monge que se considera “o rejeito de todos [161]”. 173
124. Monge é aquele que é separado de tudo e unido a todos. 125. É monge aquele que se sente um com todos, por ver a si mesmo em cada um. 126. Leva a oração à sua perfeição quem faz frutificar, para Deus, toda sua inteligência primordial [aquela do seu estado original]. 127. Evite toda mentira e todo juramento se você quiser orar como monge; do contrário, é em vão que você prega o que não lhe convém. 128. Se você quiser orar “em espírito”, não tenha aversão por ninguém e você não terá nuvens a obscurecer sua vista durante a oração. 129. Deixe nas mãos de Deus as necessidades do corpo; será mostrar que nas mesmas mãos você também deixará as do espírito. 130. Se você entrar na posse das promessas, você será um rei; volte seu olhar para elas, e você carregará alegremente sua pobreza presente. 131. Não recuse a pobreza e a aflição, alimentos da prece que não pesam. 132. Que as virtudes corporais lhe sirvam para obter as da alma; que as da alma sirvam às do espírito; e estas para a gnose imaterial e essencial. 133. Quando você rezar contra um pensamento e ele ceder facilmente, examine de onde ele veio, para não cair numa emboscada e trair a si mesmo pelo erro. [161] 1 Coríntios IV, 13.
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134. Pode acontecer que os demônios lhe sugiram pensamentos e, de outro lado, o estimulem, como justo, a rezar contra eles e repeli-los; depois eles se retiram por conta própria para que, enganado, você seja crédulo imaginando que começou a vencer os pensamentos e a colocar em fuga os demônios. 135. Se você reza contra uma paixão ou contra um demônio inoportuno, lembre-se daquele que disse: “Persegui e alcancei meus inimigos e não me detive enquanto não se confessaram vencidos; eu os derrotei e eles não puderam se levantar, e caíram sob meus pés... [162]”. Eis o que se deve dizer para se armar de humildade contra os adversários. 174
136. Não creia ter adquirido a virtude enquanto você não lutar por ela até sangrar; pois é preciso resistir ao pecado até a morte, como diz o divino Apóstolo, como um lutador irreprochável [163]. 175
137. Quando você tiver sido útil a alguém, outro o prejudicará, para que o sentimento de injustiça o faça dizer ou fazer algo de condenável contra o próximo, e que assim você dissipe em infelicidade tudo o que você conseguiu juntar de felicidade. Este é o objetivo dos demônios; é preciso vigiar sempre. 138. Receba sempre os temíveis assaltos dos demônios tentando sempre escapar à sua servidão. 139. À noite, os demônios chamam o mestre espiritual para o perturbar; de dia, eles se servem dos homens para rodeá-lo de vicissitudes, calúnias e perigos. 140. Não recuse os espinhos, se eles arranham os pés ao caminhar e se eles crescem para cardar; ao menos, assim, sua roupas se tornará de uma brancura brilhante. 141. Enquanto você não renunciar às paixões, enquanto seu intelecto se opuser à virtude e à verdade, você não sentirá em seu seio o perfume de bom odor. 142. Você deseja a oração? Emigre aqui e tome domicílio no céu daí por diante [164], não pela simples palavra, mas pela prática angélica e a gnose divina. 176
143. Se somente nas aflições você se lembra do Juízo, de como ele é apavorante e incorruptível, você ainda não aprendeu a servir ao Senhor com temor e a regozijar-se nele com estremecimento [165]. Pois saiba que mesmo nos despertares e nos descansos espirituais, é preciso ainda mais prestar-lhe um culto cheio de piedade e reverência. 144. Prudente é o homem que, até alcançar a perfeita penitência, não se separa da lembrança dolorosa de seus próprios pecados e das sanções do fogo eterno que os castigará. 177
[162] Salmo XVII, 38-39. [163] Cf. Efésios VI, 11; Hebreus XII, 4. [164] Cf. Filipenses III, 20. [165] Cf. Salmo II, 11.
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145. Aquele que, ainda cheio de pecados, ou de acessos de cólera, ousa impudentemente chegar ao conhecimento das coisas mais divinas [a um conhecimento mais divino das coisas], ou mesmo penetrar na oração imaterial, receba ele a reprimenda do Apóstolo e compreenda que é perigoso para si orar com a cabeça descoberta, pois, está dito: uma alma assim deve levar sobre a cabeça o sinal da dominação, por causa dos anjos presentes [166]”, cobrindo-se do pudor e da humildade convenientes. 178
146. Assim como de nada adianta, a quem está doente dos olhos, fixar a vista insistentemente no sol do meio dia, quando ele está no seu máximo abrasamento, tampouco de nada serve ao intelecto passional e impuro imitar a temível e eminentíssima oração em espírito e em verdade; ao contrário, ele provocará contra si a indignação da divindade. 147. Se aquele que leva uma oferenda ao altar não for recebido pelo mestre incorruptível que não precisa de nada, até que se reconcilie com o próximo que está contra ele [167], considere quanta sobriedade, vigilância e discernimento são precisos para oferecer a Deus um incenso agradável sobre o altar imaterial. 179
148. Não seja amigo nem da verborragia nem da gabolice, porque assim não serão suas costas que serão lavradas pelos pecadores [168], mas seu rosto; você servirá de diversão para eles no momento da oração, eles o seduzirão e o arrastarão a pensamentos heteróclitos. 180
149. A atenção, em busca da oração, encontrará a oração, porque se a oração visa alguma coisa, é precisamente a atenção. Apliquemo-nos nisto. 150. A vista é o melhor de todos os sentidos; a oração é a mais divina de todas as virtudes. 151. A excelência da oração não está na simples quantidade, mas na qualidade, como testemunham os dois que subiram ao templo [169], bem como a palavra: “Nas vossas orações, não multiplicai as palavras. [170]” 181
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152. Enquanto você tiver ainda atenção para o que vem do corpo, enquanto sua inteligência estiver voltada para os atrativos exteriores, você não terá ainda vislumbrado o lugar da oração: estará mesmo longe do caminho bendito que o levará a ela. 153. Por que só quando você atingir, com suas orações, uma alegria acima de todas as outras, é que, enfim, verdadeiramente, terá encontrado a oração.
[166] 1 Coríntios XI, 10. [167] Mateus V, 23. [168] Cf. Salmo CXXVIII, 3. [169] Cf. Lucas XVIII, 10. [170] Mateus VI, 7.
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JOÃO CASSIANO, O ROMANO
Nosso santo Padre Cassiano o Romano viveu no reinado de Teodósio, por volta do ano 430. Dentre as obras que ele escreveu, expomos aqui o tratado sobre os oito pensamentos e o tratado sobre o discernimento, que transpiram socorro e graça. Photius os menciona nos seguintes termos:
“O segundo tratado tem como título: “Sobre os oito pensamentos”. Ele trata da gula, da prostituição, da avareza, da cólera, da tristeza, da acídia, da vanglória e do orgulho. Mais do que quaisquer outros, estes textos vêm em auxílio daqueles que escolheram travar o combate da ascese; eu também li um terceiro pequeno tratado, no qual é ensinado o sentido do discernimento, que ele é a maior das virtudes, de onde nasce e o quanto ele representa o mais alto dom do alto.”
A Igreja celebra a memória de São Cassiano em 29 de fevereiro, honrando-o com muitos louvores.
*
Cassiano não era romano de nascença. De “nação cita”, segundo Gennade de Marselha, ele nasceu perto do ano 360. Vinte anos depois, nós o encontramos na Palestina num mosteiro em Belém, de onde ele partiu para o Egito, atraído pelo grande renome dos Padres do deserto. Com seu amigo Germano, ele visitou os principais centros monásticos do Baixo Egito, em especial Nitria e as Kellia, antes de se fixar por muitos anos no deserto de Sceta. Cerca do ano 400, as controvérsias origenistas que perturbaram o deserto obrigaram à sua partida para Constantinopla, aonde ele foi ordenado diácono por são João Crisóstomo. Em 404, quando este foi expulso de sua cadeira, Cassiano partiu para Roma para interceder em seu favor perante o papa Inocêncio.
Chegando a Marselha em 415, Cassiano fundou aí a abadia de Saint-Victor e um convento de freiras. Foi para estas comunidades e para todas as da Provence que ele se dispôs a compor suas duas obras mais célebres, as Instituições
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cenobíticas e as Conferências espirituais, nos quais ele reporta os usos e ensinamentos dos monges do Egito. Estas obras fizeram grande sucesso não apenas no Oci dente mas também no Oriente. Temos razões para pensar que elas foram traduzidas ao menos parcialmente para o grego a partir do século V, pois, desde o século seguinte a compilação sistemática dos Apophtegma Patrum traduzida por Pelágio e João apresenta muitos extratos manifestamente traduzidos do grego. Os extratos contidos na Filocalia provêm, seja dos Livros V a XII das Instituições, seja das duas primeiras Conferências. O texto grego às vezes resume o original latino, às vezes o traduz por inteiro. É este texto grego da Filocalia que seguimos aqui.
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TI, VI – JOÃO CASSIANO, O ROMANO – Sobre os 8 pensamentos de malícia.
DE SÃO CASSIANO O ROMANO AO BISPO CASTOR SOBRE OS OITO PENSAMENTOS DE MALÍCIA [1] 183
1. Após termos composto um primeiro sermão sobre as observâncias presentes nos mosteiros cenobíticos, apresentaremos agora, fortalecidos pelas preces de muitos de vocês, este texto sobre os oito pensamentos de malícia, a saber, a gula, a prostituição, o amor ao dinheiro, a cólera, a tristeza, a acídia, a vanglória e o orgulho.
Da continência do ventre
Trataremos primeiramente da continência do ventre que se opõe à gula, da medida dos jejuns, da qualidade e da quantidade dos alimentos. E não falaremos por nós mesmos, mas conforme a tradição dos santos Padres. Estes não nos legaram uma regra única para o jejum, nem um modo único de tomar a refeição, nem uma medida uniforme, pois nem todos possuem o mesmo vigor, nem a mesma idade, nem a mesma saúde, nem a mesma constituição física. Entretanto, o objetivo que foi transmitido a todos é o mesmo: fugir da saciedade e recusar absolutamente a repleção do ventre. Eles consideravam que o jejum cotidiano era mais benéfico e favorável à pureza do que um jejum prolongado de três ou quatro dias ou mesmo de uma semana. De fato, o prolongamento excessivo do jejum é, muitas vezes, pior do que o excesso de alimento. Pois na seqüência de uma abstinência imoderada o corpo está enfraquecido e não é mais assíduo das liturgias espirituais, enquanto que o corpo pesado pelo excesso de comida causa à alma a acídia e o relaxamento.
[5,2] Por outro lado, eles achavam que não convém a todos comer apenas legumes verdes ou secos e que nem todos podem se alimentar só de pão seco. Um, diziam eles, come duas libras de pão e ainda tem fome; outro fica saciado com uma libra ou mesmo com apenas seis onças. Assim, a todos, como foi dito, eles transmitiram uma única regra de continência: não ser traído pela saciedade do ventre [2], nem arrastado pelo prazer da boca. Pois não é somente a qualidade dos alimentos, mas também a quantidade que normalmente atiça os tragos inflamados da prostituição. 184
[5,6] De fato, qualquer que seja o alimento com o qual o ventre foi preenchido, ele engendra uma semente de prostituição. E não é somente o excesso de vinho que embriaga a razão, mas também a superabundância de água e o excesso de qualquer comida a tornam pesada e sonolenta. A ruína dos Sodomitas não foi causada pela embriaguez do vinho e o excesso de comidas variadas, mas, segundo o profeta, pela saciedade de pão [3]. 185
[1] Cf. Instituições cenobíticas, 5-12; P.G. 28, 872-905. [2] Cf. Provérbios XXIV, 15. [3] Ezequiel XVI, 49.
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TI, VI – JOÃO CASSIANO, O ROMANO – Sobre os 8 pensamentos de malícia.
[5,7] A fraqueza do corpo não é um obstáculo à pureza do coração, quando damos ao corpo o que a fraqueza exige, não o que o prazer deseja. É preciso utilizar os alimentos na medida em que são úteis para viver e não a ponto de nos tornarmos presas dos assaltos da concupiscência. A absorção moderada e razoável de alimentos, para manter a saúde do corpo, não destrói a pureza.
[5,8] Uma medida e uma regra exata da temperança nos foram transmitidas pelos Padres: quando comemos, devemos parar enquanto ainda temos apetite, sem esperar estarmos saciados. Quando o Apóstolo diz que não devemos nos preocupar com a carne no sentido de satisfazer a concupiscência186[4], ele não proíbe prover as necessidades da vida, mas condena a busca do prazer.
[5,10] Por outro lado, para uma perfeita pureza da alma, apenas a abstinência de alimento não é suficiente, sem o socorro das demais virtudes. Assim, a humildade, pela prática da obediência e pelo labor que doma o corpo, nos traz grandes benefícios. Abster-se da avareza, não apenas das riquezas, mas até do desejo de adquiri-las, conduz à pureza da alma. A abstinência de cólera, de tristeza, de vanglória e de orgulho, tudo isto produz a pureza universal da alma. Mas para a pureza específica da alma que é obtida pela castidade, a abstinência e o jejum possuem uma eficácia notável. É de fato impossível a quem enche o ventre combater o espírito da prostituição em seu pensamento. Eis porque nosso primeiro combate deve ser o de dominar o ventre e reduzir o corpo à escravidão, não apenas pelo jejum, mas pelas vigílias, a prece, a leitura e a concentração do coração no temor da Geena e no desejo pelo Reino dos céus.
Do espírito da prostituição e da concupiscência da carne
2. [6,1] Nosso segundo combate é contra o espírito da prostituição e a concupiscência da carne, que começa a atormentar o homem desde a primeira idade. É um combate imenso e difícil, pois comporta uma dupla luta. Enquanto que os outros vícios são combatidos apenas na alma, este deve sê-lo simultaneamente na alma e no corpo: assim, é preciso travar contra ele um duplo combate. Com efeito, o jejum corporal não é bastante para adquirir a castidade perfeita e a verdadeira pureza, se não existir ao mesmo tempo também a contrição do coração, uma prece dirigida a Deus com perseverança, uma meditação contínua das Escrituras, a fadiga e o trabalho manual, tudo aquilo que pode reprimir os impulsos flutuantes da alma e desviá-la das imaginações vergonhosas. Mas, sobretudo, é preciso a humildade da alma, pois, sem ela, não é possível dominar a prostituição, tanto quanto os outros vícios.
[6,2] É preciso, antes de mais nada, guardar com o maior cuidado o coração [5] dos pensamentos impuros. Pois, como disse o Senhor, “é do coração que saem os maus pensamentos, homicídios, adultérios, prostituição e todo o resto [6]”. De fato, o jejum não nos foi ordenado apenas para atormentar o corpo, mas também para manter o intelecto sóbrio e vigilante; este, obscurecido pelo excesso de comida, é incapaz de supervisionar os pensamentos. Certamente, é preciso mostrar o maior zelo no jejum corporal, mas também 187
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[4] Romanos XIII, 14. [5] Cf. Provérbios IV, 23. [6] Mateus XV, 19.
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na guarda dos pensamentos e na meditação espiritual; senão é impossível elevar-se ao cume da castidade e da pureza. É preciso então, como diz o Senhor, purificar primeiro o interior do copo e do prato, a fim de que o exterior fique puro [7]. 189
[6,5] É por isso que, se tivermos no coração a determinação, como diz o Apóstolo, de combater segundo as regras e sermos coroados [8] por haver vencido o espírito da prostituição, não o confiemos à nossa própria força e à nossa ascese, mas ao auxílio de Deus nosso Senhor. Pois não haverá repouso para o homem atacado por este espírito enquanto ele não crer realmente que não será nem por sua aplicação nem por suas penas, mas pela proteção e a ajuda de Deus, que ele poderá se livrar desta doença e atingir o cume da castidade. 190
[6,6] A coisa está acima da natureza e se trata, de certa maneira, de sair da carne, mais do que pisotear os aguilhões da carne e de seus prazeres sob seus pés. Eis porque, é, por assim dizer, impossível ao homem elevar-se com suas próprias asas até este cume e esta recompensa celeste, e tornar-se o imitador dos anjos; é preciso que a graça de Deus o arranque da terra e da lama. Com efeito, nenhuma outra virtude, tanto quanto a castidade, torna iguais os anjos e os homens ligados à carne. Por meio desta virtude, ainda que vivam sobre a terra, eles possuem, segundo o Apóstolo, “sua cidadania nos céus [9]”. 191
[6,10] O sinal de que você adquiriu esta virtude com perfeição é que a alma já não se volta para nenhuma imagem vergonhosa durante o sonho. Pois, ainda que este movimento não seja visto como um pecado, ele é considerado um sinal de que a alma ainda está enferma e não se libertou das paixões.
[6,11] Eis porque devemos crer que as representações vergonhosas que nos sobrevêm durante o sonho são provas de nossa negligência passada e de nossa enfermidade: a doença oculta nas profundezas da alma se manifesta num corrimento favorecido pelo sonho.
[6,12] É por isso que o médico de nossas almas colocou o remédio nas mesmas profundezas da alma, aonde se encontram, como ele bem o sabia, as causas da enfermidade: “Aquele que olhar uma mulher para desejá-la, cometeu adultério com ela em seu coração [10]”. Ao falar assim, ele não condenava tanto os olhos curiosos e lascivos, quanto a alma que, escondida no interior, fez mau uso dos olhos dados por Deus para o bem. É por isso que o Sábio dos Provérbios não disse: “Vigie seus olhos”, mas “Vigie seu coração [11]”, impondo o remédio àquele que se serve dos olhos ao bel prazer. 192
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[7] Mateus XXIII, 26. [8] Cf. 2 Timóteo II, 5; IV, 7. [9] Filipenses II,I 20. [10] Mateus V, 28. [11] Provérbios IV, 23.
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[6,13] Eis, portanto, a primeira precaução que deve tomar nosso coração [o primeiro cuidado com nossa purificação]: quando, pela malícia do diabo, se introduzir em nosso pensamento a lembrança de uma mulher, seja da mãe, da irmã ou de uma mulher piedosa, devemos tirá-la o quanto antes de nosso coração, pois, se demorarmos um pouco só, o demônio enganador e mau precipitará o espírito do alto abaixo, destas imagens aos pensamentos funestos e vergonhosos. É por isso que Deus nos deu no princípio o mandamento de tomar cuidado com a cabeça da serpente [12], ou seja, ao surgimento dos maus pensamentos, por meio dos quais o diabo procura deslizar para dentro de nossas almas. Senão, uma vez que a cabeça penetrou, ou seja, o primeiro assalto do pensamento, acabamos por acolher o resto do corpo da serpente, a saber, o consentimento ao prazer, e a partir daí o espírito será obrigado a fazer o que não lhe é permitido. É preciso, ao contrário, dar morte “desde a manhã, como está escrito, a todos os pecadores que se erguem da terra [13]”, ou seja, discernir à luz da ciência e exterminar da terra de nosso coração os pensamentos que só conduzem ao pecado, conforme o ensinamento do Senhor [14]. E, enquanto ainda são pequenas, é preciso exterminar as crias da Babilônia, quero dizer os pensamentos perversos, e destroçá-las contra o rochedo [15] que é Cristo. Pois, se com nosso consentimento, elas chegarem a crescer, só as dominaremos à custa de muitos gemidos e penas. 194
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[6,19] Além dessas palavras da divina Escritura, podemos também mencionar as palavras dos santos Padres. São Basílio, bispo de Cesareia e da Capadócia, disse um dia: “Eu nunca conheci mulher, e, no entanto, não sou virgem [16]”. Ele sabia muito bem que o dom da castidade não consiste tanto em se privar de mulher, como em guardar a pureza e a castidade da alma, o que normalmente se realiza pelo temor a Deus. 198
[6,18] Os Padres também disseram o seguinte: Não podemos adquirir com perfeição a virtude da pureza sem antes adquirir a verdadeira humildade em nosso coração. Tampouco receberemos a verdadeira ciência enquanto ocultarmos a paixão da prostituição nas profundezas da alma.
[6,16] E para mostrarmos também pelo testemunho do Apóstolo a recompensa da castidade, terminaremos citando uma única sentença: “Busquem a paz com todos e a santidade, sem as quais ninguém verá ao Senhor [17]”. Que se trata da castidade, a seqüência o mostra: “Que ninguém seja impudico ou profanador como Esaú [18]”. E quanto mais o avanço da santidade é celeste e angélico, tanto mais ela é vítima de ataques cada vez mais violentos dos adversários. É por isso que devemos nos aplicar não somente à continência do corpo, mas também à contrição do coração e às penitências [orações] freqüentes com gemidos, a fim de que, pelo orvalho da presença do Espírito Santo, possamos extinguir a fornalha da nossa carne, que o rei da Babilônia atiça a cada dia com as tochas da concupiscência [19]. 199
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[12] [13] [14] [15] [16]
Gênesis III, 15. Salmo C, 8. Cf. Mateus XV, 19. Cf. Salmo CXXXVI, 9. Esta citação não se encontra tal e qual nas obras de são Basílio. Encontramos algo próximo (“Eu escapei ao ato da fornicação, mas manchei minha virgindade nos pensamentos de meu coração”) na Carta XVII, 4; porém, esta carta parece não ser de São Basílio, mas de São Nilo. [17] Hebreus XII, 14. [18] Hebreus XII, 16. [19] Cf. Daniel III, 19.49 ss. 194
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[6,23] Mas acima de tudo, a grande arma que está à nossa disposição para o combate, é a vigília com Deus. Pois, assim como a vigilância do dia prepara a santidade da noite, também a vigília noturna com Deus prepara a alma para a pureza durante o dia.
Da avareza
3. [7,1] Nosso terceiro combate é contra o espírito da avareza. Ele é manifestamente estranho à nossa natureza e, num monge, ele tem sua origem na falta de fé. De fato, os vícios que excitam as demais paixões, vale dizer, a cólera e a concupiscência, parecem ter seus princípios no corpo, eles são de certa forma inatos e começam já no nascimento; é por isso que é preciso muito tempo para vencê-los.
[7,2] A doença da avareza, que ao contrário provém do exterior, pode ser evitada com mais facilidade, se dermos provas de preocupação, sobriedade e vigilância. Mas, se a negligenciarmos, ela se tornará mais perigosa do que as outras paixões e mais difícil de ser rejeitada, pois ela é “a raiz de todos os males”, conforme o Apóstolo [20]. 202
[7,3] Não vemos, com efeito, os movimentos naturais do corpo, não apenas em crianças que ainda não possuem o discernimento do bem e do mal, mas até nas menores que sequer desmamaram? Sem ter nelas o menor traço de voluptuosidade, elas entretanto mostram em sua carne estes movimentos naturais. Da mesma forma, podemos constatar nas crianças o aguilhão da cólera quando as vemos irritadas contra alguém que lhes fez mal. Digo isto, não para acusar a natureza como causa do pecado, que Deus não permita!, mas para mostrar que a cólera e a concupiscência, mesmo estreitamente unidas ao homem pelo Criador para seu bem, podem, por negligência, transformar de certa maneira os movimentos naturais do corpo em atos contra a natureza. Com efeito, o movimento do corpo foi dado por Deus para a procriação e o prolongamento da raça, não para a prostituição. A excitação da cólera também pode ser salutar, para a dirigirmos contra os vícios e não para que fiquemos furiosos com nosso irmãos.
[7,4] Não, é claro, que a natureza seja má e que possamos responsabilizar o Criador; da mesma forma, se dermos um pedaço de ferro a alguém para um uso necessário e útil, ele pode também usá-lo para cometer um crime.
[7,5] Dizemos tudo isso para mostrar que a paixão da avareza não extrai seu princípio dos elementos naturais, mas apenas da vontade má e corrompida.
[20] Cf. 1 Timóteo VI, 10.
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[7,7] Com efeito, esta doença, quando encontra a alma morna e com pouca fé no início da renúncia, lhe sugere motivos justos e aparentemente razoáveis para que a pessoa guarde um pouco daquilo que ela possui. A avareza apresenta ao espírito do monge uma velhice longa e as enfermidades do corpo, alegando que o que é dado pelo mosteiro não é suficiente, não digo aos enfermos, mas até aos que gozam de boa saúde, que ninguém ali se preocupa muito com os doentes, que eles chegam a ser abandonados, e que se não tiverem um pouco de ouro guardado, morrerão de miséria. Finalmente, ela sugere ao monge que ele não conseguirá permanecer por muito tempo ainda no mosteiro, pela carga das observâncias e o rigor do superior. Quando ela logrou desorientar o espírito com estes pensamentos para que ele guarde ao menos alguns centavos, ela ainda persuade o monge a aprender, sem que o abade saiba, algum trabalho com o qual ele possa aumentar suas economias. Assim ela desvia o infeliz para esperanças incertas, sugerindolhe os ganhos com seu trabalho, o repouso e a despreocupação que ele tirará disso. Entregue por completo à idéia de ganhar, ele não vê nada contra; nem a loucura furiosa que o tomará se lhe acontecer uma perda, nem as trevas da tristeza caso ele se veja privado dos ganhos com os quais contava. Para ele, o ouro tomou o lugar de Deus, assim como, para outros, o ventre [21]. Assim, o bem-aventurado Apóstolo, sabendo disto, chamou a esta doença não somente de “raiz de todos os males [22]”, mas de “idolatria [23]”. Vemos com isto a que ponto de malícia esta doença arrasta o homem, até atirá-lo na idolatria. 203
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[7,8] Depois que o avaro desviou seu intelecto do amor de Deus, ele começa a adorar as imagens dos homens gravadas no ouro. Cego por esses pensamentos e progredindo no mal, ele já não consegue se manter obediente mas se irrita, se indigna e resmunga por qualquer trabalho,opõe-se a ele e, não tendo mais nenhum respeito por ninguém, é arrastado ao precipício como um cavalo bravo. Descontente com a alimentação costumeira, ele protesta que não poderá mais suportar isto, que Deus não está apenas ali, que sua salvação não está ligada apenas àquele lugar e que ele vai se perder se não deixar o mosteiro.
[7,9] Tendo dinheiro reservado para apoiar sua opinião corrompida, ele é como que levado por suas asas e começa a ruminar sua despedida do mosteiro. A partir daí ele responde com insolência e azedume a todas as ordens que lhe são dadas e, comportando-se como um hóspede ou um estrangeiro, negligencia e despreza tudo o que, no mosteiro, precisa ser retificado, e condena tudo o que é feito. Depois ele começa a encontrar razões para se irritar ou se entristecer, a fim de não dar a impressão de deixar o mosteiro levianamente e sem razão. E ele pode fazer com que, por meio de enganações, cochichos e vãos propósitos, algum outro o acompanhe em sua saída, para que ele consiga ao menos um cúmplice em sua queda.
[7,10] Assim inflamado pelo fogo de suas próprias riquezas, o avaro já não poderá estar em paz no mosteiro e viver sob uma regra. Então o demônio, qual um lobo, o leva da comunidade, o separa da tropa e o agarra como uma presa fácil de devorar. Ele o estimula a negligenciar os trabalhos que se realizam em horários fixos no mosteiro e a fazê-los zelosamente em sua própria cela noite e dia. Ele não o deixa mais observar as orações habituais, nem a medida dos jejuns, nem a regra das vigílias, tendo-o laçado com a paixão da avareza, e o persuade a empenhar-se no trabalho manual.
[21] Cf. Filipenses III, 19. [22] 1 Timóteo VI, 10. [23] Colossenses III, 5.
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[7,14] Esta doença apresenta três formas que as divinas Escrituras e os ensinamentos dos Padres reprovam da mesma maneira. A primeira leva os infelizes a adquirir e juntar riquezas que antes não possuíam neste mundo. A segunda traz o arrependimento pelas riquezas às quais se renunciou e incita a recuperar aquilo que foi oferecido a Deus. A terceira engaja o monge desde o início na falta de fé e de ardor, e o impede de se despojar completamente dos bens deste mundo, fazendo-o temer o despojamento e duvidar da providência de Deus. Ele se mostra assim infiel às promessas que fez ao renunciar ao mundo. Encontramos exemplos de condenação destas três formas da avareza nas Sagradas Escrituras. Giezi, pretendendo adquirir riquezas que não possuía antes, Foi privado do dom da profecia que seu mestre pretendia deixar-lhe em herança, e, em lugar da bênção, herdou uma lepra eterna por causa da maldição do profeta [24]. Judas, que quis reaver os bens aos quais havia renunciado ao seguir Cristo, não apenas chegou a trair a Cristo e perder sua posição de apóstolo, mas ainda pôs fim à sua vida física por uma morte violenta [25]. Ananias e Safira, por terem guardado uma parte dos seus bens, forma, foram punidos de morte pelas palavras do Apóstolo [26]. 206
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[7,15] O grande Moisés dá esta advertência no Deuteronômio, no sentido espiritual, para aqueles que querem renunciar ao mundo, mas permanecem ligados às coisas terrestres pelo medo que lhes causa a falta de fé: “Se o homem é covarde e tem o coração medroso, é melhor que ele não parta para o combate; que ele retorne à sua casa, para não assustar o coração dos seus irmãos. [27]” O que pode haver de mais claro do que este testemunho? Não aprendemos com estas palavras que aqueles que renunciam ao mundo devem fazê-lo por completo e apresentar-se assim para o combate, para não desviar os outros da perfeição evangélica, inspirando-lhes medo com um começo fraco e corrupto? 209
[7,16] Bem que está dito na divina Escritura que “é melhor dar do que receber [28]”, mas o avaro entende erradamente a frase e distorce o texto com suas manobras e a cobiça de sua avareza, alterando o sentido das palavras e do ensinamento do Senhor, que diz: “Se você quiser ser perfeito, vá, venda tudo o que possui e dê aos pobres, e você terá um tesouro nos céus; depois, siga-me [29]”. Eles acham preferível usufruir de suas riquezas e dar o supérfluo aos pobres. Estes homens deveriam saber que eles ainda não renunciaram ao mundo nem abraçaram a perfeição monástica enquanto ainda ficarem vermelhos em assumir o despojamento do Apóstolo e de ajudar os indigentes com o trabalho das suas mãos. Se eles quiserem preencher realmente sua confissão monástica e, tendo distribuído toda sua riqueza anterior, glorificar-se com o Apóstolo “na fome e na sede, no frio e na nudez [30]”, eles conduzirão, com Paulo, o “bom combate [31]”. 210
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[7,17] Com efeito, se o mesmo Apóstolo achasse necessário para a perfeição manter seus antigos bens, ele não teria desdenhado de sua dignidade, ele que era de nascimento nobre e cidadão romano [32]. E os que, em Jerusalém, eram “possuidores de mansões e campos e que deixavam aos pés dos apóstolos o dinheiro 214
[24] Cf. 2 Reis V, 27. [25] Cf. Mateus XXVII, 5. [26] Cf. Atos V, 5 e 10. [27] Deuteronômio XX, 8. [28] Atos XX, 35. [29] Mateus XIX, 21. [30] 2 Coríntios XI, 27. [31] 2 Timóteo IV, 7. [32] Cf. Atos XXII, 25-28.
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da venda [33]”, não teriam agido assim se soubessem que os apóstolos julgavam melhor subsistir de seus próprios recursos do que com o trabalho de suas mãos e as doações dos cidadãos. O Apóstolo ensina isto claramente quando escreve aos romanos: “Agora eu parto para Jerusalém para servir aos santos (de fato, ele pedira, na Macedônia e na Acádia, que se fizesse uma coleta para os santos de Jerusalém, ou seja, para os pobres). Ele lhes pediu e eles são seus devedores. [34]” 215
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O próprio Apóstolo, muitas vezes encarcerado e cativo ou entravado pelos incômodos da viagem, e, por causa disto, incapaz de prover por suas próprias mãos sua subsistência, como estava acostumado, declarou haver recebido esta subsistência dos irmãos vindos da Macedônia: “Pois, disse ele, o que me faltou foi suprido pelos irmãos vindos da Macedônia [35]”; e ele escreveu aos Filipenses: “Também vocês sabem, Filipenses, que, quando eu parto da Macedônia, nenhuma igreja me amparou em termos de contribuição pecuniária, salvo a de vocês; pois quando eu estava em Tessalônica, por duas vezes vocês me enviaram aquilo de que eu estava necessitado [36]”. Teriam sido estes cristãos, na opinião dos avaros, mais felizes do que o Apóstolo, porque supriram suas necessidades com seus próprios bens? Ninguém será louco de dizêlo. 217
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[7,18] É por isso que, se quisermos seguir o preceito evangélico e imitar toda a Igreja fundada desde a origem sobre os apóstolos, não devemos nos fiar em nossas próprias opiniões nem interpretar mal aquilo que foi expresso. Rejeitando a perspectiva morna e a falta de fé, sigamos exatamente o Evangelho. Assim poderemos caminhar sobre as pegadas dos Padres sem jamais nos distanciar da disciplina do mosteiro, e renunciar ao mundo com toda a verdade.
[7,19] É bom lembrar aqui as palavras de um santo. Diz-se que são Basílio, bispo de Cesaréia, dirigiu-se a um senador que havia renunciado ao mundo sem fervor e reservado para si um pouco de suas posses nestes termos: “Você perdeu o senador e não adquiriu o monge [37]”. É preciso, assim, que, com o maior cuidado, expulsemos de nossa alma a raiz de todos os males, vale dizer, a avareza, sabendo que, se a raiz permanecer, os ramos crescerão facilmente. 219
[7,29] É difícil adquirir esta virtude sem viver numa comunidade, pois aí estaremos livres de toda a preocupação em relação às coisas necessárias.
[7,30] Lembrando-nos do castigo de Ananias e Safira [38], devemos temer guardar para nós seja o que for que possuímos. Temendo o exemplo de Gieze que, por sua avareza, foi punido com a lepra eterna [39], 220
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[33] Atos IV, 34-35. [34] Romanos XV, 25-27. [35] 2 Coríntios XI, 9. [36] Filipenses IV, 15-16. [37] Esta sentença, com a passagem das Instituições que a contém, é apresentada nas Sentenças dos Padres do
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deserto, Cassiano 7. [38] Cf. Atos V, 5 ss. [39] Cf. 2 Reis V, 27. 220
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evitemos juntar riquezas que não tínhamos antes neste mundo. Enfim, pensando na morte de Judas por enforcamento [40], vigiemos para jamais tentarmos recuperar algo a que já havíamos renunciado. E acima de tudo, mantendo sempre nos olhos a perspectiva da morte, cuidemos para que nosso Senhor não venha na hora menos esperada e não encontre nossa consciência contaminada pela avareza. Ele então poderá nos dirigir as palavras ditas ao rico no Evangelho: “Insensato, nesta mesma noite sua alma será levada; aquilo que você reservou para si, de que lhe servirá agora? [41]” 222
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Da cólera
4. [8,1] Nosso quarto combate é contra o espírito da cólera e é preciso que, com a ajuda de Deus, extirpemos das profundezas de nossa alma este veneno mortal. Pois, enquanto ele se mantiver em nosso coração e cegar os olhos do coração com perturbações tenebrosas, não seremos capazes de adquirir o discernimento das coisas convenientes, nem encontrar a compreensão da ciência espiritual, nem possuir a perfeição do bom conselho, nem participar da vida verdadeira, e nosso intelecto não será capaz de contemplar a verdadeira luz divina. De fato, foi dito: “Meu olho foi perturbado pela cólera [42]”. Não será possível participarmos da sabedoria divina, ainda que sejamos reputados sábios segundo a opinião de todos, pois está escrito: “A cólera repousa no seio dos insensatos [43]”. Nem poderemos adquirir os salutares conselhos do discernimento, mesmo que os homens nos julguem prudentes pois também está escrito: “A cólera do homem não cumpre com a justiça de Deus [44]”. E tampouco poderemos adquirir a moderação e a gravidade tão estimadas dos homens, pois está escrito: “O homem colérico é indecente [45]”. 224
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[8,5] Portanto, aquele que pretende alcançar a perfeição e que deseja levar adiante o combate conforme as regras, deve ser alheio a toda cólera e todo furor e escutar a recomendação do vaso de eleição: “Que toda cólera, disse ele, fúria, grito e blasfêmia sejam afastados de vocês, bem como toda malícia [46]”. Quando ele diz “toda”, ele não deixa nenhum pretexto de cólera que pudesse ser necessária ou razoável. Assim, quem quiser corrigir o irmão que pecou ou lhe infligir um castigo, deve tentar por todos os meios permanecer imperturbável, para que não lhe aconteça que, pretendendo curar o outro, não contraia ele próprio a doença, e que dele não se diga, conforme o Evangelho: “Médico, cure a si mesmo [47]”. E ainda: “Porque você critica a palha no olho do seu irmão e não percebe a trave no seu próprio olho? [48]” 228
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[8,6] De fato, qualquer que seja a causa, o movimento da cólera, em sua ebulição, cega os olhos da alma e impede de contemplar o sol da justiça. Quem coloca sobre os olhos folhas de ouro ou de chumbo fica igualmente privado da visão, e o valor do metal não tem nenhuma relação com a cegueira. Da mesma forma, qualquer que seja a causa, razoável ou não, quando a cólera se inflama, ela obscurece a vista. [40] [41] [42] [43] [44] [45] [46] [47] [48]
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Cf. Mateus XXVII, 5. Lucas XII, 20. Salmo VI, 8. Eclesiastes VII, 9. Tiago I, 20. Provérbios XI, 25. Efésios IV, 31. Lucas IV, 23. Mateus VII, 3-5.
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[8,7] Nós só usamos a cólera em conformidade com a natureza quando nos insurgimos contra os pensamentos passionais ou voluptuosos.
[8,8] É o que o Profeta nos ensina, ao dizer: “Encolerizem-se e não pequem mais [49]”. 231
[8,9] Isto significa: “Encolerizem-se contra as suas próprias paixões e contra os pensamentos perversos, e não pequem cumprindo as suas sugestões.” Este sentido aparece com mais clareza ainda no verso seguinte: “Aquilo que vocês dizem em seus corações, levem compungidos ao leito [50]”, ou seja: quando sobrevierem pensamentos perversos em seu coração, depois de rejeitá-los encolerizando-se contra eles, você encontrará uma grande paz, como num leito de repouso; sinta então a compunção pela penitência. O bem-aventurado apóstolo Paulo concorda com isto quando, com testemunho neste versículo, diz: “Que o sol não se ponha sobre sua cólera; não abram a porta ao diabo. [51]” Dito de outro modo: não force o sol de justiça, Cristo, a se deitar sobre o seu coração irritando-o por sua conivência com os maus pensamentos, para que não lhe aconteça que, com sua partida, o diabo encontre um acesso a você. 232
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[8,10] É deste sol que Deus fala pela boca do Profeta: “Para aqueles que temem meu nome erguer-se-á o sol de justiça, que cura com seus raios [52]”. Se levarmos ao pé da letra o versículo do Apóstolo, não poderíamos, de fato, guardar a cólera até o por do sol. 234
[8,11] Que diremos então daqueles que, pela selvageria e a loucura da paixão, não contentes em conservar sua raiva até o por do sol ainda a prolongam por dias a fio, abstendo-se de falar com os outros? Eles não exprimem sua cólera em palavras, mas através de seu mutismo para com os demais, eles aumentam o veneno do rancor, para sua própria perda.
[8,12] Eles ignoram que é preciso abster-se da cólera, não apenas em ato, mas também em pensamento, para evitar que o intelecto, cego pelas trevas do rancor, perca a luz do conhecimento e do discernimento e seja privado da presença do Espírito Santo.
[8,13] É para isto, com efeito, que o Senhor, no Evangelho, ordena deixar a oferenda perto do altar para ir reconciliar-se com seu irmão [53]. Senão, é impossível que a oferenda seja aceita, se estivermos presa da cólera e do rancor. Por outro lado, o Apóstolo ordena rezar sem cessar [54], e em toda parte erguer as mãos 235
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Salmo IV, 5. Salmo IV, 5. Efésios IV, 26. Malaquias IV, 2. Cf. Mateus V, 23-24. Cf. 1 Tessalonicenses V. 17.
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puras, sem cólera nem [maus] pensamentos [55]; esta é uma lição para nós. Resta-nos, assim, seja não mais orar – mas então pecaríamos contra o mandamento do Apóstolo – seja nos apressarmos em seguir este mandamento e cessar imediatamente com a cólera e o rancor. 237
[8,14] Acontece muitas vezes desdenharmos dos irmãos sofredores ou perturbados, dizendo que sua tristeza não foi causada por nós. É por isso que o médico de almas, querendo extirpar do coração até as raízes os pretextos da alma, nos ordena deixar a oferenda e irmos nos reconciliar, não somente se fomos nós os ofendidos por um irmão, seja que tenhamos nós o ofendido, com ou sem razão. Primeiro devemos remediar a situação com desculpas, para em seguida fazermos nossa oferenda.
[8,15] Mas não precisamos nos deter por mais tempo nos preceitos evangélicos, uma vez que a própria lei antiga, que parece ser menos rigorosa, nos ensina isto quando diz: “Não odeie seu irmão em seu coração [56]”, e também: “Os caminhos daquele que guarda rancor levam à morte [57]”. A lei proíbe não apenas o ato, mas o pensamento. É por isso que aqueles que seguem as leis divinas lutam com todas as suas forças contra o espírito de cólera e contra esta doença que existe dentro de nós. 238
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[8,16] Que aqueles que se encolerizam contra seus irmãos não busquem a solidão e o isolamento, pensando que assim ninguém mais os levará à cólera, e que a virtude da paciência poderá ser mais facilmente adquirida na solidão. É por orgulho, e por não querermos acusar a nós mesmos, nem reconhecer em nosso descuido a causa da perturbação, que desejamos nos separar dos irmãos. Mas enquanto imputarmos aos outros as causas de nossa fraqueza, será impossível conseguir a paciência.
[8,17] O essencial de nosso progresso e de nossa paz não pode provir da paciência do próximo para conosco, mas de nossa longanimidade para com o próximo.
[8,18] Se buscarmos o deserto e a solidão para fugirmos ao combate pela paciência, todos os vícios que carregamos conosco sem havê-los corrigido permanecerão escondidos, mas não suprimidos. E, com efeito, para quem não se libertou das paixões, a solidão e o retiro podem não apenas conservá-las, mas aumentálas, a tal ponto que ele se acaba por não saber de qual paixão está sendo vítima. A solidão, ao contrário, lhe sugere a ilusão da virtude e o persuade de que ele adquiriu a paciência e a humildade, uma vez que não existe ninguém ali para provocá-lo e testá-lo. Mas basta que surja uma circunstância que o sacuda e o excite, e na mesma hora as paixões que se encontram nele e que estavam até então ocultas, como cavalos sem freio que, saindo da cocheira após um período de repouso e inatividade, arrastam o condutor com mais ímpeto e ferocidade. De fato, as paixões são mais excitadas em nós quando não somos testados no meio dos homens. E perdemos esta sombra de paciência e longanimidade que fingimos possuir enquanto não nos misturamos aos irmãos, pelo desleixo causado pela falta de exercício e pela solidão.
[55] Cf. 1 Timóteo II, 8. [56] Levítico XIX, 17. [57] Provérbios XII, 28.
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[8,19] Assim como as mais venenosas bestas selvagens, em repouso no deserto e em suas covas, mostram toda a sua fúria contra qualquer um que se aproxime, também os homens que são presa das paixões, que são calmos não por disposição mas pela necessidade do deserto. Despejam seu veneno cada vez que colocam a mão em alguém que se aproxime e os provoque. É por isso que aqueles que buscam a perfeição da doçura devem tomar todo o cuidado para não se encolerizar contra os homens, mas também para não se irritar com os animais nem com as coisas. Eu me lembro, de fato, que, quando vivia no deserto, eu me irritava contra uma pena de escrever que eu considerasse muito grossa ou muito fina, contra um pedaço de madeira que eu não conseguia cortar com a facilidade imaginada, ou contra a pederneira quando eu estava com pressa de acender o fogo e a centelha custava a pegar. Assim eu descarregava a cólera contra as coisas sensíveis.
[8,20] Assim, se quisermos obter a beatitude do Senhor, devemos, como foi dito, evitar a cólera não apenas em ato, mas também em pensamento. Com efeito, não é tão útil dominarmos nossa língua para não proferir palavras de furor, quanto purificarmos o coração do rancor e não acalentar em si maus pensamentos contra o irmão. Pois o ensinamento evangélico ordena evitar antes as raízes dos pecados do que seus frutos. Se a raiz da cólera for extirpada do coração, nem o ódio nem a inveja conseguirão se traduzir em atos. Com efeito, aquele que odeia seu próximo é chamado de “homicida” [58], porque ele o condena à morte pela disposição da raiva que existe em seu espírito. Os homens não o vêem verter sangue com seu gládio, mas Deus vê que ele o mata em espírito pela raiva que guarda em si, e o Senhor distribui a cada um as coroas e os castigos não somente por suas ações, mas também pelos pensamentos e os desejos, como diz o Profeta: “Eis que vim para reunir suas obras e seus pensamentos [59]”. E o Apóstolo diz também: “Seus pensamentos ora os acusarão, ora os defenderão, no dia em que Deus julgar os segredos dos homens [60]”. 240
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[8,12] O próprio Mestre nos ensina a renunciar a toda cólera quando diz nos Evangelhos: “Todo aquele que odeia seu irmão deverá ir a julgamento [61]”. É de fato, o texto que fornecem os exemplos mais exatos. Segundo o contexto, o inciso “sem causa” parece ter sido acrescentado. Com efeito, o desígnio do Senhor é que evitemos, de todas as maneiras, a raiz e a centelha da cólera, sem guardar em nós o menor pretexto de irritação, para que, por nos enfurecermos por um bom motivo, não nos aconteça cairmos a seguir numa cólera furiosa e irracional. O remédio perfeito contra esta doença é o seguinte: devemos acreditar firmemente que jamais é permitido enfurecer-se, seja por coisas justas, seja por coisas injustas. Como o espírito da cólera obscurece o espírito, nem a luz do discernimento, nem a solidez do conselho justo, nem o sentido de justiça permanecerão em nós. Será impossível que nossa alma seja o templo do Espírito Santo se o espírito da cólera, tendo obscurecido nosso espírito, se apodere de nós. Enfim, a cima de tudo, é preciso que nos guardemos da cólera tendo sempre diante dos olhos a incerteza da hora da morte. E saibamos também que nem a castidade, nem a renúncia a todos os bens, nem os jejuns e as vigílias nos servirão se nos apresentarmos ao Juízo cheios de cólera e rancor. 243
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Cf. 1 João III, 15. Isaías LXVI, 18. Romanos II, 15-16. Mateus V, 22.
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Da tristeza
5. [9,1] Nosso quinto combate é contra o espírito da tristeza que rouba a luz da contemplação espiritual da alma e a impede de cumprir as boas obras. Com efeito, quando este espírito mau se apodera da alma ele a obscurece inteiramente, não a deixa mais fazer suas orações com fervor nem se dedicar frutiferamente às santas leituras. Ele não permite ao homem ser doce e conciliador com seus irmãos; ele lhe inspira raiva a todas as obras que se deve praticar e à própria vida que se abraçou. A tristeza perturba todos os desejos saudáveis da alma e dissolve seu vigor e sua constância, tornando-a como que mole e paralisada, até prendê-la finalmente ao pensamento do desespero.
[9,2] É por isso que, se quisermos sustentar o combate espiritual e vencer com a ajuda de Deus os espíritos de malícia, devemos guardar com o maior cuidado nosso coração do espírito da tristeza, pois, assim como a traça nas roupas ou o cupim na madeira, a tristeza devora a alma do homem, quando o persuade a evitar os bons encontros e não permite receber o conselho dos melhores amigos, nem lhes dar uma resposta amável e pacífica. Ela se apodera da alma de todos os lados e a enche de amargura e de acídia. Enfim, ela instiga a fugir dos homens como se fossem eles os responsáveis pela perturbação em que se encontra. E ela não permite à alma reconhecer que sua enfermidade não provém de fora, mas nasce no seu interior, coisa que, aliás, aparece quando as tentações, surgindo inopinadamente pela prática, a fazem vir à luz. De fato, jamais um homem é prejudicado por outro, se não possuir em si mesmo as causas das paixões.
[9,7] Também Deus, criador e médico das almas, o único que conhece exatamente as feridas da alma, não nos ordena renunciar à freqüentação dos outros, mas a extirpar as causas do mal em nós mesmos. Ele sabe que a saúde da alma não é obtida separando-nos uns dos outros, mas vivendo e nos exercitando junto a homens virtuosos. Quando abandonamos os irmãos por supostos bons pretextos, não suprimimos as ocasiões de tristeza, mas apenas as alteramos, pois o mal está em nós e surgirá por outras razões.
[9,8] É por isso que todo o nosso combate deve ser contra as paixões que estão em nós. Uma vez que sejam expulsas de nosso coração com a graça e a ajuda de Deus, viveremos com tranqüilidade, já não digo entre os homens, mas mesmo entre os animais selvagens, como diz o bem-aventurado Jó: “Os animais selvagens viverão em paz com você” [62]. 244
[9,9] É preciso então combater primeiro contra o espírito da tristeza que lança a alma no desespero, a fim de tirá-lo de nossa alma. Foi este espírito, de fato, que impediu Caim de se arrepender após o assassinato de seu irmão [63], e também Judas, após ter traído o Mestre. Só podemos manter a tristeza trazida pelo arrependimento dos pecados que cometemos, mas que é acompanhada da boa esperança. Da qual diz o Apóstolo: “A tristeza conforme a Deus causa uma penitência duradoura para a salvação [64]”. Com efeito, a tristeza conforme a Deus, que nutre a alma com a esperança da penitência, é mesclada de alegria. É por 245
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[62] Jó V, 23. [63] Cf. Gênesis IX, 4-16. [64] 2 Coríntios VII, 10.
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isso que ela torna o homem cheio de ardor para submeter-se às boas obras, afável, humilde [65], doce, esquecendo-se das injúrias, paciente para suportar todas as penas e aflições, tudo o que vem de Deus. Desta tristeza enfim nascem no homem os frutos do Espírito Santo, a saber, “a alegria, a caridade, a paz, a longanimidade, a bondade, a fé, a temperança [66]”. Da outra tristeza, ao contrário, reconhecemos os maus frutos, que são a acídia, a impaciência, a cólera, a raiva, a contrariedade, o desencorajamento, a negligência na oração. 247
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[9,12] Assim, devemos nos afastar desta tristeza assim como fazemos com a prostituição, a avareza, a cólera e as demais paixões. Ela é curada pela prece, pela esperança em Deus, pela meditação nas palavras divinas e pela freqüentação dos homens piedosos.
Da acídia
6. [10,1] Nosso sexto combate será contra o espírito da acídia que caminha e trabalha junto com o espírito da tristeza. Este demônio terrível e opressor está sempre em guerra contra os monges.
[10,2] É ele que ataca o monge na sexta hora, tornando-o lânguido e entorpecido, fazendo-o sentir aversão pelo lugar em que vive, pelos irmãos que vivem com ele, pelas ocupações e até pela leitura das divinas Escrituras. Ele lhe sugere que mude de lugar, pensando que, se não partir para outras paragens, estará perdendo seu trabalho e seu tempo.
[10,3] Em primeiro lugar, por volta da sexta hora, ele o faz sentir fome, como se tivesse passado três dias sem comer, percorrido um longo caminho ou cumprido alguma pesada tarefa. Então ele lhe sugere o pensamento de que esta enfermidade poderá ser tratada se ele sair continuamente a ver os irmãos, sob pretexto de benefício espiritual ou para visitar os enfermos. Se não consegue fazer com que o monge caia em suas armadilhas, este demônio o mergulha num profundo sono, tornando-se assim mais forte e mais poderoso contra ele, e então ele só poderá ser expulso pela prece, a fuga da tagarelice, a meditação sobre as palavras divinas e a paciência nas provações.
[10,6] Com efeito, quando não o encontra munido destas armas, ele toma as rédeas ao monge, tornando-o instável, errante, negligente e ocioso, fazendo-o circular de mosteiro em mosteiro sem se preocupar com outra coisa do que encontrar comida e bebida. Pois o espírito do monge que é presa da acídia não imagina outra coisa do que distrações deste gênero; e, a partir daí, a acídia o prende às coisas do mundo e pouco a pouco o atira às suas ocupações nocivas, até que ele decaia totalmente de sua profissão monástica.
[65] Existe aqui uma lacuna no texto da P.G. 28, 897D. [66] Gálatas V, 22-23.
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[10,7-8] O divino Apóstolo, sabendo e desejando, como bom médico, arrancar de nós esta doença extremamente grave, mostra-nos em primeiro lugar as causas das quais ela decorre: “Nós lhes ordenamos, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que vocês se separem de qualquer irmão que viva na desordem e não na tradição recebida de nós. E vocês sabem, com efeito, como é preciso nos imitar, porque nunca vivemos ociosamente entre vocês, jamais comemos de graça o pão de quem quer que fosse; ao contrário, trabalhamos noite e dia, penando até o esgotamento, para não sermos um peso para ninguém.”
[10,10] “Não que não possuíssemos este direito, mas quisemos nos tornar um exemplo vivo para vocês.”
[10,11] “Da mesma forma, enquanto estivemos entre vocês, nós lhes prescrevemos que, se alguém não trabalhar, que também não coma! Ora, ficamos sabendo que entre vocês alguns vivem ociosamente, sem nada fazer mas sempre parecendo atarefados. A estes, nós pedimos e exortamos em Jesus Cristo a que trabalhem em calma para comer um pão que seja seu. [67]” 249
[68]Vejamos como o Apóstolo nos mostra com sabedoria as causas da acídia. De fato, ele chama de rebeldes aos que não trabalham; com uma única palavra, ele desvela toda a grande malícia. Pois quem é rebelde não teme a Deus, é levado por suas próprias palavras e está sempre inclinado às injúrias, sendo, portanto, incapaz de recolhimento e tornando-se escravo da acídia. O Apóstolo ordena que nos separemos destes, como nos afastamos de uma moléstia pestilenta. Ao dizer a seguir que eles não caminham “segundo a tradição recebida de nós”, ele indica que eles são orgulhosos, desdenhosos e violadores das tradições apostólicas. E, acrescenta ele, “jamais comemos de graça o pão de quem quer que fosse; ao contrário, trabalhamos noite e dia, penando até o esgotamento, para não sermos um peso para ninguém.” 250
[10,8] O doutor das nações, o arauto do Evangelho, aquele que foi elevado até o terceiro céu, aquele que disse que o Senhor declarou que os que predicam o Evangelho devem viver do Evangelho, ele próprio trabalha noite e dia penando até o esgotamento para não se tornar um peso para ninguém. Que faremos nós então, que sentimos desgosto pelo trabalho e não buscamos senão o bem estar do corpo? Nós não recebemos nem o encargo de anunciar o Evangelho, nem o de administrar a Igreja, mas apenas o de cuidar de nossas almas. Depois, mostrando claramente o prejuízo causado pelo ócio, ele acrescenta: “sem fazer nada e sempre parecendo atarefados”. Pois do ócio nasce a ingerência nos negócios alheios, daí a desordem e da desordem todos os males. Preparando em seguida o remédio, ele prossegue: “A estes, nos exortamos a trabalhar em calma para comer um pão que seja seu”. E depois ele declara ainda mais severamente: “Se alguém não trabalha, que também não coma!”
[10,22] Instruídos por estes mandamentos apostólicos, os santos Padres do Egito decretaram que os monges não deveriam ficar ociosos nem por um momento, sobretudo os jovens. Eles sabiam que pela perseverança no trabalho se expulsa a acídia, se ganha a subsistência e se vem em socorro dos indigentes. Com efeito, eles não trabalhavam apenas para suas necessidades, mas seu trabalho lhes dava o suficiente para amparar os estrangeiros, os pobres e os prisioneiros. Eles estavam persuadidos de que esta
[67] 2 Tessalonicenses III, 6-12. [68] Aqui retoma o texto após a lacuna em P.G. 28,897D.
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benemerência era uma santa oferenda agradável a Deus. E os Padres diziam o seguinte: quem trabalha luta contra um demônio e é atormentado por ele; mas quem é ocioso está sujeito a milhares de demônios.
[10,25] Por outro lado, é bom lembrar as palavras que o abade Moisés, o mais experiente dentre os Padres, me disse pessoalmente. Naquela ocasião eu me encontrava há pouco tempo no deserto e fui tomado pela acídia. Fui procurá-lo para dizer que, na véspera, eu estivera muito atormentado pela acídia e, no fim das forças, só consegui libertar-me dela procurando o abade Paulo. Então o abade Moisés me respondeu: “Na verdade, você não se libertou, mas escravizou-se ainda mais. Saiba então que este demônio o atacará com mais força ainda como desertor, a menos que você se dedique a vencê-lo pela perseverança, a prece e o trabalho manual.”
Da vanglória
7. [11,1-3] Nosso sétimo combate é contra o espírito de vanglória, paixão que se reveste de diversas formas e que é muito sutil. Mesmo os mais experientes não conseguem dominá-la facilmente. De fato, os ataques das outras paixões são mais manifestos e podemos combatê-los com certa facilidade, pois a alma reconhece o inimigo e o afasta rapidamente pela réplica da oração. Mas a malícia da vanglória, revestindose de numerosas formas, como dissemos, é difícil de combater. Com efeito, ela se mostra em todas as ocupações, [nas roupas, no modo de andar], na voz, na palavra, no silêncio, na ação e na vigília, nos jejuns, na prece, na leitura, no recolhimento e na paciência. Em tudo isso, ela se esforça por ferir o soldado de Cristo.
[11,4] Aquele a quem a vanglória não consegue enganar com a suntuosidade das vestimentas, ela busca tentar com um vil uniforme. Aquele a quem ela não conseguiu abater com as honrarias, ela tenta empurrar para o orgulho de suportar a desonra. Aquele a quem ela não conseguiu bajular pela arte das palavras, ela busca seduzir com um silêncio que se faz passar por recolhimento. A quem ela não conseguiu convencer de se glorificar por um bom regime alimentar, ela atrai com um jejum feito para ser louvado. Numa palavra, qualquer obra, qualquer ocupação fornece a este mau demônio uma ocasião para atacar.
[11,14] Ademais, ele sugere também ao monge imaginar-se nas altas patentes clericais.
[11,6] Lembro-me de um ancião, quando eu morava em Sceta. Dirigindo-se à cela de um irmão para visitá-lo, ao aproximar-se da porta, ouviu alguém falando no interior. Pensando tratar-se de alguma passagem da Escritura, ele parou para escutar. Ele então percebeu que o irmão era presa da vanglória, que ele imaginava ser diácono e acabava de despachar alguns catecúmenos. Após ouvir isto, ele bateu à porta e entrou. O irmão veio ao seu encontro, saudou-o segundo o costume e lhe perguntou se ele estava há muito tempo diante da porta. O ancião lhe respondeu calmamente: “Eu cheguei bem no momento em que você despachava os catecúmenos”. Diante destas palavras, o irmão caiu aos pés do ancião pedindo-lhe que rezasse por ele, a fim de que fosse libertado da ilusão.
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TI, VI – JOÃO CASSIANO, O ROMANO – Sobre os 8 pensamentos de malícia.
[11,17] Lembrei-me deste acontecimento para demonstrar a que ponto de inconsciência este demônio consegue levar o homem.
[11,19] Aquele que quiser combater à perfeição e conquistar a coroa da justiça deve se esforçar por todos os meios para vencer esta besta multiforme, tendo sempre em mente as palavras de Davi: “O Senhor reduzirá a pó os ossos dos que seduzem os homens [69]”. Que ele não faça nada pelo desejo de ser louvado pelos homens, mas busque seu salário apenas diante de Deus e, sempre rejeitando os pensamentos bajuladores que surgem em seu coração, desdenhe de si mesmo em presença de Deus. Assim ele poderá, com a graça de Deus, ser libertado do espírito da vanglória. 251
Do orgulho
8. [12,1] Nosso oitavo combate será contra o espírito do orgulho. Ele é mais terrível e mais cruel do que todos os precedentes, atacando sobretudo os perfeitos e esforçando-se por derrubar aqueles que estão quase alcançando o cume das virtudes.
[12,3] Tal como uma doença infecciosa e fatal que destrói não um membro mas o corpo inteiro, também o orgulho não destrói uma parte, mas a alma inteira. Cada um dos outros vícios, mesmo perturbando a alma, atacam apenas a virtude que lhes é oposta tentando vencê-la; eles não visam nem perturbam a alma como um todo. Somente o vício do orgulho a obscurece totalmente e a leva à ruína completa. Para melhor captar o que quero dizer lembremos que a gula se contrapõe à temperança, a prostituição à castidade, a avareza ao despojamento, a cólera à mansidão, e as demais espécies de malícias às suas virtudes contrárias. Mas a malícia do orgulho, quando se apodera da infeliz alma, como o mais feroz dos tiranos que toma uma grande cidade elevada, a destrói inteiramente e a arrasa até as suas fundações.
[12,4] Testemunho disto é este anjo caído do céu por seu orgulho: ele, que havia sido criado por Deus e dotado de toda a virtude e sabedoria, não quis atribuir a graça ao Senhor, mas à sua própria natureza. Por isso ele se considerou igual a Deus. É esta pretensão que o Profeta reprova quando declara: “Você disse em seu coração: ‘Eu me sentarei sobre uma montanha elevada, colocarei meu trono sobre as nuvens e serei semelhante ao Altíssimo’. Mas você é um homem, não um Deus. [70]” Outro profeta disse: “Porque você se glorifica no mal? [71]”, e o resto do Salmo: “Você está o dia todo planejando ciladas; sua língua é navalha afiada, autora de fraudes. Você prefere o mal, e não o bem, a mentira, e não a franqueza. Você gosta de palavras corrosivas, ó língua fraudulenta. Por isso Deus destruirá você para sempre, o abaterá e o varrerá da sua tenda; arrancará suas raízes do solo fértil. Os justos verão isso e temerão, e rirão à custa dele, dizendo: Eis o homem que não colocou Deus como sua fortaleza. Confiou em sua grande riqueza e se fortaleceu com ciladas! [72]” 252
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[69] [70] [71] [72]
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Salmo LII, 5. Isaías XIV, 13. Salmo LI, 3. Salmo LI, 4-9.
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TI, VI – JOÃO CASSIANO, O ROMANO – Sobre os 8 pensamentos de malícia.
[12,9] Sabendo disso, enchamo-nos de temor e com toda vigilância guardemos nosso coração isento do espírito fatal do orgulho, repetindo-nos sempre as palavras do Apóstolo, quando houvermos adquirido esta virtude: “Não eu, mas a graça de Deus em mim [73]”, e também as palavras do Senhor: “Sem mim vocês nada podem [74]”, assim como as do Profeta: “Se o Senhor não constrói a casa, em vão trabalham os construtores [75]”, e: “Isto não depende da vontade nem do esforço do homem, mas da misericórdia de Deus258[76]”. 255
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[12,10] Com efeito, qualquer que seja o fervor de seu zelo e o ardor de seu desejo, aquele que está ligado à carne e ao sangue não poderá atingir a perfeição a não ser pela misericórdia e a graça de Cristo. Como diz são Tiago, “todo dom excelente vem do alto [77]”, e o apóstolo Paulo: “O que você possui que não tenha recebido? E se você recebeu, porque glorificar-se como se não tivesse recebido [78]”, e vangloriar-se dos dons de outro como se fossem seus? 259
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[12,11] Que a salvação nos chega pela graça e a misericórdia de Deus [79], é testemunha este lutador que não recebeu o reino dos céus como recompensa pela virtude, mas pela graça e misericórdia de Deus. 261
[Cf. 12,31-33] Sabendo disso, nossos Pais nos transmitiram este ditame, de que não é possível atingir a perfeição da virtude de outro modo que não a humildade, a qual decorre naturalmente da fé, do temor a Deus, da doçura e do total despojamento. Obtém-se assim a caridade perfeita pela graça e a bondade de nosso Senhor Jesus Cristo, glória lhe seja dada por todos os séculos. Amém.
[73] [74] [75] [76] [77] [78] [79]
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1 Coríntios XV, 10. João XV, 5. Salmo CXXVI, 1. Romanos IX, 16. Tiago I, 17. 1 Coríntios IV, 7. Cf. Lucas XXIII, 43.
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TI, VI – JOÃO CASSIANO, O ROMANO – Discurso sobre os padres de Sceta e o discernimento.
DISCURSO CHEIO DE BENEFÍCIO ESPIRITUAL SOBRE OS PADRES DE SCETA E O DISCERNIMENTO
[Pref.] Decidi cumprir agora com a promessa feita ao bem-aventurado bispo Castor a respeito da vida dos santos Padres e de seus ensinamentos, que já quitei parcialmente quando lhe escrevi e enviei, ó santo Leôncio, alguma coisa quanto à forma de vida cenobítica e os oito principais pensamentos viciosos. Tendo notícia de que este bem-aventurado pontífice nos deixou para ir-se a Cristo, pensei em endereçar-lhe, a você que herdou sua virtude e os cuidados de seu mosteiro, o restante de meu relato.
[1,1] Nós nos dirigimos ao deserto de Sceta aonde se encontravam os Padres mais renomados, eu e o santo abade Germano, a quem me ligava um amizade vinda desde a escola, a milícia e a vida monástica. Lá encontramos o abade Moisés, homem santo, que se distinguia não apenas pelas virtudes ascéticas, mas também pela contemplação, Nós lhe pedimos com lágrimas um sermão edificante por meio do qual pudéssemos atingir a perfeição. Depois de muitas preces, ele disse:
[1,2] “Meus filhos, todas as virtudes e ocupações têm um só objetivo: aqueles que mantêm os olhos fixos neste objetivo, em tudo conformando-se a ele, obterão o fim desejado. O trabalhador, por exemplo, suportando tanto o calor do sol como o frio do inverno, trabalha a terra com zelo; ele quer desembaraçar a terra dos espinheiros e das ervas daninhas, mas o fim que ele persegue é a colheita dos frutos. Da mesma forma, aquele que se dedica ao comércio, enfrentando os perigos marítimos e terrestres, dedica-se com ardor aos seus negócios, tendo em vista o ganho que obterá; o fim, para ele, será usufruir deste ganho. E também o soldado não teme nem os perigos do combate nem as misérias do exílio, tendo por objetivo subir na carreira impulsionado por sua coragem; seu fim são as honras que receberá.”
Também nossa profissão tem seu objetivo e seu fim específico, pelo qual nós suportamos voluntariamente todos os trabalhos e fadigas. É por isso que a fome dos jejuns não nos cansa; a fadiga das vigílias se torna um prazer; a leitura e a meditação das Escrituras são feitas de bom coração. As penas do trabalho, a obediência, a privação de todas as coisas terrestres e a vida neste deserto são facilmente assumidas. Vocês mesmos, desprezaram pátria, família e todos os prazeres do mundo para partir para longe e vir até nós que não passamos de rústicos e ignorantes. Digam-me: qual é o seu objetivo? Que fim vocês perseguem ao fazer isto?
[1,3] Nós lhe respondemos: “Pelo reino dos céus”.
[1,4] Então o abade Moisés falou: “Muito bem, vocês me indicaram o fim. Mas o objetivo que devemos ter em vista, sem nos afastarmos da via reta, para obter o reino dos céus, isto vocês não disseram”. Depois que confessamos nossa ignorância, o ancião retomou a palavra:
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TI, VI – JOÃO CASSIANO, O ROMANO – Discurso sobre os padres de Sceta e o discernimento.
“O fim da nossa profissão é, realmente, como vocês disseram, o reino de Deus; mas o objetivo, é a pureza do coração, sem a qual é impossível alcançar este fim. Então, que nosso intelecto esteja sempre orientado para este objetivo. Mesmo que aconteça às vezes do coração se afastar da via direita, é preciso reconduzilo imediatamente, nos orientando para este objetivo por meio de uma regra.”
[1,5] Sabedor disto, o bem-aventurado apóstolo Paulo disse: “esquecendo-me do que fica para trás avanço para o que está na frente. Lanço-me em direção à meta, em vista do prêmio do alto, que Deus nos chama a receber em Jesus Cristo [80]”. É em vista deste objetivo que devemos, também nós, tudo fazer. É em vista deste objetivo que desdenhamos tudo, pátria, família, riquezas e o mundo inteiro, a fim de adquirir a pureza do coração. E, se esquecermos este objetivo, é inevitável que, caminhando nas trevas e deixando a via reta, façamos inúmeras voltas e desvios. 262
[1,6] É o que aconteceu a muitos que, no começo de sua renúncia, desprezaram a riqueza, os bens e o mundo inteiro, mas se deixavam tomar de cólera e furor por uma foice, uma agulha, uma pena ou um livro. Eles não precisariam passar por isso, se se lembrassem do objetivo pelo qual desprezaram aquelas coisas. É de fato por amor ao próximo que desprezamos a riqueza, para não entrar em querelas a respeito e perdermos a caridade dando lugar à cólera. Então, se por bagatelas manifestamos irritação contra um irmão, afastamo-nos do objetivo e não tiramos nenhum benefício de nossa renúncia. É por isso que o Apóstolo dizia: “Mesmo que eu atire meu corpo ao fogo, se não for pelo amor, isto de nada servirá [81]”. Aprendemos assim que não se atinge a perfeição de uma só vez pelo despojamento e pela renúncia às coisas, mas pelo crescimento do amor, cujas características o Apóstolo descreve: “O amor, diz ele, não tem inveja, não se enche de orgulho, não se irrita, não denigre, não faz nada que seja frívolo, jamais pensa o mal [82]”. Tudo isto assegura a pureza do coração. 263
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[1,7] É por ela que tudo deve ser feito: desprezar os bens terrestres, sofrer com facilidade os jejuns, dedicar-se à leitura e à salmódia. Não quer dizer que a negligenciemos, se, por qualquer necessidade ou por algum assunto de Deus, sejamos impedidos de fazer o jejum e a leitura habitual. Porque menos se ganha com o jejum do que se perde com a cólera, e o benefício de uma leitura não iguala o dano produzido se desprezarmos ou contristarmos nossos irmãos. Com efeito, como eu disse, nem os jejuns, nem as vigílias, nem a meditação das Escrituras, nem o despojamento das riquezas, nem a renúncia ao mundo constituem a perfeição, mas instrumentos da perfeição. E como a perfeição não se encontra nestas práticas, mas vem por meio delas, é em vão que glorificamos o jejum, a vigília, a pobreza e a leitura das Escrituras se não observamos o amor a Deus e ao próximo. Pois quem tem amor tem Deus em si, e seu intelecto estará sempre com Deus.
[1,12] Diante dessas palavras, Germano disse: “Que homem, ligado a esta carne, pode ter o intelecto sempre em Deus, sem jamais pensar em outra coisa? Não existem doentes a visitar? Hóspedes a receber? E o trabalho manual e as outras necessidades que são indispensáveis e que o corpo exige? Finalmente,
[80] Filipenses III, 13-14. [81] 1 Coríntios XIII, 3. [82] 1 Coríntios XIII, 4-5.
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como pode a razão do homem ver sempre a este Deus invisível e incompreensível e nunca se afastar dele?”
[1,13] Moisés respondeu: “Ver sempre a Deus e jamais afastar-se dele, da maneira como você diz, sim, isto é impossível ao homem revestido de carne e ligado à fragilidade. Mas de uma outra maneira, é possível ver a Deus.”
[1,15] Com efeito, a contemplação de Deus pode ser entendida e encarada de muitas maneiras. Pois Deus não pode ser conhecido apenas em sua essência bem-aventurada e incompreensível, o que está reservado aos santos do século futuro, mas ele pode ser conhecido também a partir da grandeza e da beleza de suas criaturas, de seu governo e de sua providência que se exercem a cada dia, de sua justiça e de suas maravilhas que ele revela aos santos de geração em geração. Quando pensamos na imensidão de seu poder e na continuidade de seu olhar ao qual não podem se esconder os segredos do coração nem nenhum outro, como o coração cheio de temor, nós o admiramos e adoramos. Quando imaginamos que ele conhece o número de gotas de água e de grãos de areia do mar [83], e dos astros no céu, ficamos estupefatos diante da grandeza de sua natureza e de sua sabedoria. Quando refletimos em sua sabedoria inefável e indescritível, na bondade e na paciência incansável com que ele suporta as faltas sem número dos pecadores, nós lhe rendemos graças. Quando pensamos no grande amor que ele nos demonstra, sem nenhum mérito de nossa parte, ao se fazer homem, ele que era Deus, para nos salvar de nossa perdição, somos levados a aspirar por ele. Quando consideramos que após termos vencido em nós nosso adversário o diabo, como prêmio pelo simples assentimento de nossa boa vontade, ele nos gratifica com a vida eterna, nós nos prosternamos diante dele. E existem ainda inumeráveis considerações que nascem em nós na medida de nossa conduta e conforme o grau de nossa pureza, pelas quais Deus pode ser visto e conhecido. 265
[1,16] Então Germano colocou uma nova questão: “Como é possível que frequentemente, contra nossa vontade, muitas idéias e maus pensamentos nos assaltem e nos enganem quase sem que percebamos, introduzindo-se em nós discreta e furtivamente, de tal sorte que é muito difícil, não apenas impedir a sua entrada, mas até reconhecê-los? Também queremos saber se é possível que nosso pensamento seja completamente libertado e não se perturbe mais?”
[1,17] “É impossível, respondeu Moisés, que o pensamento não seja perturbado por tais idéias, mas é permitido a qualquer um acolhê-los e deter-se neles ou rejeitá-los. Pois sua chegada não depende de nós, mas está em nosso poder afastá-los, e a retificação de nosso pensamento dependem de nossa vontade e de nosso zelo. Se meditarmos atenta e continuamente na lei de Deus, se nos dedicarmos ao canto dos salmos e dos hinos, se não cessarmos de praticar os jejuns e as vigílias, se nos lembrarmos constantemente do reino dos céus, da geena de fogo e de todas as obras de Deus, os maus pensamentos cederão e não encontrarão lugar em nós. Mas se, ao contrário, nos dedicamos às coisas do mundo e às coisas carnais, se nos dedicamos a propósitos frívolos e inúteis, os baixos pensamentos se multiplicarão em nós.”
[83] Jó, XXXVI, 27.
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[1,18] Assim como um moinho de água não pode ser detido, mas está no poder do moleiro moer trigo ou cevada, também nosso pensamento, sendo móvel, não pode permanecer vazio de idéias, mas cabe a nós fornecer-lhe uma meditação espiritual ou uma ocupação carnal.
[1,23] O ancião, vendo-nos cheios de admiração e animados por um insaciável ardor por suas palavras, calou-se por um instante, depois retomou:
“Como sua sede me fez prolongar este discurso e mesmo assim vocês permanecem ávidos da doutrina da perfeição, eu vou lhes falar da excelência da virtude do discernimento que, dentre todas, é a cidadela e a rainha. E eu lhes mostrarei sua preeminência, sua grandeza e sua utilidade não apenas por palavras, mas pelos antigos oráculos dos Padres, com a graça do Senhor que inspira aqueles que falam segundo o mérito e o desejo dos que escutam.”
[2,1] De fato, a virtude do discernimento não é pequena, ao contrário, ela é contada entre os mais nobres carismas do Espírito Santo, do qual diz o Apóstolo: “A um é dada pelo Espírito uma palavra de sabedoria; a outro, uma palavra de ciência, segundo o mesmo Espírito; a um terceiro, a fé, no mesmo Espírito; a outro, o carisma das curas; a um quinto, o discernimento dos espíritos. [84]” Logo, após terminar a lista dos carismas, ele acrescenta: “Tudo isto é produzido por um só e mesmo Espírito [85]”. 266
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Como vocês vêem, o dom do discernimento não é nem terrestre nem pequeno, mas um grande presente da graça divina. Se o monge não puser todos os seus esforços e seu zelo em obter e adquirir o discernimento seguro dos espíritos que lhe sobrevêm, segue-se forçosamente que, como alguém perdido na noite, não apenas ele cairá nos horríveis precipícios, mas estrebuchará até nos caminhos retos e planos.
[2,2] Isto me lembra quando, nos meus anos de juventude. Eu me encontrava na região de Tebaida, aonde vivia o bem-aventurado Antônio. Alguns anciãos, reunidos com ele, se perguntavam sobre qual seria a virtude mais perfeita, qual dentre todas poderia melhor proteger o monge ao abrigo das armadilhas e das ilusões do diabo. Cada qual emitia sua opinião, segundo a concepção de seu pensamento. Uns diziam ser o jejum e a vigília, pois, pela sua observação, o pensamento, tornado mais leve e puro, pode se aproximar de Deus mais facilmente. Outros pensavam ser o despojamento e o desprezo por todas as coisas pessoais, na medida em que o pensamento, liberado dos múltiplos laços das preocupações do mundo, pode se aproximar de Deus com mais comodidade. Outros ainda julgavam ser a virtude da esmola, porque o Senhor disse no Evangelho: “Venham, benditos de meu Pai, entrem na posse do reino que lhes foi reservado desde a origem do mundo. Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer [86]”, etc. 268
[84] 1 Coríntios XII, 8-9. [85] 1 Coríntios XII, 10. [86] Mateus XXV, 34-35.
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É assim que cada um dava sua opinião sobre as diferentes virtudes pelas quais o homem poderia se aproximar cada vez mais de Deus, e a maior parte da noite passou-se nesta pesquisa. O último de todos, o bem-aventurado Antônio, tomou a palavra: “Todas essas práticas de que vocês falaram são certamente necessárias e úteis aos que buscam a Deus e aspiram alcançá-lo. Mas não me parece que devamos dar o primeiro prêmio a essas virtudes, pois todos conhecemos muitos que se extenuaram em jejuns e vigílias, que se retiraram para o deserto, que levaram o despojamento ao ponto de não reservarem sequer o alimento cotidiano, que praticaram a esmola até distribuir tudo o que tinham e, depois disso tudo, caíram miseravelmente da virtude e escorregaram para o mal. O que os fez se desviarem da via reta? Não foi outra coisa, segundo meu sentimento e minha opinião, do que a falta de discernimento. Pois é o discernimento que ensina o homem a caminhar sobre a via real mantendo-se à distância de dois excessos: ele impede de se perder à direita por uma temperança exagerada e de se deixar levar à esquerda pela negligência e o relaxamento.”
O discernimento é, com efeito, como que o olho e a lâmpada da alma, segundo estas palavras do Evangelho: “A lâmpada do corpo é o olho. Se seu olho for puro, todo seu corpo será luminoso; mas se seu olho é tenebroso, todo seu corpo será tenebroso [87]”. O discernimento examina todas as idéias e ações do homem, rejeita e dispensa o que é mau e o que desagrada a Deus, protegendo-nos assim da perdição. 269
[2,3] Podemos também aprender essas coisas pelos relatos das santas Escrituras. Pois Saul, o primeiro a receber a realeza em Israel, não possuía o olhar do discernimento, e por isso seu pensamento estava obscurecido e não conseguia discernir se era mais agradável a Deus oferecer um sacrifício ou obedecer ao mandamento do profeta Samuel. Quando ele pensava estar honrando a Deus, na verdade ofendeu-o e perdeu a realeza [88]. 270
É também o discernimento que o Apóstolo chama de “sol” quando diz: “Que o sol não se ponha sobre a sua cólera”. Podemos vê-lo também como o leme de nossas vidas, segundo o que está escrito: “Aqueles que não têm direção caem como as folhas [89]”. A Escritura também o designa como prudência, sem a qual nos é proibido fazer seja lá o que for, até mesmo beber o vinho espiritual que alegra o coração do homem [90], conforme as palavras: “Beba o vinho com prudência [91]”. E também é dito: “Uma cidadela com as muralhas derrubadas e sem defesa, assim é o homem que faz qualquer coisa sem prudência. [92]” No discernimento cresce a sabedoria, o intelecto e o juízo, sem os quais não podemos construir nossa moradia interior nem juntar as riquezas espirituais, conforme as palavras: “É pela sabedoria que uma casa se ergue e pelo intelecto que ela se torna firme, pelo juízo que seus cofres se enchem de riquezas. [93]” Ela é o alimento sólido dos homens feitos, cujo senso é exercitado pelo hábito de discernir o bem do mal [94]. Todos esses textos mostram claramente que, sem o carisma do discernimento, uma virtude não consegue se estabelecer nem permanecer firme até o fim, pois é o discernimento que engendra e protege todas as virtudes. 271
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[87] [88] [89] [90] [91] [92] [93] [94]
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Mateus VI, 22-23. Cf. 1 Samuel XV, 17-23. Provérbios XI, 14. Cf. Salmo CIII, 15. Provérbios XXXI, 3. Provérbios XXV, 28. Provérbios XXIV, 3-4. Hebreus V, 14.
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[2,5] Todos os Padres concordaram com esta opinião e este julgamento de Antônio. E podemos confirmar a sentença de santo Antônio por exemplos recentes acontecidos em nosso tempo. Vocês se lembram da miserável queda do velho Heron, que aconteceu a poucos dias debaixo de nosso olhos: de que maneira, pela ilusão do diabo, ele se atirou do alto de sua prática virtuosa para as goelas da morte. Nós nos lembramos, com efeito, que ele passou cinqüenta anos no deserto próximo daqui, vivendo numa grande austeridade e numa severa temperança, buscando e procurando mais do que todos os lugares mais desertos e solitários. E depois de tantas penas e lutas, tornado joguete do diabo, ele se deixou escorregar para o abismo e lançou num luto inconsolável todos os Padres e irmãos deste deserto. Ele não teria sofrido isto se tivesse observado a virtude do discernimento, ele que aprendera a não se fiar no seu próprio julgamento, mas no conselho dos Padres e dos irmãos. Pois foi seguindo seu próprio julgamento que ele prolongou seu jejum e seu isolamento até durante os festejos da santa Páscoa, não aceitando encontrar os Padres e os irmãos na igreja para comer com eles, pois seria constrangido a tomar sua parcela de legumes ou de algum outro alimento apresentado à mesa e assim pareceria ter renunciado a seu propósito e à sua regra. Por longo tempo separado dos demais por sua própria vontade, ele recebeu o anjo de Satanás e o venerou como se fosse um anjo de luz [95]. Este lhe ordenou que se atirasse no meio da noite dentro de um poço profundo para que soubesse pela própria experiência que ele daí por diante estava protegido de todos os perigos por sua grande virtude e seu perseverante trabalho por Deus. Não discernindo mais em seu pensamento o inspirador deste desígnio, com o espírito entenebrecido, ele se atirou em plena noite no poço. Pouco depois os irmãos se deram conta do acontecido e resgataram-no com muito trabalho, já semimorto. Dois dias depois ele expirou, deixando os irmãos e o abade Paphnúcio num luto inconsolável. Este, movido por sua grande bondade e lembrando-se dos numerosos trabalhos e de tantos anos que o ancião passara no deserto, não o separou da lembrança e da oferenda que fazemos para todos os defuntos, a fim de que ele não fosse contado entre os suicidas. 277
[2,6] E que dizer destes dois irmãos que habitavam para além do deserto de Tebaida, lá aonde o bemaventurado Antônio havia residido, e que, levados pela falta de discernimento, decidiram-se a marchar para o interior do deserto, imenso e estéril, sem receber alimento dos homens, mas contentando-se apenas com aquilo que o Senhor lhes fornecesse milagrosamente? Perdidos no deserto e morrendo de fome, eles foram vistos de longe pelos Maziques. Este povo é o mais selvagem e cruel de todos quantos existem. Mas mudando, pela providência divina, sua selvageria e crueldade em benevolência, eles foram ao encontro dos irmãos com pães. Um deles, inspirado pelo discernimento, recebeu os pães com alegria e reconhecimento, dizendo para si mesmo que se homens tão cruéis e selvagens, que tinham prazer em derramar sangue, foram movidos pela compaixão diante de seu esgotamento e lhes ministraram alimento, isto só poderia ser por impulsão divina. Mas o outro, recusando o alimento oferecido por homens e permanecendo provado de discernimento, morreu de fome. Todos os dois, de início, haviam tomado uma decisão errônea, partindo de uma opinião irracional e funesta. Entretanto o primeiro, lembrando-se do discernimento, fez bem em renunciar ao seu propósito temerário e imprudente. O segundo, ao contrário, obstinado em sua tola presunção e em sua falta de discernimento, entregou-se à morte da qual Deus tentara desviá-lo.
[2,7] Que dizer ainda deste outro, que não nomearei porque vive ainda? Ele acolheu por inúmeras vezes o demônio como se fosse um anjo, recebendo dele revelações e vendo brilhar continuamente em sua cela a luz de uma lâmpada. Finalmente, ele recebeu do anjo a ordem de imolar a Deus em sacrifício seu filho que habitava com ele no mesmo mosteiro, para compartilhar do mérito de Abraão. Esta sugestão o iludiu de tal [95] Cf. 2 Coríntios XI, 14.
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maneira que ele teria matado o próprio filho se este, vendo-o afiar seu cutelo de forma inusitada e preparar as cordas com as quais iria amarrá-lo como vítima, não tivesse assegurado sua salvação pela fuga.
[2,8] Para terminar contarei ainda a ilusão daquele monge da Mesopotâmia que praticava uma extrema temperança, recluso por anos a fio em sua cela, e que, finalmente, enganado por revelações e sonhos diabólicos que depois de anos de trabalho e virtudes que o haviam elevado acima de todos os monges da região, converteu-se ao judaísmo e se fez circuncidar. Para enganá-lo, o diabo lhe mostrou em diversas ocasiões verdadeiras visões, a fim de torná-lo mais disposto a crer nas falsidades que ele lhe iria apresentar. Ele lhe mostrou então, numa noite, de um lado o povo cristão com os apóstolos e os mártires como tenebrosos e cheios de vergonha, mergulhados na tristeza e no luto; e de outro lado o povo judeu, com Moisés e os profetas, irradiando uma luz deslumbrante e vivendo na alegria e na felicidade. O sedutor lhe propôs, caso quisesse partilhar da alegria e da beatitude do povo judeu, que se fizesse circuncidar. E assim iludido, o monge se dez circuncidar. É evidente que, de todos estes monges, nenhum teria sucumbido tão triste e miseravelmente à ilusão, se possuíssem o carisma do discernimento.
[2,9] Neste momento, Germano disse: “Tanto os exemplo recentes como as sentenças dos antigos Padres mostram suficientemente que o discernimento é a fonte, a raiz, a cabeça e a ligação de todas as virtudes. Mas como podemos adquiri-la, é o que queremos saber: como reconhecer o verdadeiro discernimento que vem de Deus daquele que é falso, enganador e diabólico?”
[2,10] Então o abade Moisés respondeu: “O verdadeiro discernimento só é dado, ao preço de uma verdadeira humildade, a quem revela aos Padres não apenas suas ações, mas também seus pensamentos, e que jamais confia em seu próprio senso, mas segue em tudo as palavras dos antigos, só considerando como bom o que foi aprovado por eles. Esta prática não só permite ao monge permanecer sem prejuízo no caminho reto através do verdadeiro discernimento, mas o protege ao abrigo de todas as armadilhas do diabo. De fato, é impossível a alguém que regrou sua vida sobre os conselhos e a opinião dos que o antecederam, cair na ilusão dos demônios. Pois mesmo antes de obter o carisma do discernimento, o fato de manifestar e confessar aos Padres os maus pensamentos, faz com que estes se consumam e percam toda a força. Assim como uma serpente que é levada das profundezas de seu antro tenebroso até a luz apressase em fugir e desaparecer, também os pensamentos perversos, postos à luz pelo excelente reconhecimento da confissão, apressam-se em se afastar do homem. A fim de que vocês aprendam mais facilmente esta virtude por meio de um exemplo, eu lhes contarei um fato que o próprio abade Serapião contava àqueles que o vinham ver, para colocá-los em guarda.”
[2,11] Eis o que ele dizia: Quando eu era jovem, eu morava com meu abade. Quando levantávamos da mesa após o repasto, por ação do demônio, eu roubava um pão para comê-lo depois, sem que o abade soubesse. Tendo feito isto por muito tempo, chegou um momento em que eu não mais dominava esta paixão; minha consciência me condenava, mas eu tinha vergonha de contar ao ancião. Por uma disposição da bondade de Deus, aconteceu de alguns irmãos virem ver o ancião para sua edificação e eles o interrogaram sobre seus pensamentos. O ancião lhes respondeu: Nada prejudica mais os monges, nada alegra mais os demônios, do que esconder os pensamentos dos pais espirituais. E ele lhes falou da temperança. Ao ouvir estas palavras, eu caí em mim e pensei que Deus havia revelado minhas faltas ao
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ancião; movido pela compunção, comecei a chorar e tirei da algibeira o pão que havia roubado conforme meu mau hábito. Atirando-me por terra, pedi perdão aos que me rodeavam e solicitei suas orações para não cair novamente no futuro. Então o ancião disse: “Sem que eu tivesse dito uma só palavra, sua confissão o libertou, e você estrangulou este demônio que o feria graças ao seu silêncio ao revelar os segredos de seu coração. Até o presente, você o fizera seu mestre, por não contrapor-se a ele nem denunciá-lo; agora ele não terá mais lugar em você, pois você o expulsou do seu coração em pleno dia.” Mal ele acabara de falar e a potência demoníaca apareceu como uma lâmpada de fogo saindo de meu peito e enchendo o ambiente com um odor infecto, de tal modo que os presentes acharam que o que queimava era uma porção de enxofre.
Então o ancião retomou a palavra: “Agora o Senhor demonstrou com este sinal a verdade das minhas palavras e da sua libertação”. Foi assim que a confissão expulsou de mim o vício da gulodice e esta ação diabólica, a tal ponto que nunca mais eu tive complacência para com este desejo.
Dessas palavras do abade Serapião, aprendemos que não iremos obter o carisma do discernimento senão fiando-nos não nos critérios de nosso próprio pensamento, mas no ensinamento e no exemplo dos Padres. Pois não existe caminho mais fácil para o diabo precipitar o monge no abismo do que persuadindo-o a rejeitar as lições dos Padres e a confiar em seu próprio julgamento e em sua vontade própria. Se considerarmos o exemplo das artes e das ciências humanas, vemos realmente que é impossível adquiri-las por nós mesmos, utilizando-nos apenas de nossas mãos, olhos e ouvidos: temos necessidade de um mestre e de uma regra. Que loucura, então, imaginar que não precisamos de mestre para a prender a arte espiritual, que é a mais difícil de todas! Ela é, com efeito, invisível, escondida e percebida apenas pela pureza do coração, e nesta arte o fracasso não conduz apenas a um prejuízo temporário, mas à perda da alma e à morte eterna.
[2,12] “Parece-me, disse Germano, que habitualmente, uma causa da vergonha e um pretexto a uma piedade nociva vêm do fato de que muitas vezes certos Padres que ouvem os pensamentos dos irmãos não apenas não os curam como ainda os condenam e os levam ao desespero, fato que aconteceu na Síria, como todos sabemos. Um irmão foi revelar seus pensamentos a um ancião de lá com toda a simplicidade e verdade, revelando sem falsa vergonha os segredos de seu coração; o ancião, ao ouvi-lo, começou a se indignar e a levantar-se contra ele, repreendendo-o por ter tido tais maus pensamentos, a tal ponto que o irmão, tendo ouvido tudo, deixou de manifestar seus pensamentos aos anciãos.”
[2,13] O abade Moisés respondeu então: “É bom, como eu disse, não esconder os pensamentos dos Padres, mas não a qualquer um. É preciso revelá-los a anciãos espirituais que tenham discernimento, não àqueles cujos cabelos embranqueceram com o tempo. Com efeito, muitos, iludidos pela idade e revelando seus pensamentos, caíram no desespero por causa da inexperiência dos que os ouviram.”
Havia, com efeito, um irmão muito fervoroso que era violentamente atormentado pelo demônio da prostituição. Ele foi procurar um ancião e lhe revelou seus pensamentos. Este, que era inexperiente,
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indignou-se ouvindo-o e o tratou como um miserável e indigno do hábito monástico por ter tido tais pensamentos. Ao ouvir estas coisas, o irmão caiu em desespero, e, abandonando sua cela, retornou ao mundo. Mas, pela providência divina, o abade Apolo, o mais experiente dos anciãos, o encontrou e, vendo-o perturbado e abatido, perguntou-lhe: “Meu filho, qual é a causa de tamanha tristeza?” Primeiro o irmão nada respondeu, tal era seu desencorajamento. Longamente instado pelo ancião, ele acabou por dizer o que era: “Certos pensamentos me atormentavam freqüentemente e eu fui confessá-los a tal ancião, e pelo que ele me disse, não tenho mais esperança de salvação. Desencorajado, preferi voltar para o mundo.” Ao ouvir isto, a padre Apolo o consolou e animou, dizendo: “Não fique transtornado, meu filho, nem perca a esperança. Pois até eu, com minha idade e meus cabelos grisalhos, continuo muito atormentado por esses pensamentos. Não se inquiete com esta febre, não será tanto o esforço humano que irá curá-la, mas a bondade de Deus. Dê-me apenas um dia e retorne para sua cela.” E assim fez o irmão.
Depois de deixá-lo, o abade Apolo foi até a cela do ancião a quem o irmão havia feito sua confissão e, ficando do lado de fora, pediu com lágrimas a Deus: “Senhor que envia as tentações para o benefício de cada um, faça passar o combate daquele irmão para este velho, para que ele aprenda com a experiência, em sua velhice, aquilo que ele não aprendeu em tantos anos de vida: a ser compassivo com aqueles que têm contra quê lutar.”
Mal ele terminara sua prece e viu um etíope hediondo perto da cela, lançando raios contra o velho. Tendo sido atingido, logo ele começou a caminhar apressadamente em todas as direções como um homem ébrio. Incapaz de permanecer no lugar, ele deixou sua cela e dirigiu-se para o mundo pelo mesmo caminho do irmão. Vendo o que acontecia, o abade Apolo foi ao seu encontro e lhe disse: “Aonde vai você assim? Qual é a causa do transtorno que o tomou?” Dando-se conta de que seu estado era conhecido pelo santo, ele se encheu de vergonha e não dizia nada. Então o abade Apolo lhe disse: “Volte para sua cela e daqui em diante reconheça a sua fraqueza; reconheça que se até o presente você foi ignorado ou desdenhado pelo diabo, é porque você não era digno de lutar contra ele. Mais do que isto: você não conseguiu sustentar sequer um dia seu assalto. Isto aconteceu porque, ao receber um jovem irmão atacado pelo inimigo comum, ao invés de alentá-lo para o combate, você o atirou ao desespero sem levar em conta a consideração do Sábio: “Liberte os condenados à morte e resgate os que são levados ao suplício [96]”. Você tampouco se lembrou das palavras do nosso Salvador, de “não esmagar a cana quebrada, nem apagar o pavio que ainda fumega [97]”. Pois ninguém é capaz de sustentar os ataques nem extinguir os ardores da natureza, se a graça de Deus não o proteger da fraqueza humana. Convencidos portanto da providência salutar que vela por nós, unamos nossas orações a Deus a fim de que ele o libere do castigo que lhe foi enviado. Pois “aquele que aflige é o mesmo que restaura, ele fere mas suas mãos curam [98]”; “ele rebaixa e ele ergue; ele faz morrer e faz viver; ele conduz aos infernos e de lá resgata [99]”. Ao pronunciar estas palavras, ele imediatamente liberou o ancião da combate que deveria sofrer, e o exortou a pedir a Deus uma língua que soubesse dizer a palavra certa no momento oportuno. 278
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De tudo isto, aprendemos que não existe outro caminho de salvação que o de revelar seus pensamentos aos Padres que têm mais discernimento e deles receber a regra da virtude, antes de seguir seu próprio [96] [97] [98] [99]
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Provérbios XXIV, 11. Mateus XII, 20. Isaías l, 4. 1 Samuel II, 6-7.
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julgamento e seu próprio senso. E se acontecer de, por acaso, cairmos nas mãos de um ancião demasiado simples e sem grande experiência, esta não é uma razão para nos abstermos de revelar os pensamentos aos mais experientes dentre os Padres e de desprezar a tradição dos antigos. Pois não foi de sua própria iniciativa, mas foi de Deus e das santas Escrituras que eles transmitiram aos que vieram depois deles a prática de interrogar os antecessores.
[2,14] Podemos aprender isto a partir de muitas outras passagens da Escritura inspirada, em especial da história de Samuel [100]. Consagrado a Deus por sua mãe desde a sua infância e admitido a conversar com Deus, Samuel jamais confiava em seu próprio julgamento, mas, chamado por Deus uma e duas vezes, ele correu ao velho Eli e com as instruções deste pode responder a Deus adequadamente. Aquele a quem Deus considerara digno de ser chamado por ele, Deus também quis que fosse dirigido pelo exemplo e as ordens do ancião, a fim de que fosse conduzido à humildade. 282
[2,15] E Cristo, que havia chamado Paulo e falado com ele, poderia ter-lhe aberto os olhos logo e lhe mostrado o caminho da salvação. Mas ele o enviou a Ananias e lhe ordenou expressamente que aprendesse com ele o caminho da verdade: “Levante-se, entre na cidade e lá lhe será dito o que fazer [101]”. Assim ele nos ensina a nos deixarmos guiar pelos que nos antecederam, para que não sejam mal interpretadas as coisas ditas de Paulo e para que elas não se tornem um exemplo de presunção para seus descendentes, cada qual pretendendo ser conduzido diretamente à verdade por Deus, quase como são Paulo, e não por intermédio dos Padres. Vemos isto claramente, não só pelo que foi dito, mas pelo que o próprio Apóstolo escreve: “voltei a Jerusalém (...) Expus a eles o Evangelho que anuncio aos pagãos, mas o expus reservadamente às pessoas mais notáveis, para não me arriscar a correr ou ter corrido em vão [102]”. E no entanto a graça do Espírito Santo caminhava ao seu lado, pelo poder dos milagres que ele fazia. 283
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Quem será assim tão orgulhoso e tão pretensioso para ousar se fiar em seu próprio senso e julgamento, quando este vaso de eleição atesta ter tido necessidade do conselho daqueles que eram apóstolos antes dele? Fica claramente provado com isso que o Senhor não revela a ninguém o caminho da perfeição se não for por meio dos Padres espirituais que marcham sobre a via. É como foi dito pelo Profeta: “Interrogue seu pai, e ele lhe ensinará; aos anciãos, e eles lhe dirão. [103]” 285
[2,16] Esforcemo-nos, portanto, com todas as nossas forças e todo nosso ardor para adquirirmos para nós o carisma do discernimento, que poderá nos guardar imunes aos dois excessos opostos. De fato, como dizem os Padres, tanto num como noutro sentido, os excessos são prejudiciais: tanto o jejum excessivo como a saciedade do ventre; as vigílias imoderadas e o exagero no sono, e assim todos os demais excessos. Nós conhecemos alguns que não foram vencidos pela gula, mas que tombaram em decorrência de jejuns exagerados, tendo então sido arrastados à mesma gula devido à fraqueza causada pelo jejum excessivo. [100] Cf. 1 Samuel, 3. [101] Atos IX, 6. [102] Gálatas II, 2. [103] Deuteronômio XXXII, 7.
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[2,17] Eu recordo também, de minha parte, de ter praticado tamanha abstinência que sequer me lembrava mais do desejo de comer, e depois de ter passado dois ou três dias sem comer, nem ao menos pensar em comida, a menos que algum outro monge me trouxesse. Aconteceu-me ainda que, por instigação do diabo, o sono se foi dos meus olhos, a ponto de que por noites a fio tive que suplicar ao Senhor que me concedesse um pouco de sono. Assim foi que eu me expus a um perigo muito maior pela privação excessiva de alimento e sono do que pela gula e o excesso de sono.
Com estes ensinamentos e muitos outros, o abade Moisés nos encheu de alegria, de modo que pudemos glorificar ao Senhor que deu tamanha sabedoria àqueles que temem. A ele a honra e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.
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MARCOS, O ASCETA Nosso bem-aventurado Padre Marcos o Asceta viveu por volta do ano 430. Segundo Nicéforo Calisto, ele foi discípulo de João Crisóstomo, e contemporâneo de são Nilo e de Isidoro de Pelúsia, renomados ascetas. Dedicado à ascese e à meditação da santa Escritura, ele escreveu numerosos tratados, instrutivos e de grande ajuda. Nicéforo Calisto menciona trinta e dois tratados, que ensinam todos os caminhos da vida ascética. Porém, só oito foram conservados, citados por Calisto e Photius.
O primeiro é o tratado sobre a lei espiritual. O terceiro é o tratado sobre aqueles que pensam ser justificados pelas obras, e o oitavo é a carta ao monge Nicolas. Eles foram inseridos aqui, na medida em que são mais úteis do que os outros e na medida em que estão ligados à lei espiritual. Pedro Damasceno, Gregório de Tessalônica, Gregório o Sinaíta, Calisto o Patriarca, Paulo Evergetinos e muitos outros Padres mencionam estes textos. Eles os leram e nos convidam a lê-los.
A santa Igreja de Cristo honra e celebra a memória de Marcos o Asceta em 5 de março, lembrando seus combates ascéticos, a sabedoria dos seus escritos e a graça dos milagres que ele recebeu do alto.
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Nada sabemos de Marcos o Asceta senão a partir das indicações contidas em sua obra. Seu próprio nome varia: Marcos o Monge nos manuscritos mais antigos, depois Marcos o Eremita no Ocidente, enfim Marcos o Asceta na antologia filocálica, nome que de certo modo corresponde ao próprio sentido de sua obra. Marcos viveu nos séculos V e VI. Mas onde? Talvez para os lados da Ásia Menor. E como? Foi ele eremita, foi higoumeno? Sem dúvida um e outro, sucessivamente; em todo caso, seus textos mostram que ele possuía experiência nos dois estados. Mas o essencial permanece sendo seu lugar na transmissão do testemunho hesiquiasta, que é verdadeiramente fundamental. Como Diádoco de Foticéia, de quem se aproxima por seu papel de mediador entre as fontes egípcias e a expansão do monaquismo na Ásia e na Europa. Marcos o Asceta defende e ilustra a via estreita do radicalismo evangélico. A Filocalia grega adotou três de suas obras,, justamente aquelas que significam a condição e a
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manutenção da ascese radical: os 200 capítulos “sobre a lei espiritual”, os 226 capítulos “sobre os que pensam ser justificados pelas obras” e a carta a Nicolas.
A lei espiritual é para Marcos uma lei de liberdade. Ela implica o conhecimento das Escrituras e a prática das virtudes, mas não poderia ser alcançada apenas pelas obras espirituais. Mesmo boas, as obras não podem conduzir a mais do que à humildade. E a humildade reclama a compaixão de Cristo. A salvação depende em última instância da graça. Assim, o monge torna-se livre, mas com uma condição, a da ascese: recusar as três paixões cardinais (o amor pelo dinheiro, pela vanglória e pelos prazeres), jamais considerar outra coisa que o Reino dos céus e o século do porvir, mantendo-se continuamente no mais baixo degrau, e jamais ligar a mínima para a importância das obras. Pois se a condição da ascese não é preenchida, sua importância é nula, ou ilusória. Aqui só importa a condição da ascese. Antes de abrir para a salvação, a lei espiritual leva ao arrependimento e permite o livre acesso ao seu umbral: a lembrança de Deus e a prece pura. Marcos não vai além.
Os 226 capítulos “sobre aqueles que pensam ser justificados pelas obras” detêm-se no mesmo umbral. A ascese é necessária. Mas sozinha ela não seria suficiente para cumprir a lei. O servidor é sempre inútil. O Reino dos céus é uma graça, diz Marcos, ele não é salário para obras. Inicialmente não recebemos de Deus mais do que a liberdade e a responsabilidade. Nem o testemunho das obras, nem mesmo a experiência da graça, colocam alguém acima dos outros – bem ao contrário. O respeito pelo outro, portanto o amor ao próximo, seja este ignorante, descrente, injusto, é a face humana do amor de Deus. A ascese não pode ser mais do que o exercício contínuo, e gratuito, da humildade e do amor. Somente uma amorosa humildade permite o estado de oração. E somente este permite o estado de graça, que Marcos define como: “Ter no coração a obra do Espírito Santo”. E ele sublinha: “Aquele que quer fazer o bem e espera disto uma recompensa, não serve a Deus mas à sua própria vontade”. Marcos prega a confiança nua.
A carta a Nicolas ilustra justamente a maneira, delicada e rigorosa, como se transmite a confiança na via monástica: de coração a coração. A mais profunda solidão (Marcos afirma mesmo estar no deserto ao escrever a carta) se alia à mais alta fraternidade. O princípio da vocação monástica, e daí o de toda a vida cristã, é a gratidão. Tudo recebemos de Deus por pura graça, e tudo lhe devolvemos em ações de graças, para daí para frente vivermos gratuitamente, guardando-nos da ignorância, do esquecimento e da negligência, e então descer com Cristo – “observar sua humildade”, diz Marcos. E ele acrescenta: “Quem não se colocar abaixo de todos não pode se tornar um verdadeiro cristão”. Marcos não impõe nada: ele recomenda , ele aconselha. Ele diz a Nicolas: “Deixamos à sua escolha fazer o que quiser”. Nenhum poder existe, exceto o do amor: a regra de ouro da transmissão hesiquiasta.
Marcos é aqui um testemunho da via estreita. Ele combate em duas frentes: à esquerda, todas as faltas que desagregam e desarticulam a união entre a alma e o corpo; e à direita, a ostentação. Sobretudo, como Diádoco, ele previne contra os transbordamentos de um testemunho que, se buscasse e pregasse o fim antes do começo, a chave de abóboda antes das fundações, ou, como ele próprio diz, “as energias do Espírito Santo antes da observação dos mandamentos”, arriscaria se perder. A glória de Deus – a luz incriada – não pode ser, antes de tudo, senão a esperança e o remédio do coração partido. A meditação de Marcos o Asceta é realmente fundamental.
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DUZENTOS CAPÍTULOS SOBRE A LEI ESPIRITUAL
1. Como você desejou tantas vezes saber em quê a lei é espiritual, como diz o Apóstolo, e quais são o conhecimento e a prática daqueles que a querem observar, então eu vou lhe dizer, na medida em que estiver ao meu alcance.
2. Em primeiro lugar, sabemos que Deus é o começo, o meio e o fim de todo bem. Quanto ao bem em si, é impossível fazê-lo ou recebê-lo, se não for por meio de Jesus Cristo e do Espírito Santo.
3. Todo bem nos é dado pelo Senhor como por um bom intendente, e Aquele que no-lo confia assim não o deixará perecer.
4. A firmeza da fé é uma torre sólida. Para quem crê, Cristo é tudo.
5. Seja a fonte dos seus desejos Aquele que é a fonte de todo o bem, para que seus projetos se realizem conforme a Deus.
6. Aquele que é humilde e que cumpre a obra espiritual dedica-se inteiramente a si mesmo, quando lê as divinas Escrituras.
7. Peça a Deus para abrir os olhos do seu coração, para que você possa ver, por sua própria experiência, a utilidade da prece e da leitura.
8. Aquele que desfruta de um carisma espiritual e se compadece dos que não o têm, resguarda o dom pela compaixão. Mas quem se vangloriar o perderá, assaltado por pensamentos que lhe vêm da ostentação.
9. A boca do humilde profere a verdade. Mas aquele que contradiz a verdade é semelhante ao guarda que esbofeteou a face do Senhor [1]. 286
[1] Cf. João XVIII, 22.
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10. Não se torne discípulo daquele que faz seu próprio elogio, para não aprender o orgulho em lugar da humildade.
11. Não se orgulhe do seu conhecimento das Escrituras, a fim de não cair sob o espírito da blasfêmia.
12. Não tente enfrentar um assunto tortuoso pela contestação, mas pelos meios indicados pela lei espiritual: a paciência, a prece, uma esperança simples.
13. O cego gritou: “Filho de Davi, tem piedade de mim [2]”. Sua oração foi corporal. Ele ainda não tinha o conhecimento espiritual. 287
14. Aquele que um segundo antes era ainda cego ergueu os olhos e, vendo o Senhor, não mais o proclamou filho de Davi, mas Filho de Deus, e prosternou-se para adorá-lo [3]. 288
15. Não se orgulhe das lágrimas que verter durante suas orações. Pois foi Cristo quem tocou seus olhos, e daí para frente você verá com o seu intelecto.
16. Quem, a exemplo do cego, se desfaz de seu manto e se aproxima do Senhor, passa a segui-lo e se torna mensageiro dos mais perfeitos ensinamentos.
17. A malícia entretida pelos pensamentos endurece o coração. Mas afastada pela esperança e pela temperança, ela o rompe.
18. Existe uma aflição do coração, doce e benfazeja, que leva à compunção. E existe outra, violenta e perigosa, que tende a destruí-lo.
19. As vigílias, a oração, a paciência diante dos eventos partem o coração sem feri-lo e lhe fazem muito bem, com a única condição de que sua ajuda não seja recusada pelo espírito da concupiscência. Quem nelas perseverar será ajudado em todo o demais; mas quem as negligenciar e se dispersar experimentará, ao partir deste mundo, um sofrimento intolerável. [2] Lucas XVIII, 38. [3] Cf. João IX, 38.
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20. Um coração que ama o prazer é uma prisão e uma cadeia para a alma na hora da morte. Mas o coração que ama o sofrimento é uma porta aberta. 21. Um coração duro é uma porta de ferro que interdita a cidade. Mas diante daquele que foi provado e dedicado, a porta se abrirá sozinha, como diante de Pedro [4]. 289
22. São numerosos, e muito diferentes uns dos outros os modos da oração. Mas nenhum deles é nocivo, pois do contrário não seria uma oração, mas uma obra de Satanás.
23. Um homem, que tinha intenção de fazer algo errado, começou a orar em seu coração, como de hábito. Providencialmente sobreveio-lhe um obstáculo, e no final ele teve que dar graças.
24. Davi havia resolvido matar Nabal do Carmelo; mas, lembrando-se de que a retribuição é obra de Deus, ele renunciou ao seu desígnio e rendeu graças [5]. Ao contrário, sabemos também o que ele fez quando esqueceu a Deus: ele perseverou, até que Natã o profeta o reconduzisse à lembrança de Deus [6]. 290
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25. No momento em que você se lembrar de Deus ore imediatamente, para que o Senhor se manifeste à sua lembrança quando você o esquecer.
26. Quando você ler as santas Escrituras, considera o que está oculto nelas. Pois se diz que aquilo que foi escrito antes de nós, o foi para nossa instrução [7]. 292
27. A Escritura diz que a fé é o fundamento daquilo que se espera [8], e ela chama de reprovados aqueles que não reconhecem que o Cristo reside em nós [9]. 293
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28. Assim como o pensamento se manifesta pelas obras e as palavras, também e retribuição futura se manifesta pelas boas ações do coração.
[4] Cf. Atos XII, 10. [5] Cf. 1 Samuel, XXV. [6] Cf. 2 Samuel, XII, [7] Cf. Romanos XV, 4. [8] Cf. Hebreus XI, 1. [9] Cf. 2 Coríntios XIII, 5.
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29. É evidente que será feita misericórdia ao coração misericordioso; mas o contrário pedirá uma resposta contrária.
30. A lei da liberdade nos ensina toda a verdade. A maior parte a descobre como um conhecimento. Poucos a compreendem a partir de sua prática dos mandamentos. 31. Não procure a perfeição da lei da liberdade nas virtudes humanas; ninguém é tão perfeito. A perfeição destas virtudes se esconde na cruz de Cristo.
32. A lei da liberdade é descoberta a partir do conhecimento verdadeiro. Mas ela só é compreendida pela prática dos mandamentos, e ela se cumpre pelas compaixões de Cristo.
33. Quando nossa consciência nos obrigar a nos orientar segundo todos os mandamentos de Deus, então compreenderemos que a lei do Senhor é irreprochável [10]: ela atua naquilo que fazemos de bem, mas ela não poderia cumprir-se entre os homens sem as compaixões de Deus. 295
34. Aqueles que pensam não ter obrigação para com todos os mandamentos de Cristo, fazem uma leitura carnal da lei de Deus. Eles não compreendem nem o que dizem, nem o que afirmam [11]. É por isso que eles imaginam cumprir a lei pelas obras. 296
35. Uma ação qualquer é feita com toda a aparência de bem, mas a intenção com que é feita não é dirigida para o bem. Outra parece ser má, mas a intenção daquele que a pratica é dirigida para o bem. E isto não concerne apenas as ações que as pessoas realizam, mas também as palavras que elas pronunciam. Uns, com efeito, distorcem o sentido de sua ação por inexperiência ou ignorância; outros têm o desejo de fazer o mal. Enfim, existem outros que são movidos pela piedade.
36. Os simples têm dificuldade em ver tal como é aquele que, por trás dos louvores esconde a calúnia e a vergonha, assim como aquele que esconde a vanglória debaixo de uma aparência humilde. Mas os que passam a maior parte do tempo transformando a verdade em mentira com seus sofismas, cedo ou tarde serão denunciados e refutados por suas ações.
37. Alguém que faz uma ação aparentemente boa ofende seu próximo. Outro, abstendo-se de fazer tal ação, recebe em seu c oração um bem ainda maior.
[10] CF. Salmos XIX, 8. [11] Cf. 1 Timóteo I, 7.
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38. Existem reprimendas inspiradas pela falsidade e a vingança. E existem outras inspiradas no temor a Deus e na verdade.
39. Deixe de censurar aquele que renunciou ao pecado e agora se arrepende. E se você diz que o repreende conforme a Deus, comece por confessar suas próprias faltas.
40. Deus está na origem de todas as virtudes, como o sol está na origem da luz do dia.
41. Se você pretende trabalhar a virtude, lembre-se Daquele que disse: “Sem mim vocês nada podem” [12]. 297
42. Os bens vêm aos homens pelas aflições [13]; da mesma forma, o mal lhes chega pela vanglória e o prazer. 298
43. Quem é vítima da injustiça dos homens escapa ao pecado; e ele encontrará um socorro igual à sua aflição.
44. Aquele que se remete a Cristo para a retribuição suporta corajosamente todas as injustiças, na medida de sua fé.
45. Que ora pelos homens que lhe fizeram mal expulsa os demônios; mas quem se opõe aos primeiros será morto pelos segundos.
46. Melhor a ofensa dos homens do que a dos demônios. Mas quem agrada ao Senhor domina uns e outros.
47. Todo bem vem do Senhor segundo sua providência; misteriosamente ela evita os ingratos, os inconscientes e os preguiçosos.
48. Todo vício leva a um prazer proibido, mas toda virtude conduz ao consolo espiritual. Se você for levado pelo primeiro, ele estimulará sempre aquilo que lhe é próprio; se for levado pela última, ela também desenvolverá em você o que lhe é natural. [12] João XV, 5. [13] Cf. Atos XIV, 22.
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49. Os ultrajes dos homens suscitam a aflição no coração, mas purificam quem os suporta.
50. A ignorância leva a opor-se ao que é útil; e, em sua insolência, ela agrava a dimensão do mal.
51. Se você não experimenta nenhum dano, aguarde as aflições. E, como você deverá prestar contas [14], evite a cupidez. 299
52. Se você pecou em segredo, não tente esconder. Pois tudo está a nu aos olhos do Senhor [15], a quem deveremos prestar contas. 300
53. Mostre-se aos Mestre revelando a ele seus pensamentos. Pois os homens vêem o rosto, mas Deus vê o coração [16]. 301
54. Não faça nem pense nada sem ter a Deus como objetivo. Pois quem viaja sem objetivo perde seu esforço.
55. Aquele que peca sem necessidade terá o mal para se arrepender, pois nada escapa à justiça de Deus.
56. Na mesma medida em que um evento penoso suscita no homem sensato a lembrança de Deus, ele oprime aquele que se esquece de Deus.
57. Que todo sofrimento involuntário o ensine a se lembrar, e você terá sempre uma razão para se arrepender.
58. O esquecimento não tem em si mesmo nenhum poder, mas ele tira sua força de nossa negligência.
59. Não diga: “Que fazer? Aquilo que eu não queria me acontece.” Mas lembre-se de que você faltou com seu dever.
[14] Cf. Hebreus XIII, 17. [15] Cf. Hebreus IV, 13. [16] Cf. 1 Samuel XVI, 7.
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60. Lembre-se de fazer o bem que você lembra, e você descobrirá o bem que você esqueceu. Não abandone seu pensamento à confusão e ao esquecimento.
61. A Escritura diz: “O inferno e a perdição estão a descoberto diante do Senhor” [17]; ela se refere à ignorância e ao esquecimento do coração. 302
62. De fato, o inferno é a ignorância, pois ambos são invisíveis. E a perdição é o esquecimento, pois ambos escapam ao que existe.
63. Ocupe-se com suas faltas, não com as do próximo. Assim você não se afastará do lugar em que trabalha a sua inteligência.
64. A negligência jamais poderia se prestar ao bem que podemos fazer; mas a esmola e a oração reanimam os negligentes.
65. Toda aflição suportada conforme a Deus é fundamentalmente uma obra de piedade. Pois o amor se prova nas adversidades.
66. Não diga que a virtude pode ser adquirida sem aflição, pois ela não se prova nas facilidades.
67. Examine a saída para toda aflição involuntária, e você verá a desaparição do pecado.
68. Os conselhos do próximo são freqüentemente úteis. Mas nada convém tanto ao homem quanto seu próprio discernimento.
69. Se você pretende se curar, esteja atento à sua consciência. Faça tudo o que ela lhe disser, e aí você encontrará o seu bem.
[17] Provérbios XV, 11.
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70. Deus conhece os segredos de cada um, e a consciência também. Que cada qual se corrija graças a ambos.
71. O homem faz o que quer, na medida de sua vontade. Mas é Deus quem fornece as saídas, segundo o que é justo.
72. Se você quiser ser louvado pelos homens com toda justiça, queira primeiro ser condenado por suas faltas.
73. Os ultrajes que suportamos pela verdade de Cristo será retribuída ao cêntuplo quando formos glorificados pelas multidões. Mas é melhor praticarmos as boas obras tendo em vista o século futuro. 74. Se um homem vem em socorro de outro com palavras ou atos, ambos devem reconhecer que é graças a Deus que está atuando ali. Quem não compreender isto será ultrapassado por quem entender.
75. Quem louva o próximo com hipocrisia há de ultrajá-lo no momento seguinte, e então ele se cobrirá de vergonha.
76. Quem ignora as armadilhas do inimigo é imolado sem dificuldade. Quem não conhece as causas das paixões tomba nelas com facilidade.
77. Do amor ao prazer nasce a negligência, e da negligência o esquecimento. Pois Deus deu a todos o conhecimento daquilo que nos é bom.
78. O homem aconselha seu próximo na medida dos seus conhecimentos. Mas Deus trabalha com aquele que o escuta, na medida de sua fé.
79. Já vi ignorantes que se fizeram verdadeiramente humildes, e assim tornaram-se mais sábios do que os sábios
80. Outro ignorante, ouvindo elogiá-los, não imitou sua humildade; ao contrário, gloriando-se de sua ignorância, cobriu-se de orgulho.
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81. Quem despreza o intelecto e se vangloria de nada saber, não apenas é ignorante em suas palavras, como também em seu julgamento [18]. 303
82. Assim como uma coisa é a eloqüência e outra coisa a inteligência, também uma coisa é a simplicidade do discurso e outra coisa a estupidez.
83. A ignorância das palavras não será prejudicial ao que é verdadeiramente piedoso, e a eloqüência não será prejudicial ao que é humilde.
84. Não diga: “Como não sei o que devo fazer, não posso ser culpado por não fazê-lo”. Pois se você fizer tudo o que você já sabe que é certo, o resto lhe será revelado na seqüência. Você compreenderá as coisas uma a uma, como quem passa de uma sala a outra. Antes de por mãos à obra não se preocupe com o que virá. Porque a ciência infla quando nada faz, mas o amor edifica, porque ele suporta tudo [19]. 304
85. Entenda seus atos diretamente a partir das palavras da sagrada Escritura, e não espalhe discursos vãos, inflado apenas pelos seus próprios pensamentos.
86. Aquele que abandona a prática e pretende apoiar-se apenas sobre o conhecimento toma um ramo de junco por uma espada de duplo corte. No momento do combate, o junco cortará e penetrará na sua mão, diz a Escritura, injetando aí seu veneno natural, ao invés de ser lançado contra os inimigos [20]. 305
87. É na presença de Deus que todo pensamento tem sua medida e seu peso. O pensamento, seja passional ou simples, é sempre o mesmo.
88. Quem cumpre um mandamento deve esperar pela prova que está ligada a ele. Com efeito, o amor a Cristo se prova na adversidade.
89. Jamais tenha a presunção de negligenciar os pensamentos, pois nenhum pensamento escapa a Deus.
[18] Cf. 2 Coríntios XI, 6. [19] Cf. 2 Coríntios VIII, 1 e XIII, 7. [20] Cf. 1 Timóteo VI, 10.
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90. Quando você vê um pensamento inspirar a glória humana, saiba claramente que ele lhe prepara a perturbação.
91. O inimigo conhece muito bem a justiça da lei espiritual, e ele só busca o consentimento do intelecto. Desta forma, ou ele submeterá às duras penas do arrependimento aquele que está em seu poder, ou atormentará com seus ataques, para obrigá-lo, aquele que não se arrepende. Às vezes ele o dispõe a resistir aos ataques, para aumentar seu sofrimento e provocar, na hora da morte, pela perda da paciência, a falta de fé.
92. Diante dos acontecimentos, muitos resistem com todas as suas forças. Mas fora da oração e do arrependimento, ninguém escapa ao perigo.
93. Os males reforçam-se mutuamente. Da mesma forma, os bens estimulam o crescimento uns dos outros, e levam cada vez mais adiante aquele que os partilha. 94. O diabo leva a negligenciar a pequenas faltas. De outro modo, ser-lhe-ia impossível conduzir a um mal maior.
95. A raiz dos maus desejos está nos louvores dos homens. Da mesma forma, a raiz da castidade é a vergonha da malícia, não apenas quando ouvimos, mas também quando a consentimos.
96. De nada serve renunciar a tudo e atirar-se ao prazer. Equivale a continuar fazendo, agora que nada se tem, o mesmo que se fazia de posse de riquezas.
97. Inversamente, o asceta, quando adquire suas riquezas, é irmão daquele, mas em espírito. Eles têm a mesma mãe, que é o prazer experimentado pelo intelecto. Mas o pai é diferente, por causa da transformação da paixão.
98. Alguém que desenraíza uma paixão apenas para se entregar a um prazer ainda maior é glorificado por aqueles que ignoram seu objetivo. E sem dúvida também ele ignora que aquilo que ele faz não lhe serve de nada.
99. A fonte de toda malícia é a vanglória e o prazer. Quem não os detestar não alcançara o fim das paixões.
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100. Foi dito que a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro [21]. Mas também é claro que este existe para aqueles. 306
101. O intelecto é cegado por estas três paixões, a saber, o amor ao dinheiro, o amor à vanglória e o prazer.
102. Estas paixões são as três filhas da sanguessuga de que fala a Escritura, que são ternamente amadas por sua mãe, a loucura [22]. 307
103. O conhecimento e a fé, que acompanham a nossa natureza, não são embotados por outra coisa que não estas três paixões.
104. É por meio destas três paixões que o furor e a cólera, as guerras, os assassinatos e outros males dominaram tudo entre os homens. 105. Assim, devemos odiar o amor ao dinheiro, o amor à vanglória e o prazer, como mães dos vícios e madrastas das virtudes.
106. É por causa delas que recebemos a ordem de não amar o mundo nem o que existe no mundo [23], não para odiar sem discernimento as criaturas de Deus, mas para cortar rente as causas dessas três paixões. 308
107. Foi dito que ninguém parte para o combate sem antes se desembaraçar dos seus negócios do dia-adia [24]. Quem, debaixo de tamanho embaraço, pretende vencer as paixões assemelha-se a alguém que pretende extinguir um incêndio com uma palha. 309
108. Aquele que por uma questão de dinheiro, de glória ou de prazer se levanta contra seu próximo, está longe de entender que Deus dirige as coisas com justiça.
109. Quando você ouve o Senhor dizer: “Se alguém não renunciar a tudo o que possui, este não é digno de mim” [25], compreenda que ele não fala apenas do dinheiro, mas de tudo o que conduz ao mal. 310
[21] Cf. 1 TimóteoVI, 10. [22] Cf. Provérbios XXX, 15-16. [23] Cf. 1 João II, 15. [24] Cf. 2 Timóteo II, 4. [25] Lucas XIV, 33.
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110. Quem não conhece a verdade tampouco será capaz de crer verdadeiramente, porque o conhecimento precede naturalmente a fé.
111. Assim como Deus assinalou a cada coisa visível aquilo que lhe é próprio, também ele assinalou o que é próprio aos pensamentos humanos, quer queiramos quer não.
112. Se um homem, que vive abertamente no pecado e que não se converte, sem nada sofrer até a hora da morte, esteja certo de que o Juízo será impiedoso para com ele.
113. Quem ora com toda consciência suporta o que vier. Mas quem guarda a lembrança do mal ignora a prece pura.
114. Quando você for lesado, contrariado, expulso por alguém, não considere o presente, mas volte-se para o futuro, e você descobrirá que este homem foi para você a fonte de inúmeros bens, não apenas no século presente, mas no futuro. 115. Assim como o amargo absinto faz bem aos que não têm apetite, também é bom para os que se conduzem mal que conheçam um pouco de sofrimento. Estes remédios ajudam alguns a se comportar e outros a se arrepender.
116. Se você não quer sofrer o mal, renuncie a fazê-lo, pois uma coisa nunca vem sem a outra. Cada qual recolherá o que semeou [26]. 311
117. Nós que semeamos nosso próprio mal e que colhemos o que não queremos, deveríamos nos admirar da justiça de Deus.
118. Assim como existe um tempo entre a semeadura e a colheita, também aguardamos entre incertezas a retribuição.
119. Quando você pecar, não incrimine o ato, mas o pensamento. Pois se o intelecto não fosse na frente, o corpo não o teria seguido ali.
[26] Cf. Gálatas VI, 7.
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120. Quem se esconde para fazer o mal é ainda pior do que aquele que pratica a injustiça abertamente. Por isso ele será castigado mais duramente.
121. Aquele que trama intrigas e se esconde para fazer o mal é, segundo a Escritura, uma serpente que se coloca à beira do caminho para morder o calcanhar dos cavalos [27]. 312
122. Quem ao mesmo tempo louva seu próximo na frente de uns e o critica na frente de outros, está sob o domínio da vanglória e da inveja. Com os elogios, ele tenta disfarçar a inveja; e pelas críticas, ele tenta ser mais considerado do que o outro.
123. Assim como é impossível apascentar juntos cordeiros e lobos [28], também aquele que engana seu próximo não pode conhecer a compaixão. 313
124. Aquele que secretamente mistura suas próprias vontades à ordem recebida se torna adúltero, como o mostra a Sabedoria [29], e por irracionalidade se expõe ao sofrimento e à desonra. 314
125. Assim como unir água e fogo é uma contradição, também são contraditórias a justificação de si e a humildade.
126. Quem procura o perdão dos seus pecados ama a humildade. Mas quem condena o outro reafirma suas próprias faltas.
127. Não deixe sem apagar nem as menores faltas, para que elas em seguida não o arrastem a males maiores.
128. Se você quiser ser salvo, ame a palavra verdadeira, e jamais rejeite uma pequena reprimenda.
129. Foi a palavra verdadeira que converteu a raça de víboras, e lhe mostrou a ira que a esperava [30]. 315
[27] Cf. Gênesis XLIX, 17. [28] Cf. Eclesiástico XIII, 17. [29] Cf, Provérbios VI, 32. [30] Cf. Mateus III, 7.
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130. Quem recebe as palavras de verdade recebe Deus o Verbo, pois foi dito: “Quem recebe a vocês, recebe a mim; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou” [31]. 316
131. O paralítico que foi descido do teto [32] representa o pecador que os fiéis recuperam em nome de Deus, e que, graças à sua fé, recebe o perdão. 317
132. Valer mais rezar com piedade pelo próximo do que condenar a cada um por suas faltas.
133. Quem se arrepende de verdade é motivo de riso para os insensatos; para ele, isto é a prova de que seu arrependimento agrada a Deus.
134. Aquele que mantém o combate tem autodomínio em tudo, e ele não cessará enquanto o Senhor não tiver exterminado toda a raça da Babilônia [33]. 318
135. Lembre-se de que existem doze paixões da infâmia. Se você adquirir voluntariamente uma delas, esta tomará facilmente o lugar das outras onze. 136. O pecado é uma fogueira acesa: se você o privar de madeira, ele se extinguirá; se você alimentá-lo, ele queimará.
137. Se você se deixar levar por elogios, receba também a desonra. Pois foi dito: “Quem se eleva será rebaixado” [34]. 319
138. Quando rejeitamos do intelecto toda malícia voluntária, então deveremos combater, além das paixões, também nossas tendências.
139. A tendência é uma reminiscência involuntária das faltas passadas. Quem a combate impede-a de se tornar uma paixão. Quem a domina rejeita mesmo a simples sugestão.
[31] Mateus X, 40. [32] Cf. Lucas V, 19. [33] Cf. Isaías XIV, 22 e XXVII, 16. [34] Lucas XIV, 11.
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140. A sugestão é um movimento do coração independente de qualquer imagem. Aqueles que possuem esta experiência evitam-na antecipadamente, como a encosta de uma montanha.
141. Quando as imagens se seguem a um pensamento, isto é um consentimento. Pois um movimento independente de qualquer imagem é uma sugestão que não é imputável; existem os que escapam dela como uma brasa retirada do fogo [35], mas há os que não se desviam até serem inteiramente queimados. 320
142. Não diga: “Eu não queria, mas as coisas aconteceram”, pois mesmo que você não quisesse que elas acontecessem você apreciou suas causas.
143. Quem busca elogios ama a paixão; quem deplora a aflição que o assalta ama o prazer.
144. O pensamento daquele que se entrega ao prazer oscila como no prato de uma balança. Tanto ele chora e se lamenta por causa dos seus pecados, como ele agride e se opõe ao próximo para defender seus próprios prazeres.
145. Quem experimentou tudo e só reteve o que é bom [36] evita desta maneira todo o mal. 321
146. O homem paciente é cumulado de inteligência, assim como o que dá ouvidos às palavras sábias. 147. Sem a lembrança de Deus, não existe conhecimento verdadeiro. Pois, sem a primeira, o segundo é bastardo.
148. O coração empedernido pode tirar proveito de um discurso ligado ao conhecimento. Pois, sendo-lhe estranho o temor, ele não aceita as penas do arrependimento.
149. O homem humilde pede um discurso de confiança. Pois ele não coloca à prova a paciência de Deus, nem se expõe a freqüentes transgressões.
150. Não censure a vanglória ao homem poderoso, mas mostre-lhe a desonra que o espera no século futuro; se ele for prudente, ele se deixará repreender. [35] Cf. Zacarias III, 2. [36] Cf. 1 Tessalonicenses V, 21.
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151. Quem detesta ser admoestado persegue deliberadamente a paixão. Mas aquele que aceita a admoestação mostra que foi levado pela tendência.
152. Não dê ouvidos quando lhe contarem as más ações de outros. Se você o fizer, estas más ações deixarão traços em você.
153. SE você for compelido a ouvir mentiras, atenha-se apenas a você mesmo, e não àquele que lhe falou. Quando o que se ouve é mau, quem o registra torna-se mau ele também.
154. Se você encontrar com homens que falam muito sem dizer nada, considere que você é responsável por suas palavras. Mesmo que você não seja responsável no caso, você se torna devedor de uma dívida antiga.
155. Se você vê alguém que o elogia com hipocrisia, espere, porque a qualquer momento você será caluniado por ele.
156. Tenha sempre diante dos olhos as aflições presentes e os bens futuros. Assim, jamais a negligência o fará relaxar o combate.
157. Se você elogia alguém que lhe fez um serviço material, e o chama de bom sem referência a Deus, o mesmo homem lhe parecerá mau depois.
158. Todo bem procede providencialmente do Senhor. E os que trazem os bens são seus servidores.
159. Acolha de uma alma semelhante a mistura de bens e males, e Deus corrigirá o equilíbrio das coisas.
160. A instabilidade dos pensamentos transforma aquilo que nos pertence. Pois Deus atribui naturalmente aquilo que não depende de nós ao que provém da nossa vontade.
161. A realidade sensível é filha da atividade intelectual. Ela traz o que nos é necessário, da maneira como decidiu Deus.
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162. Os pensamentos e as palavras de um coração atirado aos prazeres se propagam, como a peste. Pela fumaça que se desprende se conhece a madeira.
163. Permaneça na sua reflexão, e você não perderá seu esforço nas tentações; mas se você a deixar, suporte o que viera acontecer.
164. Reze para a tentação não venha sobre você [37]. Mas se ela vier, receba-a como sua, não como estranha a você. 322
165. Retire de seu pensamento toda concupiscência, e então você poderá ver os artifícios do diabo.
166. Quem diz conhecer todos os artifícios do diabo se imagina perfeito sem sabê-lo.
167. Quanto mais o intelecto se afasta das necessidades do corpo, tanto mais ele distingue as mentiras dos inimigos.
168. Quem se deixa levar pelos pensamentos é cegado por eles; ele vê as obras do pecado, mas não consegue ver suas causas.
169. Existem alguns que aparentemente observam um mandamento, ao mesmo tempo em que estão sujeitos à paixão, e que desperdiçam uma boa ação com maus pensamentos.
170. Quando você se aproximar dos umbrais do pecado, não diga: “Ele não me vencerá”. Pois quanto mais você se aproxima, mais será vencido por ele.
171. Tudo o que existe começa pequeno e, alimentando-se paulatinamente, se torna grande.
[37] Cf. Mateus VI, 13.
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172. As mentiras da malícia são como uma rede com milhares de malhas: quem se deixa prender um pouco, se não prestar atenção, será inteiramente enredado.
173. Não tente ouvir o relato das infelicidades dos homens que são seus inimigos. Quem escuta essas palavras recolhe os frutos de sua própria disposição.
174. Não pense que todas as aflições chegam aos homens pelo pecado, pois existem alguns que agradam a Deus e que são testados. Pois está escrito: “Os ímpios e os iníquos será expulsos [38]”; mas também está escrito: “Os que querem viver piedosamente em Cristo serão perseguidos [39]”. 323
324
175. Quando você estiver afligido, cuidado com a sugestão do prazer, pois temos a inclinação a aceitá-la facilmente, uma vez que ela nos consola da aflição.
176. Alguns dizem que são sábios os que sabem discernir as coisas sensíveis. Porém, mais sábios são os que dominam suas próprias vontades.
177. Não escute seu coração até ter retirado dele o mal. Pois ele defende os interesses de tudo aquilo que lhe confiamos.
178. Assim como existem serpentes que encontramos na floresta e outras que se escondem nas casas, também existem paixões que se formam na razão e outras que se põem em movimento na ação, mesmo se elas passam de uma forma a outra. 179. Quando você perceber impulsos ocultos agindo no seu interior, atraindo para as paixões o intelecto em estado de hesíquia, saiba que foi o próprio intelecto que as suscitou algum dia, as pôs em movimento e as guardou no coração.
180. Uma nuvem não se forma sem o sopro do vento, e a paixão não pode nascer sem o pensamento.
181. Se não fizermos mais as vontades da carne, como diz a Escritura [40], os impulsos escondidos no fundo de nós cessarão facilmente no Senhor. 325
[38] Salmos XXXVII, 28. [39] 1 Timóteo III, 12. [40] Efésios II, 3.
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182. As imagens nascidas fundamentalmente do intelecto são mais nocivas e mais resistentes; mas as imagens saídas da razão as suscitam e precedem.
183. Existe uma malícia que penetra no coração, quando a tendência existe em nós há muito tempo. E existe uma malícia que nos combate no nível da razão, nas coisas cotidianas.
184. Deus julga os atos conforme as intenções. Com efeito, foi dito: “Que o Senhor lhe dê conforme seu coração [41]”. 326
185. Quem não persevera em examinar sua consciência tampouco acolherá as penas do corpo com piedade.
186. A consciência é o livro da natureza; quem a lê assiduamente recebe a experiência do socorro divino.
187. Quem não escolhe sofrer voluntariamente pela verdade será instruído mais duramente por sofrimentos que não pediu.
188. Quem conhece a vontade de Deus e a cumpre na medida de suas possibilidades, pelos pequenos sofrimentos escapará dos grandes.
189. Aquele que pretende vencer as tentações sem a prece e a paciência, não as conseguirá expulsar, mas antes será destruído por elas.
190. O Senhor está oculto em seus próprios mandamentos. É na medida de sua observância que o encontram aqueles que o buscam.
191. Não diga: “Eu observei os mandamentos, mas não encontrei o Senhor”. Pois a Escritura diz: “Muitas vezes você encontrou o conhecimento com justiça. E aqueles que com retidão procuram o Senhor encontrarão a paz [42]”. 327
[41] Salmos XX, 5. [42] Provérbios XVI, 8.
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192. A paz é a libertação das paixões. Ela não pode ser encontrada sem a energia do Espírito Santo.
193. Uma coisa é a prática dos mandamentos, outra a virtude, mas elas tiram uma da outra a origem dos seus bens.
194. Foi dito que a prática dos mandamentos consiste em fazem o que foi ordenado, e que a virtude está presente quando o que se faz é conforme a verdade.
195. Assim como a riqueza material é uma, mas se reparte em múltiplas posses, também a virtude é uma, mas suas obras tomam formas numerosas.
196. Quem raciocina sem obras e não faz mais do que falar, é rico em iniqüidades. Os frutos de suas penas, diz a Escritura, irão para casas desconhecidas [43]. 328
197. Foi dito que tudo obedece ao ouro [44], e que tudo o que é concebido pelo intelecto é regido pela graça de Deus. 329
198. A boa consciência é obtida pela oração, e a oração pura pela consciência; uma, de fato, está naturalmente ligada à outra.
199. Jacó mandou fazer para José uma túnica de todas as cores [45]. Assim o Senhor dá ao homem doce o conhecimento da verdade, conforme está escrito: “O Senhor ensinará aos homens mansos seus caminhos [46]”. 330
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200. Faça sempre o bem, tanto quanto puder, e quando puder fazer mais, não faça menos. Foi dito, com efeito, que aquele que olha para trás não é digno do Reino dos céus [47]. 332
[43] Cf. Provérbios V, 10. [44] Cf. Eclesiastes X, 19. [45] Cf. Gênesis XXXVII, 3. [46] Salmos XXV, 9. [47] Cf. Lucas IX, 2.
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DUZENTOS E VINTE E SEIS CAPÍTULOS SOBRE OS QUE PENSAM SER JUSTIFICADOS POR SUAS OBRAS
1. Nos escritos a seguir, a má fé daqueles que estão de fora será refutada por aqueles cuja fé é segura e que reconhecem a verdade.
2. Querendo demonstrar que somos obrigados a observar os mandamentos, mas que a filiação adotiva é uma graça concedida aos homens pela efusão de seu próprio sangue, o Senhor disse: “Quando vocês tiverem feito tudo o que lhes foi ordenado, digam: Nós somos servidores inúteis, nós só fizemos o que devíamos fazer [48]”. Assim o Reino dos céus não é o salário das obras, mas uma graça do Mestre preparada para os servidores fiéis. 333
3. O servidor não reclama a liberdade como salário: ele quer ser devedor, e então a recebe como uma graça.
4. Cristo, diz a Escritura, morreu pelos nossos pecados [49], e ele concede a liberdade aos que o servem bem. Com efeito, ele diz: “Muito bem, servidor bom e fiel. Você foi fiel sobre as pequenas coisas, e eu lhe estabelecerei sobre muitas. Entre na alegria de seu Senhor [50]”. 334
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5. O servidor fiel não é aquele que se mantém no simples conhecimento, mas sim aquele que, pela obediência, se entrega a Cristo que dá o conhecimento.
6. Quem honra seu mestre faz aquilo que ele ordenou; mas também assume a responsabilidade pelo que lhe acontecer, caso lhe falte ou desobedeça.
7. Se você ama o estudo, ame também o sofrimento; porque o simples conhecimento infla o homem [51]. 336
8. As provas que nos acontecem de improviso nos ensinam providencialmente a amar as penas e, mesmo que não o queiramos, nos levam ao arrependimento.
[48] Lucas XVII, 10. [49] Cf. 1 Coríntios XV, 3. [50] Mateus XXV, 21. [51] Cf. 1 Coríntios VIII, 1.
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9. As aflições que nos acontecem são da mesma geração de nossas próprias faltas. Se as suportamos através da prece, encontraremos em retorno nelas uma plêiade de bens.
10. Alguns se comprazem com elogios dedicados à sua virtude e têm como grande consolo o prazer de sua vanglória. Outros, condenados por seus pecados, sofrem e consideram que este sofrimento é obra do mal.
11. Aqueles que, com base na autoridade de seus próprios combates, acusam os negligentes, pensam ser justificado por suas obras corporais. E nós que, nos prevalecendo de nosso simples conhecimentos, desprezamos os ignorantes, somos ainda mais insensatos do que eles.
12. Independente de suas obras o conhecimento não é ainda certo e seguro, embora verdadeiro. Assim, em todas as coisas, é a obra que é a confirmação.
13. Muitas vezes, quando a prática é negligenciada, o conhecimento também fica obscurecido. Pois mesmo a lembrança daquilo que deixamos de fazer pouco a pouco se apagará.
14. É por isso que a Escritura nos ensina a ver a Deus pelo conhecimento, a fim de que o sirvamos corretamente pelas obras.
15. Quando cumprimos abertamente os mandamentos, recebemos do Senhor aquilo que nos convém, na medida de nossas obras. Mas o bem que extraímos disto depende do objetivo que temos em vista.
16. Aquele que quer fazer uma coisa e não faz é como se houvesse feito, aos olhos de Deus que conhece os corações.
17. Sem o corpo, o intelecto executa muitas coisas boas e más. Mas sem o intelecto o corpo não consegue executar estas coisas. É por isso que a lei de liberdade se manifesta antes dos nossos atos.
18. Alguns, que não seguem os mandamentos, imaginam ter uma fé reta. Outros, que os seguem, aguardam o Reino como um salário que lhes é devido. Tanto uns como outros se afastam da verdade.
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19. O mestre não deve salário aos servidores; mas os que não o servem corretamente tampouco obterão a liberdade.
20. Se Cristo morreu por nós, conforme as Escrituras [52], e se vivemos, não por nós mesmos, mas por Cristo que morreu e ressuscitou por nós [53], é claro que devemos servi-lo até a morte. Portanto, como podemos pensar que uma filiação adotiva nos seja devida? 337
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21. Cristo é nosso Mestre em essência e nosso mestre na administração da salvação. Pois não não éramos, e ele nos fez; nós estávamos mortos e ele nos resgatou com seu próprio sangue. Àqueles que assim crêem, ele concedeu o dom de sua graça.
22. Quando você ouve a Escritura dizer que ele retribuirá a cada um segundo suas obras [54], não devemos entender com isto as obras que merecem a geena ou o Reino, mas sim que Cristo retribuirá a cada um segundo suas obras de incredulidade ou fé, não como estabelecendo uma troca, mas como nosso Deus Criador e Redentor. 339
23. Nós, que fomos considerados dignos do banho do novo nascimento, juntemos-lhe as boas obras, não para promover uma troca, mas para manter a pureza que nos foi concedida.
24. Toda boa obra que fazemos por meio de nossa natureza nos afasta do mal contrário, mas sem a graça não consegue suscitar o acréscimo da santificação.
25. Quem tem temperança se precavê contra a gula. Quem renuncia às posses evita a cupidez. Quem vive na hesíquia se guarda de falatórios. Quem é puro se protege do amor ao prazer. Quem é casto se guarda da prostituição. Quem é doce se guarda da perturbação. Quem é humilde, da vanglória. Aquele que obedece evita a contestação, e o que examina se guarda da hipocrisia. Do mesmo modo, quem ora se protege do desespero, e quem é pobre, do excesso de bens. Quem confessa se guarda do remorso. Você vê que toda virtude praticada até a morte não é mais do que a abstenção do pecado? Ora, abster-se do pecado é a obra da natureza, não uma moeda de troca tendo em vista o Reino.
26. O homem considera penosos os deveres da sua natureza. É Cristo que, pela cruz, lhe concede a graça da filiação adotiva. [52] Cf. Romanos V, 8. [53] Cf. 2 Coríntios V, 15. [54] Cf. Mateus XVI, 27.
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27. Existe um mandamento relativo e um mandamento absoluto. O mandamento relativo diz que devemos dar a quem não tem [55]; o outro ordena renunciar a tudo o que possuímos [56]. 341
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28. Existe uma energia da graça que o noviço ignora. E existe uma outra energia, do mal, que se confunde com a verdade. É melhor não perscrutar estas energias, por causa do erro, nem tampouco as rejeitar, por causa da verdade. Mas tudo devemos remeter a Deus com esperança. Com efeito, ele conhece a utilidade das duas.
29. Quem quiser atravessar o mar da hesíquia necessitará de constância, humildade, vigílias e temperança. Se ele se esforçar por atravessar sem estas virtudes, ele perturbará o coração, mas não atravessará.
30. A hesíquia é um retiro que se corta e se separa do mal. Acrescentando-se à oração as quatro virtudes, não há meio mais rápido de se obter a impassibilidade.
31. É impossível ao intelecto conhecer a hesíquia sem o corpo, bem como destruir o muro que os separa sem a hesíquia e a oração.
32. Os desejos da carne se opõem ao espírito, e os do espírito se opõem à carne [57]. Assim, os que caminham segundo o espirito não seguem os desejos da carne [58]. 342
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33. Não existe prece perfeita sem a invocação do intelecto. O Senhor escuta o intelecto que não cessa de chamar.
34. O intelecto que ora continuamente aflige o coração. Ora, Deus não despreza um coração partido e humilhado [59]. 344
35. A oração também é chamada de virtude, embora ela seja mais a mãe da virtude. Pois é ela que as gera, por sua união com Cristo.
[55] Cf. Lucas III, 11. [56] Cf. Lucas XIV, 33. [57] Gálatas V, 17. [58] Cf. Gálatas V, 16. [59] Cf. Salmos LI, 19.
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36. Aquilo que fazemos sem a oração e sem a boa esperança logo se revelará nocivo e imperfeito.
37. Quando você ouve que os últimos serão os primeiros e que os primeiros serão os últimos [60], entenda que se trata dos que compartilham as virtudes e o amor. O amor, com efeito, é a última das virtudes pela ordem, mas a primeira em dignidade, mostrando assim que as virtudes que o precedem são as últimas. 345
38. Se você experimenta a acídia durante a prece, se você é afligido de todas as maneiras pelo mal, lembre-se da morte e dos duros castigos. Mas é melhor agarrar-se a Deus pela prece e a esperança [61] do que ter pensamentos estranhos, por mais úteis que sejam. 346
39. Nenhuma virtude é capaz de abrir as portas de nossa natureza, se todas as demais não a seguirem sustentando-se mutuamente.
40. Quem se nutre de pensamentos não possui temperança. Por úteis que eles sejam, não o são mais do que a esperança.
41. Todo pecado é mortal, se não for seguido de arrependimento. Mesmo que um santo rezasse por outro, ele não seria atendido.
42. Quem se arrepende corretamente não procura resgatar com suas penas as faltas passadas. Mas, com seu sofrimento ele implora a compaixão de Deus.
43. Se devemos fazer todos os dias o máximo bem de que é capaz nossa natureza, quanto devemos a Deus por todo o mal que já fizemos?
44. Por mais alto que seja o grau de virtude que atingimos hoje, ela não passa da sentença de nossa negligência passada, não é uma compensação.
45. Quem é afligido no intelecto e se refugia no corpo é semelhante ao que é afligido no corpo mas possui um intelecto disperso. [60] Cf. Mateus XIX, 30. [61] Cf. Salmos LXXIII, 28.
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46. Conformar-se com esta ou aquela aflição trará um remédio para a outra. A aflição do intelecto remedia a do corpo, e a aflição do corpo remedia a do intelecto. O mais penoso é quando elas coincidem.
47. É uma grande virtude suportar o que nos acontece, e amar o próximo que nos odeia, conforme a palavra do Senhor [62]. 347
48. Perdoar as injustiças é um sinal de amor verdadeiro. Foi assim que o Senhor amou o mundo.
49. É impossível perdoar do fundo do coração as faltas de alguém, sem o conhecimento verdadeiro. Ele mostra, de fato, a cada um, que o que lhe acontece é aquilo que lhe cabe.
50. Você não perderá nada do que abandonou pelo Senhor; pois, a seu tempo, tudo lhe será retribuído ao cêntuplo.
51. Quando o intelecto perde de vista o objetivo da piedade, então a obra aparente da virtude é vã.
52. Se a maldade é prejudicial a qualquer homem, fazer o mal prejudica ainda mais aqueles que negligenciaram o rigor.
53. Filosofe por meio da prática sobre a vontade do homem e a retribuição de Deus. Pois a palavra não é mais sábia nem mais útil do que as obras.
54. Depois das penas suportadas pela piedade vem o socorro. Mas é preciso saber disto pela lei divina e pela consciência.
55. Um homem recebe um pensamento e o acolhe sem examiná-lo. Outro recebe o mesmo pensamento, e o confronta com a verdade. É preciso se perguntar qual dos dois foi melhor inspirado pela piedade.
[62] Cf. Mateus V, 44.
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56. O verdadeiro conhecimento consiste em ser paciente nas aflições, e não responsabilizar os homens pelas próprias infelicidades.
57. Quem faz o bem esperando uma recompensa, não serve a Deus, mas à sua própria vontade.
58. É impossível àquele que peca escapar da retribuição, senão for através de um arrependimento proporcional à sua falta.
59. Alguns dizem: “Não poderíamos fazer o bem se não recebêssemos, com sua energia própria, a graça do Espírito”. 60. Aqueles que se atiram deliberadamente aos prazeres recusam-se a fazer o que poderiam, como se não tivessem ajuda.
61. A graça foi dada secretamente àqueles que foram batizados em Cristo. Mas ela só age na medida em que cumprimos os mandamentos. Ela não cessa de nos ajudar em segredo, mas cabe a nós fazer o bem o quanto pudermos.
62. A graça começa por despertar divinamente a consciência. Mesmo os que fizeram o mal e se arrependeram agradam a Deus.
63. Mas a graça se esconde também naquilo que o próximo nos ensina. Às vezes até, durante a leitura, ela assiste à reflexão e, por uma conseqüência natural, ensina sua própria verdade ao intelecto. Se nós não enterrarmos a aptidão para esta progressão, entraremos efetivamente na beatitude do Senhor [63]. 348
64. Quem procura as energias do Espírito antes mesmo de por em marcha os mandamentos, assemelha-se o escravo comprado por dinheiro que, no momento da compra, exige que lhe passem por escrito seu aceite e sua alforria.
65. Quem descobre que as infelicidades que nos vêm de fora derivam da justiça de Deus, encontra de uma só vez o conhecimento e a justiça, buscando a Deus [64]. 349
[63] Cf. Mateus XXV, 14-30. [64] Cf. Provérbios XVI, 8.
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66. Se você considera, conforme a Escritura, que os julgamentos do Senhor cobrem toda a terra [65], cada acontecimento lhe ensinará o conhecimento de Deus. 350
67. Cada qual enfrenta seu dever segundo sua própria inteligência. Somente Deus conhece a diversidade da convergência harmoniosa.
68. Quando você sofre com o desprezo dos homens, considere antes a glória que lhe virá de Deus. Assim você não ficará triste nem perturbado com o desprezo, e permanecerá fiel e irreprochável perante a glória, quando ela vier.
69. Se a bem-aventurança divina permite que a multidão o louve, não mescle nenhuma ostentação à providência o Senhor, para que uma reviravolta não o atire para o lado oposto. 70. A semente não pode crescer sem terra e sem água. Também o homem não encontrará aquilo que lhe é útil sem assumir suas penas e sem o socorro divino.
71. A chuva não cai se não houver nuvens. Da mesma forma, é impossível agradar a Deus sem uma consciência boa.
72. Nunca recuse aprender, por mais sábio que você seja. Pois a providência de Deus é mais útil do que a nossa sabedoria.
73. Quando, para se entregar ao prazer, o coração deixa de amar o sofrimento, dominá-lo é mais difícil do que deter um rochedo rolando numa vertente.
74. O pequeno novilho sem experiência que corre pelas pradarias acaba de repente num lugar cheio de precipícios. O mesmo acontece com a alma que se deixa pouco a pouco levar pelos pensamentos.
75. Quando o intelecto consolidado no Senhor luta por desenraizar um hábito antigo, o coração é como que torturado por dois carrascos, o intelecto e a razão, que o puxam de um lado para outro.
[65] Salmos CV, 7.
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76. Assim como os olhos dos que ganham sua vida no mar suportam o ardor do sol sem queixa, também aqueles que odeiam o mal amam as penas. É por isso que uns enfrentam os ventos e outros, as paixões.
77. A fuga no inverno ou em dia de sábado [66] é sofrimento para o corpo e profanação para a alma; o mesmo acontece com a irrupção de paixões num corpo envelhecido e numa alma consagrada. 351
78. Ninguém é tão bom e complacente como o Senhor; mesmo assim, até ele não perdoa quem não se arrepende.
79. Nós somos muitos a nos afligir por nossos pecados. Mas aceitamos de bom grado as suas causas.
80. Cavando sob a terra e cega, a toupeira não é capaz de ver as estrelas. Também aquele que não se confia a Deus nas coisas do tempo não poderá confiar nele no que toca à eternidade. 81.Graça anterior à graça, o verdadeiro conhecimento foi dado aos homens por Deus. Acima de tudo, aos que a receberam e compartilharam, ela ensina a confiar-se Àquele que a concedeu.
82. Quando uma alma em pecado não acolhe as aflições que lhe chegam, os anjos dizem dela: “Nós curamos Babilônia, mas ela não sarou [67]”. 352
83. O intelecto que perde de vista o verdadeiro conhecimento se bate com os homens por aquilo que lhe é prejudicial, como se fosse útil.
84. Assim como o fogo não pode perdurar na água, também os pensamentos vergonhosos não conseguem permanecer num coração que ama a Deus. Pois todo homem que ama a Deus ama também o sofrimento, e o sofrimento assumido é por natureza inimigo do prazer.
85. Uma paixão que, pela vontade, fez seu trabalho e se apoderou de um campo, logo desencadeará violência, mesmo se aquele que a recebeu e acolheu não o queira.
[66] Cf. Mateus XXIV, 20. [67] Jeremias XXVIII, 9.
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86. Nós amamos as causas dos pensamentos involuntários, e é por isso que eles nos chegam. Quanto aos pensamentos voluntários, está claro que amamos também as suas conseqüências.
87. A presunção e arrogância são as causas da blasfêmia. O amor ao dinheiro e a vanglória são as causas da dureza impiedosa e da hipocrisia.
88. Quando o diabo percebe que o intelecto reza do fundo do coração, ele o assalta com tentações cheias de violência e mentiras. Quanto às pequenas virtudes, não é com grandes ataques que ele tenta destruí-las.
89. Um pensamento persistente denuncia uma tendência do homem. Mas um pensamento rapidamente destruído significa combate e oposição.
90. Em sua evolução, o intelecto passa por três estágios: segundo a natureza, acima da natureza e contra a natureza. Quando ela passa pelo estágio, ela se descobre responsável por seus maus pensamentos e confessa a Deus seus pecados, em si reconhecendo as causas das suas paixões. Quando ele se encontra no estágio contrário à natureza, ele esquece a justiça de Deus e combate os homens, como se fossem nocivos. Enfim, quando ele é levado ao estado acima da natureza, ele encontra os frutos do Espírito Santo de que fala o Apóstolo: o amor, a alegria, a paz, e assim por diante [68]. Então ele percebe que, se preferir os cuidados do corpo, ele não poderá permanecer aí. Se ele deixar este lugar cairá no pecado e em suas terríveis conseqüências, senão de imediato, ao menos com o tempo, como o quer a justiça de Deus. 353
91. O verdadeiro conhecimento se encontra em cada um de nós, na medida em que o confirmem a doçura, a humildade e o amor.
92. Todo homem batizado na fé ortodoxa recebeu misteriosamente toda a graça. Mas ele não obterá logo a plena certeza senão cumprindo os mandamentos.
93. Quando cumprido conscientemente, o mandamento de Cristo traz um consolo proporcional às numerosas aflições do coração. Entretanto, para cada uma delas, o consolo só chega a seu tempo.
94. Em todas as coisas, ore continuamente. Pois você não pode nada sem o socorro de Deus.
[68] Cf. Gálatas V, 22.
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95. Nada é mais poderoso do que a oração para nos dar a energia divina. E nada mais útil do que ela para obtermos a bem-aventurança de Deus.
96. Toda a prática dos mandamentos está na oração. Pois não há nada mais elevado do que o amor de Deus.
97. A prece sem distração é um sinal do amor de Deus por aquele que persevera. Mas a negligência e a distração durante a prece denunciam o amor ao prazer.
98. Aquele que vela, persevera e ora sem esforço recebe visivelmente e compartilha do Espírito Santo. Mas quem sofre com tudo isso e mantém sua resolução, também recebe rapidamente o socorro.
99. Um mandamento difere do outro. Por isso também uma fé pode ser mais consolidada do que outra. 100. Existe uma fé que provém daquilo que ouvimos [69], como diz o Apóstolo, e existe uma fé que é o fundamento daquilo que se espera [70]. 354
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101. É bom dizer palavras úteis aos que estão aprendendo. Mas ainda melhor é vir em seu auxílio com orações e com a virtude. Pois quem se oferece a Deus por meio delas ajuda seu próximo com o socorro que ele próprio recebe.
102. Se você quiser, em poucas palavras, prestar um serviço àquele que deseja aprender, mostre-lhe a prece, a fé reta, a paciência nas provações. É por meio destas três virtudes que se obtém todas as demais.
103. Aonde se espera Deus, não se combate mais o próximo.
104. Se tudo o que é involuntário tem sua fonte naquilo que desejamos, como diz a Escritura [71], ninguém é tão inimigo do homem quanto ele mesmo. 356
[69] Cf. Romanos I, 17. [70] Cf. Hebreus XI, 1. [71] Talvez referência a Romanos VII, 14-20.
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105. A ignorância está na cabeça de todos os males, e logo a seguir vem a falta de fé.
106. Fuja das tentações pela paciência e a oração. Se você pretender combatê-las sem estas virtudes, elas o atacarão cada vez mais.
107. Quem é manso conforme Deus é mais sábio do que os sábios, e quem é humilde de coração é mais poderoso do que os poderosos, pois eles carregam o jugo de Cristo com conhecimento de causa.
108. Tudo o que podemos dizer ou fazer sem a prece se revelará mais tarde perigoso ou inútil, e seremos contra nossa vontade condenados pelos fatos.
109. É por seus atos, pensamentos e palavras que cada qual é justo. Mas é pela fé, a graça e o arrependimento que muitos encontram a justiça.
110. Assim como o orgulho é estranho àquele que se arrepende, também é impossível que seja humilde o que peca deliberadamente.
111. A humildade não é uma condenação que a consciência carrega, mas o reconhecimento da graça de Deus e de sua compaixão.
112. O intelecto dotado de razão está para a graça divina assim como uma casa material está para o espaço que a envolve. Quanto mais matéria você retirar dela, mas se irá; quanto mais fizer entrar, mais virá.
113. A matéria da casa são os móveis e os alimentos; a matéria do intelecto são a vanglória e o prazer.
114. Aquilo que dilata o coração é a esperança em Deus. Aquilo que oprime são os cuidados do corpo.
115. Uma e imutável é a graça do Espírito, mas ele age sobre cada um da maneira como quiser [72]. 357
[72] Cf. 1 Coríntios XII, 11.
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116. Assim como a chuva que cai sobre a terra fornece às plantas sua propriedade natural, a doçura às doces e o amargor às amargas, também a graça, espalhando-se, sempre a mesma, no coração dos fiéis, lhes dispensa as energias que combinam com suas virtudes.
117. A graça se torna alimento para quem tem fome por amor a Cristo, bebida doce para o que tem sede, vestes para o que tem frio, repouso para o que sofre, certeza plena para o que ora, consolo para o que chora.
118. Quando você ouve a Escritura dizer que o Espírito Santo pousou sobre cada um dos apóstolos [73], que ele desceu sobre o profeta [74], ou que ele age [75], ou que ele se entristece [76], ou que ele se apagou [77], ou que ele se irrita, ou ainda que alguns recebem dele as primícias [78] e que outros estão cheios dele [79], não pense que o Espírito se divida, mude ou se altere, mas creia, como dissemos, que ele é imutável, invariável e todopoderoso. É por isso que, nas suas energias, ele permanece sendo aquilo que ele é, e ele assegura divinamente a cada um aquilo que lhe é necessário. Com efeito, como o sol, ele se espalha plenamente sobre os batizados. Mas cada um de nós será iluminado na medida em que detestar e dissipar as paixões que o entenebrecem. Mas na medida em que as amar e se ligar a elas, o homem permanecerá nas trevas. 358
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119. Quem detesta as paixões cuida de suprimir-lhes as causas. Mas quem permanece ligado às causas será atacado pelas paixões mesmo contra sua vontade.
120. Quando somos submetidos aos maus pensamentos, atribuamos a nós mesmos, e não ao pecado de nosso primeiro pai.
121. As raízes dos pensamentos são os vícios manifestos. Não cessemos de nos defender deles, com os pés, as mãos e a boca.
122. É impossível ligar-se em pensamento a uma paixão sem amar-lhe as causas.
[73] Cf. Atos II, 3. [74] Cf. 1 Samuel XI, 6 e XVI, 13. [75] Cf. 1 Coríntios XII, 11. [76] Cf. Efésios IV, 30. [77] Cf. 1 Tessalonicenses V, 19. [78] Cf. Romanos VIII, 23. [79] Cf. Cf. Atos II, 4 ou IV, 8 ou VI, 3 etc.
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123. Quem se liga à vanglória, se desdenha a vergonha? Quem é perturbado pela desonra, se ama ser considerado como nada? Quem acolhe o prazer da carne, se seu coração está partido e humilhado? Quem se inquieta com o combate das coisas passageiras, se crê em Cristo?
124. Quem foi ofendido e não disputou com o ofensor nem em palavras nem em pensamentos, possui o verdadeiro conhecimento e dá provas de uma fé segura no Mestre.
125. Os filhos dos homens são as mentiras sobre a balança da justiça [80]. É Deus quem dispensa a cada um aquilo que é justo. 365
126. Se aquele que comete uma injustiça não é mais, e aquele que a sofre não é menos, o homem passa como uma sombra e ele se preocupa em vão [81]. 366
127. Se você vê alguém que se aflige pelos numerosos ultrajes que recebeu, saiba que ele está cheio de pensamentos de vanglória, e que ele recolhe sem alegria aquilo que ele semeou em seu coração.
128. Quem desfruta dos prazeres do corpo além da conta pagará seus excessos com cem vezes mais penas.
129 O mestre não deve dizer ao discípulo o que este deve fazer, nem mostrar-lhe as faltas, se ele não o escutar.
130. Aquele que foi ofendido por alguém e não cobra desculpas de seu ofensor, por isso mesmo se remete a Cristo. Ele receberá o cêntuplo no século presente, e herdará a vida eterna [82]. 367
131. A lembrança de Deus é a pena que confere a si mesmo o coração pela piedade. Mas os que esquecem Deus entregam-se aos prazeres e se tornam insensíveis.
132. Não diga que o impassível não pode ser afligido. Pois se ele não é afligido por si mesmo, será pelo seu próximo. [80] Cf. Salmos LXII, 10. [81] Cf. Salmos XXXIX, 7. [82] Cf. Marcos X, 30.
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133. Quando o inimigo guarda numerosos escritos nos quais aquele que esqueceu seus pecados reconhece suas dívidas, ele obriga seu devedor a cometê-las na memória, aproveitando-se normalmente da lei do pecado.
134. Se você quiser se lembrar continuamente de Deus, não rejeite as provações como se elas fossem injustas, mas suporte-as como sendo justo que lhe tenham sido enviadas. Pois a paciência em todos os acontecimentos desperta a lembrança. Mas a recusa apequena a memória inteligente do coração e, pelo relaxamento, suscita o esquecimento.
135. Se você quiser que seus pecados permaneçam encobertos diante do Senhor [83], não exponha diante dos homens suas virtudes, se as tiver. Pois aquilo que fizermos com nossas virtudes, Deus fará com nossos pecados. 368
136. Se você esconde suas virtudes, não se orgulhe, como se você cumprisse com a justiça. Pois a justiça não consiste apenas em esconder o bem, mas antes jamais sequer conceber o que é proibido.
137. Não se alegre quando você fizer o bem a alguém, mas quando você suportar sem ressentimento a hostilidade que virá. Como a noite segue o dia, também o mal sucede a benemerência.
138. A vanglória, o amor ao dinheiro e o prazer jamais deixam sem mancha a benemerência, se não forem previamente arrasados pelo temor a Deus.
139. A piedade de Deus se esconde nos sofrimentos involuntários. Ela conduz quem as suporta ao arrependimento, e o preserva do castigo eterno.
140. Dentre os que observam os mandamentos, alguns esperam que na balança estes façam contrapeso aos seus pecados, enquanto outros esperam obter o perdão d'Aquele que morreu por nossos pecados. É preciso ver quais deles têm razão.
141. O medo da geena e o desejo do Reino liberam paciência nas aflições. Não em si, mas pela graça d'Aquele que conhece nossos pensamentos [84]. 369
[83] Cf. Salmos XXXII, 1. [84] Cf. Mateus V, 22.
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142. Quem crê no século futuro por si só se abstém dos prazeres do século presente. Mas quem não crê se entrega ao prazer e se torna insensível.
143. Não diga: “Como pode um pobre atirar-se aos prazeres, se ele não possui os meios para tanto?” Pois é possível entregar-se aos prazeres em pensamento, e da maneira mais miserável ainda.
144. Uma coisa é o conhecimento das coisas e outra é o reconhecimento da verdade. Tanto quanto difere o sol da lua, tanto o segundo é mais útil do que o primeiro.
145. Adquire-se o conhecimento das coisas na medida em que observa os mandamentos. Mas o reconhecimento da verdade se obtém na medida de nossa esperança em Cristo.
146. Se você quiser ser salvo e alcançar o conhecimento da verdade [85], esforce-se sem cessar para ultrapassar o sensível e agarrar-se a Deus apenas com sua esperança. Pois quando você for desviado contra sua vontade, você encontrará as potências e os poderes que irão combatê-lo com suas sugestões. Mas você os vencerá pela prece, você manterá a boa esperança, e você receberá a graça de Deus, que o salvará da ira que virá. 370
147. Quem compreende o sentido místico das palavras de São Paulo, quando ele diz que o combate é levado contra os espíritos do mal [86], compreenderá também a parábola em que o Senhor afirma que é preciso orar continuamente e jamais relaxar [87]. 371
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148. A lei ordena simbolicamente trabalhar seis dias e repousar no sétimo [88]. É por isso que a obra da alma passa pelas riquezas, ou seja pela própria fruição das coisas. Mas o lazer e o repouso da alma consistem em tudo vender e dar aos pobres, conforme a palavra do Senhor [89], para depois, uma vez alcançado o repouso, dedicar-se à esperança espiritual. É também neste repouso que São Paulo nos exorta insistentemente a entrar, quando ele diz: “Esforcem-se para entrar em repouso [90]”. 373
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149. Mas não dizemos isto para excluir o século futuro, nem para limitar ao século presente a retribuição universal, mas porque é preciso antes de tudo possuir a graça do Espírito Santo na obra do coração, para daí [85] Cf. 1 Timóteo II, 4. [86] Cf. Efésios VI, 12. [87] Cf. Lucas XVIII, 21. [88] Cf. Êxodo XX, 9. [89] Cf. Mateus XVIII, 21. [90] Hebreus IV, 11.
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entrar no Reino dos céus. É o que mostrou claramente o Senhor, quando disse: “O Reino dos céus está dentro de vocês [91]”. E o Apóstolo diz também: “A fé é o fundamento daquilo que se espera [92]”; e ainda: “Corram de maneira a ganhar o prêmio [93]”; e: “Provem a si mesmos, para saber se estão na fé. Não reconhecem que Jesus Cristo reside em vocês? A menos que sejam reprovados [94]”. 376
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150. Quem reconheceu a verdade não se revolta contra as infelicidades que o possam afligir, pois ele sabe que elas conduzem o homem a Deus.
151. As faltas passadas, quando recordadas em detalhe, prejudicam aquele que possui uma boa esperança, pois elas suscitam a tristeza e enfraquecem a esperança. E se elas se deixam representar sem tristeza, elas trazem de volta as impurezas.
152. Quando o intelecto, pela renúncia a si mesmo, liga-se à única esperança, então o inimigo, sob pretexto de confissão, lhe apresenta as faltas passadas, com o fim de reanimar nele as paixões que a graça de Deus lhe fizera esquecer, para assim prejudicar o homem contra sua vontade. Ainda que luminoso e avesso às paixões, o intelecto é então necessariamente envolto em trevas, e mais uma vez misturado aos seus erros passados. Perdido em meio às brumas e o amor ao prazer, o intelecto retrocede e se entrega passionalmente às paixões, de tal maneira que a lembrança se mostra uma tendência, e não uma confissão.
153. Se você quiser oferecer a Deus uma confissão irreprochável, não repasse na memória seus fracassos, mas resista corajosamente aos seus ataques.
154. As provas nos chegam a partir das faltas passadas; elas nos trazem aquilo que resulta naturalmente de toda ofensa.
155. O gnóstico, aquele que conhece a verdade, confessa-se perante Deus não pela lembrança daquilo que fez, mas pela paciência naquilo que lhe acontece.
156. Se você rejeita as penas e a desonra, não anuncie que irá se arrepender por meio de outras virtudes. Pois a vanglória e a insensibilidade naturalmente levam à escravidão do pecado, mesmo pelos caminhos retos.
[91] Lucas XVII, 1. [92] Hebreus XI, 1. [93] 1 Coríntios IX, 24. [94] 2 Coríntios XIII, 5.
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157. De fato, assim como a pena e a desonra costumam engendrar as virtudes, o prazer e a vanglória engendram os vícios.
158. Todo prazer do corpo provém de um relaxamento interior. A falta de fé é que engendra este relaxamento.
159. Quem está submetido ao pecado é incapaz de sozinho superar as necessidades do corpo. Por esta razão ele nunca deixa de estar excitado em seus membros.
160. Quando estamos presas da paixão, é preciso orar e se conhecer. Pois é difícil, mas possível, com socorro, combater as tendências.
161. Aquele que, pela obediência e a oração, luta contra sua própria vontade, é um atleta competente. Por sua renúncia ao sensível, ele expõe claramente seu combate espiritual.
162. Quem não confia a Deus sua vontade, fracassa no que faz e cai em poder dos adversários.
163. Quando você vê a amizade entre dois malfeitores, saiba que eles concordam um com o outro no que satisfazer suas vontades.
164. O orgulhoso e o vaidoso concordam de bom grado. Um elogia o vaidoso, que se submete servilmente. O outro louva o orgulhoso, que não cessa de elogiá-lo.
165. O discípulo que ama a Deus tem benefícios nas duas direções. Aprovado naquilo que faz de bem, ele se torna ainda mais fervoroso. Condenado pelo que faz de mal, obriga-se ao arrependimento. É preciso orientarmos nossa vida na direção de nosso progresso. E devemos oferecer a Deus orações no sentido de nossa vida.
166. É bom deter-se no primeiro mandamento, de não ter nenhuma necessidade em especial, de não rezar por nenhuma intenção particular, de não buscar senão o Reino dos céus e a palavra de Deus [95]. Se nos 380
[95] Cf. Mateus VI, 33.
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inquietamos por cada uma de nossas necessidades, devemos igualmente orar por elas. Pois aquele que age, inquieta-se mas não ora, perde o bom caminho para atingir seu objetivo. É o que diz o Senhor: “Sem mim vocês nada podem [96]”. 381
167. As desobediências mais inusitadas esperam aquele que se engana sobre o mandamento da oração; uma coisa arrasta a outra como que por um laço.
168. Quem acolhe as aflições presentes com vistas ao século por vir, encontrou o conhecimento da verdade. Ele se livrará facilmente da cólera e da tristeza.
169. Quem, por amor à verdade, escolhe a vida dura e a desonra, caminha sobre a via apostólica, toma sua cruz e carrega suas cadeias [97]. Mas aquele que, não aderindo a esta escolha, tenta guardar seu coração, se perde no intelecto e cai nas tentações e armadilhas do diabo [98]. 382
383
170. É impossível a quem combate vencer os maus pensamentos sem atacar suas causas, e vencer as causas, sem atacar os pensamentos. Pois quando rejeitamos uns separadamente, logo somos capturados pelo outro por sua vez.
171. Quem ataca os outros homens por medo dos sofrimentos e dos ultrajes, ou bem sofrerá ainda aqui em baixo por causa de seus males, ou será castigado impiedosamente no século por vir.
172. Quem quiser evitar toda agressão do mal deve por meio da prece confiar tudo o que fizer a Deus, guardar seu intelecto na sua esperança e, na medida do possível, desligar-se de todo cuidado com o sensível.
173. Quando o diabo encontra alguém ocupado sem necessidade com as coisas do corpo, primeiro ele o despoja de seu conhecimento, depois ele corta, como se fosse a cabeça, sua esperança em Deus.
174. Se algum dia você alcançar o lugar fortificado da oração pura, evite neste instante de acolher o conhecimento das coisas suscitadas pelo inimigo, a fim de não perder o mais importante. É melhor perfurá-lo com as flechas da oração, enquanto ele está como que trancado abaixo de nós, do que entreter-se com ele, que vem nos oferecer suas mentiras e que tenta, com sua astúcia, nos separar da prece que nos afasta dele. [96]João XV, 5. [97] Cf. Mateus XVI, 24 e Atos XXVIII, 20. [98] Cf. 1 Timóteo II, 7 e VI, 9.
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175. O conhecimento das coisas ajuda o homem no momento da tentação e da acídia. Mas normalmente ela é prejudicial no momento da oração.
176. Se você está encarregado de ensinar no Senhor e não o escutam, aflija-se em espírito, mas não se perturbe ostensivamente. Aflito, você não será condenado junto com aquele que não o escuta. Mas se você se deixar perturbar, você será tentado em sua própria perturbação.
177. Quando você ensinar, não esconda dos que o escutam aquilo que eles devem fazer. Exponha claramente aquilo que for mais fácil, mas o que for mais difícil coloque em enigmas.
178. Não reprove na frente dele quem não estiver ligado a você pela obediência, pois isto tem mais a ver com a autoridade do que com o conselho.
179. Aquilo que é repetido muitas vezes torna-se útil a todos, e cada qual reterá em sua consciência aquilo que lhe disser respeito.
180. Aquele que fala com retidão deve receber suas próprias palavras como provindas de Deus. Pois a verdade não pertence ao que fala, mas a Deus que age nele.
181. Não discuta com aqueles que se opõem à verdade e que não estão ligados a você pela obediência, a fim de não despertar seu ódio, como diz a Escritura [99]. 384
182. Quem cede a seu discípulo naquilo que não deveria o desorienta quanto à questão e o prepara para transgredir as com dicções de obediência.
183. Quem adverte ou corrige o pecador no temor de Deus adquire a virtude oposta à falta. Mas quem guarda rancor e censura com maledicência cai na mesma paixão, segundo a lei espiritual.
184. Quem conhece bem a lei teme o legislador., e quem teme o legislador afasta-se do mal [100]. 385
[99] Cf. Provérbios IX, 8. [100] Cf. Provérbios XV, 27.
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185. Não tenha duas linguagens: não se mostre um nas palavras e outro em sua consciência. A Escritura enche de maldições tal pessoa [101]. 386
186. Existem os que dizem a verdade e são vítimas da raiva dos insensatos, como diz o Apóstolo [102]. E existem os que a dissimulam, e que por isso mesmo são amados. Mas a retribuição, nos dois casos, não tardará, pois o Senhor dá a cada um o que lhe é devido. 387
187. Quem quer escapara das penas futuras deve suportar de boa vontade os sofrimentos presentes. Trocando desta maneira em espírito uma coisa por outra, pelos pequenos sofrimentos evitará os grandes castigos.
188. Evite a ostentação nas palavras e a presunção do pensamento, a fim de não ceder e de não fazer o contrário do bem. Pois não é o homem sozinho que faz o bem, mas Deus que vê tudo.
189. Deus, que tudo vê, concede frutos dignos às nossas obras, às nossas intenções e aos nossos pensamentos voluntários.
190. Os pensamentos involuntários nascem de um pecado anterior, mas os pensamentos voluntários nascem de uma vontade livre. Daí serem os segundos causa dos primeiros
191. Aos maus pensamentos que vêm de encontro às nossas intenções segue-se a tristeza; por isso eles se desvanecem rapidamente. Mas aos pensamentos que vão na mesma direção de nossas intenções segue-se a alegria; assim, eles não se deixam dissipar facilmente.
192. Aquele que ama o prazer aflige-se entre as condenações e a miséria. Mas quem ama a Deus se aflige em meio aos elogios e ao sucesso.
193. Quem não conhece os juízos de Deus segue em espírito por uma via bordejada de precipícios, e a menor brisa basta para desequilibrá-lo. Elogiado, ele se orgulha. Censurado, lamenta-se. Mimado, torna-se impudente. Afligido, se prostra. Se ele compreende, vangloria-se. Se não entende, finge. Rico, glorifica-se. Pobre, dissimula. Se está saciado, torna-se arrogante. Se jejua, faz disso motivo de vaidade. Discute com quem o censura. E considera tolos os que o perdoam.
[101] Cf. Eclesiástico XXVIII, 13. [102] Esta frase não se encontra nos escritos apostólicos.
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194. Assim, se não adquirirmos o conhecimento da verdade e o temor a Deus pela graça de Cristo, seremos duramente mortificados, não apenas pelas paixões, mas também pelos acontecimentos.
195. Quando você quiser corrigir um assunto pessoal complicado, procure aquilo que agrada a Deus no caso e você encontrará a solução mais útil.
196. Toda a criação concorre para a obra que agrada a Deus, mas resiste à obra da qual Deus se desvia.
197. Quem se opõe aos acontecimentos penosos combate sem o saber as ordens de Deus. Mas quem os aceita, porque tem o verdadeiro conhecimento, conforme a Escritura, este espera o Senhor [103]. 388
198. Quando sobrevém uma provação, não pergunte porque, nem por quem, ela aconteceu; procure apenas o modo de suportá-la dando graças, sem tristeza e sem ressentimento.
199. O mal que os outros nos fazem não nos impõem nenhum pecado, se o acolhermos sem maus pensamentos.
200. Se é difícil encontrarmos alguém que agrade a Deus sem ter sido provado, devemos dar graças a Deus por todos os acontecimentos penosos. 201. Se Pedro não tivesse perdido a pesca noturna [104], ele não teria tido sucesso na pesca diurna. Se Paulo não tivesse sido cegado nos seus sentidos [105], ele não teria recuperado a visão de seu intelecto. E se Estevão não tivesse sido acusado de blasfêmia caluniosamente, os céus não teriam se aberto para ele, e ele não teria visto a Deus [106]. 389
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202. Assim como agir segundo Deus se chama virtude, também uma aflição imprevista se chama provação.
[103] Cf. Salmos XXVII, 14. [104] Lucas V, 5. [105] Cf. Atos IX, 8. [106] Cf. Atos VI, 15.
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203. Deus testou Abraão [107], ou seja, ele o afligiu para seu próprio bem, não para saber como ele era (pois ele o sabia, ele que conhece todas as coisas antes que elas aconteçam), mas para permitir-lhe alcançar a fé perfeita. 392
204. Toda aflição indica o lado para o qual pende a vontade, se para a direita ou para a esquerda. É por isso que a aflição imprevista se chama prova. Ela revela as vontades ocultas daquele que a recebe e acolhe.
205. O temor a Deus nos obriga a combater o mal. E quando o combatemos, a graça de Deus o combate junto.
206. A sabedoria não consiste apenas em conhecer a verdade em suas conseqüências naturais, mas também em suportar como nosso próprio bem a desonestidade daqueles que cometem injustiças. Os que se contentam com o primeiro grau crescem em orgulho; os que chegam ao segundo, adquirem a humildade.
207. Se você não quiser ser dominado por maus pensamentos, aceite ser humilhado em sua alma e afligido em sua carne. E isto, não eventualmente, mas em todo tempo, todo lugar, todas as coisas.
208. Quem se deixa instruir voluntariamente pelas aflições não será dominado por pensamentos involuntários. Mas quem não aceita aquelas será cativo destes, mesmo contra sua vontade.
209. Quando, sob o impacto de uma injustiça, suas entranhas e seu coração se endurecem, não se entristeça. Pois esta emoção, que revela o que você trazia dentro de si, é providencial. Desvie com alegria os pensamentos que se levantam, sabendo que se eles forem destruídos logo ao nascer, o mal será destruído naturalmente com eles, antes da emoção surgir. Mas se os pensamentos perdurarem é normal que o mal também continue a crescer.
210. Sem a contrição do coração é impossível escapar ao mal. Ora, aquilo que parte o coração é a tripla abstinência, ou seja, a abstinência de sono, de alimento e de relaxamento corporal. O excesso destas três coisas leva, com efeito, ao amor pelo prazer. E o amor pelo prazer acolhe os maus pensamentos: ele se opõe à prece e ao serviço que nos é imputado.
[107] Cf. Gênesis XXII, 1 e ss.
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211. Se acontecer de você ser encarregado de comandar seus irmãos, assuma seu cargo e não se cale, por causa dos seus contraditores, quanto àquilo que deve ser feito. Nos que lhe obedecerem estará sua recompensa, para virtude deles. Quanto aos que não o escutarem, perdoe-lhes do mesmo modo, e você receberá o perdão d'Aquele que disse: “Perdoe e será perdoado [108]”. 393
212. Todo acontecimento é como um mercado: quem sabe negociar ganhará muito; quem não sabe, perderá.
213. Não force quem não obedece logo de início, e não discuta com ele, mas tome para si o ganho que ele rejeitou. Você ganhará mais tendo paciência do que o corrigindo.
214. Quando o prejuízo sofrido por um recai sobre muitos, então não é preciso mais ter paciência, nem buscar o próprio bem, mas o bem de todos, a fim de que todos sejam salvos. É por isso que uma virtude múltipla é mais útil do que uma virtude singular.
215. Se cairmos num pecado, qualquer que seja, e não nos afligirmos na medida correspondente, cairemos outra vez facilmente na mesma armadilha.
216. Assim como uma leoa não se aproxima afetuosamente de uma novilha, também a impudência não é capaz de acolher com alegria a tristeza segundo Deus.
217. Assim como a ovelha não cruza com o lobo para ter cordeirinhos, também as penas do coração não podem unir-se à saciedade para engendrar as virtudes.
218. Ninguém consegue experimentar a pena e a tristeza segundo Deus se primeiro não amar aquilo que as suscita.
219. O temor a Deus e a condenação inclinam à tristeza. A temperança e as vigílias combinam com o sofrimento.
[108] Mateus VI, 14.
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220. Aquele que não se deixa corrigir pelos mandamentos e as exortações da Escritura será conduzido com o chicote do cavalo e a espora da mula [109]. E se os recusar será levado pelas rédeas e com os freios nos maxilares [110]. 394
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221. Quem sucumbe facilmente às pequenas tentações, será facilmente sujeitado pelas grandes. Mas quem resiste às pequenas resistirá às grandes, com a ajuda do Senhor.
222. Não tente, censurando-o, ser útil ao que se glorifica de suas virtudes. Pois o mesmo homem não consegue amar ao mesmo tempo a ostentação e a verdade.
223. Toda palavra de Cristo manifesta a misericórdia, a justiça e a sabedoria de Deus. Aqueles que se regozijam em ouvir recebem seu poder. É por isso que aqueles que são desprovidos de sua misericórdia e de sua justiça e que não têm nenhum prazer em escutar, não puderam compreender a sabedoria de Deus e chegaram a crucificar Aquele que a ensinava a eles. Também nós, examinemos se nos regozijamos em escutá-lo [111]. Pois ele próprio disse: “Quem me ama, observará meus mandamentos; meu Pai o amará e também eu o amarei e me revelarei a ele [112]”. Podemos ver assim como ele escondeu sua revelação nos mandamentos. O mais fundamental dos mandamentos é o amor a Deus e ao próximo, que é suscitado pela abstenção das coisas materiais e pela hesíquia dos pensamentos. 396
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224. O Senhor, sabendo disto, nos prescreveu: “Não se inquietem pelo amanhã [113]”, e com razão. Pois como é possível a alguém que não se livrou das coisas materiais e das preocupações que elas trazem livrar-se dos maus pensamentos? Como alguém que está presa de pensamentos poderá ver o pecado que eles encobrem? Este pecado é na alma trevas e brumas, e tem sua origem nos pensamentos e nas más ações. Com efeito, o diabo tenta o homem por meio de sugestões, sem violência, permitindo-lhe entrever a origem do pecado. E o homem se deixa prender com complacência, por amor ao prazer e à vanglória. Pois mesmo que, pelo discernimento, ele não o queira, ele se atirará ao prazer e o consentirá. Quanto àquele que não vê o pecado que o envolve, como poderá ele orar para ser purificado? E se ele não for purificado, como encontrará o lugar da natureza pura? E, se ele não o encontrar, como poderá ver a mansão interior de Cristo, ainda que sejamos nós a morada de Deus, como dizem os profetas, os evangelistas e os apóstolos [114]? 398
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225. É preciso, portanto, buscar a morada em questão, e perseverar pela oração em bater à sua porta [115], a fim de que então, ou quando de nossa morte, o Mestre nos abra, e não nos diga, como aos negligentes: “Eu não sei de onde são vocês [116]”. E nós devemos não apenas pedir e receber [117], mas também conservar o que 400
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[109] Cf. Provérbios XXVI, 3. [110] Cf. Salmos XXXI, 9. [111] Cf. Marcos XII, 37 [112] João XIV, 21. [113] Mateus VI, 34. [114] Cf. Hebreus III, 6. [115] Cf. Mateus VII, 7. [116] Lucas XIII, 25.
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nos foi dado. Pois existem aqueles que perdem depois de haver recebido. Aqueles que foram instruídos tarde e os noviços não possuem mais do que um conhecimento simples ou mesmo uma experiência acidental das coisas de que tratamos. Quanto à prática assídua e paciente, até os anciãos cheios de piedade e experiência a possuem com dificuldade. Muitos a perderam por negligência, a buscaram novamente, esforçaram-se e a reencontraram. É isto que, também nós, jamais devemos deixar de fazer, até que a tenhamos obtido indefectivelmente.
226. Estes são, dentre muitos outros, alguns dos preceitos da lei espiritual que aprendemos, estes preceitos que o grande Salmista não se cansa de ensinar [118], a fim de que aqueles que cantam continuamente ao Senhor os guardem e sigam. A Ele a glória, o poder e a adoração, agora e por todos os séculos. Amém. 403
[117] Cf. Mateus VII, 8. [118] Cf. Salmos I, 2; CXIX, 16, 23, 71, 112 etc.
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TI, VI – MARCOS, O ASCETA – Carta ao monge Nicolas.
CARTA AO MONGE NICOLAS
Há algum tempo, preocupado com sua salvação e zeloso quanto à maneira como convém levar a vida segundo Deus, você veio nos ver para nos confiar seu estado e nos perguntar por quais penas deveria você passar para agarrar-se ao Senhor com um coração fervoroso, com todo o rigor de conduta e de temperança, como em toda ascese, e conduzindo o combate com vigílias freqüentes e uma ardorosa oração. Você nos contou quais as guerras e os enxames de paixões da carne que se levantavam na sua natureza corporal, dirigidas contra a alma, sendo a lei do pecado sempre contrária à lei de nosso intelecto [119]. E você deplorou ainda ser perturbado pelas paixões da cólera e da concupiscência. Você buscava um método e conselhos para descobrir por meio de que penas e de que combates você seria capaz de superar estas paixões mortais. 404
Naquele instante, de viva voz, nós o exortamos à caridade, e lhe demos conselhos e regras de sabedoria para o bem de sua alma, mostrando-lhe por meio de quais penas e de quais esforços ascéticos voltados para o discernimento e para a luz do conhecimento espiritual, a alma que se conduz de acordo com os Evangelhos pode, pela fé e com a ajuda da graça, superar os vícios do mal que nascem no coração, e especificamente as paixões de que falamos.
Pois contra as paixões a alma deve levar uma luta tanto mais ardente e constante na medida em que elas tentam manejá-la por meio de suas tendências e hábitos, e tentam arrastá-la cada vez mais, até que ela se submeta às energias carnais e irracionais da malícia, às quais ela obedecerá daí por diante, energias que a tomarão e capturarão pela lembrança contínua dos pensamentos e pela meditação do mal, uma vez que a alma consinta na entrada destes pensamentos no coração.
Uma vez que, desde há algum tempo, estivemos distantes de você, separados de corpos mas não de coração [120], e partimos para o deserto, para junto de verdadeiros operários e atletas de Cristo, a fim de lutarmos, também nós, por pouco que fosse, e combatermos junto com os irmãos que enfrentem as potências contrárias e que resistem corajosamente às paixões, afastemos a preguiça, rejeitemos para longe de nós toda negligência, e vistamo-nos de fervor e solicitude, desejosos de agradar a Deus. É assim que decidimos traçar por escrito e enviar à sua nobreza alguns breves conselhos e recomendações, para o bem de sua alma, a fim de que, a respeito das questões de que já lhe falei face a face, se você ler atentamente o pouco que escrevemos em nossa exortação, você possa dar os frutos espirituais, como se estivéssemos presentes. 405
Eis, meu filho, o que você deverá fazer para começar aquilo que lhe será útil para viver segundo Deus. É preciso, sem jamais os esquecer e deles lembrando-se sempre, recordar por meio de uma meditação contínua os dons providenciais e as benesses que Deus, em seu amor pelo homem, lhe concedeu e lhe concede para a salvação da sua alma. Não esqueça, cobrindo-se com o véu da malícia, tantas e tais benesses, e não perca a
[119] Cf. Romanos VII, 23. [120] Cf. 1 Tessalonicenses II, 17.
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sua lembrança por negligência, pois do contrário você passará o tempo que lhe resta a viver privado de todos os privilégios e de todo reconhecimento.
Estas recordações incessantes, picando o coração como um ferrão, o levarão continuamente à confissão, à humildade, à ação de graças de uma alma partida, a todo bom fervor e à resposta que ele deve dar em retribuição ao Senhor por meio dos comportamentos e das condutas, e por meio de todas as virtudes dignas de Deus, sem jamais cessar de meditar com toda a consciência as palavras do profeta: “Que retribuirei eu ao Senhor por tudo o que ele me deu? [121]” 406
Com efeito, quando a alma se recorda das benesses com que foi cumulada por Deus que ama os homens desde seu nascimento, ou de todos os perigos dos quais tantas vezes ela foi preservada, ou de todos os males nos quais ela tombou, ou das faltas voluntárias em que ela se deixou levar tantas vezes, ela lembra que não foi abandonada aos espíritos malfeitores, como o seria pela justiça, para sua perdição e morte, mas que, ao contrário, com sua paciência, o Mestre que ama os homens a guardou, passando por cima de suas faltas, acolhendo seu retorno, e que ele próprio a alimentou, protegendo-a e prevendo tudo, mesmo quando, ligada à paixão, ela voluntariamente pôs-se a serviço dos seus inimigos, os espíritos do mal. E ela se recorda de que no final, por uma decisão de sua bondade, ele a conduziu sobre a via da salvação, colocou em seu coração o encanto da vida ascética, lhe deu forças para abandonar o mundo e as ilusões dos prazeres e da carne com alegria, vestiu-a com o hábito angélico da ordem dos ascetas, e lhe permitiu ser recebida pelos homens santos na comunhão de sua fraternidade. Quem, recordando estas benesses na pureza de sua consciência, não guardaria constantemente um coração partido? Prevenido pelas garantias de tantas benesses, sem ter feito antecipadamente nada de bom, não manterá ele sempre uma firme esperança?
Eu digo a mim mesmo que se, sem que eu próprio tenha feito nada de bom, mas ao contrário tendo cometido diante dele numerosos pecados e vivido em meio às impurezas da carne e a tantos outros males, ele não me viu segundo as minhas faltas nem me tratou de acordo com as minhas iniqüidades [122], mas, em vista da salvação, dotou-me de tão grandes dons e tão grandes graças, se eu daqui em diante me consagrar inteiramente a servi-lo com toda a pureza da conversão e toda a retidão das virtudes, de quantos outros bens e graças espirituais não me julgará digno ele, dando-me a força para realizar a boa obra sobre este caminho pelo qual me conduz? 407
É por isso que quem guarda sempre em si tal pensamento e jamais esquece as benesses de Deus, desconfia de si mesmo, se corrige e se engaja com ardor em todas as boas asceses da virtude e em todas as obras de justiça, sempre disposto, sempre pronto a fazer a vontade de Deus.
Filho bem-amado, que pela graça de Deus foi dotado de compreensão natural, guarde sempre em si mesmo esta meditação e este bom estudo. Não se deixe ensombrecer pelo esquecimento maléfico. Não permita que a distração esvazie seu intelecto e o desvie da vida. Não deixe a ignorância, causa de todos os males, [121] Salmos CXVI, 3. [122] Salmos CIII, 10.
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entenebreça seu pensamento. Recuse ser seduzido pela despreocupação, arrastado pelo prazer da carne e vencido pela gulodice. Não deixe que a concupiscência capture seu intelecto, nem que o suje o consentimento dos pensamentos de prostituição, nem se deixe vencer pela cólera que engendra o ódio ao irmão. E não vá, sob algum pretexto miserável e digno de pena, entristecer os outros ou a si mesmo, cultivar a lembrança dos maus pensamentos contra o próximo, desviar-se da prece pura dedicada a Deus, reduzir seu intelecto à servidão, e suspeitar do próximo que possui uma alma igual à sua. Não acorrente sua consciência às expressões irracionais dos cuidados da carne. Não se atire aos maus espíritos aos quais você cedeu para que eles o instruíssem até que, desprovido de toda certeza, arrasado pela tristeza e pela negligência, incapaz de progredir em Deus devido às faltas anteriores, o intelecto se pôs novamente a buscar, em profunda humildade, o começo da via da salvação. Assim, aceitando os muitos sofrimentos das orações e vigílias noturnas, apagando suas faltas pela confissão diante de Deus e do próximo, ele reencontrará a sobriedade e a vigilância e, pela graça de Deus, o flamejar das iluminações do conhecimento evangélico, sabendo que quem não se entrega inteiramente à cruz, com um sentimento de humildade e autonegação, quem não se coloca abaixo de todos os outros para ser pisado, desdenhado, desprezado, ultrajado, ofendido, abandonado, a tudo suportando com alegria no amor ao Senhor, quem não busca jamais as coisas humanas nem a glória, nem as honras, nem os elogios, nem os prazeres da comida, da bebida e das vestimentas, não pode se tornar um verdadeiro cristão.
Uma vez que nos propusemos a estes combates, lutas e coroas, até quando, sob a cobertura de uma piedade formal, iremos nos rir do mundo, deixando-o acreditar que estamos a serviço do Senhor, nós que não somos julgados pelos homens da mesma forma como aparecemos aos olhos d'Aquele que conhece os segredos dos corações? Pois muitos nos consideram santos, enquanto que ainda agora nos comportamos como selvagens. Na verdade, temos a aparência de piedade, mas diante de Deus ainda não adquirimos aquilo que dá força a ela [123]. Muitos nos consideram virgens e puros, quando para Aquele que conhece os segredos dos corações somos internamente sujos das impurezas do consentimento aos pensamentos de prostituição, mergulhados no lodaçal aonde se ativam as paixões, e por causa de nossa ascese sempre formal, o intelecto cego, somos ainda mais arrastados para trás pelos elogios dos homens. 408
Até quando caminharemos na vaidade do intelecto sem tomarmos sobre nós a sabedoria evangélica, sem reconhecermos aonde se encontra a conduta consciente, a fim de buscá-la com fervor e descobrirmos a liberdade que esta consciência dá? Mas nós permanecemos ainda naquilo que acreditamos ser a única justiça do homem exterior. Na falta de um verdadeiro conhecimento, nós nos enganamos a nós mesmos seguindo observações que não são mais do quem exteriores, pretendendo agradar aos homens e perseguindo a glória de suas honras e de seus elogios.
Mas certamente ele virá, Aquele que desvela os segredos das trevas e revela os desígnios dos corações, o Juiz que ninguém engana, Aquele que não se deixa levar nem pelo temor diante do rico, nem pela piedade diante do pobre, Aquele que ergue o hábito exterior e mostra a verdade escondida lá dentro, Aquele que junto a seu Pai, em presença dos anjos, coroa os verdadeiros combatentes e os verdadeiros atletas, que se conduzem segundo sua consciência. Mas os que portam o hábito mas se revestem da piedade formal, aqueles que expõem diante dos homens uma conduta puramente aparente, que assim se mantém vaidosamente e enganam a si mesmos [124], a estes ele levará cativos diante da Igreja do alto, a Igreja dos santos, e de toda a assembleia 409
[123] Cf. 2 Timóteo III, 5. [124] Cf. Gálatas VI, 3.
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celeste. E ele os devolverá assim, cobertos de vergonha, às trevas exteriores, como as virgens tolas [125]. Estas haviam guardado a virgindade exterior, mas não é por isso que foram consideradas culpadas. Elas também possuíam uma parte de óleo em suas vasilhas, ou seja, elas haviam também recebido conjuntamente algumas virtudes, algumas ações exteriores corretas e algumas graças. É por isso que suas lamparinas ainda permaneceram algum tempo acesas. Mas pela negligência, pela ignorância, pelo descuido, elas faltaram com a prudência e não reconheceram precisamente o enxame de paixões escondido no interior e dirigido pelos espíritos do mal. Elas deixaram suas reflexões se corromperem sob as energias contrárias. Elas se sujaram ao consentir os pensamentos, secretamente seduzidas e vencidas pela pior inveja, pelo ciúme inimigo do bem, as discórdias, as disputas, a raiva, a cólera, o azedume, o rancor, a hipocrisia, a irritação, o orgulho, a vanglória, a preocupação em agradar aos homens, a autossuficiência, o amor ao dinheiro, a acídia, os desejos da carne que suscitam o prazer em pensamento, a perfídia, a presunção, o desencorajamento, a tristeza, a preguiça, o sono, a ostentação, a pretensão, a insolência, o autoelogio, a avidez, o deboche, a cupidez, o desespero mais duro que tudo, e até os menores efeitos do mal. Quanto às suas boas obras e à sua conduta casta, também aí eles fizeram de tudo para aparecer diante dos homens e recolher seus elogios. Se elas tivessem compartilhado certas graças, as teriam vendido aos espíritos da vanglória e do desejo de agradar e, entregando-se às outras paixões, teriam misturado seus bons hábitos aos maus pensamentos da carne. É por isso que o que elas fizeram era inaceitável e impuro, como o sacrifício de Caim [126]. Elas foram privadas da alegria do Esposo e excluídas do lugar celeste das bodas. 410
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Eis, portanto, aquilo que é preciso considerar, discernir, experimentar, para saber e compreender em que estado estamos, e nos corrigirmos enquanto temos ainda tempo para arrependimento e conversão. Também nossas boas obras, cumpridas com toda a pureza, serão verdadeiras e límpidas, e não se misturarão às coisas da carne, para que não sejam rejeitadas como um sacrifício defeituoso, por desrespeito a Deus, negligência e falta de verdadeiro conhecimento. Após havermos suportado as penas da virgindade, da temperança, das vigílias, dos jejuns e da hospitalidade, quando terminarmos nossos dias, evitaremos deste modo que, por causa das paixões de que falamos, aquilo que considerávamos como obras de justiça não se mostre um sacrifício defeituoso que não será recebido por Cristo, o sacerdote mais alto do que o céu.
É preciso assim, meu filho, que quem quiser tomar a cruz e seguir a Cristo vigie em primeiro lugar para adquirir o conhecimento e a inteligência, sondando continuamente em si mesmo os pensamentos, pensando sempre na salvação, cultivando a consciência, esforçando-se por ir em direção a Deus, interrogando os servidores de Deus que estão com ele de coração e alma e que levam adiante o mesmo combate, se não quiser, ignorando por onde caminha, andar pelas trevas sem a luz da lamparina. Pois quem vive como quer, na idiorritmia [127], sem o conhecimento evangélico, e vai pelo caminho sem ninguém que o guie, encontrará muitos obstáculos, cairá em muitos grotões e armadilhas do maligno, se perderá frequentemente, correrá múltiplos perigos, e não saberá que fim lhe aguarda. São numerosos, com efeito, os que passaram por muitas penas e asceses, que suportaram por Deus a vida dura e muitas aflições, mas que, pela idiorritmia, a falta de discernimento, a recusa à ajuda do próximo, viram anulados e tornados inúteis tantos sofrimentos. 412
[125] Cf. Mateus XXV, 1-12. [126] Cf. Gênesis IV, 5. [127] Idiorritmia: designa a independência irresponsável do monge que não possui outra medida senão sua própria
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conveniência.
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Portanto você, filho bem-amado, como já lhe disse no início desta exortação, não vá, levado pelas enganações da malícia e da negligência, esquecer as benesses com que o cumulou o Deus adorado que ama os homens. Mas os bens que você recebeu desde seu nascimento até agora, sejam corporais ou espirituais, conserve-os diante dos seus olhos, medite sobre eles, repasse-os na memória, como foi dito: “Não esqueça nenhum de seus benefícios [128]”, a fim de que seu coração seja tranqüilamente levado a temer e amar a Deus, a ele respondendo, o quanto for possível, com uma vida rigorosa, uma conduta virtuosa, uma consciência pia, palavras afáveis, uma fé direita, um coração humilde, numa palavra, consagrando-se inteiramente a ele, cheio de pudor à lembrança dos bens que lhe confiou o bom Mestre que ama os homens. Então, dele próprio, ou melhor, com a ajuda e o impulso do alto, seu coração se abrirá à ferida do amor e do desejo [129], porque as maravilhas que ele não fez por outros muito melhores do que você, ele as fez para você em seu inefável amor pelo homem. 413
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Portanto, esforce-se para manter sempre na memória estes bens que lhe foram concedidos por Deus. Em especial, lembre-se sempre desta grande e maravilhosa graça e deste benefício que ele lhe concedeu, como você nos contou, quando, juntamente com sua mãe, você fazia o périplo pelos Lugares Santos a caminho de Constantinopla, e uma terrível e irresistível tempestade se levantou em plena noite, desencadeando ondas enormes, tendo perecido no abismo todos os passageiros, os marinheiros e até sua própria mãe, enquanto que, pela incompreensível potência divina, apenas você, junto com outros dois, foram lançados à praia e salvos. Lembre-se como a providência lhe permitiu ir a Ancora, aonde você foi recebido por um homem livre com amor paternal, que o uniu numa mesma afeição a Epifânio, seu piedoso filho, de tal maneira que, conduzidos os dois por um santo homem, vocês alcançaram o caminho da salvação e foram acolhidos pelos santos servidores de Deus como crianças nobres.
A todas estas benesses que lhe vieram de Deus, o que tem você de digno para responder Àquele que atraiu sua alma para a vida eterna? Pois daqui para diante, o que é justo, é que você não viva mais para si mesmo, mas para Cristo que morreu e ressuscitou por você [130], esforçando-se para alcançar todas as virtudes da justiça, a observação dos mandamentos, procurando sempre a vontade de Deus, aquilo que é bom, que o agrada, aquilo que é perfeito [131], com todas as suas forças. 415
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Meu filho, submeta apenas a sua juventude à palavra de Deus, como ela própria lhe pede. Ofereça seu corpo em sacrifício vivo, santo, que agrade a Deus, como o culto espiritual [132]. Moderando suas necessidades, bebendo pouco, passando as noites em vigília, você esfriará e secará a umidade dos desejos da carne, a fim de que também você possa dizer: “Eu me tornei como gelo, não esqueci seus mandamentos [133]”. 417
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[128] Salmos CIII, 2. [129] Desejo: tradução de epithymia, a primeira das três partes da alma. Trata-se da tensão que gera o amor do
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criado pelo incriado, ou do criado por si mesmo. [130] Cf. 2 Coríntios V, 15. [131] Cf. Romanos XII, 2. [132] Cf. Romanos XII, 1. [133] Salmos CXIX, 83. 415
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Sabendo que você é de Cristo, crucifique sua carne, como diz o Apóstolo, juntamente com suas paixões e desejos [134], e mortifique seus membros que estão sobre a terra [135], não apenas o ato da prostituição, mas toda impureza que age na carne sob o impulso dos maus espíritos. Pois não é somente até lá que aquele que quer receber a verdadeira virgindade, pura e perfeita, deve conduzir seu combate. Pois, segundo o ensinamento do Apóstolo, ele deve lutar para destruir até a marca e o movimento da própria paixão. E mesmo assim ele ainda não terá a plena certeza de estar recebendo em sua morada corporal, pela força de seu amor, a pura e angélica virgindade. Que ele reze para que desapareça até mesmo a lembrança do simples desejo do pensamento, lembrança que, independente do movimento e da energia corporal da paixão, vem como um sopro perturbar o intelecto. Mas não é possível chegar lá a não ser com o socorro do alto, o poder e os dons do Espírito, e no mínimo sendo julgado digno de receber tais graças. 419
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É assim que aquele que recebeu a coroa da virgindade pura e imaterial crucifica sua carne pelas penas da ascese e mortifica seus membros que estão sobre a terra pela tensão e a paciência da temperança. Ela destrói o homem exterior, o afina e extenua, ela o seca, a fim de que, pela fé, pelos combates e pela energia da graça, o homem interior se renove a cada dia [136], progrida para o melhor, cresça em amor e se vista de doçura, feliz pela exultação do Espírito, recompensado pela paz de Cristo, conduzido pela obrigação, guardado pela bondade, cercado pelo temor a Deus, iluminado pela consciência e pelo conhecimento, esclarecido pela sabedoria, guiado pela humildade. Renovado por meio de tais virtudes, o intelecto, sob a ação do Espírito, descobre em si mesmo a marca da imagem divina, compreende a inefável beleza espiritual de sua semelhança com o Mestre, e torna sua a riqueza da sabedoria da lei interior, que instrui e ensina por si só. 421
Portanto, meu filho, afine esta carne ainda jovem. Alimente a alma imortal, como dissemos. E por meio das virtudes de que falamos, renove o intelecto na sinergia do Espírito. Pois a carne embebida em sua juventude pelas comidas e o vinho é como um leitão pronto para ser imolado. Também a alma é imolada pelo fogo dos prazeres do corpo. E o intelecto, incapaz de resistir aos prazeres da carne, torna-se cativo do calor dos desejos maus. Pois o afluxo de sangue provoca o refluxo do Espírito. É preciso, sobretudo, que a juventude não toque no vinho, que ela ignore até mesmo seu odor. Senão, pelo duplo incêndio, provocado de dentro pela energia da paixão e de fora pelo vinho entornado e consumido, o prazer da carne expulsará para longe o prazer espiritual fornecido pela pena e a compunção, e trará para o coração a perturbação e a dureza. Mais ainda, que, pelo desejo espiritual, a juventude recuse mesmo beber água até a saciedade. Pois a privação de água em muito ajuda a manter a castidade. Experimente isto na prática. É pela própria experiência que você receberá a plena certeza.
Pois não estamos lhe dando estas leis e regras porque queremos lhe impor o jugo do constrangimento, mas nós as recomendamos e aconselhamos afetuosamente, como um bom projeto e um bom método para alcançar a verdadeira virgindade e uma castidade rigorosa. Deixamos a você a liberdade de fazer o que quiser.
E agora falemos um pouco a respeito desta paixão irracional da cólera, que devasta a alma por inteiro, a coloca em confusão e trevas, e que, quando se levanta e se mostra, torna o homem, sobretudo aquele que se deixa levar facilmente, semelhante às feras. Singularmente, é no orgulho que esta paixão se enraíza, se [134] Cf. Gálatas V, 24. [135] Cf. Colossenses III, 5. [136] Cf. 2 Coríntios IV, 16.
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reconstitui e se fortifica. Na medida em que a árvore diabólica do rancor, da cólera e da fúria é regada pela água perniciosa do orgulho, ela floresce, cresce e dá em abundância os frutos da iniqüidade. Assim se edifica na alma a moradia inefável do maligno, que tem seu apoio e sua força nas fundações do orgulho. Assim, se você notar que a árvore da iniqüidade – quero dizer, a paixão do rancor, da cólera e da fúria – seca em você e se torna estéril, a fim de que o machado do Espírito venha cortá-la e atirá-la ao fogo, segundo as palavras do Evangelho [137], e destruí-la junto com todos os males; se você quiser que seja destruída a moradia da iniqüidade, que o maligno edificou maldosamente em sua alma, trazendo para ela, por qualquer motivo, por nossos atos e palavras, em nossos pensamentos, diferentes pretextos racionais e irracionais que são outras tantas pedras, preparando assim na alma sua morada de malícia, fundamentando-a a consolidando-a por meio dos pensamentos de orgulho; se, digo eu, você quiser que esta casa seja destruída e arruinada, tenha constantemente, sem esquecê-la jamais, a humildade do Senhor em seu coração: quem ele é, o que ele se tornou para nós, de que alturas ele desceu, estas alturas de divina luz tanto quanto possível revelada às essências do alto e glorificada nos céus por todas as naturezas espirituais, anjos, arcanjos, tronos, dominações, principados, poderes, querubins e serafins, e outras potências intelectuais inefáveis cujo nome não chegou a nós, conforme o enigma do Apóstolo [138]. Lembre-se em que abismo de humilhação dos homens ele desceu por sua indizível bondade, em tudo fazendo-se semelhante a nós que estávamos nas trevas e nas sombras da morte [139], cativos desde a transgressão de Adão, e submetidos ao domínio do inimigo pelo efeito das paixões. 422
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Enquanto estávamos infelizes em tal cativeiro, sob o império amargo da morte que não podíamos ver, o Mestre de toda criação visível e invisível não teve opróbrio. Ele humilhou a si mesmo, assumindo o homem submetido às paixões da infâmia e da concupiscência e condenado pela sentença do Mestre. Em tudo ele se fez semelhante a nós, mas sem o pecado [140], ou seja, sem as paixões da infâmia. Pois as penas infligidas ao homem pela sentença do Mestre depois do pecado da transgressão – a morte, o sofrimento, a fome, a sede e as demais – ele as tomou todas sobre si, tornando-se aquilo que somos, para que nos tornemos aquilo que ele é. O Verbo se fez carne [141], para que a carne se torne Verbo. De rico ele se fez pobre, para nos enriquecer com sua pobreza [142]. Em seu grande amor pelo homem, ele se fez semelhante a nós, a fim de que sejamos semelhantes a ele em todas as virtudes. Com efeito, depois que Cristo esteve entre nós o homem criado à imagem e semelhança se renovou verdadeiramente, pela graça e o poder do Espírito, alcançando enfim a medida do amor perfeito, que atira fora todo temor [143] e que não pode mais estar submetido ao golpe da queda, pois o amor não tomba jamais [144]. “Deus é amor, disse João, e quem permanece no amor permanece em Deus [145]”. Os apóstolos foram considerados dignos desta medida do amor, como também o foram aqueles que se dedicaram às virtudes e que foram levados diante do Senhor até a perfeição, seguindo a Cristo por toda a vida num desejo perfeito. 425
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É preciso então que você recapitule continuamente, sem nada esquecer, a enorme humilhação de que se revestiu o Senhor por afeição a nós, em seu amor pelo homem: a moradia do Verbo no seio de Deus, sua assunção como homem, seu nascimento de uma mulher, o progressivo crescimento de seu corpo, as [137] Cf. Mateus III, 10. [138] Cf. Efésios I, 21. [139] Cf. Isaías IX, 2. [140] Cf. Hebreus IV, 15. [141] João I, 14. [142] 2 Coríntios VIII, 9. [143] Cf. 1 João IV, 18. [144] Cf. 1 Coríntios XIII, 8. [145] 1 João IV, 16.
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repreensões, os ultrajes, os insultos, as gozações, as injúrias, o chicote, as cusparadas, o abandono espiritual, a ironia, o manto púrpura, a coroa de espinhos, a sentença das autoridades contra ele, os gritos dos Judeus iníquos, os homens de sua raça: “Levem-no, levem-no, crucifiquem-no [146]”, a cruz, os pregos, a lança, a bebida de vinagre com fel, o triunfo dos pagãos, a ironia daqueles que passavam dizendo: “Se você é filho de Deus, desça da cruz e acreditaremos em você [147]”, e todos os outros sofrimentos que ele suportou por nós: a crucificação, a morte, o enterro por três dias num túmulo, a descida aos infernos. E depois os frutos destes sofrimentos, e que frutos! A ressurreição dentre os mortos, o inferno e a morte abandonados pelas almas que retornaram com o Senhor, a subida aos céus, o assento à direita do Pai, a honra e a glória acima de toda autoridade, de todo poder, de todo nome que seja possível pronunciar [148], a adoração de todos os anjos ao primeiro nascido de entre os mortos [149], em razão de seus sofrimentos, segundo as palavras do Apóstolo: “Que haja em vocês os mesmos sentimentos que em Jesus Cristo, ele que, embora de condição divina, não guardou para si aquilo que o igualava a Deus, mas se despojou de tudo para assumir a condição de escravo. Ele se tornou igual aos homens e se comportou como um homem. Depois ele humilhou a si mesmo, obediente até a morte, e morte sobre a cruz. É por isso que Deus o exaltou e lhe deu o nome que está acima de todo nome, a fim de que ao nome de Jesus Cristo todo joelho se dobre, nos céus, na terra e nos infernos [150]”. 431
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Eis, segundo a justiça divina, a que glória e a que altura as razões que mencionamos levaram o HomemDeus. Portanto, se em seu desejo e em suas disposições, você guardar em seu coração estas lembranças sem jamais as esquecer, você não será dominado pela paixão do rancor, da cólera e da fúria. A partir do momento em que os fundamentos da paixão do orgulho foram transformados pela humildade de Cristo que você recapitular em si, todo o edifício da iniqüidade, da fúria, da cólera e da tristeza ruirá sem dificuldade, como que por si só. Pois qual coração de pedra, por mais duro que seja, não será partido, trespassado, humilhado, se guardar constantemente em seu intelecto esta humilhação que a divindade do Filho único assumiu por todos nós, e a lembrança dos sofrimentos de que falamos? Não fará ele de si mesmo terra e cinzas [151], não se deixará ele pisotear por todos os homens, como diz a Escritura [152]? E se a alma é humilhada e partida à força de considerar assim a humildade de Cristo, que furor poderá dominá-la, que cólera, que rancor poderão carregá-la? Mas naturalmente o esquecimento desses pensamentos que nos assistem e nos vivificam, sua irmã a negligência e seu auxiliar e parelha a ignorância, estas paixões da alma mais profundas e mais interiores, mais difíceis de descobrir e de corrigir, que velam e entenebrecem a alma sob uma perigosa inconseqüência, preparam as paixões do mal para operar e se ocultar na alma, levando para aí o desrespeito e a negligência do bem, e permitindo a cada paixão entrar e se exercer sem perigo e sem dificuldade. Com efeito, uma vez recoberta a alma pelo esquecimento mau, pela negligência fatal e pela ignorância, a mãe e nutriz de todos os males, o infeliz intelecto, cegado, é facilmente acorrentado a tudo o que vê, pensa e escuta. Se, por exemplo, ele enxerga a beleza de uma mulher, ele é imediatamente atingido pela concupiscência da carne. E se depois disto ele rememora o que viu, escutou ou tocou com paixão ou com prazer, as lembranças gravarão nele imagens, pela impressão que aí deixam os pensamentos e a má meditação. Desta maneira elas sujam, sob a influência do espírito da prostituição, o pobre intelecto vítima da paixão. 436
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[146] Mateus XXVII, 39-40. [147] Mateus XXVII, 39-40. [148] Cf. Efésios I, 21. [149] Cf. Hebreus II, 6-10. [150] Filipenses II, 6-10. [151] Cf. Gênesis XVIII, 27; Jó XLII, 6; Eclesiástico XVII, 32. [152] Cf. 2 Reis XIX, 26.
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A partir do momento em que a carne, se está cheia de saúde, de juventude, de seiva, é rapidamente levada à paixão por tais lembranças, e, estimulada pela concupiscência, faz seu trabalho, seja em sonhos, seja acordada, o homem se atira à impureza, mesmo se aparentemente ele não teve relação com uma mulher. Tal homem pode ser considerado por muitos como casto, virgem e puro, e até mesmo tido como santo, mas para Aquele que enxerga os segredos do coração, ele é considerado impuro, debochado, adúltero. E será com toda justiça que ele será condenado neste dia, se ele não se lamentar, não tomar seu luto, não ressecar a carne pelo jejum, as vigílias e as orações constantes, e se, curando e corrigindo o intelecto com santas recordações e a meditação da palavra divina, ele não oferecer um justo arrependimento a Deus, diante de quem ele pensou e cumpriu o mal. Pois jamais morre a palavra: “Em verdade vos digo, todo homem que olhar uma mulher com desejo já cometeu adultério com ela em seu coração [153]”. É por isso que convém, sobretudo aos jovens, se possível, jamais entreter-se com mulheres, mesmo que elas sejam consideradas santas. Se é possível igualmente viver separado dos homens, aquele que puder viver assim levará adiante um combate mais leve e sentirá mais claramente seu próprio progresso, sobretudo se for rigorosamente atento a si mesmo, se moderar suas necessidades, se se contentar em beber apenas água, e pouca, se velar muito e se consagrar à oração, dedicando-se inteiramente ao combate, esforçando-se por freqüentar pais espirituais experientes, vivendo e se deixando guiar por eles. 438
Pois é perigoso viver isolado, em idiorritmia, sem testemunhas, e com homens sem experiência no combate espiritual. Estes homens estão dedicados a outra espécie de combate. Pois são numerosos os embustes e as enganações ocultas do mal, e variadas as armadilhas colocadas de todos os lados pelo inimigo. Então, é preciso se esforçar e se impor viver, se possível, com homens de conhecimento, ou no mínimo de encontrálos regularmente. Assim, mesmo que você não possua em si a lâmpada do verdadeiro conhecimento, por ser ainda uma criança e não ter atingido a perfeição da idade espiritual, se você fizer o caminho com alguém que tenha a lâmpada, você não caminhará nas trevas, você não estará exposto ao perigo das redes e armadilhas, e não cairá diante das feras espirituais que, escondidas nas pastagens das trevas, assaltam e despojam aqueles que andam no escuro, sem a lâmpada espiritual da palavra divina.
Se então, meu filho, você quiser adquirir sua própria lamparina de luz e de conhecimento espirituais, para poder avançar sem tropeços na noite profunda deste século, e obter do Senhor que ele dirija sua marcha, para possuir a firme vontade de seguir o caminho do Evangelho, segundo as palavras do profeta [154], ou seja, de abraçar com ardente fé os preceitos evangélicos mais perfeitos, e partilhar dos sofrimentos do Senhor pelo desejo e a oração, eu vou lhe mostrar um método maravilhoso e uma via espiritual que não requer nem penas nem combates corporais, mas que pede somente as penas da alma, a atenção do intelecto, uma reflexão contínua, com o recurso da assistência do temor e do amor a Deus. Seguindo este caminho, você poderá facilmente colocar em fuga a falange dos inimigos, a exemplo do bem-aventurado Davi que, pela fé e a confiança em Deus, foi ao encontro de um gigante estrangeiro [155] e derrotou assim facilmente, junto com seu próprio povo, a multidão de inimigos. 439
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Este é o tema fundamental de nosso discurso: imagine que existem três gigantes estrangeiros, poderosos e fortes. É sobre eles que está apoiado o poder hostil do Holofernes espiritual. E será após sua destruição e [153] Mateus V, 28. [154] Cf. Salmo XXXVII, 23. [155] Cf. 1 Samuel XVII, 45.
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TI, VI – MARCOS, O ASCETA – Carta ao monge Nicolas.
morte que todo o poder dos espíritos do mal naufragará enfim. Os que são considerados como estes três gigantes do maligno são a ignorância, a mãe de todos os males, o esquecimento, seu irmão, auxiliar e associado, e por fim a negligência, que tece dentro da alma um véu tenebroso de nuvens negras, que consolida e fortalece os dois outros, dando-lhes consistência e enraizamento e mantendo o mal na alma cada vez mais descuidada. É sob o efeito da negligência, do esquecimento e da ignorância que se fortalece e cresce aquilo que sustenta as demais paixões. Pois os três se ajudam mutuamente e não são capazes de se sustentar uns sem os outros. Eles surgem assim como a força das potências adversárias e o vigor dos príncipes do maligno. É por meio deles, de fato, que toda a armada dos espíritos do mal se insinua, se instala e se coloca para cumprir seus desígnios. Mas sem eles, nada do que mencionamos consegue se manter.
Se então você pretende obter a vitória contra as paixões de que falamos, e expulsar a falange dos estrangeiros espirituais, pela prece e com a ajuda de Deus, penetre em si mesmo, mergulhe nas profundezas de seu coração e siga as pegadas destes três poderosos gigantes do diabo, o esquecimento, a negligência e a ignorância, que sustentam os estrangeiros espirituais, e por meio dos quais as outras paixões se insinuam, agem, vivem e se fortalecem nas almas ignorantes e nos corações que amam o prazer. Estes males, que a maior parte ignora até a própria existência, e que entretanto são mais perigosos do que os outros, você os descobrirá agora por um atenção redobrada, pela aplicação de seu intelecto, pela graça do alto e pelas armas da justiça que se opõem ao mal, ou seja, a boa memória, causa de todos os bens, o conhecimento iluminado, pelo qual a alma desperta expulsa as trevas da ignorância, e por fim, pelo desejo mais nobre, o desejo de salvação que prepara e apressa a alma.
É revestido com estas armas da virtude, e com o poder do Espírito Santo, que, com todas as preces e suplicações, nobre e corajosamente, você vencerá o combate contra os três gigantes dos estrangeiros espirituais. Pela boníssima memória de Deus, considerando continuamente o que é verdadeiro, o que é nobre, o que é justo, o que é puro, tudo o que existe de bom na virtude e no louvor [156], você afastará de si o esquecimento que está no fundo de todo mal. Pelo conhecimento celeste iluminado, você anulará a ignorância perniciosa que fundamenta as trevas. Enfim, pelo desejo pleno de virtude e de beleza, você expulsará a negligência atéia que enraíza o mal na alma. Porém você não adquirirá estas três virtudes pelo esforço da pura e simples vontade, mas pelo poder de Deus e a sinergia do Espírito Santo, graças a uma forte concentração e à prece. Assim você poderá escapar aos três poderosos gigantes do maligno que mencionamos. 441
Com efeito, é pela graça ativa que a obriga a permanecer na alma e guardá-la atentamente, que a harmonia do verdadeiro conhecimento, da lembrança das palavras de Deus e do bom desejo apagará da alma e reduzirá a nada os traços do esquecimento, da ignorância e da negligência. A partir de então, nela reinará a graça, em Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.
[156] Cf. Filipenses IV, 8.
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TOMO I, VOLUME II
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HESÍQUIO DE BATHOS
Nosso santo Padre Hesíquio de Batos, sacerdote da Igreja de Jerusalém, viveu sob Teodósio do Jovem, prodigou seu ensinamento e faleceu em 333. De seus numerosos escritos, só inserimos aqui o tratado, dividido em 203 capítulos, sobre a nepsis sobre a atenção do intelecto e sobre a guarda do coração. Um tratado de grande proveito, inclusive para os noviços. Eis o que diz dele Photius: “O vigésimo segundo capítulo de Hesíquio, sacerdote de Jerusalém, contém em si todo o tema do livro, um livro muito útil para aqueles que levam a vida na ascese em vista da herança dos céus. Tudo aí é exposto com grande clareza. De resto, ele está composto de tal maneira que pode convir tanto aos homens que não estão voltados para combate exigido pela razão, como para aqueles que claramente optaram pelo sofrimento e as penas e que se esforçam para trabalhar a ascese.”
Para Nicodemo o Hagiorita, assim como para a Patrologia de Migne, o autor das duas centúrias “sobre a vigilância e a virtude” seria Hesíquio de Jerusalém, que viveu no século V. Ora, em vista do título de certos manuscritos e diante das influências manifestas dos Padres do século VII, tais como João Clímaco e Máximo o Confessor, admite-se hoje em dia que o homem que escreveu estes capítulos, provavelmente entre os séculos VII e VIII, foi um monge – sem dúvida um higoumeno, um abade – do mosteiro da Sarça Ardente no Sinai. Daí provém seu nome Hesíquio o Sinaíta, ou Hesíquio de Batos, palavra grega que significa “sarça”.
De resto, estamos aqui menos diante do testemunho de um homem do que diante do ensinamento de uma escola monástica, indubitavelmente a do Sinai, escola-mãe dos mosteiros cenobíticos, que aliava o conhecimento do deserto à experiência da comunidade. Não bastava mais ao monge dedicar-se às virtudes do deserto – a renúncia, a solidão, o silêncio –, era preciso viver estas virtudes junto com os outros, diante deles, portanto enraizando-as em pleno coração, como o nome e a graça de Jesus implantados no próprio lugar em que foi dada a Lei. Esta é a origem e o alcance de tal ensinamento.
A obra é exemplar: de uma simplicidade transparente. Toda a Filocalia é como que recolhida na cripta da purificação do coração. A ascese do corpo se afina em ascese do intelecto. Tornar monge o homem exterior é, no limite, coisa fácil, coisa da lei, assumida pela natureza ou pela instituição. Mas tornar duravelmente monge o homem interior implica um estado de graça e de confiança, o apelo contínuo a Deus e, antes de tudo, o exercício da
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real humildade: amplificar em tudo as virtudes do outro e considerar a si mesmo como terra e cinzas. As finalidades (a beleza, o arrebatamento) são indicadas sem mais. Elas estão implícitas, mas estão como que fora do campo que pode ser trabalhado. Tudo é concentrado na “guarda do intelecto” às “portas do coração”. Os capítulos de Hesíquio vão ilustrar, como facetas correspondentes, um “método espiritual” de purificação, fundamental na Filocalia. Neles acham-se claramente descritos os três modos da ascese – a nepsis, a hesíquia e a oração de Jesus – perfeitamente distintos e perfeitamente solidários, porque engendram-se mutuamente, sendo que nenhum é possível, concebível ou praticável sem os outros. Nenhuma técnica, mas uma lei espiritual que faz corpo com a graça do nome de Jesus. Eis como: 1) A nepsis – aqui traduzida como vigilância, mas que também significa sobriedade – é a virtude crucial da inteligência que não apenas evita toda sobrecarga, mas volta-se sobre si mesma (é o arrependimento, a metanoia) para se tornar nada mais que a total atenção à pureza do coração e chegar à transparência original e última, este novo Éden de onde o olho exercitado poderá ver daí em diante vindo de longe os começos da queda. São refutados, sufocados no ovo e rejeitados todos os pensamentos que o intelecto ativado pelos rudimentos do mundo destila.
2) A nepsis do intelecto conduz à hesíquia do coração, este repouso tranqüilo, este silêncio, o sinal em nós do estado divino que precede e segue a criação. Caminho de salvação impossível aos homens, mas possível a Deus. Daí a única coisa necessária: 3) Na hesíquia do coração vem subir e descer a prece de Jesus, o Kyrie eleison, “Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tem piedade de mim”. O intelecto, partido por ser privado do sustentáculo natural – e do derivativo – dos pensamentos, se transforma em invocação, “respira Cristo”, faz girar no “espaço do coração” o nome de Jesus, envolve o corpo, envolve o universo pelo nome d'Aquele que criou o mundo e o salva. O giro cósmico é aqui abarcado por outra rotação, interior, invisível, envolvente: o próprio amor.
A obra de Hesíquio é assim uma apologia da interioridade. Só nascemos no mundo para renascermos no coração, para fazermos “de cada dia, de cada hora, no mistério e na alegria, uma festa do coração”. Através do mundo se abre para cada um desde a origem a via real da ascese filocálica, mas também a porta estreita: “ser monge no coração”.
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TI, VII –HESÍQUIO DE BATHOS – Discurso, em forma de capítulos, sobre a sobriedade, a vigilância e a virtude para o bem da alma e sua salvação.
DISCURSO, EM FORMA DE CAPÍTULOS, SOBRE A SOBRIEDADE, A VIGILÂNCIA E A VIRTUDE PARA O BEM DA ALMA E SUA SALVAÇÃO.
1. A nepsis, sobriedade e vigilância, constitui um método espiritual que, com a ajuda de Deus, liberta inteiramente o homem dos pensamentos e das palavras apaixonadas e também das más ações, se for praticada por um bom tempo e arduamente. Ela fornece também, na medida do possível, um conhecimento seguro de Deus o Incompreensível, e abre os mistérios divinos e ocultos. Ela conduz ao cumprimento de todos os mandamentos de Deus, do Antigo e do Novo Testamento, e propicia todos os bens do século futuro. Ela consiste propriamente na pureza do coração, a qual, por causa de sua grandeza e de sua beleza (ou mais exatamente devido à nossa negligência), é tão rara entre os monges hoje em dia. É ela que Cristo beatificou quando disse: “Bem-aventurados os puros de coração, pois eles verão a Deus [1]”. Tal é a sua eminência. Ela se adquire a um alto preço. Praticada longamente, ela se torna um guia que nos conduz à via direita e que agrada a Deus. Ademais, ela nos permite acessar a contemplação, nos ensina a por em movimento como convém as três partes da alma e a vigiar com segurança nossos sentidos. E ela aumenta a cada dia as quatro virtudes cardinais fazendo-as participar de sua ação. 442
2. Moisés, o grande Legislador, ou melhor, o Espírito Santo, querendo nos mostrar o quanto esta virtude é excelente, pura, universal e nos eleva, e querendo nos ensinar como colocá-la em movimento inicialmente para a seguir levá-la à perfeição, disse: “Vigie a si mesmo, para que uma palavra secreta não se torne um pecado em seu coração [2]”. Ele denomina palavra secreta a aparição de um único pensamento que possa refletir qualquer má ação que desagrade a Deus, justamente esta palavra que o diabo insinua em nosso coração e que os Padres chamam de sugestão. Nossos próprios pensamentos a seguem, uma vez que ela entre o campo do intelecto, e se carregam de paixão ao dialogar com ela. 443
3. A vigilância e a sobriedade constituem o caminho de todas as virtudes e de todos os mandamentos de Deus. A nepsis também é chamada de hesíquia do coração e, levada à perfeição, quando não mais é afetada por nenhuma imagem, torna-se a própria guarda do intelecto.
4. O cego de nascença não vê a luz do sol. Também aquele que não caminha na sobriedade e na vigilância não vê em toda sua riqueza as cintilações da graça do alto. Ele tampouco se livrará das ações, palavras e pensamentos maus e desagradáveis a Deus. Estes homens, ao deixar esta vida, não passarão impunemente diante dos príncipes do inferno. 5. A atenção é uma permanente hesíquia do coração, fora de qualquer pensamento. Sem se esgotar nem interromper-se, a alma respira e invoca sempre Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus, e nada além dele. Ela se alinha a ele para combater validamente os inimigos. Ela Lhe confessa seus pecados, a ele, o único que tem poder para perdoá-los. Com sua invocação, ela abraça continuamente Cristo que conhece os segredos dos corações. E ela se esforça por esconder totalmente dos homens a doçura que experimenta neste combate interior, para que o maligno não faça penetrar nela a malícia contra sua vontade e não destrua uma obra tão bela. [1] Mateus, V, 8. [2] Deuteronômio XV, 9.
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TI, VII –HESÍQUIO DE BATHOS – Discurso, em forma de capítulos, sobre a sobriedade, a vigilância e a virtude para o bem da alma e sua salvação.
6. A nepsis, sobriedade e vigilância, é a concentração perseverante de um pensamento de sentinela à porta do coração. Este pensamento capta os pensamentos que sobrevêm, os observa, escuta o que eles dizem, o que fazem esses assassinos, e as formas que os demônios gravaram sobre eles e ergueram como uma estela, buscando enganar o intelecto por meio da imaginação. Este trabalho, se nos dedicarmos a ele, nos dará, se o quisermos, a experiência do combate espiritual que o intelecto deve manter ciosamente. 7. O duplo temor [3], os abandonos nos quais Deus nos deixa e as tentações que sobrevêm para nos instruir, sabem engendrar a nepsis, como uma firme continuidade da atenção na razão do homem que se esforça para obstruir a fonte dos pensamentos e das más ações. É para nos permitir adquirir a sobriedade e a vigilância, e corrigir nossas vidas, que Deus nos deixa no abandono e nos envia tentações imprevistas, sobretudo àqueles dentre nós que já provaram o repouso deste bem e o negligenciaram. A continuidade gera o hábito. Este dá à nepsis uma certa densidade natural. E esta densidade engendra pacificamente a contemplação durante o combate, que recebe assim a incessante prece de Jesus, a doce serenidade do intelecto fora de qualquer imaginação, e o estado de calma suscitado por Jesus. 444
8. A reflexão que se imobiliza, que invoca a Cristo contra os adversários e que se refugia junto a ele, é como um animal selvagem cercado por cãs e que resiste como uma fortaleza. Ela prevê de longe no intelecto as emboscadas inteligíveis dos inimigos invisíveis. E como ela não cessa de invocar contra eles a Jesus dispensador da paz, ela permanece invulnerável. 9. Se você possui a experiência e se lhe foi dado estar desde a manhã diante de Deus na vigília [4], mas também em contemplação, você sabe o que quero dizer. Senão, seja sóbrio e vigilante – seja néptico – e você compreenderá. 445
10. Os mares são feitos de quantidades de água. O que faz e alimenta a nepsis, a moderação, a profunda hesíquia da alma, este abismo de contemplações extraordinárias e inefáveis, de humildade consciente, de retidão e de amor, é uma extrema atenção e a prece de Jesus Cristo, sem pensamentos. Tudo isto com fervor e continuidade, jamais cedendo ao desencorajamento. 11. Cristo disse: “Não é aquele que diz: 'Senhor, Senhor”, que entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai [5]”. Ora, a vontade de seu Pai é esta: “Vocês que amam ao Senhor, odeiem o mal [6]”. Pela oração de Jesus Cristo, detestemos também os maus pensamentos. Assim, teremos feito a vontade de Deus. 446
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12. Nosso Mestre e Deus encarnado nos deu um modelo [7] de toda virtude, um exemplo para a raça dos homens e nos fez retornar da queda primeira, carregando diretamente em sua carne o próprio significado da vida virtuosa. Ele nos revelou todas as suas boas obras, e foi com elas que eles se dirigiu ao deserto depois do batismo, começando lá, pelo jejum, o combate do intelecto, quando o diabo se aproximou dele 448
[3] Aquele que nasce do temor do castigo e o que é ligado ao amor, cf. Máximo o Confessor, Sobre o Amor, I, 81. [4] Cf. Salmo V, 4. [5] Mateus, VII, 21. [6] Salmo XCVI, 10. [7] Cf. I Pedro, II, 21.
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como de um simples homem [8]. Pelo modo como o venceu, o Mestre nos ensinou, a nós também, os inúteis, como sustentar a luta contra os espíritos o mal: com a humildade, o jejum, a prece [9], a sobriedade e a vigilância. Mas ele próprio não tinha nenhuma necessidade, disto, por ser Deus e Deus dos deuses. 449
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13. Quanto às diferentes maneiras pelas quais, segundo penso, podemos purificar aos poucos o intelecto dos pensamentos passionais enquanto durarem a sobriedade e a vigilância, não tardarei mais em expressálos numa linguagem sem refinamentos nem floreios. Pois não achei conveniente, neste tratado, ocultar nas palavras aquilo que pode ser útil quando o combate vier, e especialmente aos mais simples. Pois foi dito: “Meu irmão Timóteo, fique atento ao que você lê [10]”. 14. Um primeiro modo da sobriedade e da vigilância consiste em vigiar estreitamente a imaginação, ou a sugestão, porque Satanás não pode, sem a imaginação, suscitar pensamentos e os expor ao intelecto para enganá-lo com suas mentiras. 451
15. Outro modo consiste em manter sempre o coração num profundo silêncio, em estado de hesíquia, fora de qualquer pensamento, e em oração. 16. Um outro consiste em pedir continuamente a ajuda do Senhor Jesus Cristo, com toda a humildade. 17. Um outro ainda é ter na alma a lembrança constante da morte. 18. Todas estas ações, bem-amado, afastam como guardiões da porta os maus pensamentos. Quanto a olhar para o céu e considerar a terra como nada, eu explicarei mais longamente adiante, se Deus quiser, no que esta ação é igualmente eficaz. 19. Se afastarmos pouco as causas das paixões, e nos dedicarmos às contemplações espirituais sem lhes dedicar todo nosso tempo e sem fazer delas nosso próprio trabalho, com facilidade recairemos nas paixões da carne. Não colheremos então outro fruto do que o entenebrecimento do intelecto e uma perdição em meios às coisas materiais. 20. Quem sustenta o combate interior deve ter a cada instante estas quatro coisas: a humildade, uma atenção extrema, a refutação e a prece. A humildade, porque o combate se opõe aos demônios orgulhosos, e para ter a ajuda de Cristo ao alcance do coração, pois “o Senhor detesta os orgulhosos [11]”. A atenção, a fim de manter sempre o coração puro de todo pensamento, mesmo que este pareça ser bom. A refutação, a fim de contestar o maligno imediatamente com cólera, assim que ele surgir chegando. Foi dito: “Eu responderei aos que me ultrajam: Não está minha alma submetida a Deus? [12]” Enfim, a oração, a fim de chamar por Cristo com “gemidos inefáveis [13]”, logo após a refutação. Então aquele que combate verá o 452
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449[8] Cf. Mateus, IV, 3. 450[9] Cf. Mateus, XVII, 21. 451[10] I Timóteo, IV, 13. 452[11] Provérbios III, 34. 453[12] Salmo LXII, 2. 454[13] Romanos VIII, 26.
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inimigo se dissipar ante a aparição de sua imagem, como a poeria ao vento ou a fumaça que evanesce, expulso pelo nome adorável de Jesus. 21. Aquele cuja prece não é pura de pensamentos não tem armas para o combate. Falo da prece que age infatigavelmente nas profundezas inacessíveis da alma a fim de que, pela invocação de Cristo, o adversário que nos combate em segredo seja fustigado e queimado. 22. Você deve observar com o olhar penetrante e intenso do intelecto aqueles que entram. Quando você os reconhecer, você deve imediatamente cortar a cabeça da serpente pela refutação. Ao mesmo tempo, chame a Cristo com gemidos. Então você terá a experiência do socorro invisível de Deus, e verá claramente a retidão do coração. 23. Assim como alguém que tem um espelho em mãos e o mira em meio a outras pessoas vê seu próprio rosto e também os de todos os que se inclinam para o mesmo espelho, também aquele que não cessa de se inclinar sobre seu coração vê nele seu próprio estado, mas também enxerga os rostos negros do Etíopes inteligíveis. 24. Mas o intelecto não consegue vencer sozinho a imaginação demoníaca. Que ele não tenha esta audácia! Pois, astuciosos como são, os demônios fingem ser vencidos, depois o farão estrebuchar pela vanglória. Mas diante da invocação de Jesus Cristo eles não resistem, não conseguem se manter nem enganar, ainda que por um instante. 25. Vigie para não pensar como a velha Israel, para não ser também atirado aos inimigos inteligíveis. Libertado dos Egípcios pelo Deus do universo, ela imaginou que um ídolo fundido poderia socorrê-la [14]. 455
26. Como ídolo fundido você deve entender o intelecto enfermo. Enquanto invocar a Jesus Cristo contra os espíritos do mal, o intelecto os expulsará facilmente e, com arte confirmada, porá em fuga as potências invisíveis e hostis do inimigo. Mas se ele depositar tolamente toda sua confiança em si mesmo, mergulhará para baixo como ave de rapina de asas rápidas. Foi dito: “Meu coração esperou em Deus; eu fui socorrido e minha carne refloresceu [15]”. E quem, senão o Senhor, me perdoará e se colocará ao meu lado para combater os inumeráveis maus pensamentos [16]? Quem coloca sua confiança em si mesmo e não em Deus cairá vertiginosamente. 456
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27. E você, se quiser lutar, tome sempre como exemplo a aranha, pois este pequeno animal é a imagem e a ordem da hesíquia do coração. Senão, você ainda não se encontrará num estado conveniente de hesíquia em seu intelecto. A aranha caça pequenas moscas. E você, se estiver em estado de hesíquia e como ela penar em sua alma, não cessará jamais de exterminar as crias da Babilônia. Por esta imolação o Espírito Santo o denominará bem-aventurado pela boca de Davi [17]. 458
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Cf. Êxodo, XXXII, 4. Salmo XXVIII, 7. Cf. Salmo XCIV, 16. Cf. Salmo CXXXVII, 9. Cristo é o rochedo contra o qual o monge deve destruir os “filhos da Babilônia”, ou seja os filhos do diabo, os maus pensamentos.
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28. Como é impossível que o mar Vermelho apareça no firmamento em meio às estrelas, e como não é possível a um homem que caminha sobre a terra deixar de respirar seus ares, também é impossível purificar nosso coração dos pensamentos passionais e dele expulsar os inimigos inteligíveis sem a invocação contínua de Jesus Cristo. 29. Se, humildemente, lembrando-se da morte, condenando a si mesmo, refutando o diabo e invocando a Jesus Cristo, você passar todo o seu tempo dentro do seu coração, e se, revestido com esta armadura, você caminhar sobriamente cada dia da sua vida sobre a via estreita e segura, mas alegre e doce da reflexão, você alcançará as santas contemplações dos santos mistérios, e Cristo iluminará suas profundezas, ele que traz “os tesouros ocultos da sabedoria e do conhecimento [18]” e “em quem habita corporalmente a plenitude da Divindade [19]”. Pois Jesus lhe permitirá sentir que ele estabeleceu o Espírito Santo sobre a sua alma, ele que ilumina o intelecto do homem para que este veja, com os olhos descobertos. Está escrito: “Ninguém diz: ‘Senhor Jesus’ se não for no Espírito Santo [20]”, ou seja, quando ele descobre misticamente, com toda certeza, Aquele a quem procura. 459
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30. Aqueles que gostam de se instruir devem também saber o seguinte: de tempos em tempos os demônios ciumentos escondem e afastam para longe de nós o combate inteligível. Pois estes seres malvados invejam o benefício que extraímos do combate, uma vez que este nos permite adquirir conhecimento e nos aproximar de Deus. Então eles se aproveitam de nosso descuido para se apoderar bruscamente de nosso intelecto, e conseguem levar alguns a negligenciar novamente a reflexão. Seu combate tem sempre um único objetivo: impedir nosso coração de estar atento, pois eles sabem o quanto isto o enriquece. Portanto nós, com a ajuda da lembrança de nosso Senhor Jesus Cristo, inclinemo-nos sempre para as contemplações espirituais, e a guerra se reacenderá em nosso intelecto. Mas façamos tudo isto tomando conselho, por assim dizer, com o próprio Senhor, e com muita humildade. 31. Nós, que vivemos em mosteiros, devemos, com efeito, com boa vontade e coração fervoroso, suprimir toda vontade diante do superior. Com a ajuda de Deus, nos tornaremos dóceis, também nós, e sem vontade própria. Esta é a arte que nos convém, a fim de não sermos perturbados pela cólera e não excitarmos nosso ardor irracionalmente e contra a natureza, ou não teremos mais a liberdade para sustentar o combate invisível. Com efeito, nossa vontade, se não a suprimimos de bom grado, tem o costume de se irritar contra aqueles que tentam quebrá-la contra nossa vontade. Furioso, excitado pelo mal, o ardor perde a seguir o conhecimento do combate, este conhecimento que adquirimos com tanto sofrimento. Pois o ardor é, por natureza, destrutivo. Excitado contra os pensamentos demoníacos, ele os arruína e destrói. Mas se, ao contrário, ele troveja contra os homens, ele destrói do mesmo modo os bons pensamentos que existem em nós. Vemos assim que o ardor destrói todos os tipos de pensamentos, tanto bons quanto ruins, quando os encontra. Pois ele nos foi dado por Deus como uma armadura e um arco, com a condição de não atirar nas duas direções. Se o fizer, ele conduzirá à ruína, como um cão que, tão arrogante como os lobos, ataca o rebanho das ovelhas. 32. É preciso fugir da familiaridade como do veneno da áspide, e evitar, tanto quanto as serpentes e as áspides [21], os encontros freqüentes. Estas coisas podem levar rapidamente ao esquecimento total do 462
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Colossenses, II, 3. Colossenses, II, 9. I Coríntios, XII, 3. Cf. Mateus, III, 7.
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combate interior, e derrubar a alma das alegrias do alto, que provêm da pureza do coração. Pois o maldito esquecimento se opõe à atenção com a água se opõe ao fogo: ele a combate a cada instante com toda sua força. Pois do esquecimento caímos ma negligência, da negligência no desdém, na despreocupação e nas concupiscências deslocadas. E assim andamos para trás, como o cachorro que vomita e volta ao seu vômito [22]. Fujamos, portanto, da familiaridade como de um veneno mortal. Pois o mal trazido pelo esquecimento e as conseqüências que ele encerra podem ser curados por uma guarda rigorosa do intelecto e uma contínua invocação de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois sem ele nada podemos fazer [23]. 463
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33. Nem é permitido nem é possível ter amizade com uma serpente e levá-la no colo. Tampouco é possível acalentar o corpo de todas as maneiras, cuidar dele e amá-lo além de seus cuidados e necessidades, e ao mesmo tempo dedicar-se às virtudes celestes. Pois a serpente fere naturalmente aquele que a aquece. E o corpo suja no prazer aquele que prodiga cuidados com ele. Quando ele vacilar, que seja dura e impiedosamente castigado e fustigado, como um escravo fugitivo cheio de vinho doce, que pela flagelação conhece seu Senhor, o qual por sua vez também foi fustigado. Que esta lama perecível, escrava e noturna, não corra atrás dos mercadores de vinho, que ela não ignore a vida incorruptível que a dirige. Não se fie na carne até a morte. Foi dito: “A vontade da carne é inimiga de Deus. Ela não está submetida à lei de Deus. E a carne deseja contra o Espírito. Aqueles que vivem para a carne não podem agradar a Deus. Ora, nós não estamos na carne, mas no Espírito [24]”. 465
34. A obra da prudência consiste em sempre trazer o ardor ao engajamento no combate interior e na condenação de si. A obra da sabedoria é de levar a razão à sobriedade e à vigilância estritas e contínuas e à contemplação espiritual. A obra da justiça é dirigir o desejo para a virtude e para Deus. A obra da coragem é de governar e conter os cinco sentidos, a fim de que eles não sujem nem nosso homem interior, ou seja, o coração, nem o homem exterior, o corpo. 35. “Sobre Israel seu esplendor [25]”: vale dizer, sobre o intelecto que vê, tanto quanto possível, a beleza da glória do próprio Deus. “E nas nuvens seu poder [26]”: vale dizer, nas almas luminosas que contemplam na manhã Aquele que está à direita do Pai e que as cobre com sua irradiação, como o sol que atravessa com seus raios as nuvens puras e revela ao olhar uma beleza que encanta. 466
467
36. Aquele que peca, diz a Escritura, perde uma grande justiça. O intelecto que peca destrói as bebidas e comidas da eternidade de que falamos.
37. Não somos mais fortes do que Sansão, nem mais sábios do que Salomão. Também não possuímos mais conhecimento do que o divino Davi. Tampouco amamos mais a Deus do que Pedro do Corifeu [27]. Portanto, não coloquemos nossa confiança em nós mesmos. Pois a Escritura diz: “Quem coloca sua confiança em si mesmo tombará numa queda vertiginosa”. 468
463[22] 464[23] 465[24] 466[25] 467[26] 468[27]
Cf. II Pedro, II, 22. Cf. João XV, 5. Romanos VIII, 7-8 e Gálatas V, 17. Salmo LXVIII, 35. Ibid. O Corifeu, o cabeça, o cume: designa Pedro, o apóstolo capital
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38. Aprendamos com Cristo a humildade, com Davi a humilhação, com Pedro a chorar com o que nos acontece. Mas não aprendamos a recusar reconhecer nossa falta, como Sansão, Judas e Salomão o sábio. 39. Pois, com estes poderes, o diabo ronda, qual leão que ruge, buscando a quem devorar [28]. Que jamais cessem, portanto, a constante atenção do coração, a sobriedade e a vigilância – a nepsis – a contestação e a prece de Jesus Cristo nosso Deus. Pois você não encontrará mais em sua vida socorro mais forte fora Jesus. Somente o próprio Senhor, por ser Deus, conhece os truques, as fraudes e as espertezas dos demônios. 469
40. Assim, que a alma coloque sua confiança em Cristo, que ela o invoque e que não tenha nunca medo. Pois ela não combate só, mas com o Rei terrível, Jesus Cristo, Criador de todos os seres, incorpóreos e corpóreos, ou seja, invisíveis e visíveis. 41. Quanto mais a chuva cai, mais ela molha o solo. Da mesma forma, o santo nome de Cristo enche de alegria e regozijo a terra de nosso coração, quando o chamamos e invocamos frequentemente. 42. É bom que aqueles que não têm experiência saibam igualmente o seguinte: nós temos inimigos incorpóreos, invisíveis, malfeitores, hábeis em fazer o mal, ágeis, rápidos, dedicados ao combate desde os tempos de Adão até nossos dias. E nós, que somos pesados e nos inclinamos para a terra com todo nosso corpo e todo nosso pensamento, não podemos vencê-los de modo algum, se não por uma sobriedade e vigilância contínuas do intelecto e pela invocação de Jesus Cristo, nosso Deus e nosso Criador. Para aqueles que não têm a experiência, que a prece de Jesus seja também um convite a provar e conhecer o bem; e para aqueles que têm a experiência, que ela seja a prática, a pedra de toque e o repouso no bem, a melhor maneira e o melhor mestre. 43. Assim como uma criança, que não tem malícia, sente prazer em ver um ilusionista e o segue em sua inocência, também nossa alma, que é simples e boa tal como foi criada por seu bom Mestre, sente prazer nas sugestões das imagens que o diabo suscita e, enganada, corre para o pior como se fosse para um bem, como a pomba que corre para quem coloca armadilhas para seus filhotes. A alma mistura assim seus pensamentos às imagens suscitadas pela sugestão demoníaca. Se acontece de aparecer o rosto de uma bela mulher, ou outra coisa estritamente proibida pelos mandamentos de Cristo, ela deseja segui-la a fim de captar para si aquilo que viu de belo. Ela chega assim ao consentimento, e não lhe resta mais do que passar ao ato, cometendo em seu corpo a falta que ela viu em pensamento, para sua própria condenação. 44. Tal é a arte do maligno. É com estas flechas que ele envenena a alma. É por isso que não é prudente, enquanto o intelecto ainda não adquiriu uma grande experiência no combate, deixar entrar os pensamentos em nosso coração, sobretudo no início. Pois no começo, nossa alma fica encantada com as sugestões demoníacas e se compraz em segui-las. Mas basta percebê-las e imediatamente afastá-las, assim que elas brotam e atacam. Porém, uma vez que o intelecto passou algum tempo nesta obra admirável, que ele se exercitou, que ele compreendeu e adquiriu o hábito incessante do combate que lhe permite conhecer verdadeiramente os pensamentos, e que, como diz o Profeta, ele aprendeu a capturar facilmente a
469[28] Cf. I Pedro, V, 8.
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raposinhas [29], então ele pode deixar os pensamentos entrarem, com conhecimento de causa, e denunciálos. 470
45. Assim como é impossível o fogo e a água passarem juntos por um mesmo conduto, também o pecado não pode penetrar no coração sem antes bater à sua porta servindo-se de uma imagem má projetada pela sugestão. 46. Primeiramente chega a sugestão. Em segundo lugar a ligação, vale dizer, quando nossos pensamentos se misturam aos dos demônios maus. Em terceiro lugar vem o consentimento, examinando o que fazer entre os dois pensamentos que desejam o mal. Em quarto lugar vem o ato sensível, ou seja, o pecado. Porém, se o intelecto estiver atento, sóbrio e vigilante, e se, pela contestação e a invocação do Senhor Jesus ele põe em fuga a sugestão assim que ela brota, as coisas ficam por aí. Pois o maligno é uma inteligência incorpórea: ele não pode enganar as almas senão pelas imaginações e os pensamentos. Davi fala a respeito da sugestão: “De manhã a matei [30]”, etc.; e o grande Moisés diz do consentimento: “Não pactuarei com eles [31]”. 471
472
47. O combate faz com que se atraquem invisivelmente dois intelectos: o do demônio e o nosso. É por isso que é preciso a cada instante chamar desde as profundezas por Cristo [32], porque ele expulsa a inteligência do demônio e nos dá o prêmio da vitória, por seu amor ao homem. 473
48. Que aquele que segura um espelho e nele coloca seu olhar seja para você uma imagem da hesíquia do coração; você então verá em seu coração, inscritos pela mesma inteligência, o mal e o bem. 49. Vigie sempre para nunca ter em seu coração nenhum pensamento, nem racional, nem irracional, a fim de que lhe seja mais fácil reconhecer os estrangeiros, ou seja, os primogênitos dos Egípcios. 50. Que boa e deliciosa virtude é a nepsis, unindo a sobriedade à vigilância, luminosa e doce, toda bela, resplendente e cheia de encanto. Com que facilidade nos abre seu caminho, Cristo Deus! Assim o intelecto desperto do homem avança com grande humildade. Pois ele estende seus ramos até o mar e o abismo das contemplações, e seus brotos até os rios dos divinos mistérios gozosos [33]. Ela rega o intelecto há tanto tempo queimado de impiedade pelos tormentos dos maus pensamentos dos espíritos e pela hostilidade da carne, ou seja, pela morte 474
51. A nepsis é semelhante à escada de Jacó sobre a qual está Deus e pela qual sobem os anjos [34]. Pois ela elimina todo mal que está em nós. Ela afasta a tagarelice, a injúria, a maledicência e toda a série de males sensíveis. Ela não suporta ser privada por eles de sua própria doçura, mesmo que seja um pouco só. 475
470[29] 471[30] 472[31] 473[32] 474[33] 475[34]
Cf. Cânticos, II, 15. Salmo CI, 8. Êxodo, XXIII, 32. Cf. Salmo CXXX, 1. Cf. Salmo LXXX, 12. Cf. Gênese XXVIII, 12.
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52. Busquemo-la, meus irmãos, com todo nosso coração, voemos naquilo que lhe permite ver o puro reflexo de nosso intelecto em Jesus Cristo. Dirijamos nosso olhar para nossos pecados e nossa vida anterior, a fim de que, contritos e humilhados pela lembrança de nossos pecados, possamos receber neste combate invisível o socorro incessante de Jesus Cristo nosso Deus. Pois, privados do socorro de Jesus pelo orgulho, a vanglória e o amor próprio, perdemos a pureza de coração por meio da qual Deus se deu a conhecer ao homem. Segundo a promessa, de fato, a causa do conhecimento é a pureza [35]. 476
53. Além das benesses que recebe do trabalho contínuo da guarda do coração, o intelecto que não negligencia sua obra secreta verá igualmente os cinco sentidos do corpo desembaraçados dos males exteriores. Pois aquele que se aplica totalmente à virtude interior, à sobriedade e à vigilância, e que deseja se dedicar às delícias dos belos pensamentos, não suporta ser roubado pelos cinco sentidos, quando lhe chegam pensamentos materiais e vãos. Mas, sabendo bem como eles são enganosos, ele os reprime fortemente dentro de si. 54 [36]. Permaneça na reflexão do intelecto e você não terá que penar nas tentações. Mas se você se afastar, agüente o que vier. 477
55. Assim como o absinto amargo faz bem aos que tem pouco apetite, também é bom, para os que se comportam mal, sofrer o mal. 56. Se você não quiser sofrer o mal, recuse-se a fazer o mal. Pois uma coisa se segue à outra inevitavelmente. Cada qual colherá aquilo que semeou [37]. Quando semeamos voluntariamente o mal e o colhemos contra nossa vontade, devemos nos admirar da justiça de Deus. 478
57. O intelecto é cegado por estas três paixões, o amor ao dinheiro, a vanglória e o prazer. 58. O conhecimento e a fé, estes dois companheiros da nossa natureza, não são empanados por outra coisa do que estas três paixões. 59. Por causa delas, o furor, a cólera, a guerra, os assassinatos e toda a série dos outros males têm predominado gravemente entre os homens. 60. Quem não conhece a verdade não pode crer verdadeiramente, pois o conhecimento precede naturalmente a fé. O que é dito nas Escrituras não é dito apenas para que o compreendamos, mas para que o coloquemos em prática. 61. Ponhamo-nos, portanto, a trabalhar. Assim progredindo constantemente, encontraremos a esperança em Deus, a lei firme, o conhecimento interior, a libertação das tentações, o sentido dos carismas, a 476[35] Cf. Mateus, V, 8. 477[36] As sentenças de 54 a 60 retomam Marcos o Asceta, Sobre a lei espiritual 163, 115ª, 116-117, 101, 103, 104 e 110.
478[37] Cf. Gálatas VI, 7.
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confissão do coração e as lágrimas abundantes chegarão aos fiéis através da prece. E não apenas isto, mas também a paciência nas tribulações, o perdão sincero concedido ao próximo, o conhecimento da lei espiritual, a descoberta da justiça de Deus, a vinda do Espírito Santo, o dom dos tesouros espirituais e tudo o mais que Deus prometeu aos homens fiéis daqui de baixo e também no século futuro, em uma palavra, a revelação da alma à imagem de Deus – tudo isto é impossível se não for pela graça de Deus e pela fé do homem que, com muita humildade e uma oração constante, persevera na reflexão do intelecto. 62. Recebemos da experiência um bem verdadeiramente grande: aquele que quer purificar seu coração deve invocar continuamente o senhor Jesus contra os inimigos inteligíveis. E veja como o termo ‘experiência’ concorda com os testemunhos da Escritura. Ela diz: “Prepare-se, Israel, para invocar o nome do Senhor seu Deus [38]”. E o Apóstolo: “Orai sem cessar [39]”. E nosso Senhor diz: “Vocês nada podem sem mim. Quem permanece em mim, e eu nele, este dará muitos frutos.” E também: “Se ele não permanecer em mim, será atirado fora como o ramo seco da vinha [40]”. A prece é um grande bem, e ela contém todos os outros bens, pois ela purifica o coração no qual Deus se faz ver aos fiéis. 479
480
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63. Como o bem da humildade nos eleva por natureza, e porque ele é amado por Deus, destruindo quase tudo o que é mau e desagrada a Deus, ele é naturalmente difícil de adquirir. Podemos facilmente encontrar em um homem os brotos parciais de muitas virtudes, mas se procurarmos nele o perfume da humildade, dificilmente encontraremos. É por isso que é preciso muita atenção para adquirir este bem. A Escritura diz que o diabo é impuro. Pois desde a origem ele repugnou a humildade e amou o orgulho; assim, em todas as Escrituras ele é chamado de espírito impuro [41]. Mas que impureza corporal poderia cometer um espírito totalmente sem corpo, sem carne, sem lugar definido, para que seja chamado de impuro? É claro que ele é chamado de impuro por causa de seu orgulho e que, de anjo luminoso que era, sujou-se manifestamente. Todo homem que eleva a si mesmo em seu coração é impuro diante do Senhor [42]. Com efeito, foi dito: “O primeiro pecado é o orgulho [43]”. Assim falava o Faraó orgulhoso: “Eu não conheço seu Deus e não deixarei que parta Israel [44]”. 482
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64. Entretanto, se não negligenciarmos nossa salvação, existem muitas operações do intelecto capazes de nos fornecer o dom precioso da humildade: por exemplo, a lembrança dos pecados cometidos em palavras, atos e pensamentos, recolhidos pela contemplação, concorrem para a humildade. Também isto engendra uma humildade verdadeira: repassar a cada dia em nosso intelecto as boas obras de nossos próximos, magnificar diante de nós mesmos suas vantagens naturais e compará-las com as nossas Vendo assim o intelecto sua própria mediocridade e o quanto está distante da perfeição dos irmãos, o homem considera a si mesmo como terra e cinzas [45], não um homem mas um cão, o último dos últimos de todos os homens racionais sobre a terra, e muito distante deles. 486
65. A boca de Cristo, a coluna da Igreja, nosso Pai Basílio o Grande, disse: “Para não pecar, nem cair no dia seguinte nas mesmas faltas, é bom, ao final de cada dia, interrogar a nós mesmo em nossa consciência
479[38] 480[39] 481[40] 482[41] 483[42] 484[43] 485[44] 486[45]
Amós, IV, 12. I Tessalonicenses, V, 17. João XV, 5-6. Cf. Mateus X, 1; XII, 43, etc. Cf. Provérbios XVI, 5. Eclesiástico, X, 13. Êxodo V, 2. Cf. Gênese XVIII, 27.
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sobre nossa conduta, sobre o mal que cometemos e o bem que fizemos [46]”. É o que Jacó fazia para si e seus filhos [47]. O exame cotidiano da consciência esclarece de fato o dever de cada hora. 487
488
66. Outro dentre os sábios que conhecem as coisas de Deus disse também: “O começo do fruto é a flor e o começo da ascese é a temperança [48]”. Sejamos, portanto, moderados, com critério e ponderação, como os Padres nos ensinaram. Passemos as doze horas do dia vigiando o intelecto. Se agirmos assim, poderemos, com a graça de Deus e nos impondo alguma violência, reduzir e extinguir o mal. Pois esta violência forçará à conduta virtuosa por meio da qual nos é dado o Reino dos céus [49]. 489
490
67 [50]. O caminho que leva ao conhecimento é a impassibilidade e a humildade, sem as quais ninguém verá o Senhor. 491
68. Aquele que está permanentemente ocupado com seu mundo interior não apenas é casto, como contempla, é um teólogo e ora. É o que diz o Apóstolo: “Caminhem no Espírito, e vocês não cumprirão os desejos da carne [51]”. 492
69. Aquele que não sabe caminhar sobre a via espiritual não se preocupa com os pensamentos passionais: ele só se ocupa da carne. Ou ele se abandona à gulodice e ao deboche, ou fica triste, ou se encoleriza e guarda rancor. Com isso ele entenebrece o intelecto. Ou então ele se atira a uma ascese sem medida e perturba a reflexão. 70. Quem renunciou a coisas tais como possuir uma mulher, riquezas e tudo mais, fez monge seu homem exterior, mas não ainda o interior. Mas quem renunciou aos pensamentos passionais do homem interior – ou seja, do intelecto – é um verdadeiro monge. É fácil tornar-se monge exteriormente, quando se quer. Mas não é um pequeno combate tornar monge o homem interior. 71. Mas quem, nesta geração, está totalmente liberto dos pensamentos passionais e se tornou digno de ter em si continuamente a oração pura e imaterial? Ora, este é o sinal do monge interior. 72. Numerosas paixões se escondem em nossas almas. Nós só as denunciamos realmente quando aparecem as suas causas. 73. Não se ocupe apenas com sua carne. Mas dedique-lhe uma ascese na medida do seu possível, e volte todo o seu intelecto para o interior. “Pois o exercício corporal tem pouca utilidade, enquanto a piedade é útil a tudo [52]”. 493
487[46] 488[47] 489[48] 490[49] 491[50]
Grande Regra 37. Cf. Jó I, 5. Nilo o Asceta, Sobre os oito espíritos de malícia. Cf. Mateus XI, 12. As sentenças de 67 a 75 retomam Máximo o Confessor, Sobre o Amor , IV, 58.64. 65.50-52 e 63; II, 40; I,
76; IV, 72. 492[51] Gálatas, V, 16. 493[52] I Timóteo IV, 8.
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74. O orgulho chega quando as paixões deixam de se levantar, seja porque suas causas foram afastadas, seja porque os demônios insidiosamente fingiram se retirar. 75. A humildade e a vida dura libertam o homem de todos os pecados. Uma afasta as paixões da alma, a outra as do corpo. É por isso que o Senhor disse: “Bem-aventurados os corações puros, porque eles verão a Deus [53]”, ele e os tesouros que estão nele, quando eles forem purificados pelo amor e a temperança, e eles o verão na mesma medida em que tiverem cultivado e feito crescer em si a purificação. 494
76. O lugar de onde se podem observar tudo o que diz respeito à virtude é a guarda do intelecto. Assim outrora a sentinela de Davi significava antes de tudo a circuncisão do coração [54]. 495
77. Assim como morremos em nossos sentidos quando observamos algo que nos é nocivo, também morremos em nossa inteligência. 78. Quem fere o coração de uma planta seca-a por inteiro. Observe que o mesmo acontece com o coração do homem. É neste instante que é mais necessário vigiar, pois os ladrões não repousam jamais. 79 [55]. Querendo mostrar que todo mandamento obriga, mas que a filiação adotiva foi dada aos homens pelo seu próprio sangue, o Senhor disse: “Quando vocês tiverem feito o que foi prescrito, digam: Somos servidores inúteis, pois fizemos o que devíamos fazer [56]”. É por isso que o Reino dos céus não é o salário das obras, mas uma graça do Mestre preparada para os servidores fiéis. O escravo não reclama a liberdade como um salário, mas o recebe como uma graça, e testemunha seu reconhecimento porque é devedor. 496
497
80. Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras [57], e concedeu o dom da liberdade àqueles que o servem bem. Com efeito, ele disse: “Servidor bom e fiel, você foi fiel nas pequenas coisas e eu o estabelecerei sobre muitas. Participe da alegria do seu Senhor. [58]” Aquele que se apóia sobre o simples conhecimento não é ainda um servidor fiel; o servidor fiel é aquele que, pela obediência, se entrega ao Cristo que ordena. 498
499
81. Aquele que honra o Mestre faz o que ele lhe ordena. Mas se cair ou desobedecer, deve agüentar as conseqüências de seus atos. Se você ama aprender, goste também do sofrimento. Pois o simples conhecimento infla o homem [59]. 500
82. As provações que nos chegam sem que as esperemos nos ensinam providencialmente a amar o sofrimento voluntariamente.
494[53] 495[54] 496[55] 497[56] 498[57] 499[58] 500[59]
Mateus V, 8. Cf. II Samuel XIII, 34 e XVIII, 24. As sentenças de 79 a 82 retomam Marcos o Asceta, Daqueles que pensam ser justificados, 2-8. Lucas XVII, 10. Cf. I Coríntios XV, 3. Mateus XXV, 21. Cf. I Coríntios VIII, 1.
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83. É próprio da estrela a luz com a qual ela se envolve. É próprio do homem que venera e teme a Deus a simplicidade e a humildade. Pois não há outro sinal que dê a conhecer os discípulos de Cristo do que um sentimento humilde e um exterior simples. É isto que não cessam de proclamar os quatro Evangelhos. Quem não vive assim, ou seja, humildemente, perde a parte d'Aquele que humilhou a si mesmo até a cruz e a morte [60], ele que deu e pôs em prática a lei dos divinos Evangelhos. 501
84. Ele disse: “Vocês que têm sede, venham até a água [61]”. Vocês que têm sede de Deus, venham para a pureza da reflexão. Porém aquele que, por meio dela, voa alto, deve também olhar para a terra de sua própria simplicidade. Pois ninguém é mais elevado do que o humilde. Assim como tudo é escuro e tenebroso quando falta a luz, da mesma forma, quando falta a humildade tudo o que nos esforçamos para fazer no sentido de agradar a Deus é vão e fútil. 502
85. Escute o fim do discurso, seu todo: tema a Deus e guarde seus mandamentos [62] em seu intelecto e nos seus sentidos. Se você violenta seu intelecto para os observar, você terá poucas ocasiões para sofrer nos seus sentidos por sua causa. É o que disse Davi: “Eu quis realizar em meu seio a sua vontade e a sua lei [63]”. 503
504
86. Se o homem não cumpriu em seu seio, ou seja, dentro de seu coração, a vontade de Deus e a lei, ele tampouco conseguirá colocar estas coisas em prática no seu exterior. Aquele que não é sóbrio e vigilante, mas indiferente, dirá a Deus: “Eu não quero conhecer os seus caminhos [64]”, e o dirá com toda segurança, porque lhe falta a iluminação divina. Mas aquele que participa da iluminação, por pouco que seja e sem nenhuma incerteza, será sempre capaz de assumir as coisas de Deus. 505
87. O sal sensível dá sabor ao pão e a todos os alimentos, impede que certas carnes apodreçam e as conserva por muito tempo. Observe que o mesmo acontece com a guarda do intelecto, com a doçura inteligível e a obra maravilhosa. Pois ela cumula de sabor divino tanto o homem interior como o homem exterior, expulsa o odor fétido dos maus pensamentos e nos permite perseverar no bem. 88. Da mesma sugestão nascem numerosos pensamentos, e destes nasce a má ação sensível. Mas aquele que, com Jesus, extingue imediatamente a primeira, escapará aos seguintes e será enriquecido com o doce conhecimento divino por meio do qual encontrará Deus que está presente em toda parte. Mantendo diante de Deus o espelho do intelecto, ele estará continuamente iluminado, à imagem do cristal puro e do sol sensível. Então, tendo alcançado o cume último dos desejos, o intelecto ali repousará de todas as outras contemplações. 89. Todo pensamento penetra no coração pela imagem das coisas sensíveis. Mas quando o intelecto é despojado de todos os pensamentos e das formas que estes lhe impõem, então brilha a bem-aventurada luz da Divindade, se neste momento, graças ao vazio de todos os pensamentos, este esplendor se revelar subitamente ao intelecto puro. 501[60] 502[61] 503[62] 504[63] 505[64]
Cf. Filipenses II, 8. Isaías LV, 1. Eclesiastes XII, 13. Salmo XL, 9. Jó XXI, 14.
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90. Quanto mais profundamente atento você estiver à reflexão do seu intelecto, mais você rezará a Jesus com todo o seu desejo. Ao contrário, quanto mais negligente você for em vigiar a reflexão, mais você se afastará de Jesus. E assim como a atenção ilumina ao extremo o espaço da reflexão, também o abandono da nepsis – a sobriedade e a vigilância – e da doce invocação de Jesus o entenebrecerá inteiramente. Estas coisas são da ordem da natureza, como já dissemos, e não podem ser de outro modo. Você compreenderá isto pela experiência e quando o tiver provado pela ação. Pois a virtude é singularmente esta obra deliciosa que gera a luz, e só pode ser aprendida pela experiência. 91. A invocação contínua de Jesus, quando acompanhada de um desejo cheio de doçura e alegria, permite ao espaço do coração se encher sozinho de alegria e serenidade pela graça da atenção extrema. Mas quem leva até o fim a purificação do coração é Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus, que é a origem e o criador de todos os bens. Pois ele disse: “Eu sou o Deus que dá a paz [65]”. 506
92. A alma cheia de benesses e de doçura por Jesus, responde ao Benfeitor pela ação da graça na exultação e no amor. Ela agradece e chama com alegria Àquele que a pacifica. Ela o vê pelo intelecto dissipar em seu interior as imaginações dos espíritos maus. 93. Davi disse: “O olho do meu intelecto viu meus inimigos inteligíveis. E meu ouvido escutou aqueles que se levantaram contra mim para me fazer mal [66]”. E: “Eu vi em mim o salário que os pecadores receberam de Deus [67]”. Quando não existem mais imaginações no coração, o intelecto encontra-se em seu estado natural, pronto a se voltar para toda contemplação deliciosa, espiritual e amada por Deus. 507
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94. Assim, portanto, como eu lhe disse, a nepsis e a prece de Jesus se fundamentam naturalmente. A atenção extrema fundamenta a prece contínua e, reciprocamente, a prece fundamenta a inteligência na sobriedade, na vigilância e na atenção extrema. 95. Um bom pedagogo do corpo e da alma é a lembrança contante da morte. E, ultrapassando tudo o que, neste ínterim, nos separa dela, vê-la sempre por antecipado, enxergar o próprio leito em que agonizaremos, e todo o resto. 96. Irmãos, não é possível que o sono tome aquele que quer sempre escapar aos ferimentos. Das duas uma: ou bem caímos e perecemos, despojados das virtudes; ou, com o intelecto sempre armado, nos mantemos atentos. Pois nosso inimigo está também sempre em pé com suas tropas armadas para o combate. 97. A lembrança e a invocação contínua de nosso Senhor Jesus Cristo suscitam em nossa inteligência um certo estado divino, se não negligenciarmos nem esta prece constante que dirigimos ao Senhor em nosso intelecto, nem a estrita sobriedade unida à vigilância, nem o trabalho da supervisão. Agarremo-nos à obra da invocação de Jesus Cristo nosso Senhor, esta obra sempre recomeçada, chamando com um coração de fogo, a fim de comungar com o santo nome de Jesus. Pois, pela virtude como pelo vício, a repetição é mãe do hábito, e este, como uma segunda natureza, dirige o resto. Chegando a um tal estado, o intelecto 506[65] Isaías XLV, 7. 507[66] Salmo XCII, 12. 508[67] Salmo XCI, 8
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procura os adversários, como um cão de caça busca a lebre nos campos. Mas o cão procura para comer; e o intelecto para destruir. 98. Assim que acontecer de os maus pensamentos se multiplicarem em nós, lancemos em meio deles a invocação de nosso Senhor Jesus Cristo. Nós então os veremos dissipar-se imediatamente como a fumaça no ar, tal como nos ensinou a experiência. E com o intelecto enfim só. Retomemos a atenção contínua e a invocação. Tão logo a tentação nos faça sofrer tais coisas, é assim que devemos agir. 99. Assim como não é possível nos dirigirmos ao combate com o corpo nu, ou nadarmos no mar inteiramente vestidos, ou vivermos sem respirar, também sem nos humilharmos, sem suplicarmos continuamente a Cristo, é impossível aprender o combate espiritual e o segredo do intelecto, é impossível nos tornarmos hábeis na arte de perseguir e afastar o diabo. 100. O grande Davi, que possuía uma profunda experiência na ação, disse ao Senhor: “Eu guardarei para ti a minha força [68]”. Assim, manter em nós a força da hesíquia do coração e do intelecto, da qual nascem todas as demais virtudes, só nos é possível porque o Senhor nos ajuda, ele que deu os mandamentos, que afasta de nós a sujeira do esquecimento quando o chamamos continuamente, este esquecimento que destrói sobretudo a hesíquia do coração, tanto quanto a água extingue o fogo. É por isso, monge, que você não deve adormecer na morte [69] pela negligência, mas fustigar os inimigos com o nome de Jesus. Como disse um sábio: “Que o nome de Jesus cole em sua respiração. Então você conhecerá o socorro da hesíquia [70]”. 509
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101. Quando a nós, os indignos, é permitido aproximar com temor e tremor dos Mistérios divinos e puros de Cristo nosso Deus e nosso Rei, é sobretudo nesta hora que devemos dar provas de sobriedade, de vigilância, de rigor e guardarmos o intelecto, a fim de que o fogo divino, vale dizer, o Corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, consuma nosso pecados e nossas sujidades, pequenas e grandes. Pois quando ele penetra em nós, ele imediatamente expulsa do coração os pérfidos espíritos do mal, e perdoa nossos pecados passados. Então o intelecto se livra da perturbação dos maus pensamentos. Se depois de tudo isso guardarmos rigorosamente nosso intelecto e nos mantivermos à porta de nosso coração quando novamente nos for dado nos aproximar dos Mistérios, o Corpo divino iluminará cada vez mais o intelecto, tornando-o semelhante às estrelas. 102. O esquecimento é capaz de extinguir a guarda do intelecto, como a água extingue o fogo. Mas a prece contínua de Jesus, unida à nepsis constante, acaba por expulsá-lo totalmente do coração. Pois a oração tem necessidade da sobriedade e da vigilância, como a mecha precisa da luz da lâmpada. 103. É preciso nos esforçarmos para manter aquilo que nos é precioso. Ora, o que nos é mais precioso, na verdade, é aquilo que nos guarda de todo mal sensível ou inteligível. São: a guarda do intelecto, unida à invocação de Jesus Cristo; observar sempre o fundo do coração; manter a reflexão do intelecto sem cessar em estado de hesíquia a fim de permanecer separado, por assim dizer, até mesmo dos pensamentos que 509[68] Salmo LIX, 10. 510[69] Salmo XIII, 4. 511[70] João Clímaco, A escada santa, XXVII, 62.
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parecem bons; suportar manter-se vazio de pensamentos, para que neles não se escondam os ladrões. E se assim trabalharmos para permanecer em nosso coração, próxima estará a consolação. 104. Pois o coração que é guardado sem relaxamento e que não consente em receber as formas, as imagens e os fantasmas dos espíritos tenebrosos e maus, engendra naturalmente pensamentos luminosos. De fato, assim como o carvão faz nascer a chama, também – e bem mais – Deus, que permanece no coração desde o batismo, ao encontrar o espaço de nossa reflexão puro dos ventos da malícia e preservado pela guarda do intelecto, ilumina nossa faculdade de refletir para abri-lo à contemplação, como a chama ilumina a vela. 105. É necessário que façamos girar sempre no espaço de nosso coração o nome de Jesus Cristo, como o relâmpago sulca o firmamento quando a chuva está prestes a cair. Isto sabem-no muito bem aqueles que tiveram a experiência do intelecto e do combate interior. Portanto, devemos conduzir o combate interior na seguinte ordem: primeiro a atenção; depois, tendo reconhecido o inimigo quando nos atira um pensamento, atacá-lo com cólera em nosso coração, com palavras de maldição; enfim, em terceiro lugar, orar imediatamente para nos opormos a ele, reunindo o coração pela invocação de Jesus Cristo, a fim de que seja dissipada a imagem demoníaca, para que o intelecto não siga o fantasma, como uma criança enganada pelo ilusionista. 106. Esforcemo-nos, como Davi, em gritar “Senhor Jesus Cristo”. Que nossa garganta fique rouca. E que os olhos de nosso intelecto não deixem de esperar no Senhor nosso Deus [71]. 512
107. Se nos lembrarmos constantemente da parábola do juiz iníquo, pela qual o Senhor nos diz que devemos orar continuamente e sem descanso [72], encontraremos nosso ganho e nossa justiça. 513
108. É impossível que aquele que olha para o sol não tenha seus olhos inundados de luz. Também aquele que se inclina sempre sobre o espaço de seu coração não pode deixar de ser iluminado. 109. Assim como é impossível viver a vida presente sem comer e sem beber, também sem a guarda do intelecto e a pureza do coração – que é o que chamamos de nepsis, a vigilância e a sobriedade – é impossível que a alma alcance seja lá o que for de espiritual e que agrade a Deus, que ela se libere do pecado que ela comete bem pensamento, ainda que nos violentemos para não pecar por medo dos castigos. 110. Porém, aqueles que, violentando-se, se abstêm do pecado em ato, são também bem-aventurados diante de Deus, dos anjos e dos homens, pois eles são os violentos que se apoderam do Reino dos Céus [73]. 514
111. Tal é o admirável socorro que o intelecto recebe da hesíquia: todos os pecados ferem primeiro o intelecto sob a forma simples de pensamentos, que só se tornam pecados sensíveis e consistentes se forem 512[71] Cf. Salmo LXIX, 4. 513[72] Cf. Lucas XVIII, 1. 514[73] Cf. Mateus XI, 12.
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acolhidos pela reflexão. As virtudes da reflexão, da sobriedade e da vigilância afastam todos os pecados e, pela influência e assistência de nosso Senhor Jesus Cristo, não lhes permitem penetrar em nosso interior e se transformar em maus pensamentos. 112. O Antigo Testamento é a imagem da ascese corporal, exterior e sensível. Mas o santo Evangelho – ou o Novo Testamento – é a imagem da atenção, ou seja, da pureza do coração. O Antigo Testamento não tornou perfeito o homem interior, nem lhe deu a plena medida do culto a Deus. É o que disse o Apóstolo: “A lei não tornou ninguém perfeito [74]”. Ela apenas proibia os pecados consistentes. Mas afastar do coração os pensamentos e os desejos maus – que é o mandamento do Evangelho – vale mais para a pureza da alma do que proibir de arrancar o olho ou o dente do próximo. O mesmo acontece com a justiça e a ascese corporais, ou seja, o jejum, a temperança, dormir em leito duro, permanecer em pé, a vigília e todas as demais coisas que afetam naturalmente o corpo e acalmam sua parte passional livrando-o do pecado ativo. Estas coisas também eram consideradas boas no Antigo Testamento. Pois elas educam nosso homem exterior e nos guardam das paixões ativas. Mas esta pedagogia não nos protege, nem nos interdita pecar em pensamento, de maneira a nos libertar do ciúme, da cólera e de todo o resto, com a ajuda de Deus. 515
113. Mas se a observarmos como se deve, a pureza do oração, ou seja a vigilância e a guarda do intelecto, cujo signo é o Novo Testamento, afasta do coração todas as paixões e todo mal até a raiz; e coloca em seu lugar a alegria, a confiança, a compunção, o luto, as lágrimas, o conhecimento de nós mesmos e de nossos pecados, a lembrança da morte, a verdadeira humildade, um amor sem limites por Deus e pelos homens e o eros divino do coração. 114. Assim como não é possível caminhar sobre a terra sem cortar o ar, também é impossível que o coração do homem não seja continuamente atacado pelos demônios ou secretamente operado por eles, mesmo se ele se dedicar a uma grande ascese corporal. 115. Se você quiser, no Senhor, ser além de um bom monge na aparência, comedido, sempre unido a Deus, se você o quiser verdadeiramente, busque om todas as suas forças a virtude da atenção, que é a guarda e a supervisão do intelecto, a perfeição do coração obtida pela doce hesíquia, o estado bemaventurado da alma fora de toda imaginação, coisa que só encontramos em poucos. 116. Isto é o que chamamos de filosofia do Intelecto. Siga seu caminho com muita sobriedade e vigilância, com um zelo ardente e com a prece de Jesus, com humildade e concentração, no silêncio dos lábios sensíveis e inteligíveis, comendo e bebendo moderadamente, e guardando-se de qualquer coisa que possa levar ao pecado. Siga seu caminho, o caminho da reflexão, com ciência e prudência. E a própria reflexão lhe ensinará com a ajuda de Deus aquilo que você não sabe. Ela o ensinará, esclarecerá, explicará e lhe dará a conhecer o que até então sua inteligência não era capaz de conhecer, quando você caminhava na obscuridade das paixões e das obras tenebrosas, quando você estava coberto por um abismo de esquecimento e confusão. 117. Assim como o trigo dá em abundância nos vales, também a virtude da atenção produz em abundância todos os bens no coração. Ou melhor, quem lhe dará estas coisas será nosso Senhor Jesus Cristo, sem 515[74] Hebreus VII, 8.
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quem nós nada podemos fazer [75]. Você encontrará esta virtude primeiramente como uma escada, depois como um livro lido. Progredindo mais, você a descobrirá como a Jerusalém celeste e verá claramente em seu intelecto a Cristo, o Rei dos poderes de Israel, com seu Pai consubstancial e o adorável Espírito Santo. 516
118. Os demônios nos incitam sempre a pecar pela imaginação enganadora. De fato, foi pela imaginação da avareza e do ganho que eles prepararam o infeliz Judas a entregar o Senhor e Deus do universo. Por um falso conforto material ínfimo, por uma falsa honraria, um falso ganho, uma falsa glória, eles colocaram a corda em seu pescoço [76] e o entregaram à morte eterna. Foi assim que eles o recompensaram, exatamente ao contrário do que haviam prometido, ou seja, da sugestão que lhe haviam feito. 517
119. Veja como pela imaginação, a mentira e as promessas vãs os inimigos de nossa salvação nos fazem cair. O próprio Satanás foi precipitado das alturas como um raio [77] por ter-se imaginado igual a Deus. Foi igualmente assim que ele separou Adão de Deus, fazendo-o imaginar que ele possuía a dignidade divina [78]. E é assim que o inimigo ardiloso e mentiroso continua a enganar os pecadores [79]. 518
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120. Nós enchemos de amargura o coração com o veneno e a malícia dos pensamentos quando, na negligência a que somos levados pelo esquecimento, nos afastamos por demasiado tempo da atenção e da prece de Jesus. Mas somos cumulados da doçura de sentir e experimentar como um encantamento a benfazeja exultação quando, no lugar em que opera a reflexão, alcançamos harmoniosamente, pelo eros divino, a atenção e a prece, com força e fervor. Pois então nós nos apressamos em caminhar na hesíquia do coração, por nada além do que o doce prazer e as delícias com que é preenchida toda a alma. 121. A ciência das ciências e a arte das artes consistem em combater os maus pensamentos. A melhor maneira e a arte de combatê-los consiste em ver no Senhor a imagem que eles nos sugerem e de guardar a reflexão e o intelecto, assim como guardamos os olhos da carne, servindo-nos deles para distinguir o que pode feri-los, afastando deles toda palha, na medida em que o possamos. 122. Assim como a neve jamais poderá gerar a chama, nem a água poderá gerar o fogo, nem o espinheiro poderá dar figos, também o coração do homem não será liberto dos pensamentos, das palavras e das obras demoníacas se não for purificado por dentro, se não tiver unido a sobriedade e a vigilância à prece de Jesus, se não tiver obtido a humildade e a hesíquia da alma, se não tiver buscado e caminhado com muito fervor. Ao contrário, é inevitável que a alma desatenta seja privada dos pensamentos bons e perfeitos, como uma mula estéril que não tem o senso da prudência espiritual [80]. A verdadeira paz espiritual consiste na obra doce, no nome de Jesus e na kénose – a vacuidade, o despojamento de si – dos pensamentos passionais. 521
516[75] 517[76] 518[77] 519[78] 520[79] 521[80]
Cf. João XV, 5. Cf. Mateus XXVII, 5. Cf. Lucas X, 18. Cf. Gênese III, 5. Cf. II Coríntios XI, 3. Cf. Salmo XXXII, 9.
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123. Quando a alma se entende com o corpo para fazer o mal, juntos eles constroem uma cidadela de vanglória e uma torre para o orgulho [81], aonde vão habitar os pensamentos ímpios. Mas pelo temor à Geena, o Senhor queima e destrói seu acordo, obrigando a alma soberana a falar e pensar de modo diferente do corpo e contrário a ele. Deste temor provém a dissensão, pois o cuidado da carne é inimigo de Deus e não se submete à sua lei [82]. 522
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124. É preciso que a cada instante avaliemos nossas obras de todo dia e que as vigiemos, forçando-nos, ao final da tarde, em torná-las o mais leves possível pelo arrependimento, se quisermos, com Cristo, dominar o mal. E devemos examinar se cumprimos com todas as nossas ações sensíveis e aparentes segundo Deus, diante de Deus e por Deus apenas, a fim de que não sejamos roubados pelos sentidos e desprovidos da razão. 125. Se, com a ajuda de Deus e por nossa sobriedade e nossa vigilância, tiramos proveito de cada hora do dia, devemos evitar o ir e vir sem discernimento, bem como nos expor a encontros perigosos que só podem nos prejudicar. É precisa antes desprezar as coisas vãs, para ganharmos a virtude com sua doce e desejável beleza. 126. Devemos colocar para trabalhar as três partes da alma de uma maneira justa, segundo a natureza, tais como foram elas criadas por Deus. Primeiro o ardor, contra nosso homem exterior e Satanás, a serpente. Está escrito: “Levantem-se contra o pecado”, ou seja: levantem-se contra si próprios e contra o diabo, a fim de não pecar contra Deus. Depois é preciso voltar o desejo para Deus e a virtude. Enfim, com sabedoria e ciência, estabelecer a razão entre as outras duas partes – o ardor e o desejo – para regrá-las, adverti-las, repreende-las, comandá-las, como um rei comanda seus servidores. Então a razão que está em nós as governará conforme a Deus, mesmo se as paixões se revoltarem contra ela. Vigiemos para que a razão as dirija. Com efeito, o irmão do Senhor disse: “Se um homem não falhar em sua razão, será um homem perfeito, capaz de refrear todo seu corpo [83]”. Esta é a evidência: por estas três são colocadas em marcha toda virtude e toda justiça. 524
127. O intelecto se cobre de trevas e permanece sem fruto quando fala das coisas deste mundo, ou quando ele reflete e se liga a elas, ou quando o corpo se une à inteligência para se ocupar vaidosamente das coisas sensíveis, ou quando o monge se dedica a futilidades. Pois, rapidamente e por si sós, estas coisas destroem o fervor, a compunção, a liberdade e o conhecimento que temos em Deus. Na medida em que estamos atentos ao intelecto, somos iluminados; mas na medida em que somos desatentos, permanecemos nas trevas. 128. Aquele que a cada dia persegue e busca a paz e a hesíquia do intelecto, deverá desprezar facilmente todas as coisas sensíveis, a fim de não trabalhar em vão. Mas se ele enganar sua própria consciência, ele adormecerá amargamente na morte do esquecimento, aquele de o divino Davi suplicou ser preservado [84]. O Apóstolo disse: “Aquele que sabe o que deve fazer e não o faz, comete um pecado [85]”. 525
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522[81] 523[82] 524[83] 525[84] 526[85]
Cf. Gênese XI, 1-9. Cf. Romanos VIII, 7. Tiago III, 2. Cf. Salmo XIII, 4. Tiago IV, 17.
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129. O intelecto regressa da negligência por sua própria ordem, e retorna à sobriedade e à vigilância se retoma sua supervisão e se restabelecemos em nós seu exercício com zelo ardente. 130. O asno que gira o moinho não irá além do círculo ao qual está amarrado. Da mesma forma, o intelecto que não recolocou em ordem aquilo que está nele, não alcançará a virtude que leva à perfeição. Pois os olhos de seu coração estarão sempre cegos. Ele será incapaz de ver a virtude e a Jesus resplendente de luz. 131. Um cavalo vigoroso e fiel salta de alegria quando recebe seu cavaleiro. Do mesmo modo o intelecto alegre receberá suas delícias na luz do Senhor, na qual, pela manhã, ele penetra, livre de pensamentos. Depois, renunciando a si mesmo, ele irá da potência de sua filosofia prática à indizível potência que contempla os mistérios inefáveis e as virtudes. E quando ele tiver recebido no coração a profundidade dos altos pensamentos divinos, na medida em que seu coração o suportar revelar-se-á diante de seus olhos o Deus dos deuses. O intelecto maravilhado agradecerá amorosamente a Deus que ele vê e que o vê, e que, por uma ou outra destas visões, salva aquele que volta para ele seu olhar. 132. Bem trabalhada, a hesíquia do coração contemplará com todo conhecimento um abismo de alturas, e, de Deus, o ouvido da hesíquia do intelecto escutará maravilhas. 133. O viajante que se prepara para partir em uma longa viagem, difícil e penosa, temendo perder-se na volta, plantará ao longo do caminho sinais para guiá-lo. Estes sinais facilitarão seu regresso. Temendo a mesma coisa, o homem que faz seu caminho na nepsis colocará palavras em seu caminho como se fossem marcos. 134. Para o viajante, regressar ao ponto de partida é motivo de alegria. Mas para o homem sóbrio e vigilante, voltar atrás é a morte da alma dotada de razão, e o sinal de que ele renunciou às ações, às palavras e aos pensamentos que agradam a Deus. Quando sua alma adormecer na morte, ele carregará os pensamentos como aguilhões para despertar à lembrança da grande paralisia e da indolência a que o levou sua negligência. 135. Se cairmos na aflição, no desencorajamento e no desespero, é preciso que façamos conosco o que fez Davi: transbordar nosso coração diante de Deus, repetir ao Senhor, tais como são, nossa necessidade e nossa aflição [86]. Pois confessamos a Deus como a alguém que pode sabiamente dirigir as coisas de nossa vida, consolar nossa aflição se isto nos for útil, e nos libertar da tristeza corporal e corruptora. 527
136. A cólera dirigida contra a natureza para os homens, a tristeza que não é conforme a Deus e a acídia destroem igualmente os pensamentos bons e carregados de conhecimento. Mas quando o Senhor as dispersa pela confissão, ele traz a alegria.
527[86] Cf. Salmo CXLII, 3.
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137. A prece de Jesus unida à sobriedade e à vigilância apaga naturalmente das profundezas da reflexão do coração os pensamentos que, malgrado nossa vontade, aí foram plantados e aí residem. 138. Quando formos afligidos por pensamentos irracionais, encontraremos o consolo e a alegria se nos envergonharmos em verdade e com desembaraço, ou se nos confessarmos ao Senhor como a um homem. Por estas duas vias encontraremos sempre e em tudo o repouso. 139. Moisés o Legislador é considerado pelos Padres como uma imagem do intelecto. Ele viu a Deus na sarsa [87]. Seu rosto trazia a glória [88]. E o Deus dos deuses fez dele um deus para o Faraó [89]. Ele fustigou o Egito [90]. Ele fez partir Israel [91] e lhe deu a lei [92]. Tomados num sentido espiritual, estes eventos são as operações e as prerrogativas do intelecto. 528
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140. A imagem do homem exterior é Aarão, o irmão do Legislador. Acusando com cólera o homem exterior, como Moisés acusou Aarão quando este falhou, dizemos: “Que mal lhe fez Israel para que você procure assim se afastar do Senhor, Deus vivo e todo-poderoso? [93]” 534
141. Quando ressuscitou Lázaro de entre os mortos, o Senhor nos mostrou entre todos os outros bens o seguinte: segurar com um tremor [94] o transbordamento feminino da alma e buscar endurecer o caráter conhecedor, quer dizer, acusar a si mesmo para libertar a alma do egoísmo, da vanglória e do orgulho. 535
142. Assim como não é possível atravessar a imensidão do mar sem um grande navio, também é impossível afastar a sugestão do mau pensamento sem a invocação de Jesus Cristo. 143. Normalmente, a refutação reduz os pensamentos ao silêncio, mas a invocação os expulsa do coração. Com efeito, a sugestão toma forma na alma sob a aparência de uma coisa sensível, como o rosto de alguém que nos contristou, ou a imagem de uma beleza feminina, ou do ouro e da prata. A partir do momento em que estas imagens penetram no campo da reflexão, os pensamentos de rancor, de prostituição ou de avareza que se formam em nosso coração devem ser repelidos um por um. Se nosso intelecto for experiente, se foi instruído, se estiver em estado de guardar a si próprio e de ver com toda pureza, como num céu sereno, as imagens sedutoras e as ilusões dos maus espíritos, ele extinguirá no mesmo instante e com facilidade, pelo desejo, pela refutação, pela prece de Jesus Cristo, as flechas incendiárias do diabo [95]. Ele recusará deixar-se levar pela imaginação passional. E ele não aceitará que nossos pensamentos, abandonando-se à paixão, se conformem à imagem que lhes apareceu, ou que eles se entretenham amigavelmente com ela, ou que nela se demorem ou a consintam. Pois aos pensamentos que assim se abandonam sucedem-se logo as más obras, como os dias sucedem às noites. 536
528[87] 529[88] 530[89] 531[90] 532[91] 533[92] 534[93] 535[94] 536[95]
Cf. Êxodo III, 2. Cf. Êxodo XXXIV, 30. Cf. Êxodo VI, 1. Êxodo VII e ss. Cf. Êxodo XII. Cf. Êxodo XX. Êxodo XXXII, 21. Cf. João XI, 33. Cf. Efésios VI, 16.
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144. Se nosso intelecto não possui a experiência de uma sobriedade e de uma vigilância assíduas, ele rapidamente se misturará ao fantasma apaixonado que lhe aparece, qualquer que seja. Ele lhe fala; recebe dele questões descabidas e dá respostas. Então nossos pensamentos se unem à imagem demoníaca. Esta vai crescendo, e se dilata até parecer desejável, bela e agradável ao intelecto, que se deixa tomar e pilhar. O intelecto sofre então aquilo que acontece aos cordeiros sem malícia quando, na planície em que se encontram, surge um cachorro. Muitas vezes eles correm para aquele que acaba de surgir como se fosse para sua própria mãe. Mas eles não ganham nada em se aproximar do cão. Eles não recebem senão sua indelicadeza e se mau cheiro. Da mesma maneira, nossos pensamentos ignorantes acorrem para todos os fantasmas demoníacos que aparecem no intelecto. A partir do momento em que se misturam a eles, como já disse, podemos vê-los, uns e outros, combinarem entre si para destruir a cidade de Tróia, como Agamenon e Menelau. Pois eles decidem o que virá, para que o corpo coloque em movimento aquilo que, em sua mentira, a sugestão demoníaca fez parecer tão bom e agradável. É assim que se forma desde dentro as quedas da alma. É necessário a partir daí, que aquilo que está dentro do coração seja levado também ao exterior. 145. O intelecto é uma coisa fácil de seduzir e desprovido de malícia. Ele não tem nenhuma dificuldade em correr atrás das imagens, e ele se protege mal dos fantasmas do pecado, se não tiver a seu lado constantemente, para contê-los e refreá-los, o pensamento que domina as paixões. 146. A contemplação e o conhecimento são por natureza os guias e os provedores da vida rigorosa. Pois, elevada por eles, a reflexão chega, considerando seu baixo prêmio, a desprezar os prazeres, as demais coisas sensíveis e as doçuras da existência. 147. Um modo de vida atento levado em Cristo Jesus é por sua vez o pai da contemplação e do conhecimento. Unido à humildade como se fosse sua esposa, ele engendra as ascensões divinas e os pensamentos sábios, como diz Isaías o profeta divino: “Aqueles que esperam o Senhor renovarão suas forças. Pelo Senhor eles voarão, eles abrirão suas asas [96]”. 537
148. Parece duro e difícil aos homens manter a hesíquia na alma, fora de todo pensamento. Com efeito, trata-se de uma coisa laboriosa e penosa. Pois encerrar e manter o incorpóreo dentro dos limites da morada de um corpo não apenas é complicado para aqueles que não foram iniciados na guerra, mas até para os que adquiriram a experiência do combate interior imaterial. Mas aquele que, pela oração contínua, aperta o Senhor Jesus em seu coração, não sofrerá por segui-lo, como diz o Profeta [97]. Ele não desejará mais as luzes do homem, por causa da beleza, do encantamento e da doçura de Jesus. E ele não será confundido pelos seus inimigos, os demônios ímpios que circulam ao seu redor. Ele lhes falará da porta de seu coração, e por Jesus os fará fugir. 538
149. A alma que, pela morte, voou pelos ares, e que tem a Cristo com ela e por ela às portas do céu, também aí não Será confundida pelos seus inimigos, mas agora como então ela lhes falará da porta com segurança. Apenas é preciso que ela nunca cesse, até seu êxodo, de chamar noite e dia pelo Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus. Segundo sua divina promessa, que nunca engana, ele próprio fará pronta justiça,
537[96] Isaías XL, 31. 538[97] Cf. Jeremias XVII, 16.
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como ele disse a respeito do juiz iníquo [98]. Ora, eu lhes afirmo, ele o fará, tanto na vida presente quanto depois que a alma deixar seu corpo. 539
150. Você que navega no mar inteligível, coloque sua confiança em Jesus. Pois ele diz secretamente em seu coração: “Não tema, Jacó meu filho, Israel meu pequenino. Não tema, Israel, vermezinho. Eu o protegerei [99]”, e: “Se Deus é por nós, que malfeitor será contra nós? [100]”. É ele, com efeito, o doce Jesus, o único puro, quem beatificou os corações puros [101] e deu sua lei: é neles, nos corações puros, que ele quer divinamente penetrar e residir. Assim, não cessemos, conforme o divino Paulo, de exercitar o intelecto na piedade [102]. Pois é verdadeiramente com todo direito que é chamada de piedade a virtude que arranca até as raízes aquilo que o maligno semeou. Esta piedade é o próprio caminho da palavra, ou seja, a via da razão, ou a via do pensamento. Em dialeto ático, a via é chamada de caminho e rota; isto é o pensamento. 540
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151. Segundo Davi [103], aquele que não faz acepção de pessoas ao julgar a injustiça em seu coração desfrutará de uma grande paz, ou seja, não acolhe as formas dos maus espíritos quem considera o pecado através destas formas, quem julga com rigor e faz justiça no terreno de seu próprio coração, dando ao pecado o que ele merece. Com efeito, os grandes, os Padres gnósticos, em alguns de seus escritos, e por causa da razão, chamaram os próprios demônios de homens, o que é igualmente ilustrado pela passagem do Evangelho na qual o Senhor diz que um homem mal fez aquilo e que ele misturou a erva daninha ao bom grão [104]. Não existe refutação rápida entre aqueles que fazem o mal. É também por isso que somos devorados pelos pensamentos. 544
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152. A partir do momento em que começamos a trazer para nossa vida a atenção do intelecto, se unirmos a humildade à nepsis e se unirmos a prece à refutação, caminharemos como se deve sobre o caminho do arrependimento. Com efeito, graças à chama da luz, o nome adorável e santo de Jesus Cristo, por amor à beleza nós curamos, varremos, ornamos, purificamos de toda malícia a morada de nosso coração. Mas se confiarmos apenas em nossa sobriedade e nossa vigilância – em nossa nepsis – logo seremos derrubados pelos inimigos, seremos revirados e tombaremos. Os pérfidos e os mentirosos nos abaterão por terra. Seremos logo enlaçados por suas redes: os maus pensamentos. Ou então eles nos imolarão facilmente. Pois estaremos sem a lança poderosa: o nome de Jesus Cristo. Somente esta espada venerável girando constantemente em um coração simples é capaz de envolvê-los, cortar, queimar, reduzi-los a nada, como o fogo que consome a palha. 153. O objetivo último da nepsis incessante – o benefício da alma, seu imenso ganho – consiste em ver, tão logo se formam, os fantasmas dos pensamentos no intelecto. O objetivo da refutação é o de denunciar e revelar o pensamento que tenta penetrar no espaço de nosso intelecto sob a imagem de alguma coisa sensível. Mas aquilo que extingue e dissolve instantaneamente toda palavra, todo pensamento, todo fantasma, toda imagem, todo o mal erigido em nós pelos adversários, é a invocação do Senhor. Com
539[98] Cf. Lucas XVIII, 1-8. 540[99] Isaías XLI, 13. 541[100] Romanos VIII, 31. 542[101] Cf. Mateus V, 9. 543[102] Cf. I Timóteo IV, 7. 544[103] Cf. Salmo XXXVII, 11. 545[104] Cf. Mateus XIII, 28.
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efeito, nós mesmos vemos no intelecto a derrota infligida a eles por Jesus, nosso grande Deus, e o castigo que nos faz justiça, a nós os humildes, os simples, os inúteis. 154. A maior parte de nós ignora que os pensamentos não são mais do que simples imagens das coisas sensíveis e mundanas. Mas se perseverarmos na sobriedade e na vigilância na oração, esta despojará a reflexão de todas as imagens materiais dos maus pensamentos. A reflexão também nos mostrará os cálculos dos adversários, e o grande proveito da oração, da sobriedade e da vigilância. “Você contemplará com seus próprios olhos a retribuição dos pecadores inteligíveis [105]”, diz Davi o divino Salmista. Também você o verá em seu intelecto e então compreenderá. 546
155. Lembremo-nos sem cessar da morte, tanto quanto pudermos. Com esta lembrança nasce em nós o abandono das preocupações e de todas as vaidades, a guarda do intelecto e a prece contínua, o desligamento das paixões do corpo e o desgosto pelo pecado. A bem dizer, quase todas as virtudes escorrem da lembrança da morte como de uma fonte. É por isso que, se o pudermos, devemos servir-nos dela como de nossa própria respiração. 156. O coração inteiramente vazio de imagens engendrará em si pensamentos fluidos, divinos e misteriosos, como fluem os peixes e nadam os delfins quando o mar está calmo. O mar tremula sob a brisa leve, e o abismo do coração sob o Espírito Santo. Foi dito: “Porque vocês são filhos, Deus enviou aos seus corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai [106]”. 547
157. O monge viverá na incerteza e não saberá o que pensar da obra espiritual antes de adquirir a sobriedade e a vigilância do intelecto, seja porque ignora sua beleza, seja porque, conhecendo-a, é incapaz de assumi-la, em sua negligência. Mas sem dúvida ele será libertado da incerteza a partir do momento em que alcançar a guarda do intelecto, que é e é chamado de filosofia da reflexão ou filosofia prática do intelecto. Pois ele terá encontrado o caminho que diz: “Eu sou a via, a ressurreição e a vida [107]”. 548
158. Mas ele cairá novamente na incerteza ao ver o abismo dos pensamentos e a multidão dos pequenos filhos da Babilônia. Mas Cristo dissipará esta incerteza, se nele colocarmos continuamente o próprio fundamento da reflexão. Nós nos separaremos dos filhotes da Babilônia empurrando-os contra este rochedo [108], e cumpriremos assim com nossa promessa, conforme as palavras da Escritura, pois está dito: “Aquele que observa os mandamentos não conhecerá o mal [109]”, e “Sem mim vocês nada podem fazer [110]”. 549
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159. Este será um verdadeiro monge, que cumprirá com sucesso a sobriedade e a vigilância. E o que é verdadeiramente sóbrio e vigilante – neptikos – é monge em seu coração.
546[105] 547[106] 548[107] 549[108] 550[109] 551[110]
Salmo XCI, 8. Gálatas IV, 6. João XI, 25; XIV, 6. Cf. Salmo CXXXVII, 9. Ver nota da sentença 27. Eclesiastes VIII, 5. João XV, 5.
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160. A vida em meio aos homens se desenrola segundo um ciclo de anos, meses, semanas, dias e noites, horas e instantes. É preciso que façamos desenvolverem-se dentro deste ciclo as obras virtuosas, ou seja, a sobriedade e a vigilância, a oração, a doçura do coração, numa hesíquia harmoniosa, até o nosso êxodo. 161. Ele chegará para nós, no momento da morte, ele virá e não é possível escapar-lhe. Possa então o príncipe do mundo e do espaço [111], que então virá também, encontrar em nós poucas e pouco graves iniqüidades pelas quais nos acusar, ou teremos chorado em vão. Com efeito, é dito do servidor que, conhecendo a vontade do seu senhor e não a tendo cumprido em sua qualidade de servidor, que ele será duramente castigado [112]. 552
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162. Foi dito: “Infelizes daqueles que pereceram em seu coração. Que farão eles quando o Senhor os visitar? [113]” É por isso, irmãos, que devemos ser fervorosos. 554
163. Os pensamentos apaixonados seguem de perto os pensamentos simples e aparentemente desembaraçados de paixões, como nos ensinou uma longa experiência e a observação. Os últimos, que são desembaraçados de paixões, abrem o caminho aos primeiros, que são apaixonados. 164. É preciso que o homem seja realmente dividido em dois em sua resolução, que ele seja desmembrado no mais sábio projeto de seu intelecto, como eu já disse, e que ele chegue a ser verdadeiramente um inimigo irreconciliável de si mesmo. A atitude que ele teria para com um homem que o houvesse gravemente e repetidamente afligido e lesado, é a mesma que ele deve ter, daqui para frente, se quiser cumprir o grande e primeiro mandamento, ou seja, a conduta de Cristo, a bem-aventurada humildade, a vida de Deus na carne. É por isso que o Apóstolo diz: “Quem me libertará deste corpo de morte? [114]” Pois ele não está submetido à lei de Deus [115]. Mas, mostrando que cabe a nós submeter este corpo à vontade de Deus, ele diz: “Se examinarmos a nos mesmos, não seremos julgados [116]”. Mas o Senhor nos corrige por seus julgamentos. 555
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165. O começo da frutificação é a flor. O começo da guarda do intelecto é a temperança nos alimentos e bebidas, a recusa e a separação de todo pensamento, e a hesíquia do coração. 166. Quando nos fortalecemos em Jesus Cristo, e começamos a correr com uma sobriedade e vigilância seguras, primeiramente nos aparece no intelecto como que uma lâmpada, que, se a pegarmos, por assim dizer com a mão da inteligência, nos conduzirá sobre o caminho da reflexão. Depois surgirá como que uma lua luminosa que gira no firmamento do coração. Enfim, Jesus nos aparecerá como um sol que irradia justiça, ou seja, ele se mostrará e a suas próprias luzes flamejantes, as luzes daquilo que contemplaremos.
552[111] 553[112] 554[113] 555[114] 556[115] 557[116]
Cf. João XIV, 30; Efésios II, 2. Cf. Lucas XII, 47. Cf. Eclesiástico II, 14. Romanos VII, 24. Cf. Romanos VIII, 7. I Coríntios XI, 31.
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167. Isto é, com efeito, aquilo que ele revela misticamente ao intelecto, quando este persevera em seu mandamento que ordena: “Circuncidem a dureza dos seus corações [117]”. Com já foi dito, a sobriedade e a vigilância atenta mostram ao homem pensamentos que ultrapassam toda medida. Pois o divino não faz acepção de pessoas [118]. É por isso que o Senhor diz: “Escutem-me e compreendam. Àquele a quem foi dado, será dado em maior abundância; mas àquele que nada tem, será tirado até aquilo que acreditava ter [119]”. E: “Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus [120]”. Quanto mais ainda serão eles assistidos pelas virtudes. 558
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168. Um navio não irá longe se faltar água. Da mesma forma a guarda do intelecto não progredirá se lhe faltarem inteiramente a sobriedade e a vigilância unidas à humildade e à prece de Jesus Cristo. 169. As fundações de uma casa são pedras. Mas a fundação e a cumeeira desta virtude é o nome adorável e santo de nosso Senhor Jesus Cristo. O piloto insensato que adormece no momento da tempestade naufragará facilmente, depois que a tripulação se lançar ao mar com os remos e as velas. Mas será ainda mais facilmente engolida pelos demônios, quando sobrevierem as sugestões, a alma que negligencia a sobriedade e a vigilância, e a invocação do nome de Jesus Cristo. 170. Aquilo que sabemos é o que escrevemos. E o que vimos no caminho é o que testemunhamos, se por acaso vocês quiserem receber o que dizemos. Pois ele mesmo disse: “Se alguém não permanece em mim, será lançado fora como a palha que é amassada e atirada ao fogo para queimar. Mas aquele que permanece em mi, eu estarei com ele [121]”. Assim como não é possível que o sol brilhe sem irradiar sua luz, também o 562
coração não pode ser purificado da sujeira dos pensamentos de perdição sem a prece do nome de Jesus. Se isto é verdade – e é o que eu vi – confiemo-nos a este nome como à nossa própria respiração. Pois o nome é luz, e os pensamentos são trevas. O nome de Deus é Mestre, mas os pensamentos são escravos dos demônios.
171. Que a guarda do intelecto seja chamada pelos nomes que lhe são próprios e lhe dão todo o sentido: fonte de luz, fonte de relâmpagos, efusão luminosa, portadora do fogo. Pois, a bem dizer, ela ultrapassa incontavelmente o corporal e todas as virtudes. Por estas luzes fulgurantes que nascem dela, devemos chamar por nomes preciosos esta virtude. Por pecadores e inúteis, imundos e ignorantes, insensatos e injustos que fossem, aqueles que a amam podem se tornar, por Jesus Cristo, justos, bons, puros, santos e sábios. E não apenas isto, mas ainda contemplar os mistérios e se tornarem teólogos. Tornados contemplativos, eles passam a nadar nesta luz puríssima e infinita, eles a tocam com inefáveis intuições, permanecem e vivem nela, pois enfim experimentaram como o Senhor é bom [122]. É assim que nestes príncipes dos anjos se cumpre claramente a palavra do divino Davi: “Os justos confessarão seu nome e os homens direitos permanecerão diante de sua face [123]”. Pois somente tais homens invocam e confessam a Deus sinceramente. Eles o amam e desejam viver sempre com ele. 563
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558[117] 559[118] 560[119] 561[120] 562[121] 563[122] 564[123]
Deuteronômio X, 16. Cf. Romanos II, 11. Lucas VIII, 18. Romanos VIII, 28. João XV, 16. Cf. Salmo XXXIV, 9. Salmo CXL, 14.
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172. Infelicidade interna, quando se é atacado pelas coisas de fora. Pois o homem interior é profundamente afligido pelos sentidos do corpo, mas em sua aflição ele os deve fustigar: aquele que age assim já conheceu as coisas que só podem ser vistas pela contemplação. 173. Segundo os Padres, se nosso homem interior é sóbrio e vigilante, ele é igualmente capaz de proteger o homem exterior. Pois nós e os demônios malfeitores, ambos cometemos juntos os pecados. Eles, pelos simples pensamentos, quando, desenhando imagens a seu bel-prazer, conformam o pecado no intelecto. E nós, pelos pensamentos internamente e pelos nossos atos externamente. É, portanto, pelos simples pensamentos, pela mentira e a enganação, que os demônios, que não possuem o volume de um corpo, atraem sobre e si e sobre nós os castigos. Enquanto estes criminosos não forem privados do volume do corpo, eles não deixarão de pecar em ato, pois eles mantém sua vontade sempre pronta para ultrajar. 174. A oração do simples nome de Deus mata e reduz a cinzas suas mentiras. Pois Jesus Deus e Filho de Deus, contínua e diligentemente invocado por nós, não lhes permite mostrarem ao intelecto, no espelho da reflexão, o menor esboço deste ataque chamado sugestão, nem a menor forma, nem dizer ao coração uma palavra que seja. A forma demoníaca que não penetra no coração permanecerá igualmente vazia de todo pensamento, com já dissemos. Pois é através dos pensamentos que os demônios costumam freqüentar a alma e ensiná-la secretamente a fazer o mal. 175. É, portanto, pela prece contínua que o espaço da reflexão se purifica das nuvens tenebrosas e dos sopros dos espíritos do mal. E quando o espaço do coração é purificado, é impossível que não brilhe nele a divina luz de Jesus, desde que não estejamos inchados de vanglória, orgulho e ostentação, e se não nos elevamos ao inatingível: pois então nos privaríamos do socorro de Jesus, pois o Cristo detesta estas coisas, ele que nos deu o exemplo da humildade. 176. Agarremo-nos então à oração e à humildade, a estas duas coisas que, com a sobriedade e a vigilância, nos armam contra o demônio como uma espada de fogo. Pois se vivermos assim, ser-nos-á possível fazer de cada dia e de cada hora, no mistério e na alegria, uma festa do coração. 177. Os oito pensamentos fundamentais do vício, que contêm todos os pensamentos, e dos quais todos nascem (como de Hera e Zeus nasceram todos os deuses malditos dos gregos, segundo suas fábulas), chegam juntos às portas do coração. Se eles encontram o intelecto sem guarda, eles entram cada um a seu tempo. Mas além disso, cada um dos oito pensamentos, penetrando no coração após aí chegar, faz entrar consigo uma multidão de pensamentos infamantes. Depois de assim entenebrecer o intelecto, ele provoca o corpo incitando-o a cometer ações que o desonrarão. 178. Entretanto, aquele que vigia a cabeça da serpente [124] e que, por meio de uma refutação resoluta, lhe dirige palavras duras como um soco, este a faz recuar. Cortando sua cabeça, ele escapa a muitos pensamentos e obras de grande mal. A partir daí a reflexão permanece em calma, pois Deus acolhe sua vigília que a protege dos pensamentos. Ele lhe concede saber como dominar os adversários, e como purificar pouco a pouco o coração dos pensamentos que sujam o homem interior. Como diz o Senhor 565
565[124] Cf. Gênese III, 15.
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Jesus: “É do coração que saem os maus pensamentos, as prostituições e os adultérios; são estas coisas que sujam o homem [125]”. 566
179. É assim que a alma pode permanecer no Senhor em sua beleza, seu esplendor e sua retidão, tal como foi criada por Deus no princípio, bela e direita. É o que diz o grande servidor de Deus, Antônio: “Quando a alma é dotada de inteligência conforme a natureza, a virtude está assegurada”. Ele diz ainda: “A alma é direita, quando dotada de inteligência segundo a natureza, tal como foi criada”. Pouco depois ele acrescenta: “Purifiquemos a reflexão. De fato, eu creio que, totalmente purificada e devolvida ao seu estado natural, ela pode se tornar clarividente, enxergar de longe os demônios e antes que eles cheguem, pois terá em si o Senhor a revelá-lo”. Eis o que disse o glorioso Antônio, como nos reporta Atanásio na [126] Vida de Antônio. 567
180. Todo pensamento suscita no intelecto a imagem de uma coisa sensível. Pois o intelecto é o Assírio: ele não pode enganar senão servindo-se das coisas que nos são sensíveis e habituais. 181. Assim como nos é impossível perseguir os pássaros que voam pelos ares, porque somos homens, ou voarmos como eles, coisa que nossa natureza não pode fazer, também nos é impossível dominar os pensamentos demoníacos incorpóreos sem uma prece sóbria, vigilante e contínua, e se os olhos do intelecto não estiverem inteiramente voltados para Deus. Caso contrário, é a terra que você está buscando. 182. Assim, se você quiser verdadeiramente cobrir de vergonha os pensamentos, viver na bem-aventurada hesíquia e conhecer facilmente a sobriedade e a vigilância do coração, cole a prece de Jesus à sua respiração, e em poucos dias você receberá o que procura. 183. Do mesmo modo como é impossível escrever letras no ar (pois é preciso que elas sejam traçadas sobre algum corpo para se conservar duradouramente), também devemos colar à nossa nepsis a prece de Jesus Cristo, a fim de que a bela virtude da sobriedade não deixe de permanecer com ele e nos seja sempre protegida por ele sem que nos possam roubá-la. 184. Foi dito: “Coloque suas obras diante do Senhor, e você encontrará a graça [127]”, para que o profeta não diga de nós: “o Senhor está perto da sua boca, mas longe dos seus rins [128]”. Ninguém além de Jesus poderá fixar seu coração na paz, fora das paixões, ninguém senão o próprio Jesus Cristo, que reuniu o que estava separado [129]. 568
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185. Duas coisas entenebrecem igualmente a alma: o diálogo com os pensamentos no intelecto que reflete e, do lado de fora, as conversas e discussões vãs. Aqueles que querem afastar do intelecto todo dano devem assim mortificar esta dupla que gosta de falar em vão: os pensamentos e os homens. E mortificá-
566[125] 567[126] 568[127] 569[128] 570[129]
Mateus XV, 19. Vida e conduta de nosso Pai santo Antônio, 20 e 34. Provérbios III, 3-4. Jeremias XII, 2. Cf. Efésios II, 14.
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los por uma razão fundamentada em Deus, a fim de que o intelecto entenebrecido não relaxe sua nepsis. Pois quando caímos nas trevas do esquecimento, levamos o intelecto à sua perda. 186. Quem guarda a pureza de seu coração com todo fervor terá como mestre o legislador desta pureza, Cristo, que lhe dirá secretamente sua vontade. É o que Davi nos revela quando afirma: “Eu escutarei o que diz em mim o Senhor Deus [130]”. Quanto ao combate do intelecto, mostrando com este deve examinar a si mesmo e qual a proteção que Deus lhe concede em retorno, ele dizia: “O homem diz: Haverá fruto para o justo? [131]” E na seqüência de sua busca, expressando uma reflexão que compreende tanto a pureza quanto o combate, ele disse: “É então Deus quem os julga, os demônios malignos, na terra de nosso coração [132]”. E adiante: “O homem irá às profundezas de seu coração, e Deus será exaltado [133]”. Então consideraremos seus golpes como flechas infantis. 571
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187. Vivamos sempre com o coração instruído pela sabedoria [134], segundo o Salmista, respirando continuamente Jesus Cristo que é o próprio poder de Deus Pai e a sabedoria mesma de Deus [135]. Se, por qualquer circunstância, relaxarmos, se negligenciarmos o que deve fazer o intelecto, na manhã seguinte cinjamos os rins como se deve e ponhamo-nos corajosamente ao trabalho, sabendo que não temos desculpa se não fazemos o bem, uma vez que o conhecemos. 575
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188. Os alimentos nocivos desarranjam o corpo uma vez que os ingerimos, mas quem comeu pouco pode, graças a algum remédio, vomitá-los logo que se sentir mal e não ser mais afetado; da mesma forma, o intelecto, quando recebe e absorve maus pensamentos e sente seu amargor, pode vomitá-los com facilidade e rejeitá-los imediatamente, pela prece de Jesus dita do fundo do coração. É isto que, graças a Deus, nos permitiram a entender aqueles que vivem na sobriedade e na vigilância, a respeito da instrução e, pela instrução, da experiência. 189. Junte ao sopro que passa por suas narinas a sobriedade, a vigilância e o nome de Jesus, ou ainda a incessante meditação da morte a humildade. Sabemos que ambos são de grande auxílio. 190. O Senhor disse: “Aprendam comigo que sou doce e humilde, e vocês encontrarão o repouso de suas almas [136]”. 577
191. O Senhor disse: “Quem se rebaixa como esta criança será elevado; mas quem se eleva será rebaixado [137]”. Ele disse: “Aprendam comigo”. Vêem que ensinamento é a humildade? Ora, seu mandamento é a vida eterna [138] e é a humildade. Portanto, aquele que não é humilde escorrega para fora da vida. Vale dizer, ele se achará nos antípodas. 578
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Salmo LXXXV, 9. Salmo LVIII, 12. Cf. Salmo LIII, 12. Salmo LXIV, 7. Cf. Salmo XC, 12. Cf. I Coríntios I, 24. Mateus XI, 29. Mateus XVIII, 4; XXIII, 12. Cf. João XII, 50.
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192. Toda virtude é construída sobre a alma e o corpo. Ora, a alma e o corpo são criaturas de Deus, e é por intermédio deles que se forma a virtude, como se diz. Como não seríamos nós no cúmulo da loucura gabando-nos de vestes estranhas à alma e ao corpo, enchendo-nos de vanglória, apoiando-nos sobre o orgulho como sobre um junco, e, o mais espantoso de tudo, em nossa total iniqüidade e inconsciência, dirigindo contra nossa elevação o Deus que nos ultrapassa com sua grandeza infinita? Pois o Senhor se opõe aos orgulhosos [139]. Ora, ao invés de imitarmos a Deus na humildade, por um sentimento de vanglória e orgulho, ligamo-nos amigavelmente ao demônio orgulhoso e hostil ao Senhor. É por isso que o Apóstolo dizia: “O que você possui que não tenha recebido?” Você criou a si mesmo? E se você recebeu de Deus o corpo e a alma dos quais, nos quais e pelos quais se forma toda virtude, “porque se glorificar como se não o tivesse recebido [140]”? Foi o Senhor quem lhe fez dom de tais coisas. 580
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193. Em uma palavra, a purificação do coração, por meio da qual a humildade e todo bem descem do alto até nós [141], não é outra coisa do que recusar absolutamente que entrem na alma os pensamentos que se acotovelam. 582
194. Pois quando a guarda do intelecto persevera na alma com Deus e por Deus apenas, ela dá à razão a sabedoria nos combates dedicados a Deus. E não é pequena a vantagem que ela oferece a quem a assume, tornando-o capaz de organizar as obras e as palavras segundo uma escolha que agrade a Deus. 195. Os ornamentos visíveis do Grande Sacerdote no Antigo Testamento eram os sinais de um coração puro. Da mesma forma, devemos estar atentos à gola de nosso coração [142]. Devemos evitar que ela seja enegrecida pelo pecado e vigiar para enxugá-la com lágrimas, arrependimento e preces. Pois o intelecto é uma coisa que se deixa facilmente levar pelos pensamentos ímpios, e difícil de segurar. Ele segue da mesma forma tanto as más como as boas imaginações da razão. 583
196. Verdadeiramente feliz é aquele que colou a prece de Jesus a toda reflexão de seu intelecto, e que chama por Jesus continuamente em seu coração, como o espaço está unido aos nossos corpos e a chama ao pavio. Quando passa sobre a terra, o sol nos dá o dia; da mesma forma, quando o santo e venerável nome do Senhor Jesus não deixa de brilhar na reflexão do intelecto, ele engendra pensamentos luminosos como o sol. 197. Quando as nuvens se dissipam, a ar se torna puro. Da mesma forma, quando, sob o sol de justiça, Jesus Cristo, de dissipam os fantasmas da paixão, não cessam de nascer no coração pensamentos luminosos, semelhantes às estrelas. Pois Jesus ilumina o espaço do coração. Com efeito, diz o Eclesiástico: “Aqueles que colocam sua confiança no Senhor compreenderão a verdade e aqueles que são fiéis no amor permanecerão junto a ele [143]”. 584
580[139] Cf. Provérbios III, 4; Tiago IV, 6. 581[140] I Coríntios IV, 7. 582[141] Cf. Tiago I, 17. 583[142] Cf. Êxodo XXVIII, 32. 584[143] Sabedoria III, 9.
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198. Um dos Santos disse: guarde rancor dos demônios e seja sempre inimigo do corpo. A carne é um amigo enganador. Quando bem cuidada, ela nos combate em seguida. Uma vez mais: deteste o corpo e lute contra o ventre. 199. Nos discursos que escrevemos na primeira e na segunda centúrias, tratamos das penas da santa hesíquia e do intelecto. Estes discursos não foram somente fruto de nossa reflexão, mas também do que as divinas palavras dos Padres cheios da sabedoria de Deus nos ensinaram sobre a pureza do intelecto. E agora que já dissemos o pouco que tínhamos a dizer para mostrar a vantagem da guarda do intelecto, cessaremos de falar. 200. Daqui para frente venha, siga-me para se unir à bem-aventurada guarda do intelecto, quem quer que seja você que deseja em espírito ver bons dias [144] e eu lhe ensinarei no Senhor a obra que temos em vista e como vivem as Potências intelectuais. Pois os anjos jamais se saciarão de louvar o Senhor, nem o intelecto de rivalizar santamente com eles. E assim como os seres imateriais não se preocupam com alimentos, também os seres que são simultaneamente materiais e imateriais tampouco se preocuparão, se entrarem no céu da hesíquia do intelecto. 585
201. Assim como as Potências do alto não se preocupam nem com dinheiro nem com riquezas, também aqueles que purificaram o olho da alma e adquiriram o hábito da virtude não se preocupam com as malfeitorias dos espíritos malignos. E assim como para as primeiras é evidente a riqueza que constitui sua proximidade de Deus, para os segundos serão evidentes seu desejo ardente e seu amor, sua tensão e sua elevação para o divino. Amorosa e insaciavelmente levados sempre mais alto nesta elevação pelo gosto de Deus e o desejo que os coloca fora de si, eles não se deterão até terem alcançado os Serafins, nem relaxarão a nepsis do intelecto e a exaltação do amor até que se tenham tornado anjos em Jesus Cristo nosso Senhor. 202. Não há veneno mais potente do que o da áspide e o basilisco. E não há mal maior do que o mal do amor próprio. Ao redor do amor próprio voejam seus filhos, que são o auto-elogio endereçado ao coração, a suficiência, a gula, a prostituição, a vanglória, a inveja e o coroamento de todos os vícios: o orgulho, que é capaz de fazer cair dos céus não apenas os homens, mas também os anjos, e lhes envolver em trevas ao invés da luz [145]. 586
203. Eis, Teódulo, o que lhe escreveu aquele que traz o nome de hesíquia, mesmo se, na prática, ele não mereça este nome. É verdade que tudo isto não vem de nós, mas de Deus que no-lo deu, ele que, no Pai, no Filho e no Espírito Santo é louvado e glorificado por toda natureza de razão, pelos anjos, pelos homens, por toda a criação formada pela Trindade inefável, o Deus único. Possamos nós descobrir o esplendor de seu Reino, pelas preces da Mãe de Deus puríssima e de nossos santos Padres. A Deus inacessível, a glória eterna. Amém.
585[144] Cf. Salmo XXXIV, 13 586[145] Cf. II Pedro II, 4; Judas VI
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NILO, O ASCETA († 430) A pátria de Nilo era Constantinopla, e seu mestre foi João Crisóstomo. Ele viveu por volta do ano 440. Ele era nobre, e rico. Ele foi prefeito da cidade. Depois ele despediu-se de todos os seus amigos, partiu para o monte Sinai e adotou a vida ascética. Versado tanto na ciência dos monges quanto na do mundo, ele deixou numerosos escritos, cheios de sabedoria espiritual e graça indizível. Destes escritos, ao modo da abelha, extraímos o tratado sobre a prece, dividido em 153 capítulos, e o tratado ascético. Nós saudamos aqueles que os lerão e receberão como favos de mel. Pois estes capítulos em verdade destilam mel e néctar, e prometem o fruto fecundo do socorro. Photius os menciona. Ele diz: “Eu li o tratado de Nilo o monge, dividido em 153 capítulos. Este homem divino desenvolveu aí o tema da oração, e muitos outros temas admiráveis, que atestam perfeição nas obras e poder nas palavras.”
A Filocalia atribui, sob o nome de Nilo o Asceta, o Discurso ascético comumente atribuído a Nilo de Ancara (século V) e do qual possuímos milhares de cartas. Mas esta atribuição está longe de ser garantida.
Conhecemos a existência de muitos monges com o nome de Nilo que viveram na Ásia Menor ou no Egito na mesma época. Recentemente, Bernard Flusin descobriu escritos ascéticos de um certo Nilo de Sceta desconhecido até o presente. O padre Bettiolo, sobretudo, publicou a edição crítica siríaca de um Discurso composto pelo santo Mar Nil, solitário egípcio, sobre a observância da vida monástica, que lembra muito o Discurso ascético grego. O autor residiu em Alexandria, onde conheceu um solitário egípcio a quem ele relaciona o propósito. Podemos pensar com Bettiolo que os dois tratados são do mesmo autor e representam dois estágios de um única obra, sendo que a versão siríaca corresponderia ao estágio mais antigo.
A tradução que apresentamos foi feita a partir do grego da Filocalia, mas mantendo algumas variantes da edição de Suarez reproduzida por Migne. A comparação com o siríaco nos auxiliou a elucidar algumas passagens difíceis e a assinalar as grandes divisões da obra. A primeira parte, sobre a decadência do monaquismo, está ausente do siríaco, e a ordem dos dois tratados é inversa. Antes das qualidades e deveres do mestre espiritual (grego: 21 a 41; siríaco: 25 a 35), o siríaco expõe as
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exigências da renúncia e da ascese para aquele que se engaja na vida monástica (siríaco: 3 a 24; grego: 42 a 71).
Embora certamente o discurso não seja de Evagro, a influência do célebre monge-filósofo das Kellia é inegável.
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DISCURSO ASCÉTICO Os gregos não tinham verdadeiros filósofos
[1] [1] Muitos gregos e mais de um dentre os judeus se dedicaram a filosofar, mas somente os discípulos de Cristo seguiram a verdadeira filosofia, pois apenas eles tiveram por mestre a própria Sabedoria, manifestando por suas obras a conduta conveniente a tal procura. Com efeito, os primeiros (os gregos), com atores em cena, enfeitavam-se com uma máscara estrangeira, portando um título vazio e sem nenhuma filosofia verdadeira; com seu manto, sua barba e seu bastão eles pretendiam ser filósofos, mas cuidavam apenas do corpo e serviam à concupiscência como sua dona, sendo escravos do ventre e considerando os prazeres do sexo como atos naturais; presas da cólera, perseguindo a glória, precipitavam-se sobre as mesas bem guarnecidas como cachorrinhos, sem saber que o filósofo deve ser antes de tudo livre e fugir da escravidão das paixões mais até do que da do dinheiro e da servidão dos escravos. Pois o fato de ser escravo dos homens não desmerece em nada aquele que vive retamente, mas o hábito de se submeter às paixões como a suas donas, pelo prazer, traz a desonra e grande desprezo. 587
[2] Dentre eles, alguns, negligenciando inteiramente a prática, imaginavam possuir uma filosofia racional, porque dissertavam nas nuvens e interpretavam coisas que não podiam ser demonstradas, pretendendo conhecer a altura do céu, as dimensões do sol e os movimentos dos astros. Também havia os que tentavam dissertar sobre as coisas divinas, em um domínio no qual a verdade é inacessível e as conjecturas são perigosas, uma vez que viviam de moído mais abjeto do que os porcos que chafurdam na lama. Mesmo quando alguns deles se dedicavam à prática, tornavam-se ainda piores do que os outros porque o faziam pela glória e os elogios; era, de fato, apenas pela ostentação e a vaidade que estes infelizes agiam na maior parte das vezes, não obtendo com suas penas senão um salário insignificante e desprezível. De fato, conter-se continuamente, alimentar-se de ervas, cobrir o corpo com mantos miseráveis e passar a vida encerrado em um tonel sem esperar nenhuma recompensa após a morte é o cúmulo da loucura, pois assim se perde da vida os frutos da virtude, impondo-se uma luta sem prêmio, um combate contínuo sem troféu e batalhas das quais só se recolhe o suor.
Nem os judeus
[3] Quanto aos judeus que abraçaram esse gênero de vida, são todos descendentes de Jonadab que, pretendendo viver da mesma maneira, habitam em tendas, abstêm-se de vinho e de todo alimento escolhido, e não têm senão uma alimentação reduzida, limitada às necessidades do corpo [2]. Eles tomam o maior cuidado com as disposições morais e passam a maior parte do tempo em contemplação, donde o nome de Essênios que receberam, exprimindo sua sabedoria, e a finalidade de 588
587[1] 588[2]
Entre colchetes figuram as divisões da PG 79, 719-810. Cf. Jeremias XLII, 6.
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sua filosofia é irrepreensível de todos os pontos de vista, e suas ações não o contradizem de modo algum. Mas que frutos obtêm eles de seus combates e de sua luta sofrida, eles que deram morte a Cristo, o mestre da luta? Para eles igualmente, a recompensa dos sofrimentos é suprimida, porque eles recusam aquele que concede os prêmios e a vida verdadeira. Desta forma ele se perdem fora da filosofia. Pois a filosofia é a retidão dos costumes com o conhecimento da verdadeira doutrina a respeito Daquele que é. Tanto os judeus como os pagãos afastaram-se disto, tendo recusado a Sabedoria descida do céu e tentado filosofar sem Cristo, que é o único a traduzir em obras e palavras a verdadeira filosofia.
Somente os discípulos de Cristo viveram conforme a verdadeira filosofia
[4] Ele foi, com efeito, o primeiro a desbravar o caminho com sua vida, mostrando uma conduta pura, elevando continuamente a alma acima das paixões do corpo e finalmente desdenhando-o quando a salvação dos homens, da qual se encarregava, exigiu sua morte. Ele nos ensinou assim que aquele que abraça corretamente a filosofia superior deve, de um lado, rejeitar todos os prazeres da vida em de outro lado, sofrer e dominar inteiramente as paixões desprezando o corpo; ele não deve agarrar-se à vida e estar pronto a perdê-la se for preciso testemunhar assim a virtude. É o modo de vida que os santos apóstolos imitaram quando foram chamados, renunciando ao mesmo tempo às suas vidas, desdenhando pátria, raça e riquezas para passar a um existência dura e sofrida, caminhando através de todas as dificuldades, atormentados, maltratados, perseguidos, despojados, privados até do necessário. Finalmente, eles enfrentaram corajosamente a morte, imitando em tudo o Mestre e deixando assim a imagem da mais bela conduta.
Os cristãos iriam em seguida reproduzir seu exemplo e, como nem todos possuíam a vontade ou a força para imitá-los, alguns conseguiram elevar-se acima das confusões do mundo e fugir da agitação das cidades. Saindo deste mundo para abraçar a vida solitária, eles levaram para ela a marca da virtude apostólica, preferindo a pobreza à propriedade para não se deixar distraírem; preferindo a comida improvisada do que os alimentos escolhidos, por causa da revolta das paixões, eles satisfaziam as necessidades do corpo com o que encontravam; desdenhando como invenções da preguiça humana as vestes macias e supérfluas, eles se contentavam, para as necessidades do corpo, com uma vestimenta simples e sem luxo [e desprezavam as delícias]; considerando como estranho à filosofia o espírito que rejeita as coisas celestes para se ocupar das coisas aqui de baixo e daquilo que nos é comum com os animais, eles ignoravam o mundo e viviam fora das paixões humanas; nenhum deles cometia nem sofria fraudes; nenhum julgava nem era julgado.
[5] Com efeito, cada qual tinha como juiz íntegro sua própria consciência, ninguém vivia na opulência, ninguém na indigência; ninguém era esgotado pela fome, ninguém se locupletava de manjares, pois a liberalidade dos ricos sustentava as necessidades dos indigentes. Havia eqüidade e repartição igual, as desigualdades foram suprimidas pelo esforço comum voluntário dos superiores com os inferiores. Ou melhor, não era exatamente uma igualdade, pois o zelo com que cada um se apressava em rebaixar-se criava uma desigualdade, como hoje faz a mania de rivalizar para ver quem obtém a maior glória. A
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inveja estava excluída, o ciúme proscrito, a vanglória banida, o orgulho expulso, todas as causas de contestações estavam suprimidas. Alguns estavam mortos para as mais fortes paixões e insensíveis, e nem em sonhos tinham fantasmas; desde o começo, eles haviam afastado as lembranças. Pela a ascese cotidiana e a paciência, eles alcançaram este estado e se tornaram como chamas que brilhavam nas trevas, estrelas fixas resplendentes na noite sombria da vida, que mostravam a todos um acesso fácil ao porto, ao abrigo da tempestade, a fim de escapar sem danos aos ataques das paixões.
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TI, VII – NILO, O ASCETA – I Decadência do Monaquismo.
I DECADÊNCIA DO MONAQUISMO
Uma funesta volta atrás
[6] Mas esta conduta perfeita e esta vida celeste, tal como uma imagem que se degrada pouco a pouco pela negligência daqueles que a reproduzem através dos tempos, chegou a uma extrema dissemelhança e perdeu completamente sua conformidade em relação ao modelo. Pois aqueles que haviam se crucificado ao mundo e renunciado à vida, renegando sua condição de homens e esforçando-se por ganhar a natureza das potências incorpóreas partilhando sua impassibilidade, voltaram atrás, aos negócios da vida e aos ganhos condenáveis, empanando a perfeição daqueles que viviam no bem e acabando por difamar com sua própria negligência os que deveriam merecer ser glorificados e celebrados por sua virtude; nós mantemos a marcha da carruagem conservando o santo hábito, mas não estamos aptos para o reino dos céus, porque miramos atrás [3] e esquecemos daquilo ao que deveríamos nos dedicar com o maior zelo. O objeto de nossa busca não é mais o prêmio vantajoso e imediato daquela vida, e não apreciamos mais o estado de hesíquia favorável à libertação de nossas antigas manchas, mas preferimos uma quantidade de coisas que criam uma preocupação inútil em relação ao verdadeiro objetivo, e a busca dos bens materiais supera as exortações salvadoras. 589
O desdém pelos mandamentos do Senhor
O Senhor nos ordenou renunciar inteiramente às preocupações terrestres e buscar apenas o reino dos céus [4]; mas como nós nos apressamos em caminhar no sentido oposto, não levamos em conta os mandamentos do Mestre e, descartando esta solicitude, colocamos nossas esperanças em nossas próprias mãos. Com efeito, disse o Senhor: “Observem os pássaros do céu: eles não semeiam nem colhem, eles não acumulam em celeiros, e nosso Pai celeste os alimenta [5]”. E também: “Observem os lírios do campo, como eles crescem: eles não tecem nem fiam [6]”. Ele nos proíbe de carregarmos bolsa, saco ou bastão e nos ordena apoiarmo-nos unicamente sobre a promessa mais verídica que ele fez ao enviar seus discípulos em missão para proveito dos outros homens, ao dizer: “O trabalhador merece seu alimento [7]”, sabendo que este é mais assegurado pela Providência do que por nosso trabalho. 590
591
592
593
589[3] 590[4] 591[5] 592[6] 593[7]
Cf. Lucas IX, 62. Cf. Mateus VI, 33. Mateus VI, 26. Mateus VI, 28. Mateus X, 10.
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[7] Nós, porém, ao contrário, nunca deixamos de adquirir toda a terra que podemos, e ajuntamos tropas de ovelhas, bois de carga sem igual na forma e no talhe, e asnos bem fornidos, para que nos forneçam em abundância a lã necessária, para que os bois sirvam a todos os trabalhos agrícolas que nos trarão nossos alimentos e sua forragem, a eles e aos outros animais, e, enfim, para que as bestas de carga tragam de outros lugares os gêneros que nos faltam aqui, assegurando assim a alimentação necessária e tornando a vida mais agradável. Além disso, dentre as artes, escolhemos as mais lucrativas, que não nos deixam um instante para que pensemos em Deus, ocupando todo o nosso tempo livre, interditando-nos, seja aquele que vela por nós, seja nossa antiga profissão: pois mesmo não o reconhecendo em palavras, somos acusados pela prática. Sentimos prazer no modo de vida dos seculares quando nos dedicamos às mesmas coisas que eles e nos consumimos principalmente nos trabalhos corporais a ponto de, na maior parte das vezes, não vermos na piedade senão um modo de auferir benefícios [8], e só buscamos a vida tranqüila e bem-aventurada de antanho para escapar aos serviços penosos através de um simulacro de piedade e para prolongarmos a concupiscência das coisas sensíveis graças à liberdade de desfrutar as coisas que nos concedemos, e tratamos descaradamente tanto os mais simples como os mais elevadas. A vida religiosa é para nós fundamento de despotismo, não de humildade e doçura. 594
Desta forma, somo vistos, por aqueles que deveriam nos honrar, como uma vulgar malta, e, vivendo principalmente nos mercados, somos a chacota dos homens aos quais nos misturamos, não tendo nada do que deveríamos para nos destacar em excelência sobre os demais. Desejando a notoriedade não por nossas vidas, mas por nosso hábito, recusamos os labores da virtude e ambicionamos tolamente sua glória, não exibindo senão uma sombra da verdade de antanho.
[8] Hoje em dia, tomamos este hábito venerável sem lavarmos a sujeira de nossas almas e sem eliminarmos no espírito as marcas deixadas pelos pecados de antes, mas continuando a ser violentamente excitados por suas imagens; sem havermos retificado os costumes de acordo com a regra da qual fizemos profissão e ignorando qual o objetivo da filosofia em conformidade com Deus, renovamos a atitude dos fariseus orgulhando-nos apenas de nosso hábito, como se houvéssemos adquirido a virtude, e circulamos portando armas cujo manejo desconhecemos. Pelo hábito visível, ostentamos uma gnose que sequer provamos com os lábios; é um recife ao invés de um porto, um sepulcro caiado [9] ao invés de um templo, um lobo no lugar do cordeiro [10], feito para a perda daqueles que se deixam levar pelas aparências. 595
596
Os monges vagabundos e parasitas
Incapazes de sustentar a vida regular, tais homens fogem dos mosteiros e se metem nas cidades, sob o impulso das necessidades do ventre, levando como um disfarce as aparências da piedade [11], para 597
594[8] 595[9] 596[10] 597[11]
Cf. I Timóteo VI, 5. Cf. Mateus XXIII, 27. Cf. Mateus VII, 15. Cf. II Timóteo III, 5.
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enganar o maior número possível, e dispostos a fazer tudo o que lhes determinar as necessidades do corpo. Com efeito, nada é mais violento do que uma necessidade natural que imagina um modo hábil de passar através dos obstáculos, sobretudo quando a ela se mistura uma preguiça inveterada; o pretexto se apresenta então mais perfidamente. É assim que eles batem Às portas dos ricos, não deixando nada a dever ao parasitas. Nas praças, eles correm diante deles como escravos, afastando os que se aproximam, expulsando os que vêm ao encontro, esforçando-se por abrir caminho àqueles a quem cortejam, e fazendo tudo isso de olho na boa mesa, incapazes de refrear o gosto pelos manjares saborosos e não querendo levar à cintura o bastão prescrito por Moisés para enterrar os excrementos [12]. Se o fizessem, saberiam que o ânus é o fim de todo prazer alimentar e que tudo o que parece satisfazer os desejos do corpo dissimula as torpezas da concupiscência indecente. 598
[9] É por isso que o nome de Deus é blasfemado [13]; a vida desejável se tornou abominável e o tesouro daqueles que vivem de forma verdadeiramente virtuosa é visto como uma enganação. As cidades estão cheias desses vagabundos, os habitantes são importunados e tomados de repugnância ao vê-los bater às portas e mendigar descaradamente. Muitos destes miseráveis, admitidos ao interior, mostrando um mínimo de piedade e escondendo sob uma máscara de hipocrisia sua má reputação, despedem-se assim que conseguem despojar seus anfitriões de seus bens. Desta forma, eles fazem de tudo para desconsiderar a vida monástica, de tal modo que aqueles que antes sábios e conselheiros são agora expulsos das cidades como uma praga. São caçados como malditos, não menos do que leprosos, e os ladrões e assaltantes são mais dignos de confiança do que aqueles que levam a vida monástica, pois é mais fácil defender-se da malícia evidente do que das aparências enganadoras. 599
Estes monges sequer começaram a servir a Deus, pois não entenderam o fruto que se pode retirar da hesíquia. Talvez eles tenham chegado à vida monástica sem considerar o que faziam, por alguma necessidade, supondo que seria um bom meio de ganhar a subsistência, o que, penso eu, teriam feito de forma mais honrada se fossem simplesmente mendigar às portas e se o hábito monástico lhes impedisse de procurar ganhos mais abundantes. Procurando sempre uma parte para o corpo, eles não buscam apenas o necessário, mas tudo o que a indolência dos afeminados inventou segundo sua ilimitada concupiscência. Tais enfermos são realmente impossíveis de curar.
[10] Com efeito, como explicar o valor da saúde a pessoas que jamais a experimentaram, que são doentes contumazes desde o berço e que pensam, pelo costume adquirido, que a condição doentia da vida não difere do estado normal? Toda palavra feita para corrigi-los é vã, quando os ouvintes, não tendo outra inclinação do que para o mal, estão indispostos aos conselhos que lhes são dados e, sobretudo quando a esperança de proveito alimenta a concupiscência, a paixão cerra os ouvidos a todo aconselhamento, de tal forma que as exortações à temperança são incapazes de se introduzir em um espírito voltado para a atração do ganho, por mais vergonhoso que seja.
598[12] 599[13]
Cf. Deuteronômio XXIII, 14. Cf. Isaías LII, 25; Romanos II, 24.
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Não viver em contradição com nossa profissão
Mas nós, ó bem-amados, que, por amor à virtude, pensamos, renunciamos à vida presente e rejeitamos as concupiscências deste mundo [14] para fazermos a profissão de seguir a Cristo, porque nos deixamos enlaçar pelas distrações da vida e reconstruímos aquilo que tão bem destruímos? Porque cedemos aos maus conselhos daqueles que não agem como convém, atiçando os desejos dos mais fracos na busca de vaidades e engajando os mais simples no caminho da cupidez? 600
[11] O Senhor, com efeito, nos ordenou cuidarmos e não provocar aqueles que vacilam, nos ordenou visarmos antes o benefício do próximo do que aquilo que nos agrada [15]. Assim, ao não seguirmos nossos impulsos instintivos, evitaremos escandalizar muitos dos mais simples, mostrando para eles um pretexto para desejar as coisas terrestres. Porque fazemos nós tantas coisas que nos ensinaram a desprezar, permanecendo ligados às riquezas e propriedades e dispersando nossa inteligência em preocupações múltiplas e inúteis? A preocupação com tudo isso nos desvia das ocupações mais necessárias, nos faz negligenciar os bens da alma e leva a um grande abismo os que são fascinados pelas coisas brilhantes da vida e que vêem a suprema felicidade na fruição da riqueza. Nós vemos aqueles que fazem profissão de filosofia vangloriar-se de estarem acima dos prazeres e nos apressamos mais do que eles em buscá-los. Nada conduz mais fatalmente ao castigo do que se unir aos imitadores de seus vícios. Pois a perda dos discípulos aumenta a pena do mestre e, não tendo eles rejeitado como coisa vergonhosa esta imitação, incorrerá aquele numa condenação que não será pequena, por haver ensinado seus vícios. Por julgar infame tal ensinamento, os sábios se abstiveram dele. 601
Que ninguém fique ofuscado pelo que dizemos, mas corrija-se do mal cometido pela negligência de muitos, por vergonha do nome que se carrega, ou então que este nome seja recusado. Pois se nos apresentamos como filósofos, as riquezas são supérfluas para a pureza da alma, uma vez que a filosofia faz profissão de ser estranha até ao próprio corpo. Se, ao contrário, nos apressamos em adquirir bens e desfrutar dos prazeres da vida, porque celebrar por palavras a filosofia e adotar de fato uma conduta oposta, cumprindo práticas contrárias àquilo que professamos e aos veneráveis títulos com que nos guarnecemos?
Não discutir pelos bens terrestres
[12] Nós não consideramos mais como vergonhoso que pessoas que são consideradas como inferiores e a quem chamamos de mundanas nos reprovem por violarmos as leis do Salvador, e que eles nos ensinem os mandamentos do Senhor que desprezamos, quando nós é que deveríamos ensiná-los. De fato, quando discutimos, eles nos dizem: “Um servidor do Senhor não deve discutir, mas ser afável
600[14] Cf. Tito II, 12. 601[15] Cf. I Coríntios X, 24. 208
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com todos [16]”, ou, quando disputamos entre nós por riquezas ou propriedades: “Se alguém pede sua túnica, dê-lhe também o manto [17]”. Que fazem eles, senão rir-se de nós e reprovar a contradição entre nossa conduta e nossa profissão? Com efeito, não é necessário discutirmos com quem quer se apropriar de nossos bens e fazer tudo o que exige o cuidado com estes. Alguém pretende deslocar o limite de sua vinha para aumentar a própria? Um outro introduz seu rebanho no seu campo, ou desvia a água que corre em seu jardim? Devemos enfurecer-nos e nos tornarmos piores do que os insensatos para defender tudo isto nos mínimos detalhes e ter sempre diante dos tribunais o intelecto que deveria estar dedicado à contemplação dos seres? Porque transformar a faculdade contemplativa em manobras judiciárias, para o ganho de coisas que não têm utilidade? Porque reivindicar como nossos bens que não nos pertencem e nos carregarmos assim com pesadas cadeias? Nunca ouvimos as imprecações do profeta: “Infeliz daquele que se apropria daquilo que não lhe pertence e torna seu jugo ainda mais pesado [18]”? Com efeito, se aqueles que nos perseguem são rápidos, conforme as palavras: “Os que nos perseguem são mais rápidos do que as águias no céu [19]”, e se nós nos sobrecarregamos com os negócios do século, é evidente que, retardados na corrida, seremos fáceis presas para os inimigos, estes inimigos dos quais Paulo nos exorta a fugir: “Fujam da luxúria e da avareza... [20]” Aqueles que correm para obter o prêmio devem ser apressar-se impulsivamente, pois do contrário jamais o obterão, pois os inimigos que os perseguem têm pernas muito mais rápidas. 602
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[13] Um grande obstáculo para aqueles que tendem à virtude é a ligação com as coisas do mundo, que muitas vezes conduz à ruína tanto do corpo como da alma. De fato, o que causou a perdição de Naboth o Israelita? Não foi um vinhedo cobiçado a causa de sua morte, levando ao assassinato seu vizinho Acab [21]? O que lançou fora das promessas duas tribos e meia senão a abundância de gado [22]? O que afastou Lot de Abraão? Não foi o grande número de ovelhas que provocou as contínuas discórdias entre os pastores, até finalmente obrigá-los a se separar [23]? A posse chega ao ponto de levar ao assassinato os que possuem rebanhos, afastam os que os possuem do convívio com os melhores, dividem as famílias e transformam amigos em inimigos. Elas não têm nada em comum com a vida futura, e sequer são de grande utilidade para a vida em um corpo. Porque então abandonar o serviço de Deus para nos dedicarmos inteiramente à vaidade? Não é assim que arruinamos a saída de nossa vida? 607
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Deus dá o necessário
Deus nos fornece o necessário. Sem a ajuda de Deus, o esforço do homem carece necessariamente de objetivo, enquanto que a providência de Deus, mesmo sem a ação humana, realiza bens perfeitos. Que proveito tiveram aqueles a quem Deus disse: “Vocês semearam em abundância, e o pouco que
602[16] 603[17] 604[18] 605[19] 606[20] 607[21] 608[22] 609[23]
II Timóteo II, 24. Mateus V, 40. Habacuc II, 6. Lamentações IV, 19. Cf. I Coríntios VI, 18; Efésios V, 3; Colossenses III, 5. Cf. I Reis XXI. Cf. Números XXXIV, 15. Gênesis XIII, 5 e ss.
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colheram eu arrancarei de suas mãos [24]”? Ao contrário, aos que vivem na virtude, o que de necessário faltou, enquanto eles não se preocupavam com tal? Durante os quarenta anos passados no deserto, os Israelitas subsistiram sem cultivar a terra, mas não lhes faltou alimento, pois vinha-lhes do mar um alimento maravilhoso sob a forma de codornas e do céu uma chuva insólita e extraordinária que lhes trazia o maná [25]. Um rochedo seco, uma vez rompido, forneceu uma fonte abundante [26]. As vestes e as sandálias foram-lhes fornecidas todo o tempo [27]. Por meio de qual trabalho na terra foi Elias alimentado na torrente? Não lhe chegou o alimento pelos corvos [28]? E no seu retorno a Sarepta, não lhe forneceu o pão uma viúva indigente, que ela tirou da boca de seus próprios filhos [29] para mostrar que a virtude está muito acima da natureza? 610
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Nem só de pão vive o homem
[14] Tudo isso é espantoso e ao mesmo tempo admissível, pois podemos até viver sem comer se Deus o quiser. Com efeito, como pode Elias caminhar durante quarenta dias apenas com as forças recebidas de uma única refeição [30]? Da mesma forma, como pode Moisés permanecer oitenta dias conversando com Deus sobre a montanha sem tomar nenhum alimento humano? Pois, tendo descido depois de quarenta dias e quebrado as tábuas da lei, encolerizado por causa do bezerro de ouro, ele retornou para outros quarenta dias na montanha e somente depois de ter recebido novas tábuas retornou ao povo [31]. Que raciocínio humano poderá explicar tais milagres? Como poderia a frágil natureza do corpo sobreviver tanto tempo esgotado sem nada receber para manter sua energia vital? A palavra divina resolve a dificuldade: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus [32]”. Porque, então, rebaixamos a vida celeste até o nível da terra embaraçando-nos com preocupações materiais? Porque nos abraçamos aos detritos, nós que antes estávamos vestidos de púrpura, como disse Elias nas suas Lamentações [33]? De fato, enquanto nos deleitávamos em pensamentos belos e fervorosos, estávamos elevados em púrpura; mas quando, relaxando este estado, nos misturamos aos negócios terrestres, abraçamos os detritos. 616
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Não caminhar sempre sobre as mãos ou rastejando
Porque, ao perdermos a esperança em Deus, nos apoiamos sobre a carne de nossos braços, e atribuímos ao trabalho de nossas mãos os dons da providência do Mestre? Aquilo que Jó considerava 610[24] 611[25] 612[26] 613[27] 614[28] 615[29] 616[30] 617[31] 618[32] 619[33]
Ageu I, 9. Cf. Êxodo XVI, 6. Cf. Êxodo XVII, 6. Cf. Deuteronômio VIII, 4. Cf. I Reis XVII, 6. Cf. I Reis XVII 10 e sg. Cf. I Reis XIX, 8. Cf. Êxodo XXIV, 18; XXXII, 19-20; XXXV, 29. Mateus IV, 4. cit. Deuteronômio VIII, 3. Cf. Lamentações IV, 5.
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como o maior de seus pecados, o de levar a própria mão à boca e beijá-la [34], nós não hesitamos em fazer. De fato, a maior parte das pessoas tem o costume de beijar as mãos daqueles de quem dizem provir sua subsistência, aqueles que a Lei designa simbolicamente, por alusão, ao dizer: “Aquele que caminha sobre as mãos é impuro, assim como o que tem muitos pés, e o que caminha rastejando é sempre impuro [35]”. Caminha sobre as mãos quem se apóia em suas mãos, colocando toda sua esperança nelas; quem caminha rastejando é o que é fascinado pelas coisas sensíveis e que obriga sempre sua razão a delas se ocupar; quem tem muitos pés é aquele que por todos os modos se liga às coisas materiais. É por isso que o sábio autor dos Provérbios não diz que o perfeito tem dois pés, mas apenas um, sendo assim raramente afetado pelas coisas corporais: “Coloque raramente seu pé junto ao seu amigo, para evitar que ele, cansado de você, o deixe [36]”. Pois se alguém raramente importuna a Cristo por suas necessidades do corpo será amado por ele. É com efeito a isto que devem tender amigos tais como o Senhor quer, quando diz aos seus discípulos: “Vocês são meus amigos [37]”. Ao contrário, se o fizermos com frequência, nos tornaremos odiosos. 620
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[15] A quem se submeterá, e como não será rejeitado aquele que todo o tempo se ocupou de suas necessidades corporais e jamais se ergueu para viver retamente? Este não possui pernas acima dos pés para se elevar acima da terra. Com efeito, assim como as pernas carregam toda a massa do corpo, e quando este se aproxima do solo, o fazem levantar-se no ar, também a faculdade do discernimento das coisas da natureza, depois de se ter rebaixado até as necessidades do corpo, redirecionam vivamente o pensamento para as coisas do alto, sem nada carregar das sujeiras terrestres.
Ter as pernas retas é a condição daqueles que não estão ligados aos prazeres e que não jazem constantemente por terra; também é próprio das santas Potências, que não têm nenhuma necessidade das coisas corporais nem sentem nenhuma atração por elas. É o que significa, penso eu, a palavra do grande Ezequiel: “Suas pernas eram retas e seus pés possuíam asas [38]”. Isto indica a retidão do pensamento e a prontidão desta natureza para captar as coisas espirituais. Convém aos homens ter pernas que se dobram para acomodá-los tanto às necessidades corporais como às ocupações que elevam a alma. Pelo parentesco da alma com as Potências do alto, deveríamos viver a maior parte do tempo com elas nos céus, mas devido à constituição do corpo temos que nos ocupar da terra na medida m que o exige a necessidade. Deixar-se levar constantemente pela busca dos prazeres é impuro e indigno do homem que compartilha da ciência espiritual. Devemos lembrar que não é o fato de caminhar rastejando que torna o homem impuro, mas o de caminhar constantemente assim. Quem vive num corpo tem um tempo concedido aos cuidados deste corpo. Com efeito, Jônatas, quando combateu contra Naás o Amonita, obteve a vitória sobre ele rastejando [39], mas ele então conformou-se com uma única exigência da natureza, pois era preciso que ao se bater contra a serpente que sobe pelo peito (que é o significado de Naás) ele adotasse por um momento o mesmo modo de avançar, rastejando, para logo se levantar em sua postura habitual e assim vencer facilmente seu adversário. 624
625
620[34] 621[35] 622[36] 623[37] 624[38] 625[39]
Cf. Jó XXXI, 27. Levítico XI, 27.42. Provérbios XXV, 17. João XV, 14. Ezequiel I, 7. Cf. I Samuel XIV, 13.
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Desconfiar dos sentidos
[16] Quê nos ensina a história de Isbaal [40], senão que não devemos cuidar demais das coisas corporais e que não devemos confiar nos sentidos para guardá-las? Ele era um rei, repousava em seus aposentos e havia ordenado à sua mulher que vigiasse a porta. Mas os filhos de Remon vieram e a encontraram limpando o trigo e sonolenta. Eles entraram secretamente e mataram Isbaal a quem encontraram dormindo. Todos dormem, o intelecto, a alma [a reflexão] e os sentidos, quando se ocupam das coisas corporais. Pois a porteira ocupada em limpar o trigo indica o pensamento aplicado às coisas corporais e fazendo isto com todo o zelo, não como uma coisa acessória. Pois está claro que não é o sentido literal que nos conta a Escritura. Com efeito, como teria um rei sua mulher como porteira, quando ele deveria ser guardado por numerosos soldados, tendo ao seu redor todo o aparato de sua dignidade? E como poderia ele ter se rebaixado a ponto de fazer com que sua mulher ficasse limpando o trigo? É que muitas vezes detalhes inverossímeis se misturam à história para a verdade das coisas significadas. O intelecto é como um rei em cada um de nós, tendo a reflexão como porteiro dos sentidos. Quando esta é absorvida pelas coisas corporais (e purificar o trigo é de fato uma ação corporal), os inimigos passam desapercebidos com facilidade e destroem o intelecto. Eis porque o grande Abraão não confiava em uma mulher para vigiar sua porta, pois ele sabia que os sentidos enganam: fascinados pela visão das coisas sensíveis, eles distraem a inteligência e a convencem a partilhar de seus prazeres, mesmo quando isto é manifestamente perigoso. Mas o próprio Abraão mantinha-se à porta [41], deixando entrar os pensamentos divinos e fechando a porta aos cuidados do mundo. 626
627
Contentar-se com o estritamente necessário
Com efeito, de que os serve, para a vida, toda a inquietude que sofremos por tudo isso? Não é todo o trabalho humano destinado apenas a encher sua boca, como diz o Eclesiastes [42]? Comida e vestes, segundo o Apóstolo, bastam para a existência desta carne miserável [43]. Porque então trabalhar sem fim para o vento, como diz Salomão [44]? O cuidado com as coisas terrestres impede a alma de desfrutar dos bens divinos, se nos preocupamos com a carne e lhe concedemos mais do que convém. De nossa vizinha, tornamo-la nossa inimiga e adversária, de tal modo que o combate deixa de ser igual mas, devido à nossa grande conivência, a carne passa a lutar com mais vigor contra a alma para roubar-lhe as honras e as coroas. Qual é a grande necessidade do corpo para que a pretextemos para justificar interminavelmente uma concupiscência insaciável? Pão e água, em tudo e por tudo. Ora, não fornecem as fontes água em abundância? E não é fácil obter pão para quem tem mãos? Assim, podemos atender às necessidades do corpo com pouca ou nenhuma distração. Mas será que a vestimenta não exige cuidados? Tampouco, se não considerarmos a futilidade da moda, mas unicamente a necessidade. Pois, portava o primeiro homem vestimentas finamente tecidas, de linho, púrpura ou seda? Não nos ordenou o Senhor que nos vestíssemos de peles e nos alimentássemos de 628
629
630
626[40] 627[41] 628[42] 629[43] 630[44]
Cf. II Samuel IV, 7 e sg. Cf. Gênesis XVIII, 1. Cf. Eclesiastes VI, 7. Cf. I Timóteo VI, 8. Cf. Eclesiastes V, 16.
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ervas [45]? Fixando desta maneira limites às necessidades do corpo, ele condenava desde então a vergonhosa conduta dos homens de hoje em dia. Não digo que ele recuse alimento aos que vivem bem, ele que alimenta as aves do céu e reveste de esplendor os lírios do campo [46]; mas é impossível convencer disto aqueles que estão afastados desta fé. 631
632
A virtude respeitada e honrada
Quem, com efeito, recusaria dar a quem pede e vive segundo a virtude aquilo de que ele necessita? [17] Se, de fato, os bárbaros que tomaram Jerusalém a força, os Babilônicos, respeitaram a virtude de Jeremias e lhe forneceram com largueza toda sua subsistência corporal, não apenas o alimento mas também os utensílios para servi-lo, como não seria uma vida virtuosa honrada pelos companheiros, pelas pessoas que desde a infância purificaram por completo o espírito da mentalidade bárbara para conhecer o bem e unir-se à virtude? Mesmo se, por fraqueza da natureza, elas não puderam se tornar ascetas, saberão honrar a virtude e admirar seus atletas. Quem inspirou a Sunamita a construir uma cela de hóspede para Eliseu e nela colocar uma mesa, uma cadeira, um leito e uma lâmpada [47]? Não foi a virtude deste homem? Quem mandou que aquela viúva, quando a fome assolava toda a terra, servir o profeta antes de satisfazer suas próprias necessidades [48]? É certo, está claro, que, se ela não tivesse ficado impressionada e admirada pela sabedoria de Elias, ela não teria privado a si mesma e a seus filhos do pouco que restava para viverem, ao escolher, por devoção a seu hóspede, sofrer a morte que ela previa próxima. 633
634
[18] O que deu coragem a estas pessoas e perseverança em suas penas, foi seu desprezo pelas coisas da vida presente. Pois elas praticaram a frugalidade contentando-se com pouco, e chegaram, pode-se dizer, a não sentir falta de nada quase iguais às Potências celestes. Ao mesmo tempo em que eram, pelo corpo, obscuros e ignorados, tornaram-se mais poderosos do que os grandes deste mundo, conversando audaciosamente com aqueles que carregavam a coroa, com mais liberdade do que eles próprios com seus iguais. Quais armas e que poder tinha Elias para ousar dizer a Acab: “Não sou eu que perturbo Israel, mas você e a casa de seu pai [49]”? Como pode Moisés encarar o Faraó sem outra coisa do que a virtude sobre a qual se apoiava [50]? Quando os exércitos de Israel e de Judá preparavam-se para o combate, como ousou Eliseu dizer a Yoram: “Pela vida do Senhor dos Exércitos diante de quem eu me coloco hoje, se não fosse por Josafá eu não lhe daria nenhuma atenção, nem sequer o olharia [51]”? Ele não temia nem o exército em movimento nem a cólera do rei que devia necessariamente inflamar-se em tempos de guerra, quando seu espírito estava perturbado e ansioso. Qual rei terrestre pode se mostrar mais poderoso do que a virtude? Que púrpura foi capaz de dividir 635
636
637
631[45] 632[46] 633[47] 634[48] 635[49] 636[50] 637[51]
Cf. Gênesis I, 29; III, 18.21. Cf. Mateus VI, 26-27. Cf. II Reis IV, 10. Cf. I Reis XVII, 7-16. Cf. I Reis XVIII, 18. Cf. Êxodo V. II Reis III, 14.
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um rio como o fez o manto de Elias [52]? Que coroa real pode operar curas como os maxilares dos apóstolos [53]? Um profeta repreendeu um rei opressor, que não obstante tinha com ele toda sua armada. Exasperado pelas reprimendas, o rei estendeu sua mão contra o profeta, mas não pode agarrálo nem recolher sua mão paralisada [54]. Foi um combate entre a virtude e e o poder real: a vitória coube à virtude. O profeta não combateu, foi a virtude que derrotou o inimigo. O combatente não tinha nada a fazer, pois quem operava era a fé. A corte do rei assistiu ao combate, e a mão do rei ficou estendida para atestar a vitória da virtude. 638
639
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[19] Esses homens realizaram tais façanhas porque haviam decidido viver apenas para a alma, esquecendo as necessidades do corpo. E o fato de nada possuírem os tornou superiores a todos os homens. Eles preferiram abandonar o corpo e se libertar da vida carnal do que trair a virtude e agradar a um rico por um conforto corporal. Ao contrário, nós, quando qualquer coisa nos falta, parecemos cachorrinhos abanando a cauda diante daqueles que nos atiram algumas de suas migalhas; corremos atrás dos ricos, chamando-os de protetores e benfeitores dos cristãos e reconhecendo neles todas as virtudes, mesmo quando são os maiores celerados, para obtermos o que desejamos, ao invés de estudarmos como os santos venceram, com a firme resolução de imitá-los. O general sírio Naamã veio um dia encontrar Elias com muitos presentes. E que fez então o profeta? Foi ao seu encontro? Correu até ele? Não: ele enviou seu servidor para saber a razão de sua vinda, sema admiti-lo em sua presença, a fim de que ninguém pensasse que ele o havia curado em troca de seus presentes [55]. Isto foi contado, não para que nos mostremos arrogantes, mas para que não bajulemos em vista de um proveito corporal aqueles que permanecem ligados aos bens que nos decidimos a desprezar. 641
Entregar a Deus a subsistência do corpo
Porque deixamos de buscar a sabedoria para nos dedicarmos à agricultura e ao comércio? O que trazemos de grande a Deus com tais ocupações? Será apenas para manifestar um cuidado comum com a agricultura? Ao homem cabe trabalhar a terra e nela lançar a semente, mas é Deus quem envia as chuvas sucessivas sobre os grãos para que estendam suas raízes na terra úmida, é ele quem faz brilhar o sol para aquecer a terra e fazer crescer as plantas e ele quem envia os ventos propícios às fases do crescimento. Quando os brotos se levantam, ele espalha pela planície doces brisas para que os grãos não sejam queimados por ventos muito quentes. Depois, com ventos mais fortes, ele faz conveniente e, depois da bateção, os ventos necessários. Quando falha um único destes elementos, o trabalho humano se mostra inútil, e nosso esforço resulta em nada se não é confirmado pelos dons de Deus. Muitas vezes, nenhum dos elementos necessários falta, mas se a chuva se apresenta demasiado abundante e fora de época, ela estraga o grão que se vai bater ou prejudica o cereal estocado. Pode acontecer também que ele seja comido pelos insetos e que o alimento nos seja tirado da boca, por assim dizer, quando a mesa está posta.
638[52] 639[53] 640[54] 641[55]
Cf. II Reis II, 8. Cf. Atos XIX, 12. Cf. I Reis XIII, 4. Cf. II Reis V, 10 e sg.
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[20] Portanto, de que nos serve nosso esforço, se Deus tem as rédeas, levando e conduzindo tudo como quer? Podemos também dizer que, nas enfermidades, o corpo tem necessidade de cuidados. Mas não é preferível morrer a fazer algo de contrário à nossa profissão? Em todo caso, se Deus quiser que continuemos a viver, ou bem ele dará ao nosso corpo força suficiente para suportar a dor e nos recompensará por nossa coragem, ou encontrará um meio curar a enfermidade, pois à fonte da sabedoria nunca falta remédio.
O retorno à vida dos antigos monges
É, portanto, bom e belo retornar à antiga beatitude e à conduta dos velhos monges. Isto é fácil, penso eu, a quem quiser. E mesmo que surja alguma dificuldade, ela não deixará de trazer frutos; pois é um grande consolo a glória dos que nos precederam e o proveito que extrairão de nosso exemplo os que nos seguirem. Com efeito, não é pequeno o benefício para os iniciantes se possuírem um ideal de conduta e, para os que abandonaram este ideal, serem incentivados a retomá-lo. Fujamos da permanência nas vilas e cidades para que seus habitantes venham a nós; busquemos os lugares desertos a fim de atrair aqueles que agora fogem de nós. Com efeito, a Escritura diz de alguns, elogiando-os, que eles deixaram as cidades para residir nos rochedos, e que eles se tornaram como as pombas [56]. João Batista vivia no deserto e todos os habitantes da cidade acorriam a ele [57]. Homens vestidos de seda vinham ver um manto de pele; os que viviam em mansões douradas adotavam a miséria da vida ao ar livre. Ao invés de dormir em leitos adornados de jóias, preferiam dormir sobre a areia; e eles suportavam tudo isso, embora fosse contrário aos seus hábitos. Seu desejo de contemplar a virtude do homem de Deus era tal que eles se tornavam indiferentes às coisas penosas e sua admiração superava o sofrimento de uma vida desconfortável. 642
643
[21] A virtude é muito mais honorável do que a riqueza, e a vida solitária mais gloriosa do que os grandes bens! Quantos, que foram ricos em seu tempo e confiantes em sua grandeza, caíram no silêncio e no esquecimento, enquanto o prestígio do homem obscuro é celebrado até nossos dias e s lembrança dos habitantes do deserto é cultivada por todos. É próprio da virtude ser celebrada e seu renomado valor espalhar-se. Vamos repudiar o alimento dos animais e receber uma constituição de pastores. Abandonemos o comércio sórdido para adquirir a pérola do prêmio máximo [58]. Deixemos uma terra que produz espinhos e cardos [59] para nos tornarmos trabalhadores e guardiões do paraíso [60]. Rejeitemos tudo e abracemos a vida solitária, a fim de reduzir ao silêncio os que hoje reprovam nossas posses. O melhor meio de confundir nossos detratores é nos corrigirmos sabiamente, pois a conversão dos que eram condenados torna-se a confusão daqueles que os condenavam. 644
645
646
642[56] 643[57] 644[58] 645[59] 646[60]
Cf. Jeremias XLVIII, 28. Cf. Mateus II, 1-5. Cf. Mateus XIII, 46. Cf. Gênesis III, 18. Cf. Gênesis II, 15.
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TI, VII – NILO, O ASCETA – II Qualidades e deveres do mestre espiritual.
II QUALIDADES E DEVERES DO MESTRE ESPIRITUAL
Temeridade do iniciante que pretende dirigir os outros
É uma coisa vergonhosa, penso eu, verdadeiramente vergonhosa, a razão pela qual somos motivo de riso de muitos. Alguém acaba de entrar para a vida monástica e aprende apenas as práticas ascéticas, como se deve orar e qual é o regime alimentar; logo ele se põe a ensinar aquilo que ainda não prendeu e a atrair uma fileira de discípulos, quando ele próprio ainda tem necessidade de ser ensinado, e tanto mais na medida em que julga que a coisa é fácil, por ignorar que o cuidar das almas é a coisa mais difícil de todas. Antes seria preciso que ele fosse purificado de todas as sujeiras passadas, para em seguida receber com grande aplicação as marcas da virtude. Mas aquele que não consegue imaginar nada além da ascese corporal, como poderá tornar melhores os que são escravos dos maus hábitos? Como poderá ele ajudar os que são atacados pelas paixões, ele que nada sabe do combate espiritual, e curar as feridas recebidas neste combate, ele que jaz ferido e prisioneiros dos seus laços?
[22] Toda arte exige tempo e uma longa aprendizagem; somente para a arte das artes as pessoas acham que podem passar sem aprendizado. Na agricultura, ninguém se arriscaria sem experiência, nem, sem iniciação, na medicina. Não somente nenhum bem poderia ser feito aos doentes, como ainda sua enfermidade poderia ser agravada; o melhor dos terrenos se tornaria improdutivo e inculto. Somente na piedade, como se ela fosse mais fácil do que tudo, qualquer um se arrisca sem aprendizado, e esta coisa tão difícil é considerada fácil pela maioria. Daquilo ao que Paulo afirmava ainda não ter chegado [61], eles julgam saber tudo, quando na verdade sequer sabem que nada sabem. É por isso que a vida monástica virou motivo de brincadeira, as pessoas de toda parte riem-se dos que se dedicam a ela. Quem não riria, ao ver alguém, que até ontem era garçom numa estalagem, pavonear-se como mestre de virtudes diante de um círculo de discípulos? Ou ainda certo político, mal saído de suas malversações da manhã, pontificar ao entardecer para um bando de alunos por todos os cantos da praça? Se eles se dessem conta do imenso trabalho que é encaminhar as pessoas à piedade, eles saberiam também o perigo que existe nisto, e teriam a prudência de recusar uma empresa que os ultrapassa manifestamente. Mas em sua ignorância, eles sentem-se honrados em ter pessoas que se submetem a eles e produzem sem problemas um redemoinho num turbilhão. Atirar-se nesta fornalha parece-lhes brincadeira de criança. Eles provocam o riso em quem conhece a vida que levavam até ontem e a indignação de Deus por sua temeridade. 647
[23] Se ninguém pode afastar de Eli a cólera de Deus, nem sua velhice venerável, nem sua antiga familiaridade com Deus, nem a honra de seu sacerdócio, uma vez que ele negligenciava corrigir seus filhos [62], como poderão escapar desta mesma cólera aqueles que sequer possuem diante de Deus o mérito das boas ações passadas e que, sem conhecer nem a natureza do pecado nem o procedimento 648
647[61] Cf. Filipenses III, 12. 648[62] Cf. I Samuel II, 19-29; IV, 18. 216
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para sua correção, se engajam nesta temível empreitada sem experiência, por amor à glória? Foi por isto, ao que parece, que o Senhor acusou os fariseus, dizendo-lhes: “Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês percorrem o mar e a terra para converter alguém, e quando conseguem, o tornam merecedor do inferno duas vezes mais do que vocês [63]”. Na realidade, por meio de suas reprimendas dirigidas aos fariseus, o Senhor advertia aqueles que mais tarde cairiam nas mesmas faltas, a fim de que, atentos a estas maldições, eles evitassem um desejo desviado de glória humana por temor de uma infelicidade ainda mais terrível. Eles deveriam ficar confusos também pelo exemplo de Jó e cuidar de seus subordinados, ou recusar tal responsabilidade, se não sabem imitá-lo, ou se não quiserem ter a mesma solicitude quanto às medidas necessárias. Pretendendo que seus filhos fossem purificados de suas imperfeições, Jó oferecia diariamente sacrifícios por eles, dizendo: “Talvez meus filhos tenham pecado contra Deus em seus corações [64]”. E eis que hoje existem pessoas que, sem possuir ao menos o discernimento dos pecados manifestos, porque a poeira levantada pela luta contra as paixões ofusca sua razão, precipitam-se na direção do outro e assumem a responsabilidade de curálos, quando sequer curaram suas próprias paixões, sendo incapazes de levar alguém a uma vitória que eles mesmos não conquistaram. 649
650
[24] De fato, é preciso primeiro combater as paixões e, com muita atenção, guardar na memória os detalhes da luta, para depois poder expor aos outros e tornar a vitória mais fácil descrevendo de antemão a técnica do combate. Existem os que se tornaram senhores de suas paixões por meio de grandes austeridades, mas, como isto acontece nos combates noturnos, eles não se dão conta do modo como triunfaram, sem seguiras palavras de ordem e sem reconhecer exatamente as armadilhas dos inimigos. É isto o que é simbolizado pela conduta de Josué, filho de Naum. Enquanto o exército atravessava o rio Jordão durante a noite, ele ordenou a seus homens que tomassem pedras no rio, erigindo uma estela na margem, reforçando-a com cal e inscrevendo ali como haviam atravessado o Jordão [65]. Ele indicava assim que é preciso colocar à luz as raízes profundas da conduta passional, erguendo claramente uma estela e não recusando este conhecimento a outros, a fim de que, não apenas saiba o que passar por ali a maneira de atravessar o rio, mas ainda que, ao fazer a mesma coisa, cada qual torne a passagem mais fácil ao próximo e que a experiência pessoal se torne uma lição para os outros. Mas os maus guias de que falamos não vêem nada disso e recusam ouvir quem lhes fala disso; só considerando a confiança que têm em si próprios, eles impõem aos irmãos tarefas de escravos, como se eles tivessem sido adquiridos no mercado, e consideram glória possuir um grande número de subordinados. É uma concorrência: nenhum quer ter atrás de si um cortejo menor do que os demais; e assim eles se mostram mais mercadores do que professores. 651
O ensino se faz sobretudo pelas obras
[25] Na realidade, eles pensam que é fácil comandar por palavras, mesmo se as ordens são pesadas, mas não se dão ao trabalho de ensinar pelas obras. Assim, fica claro para todos que eles assumiram esta superioridade com a intenção, não de serem úteis aos que vão a eles, mas de promoverem seu próprio prazer. Se eles quisessem, eles aprenderiam com o exemplo de Abimelec e de Gedeão que não 649[63] 650[64] 651[65]
Mateus XXIII, 15. Jó I, 5. Cf. Josué IV, 2-9.
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são as palavras, mas os atos que incitam as pessoas a imitar aqueles que as dirigem. O primeiro confeccionou um feixe de lenha, colocou-o sobre os ombros e disse: “O que vocês me virem fazer, façam também [66]”. Também o segundo, entregando-se ao trabalho comum e propondo um exemplo, disse a seus homens: “Observem-me e façam o mesmo [67]”. O Apóstolo dizia, igualmente: “Minhas mãos obtiveram o sustento de meus companheiros e o meu próprio [68]”, e mesmo o Senhor agiu antes de ensinar. Estes exemplos não são suficientes para nos convencer de que é melhor confiar no ensino pelos atos do que por palavras? Mas os maus professores de que falamos são cegos diante de tais exemplos e dão suas ordens com arrogância. Quando eles imaginam que sabem alguma coisa porque ouviram falar, assemelham-se aos pastores inexperientes repreendidos pelo profeta: “Ai do pastor de coisa nenhuma, que abandona o rebanho! Que a espada lhe fira o braço e fure seu olho direito; que seu braço fique seco de uma vez, e seu olho completamente cego [69]”. Pois, em sua loucura, eles negligenciaram a ação reta e extinguiram neles a luz da contemplação. Isto acontece àqueles que ensinam com dureza e de modo desumano, sempre prontos a punir; os elementos da contemplação reta desaparecem logo e suas ações, privadas de toda luz, se esgotam, pois eles nada podem fazer nem podem ver nada, pois foram feridos não na coxa, mas no braço. Ser atingido na coxa pela espada equivale a usar a palavras divina contra suas próprias paixões; ser atingido nos braços significa estar sempre disposto a repreender os pecados dos outros. 652
653
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A prática deve preceder a contemplação
[26] Foi assim que Naás o Amonita, cujo nome significa “serpente”, ameaçou Israel, dotado de visão, de lhe destruir completamente o olho direito [70] para que nenhum pensamento direito conduzisse a uma ação direita. Ele sabia que o maior progresso consiste em ir da contemplação à prática. Pois a prática é irrepreensível quando procede de um claro conhecimento prévio. A experiência mostra à exaustão que a condução dos outros só deve ser assumida por homens solícitos e que não buscam nenhum proveito pessoal. Pois aquele que experimentou a solidão e começou a se ocupar da contemplação não escolhe sujeitar seu espírito às necessidades corporais, de separá-lo da gnose e fazêlo descer das alturas aonde ele se mantém a maior parte do tempo para cuidar de negócios terrenos. Isto fica ainda mais evidente na parábola que Joatão propôs aos habitantes de Siquém: as árvores da floresta buscaram alguém que se tornasse seu rei, e disseram à vinha: Venha reinar sobre nós. Mas a vinha respondeu: Devo eu renunciar ao meu excelente fruto que agrada a Deus e aos homens, para reinar sobre árvores? Também a figueira recusou pela sua doçura e a oliveira por causa do seu azeite. Apenas um espinheiro sem frutos aceitou a soberania sobre elas, sem possuir nenhuma daquelas propriedades [71]. A parábola diz que foram as árvores de uma floresta selvagem que buscavam um rei, não as de um jardim cultivado. A vinha, a figueira e a oliveira recusaram-se a comandar as árvores da floresta, preferindo seus próprios frutos à dignidade do comando. Da mesma forma, aqueles que vêem em si mesmos o fruto da virtude e que têm consciência do benefício que podem retirar dele, mesmo pressionados por muitos, recusam o comando, pois preferem seu próprio benefício à honra que receberiam de uma multidão. 656
657
652[66] Juízes IX, 48. 653[67] Juízes VII, 17. 654[68] Atos XX, 34. 655[69] Zacarias XI, 17. 656[70] Cf. I Samuel XI, 2. 657[71] Cf. Juízes IX, 7-15. 218
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O mestre inexperiente perde a si mesmo e aos seus discípulos
[27] A maldição pronunciada pelo espinheiro contra as árvores, na parábola, atinge também os homens que agem do mesmo modo: “Ou bem o fogo sairá do espinheiro e devorará as árvores da floresta, ou bem sairá das árvores e devorará o espinheiro”. Pois, quando se fecham pactos inúteis, segue-se naturalmente o perigo, tanto pata os que estão sujeitos a um mestre inexperiente quanto para os que assumiram a direção de discípulos inconseqüentes. Com efeito, a inexperiência do mestre causa a perda dos discípulos e a irresponsabilidade dos discípulos coloca em perigo o mestre, ainda mais, quando, pela incapacidade deste, os discípulos se tornam preguiçosos. É dever do mestre nada ignorar daquilo que se refere à formação de seus discípulos, e estes, por sua vez, não devem negligenciar nada das instruções do mestre. É igualmente grave e perigoso que os discípulos desobedeçam e que o mestre se mostre conivente com suas faltas. Que ninguém pense que a direção de outro seja um negócio tranqüilo e repousante, pois não há função mais penosa do que dirigir as almas. Aqueles que têm que dirigir animais e bestas de carga os tem completamente em seu poder, e é pó isso que eles não sentem dificuldade em fazê-los marchar direito. Mas governar os homens é mais difícil, por causa da diversidade do caráter humano e da destreza da razão. É preciso, assim, que os que assumem este encargo estejam preparados como para um duro combate, a fim de que suportem com muita paciência os defeitos de todos e os ensinem sem relaxar aquilo que eles ignoram.
O mestre não deve ignorar nada das armadilhas do Inimigo
[28] Esta é a razão pela qual, no templo, a bacia de lavagem repousava sobre bois [72], e também porque o candelabro era sólido e feito em uma só peça [73]. Isto significa que o candelabro, ou seja, aquilo que é feito para iluminar os outros, deve ser sólido em todas as suas partes, sem ter nada de frágil nem de inútil; nele deve ser eliminado, pelo polimento no torno, tudo o que é supérfluo e não serve de bom exemplo de virtude aos olhos dos outros. Quanto aos bois sobre os quais repousa a bacia, isto indica que aquele que assume o trabalho de dirigir os outros não deve recusar nada do que aconteça, mas carregar os fardos e as sujeiras dos inferiores na medida em que possa fazê-lo sem perigo. Com efeito, se ele necessariamente tiver que purificar as ações daqueles que o procuram, ele fatalmente terá contato com estas sujeiras, exatamente como a bacia na qual se lava as mãos recebe a sujeira destas. Quem trata as paixões e alivia os outros de suas sujeiras, é inevitavelmente afetado por elas, pois a lembrança permanece no pensamento. Mesmo se as marcas das coisas vergonhosas não ficarem gravadas em cores vivas, mesmo assim o espírito será arranhado em sua superfície pelas impressões impuras deixadas pelas palavras trocadas. 658
659
[29] O grande são Paulo dá testemunho disto quando diz: “Nós não ignoramos seus desígnios [74]”; ademais, o admirável Jó se pergunta com perplexidade: “Quem revelará a aparência de suas vestes? 660
658[72] 659[73] 660[74]
Cf. I Reis VII, 25. Cf. Êxodo XXV, 31. II Coríntios II, 11.
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Quem penetrará nas dobras de sua couraça? Quem abrirá a viseira de seu capacete? [75]” Ele queria dizer que ele não possui face visível, pois dissimula sua malícia sob numerosos disfarces e maquina insidiosamente em segredo a ruína. Para não ser contado no número dos que ignoram suas manobras, Jó revela suas características, conhecendo claramente toda a sua monstruosidade: “Seus olhos, diz ele, são como a estrela da manhã, mas suas entranhas são como serpentes de bronze [76]”. Ele diz isto para mostrar sua falsidade, pois Satanás atrai para si os que o vêem considerando seu belo aspecto de estrela da manhã, mas quando eles se aproximam, ele os leva à morte com as serpentes que traz em si. Um provérbio denuncia o perigo: “Aquele que racha lenha corre perigo se a lâmina do machado se soltar [77]”. De fato, aquele que distingue as coisas e que separa aquelas que parecem idênticas, mostrando a diferença essencial que existe entre as que são verdadeiramente boas e as que apenas parecem tais, deve tomar todas as precauções em sua linguagem para não escandalizar seus ouvintes. 661
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[30] Foi assim que um dos discípulos de Eliseu cortava lenha perto do rio Jordão, quando a lâmina de seu machado soltou-se e caiu no rio. Percebendo o acidente, ele gritou a seu mestre: “Socorro, mestre! [78]” A mesma coisa acontece aos que se metem a ensinar a partir daquilo que mal chegaram a compreender, e que não conseguem concluir por lhes faltar a experiência. Se eles são confrontados a meio caminho por qualquer coisa que vai contra seus propósitos, eles mostram sua ignorância e se confundem, porque usam uma linguagem emprestada de outrem. É por isso que o grande Eliseu, atirando à água o cabo de seu próprio machado, fez flutuar a lâmina perdida por seu discípulo [79], ou seja, ele trouxe à luz um pensamento que este julgava oculto e o mostrou às pessoas que lá estavam. Aqui o Jordão representa as palavras de arrependimento, pois é no Jordão que João realizava o batismo do arrependimento. Aquele que não fala exatamente como se deve do arrependimento e induz seus ouvintes a desdenhá-lo, revela sua ingenuidade oculta e deixa cair a lâmina no Jordão. Fica claro que foi a madeira que fez flutuar a lâmina que estava no fundo das águas. Com efeito, antes da cruz, a palavra de arrependimento estava oculta, e por isso quem quisesse falar dela temerariamente era condenado. Mas depois da cruz, ela se tornou visível a todos, manifestada pela madeira. 664
665
A direção de outrem está reservada a quem triunfou sobre as paixões
[31] Não digo isto para desviar da direção de outrem, nem para impedir de guiar os jovens pelos caminhos da piedade, mas para exortar a primeiro adquirir um hábito de virtude proporcional à grandeza da tarefa. Que ninguém se atire irresponsavelmente, estimando apenas a aprovação que ela trará; previsão de muitos discípulos e elogios dos de fora, sem levar em conta os perigos envolvidos. Antes que a paz esteja firmemente estabelecida, não transformemos as armas de guerra em utensílios agrícolas. De fato, será apenas depois de submeter de todas as paixões, depois de deter todos os seus assaltos, venham de onde vierem, que se tornarão desnecessárias as armas de defesa e se tornará possível dedicar-se à cultura de outrem. Mas enquanto durar a tirania das paixões, enquanto subsistir a
661[75] Jó XLI, 13-14. 662[76] Jó XLI, 18. 663[77] Eclesiastes X, 9-10. 664[78] Cf. II Reis VI, 5. 665[79] Cf. II Reis VI, 6. 220
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luta contra os desejos da carne, longe de depor as armas, é preciso tê-las à mão todo o tempo, a fim de não relaxar e que os inimigos não tenham ocasião de nos dominar sem combate.
Para encorajar aqueles que bem combatem pela virtude e que pensam, em sua profunda humildade, ainda não ter obtido a vitória, a Escritura diz: “Forjem arados com suas espadas, e foices com suas lanças [80]”, advertindo-os para que não se prendam mais a inimigos vencidos, mas que, para a utilidade de muitos, desviem as forças da alma da atividade guerreira para aplicá-las à cultura dos que ainda estão cheios das obras do mal. E aos que, antes de atingir este estado, seja por inexperiência ou por temeridade, se metem numa empresa que está acima de suas forças, a Escritura aconselha o contrário: “De seus arados, forjem espadas, e de suas foices, façam lanças [81]”. 666
667
Não cultivar o solo antes da cessação dos combates
[32] Pois, de que serve a agricultura quando a guerra assola o país e a colheita cairá nas mãos dos inimigos ao invés dos que trabalharam nela? Esta é a razão pela qual os Israelitas, na medida em que tinham que combater diversas nações no deserto, não tinham ordem para cultivar o solo, para não serem tolhidos em suas atividades guerreiras. Mas após a derrota dos inimigos, foi dito a eles que se dedicassem à terra: “Quando vocês tiverem entrado na terra da promessa, nela plantem toda espécie de planta que der fruto [82]”, donde se subentende: antes de nela entrar, nada plantem. Com efeito, antes da perfeição, as plantações não estão seguras, sobretudo quando os que as cultivam ainda levam uma vida errante. Na vida espiritual, como em toda atividade, existe uma ordem e um encadeamento a seguir, e desde o começo deve-se caminhar para adiante. Aqueles que, numa refeição, desdenham as entradas e se atiram às sobremesas, devem ser convencidos de que é preciso observar uma ordem; também Jacó, seduzido pela beleza de Raquel, desprezou Lia que tinha um defeito nos olhos, e, no entanto, não pode evitar cumprir mais sete anos de serviço pela beleza daquela [83]. Aquele que pretende avançar como se deve na vida espiritual não deve começar pelo fim, mas progredir desde o início até alcançar a perfeição. 668
669
Não correr atrás do título de mestre
[33] É a isto que ele deve se aplicar para deste modo conduzir de maneira irreprochável seus subordinados aos cumes da virtude. Mas a maior parte não suporta nada dificultoso e não cumpre nenhuma obra de piedade, pequena ou grande; eles correm atrás do título de mestre, dando prova de uma terrível loucura sem minimamente supor o perigo. Não apenas eles não se recusam, quando alguns os solicitam para esta atividade, mas chegam a circular pelas ruas para recrutar contra sua 666[80] 667[81] 668[82] 669[83]
Isaías II, 4. Joel IV, 10. Levítico XIX, 23. Cf. Gênesis XXIX, 27.
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vontade aqueles a quem encontram, prometendo todo tipo de vantagens maravilhosas, como negociantes que oferecem comidas e roupas nos mercados. Necessariamente, pessoas assim desprovidas de direção querem aparecer em público com todo um cortejo de discípulos, levados por suas mãos, e assegurar para si toda a encenação de um mestre, como se desempenhassem um papel num teatro. Para não perder o serviço de seus discípulos, eles se mostram na maior parte das vezes complacentes com seus prazeres e suas concupiscências, como o condutor de um carro que solta as rédeas e deixa os cavalos irem aonde quiserem, de tal modo que acabam por se precipitar em algum abismo ou vão de encontro a todo tipo de obstáculo, pois não há ninguém que os detenham ou aos seus impulsos desordenados.
[34] Que estes guias entendam como o bem-aventurado Ezequiel condenou aqueles que servem alimentos para o prazer dos outros e que, acomodando-se às vontades de cada um, acumulam sobre eles próprios as maldições: “Infelizes, diz ele, as mulheres que costuram pulseiras para todos os punhos e confeccionam véus para todas as cabeças, para perder suas almas por um punhado de cevada ou um pedaço de pão [84]”. Estes de quem falamos agem da mesma forma quando atendem às suas próprias necessidades corporais com as contribuições de seus discípulos e repousam sobre tecidos finos. Com os véus que colocam sobre suas cabeças eles desonram aqueles que devem orar e profetizar com a cabeça nua [85], e tornam efeminada a condições de homens, perdendo as almas imortais. Antes tivessem obedecido a Cristo, o verdadeiro Mestre, e recusado com todas as forças a direção de outros. Pois ele disse aos seus discípulos: “Não se deixem chamar Rabbi [86]”. Assim ele exortou a Pedro, João e todo o grupo de discípulos a fugir de tais obras e se considerar indignos de tal honra. Quem, então, poderá se considerar superior a estes homens, para se adjudicar uma dignidade que a eles foi interdita? A menos que eles achem que, por não se deixar que os apóstolos se chamassem Rabbi, Cristo teria proibido o título, mas não a função? 670
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672
Não aceitar discípulos facilmente
[35] Mas se, apesar de tudo, formos obrigados a aceitar um ou dois discípulos, ou mesmo dirigir vários, examinemo-nos primeiro cuidadosamente para ver se não devemos mostrar o que deve ser feito, mais por atos do que por palavras, propondo aos discípulos nossa própria vida como modelo de virtude a fim de, copiando-nos, eles não alterem a beleza da virtude pela deformação do pecado. Devemos saber que teremos que lutar tanto por nós como pelos que dirigimos, porque prestaremos conta conta por eles como por nós, uma vez que nos encarregamos de sua salvação. De fato, os santos tiveram o cuidado de não deixar para trás os discípulos menos avançados na virtude e os fizeram passar a um estado melhor. Assim é que o apóstolo Paulo fez de Onésimo, um escravo fugitivo, um mártir [87]; Elias transformou Eliseu, um trabalhador, em profeta [88]; Moisés dotou Josué dos melhores carismas, embora ele fosse o mais jovem de todos [89]; Eli tornou Samuel maior do que ele próprio [90]. 673
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670[84] 671[85] 672[86] 673[87] 674[88] 675[89]
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Ezequiel XIII, 18-19. Cf. I Coríntios XI, 14. Mateus XXIII, 8. Cf. Filemon X, 19. Cf. I Reis XIX, 19. Cf. Deuteronômio XXXI, 7-8.
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Em cada um destes casos, o zelo do discípulo contribuiu para o resultado, mas a causa essencial de seu progresso esteve no fato de ter encontrado um mestre capaz de fazer brotar a centelha em maio à fumaça e inflamar este zelo para o máximo progresso. Estes mestres tornaram-se assim a boca de Deus que comunicou aos homens suas vontades, pois eles escutaram a palavra: “Se vocês separarem o que é precioso do que é vil, vocês serão como a minha boca [91]”. 677
Responsabilidade do mestre
[36] Deus também mostrou a Ezequiel a disposição que deve ter o mestre e o que ele deve fazer com seus discípulos: “Filho do homem, disse ele, tome um tijolo, coloque-o diante de si e faça sobre ele o desenho de uma cidade, Jerusalém [92]”. Isto significa que o mestre deve fazer de seu discípulo um templo santo a partir do barro. Com toda justeza, ele diz: “Coloque-o diante de você”, pois o discípulo progredirá tanto mais depressa na medida em que estiver sempre sob os olhos do mestre. Com efeito, a influência contínua dos bons exemplos imprime sua marca nas almas que não estão completamente endurecidas e insensíveis. Se Giezi e Judas caíram, o primeiro no roubo, o segundo na traição, foi por se terem subtraído da vista do mestre. Se eles houvessem permanecido ao lado dos seus conselheiros, nenhum dos dois teria falhado. 678
A continuação do texto mostra que a negligência dos discípulos coloca em perigo o mestre: “Ponha uma placa de ferro entre você e a cidade, que será uma muralha entre a cidade e você [93]”. Pois, se o mestre não quiser participar do castigo do discípulo negligente do qual ele fez uma cidade a partir do barro, ele deve anunciar desde o princípio ao discípulo o castigo reservado a quem retorna ao seu antigo estado e esta advertência servirá então de muro a separar o inocente do culpado. É o que Deus quis dizer quando falou a Ezequiel: “Filho do homem, eu o fiz sentinela da casa de Israel; se você avistar a espada chegando e não a advertir, eu lhe pedirei contas daqueles que morrerem [94]”. 679
680
Tomar cuidado com o retorno das paixões
[37] Moisés construiu um muro semelhante quando disse aos Israelitas: “Evitem tentar perseguir os inimigos depois que eles desapareceram de suas vistas [95]”. Isto acontece quando vigiamos a reflexão com menos cuidado depois de havermos afastado as paixões. As figuras das imaginações antigas começam a reaparecer como brotos jovens e se os deixamos invadir a faculdade mestra ao invés de interditar-lhes a entrada, as paixões voltam a se instalar e é preciso retomar o combate apesar da 681
676[90] 677[91] 678[92] 679[93] 680[94] 681[95]
Cf. I Samuel III, 19-20. Jeremias XV, 19. Ezequiel IV, 1. Ezequiel IV, 3. Ezequiel III, 17-18. Deuteronômio XII, 30.
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vitória anterior. Com efeito, existem paixões que foram domadas e acostumadas a pastar as ervas como bois, mas que, negligenciadas, voltam ao estado selvagem e retomam sua ferocidade. A fim de que isto não aconteça. A Escritura diz: “Não tente persegui-las depois que houverem desaparecido de sua vista”, para que, nesta perseguição, a alma não retome o prazer destas imaginações e não retorne ao mal de antes. Foi assim que o bem-aventurado Jacó escondeu de Siquém os deuses estrangeiros, sabendo que as coisas que foram vistas e assiduamente meditadas voltam a prejudicar o pensamento quando as imagens vergonhosas são aí gravadas de modo claro e distinto. Pois aquele que toma o cuidado de esconder aquilo que excita as paixões as destrói, não apenas por pouco tempo, mas “até este dia [96]”, ou seja, para sempre, pois “hoje” se estende por todo o tempo que resta. Por outro lado, Siquém significa “golpe de espádua” ou “combate”, o que designa o esforço feito contra as paixões. É por isso que Jacó deu a José Siquém como dom eleito um especial ardor para se lançar contra as paixões. 682
[38] O próprio Jacó disse que tomou Siquém pela espada e pelo arco [97]. Significando com isto que é preciso dominar as paixões com luta e esforço, enterrando-as na terra de Siquém. Parece haver aí uma contradição entre esconder os deuses de Siquém e colocar um deus num lugar secreto; com efeito, a primeira coisa é louvável, enquanto que a segunda é reprovada pela Escritura: “Maldito seja quem esconde um ídolo num lugar secreto [98]”. Pois não é a mesma coisa enterrar completamente um objeto no chão e colocá-lo num lugar secreto. O objeto oculto na terra e que não é mais visível desaparece completamente da memória com o tempo, enquanto que o objeto colocado num lugar secreto escapa à visão dos outros, mas é visto constantemente por aquele que o pôs naquele lugar e que dele guarda a lembrança sempre fresca na memória. Pois todo pensamento que toma forma no espírito é um ídolo escondido. É vergonhoso expor aos outros tais pensamentos, mas é tão perigoso quanto depositá-los num lugar secreto, e mais perigoso ainda perseguir e procurar as imagens já apagadas, pois a reflexão pende facilmente outra vez para a paixão que havia sido expulsa e mergulha fundo na ilusão dos prazeres. A virtude é, com efeito, uma coisa delicada e se damos mostra de negligência, a balança pende facilmente para o lado oposto. 683
684
Vigiar a cabeça da serpente
[39] É o que a Escritura parece querer dizer de forma simbólica quando diz: “A terra na qual vocês vão entrar é uma terra instável sujeita aos movimentos dos povos [99]”. Pois quem entra em possessão das virtudes é ao mesmo tempo empurrado no sentido contrário, pois é uma terra instável. É preciso, assim, não deixar entrar, por pouco que seja, as imagens que podem estragar a reflexão. Também não devemos deixá-la descer para o Egito, pois de lá ela seria levada aos Assírios [100]. Com efeito, quando a reflexão desce às trevas dos pensamentos impuros – o que é representado pelo Egito – ela é arrastada à força pelas paixões, contra sua vontade, para realizar as suas obras. É por isso que o Legislador 685
686
682[96] Cf. Gênesis XXXV, 4. 683[97] Cf. Gênesis XXXIV, 26; XLII, 2-3. 684[98] Deuteronômio XXVII, 15. 685[99] II Esdras IX, 11. 686[100] Cf. Jeremias XLII, 19. 224
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proibiu simbolicamente a entrada do prazer ao ordenar que se vigiasse a cabeça da serpente [101]. De fato, esta observa o calcanhar para realizar seu desígnio, pois, sem atingi-lo, ela não poderá introduzir o veneno de sua picada. Cabe a nós cuidarmos de impedir o assalto do prazer, para que ele perca sua eficácia. Sansão não teria podido incendiar as colheitas dos estrangeiros se não tivesse amarrado as raposas duas a duas, com as cabeças voltadas em sentidos contrários, e prendido tochas às suas caudas [102]. Quem consegue detectar desde o começo o ataque dos pensamentos perversos e observa seus primeiros movimentos – pois eles se apresentam sob belas aparências para conseguir seus fins – poderá denunciar a inconveniência destes pensamentos pela comparação do resultado final com o aspecto inicial. É isto que significa prender as raposas pelas caudas e colocar entre elas a tocha da condenação. 687
688
Perceber aonde levam os pensamentos
[40] Para esclarecer o que foi dito, darei dois exemplos, e veremos que o mesmo acontece em outros casos. Muitas vezes o pensamento da luxúria provém da vanglória e a entrada do caminho que conduz ao inferno parece sedutor, mas ela dissimula desvios funestos que conduzem às profundezas do inferno aqueles que o seguem sem reflexão. Eles são levados ao sacerdócio ou à vida perfeita do monge, muitos chegam a eles para serem ajudados, o que os faz imaginar a honra que lhes valem suas palavras e suas ações. Nutrindo-se de tais pensamentos, eles se afastam da vigilância natural, imaginam o feliz encontro com uma santa mulher, o que os leva a assentir a consecução do ato impuro, e a desenvoltura de sua consciência os arrasta ao último grau da abjeção. Quem pretende amarrar as caudas das raposas deve perceber aonde levam os dois pensamentos: para a vanglória, a honra, para a luxúria a vergonha; se ele perceber claramente o contraste entre o começo e o fim, ele poderá considerar então ter agido como Sansão.
Outro exemplo: o pensamento da gula termina no da luxúria, e o termo deste é o da tristeza. Pois, tão logo nos deixamos vencer por estes pensamentos e voltamos a nós, somos tomados pelo desencorajamento. Aquele que luta não deve pensar nem nos prazeres da comida nem na doçura da volúpia, mas nos resultados a que levam estes, e assim, antevendo a tristeza que se seguirá, saberá que os ligou pelas caudas, e, com a tocha da condenação, destruirá a colheita dos estrangeiros.
Ciência e experiência necessárias aos mestres
[41] Se a luta contra as paixões requer esta ciência e esta experiência, aqueles que assumem a direção de outros devem saber o quanto de ciência lhes é necessária para conduzir seus discípulos à recompensa da vocação celeste [103] e para lhes mostrar claramente todas as armadilhas. Não se trata 689
687[101] 688[102] 689[103]
Cf. Gênesis III, 15. Cf. Juízes XV, 4. Cf. Filipenses III, 14.
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apenas de simular a vitória dando socos no ar, mas de infligir feridas mortais ao inimigo no combate. Pois é em vão que lançamos os braços no ar se não atingimos o adversário. Este combate é mais difícil do que uma ginástica. Os corpos dos atletas se sobram e se erguem facilmente, mas quando as almas tombam, ainda que uma só vez, elas não se levantam sem um enorme esforço. Se vivemos ainda presas das paixões e, cobertos de sangue, tentamos construir o templo de Deus nas almas, teremos que ouvir o que foi dito: “Você não construirá um templo, você que é um homem que derramou sangue [104]”. Construir um templo para Deus exige que estejamos em paz. Moisés tomou sua tenda e a armou fora do campo [105], o que mostra que o mestre deve se colocar o mais longe possível do tumulto da guerra e habitar fora da agitação do campo para levar uma vida calma e tranquila. 690
691
Docilidade requerida dos discípulos
Quando encontramos tais mestres, eles exigem dos discípulos que renunciem a si mesmos e que afastem suas próprias vontades a ponto de não mais se distinguirem de um corpo inanimado ou da matéria bruta empregada por um artista. A alma no corpo faz o que quer sem que o corpo resista, e o artista demonstra seu saber sem que a matéria impeça seja lá o que for que ele queria fazer para atingir o resultado almejado; assim também o mestre deve exercer em seus discípulos a ciência da virtude, possuindo discípulos dóceis que não o contradigam em nada.
[42] Inquirir indiscretamente a pedagogia do mestre e pretender julgar suas ordens, impede de progredir. Com efeito, o que parece razoável e digno de fé a quem não tem experiência não necessariamente é aquilo que convém na verdade. O artesão experiente julga os assuntos de sua arte diferentemente daquele que não é experimentado, porque ele tem seu saber como regra e o outro suas conveniências aparentes, que nem sempre correspondem à verdade, e que, na maior parte das vezes, afastam-se da retidão porque estão mais aparentadas à ilusão. Por exemplo, o que há de mais irrazoável do que um piloto que conduz seu navio obliquamente ao invés de avançar em linha reta, e que ordena aos passageiros que se mantenham do lado imerso aliviando o lado que se eleva sobre as ondas e sobre o qual se exerce a pressão do vento, acentuando assim a inclinação do navio? Na verdade, seria mais conveniente mandar o peso para a parte mais elevada e não correr para o lado que pende perigosamente. E, no entanto, os passageiros obedecem ao piloto antes do que às suas próprias ideias. O perigo os convence de se submeter à arte daquele que tem a responsabilidade por sua salvação, mesmo se o que ele faz parece não merecer crédito. Não devem aqueles que confiaram a outrem o cuidado com sua salvação abandonar suas próprias conveniências aparentes e sacrificar seus próprios pensamentos à arte daquele que sabe, considerando mais seguro o seu saber?
690[104] 691[105]
I Crônicas XXII, 8. Cf. Êxodo XXXIII, 16.
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TI, VII – NILO, O ASCETA – III Renúncia e ascese.
III RENÚNCIA E ASCESE
Renúncia total e imediata dos bens deste mundo
Em primeiro lugar, que aqueles que renunciam ao mundo não deixem nada de lado, temendo o exemplo terrível de Ananias que pensava prejudicar apenas os homens e que incorreu na condenação de Deus por seu furto [106]. 692
[43] Eles deveriam não apenas abandonar a si mesmos, mas abandonar tudo o que possuem, pois aquilo que eles retêm atrai constantemente seu pensamento, desviando-os das melhores coisas e afastando-os definitivamente da perfeição da fraternidade. É por isso que o Espírito Santo descreveu as vidas dos Patriarcas, a fim de que cada um de nós, qualquer que seja seu tipo de vida, tenha exemplos apropriados para alcançar a verdade. Assim, como foi que Eliseu renunciou ao mundo a partir da conduta de seu mestre? “Ele trabalhava com doze juntas de bois, foi dito, ele os degolou e os cozinhou com seus arreios [107]”. Isto mostra o fervor de seu zelo. Não foi dito: “Venderei as cangas dos bois e disporei do dinheiro como convier”; ele não refletiu sobre como extrair alguma vantagem daquilo que iria fazer.;todo seu desejo o impulsionava a estar com seu mestre, e ele desprezou as coisas visíveis, apressando-se em se desembaraçar delas, percebendo que elas o desviavam do bom propósito e que adiar as coisas muitas vezes faz com que mudemos de opinião. Porque o Senhor, quando propôs ao rico a perfeição da vida conforme a Deus, ordenou-lhe que vendesse todas as suas coisas e que desse o dinheiro aos pobres [108] sem nada guardar para si, senão por saber que aquilo que se guarda fornece todo tipo de distrações? Penso também que quando Moisés ordenava aos que queriam se purificar por uma longa oração depilassem inteiramente seus corpos [109], é porque ele exigia a renúncia total aos seus bens. 693
694
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Desligamento dos parentes e amigos
Em segundo lugar, aqueles que abraçam a vida monástica devem esquecer parentes e amigos, de tal modo que não sejam mais perturbados pela lembrança destes. [44] Quando as vacas foram atreladas ao carro da arca, esta as fez esquecer sua natureza, e, embora seus bezerros tenham sido separados delas no estábulo, elas caminharam direto sem que ninguém as forçasse, não se desviando nem para a
692[106] 693[107] 694[108] 695[109]
Cf. Atos V, 1-10. Cf. I Reis XIX, 19-21. Cf. Mateus XIX, 21. Cf. Números VIII, 7.
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TI, VII – NILO, O ASCETA – III Renúncia e ascese.
direita, nem para a esquerda [110]. Elas não mostraram apego às suas crias, voltando a cabeça, nem demonstraram com mugidos sua contrariedade em serem separadas de sua progênie, mas, penando sob o peso da arca e submetidas à tirania da natureza, avançaram como sobre trilhos, sem se desviar do caminho reto, subjugadas pela reverência devida à arca. Portanto, se animais puderam agir assim, não devem aqueles que carregam a arca espiritual agir da mesma maneira? Eles devem fazer ainda mais, para que a criatura racional não seja condenada por suas obras pelos animais desprovidos de razão, por não fazer com a inteligência aquilo que os animais fazem necessariamente. A razão pela qual José se perdeu no deserto é sem dúvida por ter buscado atingir a perfeição a partir dos nomes de seus próximos. De fato, o homem a quem ele perguntou a verdadeira causa de sua desorientação sabia que era o apego aos seus parentes, pois ele não disse que eles faziam pastar os rebanhos, mas que os conduziam, de modo que o homem se enganou a respeito de seu ofício: “Eles partiram daqui, disse ele, pois eu os ouvi dizer: Vamos para Dotain [111]”. Dotain significa “desligamento suficiente”. A resposta do homem indica assim que aquele que ainda ama os bens corporais está perdido e não pode atingir a perfeição se não renunciar suficientemente ao apego ao parentesco carnal. 696
697
[45] Com efeito, mesmo se deixarmos Harã [112], ou seja, os sentidos, pois esta palavra significa “grutas”, e partirmos para o vale do Hebron [113], ou seja, as obras vis e do deserto aonde está ainda a perdição para quem busca a perfeição, enquanto não atingirmos o desligamento suficiente, nada ganharemos com nossas penas. O amor pelos nossos nos separa da perfeição. Verdadeiramente, o Senhor nos mostrou com clareza a necessidade de romper com todos os laços de parentesco quando repreendeu Maria, a Mãe de Deus, que o buscava entre os seus [114], e quando ele declarou indignos dele quem amasse seu pai ou sua mãe mais do que a ele [115]. 698
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Subtrair-se à agitação do mundo pela hesíquia
Depois que estes dois desligamentos tenham sido obtidos, é preciso aconselhar aos que se subtraíram à agitação do mundo, que vivam na hesíquia, não reabrindo, por retornos consecutivos, as feridas feitas na reflexão pelos sentidos, nem acrescentando novas formas às velhas imagens dos pecados. É preciso ao mesmo tempo repelir os assaltos das novas imagens e colocar todo o empenho em apagar as antigas. A hesíquia é trabalhosa para quem renunciou ao mundo há pouco tempo, pois neste momento a memória ainda consegue remoer todas as impurezas que existem nela, enquanto que daí para frente ela não terá mais folga devido a uma série de preocupações. Mas depois do trabalho, a hesíquia buscará com o tempo a liberação do espírito da perturbação dos pensamentos impuros. Com efeito, se nos propomos a aliviar a alma, devemos nos separar de todas as coisas que aumentam a sujeira e buscarmos com a razão mais calma, longe de tudo o que excita, evitando as conversas com quem encontramos e guardando nossa solidão, que é a mãe da sabedoria.
696[110] Cf. I Samuel VI, 12. 697[111] Cf. Gênesis XXXVII, 12-18. 698[112] Cf. Gênesis XXIX, 4. 699[113] Cf.. Gênesis XXXVII, 14. 700[114] Cf. Lucas II, 49. 701[115] Cf. Mateus X, 37. 228
TI, VII – NILO, O ASCETA – III Renúncia e ascese.
[46] É fácil aos que se imaginam liberados cair novamente nas mesmas armadilhas, se viverem em maio à multidão. Com efeito, é inútil, àquele que se converteu à virtude sentir prazer nas coisas que já rejeitou. Mas a força do hábito é tão grande que é preciso sempre temer a perda da hesíquia adquirida com tantos esforços e retornar aos costumes vergonhosos reavivando a memória dos pecados passados. O intelecto daqueles que se afastaram do mal há pouco tempo é como o corpo de um convalescente após uma longa enfermidade: a menor oportunidade basta para provocar uma recaída no organismo que ainda não recuperou toda a sua força. Estando os músculos enfraquecidos e frágeis, devemos sempre temer que o mal retorne depressa. Ora, ele é estimulado naturalmente quando se passeia no exterior em meio à multidão. Por esta razão, Moisés ordenou aos que quisessem escapar do anjo exterminador que permanecessem no interior de suas casas: “Que ninguém saia fora das portas de sua casa, a fim de que o extermínio não o alcance [116]”. Jeremias parece ter dado a mesma ordem quando disse: “Não saiam para os campos e não andem pelos caminhos, pois a espada dos inimigos está em toda parte [117]”. Com efeito, cabe aos guerreiros valorosos ir ao encontro dos inimigos e ao mesmo tempo subtrair-se sem danos aos seus embustes. Mas quem está incapacitado de combater, que permaneça são em casa, garantindo para si uma perfeita segurança pela hesíquia. Assim foi com Josué, filho de Nun, sobre quem está escrito: “O servidor Josué, que era jovem, não saiu de sua tenda [118]”. De fato, ele sabia, pela história de Abel, que aqueles que partissem para os campos e se engajassem prematuramente no combate seriam mortos por seus próximos e amigos [119]. 702
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[47] Com a história de Dina, aprendemos com a mesma clareza que é marca de um espírito pueril e feminino tentar feitos que nos ultrapassam e imaginar que somos capazes para tal [120]. Pois se Dina não tivesse se aventurado tão impensadamente a apreciar as coisas da vizinhança, como se ela fosse forte o bastante para não se deixar prender por seu encanto, o juízo de sua alma não teria sido corrompido prematuramente pelas imagens sensíveis, quando ela ainda não tinha tido relações legítimas com um homem. Sabendo que esta paixão está implantada nos homens – refiro-me à presunção – e querendo desenraizá-la de nosso coração, Deus disse a Moisés o legislador: “Torne prudentes os filhos de Israel [121]”, pensando que é contrário à prudência afrontar temerariamente combates acima de nossas forças. Assim, não devemos nos misturar à agitação das cidades antes de obter o perfeito domínio de si e fugir para o mais longe possível mantendo a reflexão ao abrigo do ruído ambiente. Não é de boa utilidade àqueles que se separaram das coisas ter seus ouvidos ensurdecidos pelos ruídos provenientes do meio, assim como aos que abandonaram as cidades continuar observando, como Lot, o que se passa nas portas [122] e ser assim invadido pelo tumulto que reina no interior. É preciso se retirar, como o grande Moisés, de tal sorte que cessem não apenas as obras, mas ainda os rumores. Com efeito, ele dizia: “Quando eu deixar a cidade e estender as mãos, os rumores cessarão [123]”. 706
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702[116] 703[117] 704[118] 705[119] 706[120] 707[121] 708[122] 709[123]
Êxodo XII, 22-23. Jeremias VI, 25. Êxodo XXXIII, 11. Cf. Gênesis IV, 8. Cf. Gênesis XXXIV, 1 ss. Levítico XV, 31. Cf. Gênesis XIX, 1. Êxodo IX, 29.
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[48] A calma chega verdadeiramente quando não apenas as atividades mas também sua lembrança dão tempo à alma para ver as marcas impressas por elas e para lutar contra cada qual para eliminá-las da reflexão. Enquanto novas formas surgirem a alma não consegue apagar as que se encontram nela, pois a razão está ocupada pelas que se apresentam, e o trabalho de afastar as paixões fica necessariamente mais difícil quando estas se fortalecem crescendo pouco a pouco. Como um rio que transborda, elas submergem a faculdade de discernimento da alma pelas imagens que sobrevêm umas após outras. Se quisermos ver o leito de um rio seco para nele descobrir as coisas interessantes que ai se encontram, de nada serve deixar chegar a água ao lugar onde se quer buscar, pois a água que corre preencherá rapidamente o lugar vazio. Mas se detivermos o curso do rio a montante, o fundo aparecerá sem dificuldade, e a água que restar sairá por si só deixando aparecer a terra seca, conforme o desejo daquele que quer saber o que há ali. Da mesma forma, as marcas impressas pelas paixões são eliminadas com facilidade a partir do momento em que os sentidos não mais trazem matéria do exterior. Mas se os sentidos aportam um mar de impressões, não será apenas difícil, mas completamente impossível purificar o intelecto em meio a semelhante afluxo. Pois, ainda que as paixões não nos atormentem, por falta de oportunidade devido às constantes relações com os outros, elas no entanto subsistem ocultas e crescem e se fortalecem com o tempo.
Necessidade de guardar os sentidos
[49] O solo que é constantemente pisoteado, mesmo que contenha espinhos, não os deixa à mostra, pois a pressão constante dos pés os impede de crescer; mas eles produzem raízes fortes e florescentes nas profundezas, de tal modo que, assim que a ocasião se apresenta, brotam rapidamente. Assim também as paixões, impedidas de se manifestar livremente pelas constantes relações com os demais, fortalecem-se e, aproveitando-se da hesíquia, infligem com mais vigor um pesado e perigoso ataque àqueles que negligenciaram o combate desde o seu início. É por isso que o profeta mandou exterminar os filhos da Babilônia [124], ou seja, apagar as representações enquanto elas ainda estão no receptáculo dos sentidos, a fim de que elas não caiam na terra da reflexão na qual poderiam crescer e onde, regadas pelas fortes e daninhas chuvas da permanente inquietação, produziriam o fruto múltiplo da malícia. Um outro profeta louva aqueles que não suportam que as paixões cresçam e as matam enquanto ainda não desmamaram: “Bem-aventurado´disse ele, quem agarra seus pequenos e os arremessa contra o rochedo [125]”. Talvez o grande Jó fizesse também alusão a isto, quando disse, refletindo sobre si mesmo: “O papiro e o junco florescem na água e toda planta provada de água resseca [126]”. Suas palavras: “O formileão perece por falta de alimento [127]” parece ter o mesmo significado. Querendo mostrar o caráter insidioso da paixão, Jó criou esta palavra composta associando o leão, o mais audacioso dos animai, ao inseto mais ínfimo, a formiga. Com efeito, os assaltos das paixões começam por imagens insignificantes, que avançam de modo imperceptível como as formigas, e que crescem a tal ponto que, finalmente, seu ataque não é menos perigoso do que o do leão para aqueles que as encontram. Eis porque é preciso combater as paixões assim que elas avançam como as formigas, tomando a aparência da forma mais vil. Pois se as deixarmos atingir a força do leão, tornar-se-á difícil resistir-lhes e recusar o alimento que elas pedem. Este alimento das paixões, 710
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710[124] 711[125] 712[126] 713[127]
Jeremias L, 16. Cf. Salmo CXXXVII, 9. Jó VIII, 11. Jó IV, 11.
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como já dissemos, são as imagens provindas dos sentidos; estes alimentam as paixões armando sucessivamente cada imagem contra a alma.
O combate dos sentidos
[50] É por isso que o legislador colocou treliças na cobertura do templo, significando que aqueles que querem conservar seu pensamento puro como um templo devem fazer o mesmo. Assim como as treliças impedem a entrada de todos os seres impuros, também nós devemos estabelecer em nossos sentidos como que uma treliça de pensamentos, o terror do julgamento futuro, que impeça a entrada das formas impuras que surgem sub-repticiamente. Também pela mesma razão, talvez, Ocozias ficou doente depois de cair de uma janela de treliças [128]. Pois cair de uma janela de treliça significa, no momento da tentação, deixar de opor aos prazeres as razões apropriadas. O que pode haver de pior do que esta doença? O corpo cai enfermo quando perde seu equilíbrio natural e quando um de seus elementos predomina em relação aos outros de um modo contrário à natureza. Para a alma, a doença consiste em se afastar da razão reta sob o impacto das paixões nocivas. Salomão teceu uma treliça para os que são capazes de entender quando disse: “Se seus olhos virem uma estrangeira, sua boca falará de modo hostil [129]”. As coisas hostis são o que deve acontecer depois do pecado no tempo da retribuição. Com efeito, o fato de pensar nestas coisas com a disposição conveniente afasta todos os olhares inconvenientes. Salomão falou desta disposição na qual deve se achar o pensamento neste momento: “Você jazerá como se estivesse em plano mar e como um piloto entre as ondas agitadas [130]”. 714
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[51] Se, no momento da tentação, pudermos resistir ao espetáculo que nos excita, se nos esforçarmos para escapar aos suplícios que nos ameaçam, seremos como aquele que na tempestade no mar sobrepuja sem dificuldade os adversários, sem se importar com os ferimentos recebidos, a ponto de poder dizer: “Eles me atingiram e eu não senti dor; eles se riram de mim e não lhes dei atenção; eles me bateram, e eu pensei que apenas brincavam; eu não senti seus golpes, pois pareciam flechas de crianças. Eu não prestei atenção às suas armadilhas, como se elas não existissem [131] ”. Assim é que Davi desprezou seus adversários: “O enganador, disse ele, afastou-se de mim e eu nem sequer percebi [132]”, como se dissesse: “Eu não me dei conta se meus inimigos se aproximavam ou se se afastavam”. Quem não conhece a familiaridade que existe entre os sentidos e os objetos sensíveis é facilmente enganado por isto. E como reconhecerá a armadilha no momento crítico, por não ter discernimento, quem sequer suspeita o dano que daí resulta e se deixa levar sem precaução alguma? Vemos pela guerra dos Assírios contra os Sodomitas que é contra os sentidos e os objetos sensíveis que o combate se desenvolve, impondo tributos aos sentidos quando estes são derrotados. Com efeito, a Escritura conta, por exemplo, a história dos quatro reis assírios diante dos cinco reis do país de Sodoma [133], seus acordos, suas alianças e seus sacrifícios de paz concluídos junto ao Mar Morto; em seguida o cativeiro dos cinco reis por doze anos, sua revolta no décimo terceiro ano e a guerra que 717
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714[128] 715[129] 716[130] 717[131] 718[132] 719[133]
Cf. II Reis I, 2. Provérbios XXIII, 23. Provérbios XXIII, 34. Provérbios XXIII, 35. Salmo CI, 4. Cf. Gênesis XIV, 1 ss.
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aconteceu no décimo quarto ano, durante a qual os quatro reis de Sodoma se revoltaram e fizeram prisioneiros os cinco reis assírios.
[52] Este foi o final da história. Quanto a nós, retiraremos daí uma lição para o combate dos sentidos contra os objetos sensíveis. Cada um de nós, com efeito, desde o nascimento até o décimo segundo ano de vida, por não ter ainda purificado a faculdade do discernimento, tem obrigatoriamente os sentidos sujeitos aos objetos sensíveis e submetidos às suas ordens como a déspotas: a vista às coisas visíveis, o ouvido aos sons, o paladar aos sabores, o olfato aos odores, o tato às sensações táteis. Não podemos discernir nem fazer cessar a menor destas percepções devido ao nosso estado de infância. Mas quando nosso julgamento alcança a maioridade e começa a perceber o que é nocivo, ele imediatamente pensa em como abandonar e fugir de tal escravidão. E ele se fortalece e se afirma nesta resolução, e se liberta completamente dos tiranos cruéis. Se, ao contrário, o julgamento se mostra mais fraco do que o ataque, os sentidos, vencidos pelo poder dos objetos sensíveis, caem cativos e sofrem esta escravidão tirânica sem nenhuma esperança de escapar. É por isso que os cinco reis da história, vencidos pelos quatro, foram atirados juntos no poço de betume [134], para que aprendamos com isto que aqueles que são vencidos pelos objetos sensíveis são reconduzidos com todos os seus sentidos aos objetos correspondentes a cada qual, como para dentro de abismos ou poços. A partir daí, eles já não podem pensar em nada senão nos objetos sensíveis, pois fixaram seu desejo nas coisas terrestres e estão mais ligados ao desfrutar destas coisas do que das coisas espirituais. 720
A terrível escravidão do hábito
[53] É como o escravo que está ligado ao seu senhor, à sua mulher e aos seus filhos e que rejeita a verdadeira liberdade em função de laços corporais, permanecendo assim escravo para sempre. Deixando que furem sua orelha com uma argola [135], ele não terá mais a faculdade de ouvir a palavra que o libertaria e permanecerá perpetuamente escravo devido à sua ligação com as coisas presentes. É por isso que a Lei ordena cortar a mão da mulher que segura pelos genitais o homem que luta contra outro [136]. Com efeito, no combate dos pensamentos sobre a escolha entre os bens terrestres e os celestes, esta mulher, ao invés de escolher estes últimos, prefere aqueles que estão sujeitos à geração e à corrupção – pois este é o significado dos genitais na Lei. Assim, de nada serve renunciar às coisas se não perseverarmos neste propósito e se nos deixarmos atrair novamente por essas coisas e sermos enredados em seus pensamentos. Desta forma retornamos àquilo que havíamos deixado e mostramos claramente que ainda permanecemos ligados, como a mulher de Lot que olhou para trás e foi transformada em estátua de sal a fim de se tornar até hoje uma lição para os desobedientes [137]. É o símbolo do hábito que faz voltar atrás aqueles que tentaram cumprir uma renúncia definitiva. O que quer dizer a Lei quando determina que aqueles que entraram no templo e terminaram suas preces não saiam pela mesma porta pela qual entraram, mas pela porta oposta, sem voltar sobre seus passos [138]? Não é para significar que não devemos interromper nossa marcha retilínea para a virtude por desvios à 721
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720[134] 721[135] 722[136] 723[137] 724[138]
Cf. Gênesis XIV, 10. Cf. Êxodo XXI, 6. Cf. Deuteronômio XXV, 11. Cf. Gênesis XIX, 26. Cf. Ezequiel LXVI, 9.
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nossa ré? Se voltamos continuamente a cabeça para aquilo que deixamos, somos atraídos para trás e nosso ímpeto cessa de nos empurrar para frente para nos fazer voltar aos antigos pecados.
[54] O hábito que nos atrai de volta e nos impede de retornar ao nosso estado de virtude é uma coisa terrível. Com efeito, o estado provém do hábito e este estado se torna como que uma segunda natureza. É difícil mudar e transformar uma natureza; mesmo se a inclinarmos com alguma força, ela retorna a si mesma rapidamente. Sempre podemos fazê-la sair um pouco de seus limites, mas não podemos mudá-la completamente, a menos que, ao preço de muitos trabalhos, a impeçamos de retornar sobre seus passos ao estado que ela perdeu ao adquirir o mau hábito.
Raquel sentada sobre os ídolos
A alma que segue os hábitos é como Raquel sentada sobre os ídolos; ela permanece ligada às coisas informes e mesmo quando quer se dirigir para coisas mais elevadas, não consegue: “Eu não posso, disse ela, levantar-me em sua presença, pois tenho aquilo que acontece regularmente às mulheres [139]”. De fato, a alma que há muito tempo se compraz com as coisas da vida terrestre está verdadeiramente “sentada sobre ídolos”, sobre objetos que não têm forma em si mesmos e que recebem sua forma da arte dos homens. A riqueza, a glória e as outras coisas da vida são coisas informes, sem nada de notável nem de característico. Traindo esta realidade por uma aparência sedutora, elas mudam a cada dia; somos nós que lhes damos uma forma quando atribuímos por meio de raciocínios humanos uma utilidade imaginária a coisa que não possuem nenhuma utilidade real. 725
[55] Nós dedicamos às necessidades essenciais do corpo um luxo inconcebível, adicionando mil temperos aos alimentos e enfeites caríssimos às roupas apenas para o fausto e o conforto; e se alguém nos critica estas vaidades – sem razão, pensamos nós – nós nos defendemos ardorosamente alegando que nos atemos apenas ao que é conveniente. Que fazemos assim, senão dar forma a objetos que não a possuem em realidade? É acertadamente que dizemos que tal alma está “sentada sobre os ídolos”. Pois quando a alma, como dissemos, afirma em si estes juízos e se liga desta maneira às coisas como se fossem ídolos, ela não mais está submetida à verdade e não pode mais se erguer, ela está manchada pelos maus hábitos, assim como a mulher pela impureza de suas regras. A Escritura fala em estar sentado para frisar a indolência, que se abstém de fazer o bem, e o amor ao prazer. Ela menciona a indolência quando fala “daqueles que estão sentados nas trevas e na sombra da morte, cativos das misérias e das correntes [140]”, pois as trevas e as correntes nos pés impedem de agir. Trata-se também do prazer quando se fala daqueles que retornaram de coração ao Egito e que diziam entre si: “Nós nos lembramos dos dias em que nos assentávamos junto a pratos de comida e comíamos à vontade [141]”. Na verdade sentam-se junto aos pratos de comida aqueles que sem cessar atiçam seu apetite pelos líquidos e pelo calor. E a gulodice é a mãe do prazer, pois é ela que engendra todas as demais paixões. Com efeito, é dela, como de uma raiz, que proliferam todos os brotos das demais paixões que, pouco a 726
727
725[139] 726[140] 727[141]
Gênesis XXXI, 35. Isaías IX, 2; Salmo CVII, 10. Êxodo XVI, 3.
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pouco, sobre a árvore mãe, estendem aos céus seus ramos de malícia. Avareza, cólera e tristeza são filhas e descendentes da gula; pois o guloso precisa primeiro de dinheiro para suprir sua concupiscência jamais satisfeita. A cólera vem então provocada por tudo o que se opõe à aquisição do dinheiro; segue-se a tristeza, quando a cólera se mostra impotente para alcançar seus fins. Tal é a sorte daquele que avança “sobre o peito e o ventre [142]”: ele avança sobre o ventre quando dispõe de meios materiais para usufruir dos prazeres; quando estes faltam, ele rasteja sobre o peito, onde se assenta a cólera. De fato, os concupiscentes provados de seus prazeres tornam-se furiosos e amargos. 728
O discernimento dos perfeitos
[56] É por isso que o grande Moisés fez com que o sacerdote trouxesse sobre o peito um peitoral, indicando com este símbolo que ele deve refrear ciosamente os impulsos da paixão da cólera com seu pensamento; pois o peitoral representa a faculdade do discernimento, e aquele cuja paixão domina a razão é imperfeito; Moisés, que era perfeito, havia feito desaparecer totalmente a cólera, pois não apenas ele portava o peitoral, mas ainda ofereceu o peito, como foi dito: “Moisés tomou o peito e o ofereceu colocando-o diante do Senhor [143]”. Outros não conseguiram afastar completamente a cólera e não dominaram a paixão pela razão, mas tornaram-se senhores dela com muito esforço: estes são os que ergueram o peito com o braço, pois o braço é o símbolo do esforço e da ação. Da mesma forma, o fato de avançar sobre o ventre, rastejando, representa justamente o prazer, pois o ventre é, por assim dizer, a causa dos prazeres porque, quando está cheio, os apetites pelos demais prazeres se tornam mais intensos e, quando lhe falta alguma coisa, estes permanecem tranqüilos e mais estáveis. Daí a diferença entre aquele que progride e o perfeito. Moisés, que havia rejeitado completamente o prazer dos alimentos, lavou o ventre e os pés com água: o ventre designa o prazer e os pés a marcha para o progresso. Aquele que progride lava o que está no ventre, mas não todo o ventre. Existe uma grande diferença entre o que Moisés lavou e o que os outros lavam. De uma parte, trata-se de um gesto voluntário; de outra parte, algo ordenado. 729
[57] Com efeito, é preciso que o perfeito seja levado às ações virtuosas por um movimento próprio, enquanto que quem progride obedece às ordens do superior. Com o maior cuidado ele ergue inteiramente o peito, mas não ergue o ventre, ele o lava. Pois embora o sábio seja capaz de rejeitar e eliminar a cólera, ele não pode suprimir o ventre. A natureza é forçada a se utilizar de alimentos essenciais, mesmo no asceta mais mortificado. Quando a alma não segue mais a razão reta e firme, mas se deixa corromper por prazeres grosseiros, o ventre se incha, pois, mesmo quando os órgãos do corpo se encontram saturados, a concupiscência permanece insatisfeita e ao inchaço do ventre seguese o enfraquecimento das coxas [144]. Então a reflexão perde a força para engendrar o bem, por estar o ventre inflado pela riqueza dos alimentos, e as energias espirituais se tornam abatidas. É isto que a Lei dá a entender com a imagem das coxas. Assim é que o concupiscente avança rastejando sobre o ventre, voltado inteiramente para a fruição dos prazeres. Mas quem se engaja na vida virtuosa faz desaparecer a gordura que enche o ventre recusando os alimentos que engordam o corpo; aquele que 730
728[142] 729[143] 730[144]
Gênesis III, 14. Levítico VIII, 29. Cf. Números V, 21.
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progride lava o que está no ventre; enfim, o perfeito lava totalmente o ventre rejeitando inteiramente tudo o que não é estritamente necessário.
Gulodice e luxúria
[58] “Sobre o peito e o ventre”, diz o texto, acrescentando bem a propósito: “Você avançará [145]”. Com efeito, o prazer não é próprio das pessoas estáveis e calmas. Mas dos agitados e turbulentos. O prazer sexual é ainda mais aparentando com a gulodice do que as demais paixões. Querendo mostrar a estreita conexão entre estas duas paixões, a natureza colocou os órgãos sexuais logo abaixo do ventre. Se a concupiscência daqueles diminui, é porque este está em estado de privação; ao contrário, se sua concupiscência se inflama e se excita, é devido ao vigor do ventre saciado. E a gulodice não é apenas a mãe e a nutriz dessas paixões, ela é também a destruidora do bem. Pois uma vez que ela se torna senhora e detém o poder, normalmente as virtudes tombam e desaparecem: a temperança, a castidade, a coragem, a força e todas as outras. É isto que Jeremias quis dizer misteriosamente quando afirmou: “O cozinheiro chefe dos Babilônios destruiu a muralha que cerca Jerusalém [146]”; o cozinheiro chefe é uma imagem da paixão da gula. Com efeito, o cozinheiro chefe dedica todo seu zelo em servir o ventre e inventa mil receitas para produzir prazer; da mesma forma a gulodice põe em marcha todos os meios de buscar prazer no momento da fome, e a variedade de alimentos toma posse do forte das virtudes e o destrói de alto a baixo. 731
732
[59] As ervas e os temperos vão contra a virtude, ainda que firme; são como máquinas e engenhos de guerra que sacodem e destroem sua firmeza e solidez. E do mesmo modo como uma alimentação demasiado rica destrói as virtudes, a frugalidade abate a fortaleza dos vícios. Com efeito, assim como o cozinheiro chefe dos Babilônios destruiu as muralhas de Jerusalém, ou seja, a alma em paz, desencadeando os prazeres da carne com sua arte culinária, também o pão de cevada dos Israelitas, rolando, colocou por terra as tendas dos Medianitas [147]. Pois um regime frugal regular e progressivo destrói na maior parte das vezes os impulsos da luxúria. Os Medianitas são, de fato, um símbolo das paixões da luxúria, porque foram eles que introduziram a prostituição em Israel e seduziram um grande número de jovens. A Escritura fala com justiça das tendas dos Medianitas e da muralha de Jerusalém, porque tudo o que cerca a virtude é sólido e firme, enquanto que o que contém o vício é como uma tenda ou um pano, em nada diferente de um fantasma. 733
Vantagens da vida no deserto
[60] Eis porque os santos fugiam das cidades e evitavam os encontros numerosos, sabendo que a companhia de homens corruptos era mais perigosa do que a peste. Assim é que, sem nada levar 731[145] 732[146] 733[147]
Gênesis III, 14. II Reis XXV, 9-10; Jeremias LII, 14. Cf. Juízes VII, 13.
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consigo, eles deixavam suas posses ao abandono, libertando-se das distrações que elas lhes traziam. Pela mesma razão Elias deixou a Judéia para habitar o monte Carmelo, que era um deserto e território de animais selvagens [148], e onde não havia mais do que árvores para prover alimentos; ele se contentava com frutas para as necessidades de sua natureza. Eliseu seguiu o mesmo modo de vida, tendo herdado de seu mestre, entre outras coisas boas, o amor pelo deserto. Também João Batista habitava no deserto próximo ao Jordão, alimentando-se de gafanhotos e mel selvagem [149], mostrando a todos a despreocupação com a subsistência corporal e criticando a busca da fruição. E talvez Moisés tenha estabelecido uma lei geral quando prescreveu aos Israelitas, a respeito do maná, que o recolhessem a cada dia [150], frisando assim judiciosamente que os homens devem viver cada dia sem se preocupar com o amanhã. Ele pensava que à criatura racional convém se contentar com aquilo que se apresenta e reconhecer que Deus é o dispensador do resto. Senão, fazendo provisões pra o futuro, mostramos uma falta de confiança na graça de Deus, como se ele não espalhasse continuamente seus dons sobre os homens. 734
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[61] Em resumo, é por isso que todos os santos “de quem o mundo não era digno”, deixaram as regiões habitadas para “errar pelos desertos e as montanhas, nas grutas e nas cavidades da terra, vestidos com peles de carneiro ou couros de cabras, submetidos às privações, oprimidos e maltratados [151]”. Eles fugiram da malícia natural dos homens e das coisas inúteis de que estão cheias as cidades, não querendo ser levados pelo turbilhão agitados em que a maior parte das pessoas está engajada, levadas por um ímpeto violento como a força de uma correnteza. Eles eram felizes por viver entre animais selvagens, considerando-os menos nocivos do que seus semelhantes. Eles fugiram dos homens como se fossem seus inimigos, enquanto confiavam nos animais como sem fossem amigos, pois estes não ensinam o pecado e admiram e respeitam a virtude. É assim que os homens quiseram matar Daniel, enquanto que os leões o salvaram protegendo aquele que havia sido condenado injustamente [152]. Eles substituíram o julgamento iníquo dos homens pelo julgamento justo proclamando sua inocência. A virtude desses heróis havia sido objeto da inveja e da hostilidade dos homens; para os animais, foi objeto de veneração e respeito. 737
738
734[148] 735[149] 736[150] 737[151] 738[152]
Cf. I Reis XVII, 1-19; XVIII, 19. Cf. Marcos I, 16. Cf. Êxodo XVI, 16-17. Hebreus XI, 37-38. Cf. Daniel VI, 16-23.
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TI, VII – NILO, O ASCETA – IV Exortação ao desligamento total.
IV EXORTAÇÃO AO DESLIGAMENTO TOTAL Como o asno no deserto
[62] Se temos em nós o desejo de progredir, imitemos de coração as virtudes dos santos. Deixemos a escravidão do corpo e busquemos a liberdade. O asno deixado no deserto pelo Criador não ouve as reclamações do condutor e se ri do burburinho das cidades [153]. Mesmo que até o presente nós o tenhamos feito carregar uma pesada carga sob o jugo das paixões da malícia, libertemo-lo de seus laços malgrado as resistências dos que, sem que sejam seus donos naturais, adquiriram o hábito de dominá-lo. Certamente, se eles nos ouvirem dizer, não apenas de boca e com palavra, mas de coração: “O Senhor precisa dele”, eles o soltarão imediatamente e, vestido com as roupas dos apóstolos, ele se tornará a montaria do Verbo [154]. Solto e deixado em suas antigas pastagens, ele encontrará toda a verdura [155], ou seja, ele seguirá aqueles que possuem a riqueza das palavras da Sagrada Escritura, para ser encaminhado a uma vida irrepreensível, colhendo nelas a um só tempo o alimento e o prazer. Mas devemos nos perguntar como o asno deixado por Deus no deserto encontra verdura, uma vez que vive num terreno inculto e salobro. O deserto impregnado de sal geralmente é impróprio para produzir ervas. Podemos responder que se trata do deserto das paixões e que estaremos aptos a encontrar a contemplação nas palavras divinas quando expulsarmos completamente a umidade das paixões. 739
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Rejeitar as diversões infantis
[63] Deixemos as coisas desta vida e elevemo-nos até os bens da alma. Por quanto tempo permaneceremos ainda nos jogos de criança, sem adotarmos uma mentalidade viril? Por quanto tempo ainda agiremos com a debilidade de bebês, sem progredir para as grandes coisas? Pois as crianças, quando crescem, mudam de disposições em relação aos jogos e perdem facilmente a ligação que tinham pelos objetos que os divertiam. Nozes, ossinhos, bolas são objetos aos quais as crianças se ligam e que consideram de grande valor, na medida em que seu espírito não possui maturidade. Mas quando as pessoas se tornam adultas, rejeitam tudo isto e se dedicam aos negócios com o maior empenho. Nós, ao contrário, permanecemos como crianças nos extasiando com coisas pueris e ridículas. Recusamos o esforço para adotar uma mentalidade que convenha a homens, preferimos nos abandonar às diversões terrestres, fornecendo motivos para o riso das pessoas que dão às coisas seu real valor. É vergonhoso para um adulto sentar-se para desenhar figuras infantis na areia ou nas cinzas; mais vergonhoso ainda é, para aqueles que estão destinados a usufruir dos bens eternos, rolarem nas cinzas dos bens terrestres e desonrar a perfeição de sua profissão por uma conduta inepta.
739[153] 740[154] 741[155]
Cf. Jó XXXIX, 5-7. Cf. Marcos XI, 3. Cf. Jó XXXIX, 5-7.
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TI, VII – NILO, O ASCETA – IV Exortação ao desligamento total.
Se agimos assim é porque, ao que parece, não pensamos em nada que esteja acima das coisas que vemos, e porque não reconhecemos a excelência dos bens celestes diante do pouco valor dos bens presentes. Estamos ofuscados pelo brilho destes últimos e neles fixamos nosso desejo. Pois, na ausência das coisas melhores, as menos boas sempre adquirem valor e tomam o lugar das primeiras. Se tivéssemos uma idéia mais elevada dos bens futuros, não ficaríamos nos extasiando diante dos bens presentes.
Como marinheiros na tempestade, lançar a carga ao mar
[64] Comecemos, portanto, por nos separarmos das coisas presentes, desdenhando as posses, as riquezas e tudo o mais que submerge o espírito e o arrasta às ondas. Rejeitemos a carga, e o navio flutuará melhor. Na tempestade devemos nos desembaraçar da maior parte das bagagens, a fim de que o piloto – o intelecto – possa ser salvo com a tripulação, ou seja, os pensamentos. Quando os navegadores, em pleno mar, são pegos num furacão, eles fazem pouco caso de suas mercadorias e, por si próprios, despejam a carga no mar, considerando a vida preferível à fortuna. Para que o navio submergindo sob o peso da carga não tenha a infelicidade de afundar, eles o aliviam, atirando às ondas o mais precioso dos tesouros. Porque não dispensamos, nós também, por uma vida melhor, tudo o que arrasta a alma para o abismo? O temor a Deus não tem a mesma força do que o medo do mar? Os marujos, desejosos de assegurar uma vida transitória, não vêem como prejuízo grave a perda de seus bens, e nós, que pretendemos aspirar à vida eterna, não dispensamos sequer o mais insignificante objeto e preferimos morrer com as mercadorias a sermos salvos sem elas.
Como os atletas, despojemo-nos de tudo para a luta
Despojemo-nos de tudo, eu lhes peço, pois nosso adversário, este, está nu. Os atletas não lutam vestidos, a regra é que eles entrem na arena sem vestimentas. Faça frio ou calor, é assim que eles fazem sua entrada, deixando as vestes do lado de fora. Se alguém recusa despir-se, recusa a luta. Ora, nós que recebemos a ordem de lutar, e contra adversários que são bem mais lestos do que aqueles que lutam visivelmente, não apenas não tiramos as roupas, como ainda nos atiramos ao combate com inúmeros fardos às costas, dando assim múltiplas oportunidades aos nossos antagonistas.
[65] Com efeito, como pode alguém cumulado de bens materiais lutar contra “os poderes espirituais da malícia [156]”, estando vulnerável de todos os lados? Como alguém cercado de riquezas combaterá o espírito da avareza? Como alguém envolvido em mil preocupações poderá enfrentar os demônios que são livres de qualquer preocupação? A Sagrada Escritura diz: “Aquele que está nu correrá alegremente naquele dia [157]”. Aquele que está nu, não o que está revestido com todos os rebanhos de preocupações pelas coisas deste mundo; aquele que está nu, não o que é impedido de correr pela quantidade de bens 742
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742[156] 743[157]
Efésios VI, 12. Amos II, 16.
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e riquezas. Quem está nu torna-se difícil, senão impossível, de ser agarrado por seus adversários. Se o grande José estivesse nu, a Egípcia não teria conseguido agarrá-lo, pois a Escritura diz que ela o segurou pelas roupas dizendo: “Deite-se comigo [158]”. As roupas são as coisas corpóreas por meio das quais o prazer nos atrai e se apodera de nós. Quem está ligado a elas é necessariamente levado a lutar contra os que as roubam. Foi assim que José, o atleta da castidade, vendo-se arrastado à força, pela vestimenta necessária ao corpo, à volúpia da união carnal, compreendeu que ele deveria estar nu para vencer sua soberana que pretendia fazer-lhe violência; e ele abandonou suas vestes e fugiu como o primeiro homem que circulava nu no Paraíso graças à sua virtude. Adão havia recebido de Deus este privilégio da nudez, até que foi obrigado a usar roupas por causa de sua desobediência. Enquanto ele lutou contra os adversários que o pressionavam a violar a ordem de Deus, ele permaneceu nu como o atleta na arena; mas uma vez vencido e fora de combate, ele concordou em vestir-se, porque a nudez está associada às condições da luta. 744
[66] É por isso que o autor dos Provérbios dizia ao treinador do atleta: “Tire suas vestes, pois ele vai entrar na arena [159]”. Enquanto está fora do estádio, é bom que o lutador mantenha suas vestimentas tanto quanto os que não vão combater, para dissimular sua força sob vestes sensíveis. Mas quando ele avança para o combate, “retire suas vestes”, Pois é preciso combater nu, e não apenas nu, mas ainda besuntado de óleo. O fato de estar nu impede o lutador de ser agarrado por seu antagonista, e estar besuntado de óleo lhe permite escapar facilmente se for pego. Eis porque cada um dos adversários se esforça para jogar terra no outro, a fim de que a untuosidade do óleo seja atenuada pela poeira e ele consiga segurar seu antagonista. No nosso combate, a poeira são os negócios terrestres, e o óleo a libertação das preocupações. E assim como o lutador bem besuntado de óleo se livra facilmente das garras de seu adversário, e como, ao contrário, se for atingido pela poeira, livra-se com mais dificuldade, também no nosso caso, aquele que não tem nenhuma preocupação não é facilmente agarrado pelo diabo, mas o que está como que coberto pela poeira das preocupações terrestres não possui a inteira liberdade de espírito e tem dificuldade em se livrar das mãos do adversário. 745
Desembaraçar-se de todas as preocupações
[67] A característica de uma alma perfeita é estar desembaraçada de toda e qualquer preocupação, enquanto que a alma do ímpio está cheia de preocupações. Com efeito, diz-se da alma perfeita que ela é como “um lírio em meio aos espinhos [160]”, o que indica que ela vive sem preocupações no meio daqueles que estão cheios de preocupações. Pois no Evangelho o lírio é uma imagem da alma desembaraçada de preocupações: “Eles não tecem nem fiam, e estão envoltos em maior glória do que Salomão [161]”. Ao contrário, dos que têm muitas preocupações com as coisas materiais se diz: “Toda a vida do ímpio está nas preocupações [162]”. E, com efeito, o ímpio passa toda a sua vida ocupando-se de coisas corporais, sem mostrar a menor preocupação com as coisas futuras; para o corpo, que entretanto não tem necessidade de muitos cuidados, ele dispensa todo seu tempo, mas para a alma ele 746
747
748
744[158] 745[159] 746[160] 747[161] 748[162]
Cf. Gênesis XXXIX, 12. Provérbios XXVII, 13. Cânticos II, 2. Mateus VI, 28-29. Jó XV, 20.
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não reserva sequer um curto instante, enquanto que ela é capaz de tal progresso que toda uma vida não é suficiente para levá-la à perfeição. Mesmo quando parecemos lhe dedicar algum tempo, é com descuido e negligência que o fazemos, fascinados que estamos pelas aparências das coisas visíveis. Somos como pessoas seduzidas pela feiúra prostituída que, desprovida de beleza real, cria uma falsa aparência para enganar quem a fita, corrigindo sua deformidade à custa de cosméticos. Vencidos pela vaidade das coisas presentes, ficamos incapazes de ver a feiúra da matéria, iludidos pela ligação que temos por ela.
Manter-se com o estritamente necessário às necessidades do corpo
[68] Por esta razão, não nos mantemos dentro daquilo que é o estritamente necessário, mas, perseguindo uma saciedade nociva à vida, nos comprazemos em toda espécie de posses, sem perceber que nossas posses devem estar na medida das necessidades do corpo e que tudo o que vai além é desregramento e não mais necessidade. Uma túnica na medida do corpo é ao mesmo tempo conforme à necessidade e ao bom gosto. Se ela é demasiado longa, chegando aos pés e arrastando pelo chão, ela é ao mesmo tempo chocante e dificulta qualquer tipo de trabalho. Da mesma forma, as posses que ultrapassam as necessidades do corpo são um entrave à virtude e objeto de severa censura da parte daqueles que são capazes de compreender a verdadeira natureza das coisas. Não devemos prestar atenção àqueles que vivem enganados pelas coisas sensíveis, nem seguir cegamente os que estão ligados às coisas terrestres, porque eles jamais pensam nas coisas espirituais. É como se recorrêssemos a cegos para julgar as cores ou a surdos para apreciar a música: confiamos em pessoas que não possuem o necessário para julgar as coisas espirituais, porque elas optaram pela fruição das coisas presentes. São cegos, aqueles cujo espírito é desprovido das faculdades mais necessárias para discernir as coisas excelentes das coisas indiferentes.
[69] Um destes foi Acã, filho de Carmi, que confessou a Josué haver enterrado sob sua tenda os objetos que ele havia roubado, com a prata escondida por baixo [163]. De fato, considerando mais preciosos estes objetos materiais, variados e esplêndidos, ele enterrou debaixo sua razão, perdendo-se verdadeiramente como um ser desprovido de razão e se entregando às aparências daquilo que lhe agradava. Ele rebaixou seu pensamento de seu trono real ao nível dos subordinados, ou antes, dos criminosos. Pois se seu pensamento houvesse permanecido firmemente estabelecido em seu lugar, encarregado de julgar as coisas sensíveis, ele teria dado um veredicto justo e direito, condenado o ímpeto que o levara às coisas enganadoras. 749
O excesso a que conduz a concupiscência ilimitada
É, portanto, bom manter-se destro dos limites do necessário e fazer todo o possível para não ultrapassá-los. Pois, quando nos deixamos levar um pouco pela concupiscência aos prazeres da vida, já 749[163]
Cf. Josué VII, 21.
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não teremos a seguir razão para deter o movimento que se iniciou. Com efeito, para além da necessidade já não existe limite, e o ardor imenso e a vaidade sem limites aumentam sempre o trabalho de adquirir mais, alimentando a concupiscência como alimentamos uma chama acrescentando mais combustível.
[70] Uma vez ultrapassados os limites das necessidades da natureza, começa o desenvolvimento da vida material, quando desejamos algo de mais saboroso sobre o pão, quando juntamos um pouco de vinho ordinário à água, e assim por diante. Não suportamos mais usar roupas comuns, mas passamos a adquirir as mais belas lãs, escolhendo as de melhor qualidade, para depois passar às combinações escolhidas de linho e lã, e daí para as sedas, primeiro simples e logo com bordados representando combates, jogos e toda espécie de cenas. Adquirimos vasilhas de prata e de ouro, não apenas para nossa mesa, mas para servir aos animais ou para servir de urinol. O que é preciso acrescentar para mostrar a ostentação absurda das pessoas que estendem sua vaidade até as necessidades mais baixas e que consideram indignos de seus dejetos recipientes feitos de outro material que não prata? É assim que o prazer chega ao cúmulo e leva o luxo material até as ações mais vis.
Os homens se tornam mais irracionais do que os animais
[71] Tal conduta é contra a natureza, pois o Criador ordenou a nós e aos animais: “Eis que lhes dou, disse Deus ao homem, todas as ervas dos campos para servir de alimento a vocês e aos animais [164]”. Nós recebemos o mesmo regime dos seres desprovidos de razão, mas se usamos nossas faculdades intelectuais para substituí-lo pelo pior dos desregramentos, não será certo sermos considerados mais irracionais do que eles? Os animais permanecem dentro dos limites da natureza, em nada se afastando daquilo que lhes foi ordenado por Deus, e nós, homens dotados de razão, abandonamos por completo a antiga lei. Quantos alimentos cozidos comem os animais? Têm eles cozinheiros para encher de prazeres seus ventres miseráveis com mil artifícios? Eles comem a erva, contentando-se com o que encontram, e bebem a água das fontes – muitas vezes, em pequenas quantidades. Do mesmo modo eles temperam os prazeres sexuais e não inflamam a concupiscência com comidas gordurosas. Eles só têm consciência do sexo durante a estação do ano reservada pela lei da natureza à sua união por espécie a fim de mantê-la e propagá-la. No resto do tempo, eles são estranhos uns aos outros a ponto de esquecer completamente a atração sexual. Entre os homens, ao contrário, devido à riqueza da alimentação, uma concupiscência insaciável de prazeres carnais se desenvolve, suscitando desejos furiosos e não dando jamais repouso à paixão. 750
750[164]
Gênesis I, 29-30.
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Evitar os perigos trazidos pelo amor às riquezas
[72] Uma vez que as posses causam tamanho prejuízo e, como fonte envenenada, dão impulso a todas as paixões, eliminemos a própria causa, se desejamos a saúde de nossa alma. Curemos o amor passional das riquezas pelo despojamento. Fujamos dos encontros com homens que não nos fazem nenhum bem, abraçando a solidão, pois a companhia de pessoas frívolas é nociva e desastrosa para a paz habitual da alma. Pois, assim como quem vive numa atmosfera pestilenta está geralmente doente, também os que vivem como homens ordinários contraem seus vícios. Com efeito, o que há de comum entre o mundo e aqueles que renunciaram ao mundo? “Ninguém, alistando-se no exército, mantém os negócios da vida civil, se quiser dar satisfação a quem o engajou [165]”. O cuidado com os negócios impede os exercícios militares; e, se não estivermos engajados, como poderemos nos manter firmes contra tropas aguerridas? Antes, a bem dizer, combateremos com tanta preguiça e indolência que não poderemos resistir ao inimigo jazente sobre a terra, e homens em pé serão surpreendidos pelo adversário caído. É o que acontece nos combates contra o amor às riquezas. Aqueles que despojam os mortos depois das batalhas muitas vezes são mortos por inimigos estendidos sobre o solo, e na esperança de um proveito vergonhoso perecem miseravelmente depois de terem obtido a vitória. É o destino que sofreremos, também nós, se nos aproximarmos do inimigo moribundo que jaz sobre a terra. Assim como soldados no campo de batalha examinam os mortos pelo desejo de riquezas e são feridos de improviso e mortos por um inimigo semimorto de quem se aproximaram para o despojar, desonrando assim tolamente a glória de seu triunfo, também nós, após havermos batido o bárbaro pela castidade e a temperança – ou acreditarmos te-lo abatido – atraídos por sua armadura, ou seja, por aquilo que parece precioso aos olhos dos homens – a riqueza, o poder, a pose, a glória – nos aproximamos, desejosos de tomar-lhe algo, e assim perecemos, atirando-nos à morte. 751
[73] Assim pereceram as cinco virgens da parábola [166], que, no entanto, haviam afugentado o inimigo pela pureza e a temperança; por sua dureza de coração, engendrada pelo amor às riquezas, elas se atiraram por si sós sobre a espada daquele que seria incapaz de atingi-las porque jazia sobre a terra. 752
Portanto, não desejemos nada daquilo que lhe pertence, para não perdermos nossa vida e aquelas coisas também. Pois ele sempre nos convida a pegá-las, ele nos pressiona, sobretudo se ele nos acha dispostos a obedecer. Ele convidou o próprio Senhor dizendo: “Eu lhe darei tudo isso, se você se ajoelhar a meus pés e me adorar [167]”, esforçando-se para enganá-lo com coisas que, nesta vida, têm brilho, mas das quais ele não tinha nenhuma necessidade. Como não pensaria ele em enganar os homens, que se mostram tão facilmente atraídos pelo usufruto das coisas sensíveis? 753
751[165] 752[166] 753[167]
II Timóteo II, 24. Cf. Mateus XXV, 1-13. Mateus IV, 9.
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Exercer a piedade
Exercitemos, portanto, o intelecto na piedade, se por acaso já formos bem sucedidos fazendo-o com o corpo Pois “o exercício corporal não tem mais do que uma frágil utilidade”, nisto comparável às disciplinas infantis, enquanto que “a piedade é útil para tudo [168]”, trazendo o bem estar às almas daqueles que buscam vencer seus inimigos, as paixões. 754
[74] Os atletas que começam a participar dos jogos fazem bem em treinar seus corpos e mover continuamente seus membros, mas os homens já treinados preocupam-se em serem fortes no combate e em estarem cuidadosamente untados para os combates sagrados. Mas é desejável que os que ainda estão no início da piedade se apliquem em evitar os atos, pois, ainda presas dos prazeres inseparáveis das paixões, eles são levados quase contra a vontade aos vícios a que se acostumaram. Mas entre aqueles cuja prática de virtude está firme, que se preocupem com as coisas do espírito e guardem o pensamento com o maior cuidado para não serem levados a alguma imperfeição por um movimento desordenado. Em resumo, os primeiros devem se dedicar a regrar os movimentos corporais, e os segundos a forçar os ímpetos do pensamento a que se desenvolvam harmoniosamente segundo a única conduta sábia, sem nenhuma imaginação mundana que distraia o pensamento das idéias divinas.
Por amor à Sabedoria
É preciso, com efeito, que o desejo de quem se dedica à piedade seja inteiramente voltado para o Ser amado, a fim de que os pensamentos humanos não encontrem nenhuma ocasião para excitar nele as paixões correspondentes. Cada paixão, quando excitada naquele a quem ela domina, acorrenta o pensamento: porque então o zelo pela virtude não pode proteger o espírito livre das outras paixões? Quando um homem encolerizado luta interiormente contra a imagem daquele que o ofendeu, terá ele consciência de outra coisa? E não acontece o mesmo com o homem que deseja riquezas quando, preso pela imaginação, não pensa em nada que não nos meios de obtê-la? Muitas vezes um debochado, mesmo no meio de outros homens, esquece aquilo que o cerca e, como um bloco de pedra, sem nada ver e calado, permanece inteiramente concentrado em si mesmo pensando na imagem da mulher desejada. Talvez seja uma alma assim afetada que a Lei descreve como “mantendo-se à parte [169]”, ou seja, fora dos sentidos, concentrando em si todas as energias, inconsciente das coisas exteriores, por causa da imagem vergonhosa que a ocupa. 755
[75] Se tal ligação toma conta assim de nosso pensamento a ponto de fazer cessar a atividade dos sentidos, quão mais não deveria o amor ardente pela sabedoria fazer renunciar o espírito às coisas sensíveis e às sensações em si, quando se eleva às alturas e mergulha na contemplação das realidades espirituais? Assim como alguém que se corta ou se queima não pensa em mais nada devido à 754[168] 755[169]
I Timóteo IV, 8. Levítico XV, 33 e XX, 18.
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intensidade da dor, também o homem que pensa apaixonadamente em alguma coisa é incapaz de desviar seu pensamento da paixão que o prende, ficando o espírito completamente dominado pelo objeto. O prazer não admite o sofrimento, a tristeza não admite a felicidade, a alegria não admite o aborrecimento; uma tristeza intensa não pode ser acompanhada de felicidade, nem o aborrecimento de alegria. As paixões opostas excluem-se mutuamente e jamais podem se unir nem cooperar umas com outras, devido à implacável aversão que as separa e opõe.
Que a pureza da virtude não seja manchada pelos pensamentos das coisas do mundo, nem a claridade da contemplação por cuidados corporais, a fim de que a imagem da verdadeira sabedoria, brilhando em toda sua beleza, não seja empanada pelos arrogantes nem ridicularizada pelos ignorantes, mas que seja louvada, senão pelos homens, ao menos pelas potências celestes e por Cristo nosso Senhor. É dele que os santos esperam elogios, como o grande Davi que pisoteava a glória humana e solicitava a honra de Deus dizendo: “De ti vem meu louvor [170]”, e “Minha alma será louvada pelo Senhor [171]”. Acontece com freqüência que que os homens, por inveja, condenem o bem, mas o tribunal do alto julgará com imparcialidade e dará sua sentença conforme a verdade. 756
757
Regozijemo-nos de levar a este tribunal celeste aquilo que é necessariamente causa de felicidade em nossas obras. Não precisamos nos atormentar com as opiniões dos homens, porque os homens não podem nem recompensar aqueles que foram bem sucedidos, nem punir os que não o foram. Se, por inveja ou paixão, eles procuram desacreditar as obras da virtude, eles caluniam com blasfêmias insensatas as vidas glorificadas por Deus e os anjos. Quando chegar o momento da retribuição, aqueles que foram bem sucedidos receberão em recompensa os bens eternos, não conforme a opinião dos homens mas segundo a própria verdade de suas vidas. Possamos obter estes bens pela graça e a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertence a glória junto com o Pai e o Espírito Santo, agora e para sempre por todos os séculos. Amém.
756[170] 757[171]
Salmo XXII, 26. Salmo XXXIV, 3.
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DIÁDOCO DE FOTICÉIA Nosso Pai entre os Santos, Diádoco, que foi bispo de Foticéia na antiga Épira de Ilíria, viveu no sétimo século: é o que podemos concluir a partir dos capítulos de são Máximo, nos quais estão mencionados os de Diádoco. Que ele foi um homem sábio, brilhantemente dotado para a ação e a contemplação, é o que poderá concluir quem quiser, lendo este tratado que foi conservado, tão bem escrito por ele, com um amor à sabedoria obtido ao longo de uma vasta experiência,e com as elevações divinas no coração. Tendo dividido a obra em cem capítulos, e feito destes, por assim dizer, uma celebração dos mistérios mais profundos da virtude da prece, e tendo-os incrustado das palavras da Escritura e das contemplações do conhecimento extao, ele os deixou a todos os Padres népticos e teóforos que vieram depois dele, como um ensinamento original da santa népsis formada por todas as virtudes. É por isso que vemos muitos Padres referindo-se frequentemente a estes capítulos como testemunhos firmes, e extrair deles em idênticos termos suas razões e seus testemunhos nas obras népticas que eles próprios redigiram. Photius os menciona, quando diz:
“Os cem capítulos estão baseados em dez definições. O tratado foi composto por excelência para aqueles que se dedicam à ascese e estão engajados em ações sobre os caminhos da perfeição Não há nada obscuro... Em presença de Andronico Paleólogo reuniu-se um sínodo. Gregório de Tessalônica, Simeão de Tessalônica, Gregório o Sinaíta, santo Calixto e muitos outros atestaram o caráter irrepreensível do tratado”.
Mesmo se, como diz Photius, o centésimo capítulo parece repreensível, ele está, no entanto, dentro daquilo a que se referiu o divino Máximo, no estreito gume da piedade, como fica claro no final
*
Diádoco foi, no século V, bispo de Foticéia, uma pequena cidade da Épira, na Grécia continental. Nós quase que só o conhecemos por sua obra. Naqueles tempos, em que a ortodoxia de um cristianismo sem fronteiras estava exposto a todas as efervescências e a todos os riscos, Diádoco de Foticéia aparece como um testemunho singular e fundamental, a um tempo garantidor da ordem eclesiástica e predicador da radicalidade evangélica. Seus cem capítulos sobre o conhecimento e o discernimento espiritual fazem
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realmente dele um dos primeiríssimos predicadores do caminho reto imitado pelos monges, dedicado à oração, ofertado ao êxtase, mas acima de tudo feito de equilíbrio e rigor.
A linguagem é límpida, simples e bela. Como todos os grandes bispos de sua época, Diádoco foi visivelmente formado na cultura grega, embora seja também herdeiro direto dos anacoretas egípcios. Terá ele os conhecido em sua terra? Ou terá simplesmente sido tocado, na própria Grécia, pela expansão da via monástica e pelos escritos de Evagro? Uma coisa é certa: ele é totalmente tributário deste. Mas ele também é totalmente singular, até os abismos da humildade. “Eu conheço alguém, diz ele, que ama Deus a tal ponto e que a tal ponto chora por não amá-lo como queria, que sua alma vive sem cessar num desejo ardente de ver Deus glorificado nele, e de ser ele mesmo como se não existisse”.
Só importa aqui a passagem do criado para o incriado: o amor à glória de Deus. Daí, para conservar puro o amor e aberta a glória, a renúncia a tudo o que não é ação de graças. Diádoco prega a pobreza, a nudez, o jejum, a compaixão evangélica, a ascese da morte para o mundo; permanecer em seu próprio coração; fechar todas as saídas pela lembrança de Deus; invocar o nome do Senhor Jesus; não rezar às vezes e às vezes não rezar, mas orar continuamente, mesmo que se viva fora dos mosteiros; e saber que a aquisição das virtudes não é uma garantia de perfeição, porque cada um de nós está sempre ameaçado à direita e à esquerda pela presunção e a intemperança; enfim, encontrar a paz na doçura “semelhante às lágrimas”. Acima de tudo, porque em sua época era grande a tentação e a confusão, ele adverte contra toda e qualquer visão intempestiva de formas luminosas exteriores ao intelecto, embora afirme com a mesma intensidade a realidade das primícias. O intelecto, o nous, quando separado de toda imaginação, de todo pensamento, de todo conhecimento, para se fazer única e exclusivamente prece, torna-se ele próprio luz, e nesta luz ele participa da vida eterna. “Que o intelecto, diz ele, quando começa a receber frequentemente a energia da luz divina, se torna inteiramente transparente, a ponto de ver ele próprio sua própria luz, disto não se pode duvidar”.
Diádoco define as condições, as modalidades, os limites, a orientação e a finalidade do combate espiritual. O asceta da fé deve evitar do mesmo modo o amor à vanglória e o desprezo pela natureza humana. Seu intelecto está dedicado pela graça à luminosidade do bem original. A plerophoria – a plena certeza, a percepção da origem luminosa – é continuamente requerida. Mas a humildade é mais do que nunca necessária. Toda suficiência, mesmo involuntária, apaga o estado de graça. Entretanto, o abandono instrui, reconduz à humildade, e com a humildade retorna a plenitude. Diádoco regra aqui, de uma vez por todas, aquilo que será na história, entre a derelição e a graça, o passo dos monges, oferecido como modelo para o caminho dos cristãos.
Tudo foi dito antecipadamente. Durante quase um milênio, do Egito ao Sinai, depois do Sinai a Constantinopla, ao Athos e a Tessalônica, às portas de Épiro, os defensores e os mensageiros dos monges, estes “mártires da consciência”, não farão outra coisa do que verificar e atestar as indicações de Diádoco de Foticéia.
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TI, VII –DIÁDOCO DE FOTICÉIA – Definições.
DEFINIÇÕES DO BEMAVENTURADO DIÁDOCO, BISPO DE FOTICÉIA
1. Definição de fé: pensamento impassível de Deus. 2. Definição de esperança: partida do intelecto [no amor] [1] em direção ao esperado. 758
3. Definição de paciência: aguardar para ver o invisível com os olhos da reflexão, sem relaxar a perseverança [2]. 759
4. Definição da ausência de avareza: querer não possuir, tanto quanto se quer possuir. 5. Definição de conhecimento: ignorar a si mesmo no enlevo de Deus. 6. Definição de humildade: esquecimento contínuo do bem que se fez. 7. Definição de calma: grande desejo de não se irritar. 8. Definição de pureza: sentidos sempre ligados em Deus. 9. Definição de amor: afeição maior pelos que nos ultrajam. 10. Definição da transformação perfeita: nas delícias de Deus, considerar como uma alegria a terrível tristeza da morte.
758[1] Entre colchetes as variantes da edição das Sources Chrétiennes. 759[2] Cf. Hebreus XI, 27.
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TI, VII –DIÁDOCO DE FOTICÉIA – Discurso ascético, dividido em cem capítulos práticos sobre o conhecimento e o discernimento espiritual.
DISCURSO ASCÉTICO, DIVIDIDO EM CEM CAPÍTULOS PRÁTICOS SOBRE O CONHECIMENTO E O DISCERNIMENTO ESPIRITUAL
1. Irmãos, que a fé, a esperança e o amor, mas sobretudo o amor, conduzam toda contemplação espiritual. Os primeiros ensinam a desprezar os bens visíveis, e o amor une a própria alma às virtudes mesmas de Deus, seguindo as pegadas do Invisível pelo sentido do intelecto.
2. Por natureza, só Deus é bom. Mas o homem também se torna bom pelos cuidados que toma com sua conduta, caminhando pela via do bem, transformando-se naquilo que ele não é, quando a alma, aspirando ao bem, se une a Deus tanto quanto lhe permitem as faculdades que ela põe em marcha. Com efeito, foi dito: “Sejam bons e compassivos, como o Pai que está nos céus [3]”. 760
3. O mal não é natural, e ninguém é mau por natureza. Pois Deus não fez nada de mau. Mas quando, por um desejo do coração, damos forma ao que na realidade não é, então começa a existir aquilo que pretende aquele que faz isto. Assim, é preciso sempre que, pelo cuidado que dedicamos à lembrança de Deus, não nos inquietemos com a experiência do mal. Pois a natureza do bem é mais forte do que a experiência do mal, porque aquela é, enquanto que esta não é, a menos que consintamos que ela exista.
4. Todos os homens são feitos à imagem de Deus [4]. Mas a semelhança de Deus é própria dos poucos que, por um imenso amor, sujeitaram a Deus sua liberdade. De fato, quando nós não somos nós mesmos [5], é então que nos tornamos semelhantes Àquele que nos reconciliou consigo [6] por amor. Mas ninguém alcançará esta semelhança se não persuadir sua alma a não se apaixonar pela glória desta vida fácil, [pela pobre glória humana]. 761
762
763
5. A liberdade é a vontade de uma alma dotada de razão, pronta a se dirigir ao seu objetivo. Esforcemonos por levá-la a se dedicar unicamente ao bem, a fim de consumir continuamente a lembrança do mal por meio dos bons pensamentos.
6. A luz do verdadeiro conhecimento consiste em discernir infalivelmente o bem do mal. Então, com efeito, o caminho da justiça, que conduz o intelecto ao Sol de justiça, o faz penetrar na iluminação infinita do conhecimento, a partir do momento em que ele passa a buscar o amor. É preciso, assim, que, com um coração sem cólera, sejamos capazes de conceder o direito àqueles que ousam ultrajá-lo. Pois não é odiando, mas denunciando o erro, que o zelo da piedade obtém a vitória. 760[3] 761[4] 762[5] 763[6]
Cf. I Coríntios XIII, 13. Cf. Gênesis I, 27. Cf. I Coríntios VI, 19. Cf. II Coríntios V, 18.
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TI, VII –DIÁDOCO DE FOTICÉIA – Discurso ascético, dividido em cem capítulos práticos sobre o conhecimento e o discernimento espiritual.
7. A palavra espiritual enche de certeza o sentido do intelecto. Pois ela provém de Deus pela energia do amor. É por isso que nosso intelecto jamais é atormentado pelos movimentos da teologia. Pois ele não sofre com a indigência que a inquietude traz consigo, a partir do momento em que se dilata nas contemplações, na medida da energia do amor. É, portanto, bom esperar continuamente, com fé, pelo amor ativo [7] [uma fé ativa na caridade]. Pois nada é mais pobre do que o pensamento que, estando fora de Deus, filosofa sobre as coisas de Deus. 764
8. Não é conveniente aplicarmo-nos às contemplações espirituais se não estamos iluminados, nem começarmos a falar sem estarmos cheios de luz pela bondade do Espírito Santo. Pois aonde está a indigência, ela traz a ignorância. E aonde existe a riqueza, ela não permite falar. Então, com efeito, a alma embriagada pelo amor de Deus só quer desfrutar em silêncio da glória do Senhor. Assim, é preciso, ao agirmos, observarmos o justo meio, para podermos falar das coisas de Deus. É esta medida que permite à alma expressar de alguma maneira palavras gloriosas. Mas o esplendor da flama nutre a fé daquele que fala com fé, para que o que ensina seja o primeiro a provar pelo amor o fruto do conhecimento. O cultivador que trabalha deve ser o primeiro a ter sua parte nos frutos [8] [diz o Apóstolo]. 765
9. A sabedoria e o conhecimento são uma graça do único Espírito Santo, como todas as graças divinas, e têm sua energia própria, como cada uma delas. É por isso que o Apóstolo testemunha que a um é dada a sabedoria e a outro o conhecimento, segundo o mesmo Espírito [9]. Pois o conhecimento une a alma a Deus pela experiência, sem que a alma precise falar das coisas. É por este motivo que alguns dos que levam a vida solitária a filosofar são de maneira sensível iluminados pelo conhecimento, mas não chegam a falar de Deus. Quanto à sabedoria, se no temor ela é dada a alguém com o conhecimento, o que é raro, ela manifesta no amor as energias próprias do conhecimento. Pois o conhecimento costuma iluminar pela energia, e a sabedoria pela palavra. O conhecimento vem com a prece e muita hesíquia, num desligamento total. A sabedoria vem pela humilde meditação das palavras do Espírito, e em primeiro lugar pela graça do Deus que dá. 766
10. Quando o ardor da alma se levanta contra as paixões, é preciso saber que o momento é de silêncio pois é hora da luta. Mas quando vemos a agitação se acalmar pela oração ou pela compaixão, podemos nos deixar levar pelo ardente desejo de falar [o desejo pelas palavras divinas], firmando as asas do intelecto com os laços da humildade. Pois se não nos rebaixarmos a nós mesmos, considerando-nos como nada, não poderemos falar da grandeza de Deus.
11. As palavras espirituais mantêm a alma sempre longe da vanglória. Pelo bem com que elas cumulam todas as partes da alma permitindo-lhe sentir a luz, elas fazem com que a alma não sinta necessidade das honrarias que vêm dos homens. É também por isso que elas protegem sempre o pensamento de todas as imaginações, transformando-a inteiramente em amor a Deus. Mas as palavras da sabedoria do mundo incitam sempre o homem à vanglória. Pois, incapaz de fazer o bem pela experiência da percepção de Deus, elas dá aos seus seguidores o amor aos louvores, porque ela é a expressão de homens vaidosos. 764[7] Cf. Gálatas V, 6. 765[8] II Timóteo II, 6. 766[9] Cf. I Coríntios XII, 8.
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TI, VII –DIÁDOCO DE FOTICÉIA – Discurso ascético, dividido em cem capítulos práticos sobre o conhecimento e o discernimento espiritual.
Quanto à disposição que nos leva para as palavras divinas, podemos reconhece-la infalivelmente porque, no silêncio e isolamento, passamos a nos lembrar de Deus com fervor nos momentos em que não falamos.
12. Quem gosta de si mesmo não pode amar a Deus. Mas quem não gosta de si por causa da riqueza maior do amor a Deus, este ama a Deus. É por isso que tal homem jamais busca sua própria glória, mas a glória de Deus. Pois quem gosta de si mesmo busca sua própria glória. Mas quem gosta de Deus ama a glória de seu Criador. É próprio de uma alma que sente e gosta de Deus buscar sempre a glória de Deus, em todos os mandamentos que ela segue, e se regozijar com sua humildade, a fim de que por meio dela nos unamos a Deus. Se fizermos isto, regozijando-nos com a glória do Senhor, como são João Batista, começaremos a repetir interminavelmente: “É preciso que ele cresça para que eu diminua”.
13. Eu conheço alguém que ama a Deus a tal ponto e que a tal ponto chora por não amá-lo tanto quanto gostaria, que sua alma permanece todo o tempo presa de um desejo ardente de ver a Deus glorificado em si e de ser ele mesmo como se não existisse. Este homem não sabe mais quem ele é, nem se regozija com as palavras que o louvam. Pois em seu grande desejo de ser humilde, ele não pensa em sua própria dignidade, enterrando a glória desta de certa forma no abismo do amor a Deus, pelo espírito da humildade, a fim de aparecer continuamente a seus olhos e em seu pensamento como um servidor inútil, estranho à sua própria dignidade, pelo desejo de ser humilde. Isto é o que também nós devemos fazer: fugir às honras e à glória, por causa da riqueza transbordante do amor do Senhor que tanto nos amou.
14. Quem ama a Deus até senti-lo em seu coração, é porque foi conhecido por ele. Com efeito, na mesma medida em que recebemos e sentimos na alma o amor de Deus, penetramos neste amor. É por isso que um homem assim não cessará mais, daí em diante, de sentir um desejo – um eros – violento, uma tendência à iluminação do conhecimento, até senti-lo em si quando a própria força de seus ossos se esgotar [até sentilo em seus próprios ossos]; então ele já não conhecerá a si mesmo, mas estará inteiramente transformado pelo amor de Deus. Este homem estará aqui, nesta vida, e em outro lugar também. Ele estará em seu corpo, mas pelo amor, seguindo o movimento de sua alma, ele não cessará de emigrar para Deus. Pois, sem relaxar daí para diante, com o coração queimando com o fogo do amor, ele permanecerá ligado a Deus, obrigado por seu desejo. Ele estará como que possuído de uma vez por todas por sua própria afeição por amor a Deus. “Pois se somos possuídos, é por Deus, e se somos sensatos, é por vocês”.
15. Quando começamos a sentir plenamente o amor a Deus, começamos também, pelo sentimento do Espírito, a amar o próximo. Este é o amor de que falam todas as santas Escrituras. Pois a afeição da carne se dissipa com facilidade ao menor pretexto; ela não está ligada ao sentimento do Espírito. Assim, mesmo que aconteça da alma na qual Deus está agindo ficar irritada por qualquer razão, ela não romperá os laços do amor. Pois inflamando-se novamente ao calor do amor de Deus, ela retornará rapidamente ao bem e retomará com alegria o amor ao próximo, mesmo que este a tenha ultrajado ou maltratado. Pois na doçura de Deus ela consumirá totalmente a amargura da discórdia.
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16. Ninguém pode amar a Deus com todo o coração sem que primeiro o tenha temido, sentindo-o do fundo do coração [ninguém pode amar a Deus sem primeiro começar por temê-lo com todo seu coração]. Com efeito, é sob a ação do temor que a alma, como que transmutada em pura e terna, começa a amar com um amor ativo. Mas ninguém consegue chegar ao temor a Deus do modo como foi dito se não se desfizer de todos os cuidados desta vida. Com efeito, quando o intelecto experimenta uma grande hesíquia e um grande desligamento, é então que o temor a atormenta, permitindo-lhe sentir profundamente que este a purifica de todo o peso terrestre a fim de levá-la a um grande amor pela bondade de Deus. É assim que o temor é típico dos justos que amam moderadamente e que ainda estão se purificando. Mas o amor perfeito cabe àqueles que já estão purificados e que não têm mais temor algum. De fato, foi dito: “O amor perfeito afasta o temor [16]”. Os dois amores pertencem apenas aos justos que, pela energia do Espírito Santo, praticam as virtudes. É por isso que a Escritura tanto diz: “Que todos os seus santos temam ao Senhor [17]”, quanto diz: “Que todos os fiéis amem ao Senhor [18]”, a fim de que aprendamos claramente que o temor a Deus é típico dos justos que amam moderadamente, como foi dito, e que ainda estão se purificando, e que o amor perfeito cabe aos que já foram purificados: nestes já não existe nenhum pensamento de temor, mas um abrasamento incessante e uma ligação contínua da alma a Deus, pela energia do Espírito Santo, conforme aquele que disse: “Minha alma está ligada a você e sua direita me mantém [19]”. 767
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17. Assim como as feridas que afetam o corpo, se deixadas ao abandono e sem cuidados não sentem o remédio que os médicos lhe aplicariam, mas, se tratadas, sentem a ação do remédio, chegando até a cura total, também a alma, na medida em que permanece sem cuidados e toda coberta pela lepra do amor pelos prazeres não pode sentir o temor a Deus, mesmo quando a ameaçamos incessantemente com o terrível e poderoso tribunal de Deus. Mas quando ela começa a se purificar com toda a atenção, então ela sente, como um verdadeiro remédio de vida, o temor divino a queimá-la, sob a ação das censuras, como um fogo que a torna impassível. Assim, de uma purificação parcial ela chega à purificação perfeita, crescendo no amor na mesma medida em que diminui seu temor, até chegar ao amor perfeito, no qual, como foi dito, não existe mais temor [20], mas a impassibilidade total suscitada pela glória de Deus. Que em nós, para que alcancemos a alegria das alegrias sem fim, surja primeiro o temor, depois o amor: o cumprimento da lei da perfeição em Cristo [21]. 771
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18. Uma alma que não estiver desligada dos cuidados do mundo não amará verdadeiramente a Deus, nem sentirá a aversão ao diabo tal como ele a merece. Pois ela tem sobre si como que um pesado véu: o apego a esta vida. Sendo assim, em tais almas, o intelecto não é capaz de reconhecer seu próprio tribunal, para verificar por si mesmo, sem erro, as decisões do juízo, Por todas estas razões, a anacorese é útil.
19. É típico de uma alma pura a palavra sem ciúme, o zelo sem malícia, o amor – eros – incessante pelo Senhor da glória. Então também o intelecto regra com exatidão suas próprias balanças, pois ele comparece diante de sua reflexão como diante de um tribunal íntegro.
767[16] 768[17] 769[18] 770[19] 771[20] 772[21]
I João IV, 18. Salmo XXXIV, 10. Salmo XXXI, 24. Salmo LXIII, 9. Cf. I João IV, 18. Cf. Romanos XIII, 10.
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20. Uma fé sem obras e obras sem fé serão reprovadas da mesma maneira. O fiel deve oferecer ao Senhor uma fé que demonstre o que ele faz. Pois a fé de nosso pai Abraão não lhe teria trazido a justiça se, como fruto desta fé, ele não tivesse oferecido seu filho [22]. 773
21. Quem ama a Deus e crê verdadeiramente, também cumpre santamente as obras da fé. Mas aquele que apenas crê, mas não vive o amor, não possui sequer a fé que julga ter. Ele crê com um intelecto leviano, pois não é pressionado pela glória do amor. A fé suscitada pelo amor [23] é o cúmulo da virtude. 774
22. O abismo da fé agita-se quando o sondamos; mas acalma-se se o contemplamos com simplicidade. Pois a profundidade da fé é a água do esquecimento dos males: ela não suporta ser contemplada por pensamentos indiscretos. Assim, naveguemos por estas águas mantendo nossa reflexão com simplicidade, a fim de alcançarmos deste modo o porto da vontade de Deus.
23. Ninguém pode amar ou crer verdadeiramente se não for o acusador de si mesmo. Quando, com efeito, nossa consciência se perturba sob as censuras, o intelecto não consegue mais sentir o perfume dos bens mais altos do que o mundo e, na incerteza, ele logo se divide: de um lado, por um movimento fervoroso, ele tende para a fé, por causa da experiência anterior, mas, de outro, ele não consegue captá-la pelo amor, sentindo-a no coração, por causa das numerosas ferroadas da consciência que o refuta, como já disse. Mas quando formos purificados por uma atenção mais ardente, com mais experiência, em Deus, nós obteremos o que desejamos.
24. Assim como os sentidos do corpo se voltam com certa violência para aquilo que nos parece bom, também o sentido do intelecto costuma nos conduzir para os bens invisíveis, a partir do momento em que provou da bondade divina. Pois cada coisa aspira àquilo com o que é aparentada. A alma, que é incorpórea, tende para os bens celestes. E o corpo, que é pó, tende para as delícias [os alimentos] terrestres. Chegaremos, portanto, sem erro, a experimentar o sentido imaterial se, por meio de nossas penas, refinarmos e afinarmos a matéria.
25. A própria energia da santa consciência nos ensina que existe na alma um único sentido natural, que este sentido foi dividido em duas energias por causa da transgressão de Adão, mas que ele é único e simples quando vem do Espírito Santo: ninguém é capaz de conhecê-lo, exceto aqueles que, vivendo a esperança dos bens futuros, desligam-se de boa vontade dos bens desta vida e, pela temperança, despojamse de todo o desejo dos sentidos corporais, Pois somente nestes o intelecto, avançando com rigor graças a seu desligamento, pode indizivelmente sentir a bondade divina. A partir daí, na medida de seu progresso, ele transmite igualmente ao corpo sua própria alegria, regozijando-se, falando sem parar e confessando seu amor. Com efeito, foi dito: “Meu coração esperou nele e eu fui socorrido. Minha carne refloresceu e
773[22] Cf. Gênesis XXII; Romanos IV, 3; Hebreus XI, 17. 774[23] Cf. Gálatas V, 56.
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com toda minha vontade eu o confessarei [24]”. Pois a felicidade que então cumula verdadeiramente a alma e o corpo é uma reminiscência infalível da vida incorruptível. 775
26. Aqueles que combatem devem manter sempre sua reflexão ao abrigo das ondas, a fim de que o intelecto, discernindo os pensamentos que o atravessam correndo, deposite nos tesouros da memória os que são bons e enviados por Deus. Com efeito, quando o mar está calmo, os que pescam os peixes vêem seus movimentos mesmo nas profundezas, de tal maneira que aos seus olhos não escapa nenhum dos animais que percorrem o fundo. Mas quando ele está agitado pelos ventos, ele esconde sob a opacidade da agitação aquilo que ele se sentiria honrado em apresentar no sorriso de sua calma. E vemos que a arte dos que têm prática nos truques da pesca é então impotente. Exatamente o mesmo acontece com o intelecto, sobretudo quando o fundo da alma é perturbado por uma cólera injusta.
27. Conhecer exatamente todas as suas faltas é prerrogativa de muito poucos, daqueles cujo intelecto nunca se deixa distrair da lembrança de Deus. Pois, do mesmo modo como ocorre com nossos olhos corporais que, quando estão em bom estado conseguem enxergar tudo, até mesmo as moscas e mosquitos que voam nos ares, mas que, quando embaçados por um problema ou por humores vêem confusamente mesmo as coisas grandes que se apresentam e as pequenas nem sequer enxergam, também a alma, se consegue diminuir, pela sua atenção, o ofuscamento que advém do amor ao mundo, percebe como grandes até as menores faltas e não cessa de oferecer, numa profunda ação de graças, lágrimas sobre lagrimas. Com efeito, foi dito: “Os justos confessarão seu nome [25]”. Mas se ela permanece nas disposições do mundo, tenha ela cometido um assassinato ou uma falta digna de grande castigo, ela o sente fracamente. Quanto às demais faltas, ela é incapaz de perceber seja lá o que for, e chegam, muitas vezes, até a considerá-las como boas ações. É por isso que a infeliz sequer tem vergonha de falar delas calorosamente. 776
28. Purificar o intelecto cabe apenas ao Espírito Santo. Com efeito, se o poderoso não entra, não desarma e não amarra o ladrão, o produto do roubo não pode ser recuperado [26]. É preciso, portanto, por todos os meios e no mais alto grau, pela paz da alma, permitir ao Espírito Santo repousar, para que tenhamos sempre brilhando em nós a lâmpada do conhecimento. Pois se o conhecimento irradia sem cessar nos tesouros da alma, não apenas as menores sugestões tenebrosas do demônio são claramente percebidas pelo intelecto, como ainda elas perdem toda a sua força, rejeitadas por esta santa e gloriosa luz. É por isso que o Apóstolo diz: “Não extingam o Espírito [27]”, ou seja: não aflijam a bondade do Espírito Santo com suas ações e pensamentos maus, para não serem privados desta chama que os protege. Pois não é o Espírito eterno e vivificante que se extingue. É a sua tristeza, vale dizer, seu distanciamento, que deixa o intelecto opaco, longe da luz do conhecimento. 777
778
29. Sabemos, como já disse, que só existe um sentido na alma: pois os cinco sentidos se diferenciam conforme as necessidades de nosso corpo. É isto que nos ensina, em seu amor pelo homem, o Espírito Santo de Deus. Mas por causa da queda devida à transgressão, até este sentido se divide, assim como o 775[24] 776[25] 777[26] 778[27]
Salmo XXVIII, 7. Salmo CXL, 14. Cf. Lucas XI, 21-22. I Tessalonicenses V, 19.
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intelecto, segundo os movimentos da alma. É por isso que uma parte do sentido é carregada pelo elemento passional; e com ela sentimos com prazer os bens desta vida. A outra parte, no mais das vezes, se reúne ao movimento da alma que carrega a razão e o intelecto: assim, quando somos sábios, nosso intelecto aspira correr para as belezas celestes. Assim, se formos capazes de desprezar os bens deste mundo, poderemos unir até mesmo o desejo terrestre da alma à sua natureza dotada de razão: a comunhão do Espírito Santo regula isto para nós. Pois se sua divindade não iluminasse com toda energia os tesouros de nosso coração, não poderíamos, assim como o sentido indivisível, ou seja, com uma total disposição, provar daquilo que é bom.
30. O sentido do intelecto consiste no gosto preciso daquilo que discernimos. Pois, assim como, quando estamos bem, distinguimos pelo sentido corporal do paladar o excelente do ruim e desejamos o que é bom, também nosso intelecto, a partir do momento em que começa a se desenvolver com vigor e grande despojamento, pode sentir plenamente o consolo divino sem jamais se deixar levar por seu adversário. Tal como o corpo, que tem a experiência infalível dos sentidos ao experimentar as doçuras terrestres, o intelecto, quando glorificado acima dos cuidados da carne, pode provar sem erro a consolação do Espírito Santo [28]. Pois foi dito: “Provem e vejam como o Senhor é bom [29]”. Ele pode também, pela energia do amor, conservar a lembrança inesquecível deste sabor, como diz o Santo: “O que eu peço em minha prece, é que seu amor cresça mais e mais em conhecimento e em toda percepção, para que vocês experimentem o melhor [30]”. 779
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31. Quando nosso intelecto começa a sentir a graça [a consolação] do Espírito Santo, então também Satanás consola a alma, permitindo-lhe perceber um rosto de doçura no repouso noturno, no momento em que ela está em sono ligeiro. Se então o intelecto, com uma lembrança fervorosa, agarra-se com toda força ao santo nome de Jesus Cristo e se serve deste nome santo e glorioso como de uma arma contra a ilusão, o enganador se retira com sua armadilha, mas daí para diante ele se agarrará à alma para lhe dar combate. A partir daí, o intelecto, que conhece precisamente a ilusão do maligno, progredirá na experiência do discernimento.
32. Se o corpo vela ou começa a entrar numa aparência de sonho [31], o bom consolo vem quando, como uma fervorosa lembrança de Deus, permanecemos como que ligados ao seu amor. Mas o consolo da ilusão vem sempre, como já disse, quando aquele que combate penetra num sono leve e se recorda moderadamente de Deus. Com efeito, o primeiro consolo, uma vez que provém de Deus, convida, numa grande efusão, as almas dos combatentes da piedade abertamente ao amor. Mas o outro, que costuma agitar a alma sob os ventos da ilusão, tenta roubar pelo sono do corpo a experiência do sentido do intelecto que guarda intacta a lembrança de Deus. Se, então, acontecer de o intelecto, como já disse, lembrar-se continuamente do Senhor Jesus, ele dissipa esta brisa do inimigo e seu semblante de doçura, e avança feliz para o combate, portando daí em diante, como uma arma destra, a bravura de sua experiência. 782
779[28] 780[29] 781[30] 782[31]
Cf. Atos IX, 31. Salmo XXXIV, 9. Filipenses I, 9-10. Um êxtase.
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33. Se, por um movimento desprovido de equívoco e imaginação, a alma se agarra ao amor a Deus, arrastando consigo o próprio corpo na profundidade deste amor indizível (esteja dormindo ou acordado aquele que recebe a santa graça, como já disse), e se, neste momento ela não concebe absolutamente nada além daquilo para o quê se dirige, é preciso saber que esta é a energia do Espírito Santo. Pois, cumulada por esta doçura inexprimível, ela não consegue pensar em outra coisa, pois regozija-se numa alegria indefectível. Mas, se o intelecto que recebe esta energia concebe a menor dúvida ou um pensamento sujo, ainda que ela se sirva do santo nome para se defender do mal e não mais somente pelo amor a Deus, é preciso compreender que este consolo vem do enganador, sob a aparência de alegria, e que esta alegria sem caráter e sem alcance é típica do inimigo que quer entrar, quando ele percebe o intelecto firme pela experiência de seu próprio sentido. Então o enganador atrai a alma com consolações de uma doçura aparente, como eu disse, a fim de que esta, dividida por este desejo poroso e fluído, não consiga desmanchar a mistura feita de engano. É assim que reconhecemos o Espírito de verdade e o espírito de ilusão [32]. É naturalmente impossível tanto sentir e provar a bondade divina quanto perceber e experimentar o amargor dos demônios, se não tivermos em nós a plena certeza de que a graça faz sua morada nas profundezas do intelecto e que os espíritos maus se ocupam ao redor dos membros do coração: é isto que os demônios tentam impedir que os homens creiam, por medo que o intelecto, sabendo-o, se arme contra eles com a lembrança de Deus. 783
34. Uma coisa é o amor natural da alma e outra o amor que vem do Espírito Santo. O primeiro, quando o queremos, é suscitado harmoniosamente por nossa vontade; é por isso que ele é facilmente arrastado pelos espíritos maus, quando não dominamos fortemente nossa própria resolução. O segundo inflama a alma de tal maneira com o amor a Deus que todas as partes desta se agarram [indizivelmente] à doçura indizível do desejo divino, numa simplicidade infinita de disposições. O intelecto, como que fecundado então pela energia espiritual, faz jorrar uma fonte de amor e alegria.
35. Assim como o mar agitado cede naturalmente se nele vertermos óleo, pois as ondas se deixam vencer pela unção do óleo, também nossa alma, ao receber a unção da doçura do Espírito Santo, apazigua-se de bom grado. Pois ela se deixa vencer pela alegria, como disse o Santo: “Submeta-se a Deus, alma minha [33]”, por esta impassibilidade e esta doçura indizíveis que a cobrem com seu manto. É por isso que, por numerosas que sejam as provocações dos demônios contra a alma, esta permanece sem cólera e cheia de alegria plena. Mas este é um estado ao qual ninguém chega e no qual ninguém permanece se não apaziguar continuamente sua alma pelo temor a Deus. Pois o temor do Senhor Jesus concede àqueles que combatem uma espécie de purificação. Foi dito: “O temor do Senhor é puro: ele permanece pelos séculos dos séculos [34]”. 784
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36. Que ninguém, ouvindo falar do sentido do intelecto, imagine que a glória de Deus lhe aparecerá visivelmente. Com efeito, dizemos que quando a alma é pura, sente a consolação divina e a prova inefavelmente. Mas nada de indivisível lhe aparece, porque, por enquanto, como diz o bem-aventurado Paulo, nós caminhamos na fé e não na realidade [35]. Assim, se a alguém que combate aparece uma luz, ou uma forma de fogo, ou uma voz, que ele evite acolher tal visão. Pois trata-se de uma manifesta ilusão do 786
783[32] 784[33] 785[34] 786[35]
Cf. João XV, 26; I Timóteo IV, 1. Salmo LXII, 6. Salmo XIX, 10. Cf. II Coríntios V, 7.
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inimigo: muitos foram vítimas disto e se afastaram do caminho da verdade. Mas nós o sabemos: enquanto permanecermos neste corpo perecível estaremos em exílio longe de Deus [36]. Vale dizer que não poderemos ver visivelmente, nem a ele, nem a nenhuma de suas maravilhas celestes. 787
37. Os sonhos que aparecem à alma no amor a Deus são a seu modo, testemunhos infalíveis de uma alma sã. É porque eles não passam de uma forma a outra: eles não atormentam os sentidos, não apresentam ao mesmo tempo um rosto risonho e sombrio, mas se aproximam da alma com toda bondade, cumulando-a de júbilo espiritual. A partir daí, mesmo depois que o corpo desperta, a alma busca com todo o desejo a alegria do sonho. As aparições do demônio, entretanto, vão em sentido contrário. Pois os demônios não mantêm a mesma forma, nem manifestam em sua aparência uma calma durável. Porque aquilo que eles não possuem por sua própria vontade, mas emprestam para sua ilusão, não lhes fica por muito tempo. Eles falam alto e proferem grandes ameaças, tomando muitas vezes a aparência de soldados. Às vezes eles atingem a alma com seus clamores. É então que o intelecto, que os reconhece se for puro, desperta o corpo destas imaginações. Às vezes ele se regozija de ter conseguido reconhecer os seus truques, e por isso, no mais das vezes, ao denunciá-los no sonho, suscita nos demônios uma grande cólera. Porém, às vezes também, os bons sonhos não levam alegria à alma, mas fazem nascer nela uma doce tristeza e lágrimas sem dor: isto é o que acontece com aqueles que já progrediram bastante na humildade.
38. Falamos da distinção entre os bons e os maus sonhos a partir do que aprendemos daqueles que tiveram a experiência. Basta, porém, que pratiquemos a grande virtude de jamais confiar nas imaginações. Pois os sonhos, na maior parte das vezes, não passam de simulacros de pensamentos, ou mesmo, como já disse, de ilusões demoníacas. E se por acaso uma visão nos for enviada por Deus e acontecer que não a recebamos, não será por isso que o Senhor Jesus, tão desejado, ficará irritado conosco. Pois ele sabe que fizemos isto por causa das armadilhas dos demônios. A distinção que mencionei é rigorosa, mas pode ser que, manchada por uma complacência inconsciente – da qual ninguém está livre, penso eu – a alma perca a pista do discernimento rigoroso e tome como bom aquilo que não é bom.
39. Tomemos como exemplo o caso de um servidor cujo mestre, depois de uma longa viagem, retorna e chama, no meio da noite, diante da porta de sua casa. Na incerteza, o criado recusar-se á de abrir-lhe a porta, pois ele temerá que, iludido pela semelhança da voz, poderá levar a perder todos os bens que seu mestre lhe confiou. Ao chegar o dia, não apenas o senhor da casa não se irritará com ele, mas o considerará digno dos maiores elogios por ter pensado que a voz do mestre poderia ser um truque, evitando assim a perda dos bens.
40. Não devemos duvidar que o intelecto, ao começar a receber com freqüência a energia da luz divina, torna-se inteiramente transparente a ponto de ver plenamente sua própria luz em si mesmo. É isto o que acontece quando o poder da alma domina as paixões. Mas o divino Paulo nos ensina claramente, ao dizer que o inimigo se transforma em anjo de luz [37], que tudo o que toma uma forma, seja como luz, seja como fogo, vem dos seus malefícios. Assim, não é com esta esperança que devemos buscar a vida ascética, para que Satanás não encontre a alma pronta para se deixar levar. O único objetivo é o de chegar a amar a Deus 788
787[36] Cf. II Coríntios V, 6. 788[37] Cf. II Coríntios XI, 14.
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na total percepção e plena certeza do coração, vale dizer, com toda a alma, com todo o coração e todo o pensamento [38]. Pois quem alcança este estado pela graça de Deus está ausente do mundo, mesmo quando está no mundo. 789
41. Dentre as virtudes iniciais, a obediência é conhecida como o primeiro bem. Ela começa por impedir a presunção, e engendra em nós a humildade. A partir daí, para os que se agarram a ela de bom grado, ela se torna o umbral e a porta do amor de Cristo. Foi por tê-la repudiado que Adão escorregou para o fundo do Tártaro [39]. E foi por tê-la adotado que o Senhor, conforme a ordem e a lei do projeto divino, escutou seu Pai até chegar à cruz e à morte [40] (e isto, mesmo sendo em nada menor que o Pai), a fim de apagar com sua obediência a acusação de desobediência que pesava sobre a humanidade, e conduzir à vida bemaventurada e eterna aqueles que venceram na obediência. É, portanto, a isto que devem se aplicar primeiramente os que se engajam na luta conterá a presunção do diabo. Pois com o progresso, a obediência nos mostrará por si só o caminho das virtudes. 790
791
42. A temperança é uma denominação comum a todas as virtudes. Aquele que combate deve ser temperante em tudo. Pois, assim como a amputação de um membro qualquer do homem, ainda que dos menores, deforma o homem por inteiro, mesmo que pouco lhe falte, também aquele que negligencia uma só virtude apaga, a um ponto que ele ignora, toda a beleza da temperança. È preciso, assim, não apenas cultivar as virtudes corporais, mas também as que purificam nosso homem interior. De fato, que vantagem terá quem mantém o corpo virgem, se deixar o demônio da desobediência levar sua alma ao adultério? E como será coroado o que evita a gula e a concupiscência do corpo, se não evitar a presunção e a vanglória, nem suportar uma breve aflição, uma vez que a balança deve dar o mesmo peso da luz da justiça àqueles que cumprem as obras justas com espírito humilde?
43. Quem combate deve sentir pelas concupiscências desprovidas de razão uma tal aversão a ponto que ela se torne um hábito. Diante dos alimentos, ele deve manter a temperança a ponto de jamais detestar qualquer um deles, o que é na verdade maldito e demoníaco, pois não devemos nos abster de alimentos como se eles fossem maus, praza a Deus, mas porque, ao nos afastarmos dos numerosos alimentos terrestres, sejamos capazes de reter dentro de uma justa medida os membros inflamados da carne, e para que nosso supérfluo possa dar aos pobres o que lhes é necessário: esta é a marca de um coração puro.
44. Comer e beber de tudo o que nos é servido, rendendo graças a Deus [41], não é contrário à regra do conhecimento: pois tudo é muito bom [42]. Mas abster-se voluntariamente da abundância e do prazer é um sinal do maior discernimento e de um grande conhecimento. No entanto, não seremos levados a desprezar os prazeres presentes se experimentarmos a doçura de Deus na total percepção e na plena certeza do coração. 792
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789[38] 790[39] 791[40] 792[41] 793[42]
Cf. Mateus XXII, 37, citando Deuteronômio VI, 5. Cf. Gênesis III. Cf. Filipenses II, 8. Cf. I Coríntios X, 27-30. Cf. Gênesis I, 31; I Timóteo IV, 4.
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45. Da mesma maneira como o corpo pesado pela abundância de alimentos torna o intelecto preguiçoso e lento, também a parte contemplativa da alma, quando esgotada por uma grande abstinência, torna-se triste e perde o gosto pela palavra. É preciso, portanto, conciliar os movimentos do corpo e os alimentos, a fim de que o corpo, quando em boa saúde, seja convenientemente contido e, quando doente, seja razoavelmente confortado. Quem combate deve ter não um corpo enfraquecido, mas suficientemente forte para a luta, a fim de que a alma se purifique como convém, mesmo quando o corpo estiver sofrendo.
46. Quando a vanglória incha no fundo de nós, por ter encontrado ocasião de manifestar sua malícia à chegada de algum irmão ou de um estrangeiro, convém fazer uma pausa razoável em nosso regime alimentar. Pois assim deixaremos o demônio desconcertado e, mais ainda, desolado com o fracasso de sua tentativa, e cumpriremos com discernimento a lei do amor e, pela compaixão, manteremos sem ostentação o segredo da temperança.
47. Existe algo de que se orgulhar no jejum, mas não diante de Deus. O jejum é um instrumento que orienta para a castidade aqueles que o praticam. Aqueles que levam o combate pela piedade devem, portanto, não tirar disto nenhuma vaidade, mas apenas aguardar, com fé em Deus, até atingir este objetivo que é o de todos nós. Com efeito, aqueles que estão instruídos numa arte, qualquer que seja ela, jamais colocam nos seus instrumentos o orgulho que extraem dos frutos do seu ofício, mas cada qual aguarda que seu trabalho tenha tomado forma, para então mostrar todo o rigor de sua arte.
48. Do mesmo modo como a terra arada moderadamente faz crescer sem mistura a semente que nela atiramos e a multiplica, mas se for afogada pelo excesso de chuvas não produz senão arbustos e espinheiros , também a terra do coração, se usarmos o vinho com moderação, fará crescer sem mistura suas sementes naturais e dará muitas flores e frutos pelo Espírito Santo. Mas se ela for mergulhada em excesso de bebida, todos os pensamentos que produzir não passarão de arbustos e espinheiros.
49. Quando nosso intelecto nada nas ondas do excesso de bebida, ela não apenas olha com paixão as imagens formadas nos sonhos pelos demônios, mas, produzindo em si certas imagens belas para olhar, ele se entrega com ardor a seus próprios fantasmas, como que tomado por eles. Com efeito, quando o ardor do vinho esquenta os órgãos da geração, é inevitável que o intelecto se represente apresenta o prazer com uma sombra de paixão. É preciso que tenhamos moderação para evitar os prejuízos do excesso. Pois quando o intelecto não sente prazer em ser arrastado ao cenário do pecado, ele permanece inteiramente sem imaginar e, o que é melhor, sem perder seu vigor.
50. Todas as bebidas preparadas cujos inventores chamam de aperitivos de antes da refeição, talvez porque ajudem a conduzir os alimentos para o ventre, devem ser evitadas por aqueles que desejam dominar as partes do corpo que podem inflar, Pois não somente a sua qualidade é nociva ao corpo dos que combatem, como ainda sua mistura irracional faz mal à consciência temente a Deus [na qual Deus repousa]. Com efeito, o que falta à natureza do vinho, para que ele perca assim seu vigor quando lhe acrescentamos especiarias variadas?
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51. Nosso Senhor, o mestre desta vida santa, Jesus Cristo, foi servido de vinagre [43], durante a Paixão, por aqueles que executavam as ordens diabólicas, a fim de nos dar um exemplo claro [44], me parece, da disposição que é preciso ter nos combates sagrados. Com isto ele nos disse, com efeito, que os que lutam contra o pecado não devem utilizar alimentos e bebidas muito agradáveis, mas antes suportar com constância o amargor do combate. E que, à esponja do ultraje se acrescente o hissope [45], para que a forma de nossa purificação se parece perfeitamente ao modelo. Pois a acidez é própria dos combates. Mas aquilo que purifica conduz com certeza à perfeição. 794
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52. Ninguém sustenta que haja pecado ou falta de bom senso em freqüentar os banhos. Mas eu digo que abster-se disto por temperança é corajoso e totalmente casto. Agora, com efeito, o prazer de estar dentro d'água não tira o vigor do corpo, e nós não diremos que é inglória a nudez de Adão [46]; mas chamamos a atenção para as folhas que cobriam a segunda razão da vergonha, principalmente por nós que, há pouco saídos da corrupção da vida, devemos, pela pureza do corpo, nos unirmos à beleza de um coração casto. 797
53. Nada impede de chamar os médicos, quando estamos doentes. De fato, como a arte da medicina deveria surgir um dia a partir da experiência dos homens, os remédios já existiam previamente. Portanto, não é nos médicos que devemos colocar a esperança da cura, mas no verdadeiro salvador e no verdadeiro médico, Jesus Cristo. Eu digo isto por causa daqueles que, nas comunidades e nas cidades, levam a temperança adiante, por não poderem, devido às doenças que os afligem, possuir em si, sem cessar, por amor, a energia da fé, e sobretudo para que não caiam na vanglória e na tentação do diabo que levam alguns irmãos a proclamar a todos que não necessitam de médico. Se alguém leva uma vida de anacorese nos lugares desertos junto com dois ou três irmãos, que ele receba socorro, na fé, do único Senhor que cura todos os males e todas as enfermidades [47], quaisquer que sejam os sofrimentos que o assaltem. Pois ele terá, depois do Senhor, a solidão para consolá-lo das doenças como convém. Assim este homem nunca perderá a energia da fé, principalmente por que não encontrará ninguém a quem mostrar sua virtude de paciência, por levar o belo véu da solidão. É por isso que o Senhor conduz os solitários à sua moradia [48]. 798
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54. Quando nos revoltamos contra as indisposições que nos acontecem, devemos saber que nossa alma ainda está submetida à concupiscência do corpo. É porque, em seu desejo de bem-estar material, ela não quer se retirar das benesses desta vida, mas considera como um grande empecilho não poder usufruir dos encantos da existência por causa de uma doença. Mas se ela recebe as aflições trazidas pela doença dando graças, ela revela que não está longe dos confins da impassibilidade. E ela aguarda a morte com alegria, considerando-a como uma oportunidade para a verdadeira vida.
55. A alma não desejaria senão separar-se do corpo se a condição que nos liga ao espaço que nos envolve perdesse o significado. Pois todos os sentidos do corpo se opõem à fé, porque estão voltados para os bens 794[43] 795[44] 796[45] 797[46] 798[47] 799[48]
Cf. João XIX, 29. Cf. I Pedro I, 21. Cf. João XIX, 29. Cf. Gênesis III, 7. Cf. Mateus IV, 23. Cf. Salmo LXVII, 7.
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presentes. Mas a fé promete o esplendor dos bens futuros. Convém assim que o combatente da fé não se preocupe com as árvores com belos ramos, ou com sua sombra, nem com as fontes de águas claras, com as pradarias forradas de flores, com casas confortáveis, com a vida familiar, nem que se lembre, eventualmente, das honrarias públicas, mas que ele apenas utilize o necessário, dando graças, e que considere esta vida como um caminho estrangeiro, vazio de toda afeição da carne. Pois somente assim, limitando nossa percepção, poderemos nos engajar inteiramente nas trilhas do caminho eterno.
56. A primeira Eva nos diz que a vista, o paladar e os demais sentidos dissipam a memória do coração quando deles nos servimos sem medida. Com efeito, enquanto ela não pode contemplar a árvore que trazia o fruto proibido, ela se lembrava cuidadosamente da ordem de Deus: é por isso que ela ainda se achava coberta pelas asas do eros divino, e ignorava sua nudez. Mas a partir do momento em que ficou encantada pela visão da árvore, que a desejou fortemente, que a tocou, que depois provou do seu fruto com ardente prazer, rapidamente foi levada à união dos corpos, abandonou-se à paixão de sua nudez, e entregou todo o seu desejo à fruição do presente, misturando sua própria falta à de Adão, por causa da doçura aparente do fruto [49]. A partir de então o intelecto humano tem grande dificuldade de se lembrar de Deus e de seus mandamentos. Portanto, passemos nós como cegos por esta vida que ama a ilusão, sem jamais desviarmos os olhos do fundo de nosso coração e lembrando-nos sempre de Deus. Pois é típico de uma filosofia verdadeiramente espiritual não dar asas ao amor – ao eros – das aparências. É o que nos ensina Jó a partir de sua experiência, quando nos diz: “Se meu coração seguisse meus olhos... [50]”. Tal filosofia é verdadeiramente a marca da mais extrema temperança. 800
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57. Quem permanece constantemente em seu próprio coração ausenta-se de todos os encantos desta vida. Pois, caminhando em espírito, deixa de conhecer os desejos da carne [51]: este homem faz daí por diante suas rondas na cidadela das virtudes, que ele traz em si como guardiãs da cidade da pureza. É por isso que as máquinas de guerra dos demônios não podem contra ele, mesmo que as flechas do eros comum a todos alcancem por assim dizer as próprias janelas da natureza. 802
58. Quando nossa alma começa a não mais desejar os encantos da terra, o mais comum é que um espírito de acídia entre nela, não a deixando entregar-se ao ministério da palavra nem lhe concedendo o claro desejo dos bens futuros. O espírito de acídia desqualifica ao máximo esta vida passageira, porque ela não possui em si nenhuma obra digna de virtude; ele deprecia o próprio conhecimento, seja porque ele já foi concedido a muitos, seja porque ele nada nos promete de perfeito. Só poderemos escapar à tibieza e ao abandono desta paixão se mantivermos nossa reflexão dentro de limites muito apertados, contemplando unicamente a lembrança de Deus. Pois somente retornando com toda pressa ao seu próprio fervor o intelecto poderá fugir a esta dissipação irracional.
59. Quando fechamos todas as saídas do intelecto mantendo unicamente a lembrança de Deus, ele exige de nós absolutamente uma obra para coroar sua diligência. Devemos então dar-lhe a prece do nome do Senhor Jesus, como uma ocupação que responde totalmente ao seu objetivo. Com efeito, está escrito:
800[49] Cf. Gênesis III, 6. 801[50] Jó XXXI, 7. 802[51] Cf. Gálatas V, 16.
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“Ninguém diz 'Senhor Jesus', se não for pelo Espírito Santo [52]”. Mas que o intelecto não deixe de contemplar assim nos seus próprios tesouros aquilo que ele diz de maneira concisa, a fim de não se desviar para determinadas imaginações. Aqueles que não cessam de meditar nas profundezas de seus corações este nome santo e glorioso poderão um dia contemplar a luz de seu intelecto. Mantido com extremo zelo pela reflexão, o nome, sentido com toda força, consume toda a sujeira que existe na superfície da alma. De fato, foi dito: “Nosso Deus é um fogo que devora [53]” o mal. É por isso que, daí em diante, o Senhor convida a alma a um grande amor de sua própria glória. Pois, mantendo-se pela memória do intelecto no fervor do coração, este nome glorioso e tão desejável implanta em nós o hábito de amar sua bondade, sem que nada se oponha daí para frente. Esta é, de fato, a pedra preciosa [54] que se pode adquirir vendendo todos os bens: quando a encontramos, encontramos uma alegria indescritível. 803
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60. Uma é a alegria inicial, e outra a que leva à perfeição. A primeira não é isenta de imaginação. A segunda tem a potência da humildade. Entre elas existe uma tristeza amada por Deus e lágrimas sem dor. Pois “na grande sabedoria existe muito conhecimento, e quem acrescenta seu conhecimento acrescenta sua dor [55]”. É por isso que é preciso que a alma seja primeiramente chamada ao combate pela alegria inicial, para depois ser retomada e experimentada pela verdade do Espírito Santo sobre o mal que ela fez ou mesmo sobre as vaidades às quais ainda se entrega. Com efeito, está dito: “Você instruiu o homem recusando sua injustiça, e você consumiu sua alma como uma aranha [56]”. Depois que a refutação divina a tenha posto à prova, a alma receberá a energia da alegria fora de toda imaginação, na fervorosa lembrança de Deus. 806
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61. Quando a alma é agitada pela cólera, ou perturbada pela embriaguez, ou atormentada por uma dura aflição, o intelecto (mesmo que se esforce) não consegue dominar a lembrança de Deus [a lembrança do Senhor Jesus]. Entenebrecido que está pelo efeito dessas paixões, ele se torna estranho ao seu próprio sentido. É porque o desejo de ver o intelecto levar além do esquecimento a marca de sua meditação não acha onde imprimir sua própria marca, uma vez que a memória da reflexão se endurece sob a aspereza das paixões. Mas quando ele se liberta, ainda que aquilo que ele deseje esteja escondido pelo esquecimento naquele instante, o intelecto recupera rapidamente sua própria atividade e reencontra com fervor este fruto tão desejado e tão salutar de sua procura. Pois ele carrega então esta graça que medita com a alma e que com ela chama pelo “Senhor Jesus Cristo”, como uma mãe que ensina o filho e que com ele repete a palavra “Pai”, até que, em lugar de qualquer outra expressão infantil, ela o torna capaz de chamar com clareza pelo pai, mesmo durante o sono. É por isso que o Apóstolo diz: “Da mesma forma, o Espírito vem em socorro de nossas fraquezas; porque nós não sabemos como orar. É o próprio Espírito que intercede por nós com gemidos inefáveis [57]”. Com efeito, uma vez que somos como crianças diante da perfeição da virtude, temos necessidade de sua ajuda para que, com todos os pensamentos penetrados e adoçados por sua indizível doçura, nos transportemos com toda nossa afeição para a lembrança e o amor de nosso Deus e nosso Pai. É por isso que, como diz ainda o próprio divino Paulo quando nos convida a nunca deixar de chamar regularmente a Deus “Pai”, devemos clamar por Deus: “Abba, Pai [58]”. 808
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803[52] 804[53] 805[54] 806[55] 807[56] 808[57] 809[58]
I Coríntios XII, 3. Deuteronômio IV, 24; Hebreus XII, 29. Cf. Mateus XIII, 45. Eclesiastes I, 18. Salmo XXXIX, 12. Romanos VIII, 26. Cf. Gálatas IV, 6
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62. Mais ainda do que as outras paixões, o ardor costuma perturbar e agitar a alma; porém, às vezes, ele lhe presta grandes serviços. De fato, quando o usamos calmamente contra os ímpios e os debochados de toda espécie, para salvá-los ou confundi-los, damos à alma um acréscimo de doçura, pois estamos de acordo com o objetivo de justiça e bondade de Deus. Também quando nos irritamos fortemente contra o pecado, damos virilidade àquilo que a alma tem de feminino. Da mesma forma, tremendo e nos rebelando contra este espírito de corrupção [tremendo em espírito contra o demônio da corrupção] quando nos encontramos desencorajados, erguemos nossos pensamentos acima da ostentação da morte – não duvidemos disto. Para nos ensinar isto, depois de haver chorado por duas vezes e de se ter perturbado diante do Hades, embora pudesse fazer o que quisesse por efeito de uma vontade sem perturbação, o Senhor devolveu a alma de Lázaro ao seu corpo [59]. Assim, me parece, foi mais como uma arma que Deus nosso Criador deu à nossa natureza o ardor saudável. Se Eva tivesse se servido dele contra a serpente, ela não teria sido levada ao prazer passional [60]. Parece-me, portanto, que quem, por zelo ou piedade, usou do ardor de forma saudável e sã, terá na balança retribuições de mais peso do que quem, pela lentidão de seu intelecto, nunca foi levado ao ardor. Realmente, o segundo parece um condutor inexperiente para acompanhar o coração humano. Mas o primeiro participa da corrida montado nos cavalos da virtude, e se volta até contra as fileiras dos demônios, conduzindo a quadriga da temperança no temor a Deus. Este é o carro de Israel que encontramos descrito na Escritura na ascensão do divino Elias [61]. Pois parece que Deus falou claramente das quatro virtudes aos Judeus. E foi por isso que este homem casto, tão forte e tão grande, que foi nutrido pela sabedoria, elevou-se no carro de fogo tomando como cavalos suas próprias virtudes, ao que me parece, quando o Espírito o transportou num sopro de fogo. 810
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63. Quem participou do santo conhecimento e que provou a doçura de Deus não deve jamais se defender na justiça, nem tampouco suscitar processo contra outrem, tomando-lhe as vestes. Pois a justiça dos príncipes do mundo é muito inferior à justiça de Deus, ou melhor, não é nada comparada com ela. Que diferença haveria, de fato, entre os filhos de Deus e os filhos do século se o direito destes não se revelasse mais imperfeito diante da justiça daqueles, a ponto de que um é chamado direito humano e outro direito divino? É assim que nosso Senhor [Jesus], quando injuriado, não injuriava de volta e, quando sofria, não ameaçava [62], mas suportava em silêncio que lhe tomassem as vestes [63], afligindo-se por nossa salvação [64], e mais ainda, pedindo a Deus por aqueles que lhe faziam mal [chegando até a pedir ao Pai a salvação dos criminosos [65]]. Mas os homens deste mundo não cessarão de processar uns aos outros, desde que consigam com usura os bens arrolados no processo, sobretudo se receberem os juros antes que lhes seja atribuído o que lhes é devido, de tal modo que seu direito é, no mais das vezes, a origem de uma grande injustiça. 813
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64. Não se deve, dizem (e ouvi isto de homens piedosos), deixar quem quer que seja nos despojar daquilo que temos para nosso sustento ou para sustento dos pobres, a fim de não nos tornarmos, por nossa resignação, ocasião de pecado para aqueles que nos fizeram mal, e principalmente se sofrermos isto da parte de cristãos. Não existe aí outra coisa senão a vontade de preferir seus bens a si mesmo, sob um pretexto irracional. Se, com efeito, relaxando a prece e a guarda de meu coração, eu começo pouco a 810[59] 811[60] 812[61] 813[62] 814[63] 815[64] 816[65]
João XI, 33-38. Cf. Gênesis III, 6. Cf. II Reis II, 11. Cf. I Pedro II, 23. Cf. Mateus XXVII, 28. Cf. Isaías LIII, 4. Cf. Lucas XXIII, 24.
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pouco a contestar aqueles que querem me causar dano, e a me sentar nos vestíbulos dos tribunais, está claro que eu coloco aquilo que reivindico acima de minha salvação, para não dizer acima do mandamento salutar. E como seguirei eu o mandamento evangélico que me ordena: “Não reclame daquele que tomou seus bens [66]”, se não suporto com alegria, segundo a palavra do Apóstolo, ser despojado das coisas que possuo? Pois, depois de haver disputado e recuperado o que reclamei, não libertarei do pecado o homem ganancioso, uma vez que os tribunais corruptíveis não são capazes de definir o julgamento incorruptível de Deus. O acusado certamente não satisfará senão as leis com as quais defenderá sua causa. Assim, é melhor suportar a violência dos que querem nos prejudicar, e rezar por eles, a fim de que, pelo arrependimento, não pela restituição daquilo que roubaram, eles sejam absolvidos da cupidez de que são acusados. É o que quer a justiça de Deus: que recuperemos não o que nos foi tomado pela ganância, mas o ganancioso, liberto do pecado pelo arrependimento. 817
65. É conveniente e muito útil, desde que reconhecemos o caminho da piedade, vender o mais depressa possível tudo o que possuímos, distribuindo o recebido de acordo com o mandamento do Senhor [67], e não negligenciarmos esta ordem salutar sob pretexto de querermos cumprir o conjunto dos mandamentos. Acima de tudo, ganharemos com isto o belo desprendimento e a pobreza daí para diante desprovida de armadilhas, que eleva os pensamentos acima das injustiças e dos litígios, por não mais possuirmos em nós a matéria que acende o fogo com o qual queimam os homens gananciosos. Mas a humildade nos aquecerá mais do que as demais virtudes e, porque estaremos nus, ela nos fará repousar em seu seio, como uma mãe que toma em seus braços seu filhinho e o aquece quando, em sua simplicidade infantil, ele despiu-se e atirou longe suas roupas: sua inocência é tão grande que ele se alegra com sua nudez mais do que com os brocados de suas vestimentas. Com efeito, foi dito: “O Senhor protege os pequeninos. Eu me humilhei e ele me salvou [68]”. 818
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66. É certamente a partir do que temos que o Senhor nos pedirá contas de nossa compaixão, não a partir do que não temos. Se, portanto, eu dispenso em pouco tempo, no temor a Deus e abrasado pelo fogo de seu mandamento bem-aventurado, tudo o que eu poderia dar em muitos anos, do que eu, que não tenho nada, posso ainda ser acusado? Alguém poderá dizer: “Como poderão ser socorridos os pobres daqui em diante, já que estavam acostumados a receber nossos bens, paulatinamente, dia após dia?” Que este homem aprenda a não insultar a Deus estendendo sua própria avareza. Pois Deus não deixará de prover às necessidades de sua criatura, assim côo era no princípio. Antes que este ou aquele se levantassem para compartilhar, os pobres não deixavam de ter nem roupas nem alimentos. É bom, portanto, que, uma vez que reconhecemos isto e servimos a Deus com nobreza, rejeitemos o sentimento e o amor próprio que a riqueza traz, desprezando nossos próprios desejos – vale dizer, desprezando nossa própria alma [69] – a fim de não nos regozijarmos por distribuirmos nosso dinheiro, considerando nossa alma como um nada, porque não fazemos bem algum. Com efeito, enquanto estamos cobertos de riquezas, sentimos uma grande alegria em distribuí-las (se acaso tivermos em nós a energia do bem), felizes que somos por nos colocarmos a serviço do mandamento divino. Mas quando esgotamos tudo, uma tristeza e uma humilhação profundas nos penetram, pois nada mais fazemos que seja digno da justiça. Então, a alma retorna a si mesma num grande abatimento, a fim de que aquilo que ela já não pode obter dia após dia pela compaixão lhe seja dado pela prece constante, pela paciência e pela humildade. Com efeito, foi dito: “O 820
817[66] 818[67] 819[68] 820[69]
Lucas VI, 30. Cf. Mateus XIX, 21. Salmo CXV, 6. Cf. Lucas XIV, 26.
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pobre e o indigente louvarão seu nome, ó Senhor [70]”. Assim, a ninguém Deus prepara o carisma da teologia, se a pessoa não preparar a si mesma despojando-se de todos os seus bens pela glória do Evangelho de Deus, a fim de anunciar, na indigência que ele ama, a boa nova da riqueza de seu Reino. É o que quis dizer com toda clareza aquele que disse: “Em sua bondade, Deus preparou seus bens para o pobre”, acrescentando: “O Senhor dará a palavra aos que anunciam com todas as suas forças a boa nova [71]”. 821
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67. Todos os carismas de nosso Deus são bons e estão na origem de toda bondade. Mas nenhum inflama e transporta nosso coração para sua bondade tanto quanto a teologia. Pois sendo ela as primícias dos frutos da bondade de Deus, ela traz à alma dons que são seguramente os primeiros. Em primeiro lugar, ela nos predispõe a desprezar alegremente todo amor por esta vida, uma vez que no lugar dos desejos corruptíveis obtemos a riqueza indizível das palavras de Deus. Depois ela envolve de luz nosso intelecto pelo fogo que o transforma, e lhe permite tomar parte dos espíritos litúrgicos [72]. Assim preparados, bem amados, caminhemos fielmente para esta nobre virtude contemplativa que traz consigo todo desligamento; que, no esplendor de sua luz inefável, alimenta o intelecto com as palavras de Deus; e que, pelos santos profetas, em vista da indivisível comunhão, une a alma dotada de razão a Deus o Verbo, a fim de que, mesmo no meio dos homens, ó milagre, esta iniciadora divina que nos leva às bodas e nos une às palavras de Deus cante claramente os poderes do Senhor. 823
68. Na maior parte do tempo, nosso intelecto suporta com dificuldade a oração, devido ao caráter demasiado estreito e oculto da virtude que nos leva a orar. Mas ele se aplica alegremente à teologia por causa da amplidão e da liberdade das contemplações divinas. Portanto, a fim de não deixá-lo começar a falar demais ou mesmo a exaltar-se além da conta, devemos moderar a alegria e nos aplicarmos o máximo possível à prece, à salmódia e à leitura das Sagradas Escrituras, ainda que sem negligenciar as considerações dos que gostam de falar e cuja fé se reconhece nas palavras. Pois, ao fazermos isto, evitamos que o intelecto misture suas próprias palavras às palavras da graça e impedimos que ele, levado por um excesso de alegria e muitos discursos, seja levado à vanglória. No momento da contemplação, mantenhamos o intelecto longe de toda imaginação, permitindo a ele ter em lágrimas seus pensamentos. Pois, repousando no momento da hesíquia e penetrado pela doçura da oração, não apenas ele escapará das causas que mencionamos, como irá se renovar sempre, daí em diante, para se aplicar rapidamente e sem esforço às considerações divinas, progredindo ao mesmo tempo com grande humildade na contemplação do discernimento. Mas é preciso saber que se trata de uma oração acima de todo e qualquer espaço, que só está ao alcance daqueles que, com toda percepção e plena certeza, estão cheios da santa graça.
69. No começo, a graça costuma envolver e iluminar a alma com sua própria luz, permitindo a ela que a sinta profundamente. Mas quando começam os combates, é de um modo desconhecido, na maior parte do tempo, que ela opera seus mistérios na alma teológica, a fim de tanto nos deixar alegres com os sinais da contemplação divina quanto de manter longe da vanglória nosso conhecimento em meio aos combates. Devemos então nos afligir com moderação quando nos sentirmos abandonados, para que nos humilhemos daí por diante e para que nos submetamos sempre mais à glória do Senhor; e devemos nos alegrar quando chegar o momento de sermos levados nas asas da boa esperança. Com efeito, do mesmo modo como uma 821[70] Salmo LXXIV, 21. 822[71] Salmo LXVIII, 11-12. 823[72] Cf. Hebreus I, 14.
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grande aflição mergulha a alma no desespero e na incredulidade, também uma grande alegria a incita à presunção (digo-o daqueles que ainda são crianças). Pois, entre a iluminação e a derelição, o meio é a prova. E entre a aflição e a alegria, o meio é a esperança. Com efeito, foi dito: “Eu esperei o Senhor com paciência, e ele veio a mim [73]”, e também: “Eu estava sobremodo aflito em meu coração, mas suas consolações alegraram minha alma [74]”. 824
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70. Assim como as portas do banho, continuamente abertas, esvaem rapidamente o calor de dentro, da mesma forma a alma dissipa sua memória pela porta da voz, se quiser falar demais, ainda que o que disser for bom. O intelecto fica assim desprovido de pensamentos soberanos, e expõe, por assim dizer, um fluxo de pensamentos ao primeiro que se apresentar, pois já não tem o Espírito Santo para conservá-lo numa reflexão desprovida de imaginações. Pois o bem foge sempre do falatório, por ser estranho a todas as confusões e a todas as imaginações. O silêncio oportuno é uma boa virtude: esta não é outra coisa que a mãe dos pensamentos sábios.
71. Numerosas paixões perturbam a alma teológica no princípio: é o que nos mostra a revelação do conhecimento. De todas as paixões, as piores são a cólera e a aversão. Mas o que a alma experimenta aí não provém tanto dos demônios que fomentam as paixões quanto de seu próprio progresso. Com efeito, na medida em que a alma se deixa desviar pelos cuidados deste mundo, se ela vê a justiça espezinhada de um modo ou de outro, ela não treme nem se perturba. Pois, preocupada com seus próprios desejos, ela não vê a justiça de Deus. Mas quando ela começa a sobrepujar suas paixões graças ao desprezo pelas coisas presentes e ao amor a Deus, ela não suporta ver em si mesma nem em outro a transgressão da justiça, e ela se irrita contra os malfeitores e se perturba até ver os que ultrajaram a justiça render piedosamente homenagem à sua dignidade. É por isso que ela sente aversão pelos injustos e ama os justos. Pois é impossível ocultar o olhar da alma quando seu véu – quero dizer: o corpo – tecido pela temperança, se torna tão fino. No entanto, melhor do que sentir aversão pelos injustos é chorar por sua insensibilidade. Pois se estes homens são dignos de aversão, a razão não quer que esta perturbe a alma que ama a Deus; com efeito, quando a aversão se instala na alma, o conhecimento deixa de operar.
72. O intelecto teológico, cuja alma está cumulada de doçura e inflamada pelas palavras do próprio Deus, alcança os espaços da impassibilidade que se abrem largamente diante dele. De fato, foi dito: “As palavras do Senhor são palavras puras, como prata levada ao fogo e limpa de toda terra [75]”. O gnóstico, confortado pela experiência da energia divina, eleva-se acima das paixões. Mas também o teólogo, se se torna mais humilde, saboreia a experiência gnóstica, assim como o gnóstico, se manter infalivelmente o discernimento da alma, saboreia pouco a pouco a virtude contemplativa. Pois jamais acontece que os dois carismas caibam apenas ao gnóstico, ou apenas ao teólogo, a fim de que, admirando cada um deles aquilo que um tem a mais do que o outro, a humildade neles abunde com o zelo da justiça. É por isso que o Apóstolo disse: “A um o Espírito dá uma palavra de sabedoria, enquanto a outro é dada uma palavra de conhecimento pelo mesmo Espírito [76]”. 826
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824[73] 825[74] 826[75] 827[76]
Salmo XL, 26. Salmo XCIV, 19. Salmo XII, 7. I Coríntios XII, 8.
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73. Quando a alma transborda de seus frutos naturais, ela canta com mais força a salmódia e daí para diante quer rezar em voz alta. Mas quando ela é levada pela energia do Espírito Santo, ela canta com abandono e doçura, e ora apenas com o coração. A primeira disposição é acompanhada de uma alegria ostensiva. A segunda é seguida de lágrimas espirituais. Depois surge no coração um regozijo inflamado de hesíquia. Pois a lembrança que a moderação da voz mantém aquecida prepara o coração para receber pensamentos doces, semelhantes às lágrimas. A partir daí, enquanto se espera a alegria da colheita, é verdadeiramente possível ver as sementes da oração semeadas com lágrimas na terra do coração [77]. Da mesma forma, quando estamos esmagados por um grande desencorajamento, devemos cantar a salmódia com uma voz mais forte, fazendo ressoar a alma com a alegria da esperança, até que esta densa nuvem seja dissipada pelos ventos da melodia. 828
74. Quando a alma começa a se conhecer, ela traz em si um calor e um pudor que agrada a Deus. Pois uma vez que ela não é mais perturbada pelos cuidados desta vida, ela engendra um eros que tende para a paz, buscando convenientemente o Deus da paz. Mas ela se separa rapidamente deste desejo, seja porque os sentidos traem a memória, seja porque a natureza, por indigência, dispensa depressa demais seu próprio bem. É por isso que os sábios gregos não obtinham aquilo que pensavam obter com a temperança, porque seu intelecto não era animado pela sabedoria eterna e verdadeira. Ora, o calor que o Espírito Santo dá ao coração é primeiramente agradável e constante, chamando todas as partes da alma para Deus e não se deixando escapar fora do coração, mas alegrando inteiramente o homem num amor e numa felicidade infinita. Depois de haver conhecido o amor, deve-se chegar à alegria. O amor natural é sinal de que a natureza está de certo modo mantida em boa saúde pela temperança, mas ele não consegue levar o intelecto à impassibilidade, como o amor espiritual.
75. O ar que nos envolve permanece puro quando sopra o vento norte sobre a criação, pois a natureza deste vento é sutil e suscita a serenidade. Mas quando sopra o vento sul, o ar fica como que espesso pela natureza deste vento que suscita a bruma e que traz das regiões de onde vem, devido a um certo parentesco, nuvens que cobrem toda a terra habitada. O mesmo acontece com a alma. Quando ela é levada pelo sopro do Espírito verdadeiro e santo, ela se coloca inteiramente fora da bruma demoníaca. Mas quando o sopro do espírito da ilusão a toma com violência, ela fica toda coberta pelas nuvens do pecado. É preciso que voltemos sempre, com todas as forças, nossa resolução para o sopro purificador e vivificante do Espírito Santo, ou seja, para o vento que o profeta Ezequiel, na luz do conhecimento, diz vir do norte [78], a fim de que a parte contemplativa de nossa alma permaneça sempre serena, o máximo possível, e que, vendo no espaço os esplendores da luz, possamos nos aplicar sem erro às contemplações divinas. Pois é aí que está a luz do verdadeiro conhecimento. 829
76. Alguns imaginaram que a graça e o pecado, ou seja, o espírito da verdade e o espírito do erro [79], estão escondidos juntos no intelecto dos batizados. Eles dizem que uma das faces estimula o intelecto para o bem, e a outra o faz em sentido contrário. Quanto a mim, as divinas Escrituras e o próprio sentido do intelecto me levaram a compreender que antes do santo batismo, a graça conduz de fora a alma ao bem, enquanto Satanás se esconde nas suas profundezas e tenta fechar todas as saídas que levam a alma para a direita. Mas a partir do momento em que nascemos de novo, o demônio se acha fora, e a graça dentro. 830
828[77] Cf. Salmo CXXVI, 5. 829[78] Cf. Ezequiel I, 14. 830[79] Cf. I João IV, 6.
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Então descobrimos o seguinte: assim como antes era o erro que dominava a alma, depois do batismo é a verdade que a domina. Satanás não age menos sobre a alma do que antes, e inclusive o faz de pior maneira, não por nela residir junto com a graça, apraza a Deus, mas buscando, por meio dos humores do corpo, mergulhar o intelecto nos vapores com que a cobre através da doçura dos prazeres irracionais. Ora, isto acontece porque Deus permite, a fim de que, passando pela tempestade, pelo fogo e pela prova, o homem alcance a felicidade do bem. Com efeito, foi dito: “Nós passamos pelo fogo e pela água, e você nos conduziu ao frescor [80]”. 831
77. A partir do instante em que somos batizados, como eu disse, a graça se esconde na profundeza de nosso intelecto, subtraindo sua presença ao próprio sentido deste. Mas quando começamos, com toda decisão, a sermos tomados pelo amor a Deus, então a graça, em sua linguagem inefável, pelo sentido do intelecto, comunica à alma uma parte de seus próprios bens. A partir daí, aquele que quiser assegurar-se de possuir em si esta descoberta começa a querer se desembaraçar com alegria de todos os bens deste mundo presente, a fim de adquirir verdadeiramente o campo no qual achou escondido o tesouro da vida [81]. Com efeito, quando nos desembaraçamos da riqueza deste mundo é que encontramos o bem em que está oculta a graça de Deus. Pois é na medida em que a alma progride que o dom divino manifesta sua bondade no intelecto. Entretanto, agora o Senhor permite que a alma seja atormentada pelos demônios, a fim de ensinar-lhe o discernimento entre o bem e o mal e de torná-la mais humilde, na medida em que ela experimenta, quando purificada, uma grande vergonha diante da infâmia dos pensamentos demoníacos. 832
78. Somos feitos à imagem de Deus [82] pelo movimento do intelecto na alma. Pois o corpo é como que a morada desta. Mas a partir do momento em que, pela transgressão de Adão, não apenas os traços de sua marca na alma foram apagados como ainda nosso corpo tombou sob o golpe da corrupção, o santo Verbo de Deus teve que encarnar-se, concedendo-nos pelo batismo em Deus a água da salvação que nos permite nascer de novo. Assim renascemos pela água, como sendo a energia vivificante do Espírito Santo. Somos purificados tanto na alma como no corpo, se nos encaminhamos a Deus com todas as nossas forças: o Espírito Santo faz em nós sua morada, e o pecado foge para bem longe. Pois não é possível que existam na alma, como pensam alguns, dois lado de sua marca, que é única e simples. Pois se, como garantia da semelhança, a graça divina, por intermédio do santo batismo, com infinita afeição se adapta aos traços da imagem, aonde encontrará lugar a face do maligno, ainda mais se não há nada em comum entre a luz e as trevas [83]? Assim nós, os corredores dos combates sagrados, acreditamos que a serpente multiforme é expulsa dos tesouros do intelecto pelo banho de incorruptibilidade. Mas não nos perguntamos por que, depois do batismo, ainda temos maus pensamentos misturados aos bons. Pois o banho de santidade limpa a sujeira de nosso pecado, mas não muda ainda a dualidade de nosso querer e não impede que os demônios nos combatam ou nos mantenham na ilusão, a fim de que, tomando as armas da justiça pelo poder de Deus [84], guardemos aquilo que deveríamos ter guardado quando ainda estávamos em estado natural. 833
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831[80] 832[81] 833[82] 834[83] 835[84]
Salmo LXVI, 12. Cf. Mateus XIII, 4. Cf. Gênesis I, 27. Cf. II Coríntios VI, 14. Cf. II Coríntios VI, 7.
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79. Satanás, como já disse, é expulso da alma pelo santo batismo. Mas pelas razões que indiquei, lhe é permitido agir sobre ela por intermédio do corpo. Pois a graça de Deus tem sua morada na profundeza da própria alma, ou seja, no intelecto. Com efeito, foi dito que a glória da filha do Rei reside no interior [85]: ela não se mostra aos demônios. É por isso que sentimos brotar das próprias profundezas de nosso coração o desejo divino, quando nos lembramos ardentemente de Deus. Mas então os espíritos maus saltam para os sentidos do corpo e neles se escondem: aproveitando-se do relaxamento da carne, eles agem sobre aqueles cujas almas ainda se encontram na infância. Assim, portanto, nosso intelecto, segundo o Apóstolo divino, regozija-se sempre na lei do Espírito [86], enquanto que a carne quer se deixar levar sob o impulso dos prazeres. Pelo sentido do intelecto, a graça enche o corpo de júbilo indizível naqueles que progridem no conhecimento. Mas os demônios, por meios dos sentidos do corpo, ao nos encontrarem negligentes e displicentes em estado de piedade, capturam a alma, e com exortações os bandidos a constrangem a fazer o que ela não quer. 836
837
80. Aqueles que afirmam que as duas faces da graça e do pecado estão juntas nos corações dos fiéis (porque o Evangelista disse: “A luz brilhou no meio das trevas, mas as trevas não a compreenderam [87]”, pretendem demonstrar sua própria conjectura declarando que o esplendor divino não é absolutamente manchado pela frequentação do maligno, mesmo que, dizem eles, a luz de Deus se aproxime na alma das trevas do demônio. Mas é a própria palavra evangélica que os acusa de pensar fora da Santa Escritura; assim, uma vez que o Verbo de Deus, a luz verdadeira, quis se manifestar à criação em sua própria carne, acendendo em nós, em seu incomensurável amor pelo homem, a luz de seu conhecimento divino o espírito do mundo não compreendeu o desígnio de Deus, ou seja, desconheceu-o – pois as preocupações da carne são inimigas de Deus [88] – o Teólogo [89] se utilizou daquelas palavras. E com toda justiça, após uma breve transição, o maravilhoso Evangelista acrescenta: “Ele era a verdadeira luz, que ilumina todo homem vindo ao mundo (ele quis dizer: que guia e vivifica). Ele estava no mundo e o mundo foi feito por ele e o mundo não o conheceu. Ele veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas aos que o receberam, aos que creram em seu Nome, ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus [90]”. E o sábio Paulo, interpretando “eles não o receberam”, diz: “Não que eu já tenha alcançado o objetivo ou que já tenha chegado à perfeição, mas eu corro para a meta a fim de conquistá-la, uma vez que eu mesmo já fui conquistado por Jesus Cristo [91]”. Assim, não é de Satanás que o Evangelista diz que ele não recebeu a luz verdadeira, pois desde o começo ela lhe foi estranha, uma vez que ela não brilha nele. Mas ele estigmatiza com estas palavras os homens que entendem os poderes e as maravilhas [do Filho] de Deus, mas que, devido ao seu coração entenebrecido, não desejam se aproximar da luz de seu conhecimento. 838
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81. A palavra do conhecimento nos ensina que existem como que dois tipos de espíritos maus. Dentre eles, alguns são, por assim dizer, mais sutis, enquanto outros são mais materiais. Os mais sutis combatem a alma, e os outros costumam capturar a carne com o grude de suas solicitações. É por isso que os demônios que combatem a alma e os que combatem o corpo estão sempre em luta uns contra os outros, embora tanto uns como outros tentem igualmente prejudicar os homens. Assim, quando a graça não reside no homem, eles se aninham nas profundezas do coração, como verdadeiras serpentes, e não deixam a alma voltar seu olhar para o desejo do bem. E quando a graça se esconde no intelecto, eles passam a percorrer os espaços do coração como nuvens negras, transformados nas paixões do pecado e em todos os tipos de 836[85] 837[86] 838[87] 839[88] 840[89] 841[90] 842[91]
Cf. Salmo XLV, 14. Cf. Romanos VII, 22. João I, 5. Cf. Romanos VIII, 6. São João Evangelista. João I, 9-12. Filipenses III, 12.
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distrações, a fim de roubar a memória do intelecto e de arrancá-la de sua relação com a graça. Assim, quando os demônios que perturbam a alma nos consomem nas paixões psíquicas, em especial na presunção que é a mãe de todos os males, é possível confundirmos o influxo de nosso amor pela vanglória, sobretudo se pensarmos na dissolução de nosso corpo. Devemos fazer o mesmo quando os demônios que combatem o corpo tentam ferver em nosso coração seus desejos infames. Pois este pensamento pode extinguir, pela lembrança de Deus, todas as espécies de espíritos maus. Mas se com estas considerações os demônios da alma nos inspirarem um desprezo infinito pela natureza humana, por não ter esta nenhum valor por causa da carne (é o que eles gostam de fazer quando querem nos atormentar com tais pensamentos), devemos então refletir sobre a honra e a glória do Reino celeste, sem esquecer das amarguras do Juízo, a fim de que, com um superemos o desencorajamento e, como o outro, retomemos a compaixão em nosso coração.
82. Nosso Senhor nos ensina nos Evangelhos que Satanás, ao encontrar em seu regresso a casa limpa e vazia, ou seja, um coração estéril, ele chama então sete espíritos piores do que ele e nela entra e se instala, tornando ainda pior o estado do homem do que era a princípio [92]. Devemos entender com isto que Satanás não consegue entrar nem se manter nas profundezas do coração quando o Espírito Santo está em nós. Mas o maravilhoso Paulo também nos ensina claramente o sentido daquilo que devemos ver aí. Ele considera em primeiro lugar a questão referindo-se à ciência do combate. Ele diz o seguinte: “Eu me regozijo na lei de Deus conforme o homem interior. Mas vejo em meus membros uma outra lei, que faz guerra à lei de meu intelecto e o captura pela lei do pecado que reside nos membros [93]”. Depois, referindo-se à perfeição, ele diz: “Não existe mais condenação contra aqueles que, em Jesus Cristo, não marcham segundo a carne. Pois a lei do Espírito da vida me libertou da lei do pecado e da morte [94]. Ele diz ainda, em outra passagem, para nos ensinar novamente que, partindo do corpo, Satanás combate a alma que tem parte com o Espírito Santo: “Permaneçam em pé, cingidos com o cinto da verdade, revestidos com a couraça da justiça e calçados com a prontidão em anunciar o evangelho da paz. Levem sempre o escudo da fé, com o qual vocês poderão extinguir todas as flechas incendiárias do maligno. Recebam também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus [95]”. Uma coisa é o cativeiro, outra coisa é a luta. Pois o primeiro significa uma deportação violenta, enquanto a outra indica um combate entre duas forças iguais. É por isso que o Apóstolo diz que o diabo ataca também com flechas incendiárias as almas que carregam em si a Cristo. Pois quem não domina seu adversário utiliza em todos os casos flechas contra ele, a fim de poder expulsar com flechas aladas aquele que combate à distância. O mesmo acontece com Satanás: uma vez que ele não pode, por causa da graça, aninhar-se no intelecto daqueles que combatem, ele voa sobre os humores e aninha-se no corpo, cuja complacência lhe permite atirar contra a alma. É por isso que é preciso consumir o corpo numa certa medida, a fim de que o intelecto não escorregue na vertente dos prazeres, levada pelos humores daquele. Devemos estar convencidos destas palavras do Apóstolo, quando ele diz que o intelecto dos que combatem é animado pela luz de Deus, e que assim ele se dobra à lei divina e se regozija nela. Mas a carne, por causa de sua complacência, se volta de bom grado para os espíritos maus. É por isso que às vezes ela é constrangida a servir à sua malícia. Assim fica demonstrado que o intelecto não pode ser a um tempo morada de Deus e do diabo. Pois como é possível que eu me dobre à lei divina em meu intelecto e ao mesmo tempo esteja subjugado pela lei do pecado em minha carne [96], como é possível que meu intelecto se erga com toda liberdade para combater os demônios dobrando-se de bom grado à bondade da graça enquanto o corpo se volta com mais gosto ainda para o odor dos prazeres irracionais, uma vez que é permitido aos demônios, como eu disse, aninharem-se 843
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843[92] Cf. Mateus XII, 45. 844[93] Romanos VII, 23. 845[94] Romanos VIII, 1. 846[95] Efésios VI, 14-17. 847[96] Cf. Romanos VII, 23.
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naqueles que combatem? Pois foi dito: “Eu sei que o bem não habita em mim, na minha carne [97]”, portanto também naqueles que resistem ao pecado em meio dos combates, pois o Apóstolo não diz outra coisa de si mesmo. Os demônios combatem o intelecto, mas também tentam, com a cola de suas solicitações, levar a carne a relaxar na vertente dos prazeres. Pois um justo julgamento lhes permitiu de uma vez todas residir nas profundezas do corpo, mesmo naqueles que levam um renhido combate contra o pecado, pois a liberdade do coração humano está sempre à prova. Mas se alguém é capaz de morrer pelas penas que se impõe enquanto está nesta vida, ele se torna inteiramente morada do Espírito Santo. Pois este homem, antes de morrer, já ressuscitou: assim era o bem-aventurado Paulo e todos os que lutaram e lutam contra o pecado. 848
83. O coração carrega em si tanto os bons quanto os maus pensamentos; não que por natureza ele suscite a que não é bom, mas ele guarda suas lembranças como um hábito, desde o primeiro engano, de uma vez por todas, ainda que ele conceba a maior parte dos maus pensamentos devido à amargura dos demônios. Nós mesmos os sentimos como se proviessem do coração, e é por isso que alguns imaginaram que o pecado reside no intelecto juntamente com a graça. É também por isso, afirmam eles, que o Senhor disse: “O que sai da boca vem do coração, e aí está o que mancha o homem; pois do coração saem os maus pensamentos, os adultérios [98], etc.” Eles não sabem que nosso intelecto, cuja atividade é uma percepção muito sutil, se apropria pela carne da ação dos pensamentos que lhes são sugeridos pelos maus espíritos, quando, de um modo que ignoramos, ao se misturarem, a alma é conduzida pela complacência do corpo. Pois a carne adora, acima de qualquer medida, ser acariciada pelo engano. É por isso que os pensamentos semeados na alma pelos demônios parece, provir do coração. E nos nos apropriamos deles, quando queremos agradá-lo. É isto que o Senhor condena, como suas próprias palavras demonstram ao usar a expressão que mencionamos. Pois aquele que se compraz nos pensamentos que lhe são sugeridos pela malícia de Satanás e que inscreve sua lembrança em seu coração, passará a suscitá-los daí em diante como se fossem frutos de sua própria reflexão. 849
84. O Senhor diz nos Evangelhos: “O homem forte não pode ser expulso de sua morada se aquele que é mais forte do que ele não o amarrar, o despojar e o fizer sair [99]”. Como é possível que aquele que foi expulso e confundido possa entrar novamente e viver com o verdadeiro mestre, que repousa em sua própria casa? Pois um rei que um dia combateu um tirano rebelde não admitirá que ele viva consigo no mesmo palácio real. Ele antes o fará perecer no campo ou, depois de amarrado, o entregará a seus próprios soldados, para um longo castigo e uma morte miserável. 850
85. Se pelo fato de termos tanto pensamentos bons quanto maus pensamentos alguém crer que o Espírito Santo e o diabo residam juntos no intelecto, que ele aprenda que isto decorre do fato de que ainda não termos experimentado e visto o quanto o Senhor é bom [100]. Pois antes de tudo, com eu já disse, a graça oculta sua presença nos batizados, aguardando uma resolução da alma. Pois só quando o homem se volta inteiramente para o Senhor, é que ela manifesta sua presença imperceptivelmente no coração. E novamente ela aguarda o movimento da alma, deixando que as flechas demoníacas cheguem até seu sentido mais profundo, para que ele busque a Deus com uma resolução mais ardente e com uma 851
848[97] Romanos VII, 18. 849[98] Mateus XV, 19. 850[99] Mateus XII, 29. 851[100] Cf. Salmo. XXXIV, 9.
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disposição amis humilde. Se daí por diante o homem começa a avançar observando os mandamentos e invocando o Senhor Jesus sem cessar, então o fogo da santa graça consome até os sentidos exteriores do coração, queimando totalmente as ervas daninhas da terra humana. A partir daí, os desígnios demoníacos se detêm longe deste lugar: com dificuldade eles atingem a parte passional da alma. Mas quando o homem que combate amarrou em si todas as virtudes e singularmente a perfeita despossessão, então a graça ilumina por meio de uma perfeição mais profunda toda sua natureza, aquecendo-o, daí para frente, para o grande amor a Deus. É então que, longe dos sentidos do corpo, as flechas demoníacas se extinguem. Pois a brisa do Espírito Santo, que leva ao coração os ventos da paz, extingue, ainda no ar, as flechas incendiárias do demônio. Entretanto, mesmo aquele que chegou a este ponto, Deus às vezes o abandona à malícia dos demônio, deixando então seu intelecto privado de luz, a fim de que nossa liberdade não seja entravada pelos laços da graça, não apenas por ter sido o pecado vencido no combate, mas também porque o homem deve progredir ainda na experiência espiritual. Pois, diante da riqueza de Deus que nos instrui e tem como ponto de honra nos amar, aquilo que nós consideramos como a perfeição daquele que se instrui é ainda imperfeita, ainda que fosse possível subir pela progressão da penas toda a escada que foi mostrada a Jacó [101]. 852
86. O próprio Senhor disse que Satanás caiu do céu [como um raio] [102] a fim de que o demônio disforme não pudesse voltar seus olhos para as moradas dos santos anjos. Então como é possível que aquele que não foi considerado digno sequer de comungar com os bons servidores habitar ao mesmo tempo que Deus no intelecto humano? Se for dito que isto acontece porque Deus se retira, não diremos mais nada. Pois o abandono que nos instrui não priva absolutamente a alma da luz divina. É somente a graça, como eu disse, que, no mais das vezes, esconde sua presença no intelecto, a fim de empurrar a alma, por assim dizer, por meio da amargura dos demônios, a buscar por si própria, como todo o temor e mais humildade ainda, o socorro de Deus, aprendendo pouco a pouco a reconhecer a malícia do seu inimigo, como uma mãe que, vendo o filho recusar o aleitamento, o afasta um pouco de seus braços, para que, assustado por homens assustadores e feras de todos os tipos que o cercam, ele retorne com grande temor e lágrimas ao seio maternal. O abandono de Deus, que surge quando ele se afasta, deixa cativa dos demônios a alma que não quer carregar Deus. Ora, nós não somos crianças perdidas [103], se Deus quiser. Acreditamos ser crianças fiéis à graça de Deus, que nos aleita em meio a pequenos abandonos e freqüentes consolações, a fim de que, por sua bondade, nos apressemos a alcançar o estado do homem perfeito, no grau da plenitude de Cristo [104]. 853
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87. O abandono que nos instrui leva à alma uma grande tristeza, uma grande humildade e também um justo desespero, para que aquilo que nela ama a vanglória e se deixa levar pela paixão, retorne à humildade. Mas logo o abandono leva ao coração o temor a Deus, as lágrimas da confissão e um grande desejo do mais belo silêncio. Ao contrário, o abandono que nos sobrevém quando Deus se afasta deixa a alma se encher de desespero, infidelidade, orgulho e cólera. É preciso, portanto, que tenhamos a experiência dos dois tipos de abandono, para voltar a Deus conforme o modo que convém a cada qual. No primeiro abandono, devemos a um tempo prestar-lhe contas e lhe render graças, na medida em que ele castiga o desregramento de nossa vontade retirando-nos o consolo, a fim de nos ensinar, como um bom pai, a diferença entre virtude e vício. No segundo abandono, devemos sem descanso confessar nossos pecados, derramar lágrimas sem cessar e nos dedicar a uma anacorese mais rigorosa para podermos, 852[101] 853[102] 854[103] 855[104]
Cf. Gênesis XVIII, 12. Cf. Lucas X, 18. Cf. Hebreus X, 39. Cf. Efésios IV, 13.
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acrescentando mais penas, suplicar a Deus que volte seu olhar para nossos corações como antes. Mas é preciso saber o seguinte: quando o combate se dá realmente entre a alma e Satanás – refiro-me ao abandono que nos instrui - a graça se retira, como eu já disse, mas ela retorna em socorro da alma sem se deixar dar a conhecer, a fim de mostrar aos seus inimigos que a vitória da alma não pertence senão a ela.
88. Quando, durante o inverno, alguém se põe em pé ao ar livre e se volta inteiramente para o oriente ao nascer do dia, toda a parte da frente de seu corpo é aquecida pelo sol, mas seu dorso fica privado de calor porque o sol não está acima de sua cabeça. Do mesmo modo, os que estão no começo da vida espiritual têm seu coração parcialmente aquecido pela santa graça: é por isso que seu intelecto começa a dar os frutos dos pensamentos espirituais. Mas o coração, naquilo que ele tem de visível, continua a pensar segundo a carne, pois todos os seus membros, em sua percepção profunda, ainda não se acham iluminados pela santa luz da graça. Alguns não compreenderam isto, e acham que existem como que duas realidades opostas no intelecto daqueles que combatem. Assim, pode acontecer que a alma, no mesmo tempo, conceba o que é bom e o que é ruim, assim como o homem de nosso exemplo, igualmente tocado pelo sol, está ao mesmo tempo frio e quente. Com efeito, a partir do momento em que nosso intelecto escorregou na dualidade do conhecimento, ele fica forçado, ainda que não queira, a produzir no mesmo instante pensamentos belos e maus pensamentos, em especial naqueles que alcançaram a finura do discernimento. No mesmo momento em que eles se esforçam por conceber sempre o bem, imediatamente eles se lembram do mal. Pois, depois da desobediência de Adão, a memória do homem ficou dividida em um duplo pensamento. Mas se começarmos, com zelo ardente, a cumprir os mandamentos de Deus, a graça que ilumina todos os nossos sentidos na profundidade de sua percepção, consume por assim dizer nossos próprios pensamentos e, cumulando de doçura nosso coração numa paz cheia de inalterável afeto, nos prepara para pensarmos espiritualmente e não mais segundo a carne. É isto o que acontece continuamente com aqueles que se aproximam da perfeição: eles têm sem cessar em seus corações a lembrança do Senhor Jesus.
89. Pelo batismo do novo nascimento, a santa graça nos concede dois bens, dos quais um ultrapassa o outro infinitamente. O primeiro, ela nos concede imediatamente: pois ela nos renova na própria água e faz brilhar todos os traços da alma, ou seja, a imagem de Deus, apagando todas as dobras de nossos pecados. Quanto ao outro, ela aguarda para colocá-lo em movimento junto conosco: é a semelhança. Pois, assim como os pintores traçam primeiro em uma só cor a forma do homem de quem estão fazendo um retrato, para depois, fazendo florescer cor sobre cor, representar até o aspecto dos fios dos cabelos do modelo que estão pintando, também a santa graça de Deus, pelo batismo, concede primeiro a imagem segundo a qual foi de início criado o homem, para só então, vendo-nos desejar com toda nossa resolução a beleza da semelhança e permanecermos nus e calmos enquanto ela trabalha, fazendo florescer virtude sobre virtude e reproduzindo de glória em glória o aspecto da alma, conferir-lhe a marca da semelhança [105]. Neste momento os sentidos nos mostrarão que fomos feitos à semelhança. Mas somente pela iluminação conheceremos a perfeição da semelhança. Pois o intelecto recebe todas as virtudes dos sentidos, progredindo numa medida e num ritmo indizíveis. Mas ninguém pode adquirir o amor espiritual sem ter sido iluminado em toda sua plenitude pelo Espírito Santo. Pois se o intelecto não receber a perfeição da semelhança pela luz divina, ele pode até possuir quase todas as virtudes, mas continuará desprovido do amor perfeito. Somente quando o homem se torna semelhante a Deus – quero dizer, na medida em que o homem pode se tornar semelhante a Deus – é que ele passa a trazer em si a semelhança do amor divino. Pois, assim como nos retratos a cor mais viva, acrescentada à imagem, conserva até no sorriso a 856
856[105] Cf. II Coríntios III, 18.
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semelhança do modelo, também naqueles que a graça divina pintou à semelhança de Deus, a iluminação do amor, quando acrescentada, mostra que a imagem alcançou inteiramente a semelhança. Com efeito, nenhuma outra virtude que não o amor pode conferir a impassibilidade à alma. Pois o amor é o cumprimento da lei [106]. Assim, nosso homem interior se renova dia após dia no gosto pelo amor [107], e ele se completa na perfeição deste amor. 857
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90. Quando começamos a evoluir, se estivermos ardentemente tomados pela virtude de Deus, o Espírito Santo nos fará provar na alma a doçura de Deus com toda percepção e plena certeza, a fim de que o intelecto possa conhecer com exata ciência a perfeita recompensa das penas dedicadas ao amor de Deus. Mas na maior parte do tempo, ele prefere esconder a magnificência deste dom vivificante, para que, mesmo que coloquemos em movimento todas as outras virtudes, continuemos a nos considerar como nada, por não termos tido ainda, por assim dizer, a experiência do santo amor. É neste momento que o demônio da aversão perturba as almas daqueles que combatem, a ponto de eles acusarem de aversão mesmo os que os amam e de sentirem a ação corruptora da aversão até no beijo. A partir daí a alma sofre por carregar a lembrança do amor espiritual ao mesmo tempo em que lhe é impossível chegar a senti-lo, por não ter chegado até o fundo de suas penas. Nestes tempos, é preciso violentar-se para fazê-lo trabalhar, a fim de poder senti-lo com toda a percepção e com plena certeza. Pois ninguém é capaz de adquirir sua perfeição enquanto ainda estiver imerso nesta carne. Só os santos o conseguem, que alcançaram o martírio e a perfeita confissão, pois todo aquele que chegar a este ponto transforma-se por inteiro e torna-se fácil para ele não mais desejar nenhum alimento. De fato, que desejo dos bens deste mundo terá quem se alimenta do amor divino? É por isso que o sábio Paulo, o grande vaso do conhecimento, diz o seguinte ao nos anunciar, a partir de sua plena certeza, a boa nova das delícias futuras dos justos: “O reino de Deus não é comida e bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo [108]”. Tal é o fruto do amor perfeito. Portanto, aqueles que progridem em direção à perfeição podem continuamente experimentá-lo aqui em baixo. Mas ninguém consegue adquiri-lo perfeitamente se aquilo que é mortal não tiver sido perfeitamente enterrado pela vida [109]. 859
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91. Um dos que amam a Deus com uma resolução insaciável disse-me o seguinte: “Eu queria conhecer por experiência o amor de Deus, e o bom Deus mo concedeu permitindo-me sentir profundamente este amor e dele ter uma certeza absoluta. E eu provei esta energia de tal forma, dizia ele, que então minha alma, com uma alegria e um amor indizíveis, queimava por sair do corpo e se dirigir para o Senhor, e ela se sentia mergulhada na ignorância desta vida passageira”. Ora, quem teve a experiência deste amor não se irrita contra quem o ofende, ainda que seja mil vezes ofendido e lesado por ele; pois pode acontecer também que tal homem, que aceita a cada dia todas as penas, tenha que passar por algumas provas. Mas ele se sentirá como que ligado à alma daquele que o ultrajou ou mesmo que o lesou. Ele não se inflamará senão contra aqueles que ou bem exploram os pobres ou que dirigem palavras iníquas a Deus, como diz a Escritura [110], ou ainda que vivem de uma maneira ou de outra no mal. Pois quem ama o Senhor mais do que a si mesmo, ou melhor, que não ama a si mesmo mas somente a Deus, não reivindicará para si nenhuma honra, mas desejará ver honrada apenas a justiça Daquele que o honrou com uma honraria eterna. E ele não deverá isto a uma vontade menor, mas terá esta disposição como um estado, em sua grande experiência do amor de Deus. Por outro lado, devemos saber que aquele que é levado por Deus a 861
857[106] 858[107] 859[108] 860[109] 861[110]
Cf. Romanos XIII, 10. Cf. II Coríntios IV, 16. Romanos XIV, 17. Cf. I Coríntios XV, 55. Salmo LXXV, 6.
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tamanho amor, eleva-se acima da própria fé no momento em que age este amor, pois ele abraça daí por diante, na percepção do coração e por meio deste grande amor, Aquele que o honra pela fé. É o que nos ensina claramente São Paulo, quando diz: “Agora permanecem estas três virtudes: a fé, a esperança e o amor. Mas a maior dentre elas é o amor [111]”. Pois aquele que abraça a Deus na riqueza do amor, como eu disse, é tornado maior do que sua própria fé: ele permanece inteiramente dentro de seu desejo. 862
92. Durante sua ação, o santo conhecimento nos prepara uma grande aflição quando, por ultrajarmos alguém sob o ímpeto de uma irritação, fazemos deste nosso inimigo. É por isso que ela não cessa de atiçar nossa consciência até que, a custa de implorar, devolvemos à sua anterior disposição aquele que foi ultrajado. Mas quando um homem do mundo se irrita injustamente contra nós, esta mesma consciência, abrindo-se à suprema compunção, no limite, nos leva a nos lamentarmos e a nos tornarmos inquietos, por nos termos tornado motivo de escândalo para todos os homens deste século, e então o próprio intelecto se torna incapaz de alcançar a teologia. Pois a palavra do conhecimento, que é inteiramente amor, não deixa a reflexão estender-se até conceber as considerações divinas se, antes, não recebermos com amor a quem inopinadamente se irritou contra nós. Mas se este homem não o desejar, ou se, retirando-se, afastar-se do lugar em que vivemos, caberá a nós, dilatando nossa alma, acrescentar à nossa disposição os traços de seu rosto para assim cumprir do fundo do coração as leis do amor. Com efeito, foi dito que quem quiser possuir o conhecimento de Deus deve considerar com pensamentos apaziguadores, em sua reflexão, os rostos daqueles que o irritaram. Se fizermos isto, não apenas nosso intelecto se dirigirá sem titubear para a teologia, como ainda ele se elevará com grande liberdade até o amor de Deus, passando do primeiro ao segundo degrau sem encontrar obstáculo.
93. O caminho da virtude, para aqueles que começam a enamorar-se da piedade, parece rude e bem triste, não que o seja, mas porque, desde o seio materno a natureza humana vive com toda liberdade no meio dos prazeres. Mas para aqueles que conseguiram ultrapassar este meio, ele se mostra inteiro acolhedor e repousante. Pois os maus hábitos, dominados pela energia do bem em tais homens, desaparecem com os prazeres desprovidos de razão. Daí por diante a alma percorre com alegria os caminhos das virtudes. É por isso que o Senhor, quando nos conduz pela via da salvação, diz que é estreita e apertada esta via que conduz à vida e que bem poucos passam por ela [112]. Mas aos que querem, com grande resolução, emprenhar-se em guardar seus santos mandamentos, ele diz: “Pois meu jugo é doce e minha carga é leve [113]”. É preciso, portanto, no começo dos combates, cumprir à base de força de vontade os santos mandamentos de Deus, para que nosso bom Senhor, vendo nosso olhar e nossas penas, nos envie sua vontade o mais depressa possível, a nós que servimos com grande prazer suas gloriosas vontades. Pois é então o Senhor que prepara a vontade [114], de tal maneira que, com grande alegria, não cessemos de cumprir o bem. E então sentiremos que Deus opera em nós o querer e o fazer [115], por sua benevolência. 863
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94. Assim como a cera não pode receber o selo que é aplicado sobre ela, se antes não for aquecida e amolecida por um longo tempo, também o homem, se não conheceu as provações das penas e das fraquezas, não pode portar em si o selo da virtude de Deus. É por isso que Deus disse ao maravilhoso 862[111] 863[112] 864[113] 865[114] 866[115]
I Coríntios XIII, 13. Cf. Mateus VII, 14. Mateus XI, 30. Cf. Provérbios VIII, 35. Cf. Filipenses II, 13.
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Paulo: “Minha graça lhe basta. Pois meu poder se realiza na fraqueza [116]”. E o próprio Apóstolo se glorifica dizendo: “É assim de todo o coração que eu me glorificarei de minhas fraquezas, a fim de permaneça sobre mim o poder de Cristo [117]”. E também está escrito nos Provérbios: “O Senhor castiga a quem ele ama, ele corrige os filhos a quem reconhece [118]”. O Apóstolo chama de fraquezas as revoltas dos inimigos da cruz [119], que o assaltavam continuamente, a ele e aos santos de então, para que não se elevassem além da medida, como ele próprio o disse, por causa de eminência das revelações. Ao contrário, pela humildade, eles se mantinham dentro das vias da perfeição, guardando santamente o dom divino em meio ao desprezo de que estavam sempre cercados. Mas nós, hoje, chamamos de fraquezas os maus pensamentos e as indisposições corporais. Então, com efeito, como os corpos dos santos que lutavam contra o pecado eram atirados aos golpes mortais e a diversas outras aflições, eles estavam muito acima das paixões que penetraram na natureza humana pelo pecado. Hoje porém, como cresce a paz nas Igrejas graças ao Senhor, é preciso que os corpos sejam constantemente provados por contínuas indisposições, mas também que as almas dos que combatem sejam testadas pelos maus pensamentos, especialmente as daqueles em quem o conhecimento age com toda percepção e plena certeza, a fim de que eles se mantenham afastados de toda vanglória e de toda vaidade e possam trazer no coração, como eu já disse, com grande humildade, o selo da beleza divina, conforme disse o santo: “Em nós está impressa, ó Senhor, a luz da sua face [120]”. É preciso, portanto, que tomemos sobre os ombros, dando graças, a vontade do Senhor. Então, de fato, a continuidade das enfermidades e a luta contra os pensamentos demoníacos nos serão contadas como um segundo martírio. Pois aquele que, na ocasião, pela boca de seus magistrados iníquos, ordenava aos santos mártires que renegasse a Cristo e desejassem as glórias desta vida, ainda hoje, por sua própria boca, continua a dizer a mesma coisa aos servidores de Deus. Aquele que, na ocasião, por meio daqueles que serviam aos seus desígnios diabólicos, torturava os corpos dos justos e infligia os piores ultrajes aos nossos mestres venerados, ele próprio, ainda hoje, inflige todos esses sofrimentos, misturados a outros tantos ultrajes e opróbrios, aos que confessam a piedade, sobretudo quando, para glória de Deus, eles socorrem com toda sua força os pobres que sofrem. É por isso que devemos, com segurança e paciência, cumprir diante de Deus o martírio da consciência. Foi dito: “Com paciência eu esperei o Senhor, e ele veio até mim [121]”. 867
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95. A humildade é uma coisa difícil de se adquirir. Pois quanto maior ela é, mais combate são necessários para adquiri-la. Ela é concedida de duas maneiras aos que tem parte no santo conhecimento. Quando aquele que sustenta o combate pela piedade se encontra num estágio intermediário da experiência espiritual, é pela fraqueza do corpo, ou pelos adversários dos adeptos da justiça, ou pelos maus pensamentos, que ele é levado, de um modo ou de outro, a se tornar mais humilde. Mas quando, por uma percepção profunda e com plena certeza, o intelecto foi iluminado pela santa graça, então a alma traz em si a humildade como que por natureza. Alimentada pela abundância da bondade divina, ela não pode ser levada à inchar-se com a vanglória, mesmo que cumpra sem cessar os mandamentos de Deus. Por estar em comunhão com a doçura divina, ela se considera abaixo de tudo o que existe. A primeira forma de humildade suscita no mais das vezes a tristeza e o desencorajamento, enquanto a segunda suscita uma alegria e um pudor sábio. Assim, a primeira, como eu disse, chega àqueles que estão no meio dos combates, enquanto a outra é concedida aos que se aproximam da perfeição. É por isso que a primeira muitas vezes é joguete dos sucessos desta vida; mas a segunda, ainda que lhe ofereçamos todos os reinos
867[116] 868[117] 869[118] 870[119] 871[120] 872[121]
II Coríntios XII, 9. Id. Provérbios III, 12. Cf. Filipenses III, 18. Salmo IV, 7. Salmo XL, 2.
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do mundo [122], não se emociona, nem sente as terríveis flechas do pecado; pois, sendo inteiramente espiritual, ela ignora por completo as glórias corporais. Mas é preciso que o combatente passe antes pela primeira para alcançar a segunda. Pois se a graça, pela primeira, não amolecer inicialmente nossa livre vontade para prová-la, impondo-lhe sofrimentos instrutivos, tampouco ela nos concederá a magnificência da segunda. 873
96. Aqueles que são amigos dos prazeres da vida presente passam dos pensamentos às faltas. Pois, levado por um julgamento inconsiderado, eles desejam colocar em palavras iníquas e em obras ímpias quase todos os seus pensamentos passionais. Mas os que se esforçam por levar a vida ascética vão das faltas aos maus pensamentos ou a certas palavras infelizes e nocivas. Pois se os demônios vêem tais homens terem prazer em insultar, ou em dizer palavras odiosas e intempestivas, ou rirem como não se deve, ou se irritarem desmesuradamente, ou desejarem a glória vã e vazia, então eles entram em acordo todos juntos para atacá-los. Tomando sobretudo a vanglória para suscitar sua própria malícia, e saltando por ela como por uma janela escura, eles devastam a alma. É preciso, portanto, que aqueles que querem viver a multitude das virtudes não busquem a glória, não encontrem muita gente, não saiam com freqüência, nem façam aos outros reprimendas que os firam, mesmo que os reprimidos o mereçam, nem falem demais, mesmo que possam. Pois a abundância de palavras, relaxando noso intelecto além da medida, não apenas o torna inapto para o trabalho espiritual, mas ainda o entrega ao demônio da acídia que, esgotando-o além da conta, o entrega ao demônio da tristeza, e deste ao da cólera. É preciso assim que o intelecto se consagre sempre à observância dos santos mandamentos e à lembrança profunda do Senhor de glória. Pois foi dito: “Quem guarda os mandamentos não conhece a linguagem do mal [123]”, ou seja, não se voltará para pensamentos ou palavras vis. 874
97. Quando o coração, com uma dor abrasadora, recebe as flechas que lhe enviam os demônios, a ponto de o combatente ter a impressão de que ele próprio recebe estas flechas, a alma sofre tentando evitar as paixões, porque ela começa a se purificar. Pois se ela não sofresse grandemente com a impudência do pecado, ela não poderia se alegrar outro tanto com a bondade e a justiça. Assim, aquele que quer purificar seu coração deve abraçar continuamente a lembrança do Senhor Jesus, fazendo disto seu único estudo e seu trabalho constante. Pois quem quer se livrar de sua podridão não deve ora orar ora não, mas consagrarse todo o tempo à oração guardando seu intelecto, mesmo quando estiver fora da casas de oração. Com efeito, assim como quem quer purificar o ouro, se deixar extinguir-se por um instante o fogo da fornalha, devolve a dureza à matéria que está tentando purificar, também aquele que às vezes se lembra de Deus, às vezes o esquece, perde, cada vez que para, aquilo que pensou ter adquirido com a prece. A característica do homem que ama a virtude é consumir permanentemente tudo o que há de terrestre em seu coração pela lembrança de Deus, a fim de que, fazendo devorar o mal pelo fogo da boa memória, a alma volte perfeitamente, com uma glória ainda maior, ao seu esplendor natural.
98. A impassibilidade não consiste em não sermos combatidos pelos demônios, pois então, como dizia o Apóstolo, nós deveríamos sair deste mundo [124], mas sim que nos tornemos inatacáveis quando eles nos combatem. Pois os combatentes que trazem armaduras de ferro recebem as flechas de seus adversários, escutam o ruído dos tiros, até mesmo enxergam as flechas que lhes são enviadas, mas não são feridos, graças à solidez de suas armaduras. É graças ao ferro que os protege que eles se tornam inatacáveis 875
873[122] Cf. Mateus IV, 8-9. 874[123] Eclesiastes VIII, 5. 875[124] Cf. I Coríntios V, 10.
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quando são combatidos. Quanto a nós, trazendo a armadura da santa luz e o elmo da salvação por todas as boas obras, destroçamos as falanges tenebrosas dos demônios [125]. Pois não é apenas não fazendo o mal que se alcança a pureza, mas rejeitando o mal com todas as nossas forças, desejando sempre o bem. 876
99. Quando um homem de Deus venceu quase todas as paixões, ainda restam dois demônios que lutam contra ele. Um, que o leva de um grande amor a Deus a um zelo intempestivo, perturba a alma a tal ponto que este homem não quer que nenhum outro agrade a Deus tanto quanto ele. O outro, por meio de um certo aquecimento, suscita nele o desejo por uma relação carnal, perturbando o corpo. Isto acontece primeiro ao corpo pelo fato de ser o prazer próprio da natureza e por servir à procriação (mas, também por isto, ele pode ser facilmente vencido), mas também porque Deus o permite. De fato, quando o Senhor vê na plenitude se suas forças – por estar cumulado de virtudes – um dos que sustentam o combate, ele permite às vezes que ele seja manchado por esse demônio, a fim de que ele se considere mais vil do que todos os homens que vivem no mundo. Sem dúvida, ou bem o tiroteio da paixão sucede às boas ações, ou bem ele as precede, a fim de que, pelas premissas ou pelas conseqüências da paixão, o tiroteio faça a alma parecer inútil, por maiores que sejam suas boas ações. Nós combatemos o primeiro destes demônios com muita humildade e muito amor; e combatemos o segundo pela temperança, pela serenidade, pelo pensamento profundo da morte, a fim de que, sentindo a energia do Espírito Santo, nos elevemos, no Senhor, acima dessas paixões.
100. Nós que tomamos parte do santo conhecimento devemos prestar conta de nossa estupidez, mesmo involuntária. “O Senhor marcou, disse o divino Jó, mesmo aquilo que eu transgredi sem querer [126]”, e com justiça. Pois se alguém não deixa de se lembrar de Deus nem jamais negligencia seus santos mandamentos, jamais cairá em falta, voluntária ou involuntariamente. É preciso assim dirigir ao Mestre uma ardente confissão de nossas faltas, mesmo involuntárias, vale dizer, acrescentar um trabalho à regra habitual (pois não nos é possível, uma vez que somos homens, deixar de cometer faltas humanas), até que nossa consciência, com lágrimas de amor, seja cumulada com a certeza de que suas faltas lhe são perdoadas. Com efeito, foi dito: “Se confessarmos nossos pecados, ele é tão fiel e justo que nos perdoará e nos purificará de toda injustiça [127]”. Devemos, portanto, estar constantemente atentos ao sentido da confissão, para que nossa consciência não se engane imaginando já ter se confessado o bastante a Deus. Pois mais vale o julgamento de Deus do que nossa consciência, mesmo se com plena certeza não nos demos conta de nada, como nos ensina o sábio Paulo, ao dizer: “Eu não julgo a mim mesmo. Pois eu posso não ter consciência de nenhuma falta, mas nem por isto estar justificado. Quem me julga é o Senhor [128]”. Com efeito, se não confessarmos também estas faltas, sentiremos em nós um medo secreto no momento de nosso êxodo. Se amamos ao Senhor, devemos rezar, para perdermos todo o medo. Pois quem tiver algum medo, não passará com liberdade diante dos príncipes do Tártaro. Pois o medo da alma é para eles como que um defensor de sua própria malícia. Mas a alma que se regozija no amor a Deus, na hora de sua libertação, é transportada pelos anjos da paz, acima de todas as coortes das trevas. Pois ela é como que carregada nas asas do amor espiritual: ela tem em si sem descanso o amor, a plenitude da lei [129]. É por isso que, na vinda do Senhor, aqueles que possuem uma tal liberdade confiante ao partir desta vida, serão elevados juntos com todos os santos. Mas os que tiverem medo, ainda que pouco, no momento da morte, serão deixados para trás com a multitude dos outros homens, e serão submetidos ao 877
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876[125] 877[126] 878[127] 879[128] 880[129]
Cf. Efésios VI, 3 e ss. Jó XIV, 17. I João I, 9. I Coríntios IV, 4. Cf. Romanos XIII, 10.
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TI, VII –DIÁDOCO DE FOTICÉIA – Discurso ascético, dividido em cem capítulos práticos sobre o conhecimento e o discernimento espiritual.
Juízo, a fim de que, provados no fogo do Julgamento, recebam da bondade de Deus e de nosso rei Jesus Cristo a sorte que lhes for devida segundo seus atos. Pois ele é o Deus de justiça e a ele pertencem, despejada sobre nós que o amamos, a doçura de seu Reino na eternidade e por todos os séculos dos séculos. Amém.
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TEODORO DE EDESSA Nosso Pai entre os Santos Teodoro viveu sob os reinados de Heraclius e de Constantino Pogonate, por volta do ano 660. De início ele levou o combate da vida ascética no mosteiro de São Sabas, depois se tornou bispo da cidade de Edessa. Numerosos foram os que testemunharam seus ensinamentos e que deles receberam sua salvação. Ele partiu para a morada celeste num 19 de julho, conforme atesta o livro que relata sua vida. Não sabemos com precisão os escritos que ele deixou. Entretanto, inserimos em nossa coletânea de textos népticos estes cem capítulos compostos por ele. Aos que os lerem com atenção, eles oferecerão numerosos frutos da santa népsis e do socorro espiritual; quem busca a salvação, que venha e colha.
No final destes cem capítulos, e ainda sob o nome de Teodoro, nós acrescentamos o Théorétikon, tratado sobre a contemplação. Considerando que este tratado tem uma visão néptica semelhante e procede de um estilo análogo, concluímos por estas semelhanças e sinais que seu verdadeiro autor seja mesmo Teodoro.
A figura de Teodoro de Edessa, na antologia filocálica, é singular. Não apenas os dois textos a ele atribuídos não são obra sua, mas sua própria identidade é problemática, pois existem dúvidas quanto à autenticidade de seu biógrafo (chamado de Basílio de Emessa) e quanto à própria veracidade de sua biografia. É possível até que Teodoro tenha sido monge no mosteiro de São Sabas, perto de Jerusalém, e que tenha se tornado bispo de Edessa, na Mesopotâmia, na primeira metade do século IX. Porém, mais do que uma soma de testemunhos pessoais, a antologia filocálica é a transmissão milenar de uma experiência comum e o testemunho de uma progressão. Vistas por este ângulo, as duas obras que aqui estão ligadas ao nome de Teodoro são exemplares.
Os Cem Capítulos não passam de uma paráfrase livre de textos de Evagro: uma apologia do monge, devotada à beleza e à bondade originais, ao respeito fiel ao pai espiritual, à pobreza, ao silêncio, à memória da morte, à lembrança de Deus, à prece pura, à herança do Reino, à luz “dulcíssima” na qual estão reunidas a solidão e a fraternidade para selar uma à outra no coração do “santo amor”. Existe aí
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como que uma soma dos ensinamentos fundamentais transmitidos desde o século V pela via hesiquiasta: trata-se, assim, menos de um plágio literário do que de um exercício de transmissão. O Théorétikon, ou discurso “sobre a contemplação”, é de outra extirpe. Ele só retoma o curso da ascese para conduzi-lo à incandescência da deificação. A humildade é doravante integrada naquilo que é aqui chamado de “tensão total e contínua para a beleza primeira”. O conhecimento cristão é sobrenatural por definição. Ele acolhe a beleza das criaturas apenas para remontar imediatamente para a causa em ação de graças, e se comprazer no encantamento e na adoração do Criador. Ele é dedicado a este esplendor envolvente que o Theorétikon chama de “fluxo divino” ou de “círculo que se inicia no mesmo e que termina no mesmo”, ou seja, à contemplação da luz incriada: o testemunho reiterado desses místicos bizantinos que foram contemporâneos do fim histórico de um Império milenar, e de que autor do discurso parece ser um epígono, talvez até um epígono posterior ao fim do Império. Seu texto seria então o mais recente da antologia.
De qualquer maneira, os cem capítulos e o discurso “sobre a contemplação” parecem bem ser os dois pólos da experiência hesiquiasta, dos primeiros movimentos dos anacoretas egípcios, nos séculos IV e V, até o último testemunho, trazido pelos místicos bizantinos do norte da Grécia, no século XIV. Certamente, Teodoro não passa aqui de um pseudônimo. Mas entre as fundações e a chave da abóboda, seu nome mesmo designa o essencial: o “dom de Deus”.
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TI, VII – TEODORO DE EDESSA – Cem capítulos.
CEM CAPÍTULOS 1. Nós que, pela graça do bom Deus, renunciamos a Satanás e às suas obras e nos unimos a Cristo pelo banho da regeneração e pela profissão monástica daí para diante, conservemos seus mandamentos. Não apenas a dupla promessa, mas também a dívida natural, o exigem de nós. Deus nos criou bons na origem, e é isto o que devemos ser. Mesmo que o pecado que penetrou em nós devido à nossa negligência nos tenha levado àquilo que é contra a natureza, nós fomos chamados pela abundante compaixão de nosso Deus, e fomos renovados pela paixão do Impassível. Nós fomos resgatados pelo sangue de Cristo [1], libertados da antiga transgressão transmitida pelo ancestral. Portanto, não existe nada de grande em nós por termos nos tornado justos. Mas decair da justiça continua sendo para nós uma coisa lamentável, digna de ser condenada. 881
2. Assim como uma boa obra, feita sem a fé reta, é inteiramente morta e ineficaz, também a simples fé, sem as obras da justiça [2], não nos livrará do fogo eterno. Pois diz o Senhor: aquele que me ama, observa meus mandamentos [3]; esforcemo-nos para por em prática seus mandamentos, a fim de alcançar a vida eterna. Mas se desdenharmos a observância desses preceitos, aos quais obedece toda a criação, como poderemos nos chamar de fiéis? Nós somos honrados acima de todas as criaturas, mas somos os únicos que desobedecem à ordem d’Aquele que nos criou, e não expressamos nosso reconhecimento diante do Benfeitor. 882
883
3. Observando os mandamentos de Cristo, não lhe damos nada. Ele não precisa de nada. É ele que nos dá seus bens. Mas nós nos dedicamos ao serviço de nós mesmos, e suscitamos em nós a vida eterna e o gozo dos bens inexprimíveis.
4. Devemos evitar e odiar aqueles que se opõem a nós quando procuramos viver conforma os mandamentos, mesmo que sejam nosso pai ou nossa mãe, para que não ouçamos: “Aquele que ama a seu pai ou sua mãe, ou qualquer pessoa, mais do que a mim, não é digno de mim [4]”. 884
5. Devemos nos dedicar com todas as nossas forças para trabalharmos nos mandamentos do Senhor, a fim de não permanecermos amarrados pelos laços, tão difíceis de desatar, dos maus desejos e das paixões que corrompem a alma [5], e para que não seja pronunciado contra nós o julgamento da figueira estéril: “Cortea, para que ela não ocupe lugar inutilmente [6]”. “Quem quer que não dê bom fruto, foi dito, será cortado e atirado ao fogo [7]”. 885
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881[1] 882[2] 883[3] 884[4] 885[5] 886[6] 887[7]
Cf. I Coríntios VI, 20. Cf. Tiago II, 14-26. João XIV, 15-23. Mateus X, 37. Cf. Provérbios V, 23. Lucas XIII, 7. Mateus III, 10.
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TI, VII – TEODORO DE EDESSA – Cem capítulos.
6. Quem é vencido pelos desejos e prazeres e retorna ao mundo, logo cairá nas armadilhas do pecado. Um pecado cometido uma vez é como um fogo na folhagem seca, uma pedra numa vertente, uma enchente que alarga as passagens. Todas estas imagens evocam a perdição daquele que se entrega ao pecado. 7. Uma vez que vai contra a natureza, a alma, tornada selvagem, crivada dos espinhos do prazer, torna-se a morada de feras estranhas, conforme foi dito: “Os centauros repousarão aí, o porco espinho fará nela seu ninho e os demônios aí encontrarão os centauros [8]”, que são as diversas paixões da infâmia. Mas a partir do momento em que ela retornar àquilo que é conforme a natureza (pois ela pode, se quiser, por estar unida à carne), a partir do momento em que ela for adoçada à força de aplicação e diligência e que ela viva na lei de Deus, as feras que antes se aninhavam nela fugirão. Os anjos que cuidam de nossa vida virão e farão deste retorno um dia de glória [9]. E a graça do Espírito Santo permanecerá nela, ensinando-a a conhecer o modo de se proteger e de avançar sempre em direção às alturas. 888
889
8. Os Padres chamam a oração de arma espiritual. Não podemos ir para o combate sem ela, para não sermos capturados e oprimidos no país dos inimigos. Não é possível adquirir a prece pura sem se agarrar a Deus com um coração direito. Pois quem dá a oração àquele que ora é o mesmo que ensina o conhecimento ao homem [10]. 890
9. Não depende de nós que as paixões atormentem nossa alma e nos combatam. Mas está em nosso poder fazer com que seus pensamentos não se demorem em nós nem nos perturbem. No primeiro caso não existe pecado, porque isto não depende de nós. No segundo caso, se resistirmos corajosamente e formos vencedores, seremos coroados. Mas se formos vencidos pela displicência e a preguiça, receberemos os castigos.
10. Todas as paixões nascem de três paixões fundamentais: o amor aos prazeres, o amor ao dinheiro e o amor à vanglória. Cinco outros espíritos de malícia as seguem, dos quais provém todo o enxame das paixões e as múltiplas formas de vícios. Portanto, aquele que vencer as três primeiras que conduzem as outras, derrubará as outras cinco, e a seguir todas as demais paixões.
11. Tudo o que fizermos sob o efeito de uma paixão, será também lembrado pela alma com paixão. Mas quando as lembranças apaixonadas desaparecem do coração e cessam de assaltá-lo, este é o sinal do perdão das faltas passadas. Pois enquanto a alma vive na paixão, reconhecemos nela o domínio do pecado.
12. As paixões corporais e materiais diminuem e perecem naturalmente com os sofrimentos do corpo. Mas as paixões da alma, as paixões invisíveis, desaparecem com a humildade, a doçura e o amor.
888[8] Isaías XXXIV, 11-14. 889[9] Cf. Lucas XV, 17. 890[10] Salmo XCIV, 10.
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TI, VII – TEODORO DE EDESSA – Cem capítulos.
13. A temperança e a humildade consomem o desejo passional. O amor suaviza o ardor abrasador. Uma oração intensa e a lembrança de Deus reúnem o pensamento que vagueia. Assim são purificadas as três partes da alma. Apontando esta via reta, o divino apóstolo disse: “Busquem a paz com todos e a santificação, sem o que ninguém verá o Senhor [11]”. 891
14. Alguns se perguntam se são os pensamentos que suscitam as paixões, ouse são as paixões que suscitam os pensamentos. Uns dizem uma coisa, outros outra. Quanto a mim, afirmo que os pensamentos provêm das paixões. Pois se as paixões não estivessem presentes na alma, seus pensamentos não a perturbariam.
15. É comum que os demônios, que nos combatem sempre, se oponham às virtudes que nos fortificam e nos convém, mas dêem passo livre a tudo o que enfraquece e é inoportuno. Eles empurram aqueles que progridem na submissão a tentar os labores dos hesiquiastas. Por outro lado, eles sugerem aos hesiquiastas e anacoretas o desejo pela regra cenobítica. Eles utilizam este método para cada virtude. Mas não ignoremos seus pensamentos, saibamos ver o bem que é feito a seu tempo e com medida, e inversamente conheçamos tudo o que é nocivo e que é feito sem medida e fora de seu tempo.
16. Aqueles que estão no mundo e que vivem na própria matéria das paixões são combatidos e assaltados pelos demônios nas ações. Mas os que vivem nos desertos e que pouco agem são atormentados pelos pensamentos. O segundo combate é muito mais difícil do que o primeiro. Aquele, por intermédio do que fazemos, está ligado ao tempo, ao lugar e à necessidade. O outro, o do intelecto, é extremamente fluído, difícil de conduzir. Mas para o combate nesta luta incorpórea, nos foi dada a prece pura, e recebemos por lei recitá-la continuamente [12]. Ela fortalece o intelecto e o prepara para combate, pois ela pode ser exercida mesmo sem o corpo. 892
17. O divino apóstolo referiu-se {a extinção das paixões quando disse que os discípulos de Cristo crucificaram a carne com as paixões e os desejos [13]. Com efeito, quando fazemos morrer as paixões e desaparecer os desejos, e submetemos ao Espírito as necessidades da carne, recebemos a cruz e seguimos a Cristo [14]. Pois a anacorese não é outra coisa do que a extinção das paixões e a manifestação da vida secreta em Cristo [15]. 893
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18. Aqueles que são atormentados pelos levantes deste corpo de morte e renunciam a combatê-los todo o tempo, não culpem a carne, mas a si mesmos. Pois se eles não o tivessem fortalecido, atendendo ao seu desejo [16], não seriam atormentados assim. Ou então eles não souberam ver os que se crucificaram com as 896
891[11] 892[12] 893[13] 894[14] 895[15] 896[16]
Hebreus XII, 14. Cf. I Tessalonicenses V, 17. Gálatas V, 24. Mateus XVI, 24. Cf. Colossenses III, 3s. Cf. Romanos XIII, 14.
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paixões e os desejos [17] e carregaram a morte de Jesus em sua carne mortal [18] , para que esta não se opusesse a eles, mas que trabalhasse com eles para o bem, dócil e submetida à lei de Deus. Que eles façam o mesmo, e desfrutarão do mesmo repouso. 897
898
19. Todo consentimento do pensamento ou toda inclinação prazerosa para uma desejo ao qual ele renunciou é um pecado para o monge. O pensamento começa por obscurecer o intelecto em sua parte sujeita à paixão, depois a alma se inclina para o prazer, não suportando mais o combate. É isto que chamamos assentimento, que é um pecado, como foi dito. Se quisermos contemporizar com ele, começa aquilo que chamamos de paixão. A seguir chega-se pouco a pouco ao ato efetivo do pecado. É por isso que o profeta glorificou aqueles que atiraram contra o rochedo os filhos da Babilônia [19]. Para quem tem inteligência e sabedoria, a alusão é clara. 899
20. Os anjos, que servem ao amor e à paz, se regozijam com nosso arrependimento [20] e com nosso progresso na virtude. Eles se apressam em nos cumular com contemplações espirituais, e abrem para nós tudo o que há de bom. Inversamente, os demônios, que suscitam a cólera e a malícia, se regozijam quando a virtude diminui, e fazem todo o esforço para inclinar nossas almas para imaginações infames. 900
21. A fé é a bondade bem organizada. Ela gera em nós o temor a Deus. O temor a Deus nos ensina a observação dos mandamentos, dita “ativa”. Da observação ativa nasce a preciosa impassibilidade. O filho da impassibilidade é o amor, que cumpre, concentra e guarda todos os mandamentos [21]. 901
22. Enquanto estão em bom estado, os sentidos sabem qual enfermidade toma o corpo. Quem não consegue discernir isto sofre de insensibilidade. Também o intelecto, enquanto mantém a salvo sua própria energia, conhece suas forças. Ele sabe aonde é atacado mais duramente pelas paixões, e dirige para esta parte o grosso da luta. Mas isto não é fácil se ele perde seu tempo na insensibilidade; então ele se parece com alguém que luta à noite, e não vê os pensamentos que o atacam.
23. Quando nossa razão se aplica firmemente à contemplação das virtudes, quando nosso desejo não tende senão para esta e para Cristo que no-la dá, quando nosso ardor está armado contra os demônios, então nossas forças agem de acordo com a natureza.
24. Toda alma racional tem três partes, segundo Gregório o Teólogo. Ele chama a virtude formada na razão de inteligência, consciência e sabedoria; a que se forma no ardor, de coragem e paciência; a que é 897[17] 898[18] 899[19] 900[20] 901[21]
Cf. Gálatas V, 24. Cf. II Coríntios IV, 10. Cf. Salmo CXXXVII, 9. Cf. Lucas XV, 7. Cf. Romanos XIII, 10.
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formada no desejo, de amor, castidade e temperança. Por todas essas virtudes reparte-se a justiça, pronta a agir quando for preciso. Por meio da inteligência, ela combate as potências contrárias e defende as virtudes; por meio da castidade, ela vê as coisas impassivelmente; por meio do amor, ela leva cada qual a amar a todos como a si mesmo; pela temperança, ela poda os prazeres; pela coragem e a paciência, ela se arma para os combates invisíveis. Esta é a harmonia do instrumento melodioso da alma.
25. Quem se dedica à castidade e deseja a pureza bem-aventurada, que sem medo de errar podemos chamar de impassibilidade, deve bater e dominar a carne [22], pedindo a graça divina com um pensamento humilde, e assim obterá o que deseja. Mas quem dá ao corpo um excesso de alimentos sofrerá com o espírito da prostituição. Do mesmo modo que muita água extingue a chama, a fome e a temperança unidas à humildade da alma afastam a inflamação da carne e as imaginações infames. 902
26. Você que ama a Cristo, afaste sempre de si a paixão do ressentimento. Jamais dê ocasião para a inimizade. Pois o ressentimento faz seu ninho no coração, como o fogo que se esconde num telhado de palha. Ao contrário, reze ardentemente por quem lhe afligiu, e faça o bem a ele, se sua mão puder, a fim de que sua alma seja liberta da morte, e para que suas palavras sejam livres no momento da prece. 27. Na alma dos humildes repousará o Senhor. Mas no coração dos orgulhosos moram as paixões da infâmia. De fato, nada lhes dá mais força contra nós do que os pensamentos altaneiros. E nada desenraiza melhor as ervas daninhas da alma do que a bem-aventurada humildade, da qual se diz com razão que destrói as paixões.
28. Que sua alma se purifique dos maus desejos, e que ela se ilumine com os pensamentos mais nobres. Tenha sempre no espírito o que foi dito: um coração que ama o prazer é uma prisão e uma cadeia no tempo do êxodo. Mas um coração que ama o padecer é uma porta aberta. Em verdade, os anjos orientam e dirigem para a vida bem-aventurada as almas puras que deixam o corpo. Mas as almas manchadas e que não se arrependem, pois bem, os demônios as tomarão.
29. Bela é a cabeça ornada com um diadema precioso, pedras das Índias e pérolas brilhantes. Mas incomparavelmente mais bela é a alma rica do conhecimento de Deus, iluminada pelas contemplações mais brilhantes. Ela é a morada do Espírito Santo. Quem poderá descrever com justiça a beleza desta alma bem-aventurada?
30. Não deixe que a irritação e a cólera habitem em você. Foi dito que um homem irascível não é um homem nobre [23]. Mas a sabedoria repousará no coração dos mansos. Se a paixão da cólera dominar a sua alma, os que vivem no mundo serão mais fortes do que você e você será confundido por não permanecer na solidão de um monge experiente. 903
902[22] Cf. I Coríntios IX, 27. 903[23] Cf. Provérbios XI, 25.
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31. Em todas as tentações e todos os combates, faça da oração sua arma invencível, e você vencerá pela graça de Cristo. Que sua prece seja pura, como nos ensinou um mestre sábio ao dizer: “Quero que os homens orem em todos os lugares, tendo as mãos piedosas, sem cólera nem disputas [24]”. Quem negligencia esta oração será entregue às tentações e às paixões. 904
32. Foi escrito que o vinho alegra o coração do homem [25]. Mas você, que está votado ao luto e às lágrimas, decline desta alegria e regozije-se com os dons do Espírito. Se é o vinho que o alegra, você viverá com pensamentos infames e com ele será conduzido a muitas tristezas. 905
33. Compreenda que não é bebendo vinho que se celebram as festas, mas renovando o intelecto e purificando a alma. Enchendo seu ventre de comidas e de vinho, você só conseguirá irritar aquele que preside a festa.
34. Foi-nos ordenado velar nas salmódias, nas orações e nas leituras, e em especial quando celebramos as festas. Pois o monge que vela aguça seu pensamento em vista das contemplações nas quais a alma encontra seu bem. Excesso de sono, ao contrário, torna pesado o intelecto. E quando você vela, procure não se dedicar a leituras vazias ou a pensamentos maliciosos. É melhor deitar-se do que velar falando ou pensando em vão.
35. Aquele que leva uma serpente em seu seio e o que nutre pensamentos maliciosos em seu coração perecerá, um porque fere seu corpo com uma picada venenosa, outro porque coloca em sua alma um veneno mortal. Destruamos o mais depressa possível as ninhadas de víboras, e não levemos pensamentos de malícia no coração, para não sofrermos amargamente.
36. A alma pura é um vaso de eleição, um jardim fechado, uma fonte selada [26], um trono dos sentidos. É justo chamá-la assim. Mas a alma manchada de impurezas está cheia do mau odor do esgoto. 906
37. As belas vestimentas, o ventre saciado, os encontros nocivos, enchem a alma de pensamentos maliciosos. Apreendi isto tanto por experiência como pela prática dos antigos.
38. Que o desejo pelo dinheiro não habite a alma dos ascetas. Um monge que possui riquezas é como um navio que se enche de água, batido pelas ondas dos cuidados, e que afunda no abismo da tristeza. O amor
904[24] I Timóteo II, 8. 905[25] Salmo CIV, 15. 906[26] Cânticos IV, 12.
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pelo dinheiro é um mal que engendra múltiplas paixões. Com justiça, foi chamado de raiz de todos os males [27]. 907
39. A pobreza e o silêncio são um tesouro escondido no campo [28] da vida monástica. Assim, quando você partir, venda tudo o que possui, dê o dinheiro aos pobres [29], adquira este campo, descubra seu tesouro, e guarde-o para si em um refúgio inviolável, a fim de se tornar rico desta riqueza que nunca se esgota. 908
909
40. Se você vive com um pai espiritual e sente toda a ajuda que dele recebe, que ninguém o separe de seu amor e da vida em comum. Não o julgue em nada, não o critique, não o ofenda, não diga mal algum dele, não escute a quem o diminui, não se aproxime de quem o insulta, a fim de não provocar o Senhor e não ser por ele apagado do livro dos vivos [30]. 910
41. Chega-se à submissão ao cabo de um longo esforço por meio da renúncia, conforme aprendemos. Mas quem a procura deve cercar-se de três armas, vale dizer, a fé, a esperança e a caridade [31] venerável e divina, a fim de que, protegido por elas, sustente o bom combate e receba a coroa da justiça [32]. 911
912
42. Não seja o juiz das obras de seu pai espiritual, mas cumpra com os mandamentos. Pois é costume dos demônios mostrarem a você as suas falhas para tornar seus ouvidos surdos às suas palavras, ou para afastá-lo da luta como um fraco e preguiçoso, ou esgotá-lo até o ponto que você não tenha mais do que pensamentos sem fé, relaxando em você todas as formas da virtude.
43. Quem desobedece aos comandos paternos transgride os próprios termos da promessa. Mas quem acolhe em si a obediência imola seu próprio querer sob a espada da humildade, cumprindo, no que lhe diz respeito, aquilo que Cristo pediu a muitos mártires.
44. Nós sabemos, por experiência própria e por termos aprendido, que os demônios, os inimigos de nossa vida, são extremamente ciumentos em relação àqueles que se submetem aos pais espirituais. Eles rangem os dentes contra eles e imaginam toda sorte de intrigas. O que não fazem, o que não sugerem, para arrancá-los ao abraço paterno? Eles inventam bons pretextos, eles fomentam crises, eles suscitam a raiva contra os pais, eles apresentam suas admoestações como se fossem castigos, eles cravam suas censuras como se fossem flechas agudas. Como, dizem eles, você que é livre, se tornou o servidor, o escravo de um mestre impiedoso? Até quando você se cansará sob o jugo da servidão e ficará provado de ver a luz da liberdade? Eles colocam em primeiro lugar o acolhimento aos estrangeiros, a visita aos doentes, os cuidados com os pobres. Depois eles exaltam a mais extrema hesíquia, o espetáculo da solidão, e semeiam 907[27] 908[28] 909[29] 910[30] 911[31] 912[32]
Cf. I Timóteo VI, 10. Cf. Mateus XIII, 44. Cf. Mateus XIX, 21. Cf. Êxodo XXXII, 33; Salmo LXIX, 29. Cf. I Coríntios XIII, 13. Cf. II Timóteo IV, 7-8.
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toda espécie de ervas daninhas no coração do combatente da piedade. Mas eles não buscam outra coisa do que fazê-lo sair do aprisco espiritual, a se afastar do porto calmo e se atirar no mar agitado pelas ondas em que perecem as almas. Então eles o tornam cativo sob seu poder e o fazem cumprir sua vontade perversa.
45. Você que vive submetido a um pai espiritual, não ignore as armadilhas dos inimigos e dos adversários. Não esqueça sua profissão de fé e sua promessa a Deus, não se deixe vencer pelos excessos, não tema as censuras, nem as ironias e as gozações, não ceda aos transbordamentos dos pensamentos maliciosos, não fuja da severidade paterna, não desonre o nobre jugo da humildade sob a audácia da auto-suficiência e da presunção. Tenha em seu coração a palavra do Mestre: “Quem perseverar até o fim será salvo [33]”. Leve com paciência o curso que lhe foi proposto, tendo sempre diante dos olhos a Jesus, fundamento e cumprimento da fé [34]. 913
914
46. Quando o ourives funde o ouro, ele o torna mais puro. O mesmo acontece com o monge noviço que se entrega aos combates da submissão e ao fogo das duras provas da vida em Deus. Quando, suportando as penas e exercendo a paciência, ele aprende a obedecer e refaz seus hábitos, então ele descobre a humildade, e chega a um estado luminoso, tornando-se digno dos tesouros celestes, da vida que não morre e do fim bem-aventurado, de onde fogem a dor e os gemidos [35] e aonde crescem a alegria e o regozijo contínuos. 915
47. Uma fé reta e profunda engendra o temor a Deus, e este nos ensina a observar os mandamentos. Com efeito, foi dito que temer é observar os mandamentos. Da observação dos mandamentos nasce a virtude ativa, que é o começo da virtude contemplativa. Seu fruto é a impassibilidade. E é da impassibilidade que nos vem o amor, do qual fala o discípulo bem-amado: “Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele [36]”. 916
48. Verdadeiramente bela e boa é a vida do monge! Bela e boa, por ser vivida segundo as condições e as leis colocadas por aqueles que a fundaram e dirigem, inspirados pelo Espírito Santo. Quem combate por Cristo deve, com efeito, ter uma existência imaterial, sem tomar parte de nenhum pensamento ou atividade deste mundo, como disse o Apóstolo: “Ao se alistar no exército, ninguém se deixará envolver pelas questões da vida civil, se quiser satisfazer a quem o alistou no regimento [37]”. 917
49. O monge deve ser imaterial, impassível, sem nenhum mau desejo, sem preguiça, sem embriagar-se de vinho, não ser descuidado ou negligente, não amar o dinheiro, nem o prazer, nem a vanglória. Sem se afastar desses vícios, ninguém consegue atingir a vida angélica. Mas para os que conseguem levar com
913[33] 914[34] 915[35] 916[36] 917[37]
Mateus X, 22. Cf. Hebreus XII, 1-2. Isaías XXXV, 10. I João IV, 16. II Timóteo II, 4.
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sucesso a vida angélica, seu jugo é bom e a carga é leve [38], pois a esperança divina sustenta e alivia tudo. Uma vida assim é doce. A ação é alegre. Esta é a boa parte; ela não será tirada [39] à alma que a possui. 918
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50. Você que deixou os cuidados da vida e entrou para o combate da ascese, não deseje possuir riquezas para distribuí-las aos pobres. Esta é mais uma ilusão do Maligno: fazendo o intelecto se ocupar de muitas coisas, ele o conduz à vaidade. Não tenha mais do que pão e água, para ter o salário da hospitalidade. E se você não tiver nada, você ainda poderá acolher o hóspede com toda a bondade de sua simples intenção, conversar com ele, consolá-lo, e conseguir assim o salário da hospitalidade. No Evangelho você tem o testemunho do Senhor: a viúva que, com seus dois vinténs, ultrapassou as intenções e o poder dos ricos.
51. Isto vale para os que vivem na hesíquia. Mas para aqueles que vivem submetidos a um pai espiritual, que não tenham senão uma coisa no espírito: não transgredir suas ordens em nada. Se conseguirem isto, todo o resto ficará bem. Inversamente, se eles se afastarem da rigorosa disciplina desta vida, eles serão incapazes de qualquer forma de virtude ou de conduta espiritual.
52. Você que ama a Cristo, receba de mim ainda este conselho: ame o exílio, afastado das circunstâncias em que vive seu próprio país. Não se encarregue dos cuidados com os parentes nem com a amizade dos seus próximos. Fuja da vida na cidade, e persevere no deserto. Diga com o profeta: “Eis que eu fugi para longe e fiz do deserto a minha moradia [40]”. 920
53. Procure os lugares do mundo que são isolados e distantes. Mesmo que lá tudo seja difícil, mesmo que lhe faltem as coisas necessárias, não tema. Se os inimigos o cercam como abelhas [41] e marimbondos pérfidos, se o assaltam e atormentam com toda sorte de agressões e pensamentos, não se assuste, e não se deixe levar a ouvi-los, não fuja da arena de combate. Antes seja paciente e persevere, permanecendo firme sob o encanto das palavras do seu cântico: ”Eu perseverei no Senhor. Ele veio a mim e atendeu minha prece [42]”. Então você verá as grandes coisas de Deus, a proteção, a solicitude, e todos os outros caminhos da providência que leva à salvação. 921
922
54. Se você ama a Cristo, seus amigos devem ser pessoas que o ajudam e partilham de sua vida. Pois foi dito: Que seus amigos sejam homens de paz, irmãos de espírito, pais em santidade, de quem disse o Senhor: “Minha mãe e meus irmãos são os que fazem a vontade do meu Pai que está nos Céus [43]”. 923
918[38] 919[39] 920[40] 921[41] 922[42] 923[43]
Cf. Mateus XI, 30. Cf. Lucas X, 42. Salmo LV, 8. Cf. Salmo CXVIII, 12. Salmo XL, 2. Mateus XII, 50.
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55. Não sinta desejo por alimentos variados e suntuosos, nem pelo luxo mortal. Pois foi dito: “Quem vive no luxo, ainda que vivo, está morto [44]”. Recuse satisfazer-se com esta abundância, se você puder. Com efeito, foi escrito: “Não se deixem enganar pela saciedade do ventre [45]”. 924
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56. Recuse as estadias contínuas fora de sua cela, se você escolheu viver na hesíquia, pois elas fazem muito mal. Elas lhe roubam a graça, obscurecem a inteligência, esgotam o desejo. Por isso foi dito: “O turbilhão da concupiscência mina a alma ingênua [46]”. Rompa com as relações numerosas. Que seu intelecto não esteja atarefado, e que ele não se desvie do curso da hesíquia. 926
57. Sentado em sua cela, não deixe que seu trabalho perca a razão de ser, enchendo-o de ócio. Foi dito que quem viaja sem objetivo pena em vão. Trabalhe naquilo que é bom, reúna seu intelecto, tenha sempre diante dos olhos a hora da morte, lembre-se da vaidade do mundo, do quanto ela é enganadora, impotente e nula. Considere os perigos do terrível julgamento, quando os demônios, percebendo o que lhes é devido virão para revelar nossos atos tais como foram, as razões e os desejos que eles próprios provocaram e que nos fizeram assumir como nossos. Lembre-se dos tormentos do inferno, e de como as almas estão lá encerradas. Mas lembre-se também deste grande e formidável dia, falo do dia da ressurreição comum, do comparecimento diante de Deus, e da última decisão do juiz que ninguém pode enganar. Considere o castigo que surpreenderá os pecadores, a vergonha da consciência acusada, o descarte para o fogo eterno, para as trevas sem luz, aonde já não há nada para se ver, o choro e o ranger de dentes [47]. Examine todos os outros castigos. Não cesse de molhar com lágrimas seus joelhos, suas vestes, o lugar em que estiver. Já vi muitos que, pensando nessas coisas, choraram todas as lágrimas do seu corpo e purificaram maravilhosamente todas as potências da alma. 927
58. Mas lembre-se também dos bens reservados aos justos: sua presença à direita de Cristo, a bendita voz do Mestre, a herança do Reino dos céus, do dom que ultrapassa toda inteligência, esta luz doce, a alegria que não tem fim e que nenhuma tristeza poderá interromper, as moradas celestes, a vida com os anjos, e tudo o mais que foi prometido àqueles que reverenciam o Senhor.
59. Que estes pensamentos permaneçam com você, com você repousem e com você se levantem. Esteja atento para jamais esquecê-los. Aonde quer que você esteja não subtraia a seu intelecto esta lembrança, a fim de que os pensamentos maliciosos fujam e que você fique cheio da consolação divina. A alma que não está cercada das muralhas desta meditação não pode atingir a hesíquia. Ela será como uma fonte seca, e não merecerá seu nome.
60. Tal é o modo de vida que aqueles que escolheram a hesíquia devem tomar como lei: jejuar tanto quanto possível, velar, dormir sobre o solo e adotar todos os sofrimentos que preparam para o repouso 924[44] 925[45] 926[46] 927[47]
I Timóteo V, 6. Provérbios XXIV, 15. Sabedoria IV, 12. Cf. Marcos IX, 44; Mateus VIII, 12.
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futuro. Pois foi dito que os sofrimentos do tempo presente nada são comparados com a glória que se revelará a nós [48]. E, sobretudo, carregar em si a prece pura, por assim dizer incessante e contínua, aquela que é a fortaleza segura, o porto calmo, a salvaguarda das virtudes, o fim das paixões, a tensão da alma, a purificação do intelecto, o repouso dos que dormem, o consolo dos que choram. A prece é o reencontro com Deus, a contemplação do invisível, a certeza dos que desejam, a vida angélica, o impulso que leva ao bem, o fundamento daquilo que se espera [49]. Asceta, abrace com todas as suas forças esta rainha das virtudes. Reze noite e dia, quer você perca a coragem, quer esteja seu coração ardente. Reze com temor e com tremor, com o intelecto sóbrio e desperto, para que o Senhor receba sua oração. Foi dito que os olhos do Senhor estão sobre os justos e que seu ouvido está atento à sua oração [50]. 928
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61. Um dos antigos [51] disse com toda justiça que, dentre os demônios que nos atacam, a linha de frente do combate é formada pelos que nos dispõem à glutoneria, os que nos incitam o amor pelo dinheiro, e os que nos convidam a procurar a vanglória. Todos os que vêm depois nada mais fazem do que receber aqueles que foram assim feridos. 931
62. Em verdade sabemos, por termos sido marcados, que não há homem que haja caído por causa de um pecado ou de uma paixão sem que antes tenha sido ferido por um desses três demônios. Estes, aliás, foram os três pensamentos que o diabo propôs ao Salvador [52]. Mas nosso Senhor foi mais forte do que eles e ordenou ao diabo que recuasse. E em sua bondade e amor pelos homens, ele nos deu a vitória sobre ele. Revestido de um corpo, em tudo sujeito aos mesmos sofrimentos do que nós – embora sem pecado [53] – o Mestre nos mostrou o caminho reto da inocência. Se o seguirmos, reformaremos em nós o homem novo, renovado à imagem d’Aquele que nos criou [54]. 932
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63. O salmo de Davi ensina a desprezar com uma perfeita aversão os demônios, como inimigos de nossa salvação [55]. Esta é uma coisa absolutamente necessária para trabalhar pela virtude. Mas quem é aquele que despreza com uma perfeita aversão os inimigos? É quem não mais peca nem em ato nem em pensamento. Enquanto as coisas que nos levam a amar os demônios – ou seja, as causas das paixões – permanecerem em nós, como chegar a desprezá-los? Um coração que ama o prazer não consegue ao mesmo tempo nutrir tal desprezo. 935
64. A veste nupcial é a impassibilidade da alma racional que se separou dos prazeres do mundo e renunciou a todas as tolas concupiscências, para se devotar às meditações do amor de Deus e ao puro exercício das contemplações. Mas as paixões da infâmia e suas intrigas despojam o homem da túnica da castidade. Os andrajos rasgados e sujos o degradaram, como mostram os Evangelhos. Quem é atirado nas
928[48] 929[49] 930[50] 931[51] 932[52] 933[53] 934[54] 935[55]
Romanos VIII, 18. Cf. Hebreus XI, 1. Salmo XXXIV, 16. Evagro, o Pôntico. Cf. Mateus IV, 1-10. Cf. Hebreus IV, 15. Cf. Colossenses III, 10. Cf. Salmo CXXXIX, 22.
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trevas de pés e mãos atados teve suas vestes tecidas com tais pensamentos e tais atos: é deste que o Evangelho diz não ser digno das bodas divinas e incorruptíveis [56]. 936
65. Um sábio disse a respeito do egoísmo que ele despreza todos os seres. O perigoso combate no qual o egoísmo nos atira é, com efeito, o primeiro dentre os pensamentos. Ele é como um tirano. Com os pensamentos, as três primeiras paixões e as cinco demais se apoderam de nosso intelecto [57]. 937
66. Eu duvido que seja possível saciar-se de alimentos e ao mesmo tempo adquirir a impassibilidade. Quando digo impassibilidade, não me refiro à abstinência do pecado ativo, que é a temperança, mas à impassibilidade que desenraiza do intelecto os pensamentos passionais e que é chamada de pureza do coração.
67. É mais fácil purificar uma alma impura do que trazer à saúde uma alma que tenha sido curada e novamente ferida. Quaisquer que sejam as faltas nas quais caiam aqueles que acabam de se separar da confusão do mundo, é para estes mais fácil alcançar a impassibilidade. Mas os que provaram da bondade das palavras de Deus, que avançaram no caminho da salvação, e que retrocederam para o pecado, têm grande dificuldade em reencontrar a impassibilidade. Os primeiros são presa dos estados de malícia e dos maus hábitos, mas os outros o são do demônio da tristeza, que se agarra às pupilas dos olhos e oferecem as imagens do pecado. Mas uma alma zelosa e que ama o sofrimento pode corrigir tudo facilmente, mesmo o que é difícil de consertar, se for ajudada pela graça divina que nos manifesta seu amor pelo homem e sua paciência, que nos chama ao arrependimento, e que nas entranhas inefáveis de sua compaixão recebem aqueles que retornam, como nos ensinam os Evangelhos com a parábola do filho pródigo [58]. 938
68. Nenhum de nós é capaz de, com suas próprias forças, sobrepujar as intrigas e as armadilhas do Maligno. Só o podemos pelo invencível poder de Cristo. Aqueles que, em seu orgulho, pretendem abolir o pecado com suas asceses e por sua simples vontade estão enganados. O pecado só pode ser abolido pela graça de Deus, porque ele foi destruído pelo mistério da cruz. A flama da Igreja, João Crisóstomo, diz com justiça que o a resolução do homem não é o bastante, se ela não receber um impulso do alto. Reciprocamente, não ganhamos nada recebendo um impulso do alto se não estivermos resolvidos. É o que nos mostram Judas e Pedro. O primeiro, que havia recebido um grande socorro, não tirou nenhuma vantagem dele [59], pois não estava resolvido e nada deu de si mesmo. O outro, Pedro, estava resoluto, mas não recebeu nenhum auxílio e tombou [60]. De fato, a virtude é tecida a um só tempo de resolução e graça. Eu lhes peço então, diz João Crisóstomo, que não durmam deixando tudo repousar nas mãos de Deus, mas que também não pensem que apenas esforçando-se se poderá obter tudo por suas próprias penas. 939
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936[56] 937[57] 938[58] 939[59] 940[60]
Cf. Mateus XXIV, 1s. Cf. supra no. 10. Cf. Lucas XV, 11-22. Cf. Mateus XXVII, 5. Mateus XXVI, 70s.
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69. Deus não quer que sejamos negligentes; é por isso que ele não faz tudo sozinho. Ele também não quer que sejamos presunçosos; é por isso que ele não deixa tudo para nós. Nos dois casos, ele nos tira o que é nocivo e nos deixa o que é bom. O Salmista tem razão quando nos ensina que se o Senhor não constrói a casa, aquele que guarda e pena vigia em vão [61]. Pois é impossível caminhar sobre a áspix e o basilisco e pisotear o leão e o dragão [62], se antes não nos purificarmos o quanto é possível a um homem, e sem recebermos a força d’Aquele que disse aos apóstolos: “Eis que eu lhes dou o poder de pisotear as serpentes e os escorpiões, e todas as potências do inimigo [63]”. Foi-nos ordenado pedir ao Mestre na oração que não nos deixe cair em tentação e que nos livre do mal [64]. Pois se não formos libertos das flechas inflamadas do Maligno [65] e tornados dignos de alcançar a impassibilidade pelo poder e o auxílio de Cristo, se acreditarmos que com nosso próprio poder e nosso próprio esforço podemos obter seja lá o que for, penamos em vão. Quem que superar e paralisar as intrigas do diabo [66] e comungar da glória divina deve, portanto, dia e noite, com lágrimas e gemidos, com um desejo insaciável e uma alma ardente, pedir a ajuda e o consolo de Deus. Quem quiser receber esta ajuda, que torne sua alma pura de toda fruição do mundo, das paixões e dos desejos contrários. De tais almas, diz Deus: “Eu permanecerei e caminharei a seu lado [67]”. Também o Senhor dizia aos seus discípulos: “Quem me ama seguirá meus mandamentos e meu Pai o amará. Nós viremos e faremos nele nossa moradia [68]”. 941
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70. A respeito dos pensamentos, existe uma sentença de um dos antigos, muito sábia e fácil de entender. Ele dizia: Julgue os pensamentos no tribunal do coração; veja se eles são seus, ou se vêm dos adversários. Os que lhe forem próprios e bons, guarde-os no mais profundo da alma, como num tesouro inviolável. Mas os pensamentos contrários, castigue-os sob os golpes do intelecto e da razão, banindo-os, não lhes deixando lugar nem morada no espaço de sua alma, ou, melhor ainda, trespasse-os com a espada da prece e da meditação divina. Uma vez que os ladrões fujam, o chefe dos ladrões terá medo. Com efeito, está dito que quem examina rigorosamente seus pensamentos é também o que ama verdadeiramente os mandamentos.
71. Que aquele que combate a fim de expulsar os que lhe fazem guerra e que o oprimem, chame para lutar a seu lado aliados mais numerosos, ou seja, a humildade da alma, as penas do corpo, todos os sofrimentos da ascese, a prece de um coração aflito e a abundância de lágrimas, com canta Davi: “Veja minha humildade e minhas penas, e perdoe todos os meus pecados [69]”. E: “Não seja surdo às minhas lágrimas [70]”. E ainda: “Minhas lágrimas foram meu pão noite e dia [71]”. E: “Eu misturo minhas lágrimas à minha bebida [72]”. 949
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Cf. Salmo CXXVII, 1. Cf. Salmo XCI, 13. Lucas X, 19. Cf. Mateus VI, 13. Cf. Efésios VI, 16. Cf. Efésios VI, 11. Levítico XXVI, 11-12; II Coríntios VI, 16. João XIV, 23. Salmo XXV, 18. Salmo XXXIX, 13. Salmo XLII, 4. Salmo CII, 10.
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72. Por meio de numerosos pensamentos, o diabo, o inimigo de nossa vida [73], minimiza nossos pecados e muitas vezes os cobre com o esquecimento, a fim de que, cedendo sob os sofrimentos, não busquemos mais nos lamentar diante de nossas faltas. Mas nós, irmãos, não esqueçamos nossas faltas, nem nos esqueçamos de pedir o perdão e de nos arrepender quando somos culpados. Lembremo-nos sempre dos pecados e não cessemos de chorar sobre eles, a fim de abrigarmos em nós a boa humildade e de fugirmos das armadilhas da vanglória e do orgulho. 953
73. Que ninguém imagine ser capaz de suportar as penas e adquirir a virtude por suas próprias forças. Pois a causa de todo bem que há em nós está em Deus, assim como a causa do mal está no demônio que engana nossa alma. Pelo bem que você fizer, ofereça uma ação de graças ao Criador. Mas rejeite e devolva ao seu autor todo o mal que o perturbar.
74. Aquele que une a vida ativa e o conhecimento é um cultivador digno de ser louvado. Ele rega com duas fontes límpidas o campo da alma. Com efeito, pela contemplação do melhor, o conhecimento dá asas ao ser novo. E a ação faz morrer os membros que estão sobre a terra, a prostituição, a impureza, a paixão e a má concupiscência [74]. Uma vez que desapareçam, eclodem as flores das virtudes que trazem os frutos do Espírito, o amor, a alegria, a paz, a paciência, a nobreza, a bondade, a fé, a doçura, a temperança. Então este cultivador prudente, que crucificou a carne com as paixões e as concupiscências [75], dirá com o pregador teóforo: “Não sou mais eu quem vive, mas Cristo que vive em mim. Aquilo que eu vivo, vivo pela fé, a fé no filho de Deus que me amou e se entregou por mim [76]”. 954
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75. Você que ama a Cristo, jamais se esqueça de que uma paixão que encontra ainda que um só lugar em você enraíza-se duradouramente e traz outras para o mesmo pomar. Pois, embora as paixões se oponham umas às outras, assim como os demônios seus autores, todas buscam de forma unânime a nossa perda.
76. Aquele que com sua ascese consome a flor da carne e acorrenta todas as suas vontades, carrega os estigmas de Cristo em sua carne mortal [77]. 957
77. Os sofrimentos da ascese têm seu fim no repouso da impassibilidade. Mas o desfrute desemboca nas paixões da infâmia.
78. Não fique ligado em contar os longos anos de sua vida solitária. Nas provações do deserto e na dureza dos combates, não se deixe levar pela vaidade, mas tenha sempre no espírito das palavras do Mestre: “Eu
953[73] 954[74] 955[75] 956[76] 957[77]
Cf. I Pedro V, 8. Cf. Colossenses III, 5. Cf. Gálatas V, 24. Gálatas II, 20. Cf. Gálatas VI, 17.
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sou um servidor inútil [78]”, que ainda não cumpriu o mandamento. Enquanto permanecemos na vida presente, com efeito, ainda não fomos chamados do exílio, e ficamos às margens do rio da Babilônia [79], fabricando tijolos no Egito [80], sem ainda ter avistado a terra prometida. Pois ainda não nos despojamos do velho homem corrompido pelos desejos enganadores [81]. Ainda não trazemos a imagem do celeste, porque carregamos a imagem do terrestre [82]. Não temos do que nos glorificar. Devemos, sim, chorar, rogar Àquele que pode nos salvar [83] da servidão do Faraó mais odioso, libertar-nos da cruel tirania e nos permitir entrar na boa terra da promessa, aonde repousaremos no santuário de Deus e nos encontraremos à direita da grandeza do Altíssimo. Os bens que ultrapassam o entendimento não serão obtidos pelas obras com as quais julgamos fazer justiça, mas pela infinita compaixão de Deus. Não deixemos de derramar lágrimas noite e dia, como aquele que disse: “Eu me esgoto gemendo. A cada dia eu banho minhas cobertas, com minhas lágrimas eu molho meu leito [84]”. Pois “aqueles que semeiam nas lágrimas colherão na alegria [85]”. 958
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79. Afaste de você o espírito da falação [86], pois ele esconde paixões terríveis: de todos os lados a mentira, a linguagem desabrida, a zombaria, a grosseria, a estupidez. Foi dito em breves palavras: “Da falação não demora a aparecer o pecado [87]”. Mas “o homem silencioso é um trono para os sentidos [88]”. Disse o Senhor: “Pediremos conta de toda palavra sem fundamento [89]”. O silêncio é necessário e bom. 966
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80. Foi-nos ordenado não insultar e difamar de volta aqueles que nos insultam, nos injuriam ou nos difamam de qualquer maneira, mas ao contrário, louvá-los e bendizê-los. Com efeito, é na medida em que estamos em paz com os homens que podemos combater os demônios. Mas se nos voltamos contra os nossos irmãos para combatê-los, ficamos em paz com os demônios. Ora, nós aprendemos que devemos odiá-los com uma aversão total e levar contra eles uma guerra sem volta [90]. 970
81. Evite atacar o próximo com uma língua ferina, a fim de não ser você mesmo atacado pelo destruidor. Pois eu sei, por ter ouvido a voz do profeta, que é antipático ao Senhor o homem do sangue e da fraude [91], e que ele destruirá todos os lábios ferinos e as línguas arrogantes [92]. Da mesma forma, evite criticar a falta de seu irmão, para não decair da bondade e do amor, pois quem não sente amor e bondade por seu irmão não conhece a Deus. Como diz João, o filho do trovão, o discípulo bem-amado de Cristo: “Deus é 971
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Lucas XVII, 10. Cf. Salmo CXXXVII, 1. Cf. Êxodo V, 7s. Cf. Efésios IV, 22. Cf. I Coríntios XV, 49. Cf. Hebreus V, 7. Salmo VI, 7. Salmo CXXVI, 5. Cf. Jó VIII, 2. Provérbios X, 9. Provérbios XII, 23. Mateus XIV, 36. Salmo CXXXIX, 22. Salmo V, 7. Salmo XII, 4.
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amor [93]”. Com efeito, diz ele, se Cristo, nosso Salvador, “deu sua alma por nós, devemos dar nossas almas pelos nossos irmãos [94]”. 973
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82. É com razão que o amor é chamado de fonte das virtudes, fundamento da lei e dos profetas [95]. Vamos até o fundo de nossas penas, até descobrirmos o santo amor. Com ele expulsaremos a tirania das paixões, nos elevaremos aos céus, carregados pelas asas das virtudes, e veremos a Deus na medida em que isto é possível á natureza humana. 975
83. Se Deus é amor, aquele que tem amor tem a Deus em si. Mas quando nos falta o amor, ele já não nos ajuda em nada, e não podemos dizer que amamos a Deus. Pois está escrito: “Se alguém diz que ama a Deus, mas despreza seu irmão, este homem é um mentiroso [96]”. E ainda: “Ninguém jamais viu a Deus [97]”, mas “se nos amarmos uns aos outros, Deus permanecerá em nós e seu amor em nós será perfeito [98]”. Vemos assim que, de todos os bens de que fala a santa Escritura, é o amor a coisa mais vasta e mais extrema. Não há forma de virtude pela qual o homem se aproxime e reencontre a Deus que não dependa do amor, nem que o amor não abrace, mantendo-a e protegendo-a de maneira inefável. 976
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84. Quando acolhemos os irmãos que nos visitam, não pensemos que eles desarrumem ou que rompam a hesíquia, para não decairmos da lei do amor. Não os acolhamos como se lhes fizéssemos uma graça, mas antes como se fôssemos nós a receber uma graça sendo-lhes devedores. Ofereçamos nossa hospitalidade com nossas orações e alegria, como nos mostrou o patriarca Abrahão. É também o que nos ensina o Teólogo: “Filhos, não amemos em palavras, com a língua, mas em ato e verdadeiramente. Com isto saberemos que vocês estão com a verdade [99]”. 979
85. O patriarca tinha o exercício da hospitalidade no coração. Diante de sua tenda [100], ele convidava a todos os que passavam e, para todos, mesmo os ímpios e os bárbaros, sem distinção, oferecia sua mesa. Foi assim que ele foi considerado digno do banquete maravilhoso: ele acolheu os anjos e o Mestre do universo. Velemos, portanto, pela hospitalidade, atenta e resolutamente, a fim de acolher não apenas os anjos, mas a Deus.O Senhor o disse: “Aquilo que vocês fizerem a um dos meus pequeninos, a mim o terão feito [101]”. Assim, é bom fazer o bem a todos, e sobretudo aos que nada podem dar em troca. 980
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973[93] I João IV, 8. 974[94] I João III, 6. 975[95] Cf. Mateus XXII, 40; Romanos XIII, 10. 976[96] I João IV, 20. 977[97] João I, 18. 978[98] I João IV, 12. 979[99] I João III, 18-19. 980[100] Cf. Gênese, XVIII, 1. 981[101] Mateus XXV, 40.
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86. Aquele que não for condenação pelo seu coração [102], nem por transgredir as ordens de Deus, nem por sua negligência, nem por haver acolhido um pensamento contrário, terá este coração digno de ouvir: “Bem-aventurados os corações puros, pois eles verão a Deus [103]”. 982
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87. Esforcemo-nos para chegar pela razão a educar os sentidos, em especial os olhos, os ouvidos e a língua, a fim de que ver, ouvir e falar não se tornem para nós uma paixão, mas um ganho. Pois nada nos arrasta tanto ao pecado quanto estes órgãos, quando não são educados pela razão. Reciprocamente, nada é mais disposto do que eles para a obra da salvação, quando a razão os dirige e regula, e os guia para onde deve e para onde quer. Quando eles estão em desordem, o olfato relaxa, o tato se dilata inconsideradamente, e o enxame das paixões nos invade. Mas se estão postos em ordem pela razão, uma grande paz e uma calma constante se manifestam de todas as partes.
88. Assim como a preciosa mirra, mesmo que encerrada no recipiente, penetra o ar com seu perfume e enche de prazer não apenas os que estão próximos, mas também todos ao redor, também o perfume da alma virtuosa que ama a Deus espalhando-se por todos os sentidos do corpo, revela a virtude que repousa no interior a todos os que se aproximam. Quem não perceberá o imenso perfume que repousa no interior, vendo uma língua que não diz nada de discordante nem de despropositado, mas apenas o que é bom e útil, vendo os olhos concentrados e os ouvidos que não se voltam para cantos e palavras impróprias, vendo um caminhar comedido e um rosto que não se torce em riso, mas apresenta lágrimas e luto? É o que diz o Senhor: “Que a sua luz brilhe diante dos homens para que eles vejam suas boas obras e glorifiquem seu Pai que está nos céus [104].” 984
89. Cristo nosso Deus disse nos Evangelhos que o caminho era estreito [105]. Mas ele também disse que o jugo era doce e a carga leve [106]. Como conciliar estas duas coisas que parecem contraditórias? Por natureza, a via pode muito bem ser dura e escarpada, mas com a resolução e a boa esperança dos que a percorrem ela se torna desejável e digna de amor e ela alegra mais do que aflige as almas que amam a virtude. Podemos ver, com efeito, que aqueles que a escolheram seguem pelo caminho estreito e apertado com mais ardor do que por um caminho largo e vasto. Escute o que diz o bem-aventurado Lucas. Os apóstolos que haviam sido chicoteados retiraram-se alegres do Conselho [107], embora normalmente um chicote, por natureza, cause dor e sofrimento, e não prazer e contentamento. Se os golpes de chibata recebidos por Cristo foram uma fonte de alegria, o que há de espantoso que os outros sofrimentos e ferimentos do corpo tenham o mesmo efeito, quando os recebemos pelo mesmo Cristo? 985
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90. Quando as paixões nos tiranizam e nos mantêm cativos, nos perguntamos por que sofremos tais coisas. Devemos saber que este cativeiro nos espera sempre que deixamos de nos dedicar à contemplação de 982[102] 983[103] 984[104] 985[105] 986[106] 987[107]
Cf. I João III, 21. Mateus V, 8. Mateus V, 16. Cf. Mateus VII, 14. Cf. Mateus XI, 30. Cf. Atos V, 41.
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Deus. Mas se colarmos continuamente nosso intelecto a nosso Mestre e Deus, podemos confiar que o Salvador libertará nossa alma de todo cativeiro de paixões, como disse o Profeta: “Eu tenho sempre o Senhor diante de mim. Ele está à minha direita, eu não tombarei jamais [108]”. O que pode haver de mais doce e mais seguro do que ter sempre o Senhor à nossa direita, cobrindo-nos e nos protegendo, não permitindo que caiamos? Ora, isto está ao nosso alcance. 988
91. Bem disseram os Padres, e de modo irrefutável: um homem não pode encontrar repouso senão levando dentro de si mesmo o pensamento de que não existe no mundo mais do que ele e Deus. Então seu intelecto deixa de girar. Ele deseja a Deus, e não está ligado senão a ele. Este homem encontrará o verdadeiro repouso. Ele será libertado da tirania das paixões. De fato, foi dito: “Minha alma está ligada a você. Sua direita me mantém [109]”. 989
92. O egoísmo, o amor pelos prazeres e a vanglória expulsam da alma a lembrança de Deus. O egoísmo é a mãe de males sem iguais. Quando a lembrança de Deus nos falta, o redemoinho de paixões faz em nós sua morada.
93. Quem desenraiza o egoísmo de seu coração dominará facilmente todas as outras paixões, com a ajuda do Senhor. Com efeito, é do egoísmo que provêm a cólera e a tristeza, o ressentimento, o amor pelos prazeres e os excessos de linguagem. Quando este é vencido, as demais paixões capitulam junto. Chamamos de egoísmo ao estado de paixão que nos faz amar o corpo e cumprir as vontades da carne.
94. De todo coração queremos estar continuamente e sem cessar junto daquilo que amamos. E descartamos tudo o que nos impede de nos aproximarmos do amado e de nos unirmos a ele. Equivale a dizer que quem ama a Deus deseja sempre encontrá-lo e viver com ele. Ora, isto nos é possível por meio da oração pura. Devemos nos devotar à oração, tanto quanto pudermos, pois é ela que nos une ao Mestre, como aconteceu com aquele que disse: “Deus, você é meu Deus, eu o procuro, minha alma tem sede de você [110]”. Quem afasta o intelecto de todas as formas de malícia, busca a Deus, e nada mais o impede de ser tocado pelo amor divino. 990
95. Aprendemos que a impassibilidade nasce da temperança e da humildade, e que o conhecimento nasce da fé. A partir daí, a alma progride em discernimento e em amor. Quando ela acolhe em si o amor divino, ela se eleva sem relaxar pelas asas da prece pura até as alturas deste amor, até chegar, como diz o Apóstolo, ao conhecimento do Filho de Deus, ao homem perfeito, à medida da idade da plenitude de Cristo [111]. 991
988[108] 989[109] 990[110] 991[111]
Salmo XVI, 8.
Salmo LXIII, 9. Salmo LXIII, 2. Cf. Efésios IV, 13.
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96. Pela virtude ativa, o desejo é domado e o ardor é submetido. Pelo conhecimento e a contemplação o intelecto é dotado de asas e, elevando-se acima das coisas materiais, parte na direção de Deus e descobre a verdadeira beatitude.
97. Devemos inicialmente combater para derrubar as paixões e vencê-las com toda nossa força. Depois devemos adquirir as virtudes e não deixar nossa alma nem vazia, nem inerte. Enfim – esta é a terceira etapa do encaminhamento espiritual – devemos guardar sobriamente os frutos de nossas virtudes e de nossas penas. Foi-nos ordenado, com efeito, não apenas de trabalhar as penas, mas de guardar vigilantemente [112]. 992
98. “Que seus rins estejam cingidos e suas lâmpadas acesas [113]”, disse o Senhor. Cingir bem os rins, que nos torna leves e ligeiros, é a temperança aliada à humildade do coração. Chamo de temperança o distanciamento de todas as paixões. E o que ilumina a lâmpada espiritual é a prece pura e o amor perfeito. Os que assim se preparam são verdadeiramente semelhantes a homens que acolhem seu Senhor. Quando ele bater à porta, eles abrirão depressa, e ele entrará e fará neles sua morada juntamente com o Pai e o Espírito Santo [114]. Felizes estes servidores, quando o Senhor vier e os encontrar atentos à espera [115]. 993
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99. Como um filho, o monge deve amar a Deus com todo seu coração e todo seu pensamento [116]. Mas como um servidor, ele deve reverenciá-lo e obedecê-lo e, com temor e tremor, cumprir suas ordens [117]. Ele deve ter o fervor no espírito, estar revestido com a armadura do Espírito Santo [118], desejar o gozo da vida eterna, fazer sem falta tudo o que lhe for ordenado, estar sóbrio e vigilante e proteger seu coração dos maus pensamentos, conduzir por meio de uma boa atenção a contínua meditação divina, condenar-se sempre pela malícia de pensamentos e atos, e preencher aquilo que lhe falta. Ele não deve glorificar-se por suas boas obras, mas dizer que é um servidor inútil [119], insuficiente no cumprimento dos seus deveres, a agradecer ao Deus santíssimo, imputar-lhe a graça das boas obras, nada fazer pela vanglória ou para agradar aos homens, em tudo agir secretamente e não buscar senão o louvor que vem de Deus [120]. Antes de tudo, e sobretudo, ele deve aquecer sua alma com a fé ortodoxa, segundo os dogmas divinos que a Igreja católica recebeu dos Apóstolos predicadores de deus e dos santos Padres. Para aqueles que assim se conduzirem a recompensa será grande: a vida infinita, a indefectível moradia junto ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, a Divindade que é uma só Substância e três Pessoas. 996
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100. Este é o fim do discurso. “Escute, aí está você, diz o Eclesiastes, tema a Deus e observe seus mandamentos, que é o que todo homem deve fazer [121]”. Eu lhe mostro, diz ele, o caminho real e venerável da salvação: tema a Deus e observe seus mandamentos. O temor não é aquele que precede os 1001
992[112] Cf. Gênese II, 15. 993[113] Lucas XII, 35. 994[114] Cf. João XIV, 33. 995[115] Cf. Lucas XII, 36. 996[116] Cf. Deuteronômio VI, 5. 997[117] Cf. Filipenses II, 12. 998[118] Cf. Efésios VI, 11. 999[119] Cf. Lucas XVII, 10. 1000[120] Cf. Romanos II, 29. 1001[121] Eclesiastes XII, 13.
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castigos. É o temor perfeito, que nos torna perfeitos, e que devemos ter por amor d’Aquele que nos ordenou temer. De fato, se não cometemos o pecado por medo da danação, se esta não existisse nós faríamos coisas condenáveis, e assim nossa intenção seria pecadora. Ao contrário, se nos abstemos do pecado não por causa da ameaça do castigo, mas por desprezarmos e rejeitarmos a malícia, trabalhamos pelo amor ao Mestre na obra das virtudes, pelo temor de sermos arrastados para longe delas [122]. Quando tememos transgredir seja lá o que for daquilo que nos foi ordenado, nosso temor é puro [123]. Ele conduz ao próprio bem e purifica nossas almas, pois ele tem o mesmo poder que o amor perfeito. Todo homem que sente este temor e que guarda os mandamentos é perfeito: nada lhe falta. Portanto, sabendo disto, temamos a Deus e observemos seus mandamentos, a fim de sermos perfeitos e completos de virtudes [124]. Com o espírito humilhado e o coração contrito [125], cantemos continuamente ao Senhor a prece que ensinou a grande e divino Arsênio: “Me Deus, não me abandone. Nada de bom eu faço diante de você, mas por sua misericórdia, permita-me começar”. Nossa salvação está toda na compaixão e no amor de Deus pelo homem. A ele a glória, o poder e a adoração, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, agora e para todo o sempre, pelos séculos dos séculos. Amém. 1002
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Provérbios III, 32; Hebreus II, 1. Cf. Salmo XIX, 10. Cf. II Timóteo III, 17. Cf. Salmo LI, 19.
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DISCURSO SOBRE A CONTEMPLAÇÃO Que combate maior existe do que romper este inflexível laço, libertarmo-nos do culto da matéria e adquirir o estado de beleza? Para fugir à matéria, a alma deve ser verdadeiramente nobre e corajosa. Mas não devemos apenas nos dedicar à purificação das paixões, o que em si não é a virtude, embora seja uma preparação para ela. Para nos purificarmos do estado de malícia é preciso ainda que adquiramos as virtudes. A purificação da alma, na ordem da razão, é a libertação e a perfeita desaparição dos caracteres inferiores e enganosos, quero dizer, como o afirma o Teólogo, dos cuidados e perturbações desta vida, das tendências defeituosas e das noções impróprias. Na ordem do desejo, purificar a alma significa não mais tender para a matéria, não considerar os sentidos e ser dócil à razão. Enfim, na ordem do ardor, purificar a alma significa não se perturbar com aquilo que acontece. Depois desta purificação, quando as potências da morte estiverem mortas e relegadas, é possível alcançar a elevação e a deificação. É preciso afastar-se do mal e fazer o bem [126]. Em primeiro lugar renunciando a si mesmo, devemos seguir o Mestre carregando a cruz [127], para alcançar o estado extremo da deificação. 1006
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Mas o que são a elevação e a deificação? Na ordem do intelecto, é a ciência mais completa dos seres e d’Aquele que está para além dos seres, na medida em que for possível à natureza humana. Na ordem da vontade, é a tensão total e contínua, o movimento em direção à beleza primeira. Na ordem do ardor, é o impulso mais forte e mais ativo, firme e perseverante, em direção àquilo que se deseja. Nada do que acontecer, por aflitivo que seja, pode detê-lo em sua marcha avante, e ele segue seu caminho, transbordante e sem retorno. O impulso da alma para a beleza deve ser mais forte que sua tendência para o inferior, tanto mais na medida em que a beleza inteligível é mais forte do que a beleza sensível. E o retorno à carne deve ser tal que lhe baste velar e prover o necessário, a fim de que o que está vivo não seja destruído. É fácil de conceber a ação direita, mas é difícil cumpri-la. Pois não é sem esforço que se desenraizam da alma estes estados difíceis de mudar, nem é sem suor que se adquire a ciência. Para conseguir o olhar fixo sobre a natureza bem-aventurada, para tender para ela até que a vontade obtenha o fruto deste impulso, são necessárias muitas penas e um bocado de tempo. O intelecto tem que resistir aos sentidos, que puxam para baixo, com todas as suas forças. Este é o enfrentamento, o combate contra o corpo, que não finda senão com a morte, mesmo que pareça acalmar-se quando o intelecto, superando-o, domou o ardor e o desejo e controlou os sentidos. É preciso notar, por outro lado, que a alma não pode ser iluminada a menos que receba o socorro de Deus, que sem isto ela não pode se purificar verdadeiramente nem elevar-se à luz divina, como foi dito. Lembrem-se de que aquilo que foi dito o foi para os fiéis.
Mas para termos maior clareza a respeito dessas coisas, devemos em primeiro lugar discernir em breves palavras o que entendemos por conhecimento. Com efeito, tudo o que conhecemos aqui em baixo é natural ou sobrenatural, sendo que o segundo se revela a partir do primeiro. Assim, chamamos de conhecimento natural aquilo que a alma, utilizando-se de seus órgãos e potências naturais, consegue captar da criação pela pesquisa e pelo exame, na medida em que isto lhe é possível, uma vez que ela está ligada à matéria. Com efeito, foi dito a respeito da relação dos sentidos com a imaginação e a inteligência, que o intelecto perde sua força quando se junta e se une ao corpo. Torna-se então impossível para ele atingir as formas espirituais. Mas para compreendê-las ele necessita da imaginação que, por natureza, está voltada para os simulacros, e também da extensão e da pesandez materiais. Para que o intelecto que está
1006[126] Cf. Salmo XXXIV, 15. 1007[127] Cf. Mateus XV, 24.
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preso à carne possa captá-las, ele necessita de formas que sejam correspondentes. Sendo esta a constituição do intelecto, chamaremos de natural o conhecimento que ele adquire em seu próprio caminho natural. Mas o conhecimento sobrenatural é aquele que, nascido do intelecto, escapa a esta caminhada e às suas potências, quando em verdade as concepções da inteligência aliada à carne ultrapassam sua própria medida. Cabe então à inteligência separada do corpo conhecê-las. E este conhecimento vem somente de Deus, quando esta inteligência se encontra inteiramente purificada de toda tendência natural e traz em si o amor divino. Ora, não é apenas o conhecimento que é então partilhado, mas também a virtude. Esta é diferente a virtude que não ultrapassa a natureza, e à qual chamamos justamente de natural. Ela é animada pela energia da beleza primeva, para além de toda potência e de toda condição naturais, e a que devemos chamar propriamente de sobrenatural.
Dadas estas distinções, aquele que não recebeu a luz poderá possuir o conhecimento e a virtude naturais, mas de modo algum o que é sobrenatural. Como isto seria possível, uma vez que está privado d’Aquele que é sua causa ativa? Mas quem recebeu a luz pode possuir as duas coisas. Porém, para adquirir a virtude sobrenatural é preciso primeiro adquirir a virtude natural. Por outro lado, nada impede que o conhecimento sobrenatural se faça sem a participação e o concurso daquilo que conhecemos pela natureza. Ao contrário, devemos saber o seguinte: assim como os animais possuem a sensação e a imaginação e o homem as possui igualmente muito mais fortes e mais elevadas, também aquele que recebeu a luz e o que não a recebeu, possuem ambos as virtudes e os conhecimentos naturais, mas o primeiro muito mais forte e elevado do que o segundo. Temos aqui, ao que parece, que o conhecimento natural em questão, relativo às virtudes e aos seus contrários, é também duplo. De um lado é abstrato, quando aquele que filosofa sobre estas noções não possui a experiência, e permanece na incerteza; de outro é ativo, quando o conhecimento é confirmado pela experiência de tais noções. Este conhecimento é claro e seguro; ele está totalmente fora da incerteza e da dúvida.
Sendo assim, o intelecto que busca adquirir a virtude tem diante de si, ao que parece, três obstáculos. Um é a predisposição aos estados contrários, de que falamos, e que tende a nos levar, devido a um longo costume, para as coisas terrestres. Outro é a energia dos sentidos, suscitada pelas belezas sensíveis, e que atrai para si a inteligência. Um terceiro é o esgotamento da energia intelectual, que afeta o intelecto unido ao corpo. Com efeito, se a visão corresponde ao visível e em geral os sentidos ao sensível, o mesmo não acontece com o intelecto em relação ao inteligível. Falo da inteligência da alma que ainda está presa à carne. Pois os intelectos imateriais tendem mais ativamente para o inteligível do que a visão para o visível. Mas o intelecto que está em nós e recebe o inteligível é como uma visão do visível ferida pelo ofuscamento e que não recebe as imagens nem com clareza nem com precisão, mas antes confusas e obscuras. Incapaz de contemplar na luz as belezas inteligíveis, de um lado é impossível à alma nada desejar – a medida do desejo depende da medida do conhecimento – e de outro ela é atraída para as belezas sensíveis, que se oferecem a ela de maneira mais imediata. Ela precisa voltar-se para a beleza que lhe aparece, seja ela real ou não. Assim, a malícia dos espíritos impuros que desprezam o homem coloca no caminho das almas armadilhas das quais é impossível dizer o número ou a natureza, tantas são suas múltiplas formas e maneiras, através dos sentidos, da palavra, da inteligência, e por assim dizer de tudo o que existe. Se aquele que carrega sobre seus ombros a ovelha perdida [128] não velasse do alto, em sua infinita solicitude, por aqueles que para ele voltam o olhar, nenhuma alma escaparia. 1008
1008[128] Cf. Lucas XV, 5.
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Para escapar a todas estas armadilhas três coisas são necessárias. A primeira de a maior é tender a Deus com toda nossa alma, pedindo o socorro de sua mão, nele colocando toda nossa esperança, rigorosamente persuadidos de que se ele não vier em nosso auxílio todas as necessidades puxam em sentido contrário para nos levar. A segunda, que eu penso ser causa da primeira, é o contínuo alimento que a ciência fornece para o intelecto. Falo da ciência de todos os seres sensíveis e inteligíveis, tais como são em si mesmos e na sua relação com a origem primeira da qual saíram e para a qual tendem; e falo da ciência d’Aquele que é a causa dos seres, desta ciência que fornece a contemplação da causa, na medida em que isto é possível. Penetrar desta maneira na natureza dos seres é uma coisa muito purificadora, que nos liberta de nosso estado passional diante deles e do erro em que incorremos a seu respeito, e que nos eleva ao mais alto ponto na direção da origem de tudo. No meio daquilo que é belo, maravilhoso e grande reflete-se o mais belo, mais maravilhoso e maior, ou antes, aquilo que está além da beleza, do maravilhoso e da grandeza. Quando o intelecto se mantém permanentemente voltado para tais esplendores, como poderá ele não desejar o verdadeiro bem? Se, com efeito, eles se volta para aquilo que lhe é estranho, quanto mais não se voltará para o que lhe é próprio! Como suportaria viver a alma que ama tais esplendores, com as coisas daqui de baixo que nos distanciam naturalmente d’Aquele que nos ama? Porém, não nos deixemos enganar, pois a vida na carne não é obstáculo para a beleza. Com efeito, dissemos que o intelecto preso à carne contempla obscuramente a beleza inteligível. Mas tais maravilhas e tão grandes bens, que são como uma breve emanação e uma obscura aparição desta beleza transbordante, persuadem o intelecto de que ele pode voar acima de todo o sensível e se dirigir apenas ao inteligível. Não devemos suportar afastarmo-nos de tais delícias, mesmo que caiamos na maior aflição.
Em terceiro lugar, devemos nos dedicar a fazer morrer o corpo ao qual estamos unidos. Pois de outra forma é impossível receber essas revelações de uma maneira precisa e clara. Fazemos morrer a carne por meio dos jejuns e das vigílias, dormindo no chão, portando vestimentas pobres e grosseiras, trabalhando e nos esforçando. É assim que morre a carne, ou melhor, é assim que ela é crucificada com Cristo. Ela se afina e se purifica, torna-se leve e rarefeita, e segue com mais facilidade os movimentos do intelecto, sem se opor a eles. Ela eleva-se ao alto. Sem a carne, de fato, desaparece toda ocupação vã. Quando esta venerável tríade – a mortificação, a purificação e a elevação – está em harmonia, ela engendra na alma o coro das virtudes bem-aventuradas, Pois é impossível encontrar um traço de malícia ou qualquer falta de virtude naqueles que estão paramentados com estes três movimentos.
Mas pode acontecer que a rejeição do dinheiro e o desprezo pela vanglória perturbem a razão. Enquanto a alma estiver ligada ao dinheiro e à vanglória, ela será trespassada por múltiplas paixões. Eu afirmo fortemente que é impossível à alma ligada à riqueza e à vanglória voar. Mas também digo que não é possível à riqueza e à vanglória investir contra uma alma exercitada nos três movimentos de que falei, pelo tempo suficiente para ter criado o costume. Com efeito, ainda que ela não conheça nada sobre a verdadeira beleza, ou sobre a beleza que está além de tudo, se ela estiver persuadida de que quanto mais uma coisa – ainda que a menor de todas – se pareça com a beleza primeira mais bela ela é, como poderá esta alma amar e acolher o dinheiro ou o ouro, ou qualquer outra coisa das que atraem para baixo? E o mesmo vale para a vanglória.
E mesmo aquilo que mais nos detém, ou seja, as preocupações, não se contrapõe ao meu propósito. Pois com quê poderá se preocupar aquele que não abriga paixão nem tendência por seja lá o que for daqui de baixo? A nuvem das preocupações surge, de fato, como uma exalação das paixões fundamentais, vale
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dizer, do amor pelos prazeres, pelo dinheiro e pela vanglória. Quem se libertou destas paixões é estranho às preocupações.
Também não devemos crer que a reflexão do intelecto seja diferente da sabedoria, e que ela não esteja compreendida naquilo que falamos, quando na verdade ela é a mais forte das virtudes que levam ao alto. Com efeito, a ciência das virtudes abarca o discernimento mais preciso do bem e de seu contrário, do qual a reflexão do intelecto necessita para seu benefício. Mas as maneiras de agir e de lutar nos são ensinadas pela experiência e pelo combate com o corpo.
Não nos esqueçamos de falar no temor. Pois quanto maior for o amor, maior será o temor. Quanto mais forte for a esperança de descobrir o bem, que sabe morder os que são abençoados mais do que a ameaça de miríades de castigos (pois descobrir o bem é uma imensa beatitude), mais forte será o temor de não o descobrir, o que é uma enorme infelicidade.
Mas para que nossa reflexão siga seu curso e a partir dele forme uma nova, devemos conduzi-la a partir de sua finalidade. Pois todo ser parece possuir de sua própria finalidade a distinção e a ordenação das partes. Ora, a finalidade de nossa vida é a beatitude, ou seja, o Reino dos céus e o Reino de Deus. E não se trata apenas de contemplar a Trindade soberana, se posso dizer, mas de receber o influxo divino, experimentar por assim dizer a deificação, cumprir e completar por este influxo aquilo que em nós é insuficiente e imperfeito. Este influxo divino preenche aquilo que nos falta. Ele é o alimento que nos é fornecido pelas coisas do espírito. Trata-se de um ciclo infinito que começa pelo mesmo e termina pelo mesmo. Pois aquilo que ele concebe ele busca e aquilo que ele busca ele usufrui. E quanto mais ele usufrui, mais força ele recebe para conceber de novo, e assim ele recomeça o movimento imóvel, que é a imutável imobilidade.
Tal é o fim, na medida em que ele está ao nosso alcance. Mas precisamos considerar o modo de chegarmos a este fim. Para as almas racionais, que são essências intelectuais, pouco menores do que as inteligências angélicas, a vida aqui de baixo, a vida na carne, é uma luta, um combate ao qual devem se entregar. O estado de que falamos é a recompensa disto. É também um dom digno da bondade e da justiça divinas; uma, por que é aparentemente com nosso suor que adquirimos os bens; outra, porque o poder que nos cumula infinitamente ultrapassa todas as penas. Acima de tudo, é ele que nos dá o bem e o poder de fazer o bem.
Qual é então o combate desta vida? A alma racional se une a um corpo vivo, que tem uma existência terrestre e que tende com todo seu peso para baixo. Ela mistura-se a ele, até que destes dois contrários, alma e corpo, surge uma unidade, não por causa de uma alteração ou de uma confusão das partes, longe disto, mas quando estas duas partes, mantendo cada qual sua natureza, formam uma hipóstase em duas naturezas perfeitas. O homem consiste, portanto, neste vivente com duas naturezas misturadas, que cumpre em cada instante o que é próprio a cada uma delas. Ao corpo é inerente a procura dos semelhantes, pois o amor aos semelhantes é natural dos seres. O ser é aparentemente ajudado pela união com os
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semelhantes e por desfrutá-los por meio dos sentidos. Ora, o relaxamento rapidamente pesa sobre aquele que ama verdadeiramente. A relação amorosa é inerente à natureza animal. Mas a alma racional, que é como que uma essência intelectual, deseja naturalmente os inteligíveis, e desfruta deles segundo um modo que lhe é próprio. Mas antes de tudo e acima de tudo é o amor a Deus que está naturalmente enraizado nela. Ela quer desfrutar deste amor e dos outros inteligíveis, mas é impedida. Claro que o primeiro homem podia conceber sem obstáculo tanto as coisas sensíveis pelos sentidos como as inteligíveis pelo intelecto, e desfrutar delas. Mas ele precisaria dedicar-se não ao pior, mas ao melhor; pois a ele foi dado fazer ambas as coisas, ou unir-se ao inteligível pela inteligência, ou ao sensível pelos sentidos. Não digo que Adão não devesse se servir dos sentidos; não foi à toa que ele foi revestido de um corpo. Mas ele não deveria se comprazer nos sentidos. Tendo recebido a beleza das criaturas, ele deveria remontar à sua causa, e aí sim se comprazer, maravilhando-se, pois tinha então estas duas razões para admirar o Criador. Mas ele não devia se ligar ao sensível, e admirá-lo em lugar do Criador, deixando de lado a beleza inteligível. Ora, foi isto que fez Adão: ele usou mal seus sentidos. Ele admirou a beleza sensível: o fruto pareceu-lhe bom de ver e provar [129], e ele o comeu, deixando de lado a fruição do inteligível. A partir daí o justo Juiz, considerando-o indigno, retirou dele a contemplação de Deus e dos seres, que ele havia desprezado, e escondeu em trevas as essências imateriais. Pois os profanadores não devem se aproximar daquilo que é santo. Deis concedeu a Adão o usufruto daquilo de que ele se tornou cativo. Ele lhe permitiu viver dos sentidos, e dos ínfimos resquícios da inteligência. 1009
A partir daí, como estamos presos às coisas da terra, tornou-se mais difícil para nós o combate. Pois não está em nosso poder desfrutar do inteligível, como o fazemos do sensível por meios dos sentidos, como foi dito, mesmo que, purificados e elevados pelo batismo, tenhamos sido grandemente ajudados. Porém, na medida em que nos for possível, devemos nos voltar para o inteligível e não para o sensível; é o inteligível que devemos admirar e querer. Devemos lembrar que o sensível não tem realmente nenhuma medida comum com o inteligível. Assim como a essência de um é mais maravilhosa do que a do outro, também a beleza de um é mais maravilhosa do que a beleza do outro. Preferir o mais feio ao mais belo e o mais vil ao mais precioso – não é o cúmulo da loucura? E isto também é verdadeiro entre as criaturas sensíveis e as criaturas inteligíveis. E que dizer quando preferimos a matéria informe e sem beleza Àquele que está para além de todas as criaturas?
Tal é, pois, o combate: guardarmo-nos rigorosamente, a fim de desfrutarmos do inteligível, tendendo para ele nosso intelecto e jamais nos deixando enganar pelo sensível, nem nos deixando arrastar a ele pelos sentidos por o admirarmos em si mesmo. E se nos é necessário utilizar os sentidos, devemos fazê-lo de maneira a compreender o Criador nas criaturas, vendo-o nelas como o sol que se reflete nas águas. Na medida em que lhes é possível contê-lo, existem de fato nos seres imagens d’Aquele que é a causa primeira de tudo.
Aí está, portanto, a obra direita. Devemos considerar como alcançá-la. Com efeito, dissemos que o corpo tende a desfrutar daquilo que lhe é próprio por meio dos sentidos, o que é contrário à distinção da alma. Quanto mais forte é o corpo, mais ele busca. Devemos, portanto, velar pela alma, colocarmos um freio nos sentidos, a fim de não desfrutarmos dos sentidos, como foi dito.. Pois quanto mais forte for o corpo, mais ele irá desejar. E quanto mais ele desejar, mais difícil será para a alma operar para fazê-lo morrer, 1009[129] Cf. Gênese III, 6.
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forçando-o a jejuar, a velar, a se manter em pé, a dormir no chão, a não se banhar e todos os outros sofrimentos, a fim de que, esgotadas as suas forças, se torne fácil de conduzir e dócil às ações espirituais da alma.
Este estado é, com efeito, o fundamento da ação direita. Mas é fácil querer e difícil fazer, tão numerosas são as faltas que podemos cometer agindo, mesmo que estejamos atentos. Como os sentidos se apresentam diante de nós como um véu espesso, surgiu um terceiro remédio: a prece e as lágrimas. De fato, a oração dá graças pelos bens que nos foram dados e pede o perdão pelas faltas e o poder que nos fortifique para o futuro, pois, sem o impulso divino, como já foi dito, a alma nada pode fazer. Rezar é ainda unir-se Àquele que se deseja, desfrutar dele e inclinar totalmente para ele a potência volitiva, porque a melhor parte da ação direita consiste em persuadir a vontade a desejar aquilo, na medida do possível. Também as lágrimas possuem uma grande força: elas clamam pela compaixão do Mestre sobre as faltas. Elas purificam das manchas que nos advém dos prazeres sensíveis, e dão asas ao desejo para se elevar até as alturas.
A ação direita é assim a contemplação o inteligível e o desejo absoluto. E por meio dela que a carne é subjugada, e todas as virtudes parciais – o jejum, a castidade e as outras – são cumpridas graças a uma outra virtude. É por estas virtudes e com elas que a prece é suscitada. Pois cada uma dela se divide em numerosas partes, e cada parte engendra outra assim como ela própria foi engendrada.
Que ninguém pense que o amor à vanglória e o amor ao dinheiro concernem ao corpo. Somente o amor pelos prazeres está ligado apenas ao corpo. E o remédio correspondente é o sofrimento do corpo. Os dois primeiros vícios são engendrados pela ignorância: com efeito, é pela inexperiência sobre a verdadeira beleza e pela ignorância do inteligível que a alma acaba por se alterar. Ela acredita compensar a sua falta pela riqueza. Mas esta é procurada ao mesmo tempo pelo amor ao prazer e pelo amor à vanglória, e em si mesma como um outro bem. E dissemos que isto sempre acontece por causa da ignorância da verdadeira beleza. O amor à vanglória não vem por faltar algo ao corpo (pois ela em nada reconforta o corpo), mas é suscitado pela inexperiência e pela ignorância da beleza primeira e da verdadeira glória. A ignorância é a causa da vaidade e, de modo geral, a raiz de todos os males. Pois quem compreende como se deve a natureza das coisas, de onde vem cada uma delas e para onde ela retorna, já não pode se enganar sobre o próprio fim e nem se voltar para o que é terrestre. Pois a alma não tende para a beleza aparente. Se ela é tiranizada por seu estado, ela pode muito bem dominá-lo, uma vez que ela não se achava neste estado até ser iludida pela ignorância. É preciso, assim, que, em primeiro lugar, ela se volte para os seres pensando corretamente a seu respeito, para em seguida dar asas à vontade para se elevar à beleza primeira, desprezando todas as coisas do presente século e banindo sua grande vaidade. Afinal de contas, o que é que contribui para o fim que nos é próprio? Para resumir tudo em poucas palavras, a alma racional que está no corpo só tem uma coisa a fazer: tender para seu próprio fim.
A energia da vontade não é capaz de se exercer sem o entendimento. É por isso que devemos agir sobre nós intelectualmente. Ou bem o ato da inteligência vem da vontade, ou vem de si mesmo e da vontade; na verdade, parece que esta última hipótese é correta. A beatitude, da qual a vida do homem virtuoso aqui em baixo é não apenas a causa, mas também a imagem, possui duas energias, a inteligência e a vontade, ou o amor e o prazer. Aqueles que quiserem filosofar devem pensar para saber se estas duas energias são
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iguais, ou se uma delas é mais importante. Aqui devemos colocar juntas as duas energias. Chamaremos a uma contemplação e à outra ação. Estas energias são extremas, e é impossível encontrar uma sem a outra. Quanto às energias menores, podemos compreendê-las com elas. O que as obstaculiza, ou que lhes apresenta os contrários, denominamos vícios; o que nos ajuda e nos liberta dos obstáculos chamamos de virtudes. As energias que provêm das virtudes são as ações direitas; as energias das potências contrárias são as faltas e os pecados. E aquilo que dá forma a qualquer energia, seja para o pior, seja para o melhor, é o fim extremo, que nós sabemos ser uma energia composta de inteligência e de vontade.
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JOÃO CARPATOS Não sabemos nem quando viveu nosso Pai entre os Santos, João Carpatos, nem aonde cumpriu ele sua ascese e suas outras ações. Dele, Photius diz apenas: “João Carpatos deve muito a Diádoco. Sua obra tem por título: 'Endereçado aos monges da Índia que o exortaram'. Ele limitou esta obra a cem capítulos, nos quais, como um pai, ele consola seus leitores pedindo-lhes que agüentem os sofrimentos e que se mostrem pacientes nas tentações que acontecerem”.
É quase certo que João Carpatos viveu no século VII e que foi bispo na ilha de Carpatos, no mar Egeu, entre Rodes e Creta. Muitos manuscritos de sua obra o confirmam. E sabemos que um bispo de Carpatos, chamado João, assinou os Atos do Concilio de Constantinopla em 680. De resto, é provável que, antes de se tornar bispo, nosso autor tenha vivido num mosteiro cenobítico, talvez em um dos mosteiros da ilha. Tudo evidencia que sua obra esteja ligada à escola do Sinai. Mas ela é original sob mais de um aspecto. A Filocalia de Nicodemo só utilizou dela dois testemunhos: uma centúria de capítulos e uma longa carta, ambas endereçadas aos monges da Índia.
Pelo tom, pela quantidade de notações a respeito da ordem cósmica e da ordem social, a Centúria é incontestavelmente uma obra pessoal. Mas por suas contínuas citações da Escritura, ela é também um testemunho de sabedoria bíblica. Nada é afirmado que não tenha alguma raiz nas Escrituras. A seiva bíblica está em toda parte, irriga todo o tecido filocálico. Mas os eventos e as palavras escriturárias não servem senão para ilustrar o combate interior, o combate espiritual, o que é característico da escola do Sinai.
Antes de tudo, o monge – o solitário – deve ser humilde, não confiar apenas na força da ascese corporal, fechar a porta a tudo o que mancha e corrompe, manter a língua no “bom silêncio”, fugir para a oração e a eucaristia. Ele reencontra assim o “estado de beleza”, a “simplicidade nua da natureza”, a “saúde do intelecto”. Então, para além do pecado, na nudez original, vem o Espírito Santo, o deslumbramento, a “glória da filha do Rei”. Toda a vida é entregue ao coração.
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A carta que completa a Centúria visa desviar o monge de comparar a sua vida à dos homens do mundo. Porque ele se ofereceu ao sofrimento, porque suas faltas estão a nu, mesmo seus defeitos estão “mais altos do que a justiça dos homens”. Porque ele foi aos extremos, ele se pôs em situação de nada dever a si mesmo e de tudo esperar da piedade de Deus. Porque ele se abriu para a eternidade ao invés de se fechar no século, ele está dedicado ao paradoxo das beatitudes. A consolação cintila nesta breve defesa e ilustração da vida monástica.
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TI, VII – JOÃO CARPATOS – Cem capítulos de exortações.
CEM CAPÍTULOS DE EXORTAÇÕES
Quando os mendigos levam aos reis da terra as flores da primavera, acontece muitas vezes que não apenas eles não sejam expulsos, mas que ainda recebam dons em troca. Também eu, porque vocês me ordenaram, reuni de muitas partes uma centúria de belas palavras e as ofereço a vocês, que têm parte na vida dos céus [1]. Que eu possa lhes ser agradável, e receber em troca o dom das suas orações. 1010
1. Enquanto for eterno o Rei do universo, cujo Reino não tem começo nem fim, também serão recompensados os esforços daqueles que escolheram sofrer por ele e pelas virtudes. Pois os homens da vida presente, por maior que seja seu esplendor, desaparecem totalmente com esta vida. Mas as honras de Deus liberta aqueles que são dignos dele, e as honrarias que lhes são dadas com a incorruptibilidade permanecem para sempre.
2. O bem-aventurado Davi, ao compor um hino a Deus cantado por toda a criação mencionou em primeiro lugar os anjos e todas as potências invisíveis, e depois desceu até a terra [2]. Ele não descartou nem as feras, nem as bestas do campo, nem os pássaros nem as serpentes. Ele considerava que o cântico das últimas criaturas adorava igualmente ao Criador. Pois ele queria que tudo o que foi criado por ele lhe oferecesse a mesma oferenda. Como então o monge, que é comparável ao ouro de Ofir [3], poderá suportar engordar ou ser preguiçoso quando lhe é pedido que cante o hino? 1011
1012
3. Assim como o fogo envolvia a sarsa mas não a consumia [4], também naqueles que receberam o carisma da impassibilidade, ainda que tenham o corpo pesado e quente, este calor não perturbará nem prejudicará a carne ou o intelecto. Pois a voz do Senhor extinguiu a chama da natureza. A vontade e a palavra de Deus separaram aquilo que a natureza unira. 1013
4. A lua que cresce e decresce expõe o estado do homem que ora faz o bem ora se entrega ao pecado, depois torna a se arrepender e volta à vida virtuosa. O intelecto que falhou não está, portanto, perdido, como alguns dentre vocês pensam, assim como não foi o corpo da lua que decresceu, mas sua luz. Assim, pelo arrependimento, o homem pode adquirir novamente o esplendor que lhe é próprio, do mesmo modo como a lua, depois de seu declínio, volta a se revestir de luz por si só. Pois aquele que crê em Cristo viverá, ainda que esteja morto [5]. E foi dito: “Saberão que eu, o Senhor, falei e faço [6]”. 1014
1010[1] 1011[2] 1012[3] 1013[4] 1014[5] 1015[6]
1015
Cf. Filipenses III, 20. Salmo CXLVIII; tb. Salmo CIV. Cf. I Reis X, 11. Cf. Êxodo III, 2. Cf. João XI, 26. Ezequiel XVII, 24.
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TI, VII – JOÃO CARPATOS – Cem capítulos de exortações.
5. Se, quando se levantarem os enxames das formações inimigas [7] contra a reflexão, você se deixar vencer, saiba que por algum temo você estará separado da graça divina, e que a partir daí, por uma justa sanção, você estará entregue nas mãos da queda [8]. Então, lute, para que a graça não o abandone por causa de sua negligência, ainda que por um só instante. Mas se, dominando a queda, você superar o muro dos pensamentos passionais e das contínuas sugestões impuras da malícia do inimigo, não ignore a graça que lhe foi concedida do alto. Com efeito, o Apóstolo disse: “Não eu, mas a graça de Deus que está em mim [9]” construiu este troféu, ergueu-me acima dos pensamentos impuros que se levantaram contra mim, e me libertou do homem injusto [10], ou seja, do diabo e do velho homem. É assim que, aliviado, separado do corpo pelas asas do Espírito Santo, eu pude voar mais alto do que os demônios que me perseguiram, capturaram o intelecto humano na aprovação daquilo que eles suscitaram e propuseram pela imposição e pela violência. Aquele que me fez sair da terra do Egito [11], deste mundo aonde se perdem as almas, derrubou Amalec [12] combatendo secretamente por mim, e me concedeu esperar que o Senhor extermine diante de nossa face [13] todas essas outras nações que são as paixões ímpias. É ele, nosso Deus, que nos dará a sabedoria e o poder [14], pois alguns receberam a sabedoria mas não o poder do Espírito que permite vencer os inimigos. É ele que erguerá a sua cabeça acima dos inimigos [15] e lhe dará asas como à pomba para que você voe e vá repousar junto de Deus [16]. O Senhor colocará em suas mãos um arco de bronze [17], ele lhe permitirá ser firme, hábil e forte contra o adversário, e ele fará tropeçar sob seus pés todos os que se voltaram contra você [18]. Entregue, assim, em oferenda ao Senhor, a graça da pureza, pois ele não o entregou nas mãos das vontades da sua carne e do seu sangue e dos espíritos corruptores e impuros que os excitam, mas o confortou com sua própria direita [19]. Construa para ele um altar, como Moisés depois de derrubar Amalec [20]. Eu o confessarei e o louvarei, Senhor, eu cantarei seu nome, exaltarei seu poder. [21] Pois você livrou mina vida da corrupção [22] e me resgatou das armadilhas e das malhas do mal feroz que nos cerca com suas numerosas formas. 1016
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6. Os demônios impuros acendem em nós as paixões impuras. Eles as renovam, exaltam e multiplicam. Mas as meditações da palavra de Deus, em especial aquelas que nos fazem derramar lágrimas, mortificam e dissolvem as paixões, por mais inveteradas que sejam. Pouco a pouco elas reduzem a nada os males da alma e as ações pecadoras do corpo. Apenas é preciso que nós, pela prece e uma esperança inflexível e intransigente, não negligenciemos o estar assiduamente junto a Deus.
1016[7] 1017[8] 1018[9] 1019[10] 1020[11] 1021[12] 1022[13] 1023[14] 1024[15] 1025[16] 1026[17] 1027[18] 1028[19] 1029[20] 1030[21] 1031[22]
Os maus pensamentos. Cf. Eclesiastes IV, 19. I Coríntios XV, 10. Cf. Salmo XVIII, 49. Cf. Êxodo XII, 51. Cf. Êxodo, XVII, 16. Cf. Deuteronômio IV, 38. Cf. Daniel II, 23. Cf. Salmo XXVII, 6. Cf. Salmo LV, 7. Cf. Salmo XVIII, 35. Ibid., 40. Cf. Isaías XLI, 10. Cf. Êxodo XVII, 5. Cf. II Samuel XXII, 50; Salmo XVIII, 50. Cf. Salmo CIII, 4.
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7. Porque põe Cristo louvor na boca de fiéis que são ainda como crianças quanto à malícia? Certamente porque ele converterá, graças à salmódia, o inimigo e justiceiro [23] que nos atormenta: o inimigo das virtudes e o justiceiro do mal, o diabo. Também nós, quando louvamos o Mestre na simplicidade do coração, destruímos em nós as armadilhas do inimigo. Pois, por sua imensa glória, você destruiu os adversários e os inimigos que nos combatem [24]. 8. Ser em si um aborto significa que consumimos agora a metade das coisas da carne, mas que a outra metade consumiremos no século por vir. Pois cada qual colherá os frutos de sua própria vida. 1032
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9. O melhor jejum, aquele que o monge deve preferir, é o de não se deixar enganar pelas paixões, e cultivar continuamente uma grande hesíquia.
10. Os demônios que odeiam nossa alma insinuam-se em alguns, até fazer com que sintamos prazer em qualquer vão elogio. Então, inchados de presunção, damos livre trânsito à vanglória, e nosso inimigos já não têm dificuldade alguma em nos capturar.
11. Abra antes ao que o censura do que ao que o elogia, pois deste está escrito que ele não difere em nada do que é maldito [25]. 1034
12. Quando, depois de se ter aplicado à virtude do jejum, você for obrigado a renunciar a este por causa de uma doença, dê graças, com o coração partido, àquele que é a providência e o juiz de todos nós. E se você quiser ser sempre humilde diante do Senhor, jamais se revolte contra ninguém.
13. Sabendo que a oração nos protege e mina o inimigo, este, aplicando-se em nos separar dela, insufla em nós o desejo pelas letras gregas [26], às quais havíamos renunciado, e nos incita a que nos dediquemos a elas. Não nos deixemos persuadir por ele. Perdendo o rumo de nossa própria tarefa, recolheríamos assim os espinhos e cardos em lugar dos figos e das uvas [27]. Pois a sabedoria deste mundo é loucura aos olhos de Deus [28]. 1035
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14. Foi dito: “Eu lhes anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo [29]”, não para uma parte do povo. E: “Que toda a terra o adore e cante [30]”. Não foi dito: “uma parte da terra”. E nem seria preciso. Cantar não é para quem pede socorro, mas para quem está alegre. Se é assim, não nos desesperemos 1038
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1032[23] 1033[24] 1034[25] 1035[26] 1036[27] 1037[28] 1038[29] 1039[30]
Cf. Salmo VIII, 1-2. Cf. Êxodo XV, 7. Provérbios XXVII, 14. A literatura profana. Cf. Mateus VII, 16. Cf. I Coríntios III, 19. Lucas II, 10. Salmo LXVI, 4.
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jamais, mas percorramos contentes a vida presente, pensando nesta alegria e nesta bem-aventurança que ela nos traz. Mas misturemos nesta alegria o temor a Deus, conforme foi dito: “Exultem no Senhor, tremendo [31]”. Foi assim, cheias de temor e grande alegria, que, correndo, as mulheres que acompanhavam Maria partiram do túmulo [32]. Também nós, se um dia unirmos o temor e a alegria, nos lançaremos do túmulo inteligível. Eu me admiro que seja possível ignorar o temor. Pois ninguém está sem pecado, mesmo Moisés, mesmo o apóstolo Paulo. Mas entre estes últimos, o amor divino foi mais forte, e baniu o temor [33] no momento do êxodo. 1040
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15. A Escritura testemunha que todo aquele que crê de todo coração e humildemente, ainda que apaixonado, receberá a graça da impassibilidade. De fato, foi dito: “Hoje você estará comigo no Paraíso [34]”. E: “Sua fé a salvou: vai em paz [35]”, na paz bem-aventurada da impassibilidade. E muitos outros textos com o mesmo sentido. E ainda: “A uva morrerá quando for esmagada [36]”. E: “Que aconteça com vocês conforme sua fé [37]”. 1043
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16. Quando somos sufocados pelas paixões e os demônios nos fustigam com maus pensamentos, devemos em primeiro lugar nos apoiarmos sobre a fé no Senhor e colocarmos com mais certeza ainda nossa esperança nos bens eternos prometidos, que os inimigos, em sua inveja, esmeram-se em nos despojar e em nos separar deles. Pois se estes bens não fossem tão grandes, os demônios não os invejariam, não queimariam de inveja, não nos perfurariam com pensamentos impuros como flechas, imaginando apaziguar seu furor demente e pensando reduzir-nos ao desespero à custa de nos atormentar de maneira insuportável.
17. Algumas pessoas têm como regra que o conhecimento mais verdadeiro é a prática. Portanto, esforcemse para em primeiro lugar traduzir em obras a fé e o conhecimento. Pois quem se agarra apenas ao conhecimento fica cego e ouvirá: “Eles dizem conhecer a Deus, mas o negam com suas obras [38]”. 1047
18. É no momento das festas e das santas sinaxes [39], em especial quando devemos nos aproximar da mesa mística, que com mais freqüência os demônios se esforçam em manchar o atleta com imaginações desonrosas e o fluxo de sêmen. Mas mesmo assim eles não conseguem alquebrar aquele que está habituado a suportar a tudo paciente e nobremente. Que estes seres tortos não se glorifiquem às nossas custas, como se eles fossem direitos.. 1048
19. Os inimigos fortificam contra si mesmos nosso caráter e nossa resolução quando dão à nossa alma as bofetadas de tantas e indizíveis tentações. Pois são as numerosas aflições inexprimíveis que tecem a coroa. 1040[31] 1041[32] 1042[33] 1043[34] 1044[35] 1045[36] 1046[37] 1047[38] 1048[39]
Salmo II, 11. Cf. Mateus XXVIII, 8. Cf. I João IV, 18. Lucas, XXIII, 43. Lucas VII, 50. Amós IX, XIII. Mateus IX, 29. Tito I, 16. Os ofícios litúrgicos.
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É nas fraquezas que se cumpre o poder de Cristo [40]. E é nas condições mais sombrias que costuma florescer a graça do Espírito Santo. “A luz levantou-se nas trevas para os homens direitos [41]”, “se mantivermos firmes até o fim a segurança e a esperança com que nos glorificamos [42]”. 1049
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20. Nada obscurece tanto a virtude quanto o deboche, o divertimento e o falatório. E nada renova tanto a alma envelhecida, nada a prepara tanto para se aproximar do Senhor, como o temor a Deus, a perfeita atenção, a meditação sem descanso nas palavras divinas, armando-se de orações e buscando a recompensa das vigílias.
21. Uma coisa útil e vantajosa para a alma é suportar com firmeza todas as aflições, quer venha dos homens, quer dos demônios, e considerar com rigor que as penas que nos oprimem são o preço que devemos pagar, enfim, jamais nos prendermos a outrem, mas sempre nos condenarmos. Pois quem reprova no outro suas próprias aflições perdeu o justo discernimento daquilo que deve fazer.
22. Pode acontecer que um homem, malgrado seu fervor, se afasta do caminho direito quando as tentações se multiplicam. Pois ele sai de sua ordem por haver, como diz a Escritura, esgotado toda a sua sabedoria e toda a sua arte [43]. Assim aprendemos a não confiar em nós mesmos [44], a fim de que Israel não se glorifique dizendo: “Foi minha mão que me salvou [45]”. Que ele aguarde ser estabelecido no seu estado primeiro, no estado de beleza, quando, por ordem de Deus, for derrubado e expulso o maligno que nos incita a colocar as paixões em tudo o que vemos e ouvimos, que nos arrasta ao pecado, que infla o intelecto como uma nuvem carregada, e que faz a carne se sentir pesada e inchada de modo indizível. Quanto à razão inata, que é uma coisa simples e natural, à semelhança das crianças recém-nascidas, o maligno faz dela uma coisa complicada e habilidosa para o bem dos pecados, alterando-a e desnaturando-a pela irresolução. 1052
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23. O homem é uma grande coisa. Ele cresce por dentro e mais ainda pelas virtudes. No entanto, este grande ser teme o pecado, como o elefante teme o camundongo, por medo de, após haver pregado aos outros, seja ele mesmo julgado inapto [46]. 1055
24. Não é apenas ao aproximar-se o fim do mundo que o diabo falará contra o Altíssimo, como diz Daniel [47], mas desde já, quando, por meio de nossos pensamentos, ele lança pesadas blasfêmias contra o céu, ultrajando o próprio Altíssimo, suas criaturas e os santos mistérios de Cristo. Mas nós, montados sobre o grande rochedo do conhecimento, não nos deixemos amedrontar por estas blasfêmias nem nos espantar com a audácia do maldito. Consagrando-nos com mais e mais fervor à fé e à oração, e recebendo socorro do alto, conseguiremos repelir o inimigo. 1056
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Cf. II Coríntios XII, 9. Salmo CXII, 4. Hebreus III, 6. Cf. Salmo CVII, 27. Cf. II Coríntios I, 9. Juízes VII, 2. Cf. I Coríntios IX, 27. Daniel VII, 25.
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25. Combatendo e injuriando com impudência, o inimigo assalta a alma que acaba de sair do corpo. Ele se mostra o amargo e temível denunciador das suas faltas. Mas é possível vermos então esta alma cheia de fé e de amor a Deus, ainda que antigamente tenha sido mortificada pelos pecados, não se deixar assustar por estes ataques e estas ameaças, mas antes colocar sua força no Senhor e, levada pelas asas da alegria encorajada pelas santas potências que a conduzem e rodeada pela luz da fé, responder com grande segurança ao demônio maligno: “O que existe entre você e nós [48], estranho a Deus? O que existe entre você e nós, desertor dos céus e mau servidor? Você não tem poder sobre nós. É Cristo, Filho de Deus, que tem poder sobre nós e sobre todos. Contra ele pecamos, e por ele somos defendidos. Temos sua cruz preciosa como garantia de sua misericórdia para conosco e de sua salvação. Fuja para longe de nós, miserável. Nada existe entre você e os servidores de Cristo”. Quando a alma diz estas coisas com coragem, o diabo vira as costas, lamentando-se com grandes gritos, incapaz de resistir ao nome de Cristo. Chegando ao alto, a alma desce voando sobre o inimigo para feri-lo, como o pássaro que se chama “Asa rápida [49]” quando mergulha sobre o corvo. Depois ela é transportada em felicidade pelos anjos divinos aos lugares que lhe estão assinalados conforme seu estado. 1057
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26. Se consentida, a menor tentação impede o monge mais fervente de progredir. Convença-se com o exemplo da rêmora [50], este peixe minúsculo capaz de deter apenas com seu contato um grande navio [51], sem que este consiga se desembaraçar de tal obstáculo. E lembre-se daquele que disse: “Eu, Paulo, quis chegar ao Senhor uma, duas vezes, e Satanás o impediu [52]”. Mas não se perturbe com isto. Antes, lute com toda a sua paciência, e você encontrará a graça. 1059
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27. Se o homem, por florescente de virtudes que seja, cai na negligência e se desvia daquilo que deve fazer, rapidamente ele verá cair sobre si os filhos pérfidos do Oriente – Amalec e, sobretudo, Madian, a potência que ama a prostituição [53] – com seus camelos, que são as lembranças apaixonadas, que não têm número, e eles corrompem todos os frutos da terra [54]: as melhores ações e os melhores hábitos. Então Israel se empobrece, definha, e é obrigado a apelar para o Senhor. É assim que do céu é enviada uma boa inspiração, semelhante à que Gedeão recebeu, por sua grande fé e sua grande humildade. “Minha família, dizia ele, é a mais humilde de Manasses [55]”. Eu e meus pobres trezentos homens [56], somente pela graça poderemos nos opor a tamanhas multidões e alcançar paradoxalmente os troféus. 1062
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28. Você não será capaz de caminhar sobre a áspide e o basilisco [57], etc., se, após orar a Deus com inúmeras súplicas, não receber dele anjos que o protejam, que o carreguem com suas próprias mãos e o levem além dos pensamentos pantanosos. 1066
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Cf. Mateus VIII, 29. Oxyptérix. Na Antigüidade a rêmora era considerada capaz de deter grandes embarcações. Myriophoron. Literalmente: um navio que transporta mil ânforas. I Tessalonicenses II, 18. Cf. Juízes VII, 12. Cf. Juízes VI, 4. Juízes VI, 5. Cf. Juízes VII, 7. Cf. Salmo XCI, 13.
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29. Se formos vencidos depois de lutarmos valorosamente, não devemos nos desencorajar, nem renunciar, mas nos levantarmos e recuperarmos a confiança escutando as palavras de Isaías, cantando: “Vocês que eram fortes foram vencidos, demônios malignos. E se vocês voltarem com força serão novamente vencidos. Se vocês tiverem projetos, o Senhor os dispersará. Pois Deus está conosco [58]”, Deus que ergue os que foram derrubados [59] e que está sempre pronto a destruir nossos inimigos desde que nos arrependamos. 1067
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30. É impossível a um homem testado pelas tentações atravessá-las sem sofrer. Mas depois disto, tendo cultivado a pena e a aflição em seu coração, tal ser será cumulado de felicidade, doces lágrimas e pensamentos divinos.
31. Se tanto Isaac como Esaú fracassaram, um no desejo de abençoar, outro correndo para ser abençoado [60], porque concede sua piedade, sua bênção e a unção do Espírito, não a quem queremos, mas a quem está predestinado, não nos perturbemos nem fiquemos enciumados quando vemos progredir em virtude algum dentre os mais miseráveis e menores de nossos irmãos. Nisto está aquilo que você ouviu dizer o Senhor: “Ceda-lhe o lugar, para que ele se assente mais acima [61]”. Eu admiro mais aqui a sábia e misteriosa decisão do juiz: que o menor e último seja o primeiro e nos conduza, e que nós, que estávamos mais adiantados, tanto no tempo como em ascese, sejamos os últimos. Manteremos assim o lugar que cada um de nós recebeu do Senhor [62]. Se vivemos pelo Espírito, caminhemos também pelo Espírito, conforme está escrito [63]. 1069
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32. Jamais aceite que aquele que lhe está confiado lhe diga: “deixe-me livre, para que eu procure a virtude, para que eu tente fazer isto ou aquilo, e assim eu caminhe no caminho direito”. Pois é claro que quem fala deste modo cumpre com sua própria vontade e transgride o melhor: a obediência.
33. Ainda que as paixões da carne e da alma tenham proliferado, elas desaparecerão com o tempo e por ordem de Deus. Mas a piedade de Cristo jamais perece. Pois a piedade do Senhor, do século atual ao século futuro revestirá aqueles que o reverenciam [64]. 1073
34. Os tesouros dos reis serão cheios de ouro [65], e os intelectos daqueles que são verdadeiramente monges serão cumulados de conhecimento. 1074
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Isaías VIII, 10. Cf. Salmo CXLV, 14. Gênesis, XXVII. Lucas XIV, 19. Cf. I Coríntios VII, 17. Cf. Gálatas V, 25. Cf. Salmo CII, 17. Cf. Ezequiel XXVIII, 13.
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35. Pode acontecer que o mestre se exponha à desonra quando toma sobre si as tentações pelo bem daqueles a quem socorre espiritualmente. De fato, foi dito: “Temos um espinho na carne, somos desonrados, desprezados, fracos. Mas vocês, vocês são gloriosos e fortes em Cristo [66]”. 1075
36. A fonte e o fundamento da corrupção que nos vem pela carne é o pensamento passional, que aquele que permanece sóbrio e vigilante após a queda expulsa por meio do arrependimento da alma. Pois vocês tomaram o luto, para que dentre vocês seja arrebatado [67] o pensamento mau e ímpio que os levou a praticar tal obra. O luto se opõe ao espírito da corrupção. 1076
37. Àquele que desanima por sua impotência e obscuridade no caminho das virtudes, quem anunciará que ele verá a Jesus, não apenas no século futuro, mas desde já, aqui em baixo, vindo a ele pela graça da impassibilidade, como todo o poder e grande glória [68]? Este homem poderá então dizer com Sara, esta alma envelhecida na esterilidade e que, contra todas as previsões, gerou um filho de justiça: “Deus me deu motivos para rir [69]”, ou seja: ele deu uma alegria imensa a alguém que durante anos foi afligido por tantas paixões. Ou ainda, como expressou um outro intérprete: “Deus me cumulou de doçura. Ele renovou minha juventude como o fez à águia [70]”. Pois, após ter envelhecido nos pecados e nas paixões infamantes, agora eu renasci, reencontro a força e a doçura, eu que antes definhava na matéria. E é com um olhar apaziguado que eu agora vejo as coisas que estão no mundo. Eu reencontrei a simplicidade nua da natureza, ao mesmo tempo que a saúde do intelecto curado pela grande misericórdia de Deus. Por ter-me banhado no Jordão do conhecimento. Minha carne, como a do sírio Naaman [71], tornou-se semelhante à carne das criancinhas. Daqui em diante, pela graça de Deus, minha vida é una, eu me libertei da vontade da serpente [72] e do enxame dos pensamentos das malícias múltiplas e de todas as espécies, que antes, contra a natureza, trazia em mim. 1077
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38. Lembre-se que o Senhor lhe disse: Eu lhe roubei um dia tal ou tal graça na qual parecia-lhe que seu intelecto estava em estado de plenitude e repouso. E lhe dei em seu lugar tal ou tal graça equivalente. Ora, você, pensando na que eu lhe tirei e não vendo a que lhe dei em substituição, se tornou sombrio, aflito, mortificado pela tristeza. Mas entristecido assim por mim, você me alegra [73]. Quanto a mim, se estou triste, é para seu benefício, pois eu faço tudo para salvar, jamais para perder, a quem eu vejo como um filho. 1082
39. Estabeleça para si mesmo uma regra de não comer peixe. E lembre-se então que o inimigo fará de tudo para levá-lo a querer comer peixe. Da mesma forma, você se sentirá tolamente impelido a usufruir tudo o que lhe for proibido, a fim de aprender o que Adão conheceu, o que lhe aconteceu literalmente. De fato,
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I Coríntios IV, 10; II Coríntios XII, 7. Cf. I Coríntios V, 2. Cf. Mateus XXIV, 30. Gênesis XXI, 6. Cf. Salmo CIII, 5. Cf. II Reis V. Cf. Gênesis III, 1 e ss. Cf. II Coríntios II, 2.
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quando ele ouviu: “Desta única fruta você não comerá [74]”, foi justamente para esta única coisa proibida que ele correu e na qual colocou todo o seu desejo. 1083
40. Pois Deus salva a um pelo conhecimento, e a ouro pela pureza e a inocência. Você deve saber: “Deus jamais afastará o inocente [75]”. 1084
41. Aqueles que mais se aplicam à oração são atormentados por terríveis e selvagens tentações.
42. Se você decidiu revestir-se da impassibilidade, não negligencie nada, mas esforce-se o quanto puder para alcançá-la. Pois nós gememos, desejosos de vestir por sobre nós a moradia celeste, a fim de que, não apenas em nosso corpo após o fim do mundo, mas desde já, aqui em baixo, pelos dons que recebemos do espírito, o que é mortal seja absorvido pela vida [76]. Pois a morte foi engolida pela vitória [77]. E todos os Egípcios que nos atormentam e nos perseguem serão engolidos pelas ondas do poder que nos foi enviado do céu [78]. 1085
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43. Se você esquecer aquele que disse: “Temo que após haver pregado aos outros eu me vejo como inapto [79]”, e “Que aquele que está de pé tome cuidado para não cair [80]”, e “Você que é espiritual, vigie a si mesmo, para que não seja você também tentado [81]”, se você ignora o erro e a iniqüidade cometidos por Salomão depois de tão grande graça [82], e se você deixar na sombra a inesperada negação do grande apóstolo Pedro [83], então conforte-se com seu conhecimento, vanglorie-se da vida que você leva, glorifique-se do tempo que passou na grande ascese, de livre curso ao orgulho. Mas não se desvie assim jamais, irmão. Antes, permaneça no temor, enquanto você respirar, ainda que você atinja a idade de Moisés [84]. Reze e diga: “Senhor, não me rejeite no tempo de minha velhice. Não me abandone, agora que minha força declina [85]”. “Em você eu não deixo nunca de cantar [86]”. 1088
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44. O Senhor lhe diz, como disse a Mateus: “Siga-me [87]”. Assim, se você busca de todo o coração seu Mestre bem-amado, acaso seu pé tope com a pedra das paixões [88] no caminho da vida, ou, com mais 1096
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Gênesis II, 17. Jó VIII, 20. Cf. II Coríntios V, 2-4. Cf. I Coríntios XV, 54. Cf. Êxodo XIV, 27-28; Salmo CVI, 11. I Coríntios IX, 27. I Coríntios X, 12. Gálatas VI, 1. Cf. I Reis II, 1 e ss. Cf. Mateus XXVI, 70. Cf. Deuteronômio XXXIV, 7. Salmo LXXI, 9. Salmo LXXI, 6. Mateus IX, 9. Cf. Salmo XCI, 12.
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freqüência, caso você escorregue sem querer na lama e caia, cada vez que você cair e ferir seu corpo levante-se com todo seu coração e busque o Senhor, até que você o alcance. Assim é que “no seu santuário, com sua lembrança, eu me detenho diante de você para ver seu poder e sua glória” que me salvarão, e “em seu nome, Senhor, eu erguerei minhas mãos e responderei. De óleo e gordura serei saciado e meus lábios se regozijarão cantando [89]”. Pois para mim é uma grande coisa ser chamado de cristão, como me disse o Senhor por meios de Isaías: “É uma grande coisa para você ser chamado de meu filho [90]”. 1098
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45. Já foi dito que o Pai dará coisas boas a quem lhe pede [91], e também que ele dará o Espírito Santo aos que oram [92]. Por essas palavras podemos ver que aqueles que suplicam a Deus e são confortados com o pensamento de tal esperança, recebem não apenas a remissão das faltas, mas também o dom das graças celestes. Pois não é aos justos, mas aos pecadores, que o Senhor promete seus bens. “Se vocês, diz ele, que são maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais dará o Pai celeste o Espírito Santo àqueles que lhe rogam [93]”. Assim, peça, sem jamais relaxar, sem jamais hesitar, ainda que você seja o último a poder levar uma vida virtuosa, ainda que você seja muito fraco, ainda que você esteja longe de qualquer honra, e você receberá as maiores coisas. 1100
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46. Como convencer o incrédulo, ou o homem de pouca fé, de que a formiga pode ter asas, que uma lagarta pode voar, e que muitas outras coisas paradoxais encontram-se na criação, a fim de que, desembaraçando-se da doença da incredulidade e do desespero, também ele se torne alado, e, como uma árvore, se cubra das flores do santo conhecimento? De fato, foi dito: “Sou eu que faço florir a árvore morta e que dou vida aos ossos ressequidos [94]”. 1103
47. Não nos deixemos consumir pelos cuidados que nos causam as necessidades do corpo. Creiamos em Deus com toda nossa alma, como disse um homem bom: “Confiem-se ao Senhor e receberão sua confiança”. Ou como escreveu igualmente o apóstolo Pedro: “Sejam castos, sóbrios e vigilantes nas orações. Coloquem nas mãos de Deus todos os seus cuidados. Pois ele cuidará de vocês [95].” Mas se você ainda hesita e não crê que ele vela por você para nutri-lo, lembre-se da aranha, e saiba o quanto o homem difere dela. Falo da aranha, que é o mais fraco e mais pobre dos seres. Ela não tem nada de seu, ela não reivindica, ela não disputa, ela não acumula, ela passa sua vida numa doçura e numa castidade totais, na extrema hesíquia, ela não se ocupa senão dos seus, ela permanece em seu próprio trabalho em estado de serenidade, de calma, ela só fala aos que veneram o ócio para lhes dizer: “Se um homem não quer fazer nada, que também ele não coma [96]”. Ela se cala a ponto de superar Pitágoras, que os Gregos admiravam acima de todos os filósofos por saber aquietar sua língua. Ora, ainda que não falasse a qualquer um, Pitágoras não deixava de conversar secretamente, de tempos em tempos, com os homens que lhe eram mais caros. Às vezes ele se dirigia aos bois ou às águias, ele gostava de lhes dizer coisas tolas ou delirantes. Ele se abstinha totalmente de vinho, e bebia somente água. Ora, por seu extremo silêncio que ultrapassa a tudo, a aranha supera o domínio que Pitágoras tinha de sua língua. Ela desdenha o vinho tanto 1104
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Salmo LXIII, 3 e 5. Isaías XLIX, 6. Cf. Mateus VII, 11. Cf. Lucas XI, 13. Lucas XI, 13. Cf. Ezequiel XVII, 24 e XXXVII, 1-11. I Pedro V, 7-8. II Tessalonicenses II, 10.
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quanto a água. Assim é a débil e humilde aranha, que vive assim em estado de hesíquia, que nunca sai ao exterior, que não vagueia conforme sua fantasia, nem trabalha e pena além da conta. O Senhor que permanece nas alturas dos céus e vê quem é humilde [97] (e ninguém é mais humilde do que a aranha), estendendo até ela sua providência, envia a cada dia um pouco de comida à sua pequena moradia, fazendo cair em sua teia os insetos de que ela necessita. 1106
48. Mas alguém que esteja submetido pela voracidade poderá dizer: “Eu como uma enormidade, e como eu tenho muitos gastos, sou obrigado a me haver com inúmeros negócios desta vida [98]”. Que este homem se lembre das grandes baleias que levam suas vidas no oceano Atlântico, que são abundantemente alimentadas por Deus e que jamais conhecem a fome. De fato, cada um destes animais engole uma quantidade de comida que mesmo uma cidade de bom porte não conseguiria consumir em um dia. Foi dito: “Todos esperam de você que os alimente a seu tempo [99]”. Portanto, é Deus quem alimenta, tanto o que come muito como o que come pouco. Se você ouvir estas coisas, mesmo você cujo ventre é gordo e grande, confie-se daqui em diante inteiramente a Deus e à fé. Desembarace-se de todas as distrações do mundo e de todos os cuidados do intelecto. Não seja mais incrédulo, mas creia [100]. 1107
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49. Se quisermos realmente agradar a Deus e nos ligarmos a ele com uma benfazeja amizade, voltemo-nos para ele com o intelecto nu, desembaraçado das coisas do século presente, de toda arte, todo pensamento, todo interesse, toda justificação, ainda que tenhamos sido instruídos com toda a sabedoria do mundo. Pois o divino dá as costas aos que chegam a ele com presunção, alimentados e inchados de vanglória; é o que certos intérpretes chamaram de pasto e que infla a vã presunção. 50. Como podemos vencer o pecado, quando ele nos capturou? A violência é necessária. Com efeito, foi dito: “Um homem escapa da perdição dando-se ao trabalho [101]”, esforçando-se continuamente para alcançar a saúde de seus próprios pensamentos. Destruir a violência com a violência nunca foi proibido pelas leis. Assim, se fazemos alguma obra de violência – ainda que pouca – e se esperamos daí por diante que nos chegue o poder do alto, enquanto permanecemos em Jerusalém [102], ou seja, em incessante oração e outras virtudes, algum dia esta obra nos trará uma grande violência, que não se poderá comparar com a nossa, que é fraca. Os lábios da carne são incapazes de expressar esta violência, capaz de dominar com sua força e vencer os piores hábitos e a malícia dos demônios, capaz de vencer até mesmo o impulso que empurra nossas almas para o pior, capaz de vencer inclusive os movimentos descoordenados do corpo. De fato, foi dito: “Veio do céu um ruído como o de um sopro violento [103]”, para expulsar a malícia que nos faz sempre nos voltarmos para o pior. 1110
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51. O inimigo está de tocaia como o leão em sua caverna [104]. Para nos capturar ele esconde as armadilhas e as armas dos pensamentos impuros e ímpios. Mas nós, se não dormirmos, poderemos lhe opor redes, armas e armadilhas mais fortes e mais duras. Pois a prece, a salmódia, a vigília, a humildade, o serviço 1113
1106[97] Cf. Salmo CXIII, 5-6. 1107[98] Cf. II Timóteo II, 4. 1108[99] Salmo CIV, 27. 1109[100] Cf. João XX, 27. 1110[101] Provérbios XVI, 26. 1111[102] Cf. Lucas XXIV, 49. 1112[103] Atos II, 2. 1113[104] Cf. Salmo X, 9.
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pelo próximo, a compaixão, a eucaristia, a atenção às palavras divinas são a armadilha, a rede e o fosso, o chicote, o poder e as armas que nos protegem do inimigo.
52. Chegado a uma idade avançada, e dando graças a Deus por tê-lo eleito, o divino Davi disse ao final da bênção: “Agora seu servidor encontrou coragem para lhe dizer esta prece [105]”. Isto foi dito para que aprendamos que é preciso consagrar à oração muito esforço e tempo antes de descobrir este estado aprazível da reflexão, que é como um outro céu no coração, aonde reside o Cristo, como disse o Apóstolo: “Não sabem que Cristo habita em vocês? [106]” 1114
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53. Se Cristo se tornou para nós justiça, sabedoria [107], etc., é evidente que ele também se tornou nosso repouso. De fato, foi dito: “Venham a mim, vocês que penam e dobram sob a carga, e eu lhes darei o repouso [108]”. É exatamente por isso que foi escrito que o sábado – ou seja, o repouso – foi feito para o homem [109]. Pois em Cristo, e somente nele, a raça humana encontrará o repouso. 1116
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54. Assim como existe um cálice de vertigem e um copo de cólera [110], também existe um cálice de fraqueza. Quando chegar o tempo, Cristo afastará de nós este cálice e o colocará nas mãos de nossos inimigos, para que daí em diante sejam eles, os demônios, e não nós, que fraquejem e tombem. 1119
55. Assim como nas coisas exteriores existem cambistas, tecelões, criadores de pássaros, guerreiros, artesãos, lembre-se que nas coisas interiores existem entre os pensamentos ladrões, enganadores, envenenadores, caçadores, corruptores, assassinos, etc. É preciso fechar a porta rapidamente a estes lhes opondo a piedade e a oração. Mas é preciso acima de tudo fechar aos corruptores, a fim de que eles não profanem o lugar santo [111] nem manchem o homem de Deus. 1120
56. Não é apenas pela palavra que podemos arrancar nossa salvação do Senhor, como aconteceu com o ladrão que gritou do alto de sua cruz [112], mas também pelo pensamento. De fato, está escrito: “A mulher que sangrava disse a si mesma: se eu apenas tocar a franja de seu manto serei salva [113]”. Foi também pelo pensamento que o servidor de Abraão falou a Deus sobre Rebeca [114]. 1121
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1114[105] 1115[106] 1116[107] 1117[108] 1118[109] 1119[110] 1120[111] 1121[112] 1122[113] 1123[114]
II Samuel VII, 27. II Coríntios XIII, 5. Cf. I Coríntios I, 30. Mateus XI, 28. Marcos II, 27. Cf. Isaías LI, 17. Cf. Atos XXI, 28. Cf. Lucas XXIII, 42. Cf. Mateus IX, 21. Cf. Gênesis XXIV, 12-15.
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57. O próprio pecado pode fazer voltar-se para Deus aquele que se arrepende e que toma consciência de seu mau cheiro, da gravidade e da loucura de sua falta. Mas quem não quer se entregar ao arrependimento não se volta para Deus. Ao contrário, este guarda consigo sua falta, amarra-a com nós que ninguém consegue desatar, e o pecado o faz desejar cada vez mais intensa e violentamente sua própria perda.
58. Proteja-se contra os venenos de Jezebel [115], dos quais os piores são o orgulho e a vanglória. Você conseguirá, com a graça de Deus, se fizer pouco caso de sua alma, se a desprezar, se se prostrar diante de Deus, se clamar por seu socorro, se souber que as graças vêm do Céu. É por isso que foi dito: “Ninguém recebe nada que não lhe tenha sido enviado do céu [116]”. 1124
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59. A lei diz: “Se for testemunhado contra ele, e se ele não puder se desculpar, ele pagará [117]”. Imagine que numa festa chegue a você um pensamento de vanglória, e que queira fazer você falar desmedidamente. Mas os pensamentos angélicos o defendem. Eles afastam o pensamento falador e intempestivo. Se você não se afastar deste pensamento por meio de um silêncio salutar e permitir-lhe que se manifeste exteriormente, se você se deixar levar pelas fumaças do orgulho, então você terá que pagar a dívida, você será entregue com toda justiça, seja a um grande pecado, seja a graves sofrimentos corporais, ou à reprovação dos seus irmãos, ou ao castigo no século futuro. Pois nós prestaremos conta de toda palavra estéril e vã [118], por não sabermos controlar a língua. Devemos, portanto, guardar nossa língua com toda sobriedade e com toda vigilância. 1126
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60. Daqueles que são tentados pelos prazeres, pelos desejos, pelo amor à glória e pelos outros vícios, é dito que eles queimam de dia pelo sol e de noite pela lua [119]. Reze, então, para ser coberto pela divina nuvem que espalha o orvalho [120], a fim de escapar da chama ardente dos inimigos. 1128
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61. Não dê assento aos que são levados pelo vinho e se submetem às desordens à mesa. Também não acolha os que querem lhe falar com impudência, ainda que tenham passado longos anos na vida monástica. Não os permita, para que a podridão não o cubra, como diz a Escritura [121], e para que você não seja levado junto com os corações impuros e incircuncisos. 1130
62. Primeiro Pedro recebeu as chaves, e depois Deus permitiu que ele caísse na negação [122], para que esta queda representasse para ele uma lição de prudência. Assim, se depois de haver recebido a chave do conhecimento, você cair em toda espécie de pensamentos, não se surpreenda. Mas glorifique o único sábio, nosso Senhor, que por meio desses acidentes coloca um freio à presunção que tenta se juntar ao conhecimento divino. Pois as tentações são um freio. Elas podem refrear o orgulho humano, pela providência de Deus. 1131
1124[115] 1125[116] 1126[117] 1127[118] 1128[119] 1129[120] 1130[121] 1131[122]
Cf. II Reis IX, 22. João III, 27. Êxodo XXI, 36. Cf. Mateus XII, 36. Cf. Salmo CXXI, 6. Cf. Êxodo XIV, 19. Jó XXI, 26. Cf. Mateus XVI, 19; XXVI, 70.
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63. Se muitas vezes o Senhor nos toma os bens, como fez com a riqueza de Jó – “o Senhor dá, o Senhor toma [123]” – sem dúvida nenhuma o Eterno tirará de nossas mãos também os males que nos enviou. De fato, foi dito: “Os bens e os males vêm do Senhor [124]”. O mesmo que nos enviou os males nos dará também a alegria e a glória eternas. “Do mesmo modo, diz o Senhor, como me levantei para destruí-los e fazer-lhes mal, eu reconstruirei ao invés de derrubar e plantarei ao invés de arrancar [125]”. Que se cale, portanto, o conhecido provérbio que diz: “Quem vai mal está privado de todo bem”. Pois o Senhor que faz irem mal as coisas, pode subitamente recolocá-las na luz. 1132
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64. Aquele que por meio da virtude, seja pela temperança, seja pela oração, se opõe aos demônios com força e veemência, receberá deles golpes cada vez mais duros, até que, vendo sua alma condenada à morte do intelecto [126], chegue ao desespero e acabe por dizer: “Quem me libertará deste corpo de morte? [127]” Pois eu fui constrangido contra minha vontade a submeter-me às leis do inimigo. 1135
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65. Não é sem razão que foi escrito: “Eles dirão entre si: Levantem-se, e vamos atacar este povo confiante e tranqüilo [128]”. Ou ainda: “Vamos, falemos com eles com mentiras, vamos desviá-los da verdade para que eles venham para nós [129]”. Pois os demônios malvados costumam afiar a espada das tentações contra os que escolheram a vida hesiquiasta. E quanto mais estes se dedicam à piedade e veneram a Deus, mais eles se tornam furiosos e mais eles empurram, em combates insustentáveis, para as obras do pecado. Eles chegam a desviar da fé em Cristo, da oração e da boa esperança aqueles a quem combatem assim. Mas nós, como disse Davi, “não nos desviaremos de você até que você tenha compaixão de nós [130] e que se afastem de nós aqueles que nos devoram [131]”. “Não nos desviaremos de você até que você tenha ordenado que se afastem de nós os que nos tentam, e que sejamos levados à vida pela paciência e uma firme impassibilidade. Pois a existência do homem é uma provação [132]. Muitas vezes, por um dado tempo, Aquele que dirige os combates o faz cair aos pés dos estrangeiros. Mas é próprio da alma nobre e generosa não se desesperar diante das infelicidades. 1137
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66. Se o demônio é forte o bastante para transformar o homem, mesmo contra a sua vontade, e arrastá-lo em seu próprio movimento fazendo-o sair do bom estado natural, quanto mais força não terá o Anjo que, num momento determinado, recebe de Deus a ordem de orientar para o melhor as faculdades do homem: Se o vento do norte glacial é forte o bastante para dar uma dureza de pedra à fluidez da água, o que não fará o fervente vento sul? Se o ar gelado força todas as coisas a obedecê-lo – pois quem poderá resistir ao frio [133]? – como não transformará o calor todas as coisas nelas mesmas? Pois quem poderá resistir ao 1142
1132[123] 1133[124] 1134[125] 1135[126] 1136[127] 1137[128] 1138[129] 1139[130] 1140[131] 1141[132] 1142[133]
Jó I, 21. Eclesiastes XI, 14. Jeremias XXXVIII, 28; XXIV, 6. Cf. II Coríntios I, 9. Romanos VII, 24. Cf. Juízes XVIII, 27. Cf. Isaías VII, 6. Cf. Salmo CXXIII, 2. Cf. Isaías VII, 6. Jó VII, 1. Cf. Salmo CXLVII, 17.
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calor [134]? Assim, acreditamos que tanto p frio como o negro carvão de nossa reflexão tornar-se-ão cedo ou tarde calor e luz sob a ação do fogo divino. 1143
67. Existe um estado sempre presente que coloca no recôndito de nosso coração o testemunho e o signo da impassibilidade de José. Nós somos uma só coisa com este estado, segundo o qual o intelecto, ao sair do Egito, se desembaraça dos sobressaltos passionais e da servidão infamante dos vasos de barro, e escuta uma língua que ele não conhecia [135], não mais a língua dos demônios, que é suja e corrompe toda reflexão, mas a santa língua dos anjos que trazem a luz, e que faz o intelecto passar do corpóreo ao incorpóreo. Esta língua ilumina a alma que a recebe. 1144
68. Eu escutei dizer alguns irmãos, que estavam continuamente doentes em seus corpos e que não podiam se dedicar ao jejum: “Como é possível sermos libertos do diabo e das paixões sem o jejum?” A resposta é: “Não é apenas pela abstenção a certos alimentos, mas pela súplica do coração, que vocês poderão extirpar e banir os vícios e aqueles que os avivam em vocês”. Com efeito, está dito: “Em sua aflição eles suplicaram ao Senhor, e ele os libertou [136]”. E também está escrito: “Do fundo do inferno eu supliquei. Você escutou a minha voz. Que minha vida supere a corrupção [137]”. Até que passe a iniqüidade, ou seja, a perturbação do pecado, está escrito: “Eu supliquei ao deus Altíssimo [138]”, a fim de que ele detenha com seu poder esta agressão do pecado, que ele apague as imagens suscitadas pela reflexão passional e que ele liberte nos corações fracos e cheios de ídolos. Se você não recebeu a graça da temperança, saiba: é pela prece e a esperança que o Senhor concederá aquilo que você pede. Assim, conhecendo a ordem do Mestre, não se desencoraje diante da impotência de sua ascese. Ao contrário, aplique-se em se afastar do inimigo pela oração e pela paciência reconhecida. Assim, se os pensamentos engendrados pela fraqueza e a miséria de sua natureza os expulsam da cidade em que reina o jejum, fujam para outra [139], ou seja, para a oração e a eucaristia. 1145
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69. O Faraó suplicou: “Que Deus afaste de mim esta morte [140]”, e ele foi atendido. Da mesma forma os demônios, quando imploraram a Deus que não os atirasse ao abismo, receberam o que haviam pedido [141]. Muito mais atendido será o homem cristão, quando ora para ser liberto da morte do intelecto. 70. Aquele que, durante um tempo, recebeu a graça divina da luz e do repouso, e que tombou na errância ao ser-lhe retirada esta graça, resmunga contra quilo que lhe acontece e, desesperando-se, não tem coragem de pedir pela oração esta plenitude salutar, é semelhante ao pobre que recebeu uma esmola do palácio, mas fica indignado por não poder entrar e almoçar com o rei. 1149
1150
71. Bem-aventurados aqueles que não me viram e creram [142]. E quando a graça é retirada, bemaventurados os que não encontram consolo em si mesmos, que vêem prolongar-se a aflição e as trevas 1151
1143[134] 1144[135] 1145[136] 1146[137] 1147[138] 1148[139] 1149[140] 1150[141]
Cf. Eclesiastes XLIII, 3. Cf Salmo LXXXI, 6-7. Salmo CVII, 6. Jonas II, 3-7. Salmo LVII, 3. Mateus X, 23. Êxodo X, 17. Mateus VIII, 31.
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profundas e não se desesperam, mas que recebem da fé a força de considerar que vêem o invisível, e de perseverar nobremente [143]. 1152
72. A humildade que a graça de Deus concede aos que o buscam, depois de muitas lutas, penas e lágrimas, é imensamente mais forte e maior do que a humilhação experimentada pelos que desistem da virtude. Os que assim recebem a humildade são homens verdadeiramente perfeitos e irrepreensíveis.
73. Quando o diabo deixou o Senhor, os anjos vieram para servi-lo [144]. É preciso saber: assim como está escrito que os anjos estavam lá enquanto era tentado, também nós temos por perto os anjos de Deus quando somos tentados em certos momentos. Depois que partem aqueles que nos tentavam, chegam para nos servir os pensamentos divinos, os socorros, a iluminação, a compunção, a consolação, a paciência, a doçura, tudo aquilo que salva, conforta e reanima a alma que sofreu. Com efeito, foi dito a Natanael: “Você verá os anjos a subir e a descer sobre o Filho do homem [145]”, ou seja: o serviço e o auxílio dos anjos serão espalhados com abundância sobre a raça dos homens. 1153
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74. Lembre-se deste grande sacerdote a cuja direita sentou-se o diabo para se opor a ele [146] em todos os pensamentos, palavras e ações corretas. Lembre-se, a fim de que tudo o que lhe acontecer não o perturbe. 1155
75. É bom que o monge saiba o que é a fraqueza, esta fraqueza da qual foi dito: “Tem piedade de mim, porque eu sou fraco [147]”. Também é bom que ele saiba o que é o afastamento de Deus, esta apostasia que é doença do diabo e de seus anjos. 1156
76. Assim como é impossível tocar o ferro que foi posto no fogo, também as orações freqüentes tornam mais forte o intelecto em seu combate contra os inimigos. É por isso que estes, com toda sua força, esforçam-se para nos fazer negligenciar a assiduidade da prece, sabendo que ela lhes é hostil e que ela protege o intelecto.
77. Davi considerava a boa vontade daqueles que, tendo saído com ele de Tsliklag para marchar contra os estrangeiros, detiveram-se ante a correnteza de Bosor, esgotados de fadiga [148]. Com efeito, retornando a eles depois da vitória sobre os bárbaros, e tendo ouvido propostas de que não se deveria dar parte do butim àqueles que, por serem fracos, ficaram retidos pela correnteza, Davi, em sua grande bondade, tomou sua 1157
1151[142] Cf. João XX, 29. 1152[143] Cf. Hebreus XI, 17. 1153[144] Cf. Mateus IV, 11. 1154[145] João I, 52. 1155[146] Cf. Zacarias III, 1. 1156[147] Salmo VI, 3. 1157[148] Cf. I Samuel XXX.
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defesa, quando até mesmo estes, envergonhados, não sabiam o que responder. Ele disse: “Eles ficaram para proteger as bagagens.” E concedeu-lhes uma parte igual aos que foram ao combate valorosa e corajosamente. Veja, portanto, quando um irmão primeiro deu provas de fervor e depois relaxou, se a fé, o arrependimento, a humildade, os gemidos, a paciência, a esperança, a perseverança, etc., não podem ser considerados como bagagens de salvação. Sentando-se junto deles, perseverando na espera de Cristo, um homem fraco recebe naturalmente uma graça eterna.
78. Foram chamados de levitas e sacerdotes aqueles que se consagraram totalmente a Deus pela ação e pela contemplação [149]. E foram chamados de gado dos levitas [150] aqueles que não tinham a força para perseguir as paixões, mas que eram iluminados pela virtude, esforçando-se tanto quanto possível para adquiri-la, e que não cessavam de desejá-la, mesmo que muitas vezes fracassavam por ferir-lhes o mal. Quando o tempo chegar, é bastante natural que também eles recebam o amor de Deus a graça da impassibilidade. Pois o Senhor atende o desejo dos pobres [151]. 1158
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79. Muitas vezes temos consciência e enxergamos os ultrajes que o inimigo nos faz sofrer manifesta ou invisivelmente. Mas os tormentos e as dores que ele experimenta quando nos dedicamos às virtudes, ou quando nos arrependemos de nossas faltas, ou somos pacientes e corajosos nos revezes, ou quando rezamos e nos dedicamos a outras coisas que o mergulham nas torturas, nos castigos, nas lamentações e no desespero, nada disso vemos, providencialmente. De fato, foi dito: “Deus fará o que é justo: ele enviará a aflição àqueles que nos afligem [152]”. 1161
80. Se o tronco da árvore que envelheceu na terra ou sobre um rochedo se torna verde como quando jovem logo que recebe água, também é justo que, rejuvenescidos pelo poder do Espírito Santo, renasçamos nós na incorruptibilidade que recebêramos por nossa natureza, e que demos frutos como uma planta jovem, ainda que tivéssemos tombado no homem velho.
81. A alma que condena a si própria por suas numerosas tentações e pelo enxame de seus pecados, e que diz a si mesma: “Nossa esperança foi destruída, estamos perdidos [153]”, foi respondido, por obra de Deus que não desespera de nossa salvação: “Vocês viverão e saberão que eu sou o Senhor [154]”. E à alma que se pergunta sobre como poderá ela gerar a Cristo por suas grandes virtudes, foi dito: “O Espírito Santo virá sobre você [155]”. Ora, aonde estiver o Espírito Santo, não busque mais a ordem e a lei da natureza e do costume. Com efeito, o Espírito Santo a quem adoramos é todo poderoso, e ele lhe submeterá aquilo que você não pode carregar, para que você se maravilhe. Esta é a vitória do intelecto que havia sido derrotado. Pois o consolador que vem do alto com sua misericórdia está acima de tudo [156]. Ele está acima de todos os movimentos naturais e de todas as paixões demoníacas. 1162
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1158[149] 1159[150] 1160[151] 1161[152] 1162[153] 1163[154] 1164[155] 1165[156]
Cf. Números I, 5.50; III, 41.45. Cf. Números III, 41.45. Cf. Salmo X, 17. I Tessalonicenses I, 6. Ezequiel XXXVII, 11. Cf. Ezequiel XXXVII, 6. Lucas I, 35. Cf. João III, 31.
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82. Lute para manter intacta a luz que brilha em sua razão. Se você começar a enxergar as coisas com os olhos da paixão, o Senhor o cobrirá de trevas, retirará o freio que existe diante de você [157] e a luz dos seus olhos não estará mais com você [158]. Mas mesmo que você chegue a este ponto, não se desencoraje, não desista. Reze com o santo Davi: “Envie sua luz e sua verdade” sobre mim, porque estou triste. “Você é a salvação de minha face e meu Deus [159]”. Pois “você enviará seu Espírito e tudo será recriado, e se renovará a face da terra [160]”. 1166
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83. Feliz de quem aqui em baixo come e bebe insaciavelmente, note e dia, as orações e salmos, e que se fortifica com a gloriosa leitura das Escrituras. Pois uma tal comunhão dará à alma uma alegria inalterável no século por vir.
84. Com todas as suas forças, cuide para não cair. Pois cair não é digno de quem é forte e luta. Mas se você cair, levante-se o mais depressa possível e retome o bom combate. Mesmo que você caia dez mil vezes, dez mil vezes repita este gesto: levante-se. Até a sua morte. Pois está escrito: “Se o justo cai sete vezes, ou seja, toda a sua vida, ele se levantará sete vezes [161]”. Enquanto você possuir a arma do santo hábito [162] e ao mesmo tempo implorar e orar a Deus, você será contado entre os que estão em pé, mesmo que você tombe muitas vezes. Enquanto você permanecer entre os monges, como um soldado corajoso você receberá no rosto todos os golpes. Será sobretudo por estes golpes que você será louvado, pois, mesmo ferido, você não terá aceitado render-se ou recuar. Mas se você deixar os monges, você será golpeado por trás, como um fujão, um medroso, alguém que deserta e foge. 1170
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85. Desesperar é mais funesto do que pecar. Foi assim que Judas, o traidor, era fraco e não tinha experiência no combate; o inimigo atirou-se sobre ele que desesperava, e lhe passou a corda no pescoço [163]. Mas Pedro, esta sólida pedra, erguendo-se depois de uma queda terrível, não se deixou abater nem se abandonou ao desespero, pois ele tinha experiência no combate. Com o coração aflito e humilhado, ele derramou lágrimas amargas [164]. Vendo isto, nosso inimigo, com os olhos queimados como por chamas vivas, recuou imediatamente e fugiu para longe lançando grandes gritos. 1172
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86. Quem se devota à solidão deve sustentar um combate implacável sobretudo contra três coisas: a gulodice, a vanglória e o amor ao dinheiro, que é uma idolatria [165]. 1174
1166[157] 1167[158] 1168[159] 1169[160] 1170[161] 1171[162] 1172[163] 1173[164] 1174[165]
Cf. Jó XXX, 11. Salmo XXXVIII, 11. Salmo XLIII, 3 e 5. Salmo CIV, 30. Provérbios XXIV, 16. O schèma, hábito monástico. Cf. Mateus XXVII, 5. Cf. Salmo LI, 19; Mateus XXVI, 75. Cf. Colossenses III, 5.
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87. Por meio de salmos, hinos e odes espirituais, usando as palavras e os instrumentos de Davi, um rei de Israel venceu o povo dos trogloditas e outros bárbaros. Também você possui seus próprios bárbaros trogloditas, os demônios que penetram nos seus sentidos e nos seus membros, que atormentam sua carne queimando-a, que o predispõem a ver, ouvir e a sentir abandonando-se às paixões, a dizer palavras inconvenientes, a encher seus olhos de adultério [166], a manter a confusão dentro e fora de si como no país da Babilônia. Com grande fé, com salmos, hinos e odes espirituais [167], vigie a si próprio para destruir totalmente os trogloditas que trazem o mal. 1175
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88. Assim como o Senhor quer que o homem seja salvo pelo homem, também Satanás se esforça para que o homem se perca pelo homem. É por isso que você não deve se ligar ao pérfido que despreza os outros e não domina sua língua, a fim de não caminhar com ele para a danação. Mesmo aproximando-se do justo, a salvação já é difícil. Se freqüentarmos inconseqüentemente o homem malicioso, encontraremos diante de nós nosso próprio naufrágio, como a lepra. Então, quem terá piedade daquele que se alegrou aproximando-se do dragão? Assim, fuja de quem não domina sua própria língua, dos que disputam, dos que se atrapalham com seus membros no interior e no exterior.
89. Quem quer ser chamado de sábio, prudente e amigo de Deus, a fim de apresentar ao Senhor a alma tal como a recebeu dele, pura, intacta, totalmente irrepreensível? Quem o quer, a fim de, por isto, ser coroado nos céus e chamado de bem-aventurado pelos anjos?
90. Uma única palavra boa tornou puro e santo o ladrão, este ser que erra imundo, e o fez entrar no Paraíso [168]. E uma única palavra impensada proibiu Moisés de entrar na terra prometida [169]. Não consideremos que a falação seja uma doença benigna. Pois aquele que gostam de injuriar, que falam a torto e a direito, fecham as portas do reino dos céus para si. Mesmo que vá pelo caminho direito, um home que diz qualquer coisa não caminha direito, antes busca o mal e corre para sua perdição [170]. É justamente o que disse um sábio: “É melhor cair do alto sobre a terra do que pecar pela língua [171]”. É preciso, portanto, crer no apóstolo Tiago quando escreveu: “Que cada um seja pronto para escutar, mas lento para falar [172]”. 1177
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91. Para não inflarmos o orgulho, enganados pelos sentidos em nossa vaidade, é bom atentarmos para aquele que disse: “Vá, meu povo, penetre no tesouro do seu coração, este tesouro oculto a todo pensamento sensível, esta morada desprovida de ídolos, iluminada pela impassibilidade e pela sombra que lhe faz a santa graça. Feche a sua porta a tudo o que é visível, e esconda-se o mais possível, pois é breve a vida de um homem”. E ele completou: “Até que passe a cólera do Senhor [173]”. Outro falou assim: “Até 1182
1175[166] 1176[167] 1177[168] 1178[169] 1179[170] 1180[171] 1181[172] 1182[173]
Cf. II Pedro II, 14. Cf. Efésios V, 19. Cf. Lucas XXIII, 42-43. Cf. Números XX, 24. Cf. Salmo CXL, 12. Eclesiastes XX, 18. Tiago I, 19. Isaías XXVI, 20.
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TI, VII – JOÃO CARPATOS – Cem capítulos de exortações.
que passe a iniqüidade [174]”. Tanto a cólera do Senhor como a iniqüidade podem ser os demônios, as paixões e os pecados. Como disse Isaías a Deus: “Eis que você está irritado, porque nós pecamos [175]”. O homem não escapa a esta cólera senão dedicando-se à oração em seu coração continuamente, esforçandose para se manter no interior do santuário. Foi dito: “Coloque sua sabedoria mais alto do que as coisas mais profundas [176]”. É por isso que toda a glória da filha do rei é interior [177]. Também foi dito: “Eu faço tudo para entrar no santuário de Deus, sobre a montanha da herança, na moradia pronta que o Senhor construiu, no lugar santo preparado por suas mãos [178]”. 1183
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92. Quem deseja realmente renunciar, que imite o bem-aventurado profeta Eliseu que, em seu ardente e profundo amor a Deus, não guardou a menor coisa para si mesmo [179]. Distribua tudo o que lhe pertence entre aqueles que precisam e, tomando sobre si a cruz do Senhor, voe resolutamente para a morte voluntária que abre as portas do Reino. 1188
93. Quando você chegar a compreender que o Amorreu que existe em você é forte como um carvalho [180], ore ardentemente ao Senhor para que ele seque este carvalho, no alto em seus frutos – o pecado ativo – e em baixo em suas raízes – os pensamentos impuros – e que ele afaste o Amorreu para longe de sua face. 1189
94. Não se espante se rirem de sua hesíquia aqueles que são incapazes de vivê-la. Ao contrário, alegre-os com seus cantos e não guarde nenhum rancor. Oponha a eles a força muito maior de sua obediência a Deus, você que diz em seus hinos: “Alma minha, não se submeta senão a Deus [181]”. “Ao invés de me amar, eles me acusaram. Mas eu orei [182]” pela minha cura e a deles. 1190
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95. Se nenhum vento forte soprasse sobre o mar, não se veria nenhuma onda. Se o demônio não habitasse em nós, nem a alma nem o corpo seriam atormentados pelas paixões.
96. Se você levar consigo sempre o calor da prece e da graça divina, a Santa Escritura lhe dirá, como ao homem revestido das armas de luz [183]: “Sua vestimenta é quente [184]” Pois seus inimigos foram cobertos de vergonha e de infâmia [185], como por um manto. 1192
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[174] Salmo LVII, 2. [175] Isaías LXIV, 4. [176] Jó XXVIII, 18. [177] Salmo XLV, 15. [178] Êxodo XV, 17. [179] Cf. I Reis XIX, 20. [180] O Amorreu, inimigo de Israel, representa aqui o demônio; cf. Amós II, 9. [181] Salmo LXII, 6. [182] Salmo CIX, 4. [183] Cf. Romanos XIII, 12. [184] Jó XXXVII, 17. [185] Cf. Salmo CIX, 29.
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97. Quando você se lembrar de suas faltas, não hesite em bater no peito, a fim de talhar com estes golpes seu coração endurecido, descobrindo amina de ouro do publicano [186] e regozijando-se com esta riqueza escondida. 1195
98. Que o fogo das orações da santa meditação nas palavras do Espírito queime constantemente sobre o altar de sua alma, estas orações que sobem em direção ao mais alto.
99. Se você se esforçar sempre para calçar seus pés para preparar o Evangelho da paz [187], você construirá assim sua morada e a do seu próximo. Mas se você for negligente, invisivelmente você será desprezado conforme a Lei, e herdará o apelido daquele a quem roubaram as sandálias [188]. 1196
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100. Se Deus é amor, como disse João, aquele que ama permanece em Deus e Deus permanece nele [189]. Mas quem odeia o próximo destrói os laços do amor, que, claramente, ele troca pelo ódio. Assim, aquele que odeia separa-se de Deus, se Deus é amor e se quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele. A Ele a glória e o poder por todos os séculos dos séculos. Amém. 1198
[186] Cf. Lucas XVIII, 13. [187] Cf. Efésios VI, 5. [188] Cf. Deuteronômio XXV, 9-10. [189] I João IV, 16.
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TI, VII – JOÃO CARPATOS – Discurso ascético e grande consolador que completa os cem capítulos.
DISCURSO ASCÉTICO E GRANDE CONSOLADOR QUE COMPLETA OS CEM CAPÍTULOS
Jamais diga que o homem que vive no mundo e que possui esposa e filhos é mais feliz do que o monge e mais alegre, por fazer o bem a muitos, por distribuir abundantes esmolas e porque ele não é tentado pelos demônios. Pensando assim, você considera que você agrada menos a Deus do que ele. Não se lamente assim, como se você estivesse perdido. Eu não digo que a sua vida seja irrepreensível só porque você permanece vivendo entre monges. Mas, mesmo que você seja um grande pecador, a aflição e o sofrimento de sua alma serão aos olhos de Deus mais preciosos do que a mais alta virtude do mundo. Sua grande tristeza, sua fadiga, seus gemidos, sua angústia, suas lágrimas, o tormento de sua consciência, a indigência de seu pensamento, a reflexão que o condena, os golpes com que você bate no peito, a falta que lhe faz seu intelecto, a lamentação de seu coração, sua miséria, suas penas, seu desconsolo, sua humilhação, todas essas coisas e outras semelhantes que acontecem aos que são atirados na dura fornalha das tentações, são mais preciosas e agradam imensamente mais do que os agrados do homem do mundo.
Cuidado para que não se aplique a você a censura da divina Escritura, quando ela diz como que falando a você: “De que nos serviu suplicar diante do Senhor e passar todo o tempo em sua morada?” É uma evidência: o servidor que permanece junto do seu mestre recebe às vezes algumas chicotadas, alguns tapas, censuras e injúrias. Mas os que vivem longe estão livres dos golpes, como estranhos, como homens a quem ninguém presta atenção. De que nos serve, então, cair em aflições, nós que não cessamos de orar e cantar, quando aqueles que não oram nem velam permanecem alegres, regozijam-se, prosperam e passam a vida folgadamente? Como diz o Profeta: “Eis que foram construídas moradias estrangeiras, e nós as achamos bem-aventuradas”. E ele acrescenta: “Estas são as coisas que denunciam os servidores de Deus”, aqueles que possuem o conhecimento.
Mas é preciso saber que aqueles que são duramente atormentados, os que trazem sobre si o testemunho de seu mestre pelas provas que passaram, não sofrem nada que os possa surpreender. Pois eles ouviram anunciar nos Evangelhos: “Eu lhes digo, vocês que estão perto de mim chorarão e se lamentarão enquanto o mundo vai se alegrar”. Mas dentro de pouco tempo eu os visitarei por meio do Consolador, eu dissiparei seu desencorajamento, eu os reanimarei com pensamentos da vida e do repouso celestes, e com as lágrimas doces que lhes faltaram nos poucos dias em vocês foram provados. Eu lhes darei o seio da graça, como a mãe oferece o seio ao filho que chora. Eu fortificarei com os poderes do alto a vocês que esgotaram os combates. Eu cumularei de doçura a vocês que foram cobertos de amargura, como diz Jeremias nas Lamentações ao f alar da Jerusalém que se esconde em vocês. Eu verei vê-los, e seus corações se regozijarão com esta visita secreta. Sua aflição será transmutada em alegria, alegria que ninguém poderá roubar-lhes.
Não tenhamos vista curta, e não fechemos os olhos, dizendo que os homens do mundo são mais felizes do que nós. Ao contrário, sabendo o que distingue os filhos legítimos dos bastardos, abracemos aquilo que é visto como a miséria e a grande pena dos monges, mas que têm seu fim na vida eterna, na coroa de glória do Senhor, que não se corromperá jamais.
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TI, VII – JOÃO CARPATOS – Discurso ascético e grande consolador que completa os cem capítulos.
Abracemos a pena dos ascetas que se sabem pecadores, pois eu não direi que eles são justos. Aceitemos sermos rejeitados para a casa de Deus, ou seja, para a ordem daqueles que servem continuamente a Cristo, e não habitarmos na casa dos pecadores, nem vivermos com os homens do mundo, por maior que seja sua justiça.
Eis o que eu lhe digo, ó monge, seu Pai celeste que o ama acima de tudo e que lhe envia, por meio de provações, as aflições e as penas: saiba bem, pobre monge, que eu o castigarei, como já disse pela boca do Profeta, e que eu irei ao seu encontro no caminho do Egito. Eu o provarei pela aflição. Com os espinhos de minha providência eu fecharei os caminhos condenáveis, eu o ferirei com dissabores imprevistos, eu o impedirei de tocar adiante aquilo que você deseja em seu coração insensato. Com as portas de minha piedade eu fecharei o mar de suas paixões. E com pensamentos de reprovação, de condenação, de arrependimento, que o farão tomar consciência daquilo que você ignora, eu serei para você como uma fera que o devorará. Ora, todas essas aflições são uma grande graça de Deus. Eu serei para você não apenas como uma pantera, mas como um aguilhão que, por pensamentos de compunção e pelas penas do coração, o abençoará. Jamais o sofrimento deixará sua morada, ou seja, sua alma e seu corpo despedaçados para seu próprio bem e seu benefício pelos castigos de Deus, que destilam a doçura e o mel.
Mas o fim dos castigos, das penas, das perturbações, da confusão, dos terrores e dos desesperos que oprimem habitualmente aqueles que se propõem a viver na ascese, o fim de todas essas misérias é uma alegria celeste, de inexplicáveis delícias, uma glória indizível, uma exultação incessante. De fato, foi dito: Eu o afligi para colocar em sua boca o maná do conhecimento. E eu o submeti à fome para cumulá-lo de benesses nos últimos dias e fazê-lo entrar no Reino do alto. Monges humildes, vocês dançarão neste momento como jovens animais libertados dos laços das paixões da carne e das tentações dos inimigos. Vocês pisotearão os demônios iníquos que agora os pisam. Eles serão como a poeira debaixo de seus pés.
Pois se você venera a Deus, se você é humilde, se você não se torna inchado por um vão orgulho, se você evita a precipitação, se seu coração está penetrado de compunção, se você se considera como um servidor inútil, se seu espírito está alquebrado, se tanta é a sua humildade, então, ó monge, seus próprios defeitos são mais altos do que a justiça dos homens do mundo, se suas manchas são mais necessárias do que a grande purificação daqueles que desfrutam desta vida.
Então, porque você se aflige? Você não conhece senão a vergonha. Mas veja: se um homem tem as mãos sujas, um pouco de óleo as torna limpas. Quanto mais ainda poderá purificá-lo a piedade de Deus! Pois assim como você não tem dificuldade em lavar suas roupas, mais fácil ainda é para o Senhor lavá-lo de toda reprovação, mesmo que você tenha que enfrentar a tentação a cada dia. Com efeito, no momento em que você diz: “Eu pequei contra o Senhor”, lhe é dada a resposta: “Seus pecados lhe estão perdoados”, “Eu sou aquele que apaga, e eu não recordo mais”. “Assim como o Oriente é longe do Ocidente, eu afastei de você seus pecados. Como um pai tem compaixão de seus filhos, assim eu tive compaixão de você”.
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TI, VII – JOÃO CARPATOS – Discurso ascético e grande consolador que completa os cem capítulos.
Mas não se afaste, não se distancie d'Aquele que o escolheu para orar e cantar, mas permaneça ligado a ele por toda a sua vida, seja por pura confiança, seja pela santa audácia e pela confissão corajosa. Então ele o ouvirá e o purificará. Pois aquilo que Deus purifica por sua própria vontade, nem mesmo o grande apóstolo Pedro poderá chamar de impuro ou condenar. Com efeito, foi-lhe dito: “O que Deus purificou, não chame de impuro”. E não foi Deus que nos justificou, em seu amor pelo homem? Quem nos condenará? Se invocarmos o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, nossa consciência será facilmente purificada, e nada nos separará dos profetas e dos demais santos.
Pois Deus não nos destinou à cólera, mas à salvação por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo que morreu por nós. Assim, quer nos mantenhamos em vigília nas virtudes, quer durmamos em alguma miséria levados pelas circunstâncias naturais, viveremos com Cristo, voltando para ele nossos olhares, gemendo profundamente, chorando sem cessar, e não respirando senão nele. Vistamos a couraça da fé e coloquemos o elmo da esperança na salvação, a fim de que não nos firam as flechas do desencorajamento e do desespero.
Mas você diz: “Eu fico irritado vendo que os homens do mundo escapam às provações, enquanto eu me atormento terrivelmente”. Mas saiba, bem-amado, que Satanás não precisa tentar aqueles que tentam a si próprios e que estão sempre a rastejar sobre a terra pelas coisas desta vida. Saiba também o seguinte: as recompensas e as coroas estão reservadas aos que são provados pelas tentações, não aos que não se preocupam com Deus, nem aos homens do mundo que dormem e roncam. Eu sou atormentado por inúmeras provas, meus rins ardem de febre, como diz o profeta, eu sou infeliz e decaído, não existe cura para minha carne nem remédio para meus ossos. Mas o grande médico dos que sofrem está próximo. Ele tomou sobre si nossas enfermidades. Ele nos curou com suas chagas. Ele está aí, e aplica remédios salutares. Com efeito, foi dito: Fui eu que o feriu, que o deixou abandonado, e serei eu a curá-lo. Portanto não tema. Quando cessar minha cólera ardente, eu o curarei de novo. Assim como uma mulher jamais se esquece de sentir piedade pelos filhos de seu ventre, também eu não o esquecerei, diz o Senhor. Se um pássaro derrama sua ternura sobre seus filhotes, se os visita a todo o momento, se os chama, se lhes traz comida na boca, quanto mais minhas compaixões se derramarão sobre minhas criaturas. Eu o visito secretamente. Eu converso com a sua inteligência. Eu levo alimento à sua reflexão, que se abre como o bico da pequena andorinha. Eu lhe dou o alimento do temor ao Todo-Poderoso, o alimento do desejo dos céus, o alimento da consolação dos gemidos, o alimento da compunção, o alimento do canto, o alimento do conhecimento mais profundo, o alimento dos mistérios divinos. E se eu minto ao lhe falar assim, eu que sou seu Mestre e seu Pai, prove e eu me calarei. É isto o que o Senhor não cessa de dizer aos nossos pensamentos.
Quanto a mim, tenho consciência de ter me excedido ao escrever assim tão longamente. Mas foram vocês que me obrigaram. Eu não faço um discurso longo a não ser para sustentar aqueles que, por negligência, correm o risco de tombar. Pois, conforme vocês me escreveram, dentre vocês que estão na Índia encontram-se alguns irmãos que, oprimidos por tentações contra sua vontade, renunciaram à vida e à condição de monges dizendo que ela é sufocante e semeada de mil perigos. Eles louvaram abertamente a felicidade dos homens do mundo. Eles amaldiçoaram o dia em que tomaram o hábito de monge. Assim, fui obrigado a estender este discurso usando palavras simples, para que mesmo os ignorantes e iletrados possam compreender o que eu digo. Por isso lhes escrevi longamente, para que daqui em diante os monges não proclamem mais a felicidade dos homens do mundo, mas sua própria beatitude. Eu o afirmo sem
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nenhum espírito de contradição: os monges estão acima dos reis que trazem diademas sobre suas cabeças, eles são mais luminosos e mais gloriosos, pois eles estão sempre próximos de Deus.
E eu suplico sua caridade de se lembrar de mim continuamente em suas orações, de mim que lhes escrevi essas coisas, para que em minha miséria eu receba a graça do Senhor de terminar a vida presente na boa e santa morte. Que o Pai das compaixões e o Deus de toda consolação lhes dê um consolo eterno e uma boa esperança, em Cristo nosso Senhor. A ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.
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TOMO I, VOLUME III
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MÁXIMO, O CONFESSOR († 662)
Nosso santo Padre Máximo o Confessor, viveu sob o reinado de Constantino Pogonates, ao redor do ano 670. Ele foi o primeiro contendor da heresia dos monotelitas. Inicialmente elevado à corte imperial e honrado com a dignidade de primeiro secretário, ele logo deixou seus encargos deste mundo e partiu para os combates da ascese. Tendo se aproximado da fonte da sabedoria, continuamente irrigada pelas águas límpidas das divinas Escrituras, ele deixou escoar de si rios de ensinamentos e escritos que se espalharam até os confins da terra. Também nós, com os presentes capítulos, repassamos neste livro a água doce que ressuscita os mortos e a oferecemos aos que se acham tomados da bela sede da sabedoria, a fim de que bebam em abundância e não estejam mais sedentos. Pois o conhecimento e o trabalho do santo amor deificante são aqui tratados com toda a sabedoria. A glória infalível da mais alta teologia é aqui confirmada e o mistério da economia do Verbo é explicado piedosamente. A contemplação ativa das virtudes divinas é revelada na luz da ciência. A liga abominável dos vícios e das paixões contrárias encontra-se aqui estigmatizada. Em uma palavra, nestes textos brilha o ordenamento dos comportamentos e encontram-se conservados como tesouros um grande número de temas auxiliares por meio dos quais, libertados de toda malícia e chegados ao estado da virtude, podemos nos tornar cidadãos dos céus e descobrir a glória divina. E ainda acrescentamos aos capítulos o comentário de são Máximo ao “Pai Nosso”, que é de longe o mais eminente e promete ser de grande valia para quem o ler.
Photius diz de Máximo: “Sua frase é tensa como uma corda, seus períodos ultrapassam prazerosamente as medidas, seus pensamentos se revestem de esplendor, e ele não tenta empregar as palavras em seu sentido próprio... No entanto, se ele chega a alguém cuja inteligência se compraz em desenvolver as elevações e as contemplações, nada há de mais trabalhado e mais estudados do que elas.”
*
A vida de são Máximo o Confessor (580-662) aparenta-se, num certo sentido, à de são Paulo. Aquilo que são Paulo significou para os apóstolos, são Máximo foi para os monges. Ele poderia ter sido o contrário de um monge: nascido de uma família nobre de Constantinopla, muito instruído, ele foi de início um dos mais altos funcionários do Império Bizantino e sem dúvida o próprio secretário do imperador Heráclito. Mas, com pouco mais de trinta anos, em 614, ele ingressou no mosteiro, primeiro em Crisópolis, na outra margem do Bósforo, depois em Císico. Depois de 626, a invasão persa e a conquista árabe fizeram dele
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um errante. Na África ele passou algum tempo tranquilo. Mas o errante havia demasiado estudado os Padres e a Escritura, ele cultivava profundas amizades ortodoxas, em particular com Sofrônio, o patriarca de Jerusalém, e conservava de sua frequentação com o poder um agudo senso de responsabilidade de homem engajado na história. Mais do que qualquer um, ele não poderia permanecer indiferente à sorte da cristandade. Ele acabou por se opor radicalmente ao compromisso doutrinal buscado pelo poder instalado em Constantinopla para impedir as comunidades do Oriente adeptas do monofisismo de tender para o Islam.
Ao defender o dogma da Calcedônia (duas naturezas, portanto duas energias e duas vontades em Cristo em uma só pessoa plenamente divina e plenamente humana), Máximo confirmava em nome de Cristo o direito do homem à liberdade de Deus. Mas, como Cristo e como Paulo, ele se deixou envolver na armadilha de um processo político. Levado à força para Constantinopla em 653, diversas vezes condenado, diversas vezes exilado, intratável, ele morreu em seu último exílio, no Cáucaso, com a idade de 82 anos, tendo a língua e a mão direita cortadas. Mas, assim como Cristo e Paulo não transigiram com os mandamentos e os impedimentos da lei judaica, também Máximo não se compôs, nem para contê-los, com as consequências e os transbordamentos do monofisismo. Entre o Oriente e o Ocidente ele manteve a estrita verdade do Evangelho. Seu testemunho não deixa de ser atual.
Pela amplitude dos escritos atribuídos ao seu nome na antologia, como pela sua conduta de vida, a intransigência de seu engajamento e seu gênio de recapitulação e de síntese, são Máximo o Confessor é certamente o testemunho que melhor concorda com a intenção profunda dos editores da Filocalia grega: transmitir ao mundo e confiar à história a silenciosa profecia dos monges e seu amor pela beleza divina. Os trechos escolhidos (quatro centúrias sobre a caridade, sete centúrias sobre a teologia e um comentário à oração dominical) são antes de tudo filocálicos. Em nenhum momento eles colocam em causa outra coisa do que a nossa relação fundamental com o mistério e a revelação do Deus vivo.
As quatro centúrias sobre a caridade são sem dúvida uma das primeiras obras de Máximo, compostas na calma do mosteiro de Císico antes de 626. Máximo condensou aí aquilo que sete séculos de vida cristã atestaram de mais central: a preeminência absoluta do amor. A colocação é clara e límpida, como um cristal. Reflexões e sentenças balizam as vias morais que permitem alcançar o amor divino que “ama a todos os homens por igual”. Mas elas também denunciam os impasses nos quais toda vida perde seu sentido e seu objetivo. A concisão do pensamento, o rigor das fórmulas, a precisão do traço, a pertinência dos conselhos, fazem desta coletânea como que uma épura do Evangelho. A criação é boa. Nada é naturalmente mau. O mal está sempre no mau uso da criação; “Renunciar aos pensamentos passionais, conclui Máximo, torna monge o homem interior”.
As sete centúrias sobre a teologia são a reunião de duas obras diferentes. A primeira (compreendendo as duas primeiras centúrias, sobre a teologia e a encarnação do Filho de Deus) é uma obra de Máximo escrita sem dúvida no início de seu exílio africano, entre 630 e 634. As outras (os capítulos diversos da terceira à sétima centúrias, sobre a teologia, a economia, a virtude e o vício) são uma compilação, geralmente datada do século XI, na qual se sucedem extratos de obras do próprio são Máximo (as Cartas, as Questões a Thalassius, as Ambígua), comentários do compilador e algumas passagens de textos de Denis o Areopagita.
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Com toda evidência, esta compilação convém perfeitamente às afinidades da antologia filocálica devido aos textos que atestam e confortam a teologia vivida. “Não conhecer o Verbo na carne, diz Máximo, senão para progredir para a glória”. A energia divina que criou o mundo trabalha e se cumpre em nós no sexto, no sétimo e no oitavo dia. O homem coroa a criação no sexto dia porque lhe é dado passar deste ao sétimo, da criação à hesíquia, e do sétimo ao oitavo, da hesíquia à deificação. Assim tudo é dado. Mas tudo deve ser recebido, assumido, cumprido. Máximo afirma: “Cada qual é o intendente de sua própria graça”.
A interpretação do “Pai Nosso” foi sem dúvida escrita também por volta de 630. Trata-se de um obra forte e densa – a um tempo meditação e exortação – que faz passar e brilhar ao redor das palavras da oração dominical o sopro da vida e a luz do conhecimento: uma humilde e magistral lição de teologia.
Para Máximo, como para toda a tradição filocálica, o dever maior do cristão é a ascese do intelecto, o qual deve suplantar os sentidos, não para empurrar adiante o conhecimento do mundo, como fazemos hoje, mas para conhecer a Deus no começo e no fim do mundo, uma vez que a vida espiritual não tem outro objetivo do que fazer passar os sentido ao intelecto e este ao coração, para então oferecer o coração a Deus. Assim o corpo do homem é a alma viva que faz retornar a Deus toda a criação. Integrando de uma só vez Orígenes, Evagro, Denis e os Capadócios, na mesma hora em que se mostra humanamente impossível estabelecer sobre o mundo um império cristão unificado, Máximo assume esta tradição dos monges, sua experiência e seu vocabulário, mas a expõe aos ventos da história como à incandescência do Juízo final. O testemunho cristão é assim, mais uma vez, como que fundido no cadinho do Evangelho e da atualidade. O monaquismo é também um anúncio humano da boa nova. A contemplação não exclui o testemunho histórico: para Máximo, ela o exige. Nele o homem do mundo encontrou suas raízes no monge, e o monge encontrou suas raízes no confessor da fé e no mártir: a própria estatura e o exemplo do testemunho fiel e verdadeiro.
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PRÓLOGO A Elpídio, Padre. Além do tratado sobre a vida ascética. Eis aqui igualmente a obra sobre o amor que eu envio à sua beatitude, Padre Elpídio, em quatro centúrias de capítulos, assim como há quatro evangelhos. Talvez nada aí seja digno de sua atenção; ao menos, nada aí está abaixo daquilo que nos foi possível fazer. Porém, que sua santidade o saiba: estes não são frutos de minha reflexão. Eu percorri os escritos dos santos Padres, escolhi aquilo que concentra o intelecto sobre o tema do amor, e resumi em frases curtas o essencial de longos discursos, a fim de que eles possam ser abarcados de um só relance por serem fáceis de memorizar. Envio, portanto, estas centúrias à sua santidade, pedindo-lhe que as leia com benevolência, não buscando nelas senão aquilo que pode ser útil, não vendo o quanto eu me exprimo mal, e que ore por minha mediocridade tão desprovida de utilidade espiritual. Eu lhe peço ainda que não pense que eu escrevi essas coisas para importuná-lo. Pois eu fiz o que me foi ordenado. Digo isto porque hoje em dia são muitos os que importunam os outros com discursos, mas que são poucos os que instruem ou que se deixam instruir pelas obras. É melhor, assim, nos darmos ao trabalho de nos aplicar a cada uma dos capítulos; pois nem todos esses capítulos são fáceis de serem captados por todos. A maior parte precisa ser longamente examinada, mesmo se sua expressão parecer muito simples. Talvez um deles se mostre útil à alma. Mas, pela graça de Deus, ele não se mostrará jamais senão àquele que o ler sem nenhuma curiosidade, com temor e amor a Deus. Quanto aos que lerem esta obra ou qualquer outra, não para seu benefício espiritual, mas para buscar palavras com o objetivo de acusar o autor ou de se fazer passar por ele, por presunção, por mais sábio que seja, a este nada de útil surgirá em parte alguma.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Primeira centúria de capítulos sobre o amor.
PRIMEIRA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR 1. O amor é uma disposição boa da alma, segundo a qual nada do que existe lhe é preferível ao conhecimento de Deus. E é impossível a alguém apaixonado pelas coisas terrestres alcançar este amor.
2. O amor nasce da impassibilidade; a impassibilidade, da esperança em Deus; a esperança, da paciência e da longanimidade; estas, da temperança em tudo; a temperança, do temor a Deus; e o temor, da fé em Deus.
3. Quem crê no Senhor teme o castigo. Quem teme o castigo se protege das paixões. Quem se protege das paixões suporta as aflições. Quem suporta as aflições terá a esperança de Deus. A esperança em Deus separa o intelecto de todo pendor terrestre. E aquele cujo intelecto estiver assim separado terá o amor de Deus.
4. Quem ama a Deus prefere seu conhecimento a tudo o que ele criou, e persevera nele sem cessar, com todo o seu desejo.
5. Se todos os seres foram criados por Deus e para Deus e se Deus é maior do que tudo o que ele criou, quem abandona a Deus e se liga ao que é menor mostra que, a Deus, prefere suas criaturas.
6. Quem tem seu intelecto fixado no amor a Deus despreza todo o visível, incluindo seu próprio corpo, como se este lhe fosse estranho.
7. Se a alma é mais alta do que o corpo, e se Deus que criou o mundo é incomparavelmente mais alto do que ele, quem prefere o corpo à alma e a Deus o mundo que ele criou em nada difere dos idólatras.
8. Quem afastou o seu intelecto do amor e da assiduidade que devemos a Deus para ligá-lo a qualquer coisa de sensível, prefere o corpo à alma e aos Deus Criador suas criaturas.
9. Se a vida do intelecto está na iluminação do conhecimento, e se esta iluminação nasce do amor a Deus, é certo dizer que nada é maior do que o amor divino.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Primeira centúria de capítulos sobre o amor.
10. Quando, pelo desejo ardente do amor, o intelecto emigra para Deus, ele deixa de sentir os seres. Inteiramente iluminado pela luz infinita de Deus, ele se torna insensível a tudo o que Deus criou, assim como o olho já não vê as estrelas quando o sol se levanta.
11. Todas as virtudes auxiliam o intelecto a alcançar o desejo ardente de Deus, mas acima de todas está a prece pura. Por esta prece, elevando-se a Deus como sobre asas, o intelecto se separa de todos os seres.
12. Quando o intelecto é arrebatado para o amor pelo conhecimento de Deus e, separado dos seres, sente a infinitude divina, então, tocado pelo temor como o divino Isaías, ele toma consciência de sua própria baixeza e é levado a pronunciar as palavras do profeta: “Infeliz de mim! Estou perdido; pois sou um homem de lábios impuros. Estou no meio de um povo de lábios impuros. E vi com meus olhos o Rei, Senhor dos Exércitos” [2]. 1199
13. Quem ama a Deus não pode deixar de amar aos homens como a si mesmo, mesmo que tenha que suportar as paixões daqueles que ainda não foram purificados. E quando estes se corrigem, ele se regozija com uma alegria transbordante e indizível.
14. Impura é a alma [passional] cheia de maus pensamentos, de concupiscência e de ódio.
15. Quem percebe em seu coração um traço de ódio contra um homem, qualquer que seja, é inteiramente estranho ao amor a Deus. Pois o amor a Deus não suporta o ódio ao homem.
16. “Quem me ama, diz o Senhor, observará meus mandamentos [3]. Ora, este é o meu mandamento: que vocês se amem uns aos outros [4]”. Assim, quem não ama seu próximo não segue o mandamento. E quem não observa o mandamento não é capaz de amar o Senhor. 1200
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17. Feliz o homem capaz de amar a todos os homens igualmente.
18. Feliz o homem que não se liga a nada do que é corruptível ou passageiro.
[2] Isaías 6:5 [3] João 14: 15.23. [4] João 15: 12.
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19. Feliz o intelecto que ultrapassou todos os seres e não cessa de extrair suas delícias da beleza de Deus.
20. Quem cuida da carne para satisfazer sua concupiscência [5], e que, pelas coisas que passam, para ela quer o seu próximo, adora a criatura em lugar do Criador [6]. 1202
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21. Quem guarda seu corpo fora dos prazeres e das doenças faz dele um companheiro a serviço do que está mais alto.
22. Quem foge de todas as concupiscências mundanas [7] coloca a si mesmo acima de toda a matéria [de toda a tristeza] do mundo. 1204
23. Quem ama a Deus ama também totalmente a seu próximo. Este homem não guardará para si o que possui, mas o dispensa como Deus, dando a cada um aquilo de que ele necessita.
24. Quem dá esmola imitando a Deus ignora a diferença entre o malandro e o bom, o justo e o injusto [8], uma vez que ambos sofrem em seus corpos. Ele dá a todos igualmente, conforme as suas necessidades, mesmo que prefira, em sua boa vontade, o homem virtuoso ao homem depravado. 1205
25. Assim como Deus, que é por natureza bom e impassível, ama todos os seres e todas as suas obras igualmente, mas glorifica o homem virtuoso porque este está unido a ele pelo conhecimento [pela vontade], e, em sua bondade, tem piedade do homem depravado e o traz de volta instruindo-o no século, também aquele que, por seu próprio movimento, é bom e impassível, ama a todos os homens igualmente. Ele ama o homem virtuoso por sua natureza e sua boa vontade. E ama o homem depravado por sua natureza e pela compaixão, sentindo piedade por ele como por um louco que caminha nas trevas.
26. Não apenas dividir o que se possui revela a arte de amar, mas, mais ainda, transmitir a palavra e servir aos outros em seus corpos.
[5] Cf. Romanos 13: 4 [6] Cf. Romanos 1: 25. [7] Cf. Tito 2: 12. [8] Cf. Mateus 5: 45.
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27. Aquele que realmente renunciou às coisas do mundo e que serve a seu próximo por amor, sem nenhuma hipocrisia, rapidamente se liberta de todas as paixões e começa a ter parte no amor e no conhecimento de Deus.
28. Quem possui em si mesmo o amor divino não tem nenhuma dificuldade em seguir ao Senhor seu Deus, como disse o divino Jeremias [9], mas suporta nobremente todo sofrimento, toda injúria, toda violência, sem querer nenhum mal a pessoa alguma. 1206
29. Quando você for ultrajado por alguém ou for desprezado em qualquer coisa, proteja-se dos pensamentos de cólera, para que não aconteça deles o separarem do amor pela tristeza e o levem para o país da cólera.
30. Quando você for ultrajado ou desonrado, saiba que isto é de grande auxílio, pois a desonra afasta de você a vanglória.
31. Assim como a lembrança do fogo não aquece o corpo, a fé sem amor não opera na alma a iluminação do conhecimento.
32. Assim como a luz do sol atrai o olho saudável, também o conhecimento de Deus atrai para si, naturalmente, pelo amor, o intelecto puro.
33. O intelecto é puro quando está separado da ignorância e iluminado pela luz de Deus.
34. A alma é pura quando se liberta das paixões e não cessa de se regozijar no amor a Deus.
35. A paixão vergonhosa é um movimento da alma contra a natureza.
36. A impassibilidade é um estado apaziguado da alma, no qual é difícil a esta voltar-se para o mal.
[9] Cf. Jeremias 17: 16.
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37. Aquele que colheu os frutos do amor com seus esforços não os deixa mais, ainda que sofra mil males. Veja o caso de Etiene [10], o discípulo de Cristo, com seus companheiros, e do próprio Cristo, rezando por seus assassinos e pedindo a Deus que os perdoasse porque “não sabiam o que faziam [11]”. 1207
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38. Ter paciência e fazer o bem [12] são sinais do amor, e quem se irrita e faz o mal mostra assim ser estranho ao amor. E quem é estranho ao amor é estranho a Deus, pois Deus é amor [13]. 1209
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39. Não diga que você é o templo do Senhor, disse o divino Jeremias [14]. Não diga: “A simples fé em nosso Senhor Jesus Cristo pode me salvar”. Pois isto é impossível se, com suas obras, você não acrescentar à fé o amor. Crer simplesmente, os demônios também creem e tremem [15]. 1211
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40. A obra do amor é o bem feito de bom coração ao próximo, a longanimidade, a paciência, o uso das coisas segundo a razão correta.
41. Quem ama a Deus não aflige ninguém e não se aflige contra ninguém por causa das coisas que acontecem. Ele não inspira nem conhece senão uma tristeza, a tristeza salutar que o bem-aventurado Paulo conheceu e que ele inspirou aos Coríntios [16]. 1213
42. Quem ama a Deus leva sobre a terra uma vida angélica, jejuando e velando, cantando e orando, e pensando sempre no bem dos homens,
43. Quando desejamos uma coisa lutamos para adquiri-la. Ora, de tudo o que há de bom e desejável, o melhor e mais desejável é, sem comparação, o divino. De quanto ardor devemos dar provas para obter isto que, por natureza, é bom e desejável!
44. Não manche sua carne com atos infames, não suje sua alma com maus pensamentos, e a paz de Deus virá sobre você, trazendo o amor.
[10] Cf. Atos 7: 60. [11] Cf. Lucas 23: 24. [12] Cf. I Coríntios 14: 4. [13] Cf. I João 4: 8. [14] Cf. Jeremias 7: 4. [15] Cf. Tiago 2: 19. [16] Cf. II Coríntios 7: 8-11.
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45. Trate duramente a carne nos jejuns e nas vigílias, consagre-se à oração e à salmodia sem descanso, e a santificação da castidade virá a você, trazendo consigo o amor.
46. Aquele que foi considerado digno do conhecimento divino e que adquiriu no mor sua iluminação, jamais será levado pelo espírito da vanglória. Mas a vanglória carrega facilmente quem ainda não foi considerado digno do conhecimento de Deus. Assim, se este homem se volta para Deus em tudo o que este lhe pede que faça, ser-lhe-á facilitado, graças a Deis, evitar a vanglória, por ele tudo fez por Deus.
47. Quem ainda não alcançou o conhecimento divino que opera o amor, orgulha-se daquilo que faz conforme a Deus. Mas quem foi julgado digno de atingir este conhecimento diz com todo seu coração as palavras do patriarca Abraão, quando lhe foi dado ver a aparição divina: “Eu sou terra e cinzas [17]”. 1214
48. Quem teme a Deus tem por companhia constante a humildade. E pelos pensamentos que esta lhe inspira, ele chega ao amor divino e à ação de graças. Ela lhe lembra como ele vivia antes conforme o mundo, as perdas de todo tipo, as tentações que ele conheceu desde a juventude, como o Senhor o libertou de tudo isso [18] e o fez passar da vida passional à existência conforme a Deus. Então, com temor, ele receberá o amor e, cheio de profunda humildade, não cessará de render graças ao benfeitor e guia de nossas vidas. 1215
49. Não manche seu intelecto acolhendo pensamentos de concupiscência e de cólera, para não cair da oração pura no espírito da acídia.
50. Assim que começa a acolher em si os pensamentos maus ou imundos, o intelecto perde a liberdade que antes possuía de se confiar a Deus.
51. Quando um movimento de cólera o perturba, o insensato dominado pela paixão se apressa inconsideradamente em fugir dos irmãos; e quando é queimado pela concupiscência, muda de opinião e retorna correndo para eles. Nos dois casos, o sábio faz o contrário: quando em cólera, evita afligir-se contra os irmãos, e, quando assaltado pela concupiscência, se proíbe qualquer impulso ou relação irracional.
52. Não abandone o mosteiro no momento das tentações, mas suporte nobremente a onda dos pensamentos, em especial os de tristeza e acídia. Assim, providencialmente testado pelas aflições, você
[17] Cf. Gênesis 18: 27. [18] Cf. II Timóteo 3: 11.
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afirmará ainda mais sua esperança em Deus [19]. Mas se você deixar o mosteiro não passará pelas provações, ficando preguiçoso e escorregadio. 1216
53. Se você não quiser decair do amor de Deus, não deixe seu irmão ir dormir aflito por sua causa, e não durma afligido contra ele. Reconcilie-se com seu irmão e, com a consciência pura, ofereça ao Cristo, numa prece fervorosa, o dom do amor [20]. 1217
54. Se todos os carismas do Espírito são inúteis para quem os possui, se este não tiver o amor, conforme o divino Apóstolo [21], quanto fervor devemos ter em adquirir o amor! 1218
55. Se o amor não causa mal ao próximo [22], aquele que inveja seu irmão, que se entristece com seu renome, que suja com ironias a consideração que ele recebe ou lhe estende uma armadilha maldosamente, como não será este estranho ao amor e sujeito ao Julgamento eterno? 1219
56. Se o amor é o cumprimento da lei [23], aquele que investe contra seu irmão, que faz intrigas contra ele, que lhe deseja o mal, que se regozija quando ele cai, será um transgressor da lei e digno do castigo eterno. 1220
57. Se quem calunia e julga seu irmão calunia e julga a lei [24], e se a lei de Cristo é o amor, como não perderá o caluniador o amor de Cristo e não se colocará sob os golpes do castigo eterno? 1221
58. Não dê ouvidos ao que diz a língua do caluniador, e que sua língua não fale ao ouvido de quem gosta de dizer maldades. Não sinta prazer em falar contra seu próximo nem em escutar o que se diz contra ele, a fim de não perder o amor divino e não se tornar estranho à vida eterna.
59. Não sofra se ultrajarem seu pai nem encoraje quem o desonra, para que o Senhor não despeje sua cólera sobre as suas obras e não o destrua, retirando-o do mundo dos vivos [25]. 1222
[19] Cf. II Coríntios 1: 7. [20] Cf. Mateus 5: 23-24. [21] Cf. I Coríntios 13:3. [22] Cf. Romanos 13: 10. [23] Cf. Romanos 13: 10. [24] Cf. Tiago 4: 11. [25] Cf. Deuteronômio 6: 15.
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60. Feche seus ouvidos à boca de quem calunia, a fim de não cometer com ele um duplo pecado, acostumando-se com uma paixão perigosa e não impedindo o caluniador de falar a torto e a direito contra seu próximo.
61. “E eu lhes digo, ordenou o Senhor: amem os seus inimigos, façam o bem a quem os odeia, rezem por aqueles que tentam destruí-los [26]”. Porque terá ele dado esta ordem? Para nos livrar da aversão, da tristeza, da cólera, do ressentimento, e para nos tornar dignos do amor perfeito, este bem que é impossível possuir se não amarmos a todos os homens igualmente, à imitação de Deus que ama a todos os homens igualmente e que quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade [27]. 1223
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62. “Eu, porém, lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda! Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto! Se alguém obriga você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele! [28]” Porque? Para que nos guardemos sem cólera, sem perturbação, sem tristeza, para instruir o outro com sua recusa ao mal, e para conduzi-los, a ambos, como um bom Pai [em sua bondade] sob o jugo do amor. 1225
63. Guardamos em nós imagens passionais das coisas que nos afetaram. Assim, quem dominar as imagens passionais desdenhará com certeza as coisas das quais elas provêm. Pois o combate contra as lembranças é mais duro do que o combate contra as coisas, assim como pecar em pensamento é mais fácil do que pecar em ato.
64. Dentre as paixões, algumas são corporais e outras são psíquicas. As paixões corporais têm sua origem no corpo. As paixões psíquicas têm sua origem nas coisas exteriores. O amor e a temperança eliminam tanto umas como outras. O amor elimina as paixões psíquicas, e a temperança elimina as paixões corporais.
65. Dentre as paixões, algumas pertencem à porção ardente da alma, enquanto outras pertencem à porção concupiscente. Ambas são suscitadas pelos sentidos, mas apenas quando a alma se encontra afastada do amor e da temperança.
66. É mais difícil combater as paixões da parte ardente do que da parte concupiscente. É por isso que o Senhor deu contra o ardor um remédio mais forte: o mandamento do amor.
[26] Mateus 5: 44. [27] Cf. I Timóteo 2: 4. [28] Mateus 5: 39-41.
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67. Todas as demais paixões estão ligadas, seja somente à parte ardente ou à parte concupiscente da alma, seja ainda à parte racional, como o esquecimento e a ignorância. Mas a acídia, que age sobre todas as potências da alma, ao mesmo tempo suscita quase todas as paixões. Por isso ela é a mais grave de todas. É o que quis dizer o Senhor, quando deu o remédio contra ela: “Com sua paciência vocês salvarão suas almas [29]”. 1226
68. Jamais ofenda algum de seus irmãos, e menos ainda de maneira irracional. Se ele não suportar a aflição ele poderá ir embora, e você jamais conseguirá evitar a reprovação de sua consciência que sempre, no momento da oração, trará tristeza a você e privará seu intelecto da confiança divina.
69. Não ligue para as suspeitas nem para os homens que o querem escandalizar com certas coisas. Pois aqueles que, de um modo ou de outro, se escandalizam com as coisas que lhes acontecem, quer as tenham desejado, quer não, ignoram o caminho da paz que, através do amor, conduz ao conhecimento de Deus aqueles que estão tomados pelo amor.
70. Quem ainda é afetado pelo caráter dos homens ainda não possui o amor perfeito; por exemplo, alguém que ama a um e detesta a outro, ou que às vezes ama, às vezes detesta a mesma pessoa pelas mesmas razões.
71. O amor perfeito não retalha a natureza única e mesma dos homens por terem eles caracteres diferentes, mas, visando sempre esta natureza, ama a todos os homens igualmente. Ele ama os virtuosos como amigos, e os depravados como inimigos, fazendo-lhes o bem, suportando-os com paciência, suportando o que vem deles, jamais levando em consideração a malícia [30], chegando mesmo a sofrer por eles se se apresentar a ocasião. Assim ele os tornará amigos, se isto for possível. Senão, ele não abandonará sua determinação: ele mostrará sempre seus frutos a todos os homens igualmente. Nosso Senhor e Deus Jesus Cristo, mostrando o amor que nos dedica, sofreu pela humanidade inteira [31] e deu a esperança da ressurreição a todos igualmente, mesmo que cada um, por suas obras, atraia sobre si a glória ou o castigo. 1227
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72. Quem não desdenha a glória como a desonra, a riqueza como a indigência, o prazer como a dor, ainda não adquiriu o amor perfeito. Pois o amor perfeito não só despreza tudo isso, como ainda a vida que passa e a morte.
73. Escute aqueles a quem foi dado o amor perfeito. Ouça o que eles dizem: “Quem nos separará do amor de Cristo? A aflição? A angústia? A perseguição? A fome? O desnudamento? O perigo? A espada? Segundo o que está escrito, por sua causa somos levados à morte todos os dias, como bezerros ao [29] Lucas 21: 19. [30] Cf. I Coríntios 13: 5. [31] Cf. Romanos 5: 8.
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sacrifício. Mas em todas essas provações, somos mais do que vencedores por aquele que nos amou. Pois eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potências, nem o presente, nem o futuro, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor de Deus que está em Jesus Cristo nosso Senhor [32]”. 1229
74. E sobre o amor ao próximo, ouça o que eles dizem: “Digo a verdade em Cristo, não minto, e disso me dá testemunho a minha consciência pelo Espírito Santo: tenho uma grande dor e um contínuo sofrimento no coração. Sim, eu gostaria de ser amaldiçoado e separado de Cristo em favor dos meus irmãos de raça e sangue. Eles são israelitas... [33]” e assim por diante. Assim como Moisés [34] e os demais santos. 1230
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75. Quem não desdenha a glória e o prazer, bem como o amor ao dinheiro que os faz crescer e que eles engendram, não será capaz de suprimir as razões do ardor. E se ele não suprimir essas coisas, ele não será capaz de atingir o amor perfeito.
76. A humildade e o sofrimento libertam o homem de todos os pecados. A primeira suprime as paixões da alma; o segundo, as do corpo. É isto que azia o bem-aventurado Davi, quando orava a Deus dizendo: “Veja minha miséria e minhas penas, e retire de mim todos os pecados [35]”. 1232
77. Por meio dos mandamentos, o Senhor concede a impassibilidade aos que os praticam. E, com seus divinos ensinamentos, ele outorga a iluminação do conhecimento.
78. Tudo o que o Senhor ensina versa, ou sobre Deus, ou a respeito dos seres visíveis e invisíveis, ou sobre a providência e o juízo que operam neles.
79. A compaixão cura a parte ardente da alma. O jejum consome o desejo. Quanto à oração, ela purifica o intelecto e o prepara à contemplação dos seres. Foi também para as potências da alma que o Senhor nos deu os mandamentos.
80. “Aprendam comigo, que sou manso e humilde de coração [36]”, etc. A mansidão protege contra as perturbações do ardor. E a humildade liberta o intelecto do orgulho e da vanglória. 1233
[32] Romanos 8: 35-39. [33] Romanos 9: 1-4. [34] Cf. Êxodo 32: 32. [35] Salmo 24 (25): 18. [36] Mateus 11: 29.
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81. O temor a Deus é duplo. De um lado, ele nasce em nós da ameaça do castigo, e nesta ordem engendra a temperança, a esperança em Deus e a impassibilidade, de onde provém o amor. De outro lado, ele está ligado a este amor: ele traz sempre para a alma a piedade, a fim de que, por meio da liberdade do amor, jamais cheguemos a desdenhar de Deus.
82. O amor perfeito elimina a primeira forma de temor [37], porque a alma que possui amor não tem mais medo do castigo. Mas a segunda forma de temor permanece sempre, porque está ligada ao amor, como foi dito. À primeira forma de amor aplicam-se as palavras: “Por temor ao Senhor os homens se afastam do mal [38]”, e também: “O temor ao Senhor é o começo da sabedoria [39]”. À segunda forma: “Nada falta aos que o temem [40]”. 1234
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83. “Mortifiquem seus membros que estão sobre a terra, a prostituição, a impureza, a paixão, a má concupiscência, a cupidez [41]”, etc. O Apóstolo chama de “terra” o cuidado com a carne. Ele chama de “prostituição” o ato do pecado. De “impureza”, o consentimento. De “paixão”, os pensamentos passionais, e de “má concupiscência” a simples aceitação do pensamento do desejo. E chamou de “cupidez” a matéria que engendra e faz crescer a paixão. São todos estes vícios que o Apostolo ordenou mortificarmos, porque eles são os membros do cuidado com a carne. 1238
84. Primeiro a memória traz ao intelecto um simples pensamento. Se este pensamento persiste, surge a paixão. Se a paixão não é descartada, ela inclina o intelecto ao consentimento. E quando o consentimento se faz presente, chegamos ao ato do pecado. O sábio Apóstolo, escrevendo aos cristãos de todas as nações, lhes ordena que acabem primeiro com o resultado do pecado, para depois, remontando passo a passo e ordenadamente, chegar até a sua causa. E a causa é a cupidez que, como foi dito, engendra e alimenta a paixão. Ela aqui pode significar a gula, que é a mãe e a nutriz da prostituição. Pois a cupidez é má não apenas quando ligada ao dinheiro, mas também quando está relacionada com a alimentação. Da mesma forma, a temperança se aplica não apenas à alimentação, mas também ao dinheiro.
85. Assim como um pardal preso pela pata tomba por terra, retido pelo laço, se tentar voar, também o intelecto que ainda não atingiu a impassibilidade cai por terra, retido pelas paixões, se tentar voar na direção do conhecimento das coisas do céu.
86. Quando o intelecto está totalmente livre das paixões, então, sem se voltar, ele se encaminha para a contemplação dos seres, sobre o caminho que conduz ao conhecimento da Santa Trindade.
[37] Cf. I João 4: 18. [38] Provérbios 15: 27. [39] Salmo 110 (111): 10. [40] Salmo 33 (34): 10. [41] Colossenses 3: 5.
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87. Uma vez purificado, o intelecto, percebendo o sentido das coisas, é levado por elas à contemplação espiritual. Mas se, por negligência, ele se torna impuro, ele cria para si muitas representações de outras coisas em sua simplicidade e, ao receber aquilo que provém dos homens, volta-se para pensamentos de infâmia ou de malícia.
88. Quando, no momento da oração, jamais um pensamento do mundo vem para perturbar o intelecto, saiba que você não está longe das fronteiras da impassibilidade.
89. Quando a alma começa a sentir-se em boa saúde, então as imagens que surgem nos sonhos lhe aparecem simples e sem nenhuma perturbação.
90. Assim como a beleza do visível atrai o olho sensível, o conhecimento do invisível atrai para si o intelecto puro. Entendo como “invisíveis” os seres incorpóreos.
91. É muito bom não ser afetado pelas coisas, mas é melhor ainda permanecer impassível diante das suas imagens. Pois a guerra que os demônios nos fazem através dos pensamentos é mais árdua do que a que eles nos fazem por meio das coisas.
92. Quem conquistou as virtudes e está cumulado pelas riquezas do conhecimento, vendo as coisas, daí em diante, na sua natureza, age e fala sempre conforme a razão, sem jamais se perder. Com efeito, é pelo uso racional ou irracional das coisas que fazemos que nos tornamos virtuosos os depravados.
93. Quer o corpo vigie, quer durma, se surgem no coração pensamentos simples sobre as coisas, este é um sinal de extrema impassibilidade.
94. Pela prática dos mandamentos o intelecto se despoja das paixões. Pela contemplação espiritual do visível, ele se despoja dos pensamentos passionais das coisas. Pelo conhecimento do invisível ele se despoja da contemplação do visível. Enfim, ele se despoja do conhecimento do invisível pelo conhecimento da Santíssima Trindade.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Primeira centúria de capítulos sobre o amor.
95. Assim como o sol, ao se levantar e iluminar o mundo, revela a si mesmo e revela as coisas que ele ilumine, também o sol de justiça [42], quando se ergue sobre o intelecto puro, revela a si mesmo e revela as razões de tudo o que, por meio dele, sempre foi e sempre será. 1239
96. Não conhecemos a Deus por sua essência, mas pela grandeza de sua obra e pela sua providência nos seres. É por estas coisas que, como num espelho, compreendemos sua bondade, sabedoria e poder infinitos [43]. 1240
97. O intelecto puro se encontra, ou bem nos pensamentos simples das coisas humanas, ou bem na contemplação natural do visível, ou bem na contemplação do invisível, ou bem na luz da Santíssima Trindade.
98. O intelecto que alcançou a contemplação das coisas visíveis ou bem sonda suas razões naturais, ou busca seus significados, ou busca sua causa.
99. Ao se aplicar à contemplação das coisas visíveis, o intelecto busca suas razões naturais, a causa de sua origem, suas conseqüências e a ação que sobre elas exerce o Providência e o Julgamento.
100. Mas, chegando a Deus e abrasado por seu desejo, o intelecto busca primeiro as razões de sua essência, por não encontrar consolo em nada que se pareça consigo. Ora, isto é impossível, e também inacessível a toda natureza criada. Ele então consola-se com aquilo que o cerca, ou seja, com a eternidade, o infinito, o ilimitado, a bondade, a sabedoria, o poder que criou, governa e julga os seres. Somente isto – a infinitude e esta impossibilidade de conhecer – é compreensível para ele, como bem o disseram os teólogos Gregório [44] e Denis [45]. 1241
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[42] Malaquias 3: 20.
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[43] Cf. Romanos 1: 20 e I Coríntios 13: 12. [44] Gregório de Nazianze, Discurso XXXVIII, 7; XLV, 3. [45] Denis o Areopagita, Teologia Mística I, 3.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Segunda centúria de capítulos sobre o amor.
SEGUNDA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR 1. Quem ama verdadeiramente a Deus ora sem que absolutamente nada o distraia. E também quem ora sem se distrair ama a Deus verdadeiramente. Mas aquele cujo intelecto ainda está ligado a qualquer coisa de terrestre não consegue orar sem se distrair.
2. O intelecto que se debruça sobre uma coisa sensível com certeza sente por esta coisa uma paixão, como a concupiscência, a tristeza, a cólera ou o ressentimento. E se ele não desdenhar esta coisa, ele não conseguirá se livrar desta paixão.
3. As paixões que subjugam o intelecto se ligam às coisas materiais e, separando-o de Deus, o levam a que se ocupe destas coisas. Mas se o amor a Deus for mais forte, ele cortará os laços levando-o não apenas a desprezar as coisas sensíveis, mas a própria vida, esta vida passageira.
4. A obra dos mandamentos é tornar simples os pensamentos sobre as coisas. A obra da leitura e da contemplação é levar o intelecto para fora de toda matéria e de toda forma. É assim que chegamos a orar sem distrações.
5. Para libertar perfeitamente o intelecto das paixões, a ponto de que ele possa orar sem se distrair, a via ativa não é suficiente, se não for seguida por muitas contemplações espirituais. De fato, a via ativa não liberta o intelecto senão da intemperança e da aversão. Mas as contemplações espirituais o separam totalmente do esquecimento e da ignorância. Assim ele poderá orar como se deve.
6. Existem dois estados elevados da prece pura: um é dado aos ativos, outro aos contemplativos. Um nasce do temor a Deus e da boa esperança. O outro nasce do eros divino e de uma purificação extrema. O primeiro pode ser reconhecido pelos seguintes sinais: quando o intelecto se recolhe para longe de todos os pensamentos do mundo, como se o próprio Deus lhe estivesse próximo – e, de fato, ele está – ele ora sem de deixar distrair nem perturbar. O segundo por ser reconhecido assim: no próprio impulso da oração o intelecto é arrebatado pela luz infinita de Deus, perde toda sensação de si mesmo e já não percebe mais nenhum outro ser, senão Aquele único que, por intermédio do amor, opera nele uma tal iluminação. Então, levado até as razões de Deus, ele recebe imagens suas puras e claras.
7. Nós nos ligamos totalmente àquilo que amamos e, para disto não sermos privados, desdenhamos tudo o que se lhe opõe. Quem ama a Deus dedica-se à prece pura e rejeita por si só toda paixão que o impeça de orar.
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8. Quem rejeitou o egoísmo, a complacência para consigo mesmo, a mãe das paixões, com a ajuda de Deus se desembaraça facilmente das outras paixões, como a cólera, a tristeza, o ressentimento, etc. Mas quem é tomado pela primeira paixão é ferido pela segunda, mesmo que não queira. O egoismo é a paixão que temos pelo corpo.
9. É por estas cinco razões que os homens amam uns aos outros, de modo louvável ou de modo condenável: ou por amor a Deus, como o homem virtuoso ama a todos os homens e como aquele que ainda não é virtuoso ama o homem virtuoso; ou por natureza, como os pais amam aos filhos e reciprocamente; ou por vanglória, como aquele que é glorificado ama aquele que o glorifica; ou por amor ao dinheiro, como aquele que recebe ama o que é rico; ou por amor ao prazer, como aquele que cuida do seu ventre e das coisas do baixo ventre. A primeira razão é louvável, a segunda é medíocre; as demais são marcadas pela paixão.
10. Se você detesta alguns homens, se por outros você não sente nem amor nem aversão, se a alguns você ama moderadamente enquanto a outros ama fortemente, saiba por estas desigualdades que você ainda está longe do amor perfeito, que se propõe a amar a todos os homens igualmente.
11. “Afaste-se do mal e faça o bem [46]”. Quer dizer: combata os inimigos para reduzir as paixões. Depois vele e seja nobre, para que elas não cresçam. Então combata novamente, para adquirir as virtudes, Depois vele e seja sóbrio, para mantê-las. Isto é o que podemos chamar de trabalhar e guardar [47]. 1243
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12. Aqueles a quem Deus permitiu nos testar, ou bem aquecem o desejo na alma, ou bem perturbam seu ardor, ou entenebrecem a razão, o enchem de dores o corpo, ou roubam o que ele possui.
13. Ou bem os demônios nos tentam por si mesmos, ou bem armam contra nós aqueles que não temem ao Senhor. Eles nos tentam por si mesmos quando permanecemos sós e longe dos homens, como o Senhor no deserto [48]. E eles nos tentam por intermédio dos homens quando vivemos em seu meio, como o Senhor foi testado pelos fariseus [49]. Mas nós, com os olhos postos em nosso modelo, devemos rejeitá-los de um lado e de outro. 1245
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14. Quando o intelecto começa a progredir no amor a Deus, então o demônio da blasfêmia começa a tentálo e lhe sugere pensamentos que nenhum homem saberia produzir, e que somente o diabo é capaz de suscitar com sua arte maléfica. Ele faz isto por invejar o amado de Deus e para que este, caindo em desespero por causa desses pensamentos, não mais ouse voar em sua direção com suas orações habituais. [46] Salmo 33 (34): 15. [47] Cf. Gênesis 2: 15. [48] Cf. Mateus 4: 1-10. [49] Cf. Mateus 16: 1, etc.
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Mas o maldito falha em seu objetivo, pois ele nos oprime inicialmente, mas, depois de termos sido combatidos e de lutarmos por nós mesmos, nos tornamos mais experientes e mais verdadeiros no amor a Deus. “Que sua espada lhe trespasse o coração e que seu arco se quebre [50]”. 1247
15. Quando se aplica ao visível, o intelecto percebe naturalmente as coisas por intermédio dos sentidos. Nem o intelecto, nem a percepção natural, nem as coisas, nem os sentidos são um mal. Estas coisas são obras de Deus. Então, o que é o mal? É claro que o mal é a paixão que está ligada ao pensamento natural. Mas o uso dos pensamentos não pode ficar ligado às paixões, se o intelecto estiver vigilante.
16. A paixão é um movimento da alma contra a natureza, por amor irracional ou por aversão irrefletida em relação a uma coisa sensível ou por causa dela. Pelo amor irracional pelas comidas, pelas mulheres, pelo dinheiro, pela glória passageira ou por qualquer outra coisa sensível, ou por causa dela. E pela aversão irrefletida, como eu disse, por uma das coisas que mencionei, ou por outras coisas, ou por causa delas.
17. A malícia consiste num julgamento errôneo dos pensamentos, que se segue ao abuso das coisas. É assim que acontece com relação às mulheres. O julgamento justo, a regra, é unir-se a ela para procriar e ter filhos. Quem não vê senão o prazer se engana, seu juízo é falso: ele considera como um bem aquilo que não é um bem e, unindo-se à mulher, abusa dela. O mesmo acontece com todas as outras coisas e todos os outros pensamentos.
18. Quando, expulsando-o para longe da castidade, os demônios rodeiam o intelecto com pensamentos de prostituição, diga chorando ao Mestre: “Eles me afastaram, eles me cercaram [51]. Minha alegria, liberteme daqueles que me cercaram [52]”, e você será salvo. 1248
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19. Pesado é o demônio da prostituição. Ele ataca duramente os que combatem a paixão, sobretudo quando, por negligência, eles deixam de ter uma alimentação simples e encontram com mulheres. Pela doçura do prazer ele engana secretamente o intelecto, e depois, quando este repousa, investe sobre ele com lembranças e, inflamando o corpo, suscita nele toda espécie de formas. Então lhe pede que consinta no pecado. Se você não quiser que tais formas se grudem em você, tome sobre si o jejum, o sofrimento, as vigílias, a bela hesíquia e a prece contínua.
20. Aqueles que não cessam de perseguir nossa alma o fazem por meio dos pensamentos passionais, a fim de atirá-la no pecado pela reflexão ou pela ação. Caso encontrem um intelecto resolvido a não os acolher,
[50] Salmo 36 (37): 15. [51] Salmo 16 (17): 11. [52] Salmo 31 (32): 7.
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eles ficam confusos e se retiram [53]. E se o encontram absorvido na contemplação espiritual, eles fogem e depressa são tomados da maior confusão [54]. 21. Aquele que unta seu intelecto para os combates sagrados e que dele expulsa os pensamentos passionais faz o papel do diácono. O que o ilumina com o conhecimento dos seres e destrói o falso conhecimento faz o papel do padre. E o que o leva à perfeição pela santa mirra do conhecimento e da adoração da Santíssima Trindade [do conhecimento da adorável e santa Trindade] faz o papel do bispo. 1250
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22. Os demônios perdem a força quando em nós decrescem as paixões sob o efeito dos mandamentos. E eles perecem quando as paixões desaparecem até o fim pela impassibilidade. Pois então eles não mais encontram o porquê de estarem na alma e a combaterem. É isto que significa: “Eles perderam a força e morreram diante de sua face [55]”. 1252
23. Dentre os homens, alguns refreiam as paixões por um medo puramente humano. Outros, por vaidade. Outros, por temperança. Outros, enfim, são libertos das paixões pelos julgamentos de Deus [56]. 1253
24. As palavras do Senhor seguem sempre um destes quatro caminhos: os mandamentos, os ensinamentos, as ameaças e as promessas. É para seguir por estes caminhos que suportamos todos os tormentos da vida dura: os jejuns, as vigílias, dormir no chão, as penas e as fatigas suportadas no serviço aos outros, as injúrias, os ultrajes, as torturas, a morte e outras provações semelhantes. Com efeito, foi dito: “Pelas palavras de sua boca eu percorri caminhos rudes [57]”. 1254
25. A recompensa da temperança é a impassibilidade, e a recompensa da fé é o conhecimento. Ora, a impassibilidade engendra o discernimento, e o conhecimento engendra o amor a Deus.
26. O intelecto que caminha direito sobre a via da ação progride para a prudência, e o que marcha sobre o caminho da contemplação progride para o conhecimento. É próprio da prudência levar o que combate ao discernimento da virtude e do vício. É próprio do conhecimento conduzir quem dele partilha às razões dos seres incorpóreos e dos seres corpóreos. Mas o intelecto recebe a graça da teologia quando, ultrapassando nas asas do amor tudo o que foi dito e alcançando a contemplação, penetra pelo Espírito a razão que revela a Deus, na medida em que isto é possível a uma inteligência humana.
27. Se você pretende alcançar a teologia, o conhecimento de Deus, não busque as razões do próprio Deus. Uma inteligência humana é incapaz de encontrá-las, tanto quanto a de qualquer outra criatura de Deus. [53] Cf. Isaías 41: 11. [54] Salmo 6: 11. [55] Salmo 9: 4. [56] Os “julgamentos de Deus” são as provas e os castigos por meio dos quais Deus corrige os homens durante suas vidas terrestres, antes do Juízo final. [57] Salmo 16 (17): 4. 1250
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Apenas considere os atributos que o rodeiam, como a eternidade, a infinitude, o ilimitado, a bondade, a sabedoria, o poder que criou, governa e julga os seres. Pois dentre os homens será um grande teólogo aquele que descobrir, por pouco que seja, a razão destes atributos.
28. Poderoso será o homem que unir o conhecimento à ação. Por meio de desta última, ele apaziguará o ardor e consumirá o desejo. Pelo outro ele dará asas ao intelecto e emigrará para Deus.
29. Quando o Senhor disse: “Meu Pai e eu somos um [58]”, ele se referiu à identidade da essência. Mas quando ele disse: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim [59]”, ele revelou que as Pessoas são inseparáveis. Os triteístas [60] que separam o Filho e o Pai mergulham assim num impasse cercado de abismos. Pois, ou bem eles afirmam que o Filho é eterno com o Pai, mas separando um do outro, e então são obrigados a afirmar que o Filho não nasceu do Pai e a declarar que existem três Deuses e três princípios; ou bem eles afirmam que o Filho nasceu do Pai, mas o separam, e então são obrigados a afirmar que o Filho não é eterno com o Pai e que o Mestre dos tempos está submetido ao tempo. É preciso, assim, com o grande Gregório [61], manter um Deus único e confessar as três Pessoas, cada qual com aquilo que lhe é próprio. Pois, segundo o mesmo Gregório, Deus é dividido, mas indivisivelmente, e as três Pessoas são uma, mas permanecem separadas. A divisão e a união são assim paradoxais. Com efeito, o que haveria de paradoxal, se o Filho e o Pai fossem unidos e separados como um homem e outro homem, sem mais? 1255
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30. Aquele que é perfeito no amor e que chegou ao cume da impassibilidade ignora a diferença entre si mesmo e o outro, ou entre aquilo que lhe é próprio e o que lhe é estranho, ou entre o crente e o descrente, entre o escravo e o homem livre, entre homem e mulher. Ao contrário, elevado acima da tirania das paixões e não vendo senão uma única natureza nos homens, ele os considera a todos igualmente e tem por todos o mesmo sentimento. Pois então não existe mais para ele “nem grego nem judeu, nem homem nem mulher, nem escravo nem homem livre, mas apenas Cristo que é tudo em todos [62]”. 1259
31. Os demônios extraem os meios de suscitar em nós pensamentos passionais das paixões que repousam no fundo da alma. Depois, combatendo a inteligência com estes pensamentos, eles a forçam a consentir no pecado. Vencido o intelecto, eles o conduzem de pecado em pecado. Conseguindo isto [63], enfim, com o intelecto cativo daí por diante, eles o levam ao ato. Depois de terem devastado a alma com pensamentos, eles se retiram, deixando ao intelecto apenas o ídolo do pecado, do qual o Senhor disse: “Quando vocês virem a abominação da desolação erguida no lugar santo, quem ler compreenda! [64]” O lugar santo e o templo de Deus são o intelecto do homem aonde, após devastarem a alma com pensamentos passionais, os 1260
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[58] João 10: 30. [59] João 14: 11. [60] Heresia que surgiu entre os cristãos e que pregava existirem três Pessoas em Deus, considerando por conseguinte três essências, três substâncias, três deuses. [61] Gregório de Nazianze, Discurso XIII, 4; XXV, 17; XXVIII, 1; XXXI, 14; XXXIX, 12. [62] Cf. Gálatas 3: 28; Colossenses 3: 11. [63] Cf. Tiago 1: 15. [64] Mateus 25: 15. 1255
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demônios erguem o ídolo do pecado. Quem leu os escritos de Josefo [65] sabe o quanto isto já aconteceu na história. Mas alguns dizem que isto acontecerá novamente quando vier o Anticristo. 1262
32. Existem três forças que nos levam ao bem: as sementes naturais, os santos poderes e a boa vontade. As sementes naturais, quando fazemos aos outros o que queremos que nos façam [66], ou quando sentimos compaixão à vista de um homem na miséria ou passando necessidades. Os santos poderes, quando, levados a fazer uma boa ação, encontramos um bom auxílio e a fazemos bem. A boa vontade quando, discernindo entre o bem e o mal, escolhemos o bem. 1263
33. Existem também três forças que nos levam ao mal: as paixões, os demônios e a má vontade. As paixões, quando desejamos algo de forma irracional, como comer em demasia e sem necessidade, ou desfrutar de um mulher que sequer é a esposa recusando gerar filhos ou quando, da mesma forma, nos irritamos ou nos afligimos, por exemplo, contra um homem que nos ultrajou ou que nos lesou. Os demônios, quando aproveitam o momento e nos atacam na hora em que estamos negligentes, suscitando de repente contra nós, com grande violência, estas paixões e outras semelhantes. Enfim, a má vontade, quando, sabendo onde está o bem, escolhemos o mal.
34. As recompensas das penas da virtude são a impassibilidade e o conhecimento. Estes permitem entrar no Reino dos céus, assim como as paixões e a ignorância conduzem ao castigo eterno. Assim, aquele que busca as penas pela glória dos homens e não para seu próprio bem, ouvirá a Escritura dizer-lhe: “Vocês pedem e não recebem, porque não sabem pedir [67]”. 1264
35. Muitas coisas que os homens fazem são naturalmente boas. Mas elas podem também não ser boas por causa de sua motivação. Assim, o jejum, as vigílias, a prece, a salmodia, a esmola e a hospitalidade são por natureza boas obras, mas, quando feitas por vaidade, deixam de ser boas.
36. Em tudo o que fazemos, Deus procura o objetivo: se agimos em função dele, ou por outra razão.
37. Quando você ouvir a Escritura dizer: “Você dará a cada um conforme suas obras [68]”, entenda que Deus recompensa as boas obras, não as que são feitas contra o justo objetivo, mesmo que pareçam boas, mas apenas as que evidentemente conduzem ao justo objetivo. Pois o julgamento de Deus não visa o que acontece, mas o objetivo daquilo que acontece. 1265
[65] Flavius Josefus, Guerras dos Judeus VI, IV, 3-5; VII, I, 3. [66] Cf. Lucas 6: 31. [67] Tiago 4: 3. [68] Salmo 61 (62), 13.
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38. O demônio do orgulho segue dois caminhos em sua malícia. Ou bem ele persuade o monge a atribuir as boas obras a si mesmo, e não a Deus que dispensa os bens e concorre para seu cumprimento, ou bem, se não pode persuadi-lo, ele o incita a desprezar os irmãos monges que ainda são imperfeitos. Mas quem se deixa levar a tais coisas ignora que é o diabo que o está persuadindo a recusar a ajuda de Deus. Pois, se ele despreza os que não conseguiram levar as obras até o fim, ele pressupõe que evidentemente alcançou o bem por suas próprias forças, o que é impossível, porque o Senhor disse: “Sem mim, vocês nada podem [69]”. Mesmo que a obra seja dirigida para o bem, nossa fraqueza é incapaz de chegar ao fim sem Aquele que dispensa os bens. 1266
39. Quem conheceu a fraqueza da natureza humana pode adquirir a experiência do poder de Deus. Com este poder, ele conseguiu concluir diversas boas obras e se esforça por cumprir muitas outras, mas jamais despreza outro homem. Pois ele sabe: assim como Deus o ajudou e o libertou de tantas paixões e dificuldades, ele também pode, quando quiser, ajudar todos os demais, em especial os que combatem por ele, mesmo que, por julgamentos que são só seus, ele não nos liberte de todas as paixões de uma só vez, mas, como um bom médico que ama o homem, ele cure por meio de remédios que convêm a cada um dos que se esforçam.
40. Quando as paixões deixam de estar ativas, chega o orgulho, ou devido às causas das quais nos livramos, ou devido aos demônios que se retiraram enganadoramente.
41. Quase todos os pecados vêm pelo prazer e se vão com o sofrimento e a aflição, pelo arrependimento voluntário, ou ainda pelo desencaminhamento suscitado pelo desejo da providência. “Pois se nós julgamos a nós mesmos, não seremos julgados. Mas, julgados pelo Senhor, somos castigados para não sermos condenados com o mundo [70]”. 1267
42. Quando uma provação chega a você de improviso, não acuse aquele por meio de quem ela o alcançou, mas pergunte-se porque ela lhe foi dada, e aí você encontrará um benefício. Pois, seja por esta provação, seja por outra, é preciso beber o absinto dos julgamentos de Deus.
43. Malvado como você é, não recuse o sofrimento, a fim de que, humilhado por ele, você possa vomitar seu orgulho.
44. Dentre as provas, algumas trazem prazeres ao homem, outras trazem aflições, outras sofrimentos corporais. Pois, conforme as causas das paixões, que estão na alma, o médico das almas aplica o remédio segundo seu julgamento.
[69] João 15: 15. [70] I Coríntios 11: 31-32.
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45. A irrupção das provações traz a alguns a remissão dos pecados já cometidos. Em outros, dissipa os pecados que estão para ser cometidos. Em outros ainda, impede pecados que poderiam surgir no futuro. Sem falar nas provações que vêm para nos sondar, como as de Jó.
46. O homem sensato, considerando que os julgamentos de Deus o curam, suporta com reconhecimento as infelicidades que trazidas por estes julgamentos, pois se lembra de que estas infelicidades não têm outras causas do que seus próprios pecados. Mas o insensato, que ignora a sábia providência de Deus, imagina que ou Deus ou os homens são a origem dos seus males, quando peca e é castigado.
47. Existem remédios que detêm as paixões em seu movimento e não lhes permitem prosseguir e crescer. Existem outros que as enfraquecem e reduzem. Assim, o jejum, as penas e as vigílias impedem a concupiscência de crescer. Mas a anacorese, a contemplação, a prece, o ardente desejo de Deus a enfraquecem e extinguem. O mesmo acontece com o ardor: a paciência, a ausência de ressentimento, a mansidão o detêm; e o amor, a compaixão, a bondade e a bem-aventurança o reduzem.
48. Naquele cujo intelecto está continuamente voltado para Deus, mesmo a concupiscência aumenta o desejo ardente de Deus, e o ardor se volta inteiramente para o amor divino. Por ter conhecido a iluminação divina por longo tempo, ele se tornou inteiro luminoso. E, encerrando em si mesmo a parte de seu ser submetida às paixões, ele a dirigiu para o desejo de Deus, ardente, insaciável, como foi dito, e para o amor sem fim, fazendo-a passar do terrestre ao divino.
49. Quem não se indispõe com o homem que o ofendeu, que não se irrita e não tem ressentimento contra ele, nem por isso chegou ao ponto de amá-lo. Mas mesmo que não o ame ainda, consegue não devolver o mal com o mal, conforme o mandamento [71]. Mas ainda não é capaz de devolver o bem pelo mal. Pois ser capaz de fazer o bem a quem nos maltratou [72] não é dado senão ao perfeito amor espiritual. 1268
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50. Quem não ama a alguém, nem por isso o odeia. Também quem não odeia uma pessoa não está necessariamente em condições de amá-la. Pode-se permanecer a meio caminho, sem amar nem odiar. Pois só os cinco modos citados no nono capítulo desta centúria podem suscitar o estado de amor: o modo louvável, o medíocre e os demais, condenáveis.
51. Quando você perceber que seu intelecto se compraz em ocupar-se das coisas da matéria e sente prazer em pensar sempre nessas coisas, saiba que você as ama mais do que a Deus. Pois aonde está seu tesouro, disse o Senhor, ali estará também seu coração [73]. 1270
[71] Cf. Romanos 12: 17. [72] Cf. Mateus 5: 44. [73] Cf. Mateus 6: 21.
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52. O intelecto que se liga a Deus e passa com ele todo seu tempo em prece e no amor torna-se sábio, bom, forte, benevolente, compassivo, paciente, em uma palavra, traz em si quase todas as propriedades de Deus. Mas se ele se afasta de Deus, ou bem ele se torna como um animal que não ama senão seu prazer, ou bem se torna como uma fera que, por causa das coisas da matéria, ataca os homens.
53. A Escritura chama de mundo as coisas da matéria; e os mundanos são aqueles cujo intelecto se ocupa destas coisas. É para eles que, para faze-los voltarem a si, a Escritura diz: “Não amem o mundo, nem o que está no mundo. A concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos, a ostentação da vida, não são de Deus, mas do mundo [74]”, etc. 1271
54. É monge aquele que afastou seu intelecto das coisas da matéria e que, pela temperança, pelo amor, a salmodia e a prece, permanece ligado a Deus.
55. O monge ativo é, no sentido espiritual, um adestrador de animais, pois as obras morais têm como figura os animais. É por isso que Jacó dizia: “Seus filhos são homens que adestrarão animais [75]”. Mas o monge gnóstico é um pastor de ovelhas, pois os pensamentos têm como figura as ovelhas. O intelecto as leva a pastar nas montanhas das contemplações. Assim, “todo pastor de ovelhas é uma abominação aos olhos dos Egípcios [76]”, como o é aos olhos das potências adversas. 1272
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56. Quando o corpo é levado pelos sentidos para suas próprias concupiscências e seus próprios prazeres, o intelecto enganado segue as imaginações e os impulsos do corpo e consente neles. Mas o intelecto virtuoso permanece temperante e resiste às imaginações e aos impulsos passionais. São contrário, ele se esforça por tornar melhores tais movimentos.
57. Dentre as virtudes, algumas são do corpo, outras são da alma. As virtudes do corpo são o jejum, as vigílias, o dormir sobre o chão, o servir aos outros, o trabalho das mãos para não ser um fardo para ninguém ou para partilhar [77], etc. As virtudes da alma são o amor, a paciência, a mansidão, a temperança [78], a oração, etc. Assim, se por qualquer necessidade ou qualquer estado do corpo, como uma doença ou outra coisa, nos acontecer de não podermos trabalhar as virtudes corporais de que falamos, temos o perdão do Senhor, que conhece a causa disto. Mas se não trabalhamos as virtudes da alma não temos nenhuma justificação, pois elas não estão submetidas à necessidade. 1274
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[74] I João 2: 15-16. [75] Gênesis 46: 34. [76] Gênesis 46: 34. [77] Cf. I Tessalonicenses 2: 9; Efésios 4: 28. [78] Cf. Gálatas 5: 22.
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58. A quem o possui, o amor a Deus permite desprezar todos os prazeres passageiros, toda pena e toda tristeza. Convença-se disto pelo exemplo dos santos, que sofreram de tudo por Cristo.
59. Proteja-se da mãe dos vícios, a complacência para consigo mesmo, o egoísmo, que é o afeto irracional que sentimos pelo corpo. Pois é disto, evidentemente, que nascem os três primeiros pensamentos tolos, passionais, fundamentais, que são a gula, a cupidez e a vanglória, que aparentemente têm sua origem nas exigências do corpo. É deles que provêm toda a série dos vícios. É preciso portanto, necessariamente, se proteger da complacência para consigo mesmo e combatê-la com muita sobriedade e vigilância Pois quando ela desaparece, todos os pensamentos que dela vieram desaparecem com ela.
60. A paixão do egoísmo sugere ao monge que tenha piedade de seu corpo e que o alimente além da conta, aparentemente para mantê-lo e dirigi-lo, mas na verdade para atraí-lo pouco a pouco e atirá-lo no abismo do amor ao prazer. Quanto ao homem do mundo, ela lhe propõe cuidar deste corpo desde cedo, para satisfazer sua concupiscência [79]. 1276
61. Diz-se que o mais elevado estado da prece é o seguinte: no momento da oração o intelecto se encontra fora da carne e do mundo, de toda matéria e de toda forma. Quem mantém este estado sem falhar, em verdade ora continuamente [80]. 1277
62. Assim como o corpo ao morrer se separa totalmente das coisas do mundo, também a alma que se aplica em permanecer neste estado elevado de oração, e que morre, se separa de todos os pensamentos do mundo. Pois se ela não morrer esta morte, ela não conseguirá se encontrar e viver com Deus.
63. Que ninguém o engane, monge, convencendo-o de que é possível ser salvo ao mesmo tempo em que se permanece servil ao prazer e à vanglória.
64. Do mesmo modo como o corpo pela pelas coisas e que as virtudes o ensinam a se tornar casto, também o intelecto peca pelos pensamentos passionais e as virtudes da alma o ensinam a se tornar casto, vendo as coisas com toda pureza e impassibilidade.
65. Assim como as noites se sucedem aos dias e os invernos aos verões, também as aflições e as dores se seguem à vanglória e ao prazer, tanto no século presente como no futuro.
[79] Cf. Romanos 13: 14. [80] Cf. I Tessalonicenses 5: 17.
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66. Não é possível que aquele que pecou escape ao Juízo final se, aqui em baixo, ele não se impuser penas e não seja oprimido pela infelicidade.
67. Diz-se que existem cinco razões pelas quais Deus permite que sejamos combatidos pelos demônios. A primeira é para que, à custa de sermos atacados e de contra-atacarmos, alcancemos o discernimento entre a virtude e o vício. A segunda é para que, depois de havermos adquirido as virtudes pelo combate e as penas, a guardemos firmemente e sem falhas. A terceira é para que, progredindo na virtude, não nos tornemos orgulhosos, mas nos mantenhamos humildes. A quarta é para que, testados pelo mal, sintamos por ele uma aversão total [81]. Enfim e acima de tudo, para que, tornados impassíveis, não esqueçamos nossa própria fraqueza nem o poder d'Aquele que nos socorreu. 1278
68. Assim como o intelecto de um homem faminto imagina pão e o de um homem sedento imagina água, o intelecto do guloso imagina todo tipo de alimentos, o intelecto daquele que ama o prazer imagina formas femininas, o intelecto do vaidoso imagina glórias vindas dos homens, o intelecto do rancoroso imagina vinganças contra quem o ofendeu, o intelecto do invejoso imagina como fazer o mal àquele a quem inveja, e assim com todas as demais paixões. Pois o intelecto perturbado pelas paixões acolhe os pensamentos passionais, quer o corpo esteja acordado, quer durma.
69. Quando cresce a concupiscência, o intelecto imagina em sonhos a matéria dos prazeres. Quando cresce o ardor, o intelecto vê o que suscita o temor. Secundados por nossa própria inteligência, os demônios impuros fazem aumentar naturalmente as paixões excitando-as. Mas os santos anjos as reduzem, levandonos à prática das virtudes.
70. O desejo da alma, quando excitado com frequência, suscita um estado – o amor pelo prazer – que a alma tem dificuldade em transformar. E o ardor, quando continuamente perturbado, torna a inteligência medrosa e preguiçosa. A ascese contínua do jejum, das vigílias e da oração cura o desejo. A bondade, a benevolência, o amor e a piedade curam o ardor.
71. Ou bem os demônios nos combatem pelas coisas, ou bem nos combatem pelos pensamentos passionais que estão nas coisas. Por meio das coisas, eles combatem aqueles que vivem no meio delas. Pelos pensamentos, eles combatem os que vivem separados delas.
72. Assim como é mais fácil pecar em pensamento do que pecar em ato, também o combate contra os pensamentos é mais difícil do que o combate contra as coisas.
[81] Cf. Salmo 138 (139): 22.
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73. As coisas existem fora do intelecto, mas seus pensamentos existem dentro. Está, portanto, no intelecto usarmos bem ou mal as duas coisas. Pois o mau uso das coisas segue o mau uso dos pensamentos.
74. O intelecto recebe os pensamentos passionais por três caminhos: pela sensação, pela compleição do corpo, pela memória. Pela sensação quando as coisas pelas quais nos apaixonamos a atingem, levando o intelecto a ter pensamentos passionais. Pela compleição do corpo quando este, alterado por regimes desregrados, pela ação dos demônios ou por alguma enfermidade, empurra por sua vez o intelecto para os pensamentos passionais ou para os caminhos da prostituição. Enfim pela memória, quando esta faz ressurgir as lembranças de coisas que nos atormentaram, conduzindo igualmente o intelecto aos pensamentos passionais.
75. Dentre as coisas que Deus nos deu para nos servirem, algumas se encontram na alma, outras no corpo, outras ao redor do corpo. Assim, na alma estão as potências, no corpo os sentidos e os demais membros, e ao redor do corpo os alimentos, as posses, o dinheiro, etc. O bom ou o mau uso dessas coisas e de suas modalidades mostrará se somos virtuosos ou falsos.
76. Dentre as modalidades das coisas, algumas dizem respeito ao que existe dentro da alma, outras ao que está no corpo, outras ao que rodeia o corpo. Assim, na alma estão o conhecimento e a ignorância, o esquecimento e a lembrança, o amor e o ódio, a tristeza e a alegria, etc. No corpo estão o prazer e a dor, o uso e a privação dos sentidos, a saúde e a doença, a vida e a morte, e outras modalidades semelhantes. Ao redor do corpo estão a fecundidade e a esterilidade, a riqueza e a pobreza, a glória e o desprezo, etc. Dentre essas modalidades, algumas são consideradas como bens, outras como males. Mas nenhuma delas é má, propriamente falando. É pelo uso que delas fazemos que elas se revelam boas ou más.
77. O conhecimento é naturalmente bom, assim como a saúde. Entretanto seus contrários, mais do que eles, foram úteis para muitos. Pois, nos homens falsos, o conhecimento não conduz ao bem, embora ele seja naturalmente bom, como eu disse. E também, em tais homens, a saúde, a riqueza, a alegria não conduzem ao bem. Elas não lhes trazem nenhum benefício. Serão úteis a eles seus contrários? Se assim for, eles não lhes serão um mal, propriamente falando, ainda que o pareçam.
78. Não faça mau uso dos pensamentos, para não ser constrangido a fazer também mau uso das coisas. Pois se não pecarmos primeiro em pensamento, jamais chegaremos a pecar em ato.
79. A imagem do terrestre são os vícios fundamentais, como a demência, a preguiça, o deboche, a injustiça. A imagem do celeste são as virtudes fundamentais, como a sabedoria, a coragem, a castidade, a justiça. E, assim como carregamos a imagem do terrestre, carregaremos também a imagem do celeste [82]. 1279
[82] Cf. I Coríntios 15: 49.
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80. Se você quiser encontrar o caminho que conduz à vida [83], procure-o sobre a via, esta via que diz: “Eu sou a via, a porta, a verdade e a vida [84]”, e você o encontrará. Mas procure com todas as suas forças, trabalhe, pois são poucos os que encontram o caminho [85]. Procure, para não ficar de fora destes poucos, para não ser contado com a maioria. 1280
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81. A alma se afasta dos pecados por cinco caminhos: por medo dos homens, por medo do Juízo, pela retribuição futura, pelo amor a Deus ou, finalmente, pela consciência, quando ela bate.
82. Alguns dizem que o mal não existiria nos seres se alguma outra potência não nos atraísse para ele. Ora, esta potência não é outra coisa do que nossa negligência em exercer a atividade natural do intelecto. É por isso que aqueles que se dedicam a exercer esta atividade só fazem o bem, sempre, e nunca o mal. Assim, se você quiser se desvencilhar da negligência por meio da atividade natural do intelecto, expulse a malícia, que é o uso errôneo dos pensamentos, à qual se segue o mau uso das coisas.
83. Está na natureza da parte racional que existe em nós submeter-se ao Verbo de Deus e dominar a parte irracional que também existe em nós. Que esta ordem seja guardada por todos, e o mal desaparecerá dos seres, bem como aquilo que nos atrai para ele.
84. Dentre os pensamentos, alguns são simples, outros são compostos. Os pensamentos simples são os pensamentos impassíveis; os pensamentos compostos são os pensamentos passionais, porque eles são feitos de paixão e de reflexão. Sendo assim, é possível vermos muitos pensamentos simples se seguirem a pensamentos compostos, quando estes tendem para o lado da reflexão. Tomemos o ouro: um pensamento relativo ao ouro pode surgir na memória de qualquer pessoa, mas, se alguém pensar então no roubo, terá cometido um pensamento em seu intelecto. À lembrança do ouro sucederam-se as lembranças da bolsa, do cofre no quarto, etc. A lembrança do ouro veio composta, pois nela havia paixão. Mas as lembranças da bolsa e do cofre eram simples, porque o intelecto não tinha paixão por estas coisas. O mesmo acontece com todos os demais pensamentos, quer se trate da vanglória, da mulher ou de outras causas de paixão. Os pensamentos que se seguem a um pensamento passional não são todos passionais, como vimos. Podemos assim conhecer quais são os pensamentos passionais e quais são os outros.
85. Alguns dizem que, durante o sono, os demônios tocam as partes genitais do corpo e o empurram à paixão da prostituição; depois, por seu próprio movimento, a paixão suscita no intelecto, por meio da memória, a forma da mulher. Outros dizem que os demônios aparecem ao intelecto sob a forma de mulher, tocando as partes genitais do corpo, provocando o desejo e que é daí que vêm as imaginações. Outros ainda dizem que a paixão que domina o demônio quando ele se aproxima excita nossa própria paixão e que assim a alma se liga aos pensamentos, suscitando formas neles pela memória. O mesmo acontece com todas as outras imaginações passionais: uns dizem que elas surgem de um modo, outros que [83] Cf. Mateus 7: 14. [84] João 10: 7-9 e 14: 6. [85] Cf. Mateus 7: 14.
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elas surgem de outro. Porém, qualquer que seja o modo dos quais falamos, os demônios não têm poder de suscitar uma paixão, qualquer que seja ela, se na alma existirem o amor e a temperança, quer o corpo durma, quer esteja acordado.
86. Dentre os mandamentos da Lei, alguns devem ser guardados tanto espiritual quanto corporalmente, outros apenas espiritualmente. Assim, “não cometer adultério”, “não matar”, “não roubar”, e outros semelhantes [86], devem ser guardados tanto corporal como espiritualmente; e, espiritualmente, eles devem sê-lo três vezes mais. Mas circuncidar [87], observar o sábado [88], imolar o cordeiro, comer os ázimos e as ervas amargas [89], e outros mandamentos semelhantes, só devem ser guardados espiritualmente. 1283
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87. Existem nos monges três estados fundamentais da ética. O primeiro consiste em não pecar em ato. O segundo, em não deixar permanecer na alma pensamentos passionais. O terceiro, em observar impassivelmente em pensamento a forma das mulheres e a imagem daqueles que nos ofenderam.
88. O pobre é aquele que renunciou a tudo o que era seu, que não possui sobre a terra absolutamente nada além de seu corpo, e que, depois de haver destruído até a relação que nos une ao corpo, confiou a Deus e aos homens piedosos o cuidado de o dirigir.
89. Dentre os ricos, alguns possuem sem paixão: privados de seus bens, eles não se afligem, como quem aceita com alegria perder o que é seu [90]. Outros possuem com paixão: ameaçados de serem despojados, eles se tornam tristes, como o rico do Evangelho que foi embora entristecido [91]. Privados de seus bens, eles se afligem até a morte. É a provação que revela o estado impassível e o estado passional. 1287
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90. Os demônios combatem os que alcançam as alturas da oração, para impedi-los de perceber em toda pureza as coisas sensíveis. Eles combatem os gnósticos para que neles permaneçam pensamentos passionais. Eles atacam os ativos para persuadi-los a pecar em atos. Os miseráveis os combatem de todas as maneiras, para separar de Deus os homens.
91. Aqueles que, levados pela providência divina, dedicam-se à piedade nesta vida, são submetidos a três provas: ao dom das doçuras, como a saúde, a beleza, a fecundidade, a fortuna, a glória, etc.; à irrupção de desgraças, com a perda dos filhos, da fortuna e da glória; ao que faz sofrer o corpo, como as enfermidades,
[86] Cf. Êxodo 20: 13 e ss. [87] Cf. Levítico 12: 3. [88] Cf. Êxodo 31: 13. [89] Cf. Êxodo 12: 8 e 23: 15. [90] Cf. Hebreus 10: 34. [91] Cf. Mateus 19: 22.
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os suplícios, etc. Aos primeiros, o Senhor diz: “Se alguém não renuncia a tudo o que possui, este não pode ser meu discípulo [92]”. Aos outros, ele diz: “Por sua paciência vocês serão salvos [93]”. 1289
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92. É dito que as seguintes quatro causas alteram a compleição do corpo e fornecem ao intelecto, por intermédio dele, pensamentos passionais ou impassíveis: os anjos, os demônios, o ar que respiramos e os alimentos que ingerimos. Diz-se que os anjos transformam pela palavra, que os demônios transformam pelo toque, que o ar transforma por suas variações, e que o alimento transforma pela qualidade, a quantidade ou a raridade do que comemos. Sem falar das alterações que, pela memória, a audição e a visão, modificam a compleição do corpo se a alma for primeiro afetada pelas aflições ou alegrias que lhe acontecem. Quando é assim afetada, a alma transforma a compleição do corpo. Mas quando a própria compleição do corpo é transformada pelo que mencionamos, então é ela que leva os pensamentos ao intelecto.
93. A morte é propriamente a separação de Deus [94], e o aguilhão da morte é o pecado. Ao recebê-la, Adão foi simultaneamente exilado para longe da Árvore da Vida, longe do Paraíso e longe de Deus [95]. A morte do corpo segue-se necessariamente a esta separação. Quanto à vida, ela é propriamente Aquele que disse: “Eu sou a vida [96]”. Foi ele quem, penetrando na morte, devolveu a vida ao homem que estava morto. 1291
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94. Quem escreve livros escreve, seja para alimentar sua própria memória, seja para servir aos outros, seja pelos dois motivos, ou ainda para prejudicar alguém, por ostentação ou por necessidade.
95. Os verdes campos são a virtude ativa; e a água do repouso [97] é o conhecimento dos seres criados. 1294
96. A sombra da morte é a vida humana. Assim, se alguém está com Deus e Deus com ele, ele pode dizer claramente: “Enquanto eu caminhava sob a sombra da morte eu não temia o mal, porque você estava comigo [98]”. 1295
97. Um intelecto puro vê as coisas corretamente. A palavra experiente as exprime com clareza. Um ouvido refinado as escuta. Mas o homem desprovido destes três dons maltrata quem lhe fala.
98. Está com Deus quem conhece a Santíssima Trindade, sua criação e sua providência, e que conserva na impassibilidade a parte da alma submetida às paixões.
[92] Lucas 14: 33. [93] Lucas 21: 19. [94] Cf. I Coríntios 15: 56. [95] Cf. Gênesis, 3. [96] João 11: 25. [97] Cf. Salmo 22 (23): 2. [98] Salmo 22 (23): 4.
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99. Diz-se que o bastão representa o Julgamento de Deus, e que o cajado significa a Providência. Quem conheceu um e outro pode dizer: “Seu bastão e seu cajado são o que me consola [99]”. 1296
100. Quando o intelecto se despojou das paixões e acha-se iluminado pela contemplação dos seres, ele pode alcançar a Deus e orar com se deve.
[99] Salmo 22 (23): 4.
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TERCEIRA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR 1. O uso racional dos pensamentos e das coisas engendra a castidade [o amor] e o conhecimento. Seu uso irracional engendra o deboche, o ódio e a ignorância.
2. “Você preparou uma mesa para mim [100]”, etc. A mesa significa aqui a virtude ativa. Com efeito, é ela que nos foi preparada por Cristo em face daqueles que nos afligem. O óleo que unta o intelecto significa a contemplação das criaturas. A taça divina significa o conhecimento de Deus. Sua piedade significa seu Verbo, que é igualmente Deus. Pois, por sua encarnação, este nos acompanha todos os dias, até que tenha alcançado todos os que serão salvos, como Paulo [101]. A casa significa o Reino, onde serão restabelecidos todos os santos. E a duração dos dias significa a vida eterna. 1297
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3. Os vícios nos vêm por um mau uso das potências da alma, tanto do desejo quanto da razão. O mau uso da potência racional é a ignorância e a demência; o mau uso da potência ardente e ardorosa é o ódio e o deboche. Mas o uso natural dessas potências é o conhecimento e a sabedoria, o amor e a castidade. Assim sendo, nada do que foi criado e feito por Deus é mau.
4. Não é o alimento que é mau, mas a gula; não é a procriação dos filhos, mas a prostituição; nem a riqueza, mas a avareza; nem a glória, mas a vaidade. Sendo assim, nada do que existe é mau. Mau é somente o mau uso, que surge quando o intelecto negligencia sua cultura natural.
5. Nos demônios, como diz o bem-aventurado Denis [102], o mal é o ardor desprovido de razão, o desejo desprovido de inteligência, a imaginação exagerada. A irracionalidade, a desinteligência e o exagero são, por definição, uma privação da razão, da inteligência e da atenção. Ora, a privação é secundária, ela vem depois da possessão. Houve um tempo em que os demônios eram providos de razão, inteligência e sábia atenção. Sendo assim, tampouco os demônios são maus por natureza, mas se tornaram maus pelo mau uso das potências naturais. 1299
6. Dentre as paixões, algumas engendram o deboche, outras engendram o ódio, outras engendram o deboche e o ódio.
7. Falar e comer demais leva ao deboche. A avareza e a vaidade conduzem ao ódio ao próximo. A mãe desses vícios é a complacência para consigo mesmo, o egoísmo, que leva ao deboche e ao ódio.
[100] Salmo 22 (23): 5. [101] Cf. Filipenses 3: 12. [102] Denis o Areopagita, Nomes Divinos IV, 23.
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8. O egoísmo é a afeição passional e irracional que alguém sente por seu próprio corpo. Ao egoísmo se opõem o amor e a temperança. É claro que quem tem o egoísmo tem também todas as paixões.
9. “Ninguém, diz o Apóstolo, jamais odiou sua própria carne [103]”. Mas é claro que ele próprio tratou rudemente e sujeitou sua carne [104], não lhe concedendo mais do que alimento e vestes [105], e apenas na medida necessária à vida. É assim que se ama a carne fora de qualquer paixão, que a nutrimos como servidores do divino, que a confortamos apenas com as coisas que satisfazem às suas necessidades. 1300
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10. A quem amamos, nos dedicamos a servi-lo em tudo. Portanto, se amamos a Deus, nos dedicaremos em tudo a fazer o que lhe agrada [106]. Mas se amamos a carne, nos dedicaremos a fazer o que lhe é agradável. 1303
11. A Deus agrada o amor, a castidade, a contemplação, a oração. À carne agradam a gulodice, o deboche e tudo o que os faz crescer. É por isso que aqueles que vivem para a carne não podem agradar a Deus [107]. Mas os que estão com Cristo crucificaram a carne com as paixões e a concupiscência [108]. 1304
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12. Se o intelecto se volta para Deus, ele domina o corpo e não lhe concede nada além do necessário para viver. Mas se ele se volta para a carne, ele fica submetido às paixões, sempre cuidando dela para satisfazer-lhe a concupiscência [109]. 1306
13. Se você quiser se tornar mestre dos pensamentos, vigie as paixões: você expulsará facilmente do intelecto os pensamentos passionais. Assim, para combater a prostituição, vele, jejue, trabalhe, viva na solidão; para combater a cólera e a tristeza, despreze a glória, a desonra e as coisas materiais; para combater o ressentimento, reze por que lhe ofendeu, e você será libertado.
14. Não se compare com os mais fracos dos homens, mas dedique-se sempre aos mandamentos do amor. Comparando-se com os mais fracos, você será engolido pelo abismo da presunção; dedicando-se ao mandamento, você progredirá até o cume da humildade.
[103] Efésios 5: 29. [104] Cf. I Coríntios 9: 7. [105] Cf. I Timóteo 6: 8. [106] Cf. I João 3: 22. [107] Cf. Romanos 8: 8. [108] Cf. Gálatas 5: 24. [109] Cf. Romanos 13: 14.
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15. Se você guarda sempre o mandamento do amor, você nunca será para outros homens uma fonte de amargura por afligi-lo. Caso contrário, é claro que, preferindo as coisas que passam e disputando sua posse, você estará combatendo seu irmão.
16. A maior parte dos homens não busca o ouro pela necessidade, mas para servir ao seu prazer.
17. Existem três causas para o amor ao dinheiro: o gosto pelo prazer, a vaidade e a falta de fé. Mas a mais grave é a falta de fé.
18. Quem tem gosto nos prazeres ama o dinheiro para com ele viver no meio das delícias. O vaidoso o ama para adquirir para si a glória. Quem não tem fé o ama para escondê-lo e guardá-lo, por temer a fome, a velhice, a doença ou o exílio. Ele confia mais no dinheiro do que em Deus que criou o mundo todo e vela até pelos últimos e os menores seres vivos.
19. Quatro tipos de homens dão importância ao dinheiro: os três de que falamos, e o ecônomo, o administrador que gere uma comunidade. Mas apenas este, evidentemente, distribui o dinheiro como se deve, a fim de poder dar sempre a cada um na medida daquilo que ele precisa.
20. Todos os pensamentos passionais ou bem excitam o desejo da alma ou bem perturbam seu ardor e sua razão. Então o intelecto se torna cego, incapaz de assumir a contemplação espiritual e os voos da oração. É por isso que o monge, em especial aquele que vive na hesíquia, deve estar rigorosamente atento aos pensamentos, conhecê-los e suprimir suas causas. Eis como ele pode conhecê-los: por exemplo, a lembrança passional das mulheres excita o desejo na alma; a causa desta lembrança é a intemperança no comer e no beber, assim como as conversas frequentes e sem motivo com as próprias mulheres. Ora, esta lembrança pode ser apagada com a fome, a sede, as vigílias e a anacorese. Quanto ao ardor, ele é perturbado pela lembrança passional das aflições: a causa desta lembrança é o gosto pelo prazer, a vaidade, o amor pelas coisas materiais, pois o passional se aflige por estar privado destas coisas, ou por não conseguir obtê-las. Mas se elas são desdenhadas e consideradas como nada, sua lembrança é apagada pelo amor a Deus.
21. Deus conhece a si mesmo. Ele também conhece aquilo que ele criou. Da mesma forma, as Santas Potências conhecem a Deus, e também conhecem aquilo que Deus criou. Mas elas não conhecem a Deus nem aquilo que ele criou da mesma maneira como Deus se conhece e conhece suas criaturas.
22. Deus conhece a si mesmo por sua essência bem-aventurada. E ele conhece suas criaturas por sua sabedoria, por meio da qual e na qual tudo ele faz. Mas as Santas Potências conhecem a Deus por 372
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participação, e ele próprio está acima de toda participação. E é pela percepção daquilo que elas contemplam nas criaturas que elas as conhecem.
23. As criaturas são exteriores ao intelecto. Este só percebe interiormente aquilo que ele contempla. Mas o mesmo não acontece com Deus, eterno, infinito, ilimitado, que concede às criaturas estarem bem e serem sempre.
24. A natureza dotada de razão e de inteligência participa do Deus santo por seu próprio ser, por sua aptidão em estar bem – vale dizer, por sua aptidão para a bondade e a sabedoria, e pela graça de sempre ser. É assim que ela conhece a Deus. Mas ela conhece aquilo que Deus criou, com eu disse, pela percepção da sabedoria e de sua arte, que ela contempla nas criaturas e que se encontra em estado puro no intelecto, fora de toda matéria.
25. Ao conceder ao ser a natureza dotada de razão e de inteligência, Deus, em sua extrema bondade, lhe comunicou quatro das qualidades divinas por meio das quais ele abraça, protege e salva suas criaturas: o ser, o ser sempre, a bondade e a sabedoria. Ele concedeu as duas primeiras à natureza em sua essência. E concedeu as duas outras – a bondade e a sabedoria – à aptidão de conhecer, a fim de que a criatura chegue por participação àquilo que ele é por essência; é por isso que se diz que a criatura é feita à imagem e semelhança de Deus. À imagem, por ser a própria imagem d’Aquele que é, e por ser sempre a própria imagem d’Aquele que é sempre. E à semelhança, por ser boa, da mesma bondade d’Aquele que é bom, e sábia, da mesma sabedoria d’Aquele que é sábio. Ela é pela graça aquilo que Deus é por natureza. Assim, toda natureza dotada de razão é à imagem de Deus; mas à sua semelhança, somente os bons e os sábios.
26. A natureza dotada de razão e inteligência se divide em duas: a natureza angélica e a natureza humana. A natureza angélica se divide em duas tendências gerais e em dois grupos – os santos e os malditos – ou seja, em potências santas e em demônios impuros. A natureza humana se divide também em duas tendências, em homens piedosos e ímpios.
27. Deus, que é a própria existência, a própria bondade, a própria sabedoria, e que, a bem dizer, está muito acima de todas estas qualidades, não possui absolutamente nada em si que lhe seja contrário. Mas as criaturas, que não existem senão pela participação e pela graça, mesmo aquelas dotadas de razão e intelecto e são aptas à bondade e à sabedoria, têm em si seus contrários: com a existência, a inexistência; com a aptidão para a bondade e a sabedoria, a malícia e a ignorância. Ora, existir sempre, ou não existir, está nas mãos do Criador. Mas participar ou não de sua bondade e de sua sabedoria, depende da vontade dos seres racionais.
28. Ao afirmar que a essência das coisas existe com Deus por toda a eternidade e que ela não recebe dele senão suas próprias qualidades, os Gregos dizem que não existe nada contrário à essência e que só existem
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contrários nas qualidades. Nós dizemos que apenas a essência divina não tem contrário, pois ela é eterna e infinita, e concede a eternidade aos outros; mas que a essência dos seres possui seu contrário, que é o nada; que Aquele que é plenamente tem o poder de fazer com que esta essência seja para sempre, ou que não seja; e que ele não volta atrás naquilo que ele concedeu. É por isso que a essência das coisas é para sempre, e será, por ser mantida pelo poder que domina o universo, ainda que ela possua seu contrário, como foi dito, pois ela foi trazida do nada ao ser, e é da vontade de Deus que ela possua o ser ou o nada.
29. Assim como o mal é a privação do bem e a ignorância é a privação do conhecimento, também o nada é a privação do ser, não do Ser em si, pois este não possui contrário, mas para o ser por participação. Ora, a privação do bem e do conhecimento depende da resolução das criaturas. Mas a privação do ser depende da vontade do Criador que, em sua bondade, quer sempre que os seres sejam, e que recebam sempre suas benesses.
30. Dentre as criaturas, algumas são dotadas de razão e intelecto e recebem seus contrários, como a virtude e o vício, o conhecimento e a ignorância, enquanto outras são os diversos corpos compostos por contrários, como a terra, o ar, o fogo e a água. Os primeiros são inteiramente incorpóreos e imateriais, mesmo que alguns estejam unidos a um corpo. Os demais não são constituídos senão por matéria e forma.
31. Todos os corpos são, por natureza, imóveis. Eles se movem por meio da alma: uns por uma alma dotada de razão, outros por uma alma privada de razão, outros por uma alma insensível.
32. Dentre as potências da alma, uma está voltada para a alimentação e o crescimento, outra à imaginação e à impulsão, outra à razão e à inteligência. As plantas só participam da primeira potência; os animais irracionais acrescentam a esta a segunda. Enfim, os homens acrescentam a terceira às duas primeiras. Ora, as duas primeiras potências são corruptíveis; mas a terceira se revela incorruptível e imortal.
33. As santas potências transmitem a iluminação umas às outras. Elas a transmitem à natureza humana, seja pela virtude, seja pelo conhecimento que há nelas. Elas transmitem a virtude à imitação de Deus, a virtude com a qual fazem o bem a si mesmas e entre si, e às potências que estão abaixo delas, trabalhando para torná-las semelhantes a Deus. E transmitem o conhecimento, ou sobre Deus, por meio de uma visão mais elevada (pois foi dito: “Tu és o Altíssimo por toda a eternidade, Senhor [110]”); ou sobre os incorporais, por uma visão mais profunda; ou sobre os corpos, por uma visão mais precisa; ou sobre a providência, por uma visão mais penetrante; ou sobre o Juízo, por uma visão mais clara. 1307
34. A impureza do intelecto está, em primeiro lugar, em possuir um falso conhecimento; em segundo lugar, em ignorar um dos universais (falo do intelecto humano, pois o intelecto dos anjos não ignora coisa alguma, ainda que parcialmente); em terceiro, em ter pensamentos passionais; e, em quarto, em consentir no pecado. [110] Salmo 91 (92): 9.
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35. A impureza da alma está em não agir conforme a natureza. Pois é assim que nascem no intelecto os pensamentos passionais. A alma age segundo a natureza quando, solicitadas pelas coisas e por seus pensamentos, as potências que a levam à paixão – o ardor e o desejo – permanecem impassíveis.
36. A impureza do corpo é o pecado em ato.
37. Aquele que não sente nenhuma paixão pelas coisas do mundo ama a hesíquia. Quem não ama nada do que é humano ama a todos os homens. Aquele a quem ninguém escandaliza por suas faltas e seus pensamentos suspeitos, tem o conhecimento de Deus e do divino.
38. É uma grande coisa não sentir paixão pelas coisas; mas é ainda maior permanecer impassível diante dos seus pensamentos.
39. Amor e temperança mantêm o intelecto impassível diante das coisas e de seus pensamentos.
40. O intelecto daquele que é amado por Deus combate, não as coisas, nem seus pensamentos, mas as paixões que estão ligadas aos pensamentos. Assim, ele combate não as mulheres, nem os ofensores, nem suas imagens, mas as paixões ligadas às imagens.
41. Todo o combate do monge contra os demônios consiste em separar as paixões dos pensamentos, pois, sem isto, é impossível de as coisas com impassibilidade.
42. Não confundir a coisa, o pensamento e a paixão. Assim, a coisa pode ser uma mulher, um homem, o ouro, etc. O pensamento é a simples lembrança destas coisas. A paixão é o afeto irracional ou a aversão irrefletida por alguma destas coisas. Assim, é contra as paixões que luta o monge.
43. O pensamento passional é composto de paixão e pensamento. Separemos o pensamento da paixão, e o que resta é um pensamento simples. Se o quisermos, podemos separá-los por meio do amor espiritual e da temperança.
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44. As virtudes separam o intelecto das paixões. As contemplações espirituais o separam dos simples pensamentos. Enfim, a oração pura o conduz para junto de Deus.
45. As virtudes passam pelo conhecimento das criaturas. O conhecimento passa por aquele que conhece. E o que conhece passa por Aquele que é conhecido no “desconhecimento” e que conhece além de todo conhecimento.
46. Na superabundância de sua plenitude, Deu não deu existência às criaturas porque tivesse necessidade de alguma coisa [111], mas para que as criaturas fossem felizes por participar de sua semelhança, e para que ele próprio se regozijasse com suas obras [112], vendo-as, cumuladas de alegria, bebendo do inesgotável. 1308
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47. Existem no mundo muitos pobres de espírito, mas não como deveria, ser. Existem muitos aflitos, mas porque não têm mais dinheiro ou porque perderam seus filhos. Existem muitos mansos, mas para se dedicarem às paixões impuras. Existem muitos famintos e sedentos, mas para tomar o que é dos outros e se beneficiar injustamente. Existem muitos complacentes, mas para satisfazer o corpo e as coisas do corpo. Existem muitos corações puros, mas por vaidade. Existem Pacíficos, mas porque submetem a alma à carne. Existem muitos perseguidos, mas porque se entregam à desordem. Muitos, enfim, são ultrajados, mas por pecados infames. Bem-aventurados são apenas os que tudo isto fazem e aguentam por Cristo. Por quê? Porque o Reino dos céus é deles, porque eles verão a Deus [113], etc. Não é porque eles fazem e aguentam tudo isto que eles são bem-aventurados – pois aqueles de que falamos também o fazem e aguentam – mas porque eles o fazem e aguentam por Cristo. 1310
48. Em tudo o que fazemos, como já foi dito mais de uma vez, Deus procura nosso objetivo: se agimos por ele, ou por alguma outra finalidade. Assim, se quisermos fazer o bem, não tenhamos como objetivo agradar aos homens, mas nos encaminharmos para Deus. Desta maneira, com os olhos sempre voltados para ele, façamos tudo por ele para que, suportando as penas, não percamos a recompensa.
49. No momento da oração, rejeite do intelecto até mesmo os simples pensamentos das coisas humanas e mais tudo o que você viu das criaturas, a fim de não perder Aquele que é incomparavelmente mais elevado do que todos os seres, imaginando coisas mais baixas. 50. Se amarmos verdadeiramente a Deus, por este mesmo amor rejeitaremos as paixões. Ora, amar a Deus significa preferi-lo ao mundo, é preferir a alma à carne, desprezando as coisas mundanas e consagrando-se sempre a Deus pela temperança, pelo amor, pela oração, pela salmodia e por tudo o que se lhes segue.
[111] Cf. Atos 17: 25. [112] Cf. Salmo 103 (104): 31. [113] Cf. Mateus 5: 3-12.
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51. Se, nos consagrando longamente a Deus, vigiarmos a parte passional da alma, não cederemos aos ataques dos pensamentos. Ao contrário, contemplando-os com mais precisão e suprimindo suas causas, nos tornaremos mais clarividentes, até que se cumpram em nós as palavras: “Meu olho viu os inimigos e meu ouvido escutou os que tramavam o mal e se levantavam contra mim [114]”. 1311
52. Quando você perceber que seu intelecto permanece na piedade e na justiça mesmo quando está voltado para as coisas do mundo, saiba que também seu corpo permanecerá sem pecado. Mas quando você ver seu intelecto ocupado em pensar nos pecados, saiba que seu corpo não tardará a cair neles.
53. Assim como o mundo do corpo são as coisas, o mundo do intelecto são os pensamentos. E assim como o corpo se prostitui com o corpo da mulher, o intelecto se prostitui com o pensamento da mulher, imaginando seu corpo. Pois ele vê a imagem de seu próprio corpo unido em pensamento à imagem da mulher, do mesmo modo como ele repele em pensamento a imagem de alguém que o ofendeu. O mesmo acontece com os outros pecados. Pois aquilo que o corpo faz em ato no mundo das coisas, o intelecto faz no mundo dos pensamentos.
54. Não há porque se assustar, espantar ou perturbar, porque Deus Pai não julga ninguém e por ter ele entregue todo julgamento ao Filho. Diz o Filho: “Não julguem, para que não sejam julgados [115]. Não condenem, para não serem condenados [116]”. Também o Apóstolo: “Não julguem antes do tempo, até que venha o Senhor [117]” e “Com o julgamento com que você julga a outros, você condenará a si próprio [118]”. Mas os homens, sem se preocupar em chorar seus próprios pecados, tiraram do Filho o julgamento. E eles mesmos, como se fossem sem pecado, passaram a julgar e condenar uns aos outros. Diante disto, o céu se perturbou e a terra tremeu. Mas eles permaneceram insensíveis e não se envergonham de nada. 1312
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55. Aquele que se ocupa dos pecados dos outros e que julga seu irmão com base numa simples suspeita, ainda nem começou a se arrepender. Ele não tenta conhecer seus próprios pecados, que na verdade são mais pesados do que uma grande massa de chumbo. Ele também não entendeu de onde vem ao homem seu coração duro, que ama a vaidade e busca a mentira [119]. É por isso que, como um louco em meio às trevas [120], sem se preocupar com seus próprios pecados, ele imagina os dos outros, reais ou supostos. 1316
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56. O egoísmo, como já foi dito muitas vezes, está na origem de todos os pensamentos passionais, pois é dele que nascem os três vícios capitais da concupiscência: a gula, a avareza e a vanglória. Da gula nasce a prostituição, da avareza a cupidez, da vanglória o orgulho. Todos os demais vícios – a cólera, a tristeza, o ressentimento, a inveja, a maledicência, etc – seguem-se a um destes três. Desta forma estas paixões ligam [114] Salmo 91 (92): 12. [115] Mateus 7: 11. [116] Lucas 6: 37. [117] I Coríntios 4: 5. [118] Romanos 2: 1. [119] Salmo 4: 3. [120] Cf. Salmo 81 (82): 5.
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o intelecto às coisas materiais, atiram-no por terra, cobrem-no com uma pesada pedra, ainda que ele próprio seja mais leve e vivo do que o fogo.
57. A origem de todas as paixões é o egoísmo. O egoísmo é o afeto irracional pelo corpo. Aquele que o destrói, destrói ao mesmo tempo todas as paixões que dele provêm.
58. Assim como os pais sentem afeto pelos corpos que engendraram, também o intelecto está naturalmente ligado às suas próprias razões. E assim como os pais apaixonados acham que seus filhos são os melhores e mais dotados, também o intelecto tolo acha suas próprias razões as mais sensatas do mundo, ainda que elas sejam as piores de todas. Mas não é assim que o sábio considera suas razões. Quando ele está convencido de que elas são verdadeiras e boas, é aí que ele duvida de seu próprio julgamento. Ele submete suas razões e seus julgamentos aos de outros sábios, por medo de correr ou de ter corrido em vão [121]. É deles que ele receberá a confirmação. 1318
59. Quando você conseguir vencer algumas das paixões mais infamantes, como a gula, a prostituição, a cólera ou a cupidez, logo surgirá em você o pensamento da vanglória. E, se você conseguir vencer esta última, surgirá em seguida o pensamento do orgulho.
60. Todas as paixões infames, quando se apoderam da alma, dela expulsam o pensamento da vanglória. Mas quando elas são vencidas, desencadeia-se na alma este pensamento. 61. Quer seja destruída, quer permaneça, a vanglória engendra o orgulho. Se ela é destruída, suscita a presunção; se permanece, suscita a jactância.
62. A ação oculta destrói a vanglória, e atribuir a Deus tudo o que se faz de bom destrói o orgulho.
63. Quem se tornou digno de receber o conhecimento de Deus e que realmente desfrutou deste prazer, desdenhará todos os prazeres engendrados pela concupiscência.
64. Quem cobiça as coisas terrestres cobiça ou as comidas, ou os prazeres do baixo ventre, ou a glória humana, ou o dinheiro, ou qualquer outra coisa provocada por estas paixões. E se o intelecto não encontra nada de melhor para onde dirigir seu desejo, ele não será capaz de desprezar estas coisas. Mas o conhecimento de Deus e do divino é incomparavelmente melhor.
[121] Cf. Gálatas 2: 2.
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65. Os que desprezam os prazeres o fazem por temor, ou graças à esperança, ou graças ao conhecimento, ou por amor a Deus.
66. O conhecimento desapaixonado das coisas divinas não leva de modo algum o intelecto a desprezar as coisas materiais, mas antes se assemelha a um simples pensamento de uma coisa sensível. É por isso que podemos encontrar tantos homens que, mesmo tendo um grande conhecimento, chafurdam na lama como porcos. Tendo sido inicialmente um pouco purificados por sua aplicação e tendo alcançado o conhecimento, eles se deixaram vencer e se tornaram como Saul, que foi considerado digno da realeza [122], mas governou de modo indigno e foi privado de seu cargo pela cólera terrível de Deus. 1319
67. Assim como o simples pensamento das coisas humanas não obriga o intelecto a desprezar as coisas de Deus, também o simples conhecimento das coisas de Deus não leva absolutamente o intelecto a desdenhar as coisas humanas. Pois em nosso estado atual não vemos a verdade senão pelas sombras e as imagens, e é por isso que temos necessidade da bem-aventurada afeição do santo amor que liga o intelecto àquilo que a contemplação espiritual vê, e que o conduz a preferir o imaterial ao material, e ao sensível o inteligível e o divino.
68. Quem afastou as paixões e simplificou os pensamentos, nem por isso os voltou para o divino. Talvez ele já não seja afetado pelas coisas humanas, mas ele ainda não é afetado pelas coisas divinas. É o que acontece àqueles que são apenas ativos, mas ainda não foram considerados dignos do conhecimento. Eles se abstêm das paixões por medo do castigo, ou pela esperança do Reino.
69. É pela fé que caminhamos, não pela visão. E é através de espelhos e enigmas que possuímos a virtude [123]. Assim, precisamos nos dedicar muito ao divino, a fim de que, meditando sobre ele e permanecendo constantemente com ele, alcancemos um estado de contemplação do qual seja difícil que nos separemos. 1320
70. Se, logo após de termos afastado um pouco as causas das paixões, nós nos dedicamos às contemplações espirituais, porém sem lhes consagrarmos todo nosso tempo e sem as tornarmos nossa própria obra, logo retornaremos às paixões da carne, sem termos colhido outro fruto do que um simples conhecimento mesclado de presunção. Este conhecimento acabará por entenebrecer pouco a pouco, e o intelecto outra vez se voltará inteiramente às coisas materiais.
71. Uma paixão de amor condenável faz com que o intelecto se ocupe de coisas materiais. Uma paixão de amor digna de louvores o liga às coisas divinas. Pois o intelecto costuma se estender sobre as coisas às [122] Cf. I Samuel 15: 10-11. [123] Cf. I Coríntios 13: 12 e II Coríntios 5: 7.
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quais ele se prende. E é para estas coisas sobre as quais ele se debruça que ele volta seu desejo e seu amor: seja para as coisas inteligíveis que lhe são próprias, seja para as coisas e as paixões da carne.
72. Deus criou o mundo visível e o mundo invisível. Vale dizer que ele próprio fez tanto a alma como o corpo. Ora, se o mundo visível é bom, como será o invisível? E se o invisível é mais elevado do que o visível, quão mais alto que os dois será Deus, que os criou? Assim, se o Criador de todos os bens é mais alto do que todas as criaturas, porque razão o intelecto, deixando de lado o que é mais elevado do que tudo, se ocupa com o que há de mais inferior a tudo, ou seja, das paixões da carne? Está claro que, por viver entre as paixões desde o nascimento, por estar acostumado com elas, ele ainda não conhece por uma perfeita experiência aquilo que é maior e mais alto do que tudo. Mas se, por uma longa ascese consistente em temperança nos prazeres e em meditação do divino, o retirarmos pouco a pouco deste estado, ele se debruçará progressivamente sobre as coisas de Deus e conhecerá sua própria dignidade. E, no final, ele dirigirá todo seu desejo para Deus.
73. Aquele que fala dos pecados do seu irmão desapaixonadamente, pode fazê-lo por duas razões: ou para corrigi-lo, ou para ser útil a outra pessoa. Fora destas razões, se ele falar disto ao irmão ou a qualquer outro, ele o insultará ou o ultrajará, e não deixará de ser abandonado por Deus. Ele cairá na mesma falta ou em outra qualquer e, denunciado e insultado pelos outros, será confundido.
74. Pessoas que cometem, o mesmo pecado em ato não têm a mesma razão para tal, mas razões diversas. Assim, uma coisa é pecar por hábito, outra pecar de surpresa. Aquele que é surpreendido por uma falta não pensava nela antes do pecado e nela não pensará após o pecado, mas ficará aflito com o que aconteceu. Quem peca por hábito é o contrário. Antes, ele não cessava de pecar em pensamento, e depois do ato ele permanece no mesmo estado.
75. Quem busca as virtudes por vanglória, é claro que será também pela vanglória que buscará o conhecimento. E é evidente que tal pessoa não fará nem dirá nada para a edificação, mas em tudo perseguirá a glória que espera dos que o virem ou escutarem. Enfim ele é desnudado em sua paixão quando alguns condenam seus atos ou suas palavras. Ele então fica triste, não porque não os tenha edificado – pois não era este seu objetivo – mas porque foi desprezado.
76. Esta é a prova da paixão da avareza: receber com alegria e partilhar com tristeza. Um homem assim não será capaz de prover as necessidades dos outros.
77. Suportamos pacientemente o sofrimento pelas seguintes razões: por amor a Deus, pela esperança da recompensa, pelo temor do castigo, por medo dos homens, por natureza, por prazer, por um benefício, por vanglória ou por necessidade.
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78. Uma coisa é estar desembaraçado dos pensamentos, outra é estar liberto das paixões. Muitas vezes nos desembaraçamos dos pensamentos porque não estão neles as coisas às quais nos levam as paixões. Mas estas permanecem ocultas na alma e se mostram desde que reapareçam as coisas. É preciso, assim guardar o intelecto diante das coisas e saber por quais ele está apaixonado.
79. Um amigo verdadeiro é aquele que, no momento da provação, suporta junto com seu próximo, como se fossem suas – sem perturbação nem aflição – as aflições, constrangimentos e infortúnios trazidos pelas circunstâncias.
80. Não desdenhe a consciência que o aconselha sempre o melhor. Pois ela lhe transmite o julgamento de Deus e dos anjos, ela o livra das sujeiras escondidas no coração, e, no momento do êxodo, ela lhe permite apresentar-se livre diante de Deus.
81. Se você quiser ser instruído e comedido e não estar escravizado da paixão nem da presunção procure sempre nos seres o que está oculto ao seu conhecimento. Ao descobrir o grande número e a enorme diversidade de coisas que lhe escapam, você ficará espantado com sua ignorância e se tornará menos arrogante. Conhecendo a si mesmo, você compreenderá então muitas coisas grandes e maravilhosas. Acreditar que se sabe impede, com efeito, de progredir no conhecimento.
82. Quem quiser ser verdadeiramente salvo não deve se opor aos remédios do médico, tais como as aflições e as tristezas que os acontecimentos tantas vezes carregam. Quem se opõe não sabe o que se estes remédios encerram, nem o que acontecerá àquele que deles tirar proveito.
83. A vanglória e a avareza engendram uma à outra. Os vaidosos enriquecem e os ricos são vaidosos. Mas estes são homens do mundo. Mas o monge, se não possui nada, pode se tornar ainda mais vaidoso; e se tem dinheiro o esconde, com vergonha de possuir algo que não corresponde ao seu estado.
84. Esta é a vanglória do monge: extrair vaidade da virtude e de suas consequências. E este é seu orgulho: glorificar-se de suas ações corretas, desprezar os outros, atribuir estas ações a si mesmo e não a Deus. Quanto ao homem do mundo, estes são seu orgulho e sua vanglória: extrair vaidade e glorificar-se da beleza, da riqueza, do poder e da sabedoria.
85. As virtudes dos homens do mundo são os defeitos dos monges, e as virtudes dos monges são os defeitos dos homens do mundo. Assim é que as virtudes dos homens do mundo são a riqueza, a glória, o poder, as delícias, a felicidade em ter filhos e tudo o mais. Se o monge chegar neste ponto, está perdido. As virtudes do monge são a despossessão, a obscuridade, a impotência, a temperança, a vida dura e tudo o
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que se segue. Se aquele que ama o mundo chega a este ponto contra sua vontade, vê isto como uma grande queda, e corre o risco de se suicidar. Alguns o fizeram.
86. Os alimentos estão fundamentados em duas razões: alimentar e servir de remédio. Portanto, quem os toma fora destas duas razões, por abusarem daquilo que Deus nos deu para nos servirmos e só buscarem desfrutar disto, está condenado. Em todas as coisas, o pecado é o abuso.
87. A humildade consiste numa prece contínua entre penas e lágrimas. Por não cessar de pedir o socorro de Deus, ela impede a pessoa de confiar tolamente em seu próprio poder e seu próprio saber, e também de se considerar acima dos outros. Estas coisas são as duras enfermidades da paixão do orgulho.
88. Uma coisa é combater o simples pensamento, para que ele não suscite a paixão, e outra é combater o pensamento passional, para que não surja o consentimento. Porém, um e outro combate visam evitar que o pensamento se torne inveterado.
89. A tristeza está ligada ao ressentimento. Quando o intelecto vê com tristeza o rosto de um irmão em seu espelho, é claro que aí existe ressentimento contra ele. Os caminhos dos que guardam rancor conduzem à morte [124], pois todo homem que guarda rancor é injusto. 1321
90. Se você se ressente de alguém, reze por ele e você impedirá a paixão de ir adiante. Com a oração, você subtrairá a tristeza da lembrança do mal que ele lhe fez. Alcançando o amor e a bem-aventurança, você apagará completamente a paixão de sua alma. E se outro tiver ressentimento contra você, faça o bem a ele, seja humilde, viva em paz com ele, e você se livrará da paixão.
91. É difícil apaziguar a tristeza de alguém que o inveja, pois ele considera como sua infelicidade aquilo que ele inveja em você. E só será possível apaziguar esta tristeza escondendo aquilo que ele inveja em você. Mas se aquilo que ele inveja é útil para outros, ao mesmo tempo em que o aflige, que partido tomar? É preciso ser útil à maioria, mas sem negligenciar aquele homem, na medida do possível, nem se deixar levar pela malícia de sua paixão, pois não é a paixão, mas o homem que está sob sua influência, que você deve defender. É preciso, assim, humildemente, que você considere este homem como mais do que você, e preferi-lo a você em todo tempo e lugar. Quanto à sua própria inveja, você pode apaziguá-la se você se regozija com a pessoa que você inveja quando ela se regozija, e afligir-se com ela quando ela se aflige. Assim você cumprirá as palavras do Apóstolo: “Alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram [125]”. 1322
[124] Cf. Provérbios 12: 28. [125] Romanos 12: 15.
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92. Nosso intelecto oscila entre duas forças, cada qual com sua ação própria. Uma suscita a virtude, outra o vício. Vale dizer que o intelecto é presa simultânea de um anjo e de um demônio. Mas ele tem o poder de seguir ou de combater a quem ele quiser.
93. As santas potências nos conduzem ao bem. As sementes naturais e a boa vontade nos auxiliam. Mas as paixões e a má vontade suscitam os ataques dos demônios.
94. Quando Deus se manifesta, ele ensina ao intelecto a inteligência pura; também as santas potências o arrastam para o bem, e mesmo a natureza das coisas, quando ele a contempla.
95. É preciso que o intelecto a quem foi dado o conhecimento guarde longe de toda paixão os pensamentos das coisas, longe de todo erro aquilo que ele vê na contemplação, e longe de toda perturbação o estado de oração. Mas ele não consegue manter tudo isto longe dos levantes da carne se estiver enfumaçado pelas intrigas dos demônios.
96. O que nos entristece não é a mesma coisa que nos irrita, pois o que provoca a tristeza é mais forte do que o que provoca a irritação. Assim uma coisa se quebrou, outra se perdeu, alguém morreu: nós ficamos tristes. Mas em outras ocasiões ficamos tristes e irritados, porque nos falta a filosofia.
97. Quando o intelecto recebe os pensamentos das coisas, ele toma naturalmente a forma de cada um destes pensamentos. Quando ele as contempla espiritualmente, ele se transfigura de diversas maneiras conforme aquilo que vê. Mas quando ele está em Deus, ele perde toda forma e toda figura, pois, contemplando o único, ele se torna único e inteiramente luminoso.
98. Perfeita é a alma cujo poder de paixão está inteiramente voltado para Deus.
99. Perfeito é o intelecto quando, para além de todo conhecimento, ele conhece o mais do que desconhecido numa ignorância que ultrapassa toda ignorância; quando ele contempla as razões universais de suas criaturas, e quando recebe de Deus o conhecimento que abarca a providência e o julgamento referentes às criaturas, na medida, é claro, em que isto é possível aos homens.
100. O tempo se divide em três. A fé se estende sobre os três períodos, a esperança sobre um só. A fé e a esperança têm limite. Mas o amor permanece pelos séculos infinitos, mais do que unido ao mais do que
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infinito que sempre cresce para além de todo crescimento. É por isso que a maior de todas as virtudes é o amor [126]. 1323
[126] Cf. I Coríntios 13: 13.
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QUARTA CENTÚRIA DE CAPÍTULOS SOBRE O AMOR 1. Antes de tudo, quando considera a infinitude absoluta de Deus, este oceano inalcançável e tão desejado, o intelecto admira. Depois ele se espanta com o pensamento de ele tenha levado os seres do nada à existência. Mas assim como sua grandeza não tem limites [127], sua sabedoria é insondável [128]. 1324
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2. De fato, como ele não se admiraria, ao contemplar este oceano de bondade, que ultrapassa a admiração? Como não se sentiria transportado, ao considerar como e de onde proveio o ser feito de razão e inteligência? E os quatro elementos de que são feitos os corpos, sem que nenhuma matéria tenha preexistido anteriormente à sua gênese? E o que é este poder que, tendo posto mãos à obra, os fez ser? É isto que os filhos dos Gregos não aceitam, eles que ignoram a bondade todo-poderosa, sua sabedoria e conhecimento ativos, que ultrapassam o intelecto.
3. Deus, que, de toda eternidade, é Criador, criou quando quis, pelo Verbo consubstancial e pelo Espírito, em sua infinita bondade. E não me pergunte por qual razão ele criou naquele momento, uma vez que ele é bom eternamente. Pois eu afirmo que a sabedoria insondável da essência divina escapa ao conhecimento humano.
4. Quando quis, Deus fez nascer e crescer os seres cujo conhecimento preexistia nele por toda eternidade. Pois é absurdo duvidar que o Deus poderoso seja capaz de dar nascimento a um ser quando quiser.
5. Procure a razão pela qual Deus criou. Pois você pode sabê-lo. Mas não procure como e porque ele criou num determinado momento, porque isto escapa à sua inteligência. Dentre as coisas de Deus, algumas são compreensíveis, outras são incompreensíveis aos homens. Uma contemplação sem freios pode levar ao abismo, já dizia um santo.
6. Alguns dizem que as criaturas existem com Deus de toda eternidade, o que é impossível. Pois como os seres que, em tudo, são finitos, poderiam existir de toda eternidade com Aquele que é totalmente infinito? Ou como seriam eles propriamente criaturas, se fossem eternos com o Criador? Ora, é isto que afirmam os Gregos, que dizem que Deus não é o Criador do ser, mas apenas das qualidades. Mas nós que conhecemos o Deus todo-poderoso, dizemos que ele é Criador, não somente das qualidades, mas dos seres que formou. Ora, se é assim, as criaturas não existem com Deus de toda a eternidade.
[127] Salmo 144 (145): 1. [128] Cf. Isaías 40: 28.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Quarta centúria de capítulos sobre o amor.
7. Em um sentido, é possível conhecer Deus e o divino, e noutro sentido, é impossível conhecê-los. É possível conhecer a Deus contemplando o que o cerca, mas é impossível conhecê-lo pelo que ele é em si mesmo.
8. Não procure na essência simples e infinita da Santíssima Trindade estados e qualidades próprias, a fim de não fazer dela um ser composto, como o são as criaturas: conceber a Deus desta maneira é absurdo e sacrílego.
9. Simples, única, sem qualidades, pacífica e calma é a essência infinita, todo-poderosa, criadora do universo. Mas todas as criaturas são compostas de essência e acidente, e têm sempre necessidade da divina Providência, pois não está livre das mudanças.
10. Toda natureza dotada de inteligência e sentidos, uma vez levada à existência, recebe de Deus a capacidade de perceber os seres. Dotada de intelecto, recebe intelecções; dotada de sentidos, recebe sensações.
11. Deus é somente participado. Mas a criatura participa e transmite. Ela participa do ser e só transmite o ser bem; mas a natureza corporal transmite de uma maneira, e a natureza incorpórea de outra.
12. A natureza incorpórea transmite o ser bem quando ela fala, quando age, quando é contemplada. A natureza corpórea o transmite apenas quando é contemplada.
13. Que a natureza dotada de intelecto e razão exista para sempre ou não exista depende da vontade d’Aquele que criou todos os bens. Mas utilizar estes bens no bom sentido, ou desviá-los, depende da vontade das criaturas.
14. Não é no ser das criaturas que descobrimos o mal, mas em seus movimentos falsos e desprovidos de razão.
15. A alma é mesclada segundo a razão quando seu desejo é comandado pela temperança, quando seu ardor está ligado ao amor desviando-se da aversão, quando sua razão conduz a Deus pela oração e a contemplação espiritual.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Quarta centúria de capítulos sobre o amor.
16. Quem, no momento das provações, falta com a paciência às aflições que lhe chegam e se afasta do amor de seus irmãos espirituais, ainda não possui o amor perfeito nem o conhecimento profundo da providência divina.
17. O objetivo da Providência é de unificar pela fé direita e o amor espiritual aqueles que de muitas maneiras o mal despedaçou. Foi por isso que sofreu o Salvador: reunir na unidade [129] os filhos de Deus que estavam dispersos. Portanto, aquele que não aguenta o que o incomoda, que não suporta o que o aflige, que não assume suas penas, não caminha pela via do amor divino e falta com o objetivo da Providência. 1326
18. Se o amor é paciente e benevolente [130], quem perde a coragem quando chegam as aflições, e por causa disso faz mal aos que o afligiram, cortando-os do amor que a eles deve, como não decairá da finalidade da Providência divina? 1327
19. Vele sobre si mesmo. Tome cuidado para que o mal que o separa de seu irmão não esteja nele, mas em você. Apresse-se em se reconciliar com ele [131], a fim de não contrariar o mandamento do amor. 1328
20. Não desdenhe o mandamento do amor. É por meio dele que você será filho de Deus. Mas se você o transgredir você se tornará filho da Geena.
21. As seguintes coisas afastam o amor entre amigos: invejar ou ser invejado, lesar ou ser lesado, ofender ou ser ofendido, suspeitar. Você, em alguma ocasião, não fez algo que o afastasse do amor do seu amigo?
22. Você já foi provado por causa do seu irmão, e a tristeza já o levou à aversão? Não se deixe vencer pela aversão, mas vença a aversão com o amor. Eis como você vencerá: orando sinceramente a Deus por ele, dando-lhe o direito de defesa, ou mesmo assistindo-o para justificá-lo, considerando ser você mesmo o responsável por sua provação, e suportando-a com paciência até que a nuvem tenha passado.
23. Paciente é aquele que aguarda o fim da provação e que recebe a glória da perseverança.
[129] Cf. João 11: 52. [130] Cf. I Coríntios 13: 4. [131] Cf. Mateus 5: 24.
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24. O homem paciente possui uma grande sabedoria [132]. Pois ele reporta à finalidade tudo o que lhe acontece, e suporta as aflições aguardando este final. Ora, segundo o Apóstolo [133], o fim é a vida eterna. E a vida eterna é que o conheçamos, ao único e verdadeiro Deus, e ao que foi por ele enviado, Jesus Cristo [134]. 1329
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25. Não consinta perder o amor espiritual, pois nenhuma outra via de salvação foi deixada aos homens.
26. Não julgue como falso e mentiroso o irmão que ontem você considerava como espiritual e virtuoso, pela aversão que a calúnia do maligno hoje lhe inspira contra ele. Com paciente amor, pensando no bem de ontem, expulse de sua alma a aversão de hoje.
27. Não fale mal hoje de quem ontem você louvava a bondade e glorificava a virtude, considerando-o falso e mentiroso porque o amor em você se transformou em aversão. Não condene seu irmão para justificar a raiva maldosa que existe em você. Continue a louvá-lo, ainda que a tristeza o oprima, e você retornará facilmente ao amor salutar.
28. Misturando inconscientemente a condenação às palavras quando você conversa com outros irmãos, não altere os elogios que habitualmente são feitos ao seu irmão, por causa de algo que ele lhe tenha feito sofrer e que ainda permanece em você. Mas, em suas conversas, louve-o com toda pureza, ore sinceramente por ele com por si mesmo, e logo você estará livre da perigosa aversão.
29. Não diga: “Não tenho raiva de meu irmão”, se você rejeita sua lembrança. Escute o que disse Moisés: “Você não odiará seu irmão em pensamento. Você o repreenderá, e não cairá em estado de pecado por causa dele [135]”. 30. Se porventura um irmão, tentado, persiste em falar mal de você, não se deixe arrastar para fora do estado de amor quando o próprio demônio maligno o perturbar em pensamentos. Você não decairá do amor se, injuriado, você bendizer [136] e se, difamado, você for benevolente. Este é o caminho que permite amar a sabedoria, segundo Cristo. Quem não o segue não permanece nele. 1332
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31. Não considere como benevolentes as palavras que, em você, trazem a tristeza e suscitam a aversão por um irmão, mesmo que elas pareçam ser verdadeiras. Afaste-se delas como de serpentes mortais, a fim de evitar que os outros falem mal e libertar da malícia sua alma.
[132] Cf. Provérbios 14: 29. [133] Cf. Romanos 6: 22. [134] Cf. João 17: 3. [135] Levítico 19: 17. [136] Cf. I Coríntios 4: 12.
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32. Não fira seu irmão com palavras em forma de enigmas a fim de que, recebendo dele a mesma coisa, você não afaste de ambos o estado de amor. Mas, com a liberdade do amor, vá até ele, repreenda-o, a fim de livrar a vocês dois da perturbação e da aflição, depois de suprimir as causas da tristeza.
33. Examine sua consciência com todo rigor, para saber se não é você o responsável pelo fato de que seu irmão não se reconciliou consigo. E não tente enganá-la, a ela que conhece seus segredos, que o acusa no momento do êxodo, e na qual você tropeça durante a prece.
34. Não se lembre, enquanto você está em paz, daquilo que seu irmão lhe disse na hora da aflição, que ele o ultrajou ou que ele falou de você a outro e que você ficou sabendo depois. Não se lembre, para não cair na funesta aversão contra seu irmão, se deixando levar por pensamentos de ressentimento.
35. Uma alma racional que nutre aversão contra um homem não pode estar em paz com Deus, que nos deu os mandamentos. “Pois, disse ele, se você não perdoa as faltas aos homens, também o Pai celeste não perdoará as suas faltas [137]”. Se este homem não quer ficar em paz com você, ao menos não sinta raiva dele, orando sinceramente por ele e não falando mal dele a ninguém. 1334
36. A paz profunda dos santos anjos é comandada por estas duas disposições: amar a Deus e amar uns aos outros. O mesmo acontece aos santos desde a origem dos séculos. É exatamente disto que foi dito: “Nestes dois mandamentos estão pendurados toda a Lei e os Profetas [138]”. 1335
37. Não tenha complacência para consigo mesmo, nem aversão pelo seu irmão. Não ame a si mesmo, e você amará a Deus.
38. Se você decidiu viver entre irmãos espirituais, deixe suas vontades na porta. De outro modo você não poderá ficar em paz, nem com Deus, nem com os que vivem com você.
39. Aquele que conseguiu alcançar o amor perfeito e que regrou toda a sua vida sobre este amor, este diz “Senhor Jesus” no Espírito Santo [139]. [Caso contrário, é também o contrário que acontece.] 1336
[137] Mateus 6: 14-15. [138] Mateus 22: 40. [139] Cf. I Coríntios 12: 3.
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40. O amor a Deus gosta de dar asas ao intelecto para que este voe para Deus. O amor ao próximo predispõe a sempre desejar o bem para ele.
41. Quem é ainda tomado de vanglória ou que está preso a qualquer coisa de material, se aflige pelos bens corporais e os prefere aos homens, ou sente rancor por eles, ou tem raiva deles, ou ainda fica sujeito a pensamentos infames. Estes sentimentos são totalmente estranhos à alma que ama a Deus.
42. Quando você não diz nem faz nada de infame em seu pensamento, quando você não guarda rancor contra quem o lesou ou falou mal de você, e quando no momento da oração você conserva seu intelecto longe de toda matéria e de toda forma, saiba que você atingiu a medida da impassibilidade e do amor perfeito.
43. Não é pequeno o combate para se livrar da vanglória. Libertamo-nos dela por um exercício oculto das virtudes e por uma prece constante. O sinal da libertação e não guardar mais rancor por quem falou ou fala mal.
44. Se você quiser ser justo, dê a cada parte sua aquilo que lhe cabe, quero dizer, à alma e ao corpo. À parte racional da alma, dê leituras, contemplações espirituais e oração. À parte ardente, dê o amor espiritual que se opõe à aversão. À parte concupiscente, dê a castidade e a temperança. Enfim, à carne, dê alimentos e vestes, apenas na medida do necessário [140]. 1337
45. O intelecto age conforme a natureza quando mantém submissas as paixões, contempla as razões dos seres e se dirige a Deus.
46. Assim como a saúde e a doença se veem no corpo das pessoas, como a luz e as trevas se veem nos olhos, também a virtude e o vício se veem na alma, e o conhecimento e a ignorância se veem no intelecto.
47. O cristão encontra seu amor pela sabedoria nestas três causas: nos mandamentos, nos dogmas e na fé. Os mandamentos desligam o intelecto das paixões. Os dogmas o levam ao conhecimento dos seres. A fé o conduz à contemplação da Santíssima Trindade.
[140] Cf. I Timóteo 6: 8.
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48. Dentre os que combatem, uns não fazem mais do que afastar os pensamentos passionais, outros afastam as próprias paixões. Afastamos os pensamentos pela salmodia, a prece, a elevação ou qualquer outra atividade apropriada. Afastamos as paixões desprezando as coisas para as quais elas querem nos arrastar.
49. Existem coisas pelas quais nos apaixonamos. Apaixonamo-nos por mulheres, pelo dinheiro, pelos presentes, e outras coisas mais. Podemos esquecer as mulheres quando, depois da anacorese, cansamos o corpo adequadamente por meio da temperança. Esquecemos do dinheiro quando persuadimos o pensamento a se manter dentro daquilo que é apenas necessário. Esquecemos a glória quando amamos a obra oculta das virtudes, que só a Deus aparecem. O mesmo acontece com as outras coisas. Quem as esquece jamais sente aversão por ninguém.
50. Quem renunciou às coisas, às mulheres, ao dinheiro e a todo o resto, fez monge de seu homem exterior, mas ainda não tornou monge seu homem interior. Mas quem renunciou até aos pensamentos passionais sobre estas coisas fez monge seu homem interior, que é o intelecto. É fácil fazer monge ao homem exterior, desde que se queira. Mas não é pequeno o combate para se fazer monge ao homem interior.
51. Quem, nesta geração, libertou-se totalmente dos pensamentos passionais e foi considerado digno da prece sempre pura e imaterial, que é o signo do monge interior?
52. Numerosas paixões estão escondidas em nossas almas. Elas se revelam quando aparecem as coisas pelas quais nós tendemos.
53. Na ausência das coisas, podemos ser perturbados pelas paixões e atingir uma impassibilidade parcial. Mas se as coisas aparecem, logo as paixões arrastam o intelecto.
54. Não considere que você adquiriu a impassibilidade perfeita enquanto estiver ausente a coisa que apela sua paixão. Mas se ela aparecer, e nem ela, nem sua lembrança subsequente o distraírem, saiba que você atingiu as fronteiras da impassibilidade. Entretanto, evite toda e qualquer presunção. Pois se a impassibilidade durar, a virtude destruirá as paixões; mas se for negligenciada, ela as despertará.
55. Aquele que ama a Cristo imita-o de todas as maneiras, na medida em que lhe for possível. Assim, Cristo jamais deixou de fazer o bem a todos os homens. Diante da ingratidão e da blasfêmia, ele era paciente. Ferido, condenado à morte, ele a tudo suportou sem pensar mal de ninguém. Estas três atitudes são a obra de amor ao próximo; sem elas, quem diz que ama a Cristo, ou que encontrou seu Reino, se
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engana. Pois Cristo afirma: “Não é aquele que me diz: 'Senhor! Senhor!' que entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai [141]”. E também: “Quem me ama, que siga meus mandamentos [142]”, e assim por diante. 1338
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56. Os mandamentos do Salvador não tem outro objetivo do que o de libertar o intelecto da desordem e do ódio, conduzi-lo ao amor de Deus e ao próximo, de onde nasce o esplendor do santo conhecimento de suas obras.
57. Se você recebeu de Deus um conhecimento parcial, não negligencie o amor e a temperança. Pois, purificando a parte passional da alma, o amor e a temperança a preparam para o caminho do conhecimento.
58. O caminho do conhecimento é a impassibilidade e a humildade; sem elas, ninguém verá o Senhor.
59. O conhecimento infla e o amor edifica [143]. Una o amor ao conhecimento e você não terá orgulho, tornando-se um construtor espiritual, edificando a si mesmo e edificando os que se aproximarem de você. 1340
60. Uma vez que o amor não inveja, não se irite contra os invejosos, não exiba aquilo que invejam em você, não imagine já ter alcançado a meta [144] e confesse sem rubor ignorar o que não sabe. Assim o intelecto é separado do orgulho e preparado para progredir no conhecimento. 1341
61. A presunção e a inveja, sobretudo no começo, seguem de certo modo naturalmente o conhecimento. A presunção o segue internamente. A inveja tanto interna quanto externamente; internamente, voltada para os que possuem o conhecimento; externamente, a partir dos que ignoram. Mas o amor reverte estas três coisas: reverte a presunção, por não inflá-la; reverte a inveja interior, porque ele não é invejoso; e reverte a inveja exterior, porque ele é paciente e bom [145]. Assim, é preciso àquele que tem o conhecimento agarrarse igualmente ao amor, para proteger o intelecto de todo ferimento. 1342
62. Quem recebeu o carisma do conhecimento mas sente azedume, ressentimento ou aversão contra alguém, se parece com alguém que feriu os olhos nos espinhos e cardos. Por isso, o conhecimento necessariamente precisa do amor. [141] Mateus 7: 21. [142] João 14: 15-23. [143] Cf. I Coríntios 8: 1. [144] Cf. Filipenses 3: 13. [145] Cf. I Coríntios 13: 4.
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63. Não passe todo o tempo ocupando-se da carne, mas ordene a ela uma ascese que corresponda às suas forças, e volte todo o seu intelecto para o interior. Pois, “o exercício do corpo é útil o seu tanto, mas a piedade é útil em tudo [146]”, e assim por diante. 1343
64. Quem se consagra sem descanso às coisas interiores é casto, paciente, bom e humilde. E não apenas isto: ele também contempla, é teólogo, e reza. É o que diz o Apóstolo: “Caminhem pelo Espírito [147]”, etc. 1344
65. Quem não sabe marchar sobre o caminho espiritual não toma conta dos pensamentos passionais, mas passa todo o tempo ocupando-se da carne. Ele se atira à gula, ao deboche, à tristeza, à cólera, ao ressentimento. Assim ele entenebrece a inteligência. Ou então, ele abusa da ascese e perturba a reflexão.
66. A Escritura não proíbe nada daquilo que Deus nos deu para nosso uso. Mas ela reprime o abuso e corrige a irracionalidade. Assim, ela não proíbe comer, nem fazer filhos, nem possuir bens e geri-los como se deve. Mas ela proíbe ser guloso, prostituir-se, etc.. Ela também não proíbe de pensar nestas coisas, pois elas foram feitas para isso; mas ela proíbe pensar nelas com paixão.
67. Dentre as ações que fazemos conforme a Deus, algumas fazemos para cumprir os mandamentos. Outras fazemos, não para obedecer a um mandamento, mas, por assim dizer, como uma oferenda voluntária. As primeiras, que respondem por algum mandamento, são por exemplo: amar a Deus e a o próximo, não cometer adultério, não matar, etc. Se os transgredirmos, seremos condenados. As segundas, que não respondem por nenhum mandamento, são por exemplo: a virgindade, o celibato, a pobreza, a anacorese, etc. [Estas ações são como dons.] Se, por fraqueza, não conseguimos cumprir corretamente algum dos mandamentos de Cristo, graças a estes dons atrairemos sobre nós a compaixão de nosso bom Mestre.
68. Aquele que honra o celibato ou a virgindade deve necessariamente manter cingidos os rins e acesa a lâmpada [148]. Os rins, cingidos pela temperança; e a lâmpada, acesa pela oração, a contemplação e o amor espiritual. 1345
69. Alguns irmãos pensam que em nada participam dos carismas do Espírito Santo. Por causa de sua negligência em praticar os mandamentos, eles não sabem que quem mantém inalterada a fé em Cristo reúne em si todos os carismas divinos. Uma vez que, pela inércia, estamos afastados do amor ativo que devíamos dedicar-lhe, este amor que nos descortina os tesouros de Deus escondidos em nós, é claro que vamos achar que não temos parte nos carismas divinos.
[146] I Timóteo 4: 8. [147] Gálatas 5: 16. [148] Cf. Lucas 12: 32.
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70. Se Cristo permanecer em nossos corações pela fé [149], segundo o Apóstolo divino, e se os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão escondidos nele [150], então todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos em nossos corações. Mas eles só se revelam ao amor na medida da purificação de cada qual, purificação esta suscitada pelos mandamentos. 1346
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71. Este é o tesouro escondido no campo [151] do seu coração, e que você ainda não encontrou devido à sua preguiça. Pois, se você o tivesse encontrado, você teria vendido tudo o que possui para comprar este campo. Mas atualmente você abandonou o campo e procura ao redor dele, onde você não encontra mais do que espinhas e cardos. 1348
72. É por isso que o Salvador disse: “Benditos os corações puros, pois eles verão a Deus [152]”. Eles o verão, e verão os tesouros que estão nele quando, pelo amor e a temperança, forem purificados. E tanto mais o verão quanto mais purificados estiverem previamente. 1349
73. É por isso que foi dito: “Vendam tudo o que têm, deem-no em esmola e então para vocês tudo será puro. [153]” Quem o fizer cessará de se ocupar das coisas do corpo, dedicar-se-á a purificá-lo da aversão e da desordem do intelecto, que o Senhor chama de coração. Pois são essas coisas que, manchando o intelecto, não permitem ver a Cristo residindo nele pela graça do santo batismo. 1350
74. A Escritura chama as virtudes de “caminhos”. Ora, o amor é a maior de todas as virtudes. É por isso que o Apóstolo dizia: “Eu lhes mostro agora o caminho por excelência [154]”, um caminho que os separa das coisas materiais e os protege de preferir o temporal ao eterno. 1351
75. O amor a Deus se opõe à concupiscência, pois ele leva a alma a se abster dos prazeres. E o amor ao próximo se opõe ao ardor, pois ele a faz desprezar a glória e o dinheiro. Estes são os dois dinares que o Salvador deu ao hoteleiro [155] para que ele cuide de você. Mas não seja ingrato, associando-se aos ladrões, pois do contrário você será de novo agredido e será deixado, já não meio-morto, mas verdadeiramente morto por inteiro. 1352
76. Purifique seu intelecto da cólera, do ressentimento e dos pensamentos infames, e então você poderá encontrar em si mesmo a presença de Cristo.
[149] Cf. Efésios 3: 17. [150] Cf. Colossenses 2: 3. [151] Cf. Mateus 13: 44. [152] Mateus 5: 8. [153] Lucas 11: 41 e 12: 33. [154] I Coríntios 12: 31. [155] Cf. Lucas 10: 35.
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77. Quem o iluminou com esta luz que o faz crer na Santíssima Trindade consubstancial e adorada? Ou quem lhe permitiu conhecer a economia da encarnação do Uno e da Santa Trindade? Quem lhe ensinou as razões dos incorporais, ou da gênese e do fim do mundo visível, ou da ressurreição dos mortos e da vida eterna, ou da glória do Reino dos céus e do terrível Juízo? Não foi a graça de Cristo que permanece em você, esta graça que é a garantia do Espírito Santo? O que existe de maior do que esta graça? O que existe de melhor do que esta sabedoria e este conhecimento? O que existe de mais alto do que estas promessas? Mas, se somos inertes e negligentes, se não nos purificamos das paixões que nos mancham e cegam nosso intelecto, para nos tornarmos capazes de ver, mais claro do que o sol, as razões destas coisas, ao menos não as atribuamos a nós mesmos, não neguemos a presença da graça em nós.
78. Deus, que lhe prometeu os bens eternos [156] e que deu a seu coração a garantia do Espírito [157], ordenou a você velar sobre sua vida, a fim de que o homem interior, liberto das paixões, comece desde já a usufruir dos bens que virão. 1353
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79. Se você foi considerado digno das mais altas contemplações divinas, aplique-se de todo coração ao amor e à temperança, a fim de que, guardando sem perturbação aquilo que em você está submetido às paixões, você não seja privado da luz de sua alma.
80. Refreie o ardor de sua alma por meio do amor. Submeta seu desejo por meio da temperança. Dê asas à sua razão por meio da prece. Assim, a luz de seu intelecto não se extinguirá jamais.
81. Estes são os comportamentos que destroem o amor: o desprezo, a injustiça, a calúnia relativa à fé e à conduta, os golpes, os ferimentos, etc., quer estes comportamentos visem a pessoa em causa, quer um de seu próximos ou amigos. Aquele que destrói o amor com estes comportamentos, não conhece o objetivo dos mandamentos de Cristo.
82. Aplique-se o quanto puder em amar a todos os homens. Se você ainda consegue, ao menos não odeie a ninguém. Mas você também não conseguirá fazer isto se não desprezar as coisas do mundo.
83. Alguém blasfemou? Não o despreze, mas deteste a blasfêmia e o demônio que o levou a blasfemar. Mas se você detesta aquele que blasfemou, você odeia a um homem e assim você transgrediu um mandamento. Aquilo que este homem fez por palavras, você o faz em ação. Mas se você conservar o mandamento, você dará prova de amor. Ajude este homem o mais que puder, a fim de livrá-lo do mal. [156] Cf. Tito 1: 2. [157] Cf. II Coríntios 1: 22.
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84. Cristo não quer que você sinta contra um homem a menor aversão, o menor azedume, a menor cólera ou o menor ressentimento por qualquer coisa temporal, qualquer que seja. É isto o que proclamam os Evangelhos todo o tempo.
85. Muitos falam, poucos fazem. Mas ninguém deve alterar a palavra de Deus por sua própria negligência. Devemos confessar nossa fraqueza e não escondermos a verdade de Deus, a fim de não sermos acusados, ou de transgressão dos mandamentos, ou de má interpretação da palavra de Deus.
86. O amor e a temperança libertam a alma das paixões. A leitura e a contemplação separam o intelecto da ignorância, e o estado de prece o conduz diante do próprio Deus.
87. Quando os demônios nos veem desprezar as coisas do mundo para não odiarmos os homens por causa delas e assim decairmos do amor, então eles suscitam calúnias contra nós a fim de que, não suportando a tristeza, odiemos os caluniadores.
88. Não há pena maior para a alma do que a calúnia, quer sejamos caluniados na fé, quer na conduta. Ninguém consegue se livrar dela, senão aquele que, como Suzana [158], olha para Deus, o único que nos pode livrar, como a ela, das infelicidades, mostrar aos homens toda a verdade, como fez por ela, e consolar a alma por meio de esperança. 1355
89. Quanto mais você rezar com toda a sua alma por aquele que o caluniou, mais Deus mostrará a verdade aos que haviam se escandalizado.
90. Somente Deus é bom por natureza [159]. E somente aquele que imita a Deus é bom por resolução. Pois seu objetivo é unir aos maus Àquele que é bom por natureza, para que eles se tornem bons. É por isso que, ultrajado por eles, ele os abençoou; perseguido, ele suportou; difamado, ele intercedeu [160]; levado à morte, ele ainda orou por eles. Ele fez tudo para não decair do objetivo do amor, que é nosso próprio Deus [161]. 1356
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91. Os mandamentos do Senhor nos ensinam a usar racionalmente as coisas que estão em nosso meio. O uso racional dessas coisas purifica o estado da alma. E o estado de pureza gera a impassibilidade, da qual nasce o amor perfeito. [158] Cf. Daniel 13. [159] Cf. Mateus 19: 17. [160] Cf. I Coríntios 4: 12-13. [161] Cf. I João 4: 8.
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92. Aquele que, submetido a uma tentação, não é capaz de fechar os olhos para falta real ou aparente de seu amigo, ainda não possui a impassibilidade. Pois as paixões enterradas na alma, profundamente perturbadas, cegam a reflexão e não permitem ver a luz da verdade, e discernir o melhor do pior, Este homem ainda não adquiriu o amor perfeito, o amor que extingue o temor do Juízo [162]. 1359
93. Nada vale mais do que um amigo fiel [163]. Pois ele considera que as agruras de seu amigo são suas, e suporta com ele sofrendo-as até a morte. 1360
94. Muitos são os amigos no tempo da prosperidade [164]; mas quando chegam as provações, dificilmente encontramos um sequer. 1361
95. É preciso amar a todos os homens com toda a alma, colocar apenas em Deus a esperança e honrá-lo com toda a força. Pois enquanto ele nos protege, os amigos nos cercam e os inimigos nada podem contra nós. Mas se ele nos abandona, os amigos se afastam de nós e os inimigos se atiram sobre nós.
96. Existem quatro formas principais de abandono. O que deriva da economia divina – foi o que aconteceu ao Senhor – a fim de que, pelo abandono aparente, os que foram abandonados sejam salvos. Aquele que conduz a uma prova – que aconteceu a Jó e a José – a fim de revelar em um uma coluna de coragem e no outro uma coluna de castidade. O que se refere à educação paterna – que aconteceu ao Apóstolo – a fim de que, humilhando-se, ele guardasse a superabundância da graça. Enfim, aquele pelo qual Deus se retira – o que aconteceu com os judeus – a fim de que, castigados, eles se inclinassem para o arrependimento. Todas estas formas de abandono são salutares e cheias de bondade de Deus e de seu amor pelo homem.
97. Os que observam rigorosamente os mandamentos e são realmente iniciados nos julgamentos divinos, não abandonam seus amigos quando Deus permite que eles sejam testados. Mas os que desprezam os mandamentos e não são iniciados nos julgamentos divinos, regozijam-se com seus amigos quando eles prosperam, mas o abandonam quando ele é testado e sofre, e muitas vezes se acertam com seus adversários.
98. Os amigos de Cristo amam verdadeiramente a todos os seres, mas não são amados por todos. Os amigos do mundo também não são amados por todos. Os amigos de Cristo perseveram até o fim em seu amor. Mas os amigos do mundo perseveram até que o mundo os leve a se voltarem uns contra os outros.
[162] Cf. I João 4: 18. [163] Eclesiastes 6: 15. [164] Cf. Provérbios 18: 4.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Quarta centúria de capítulos sobre o amor.
99. Um amigo fiel é uma sólida proteção [165]. Para o amigo que prospera ele é um bom conselheiro e uma ajuda fraternal. Para o amigo que sofre, ele é no mais alto grau uma verdadeira providência e um defensor compassivo. 1362
100. Muitos falaram abundantemente do amor. Mas se você procurar o próprio amor, você só o encontrará nos discípulos de Cristo. Pois somente eles têm como mestre do amor o Amor verdadeiro, este amor do qual se disse: “Ainda que eu tenha o dom da profecia, ainda que eu conheça todos os mistérios e toda a ciência, se eu não possuir o amor, de nada me valerão essas coisas [166]”. Assim, aquele que possui o amor possui a Deus mesmo, pois “Deus é amor [167]”. 1363
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A ele a glória e o poder por todos os séculos. Amém.
[165] Cf. Eclesiastes 6: 14. [166] Cf. I Coríntios 13: 2. [167] I João 4: 8.
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CENTÚRIAS SOBRE A TEOLOGIA E A ECONOMIA DA ENCARNAÇÃO DO VERBO DE DEUS
PRIMEIRA CENTÚRIA
1. Existe um único Deus, sem começo, incompreensível, que guarda em si absolutamente todo o poder de ser, e que exclui totalmente tudo o que se possa pensar em relação ao quando e ao começo de seu ser. Pois ele é inacessível a todos, e ele não se deu a conhecer a nenhum ser em uma aparência natural.
2. Deus não é em si mesmo aquilo que podemos saber dele. Ele não possui nem começo, nem meio, nem fim, nem absolutamente do que podemos contemplar naturalmente nestas condições. Pois ele não possui limites, ele é imóvel e infinito uma vez que está infinitamente além de toda essência [1], de toda potência [2] e de toda energia [3]. 1365
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3. Toda essência que traz em si mesma seu próprio limite está naturalmente na origem dom movimento segundo sua potência. Ora, todo movimento natural que conduz à energia, concebido com a essência, mas concebido antes da energia, é um meio, pois está naturalmente dividido entre as duas (Essência e energia) para ser o meio. E toda energia naturalmente cumprida por sua própria razão é o fim do movimento da essência, movimento este que foi concebido antes dela.
4. Deus não é essência, no sentido daquilo a que chamamos essência, absoluta ou relativamente, ainda que ele seja também o começo. Ele também não é potência, no sentido daquilo a que chamamos potência. Ele tampouco é energia, no sentido daquilo a que chamamos energia, absoluta ou relativamente, mesmo que ele também seja o fim do movimento da essência, movimento este conforme sua potência, antes da energia. Mas ele é o criador da essência e uma entidade mais elevada do que a essência. Ele é o criador da potência e uma fundação mais elevada do que a potência. E ele é a atividade sem fim de toda energia, atividade que, em uma palavra, é criadora de toda essência, de toda potência, de toda energia, assim como de todo começo, todo meio e todo fim.
5. O começo, o meio e o fim são os sinais distintivos daquilo que está repartido no tempo. Podemos dizer – verdadeiramente – que eles são os signos distintivos daquilo que o olhar abarca no século. Pois o tempo, [1]
Ousia: designa o ser de Deus, incriado e inacessível. Dynamis: designa tanto o movimento que leva do incriado ao criado como uma faculdade da alma, capaz do movimento recíproco do criado para o incriado. [3] Energeia: a mesma palavra designa a potência do criado no homem e a potência do Incriado: o Espírito Santo. 1365
[2]
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que é a medida de todo movimento, é determinado pelo número. E o século [4], cujo atributo temporal é concebido com a existência, conhece a ruptura, pois ele recebeu do ser o seu começo. Ora, se o tempo e o século não são estranhos ao começo, quanto mais aquilo que está contido neles. 1368
6. Deus é, propriamente falando, sempre um e único conforme a natureza. Ele contém em si tudo o que existe no sentido próprio, pois ele próprio é mais alto do que o sentido próprio. Sendo assim, nada daquilo do qual se diz ser possui absolutamente e em parte alguma um ser em sentido próprio. Portanto, é impossível considerar que aquilo que é diferente dele segundo a essência esteja com ele por toda eternidade: nem o século, nem o tempo, nem nada que esteja neles. Pois aquilo que é no sentido próprio e aquilo que não é no sentido próprio jamais se confundem.
7. Nenhum começo, nenhum meio e nenhum fim exclui totalmente o atributo da relação. Ora, Deus, que em tudo está num infinito infinitamente além de toda relação, certamente não é nem começo, nem meio, nem fim, nem absolutamente nada que possa ser considerado como atributo de relação.
8. Todos os seres são ditos inteligíveis. Eles possuem em si princípios que revelam os conhecimentos que temos deles. Ora, Deus não é chamado inteligível, mas pelos inteligíveis nós simplesmente cremos que ele é. É por isso que nenhum dos inteligíveis pode se comparar a ele por qualquer modo que seja.
9. Os conhecimentos dos seres têm suas próprias razões, ligadas conjuntamente a uma prova, por meio das quais eles se deixam definir naturalmente. Mas pelas razões que estão nos seres podemos apenas crer que Deus é, ele que deu aos que o veneram, mais fundamentais do que qualquer prova, a confissão e a fé de que ele é soberanamente. Pois a fé é o verdadeiro conhecimento; ela traz consigo as origens indemonstráveis. Com efeito, ela é o fundamento das coisas que ultrapassam o intelecto e a razão [5]. 1369
10. Deus, que faz por meio de sua energia sem dela participar, é começo, meio e fim dos seres. Ele é também todos os demais nomes pelos quais o chamamos. Ele é começo, por que é Criador; ele é meio, pois ele é Aquele que provê; e ele é fim, porque ele encerra. De fato, se diz que tudo é dele, por ele e para ele [6]. 1370
11. Não existe alma dotada de razão que, em sua essência, seja mais digna de honra do que outra alma dotada de razão. Pois Deus, tendo em sua bondade criado todas as almas à sua imagem, deu a elas o movimento que as conduz ao ser. Cada alma, conforme sua resolução, ou bem escolhe a honra, ou bem, por suas obras, se dirige voluntariamente para a desonra.
[4] Aion: indica uma fase do tempo compreendida entre um começo e um fim, e oferecida à eternidade.
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[5] Cf. Hebreus 11: 1. [6] Cf. Romanos 11: 36.
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12. Deus é o sol de justiça, como está escrito [7]. Ele faz brilhar os raios da bondade, simplesmente, para todos. Mas a alma, conforme sua resolução, é naturalmente, ou bem cera – se ama a Deus – ou bem argila, se ama a matéria. Portanto, da mesma forma como a argila, por sua natureza, resseca ao sol, e a cera ao sol naturalmente amolece, também toda alma que ama a matéria e o mundo, ao ser condenada por Deus e fazer por sua resolução uma imagem de argila, endurece e se precipita como o Faraó para a perdição [8]. Mas toda alma que ama a Deus amolece como a cera e, recebendo as imagens e as marcas das coisas divinas, torna-se no Espírito uma morada de Deus [9]. 1371
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13. Aquele que, por pensamentos divinos, iluminou o intelecto, que, pelos hinos divinos, acostumou sua razão a venerar sem descanso o Criador, e que, por meio de imagens puras e sem mescla santificou os sentidos, este acrescentou à beleza natural da imagem o bem espiritual da semelhança.
14. Guardamos a alma de toda mancha por amor a Deus se nos esforçamos por pensar somente em Deus e em suas virtudes, se fazemos da razão o justo intérprete que as explica, e se ensinamos os sentidos a perceber com toda piedade o mundo visível e todas as coisas nele, para que elas transmitam à alma a grandeza das razões no coração das coisas.
15. Deus, que nos livrou da amarga escravidão à qual nos tinham submetido os demônios que nos tiranizavam, nos deu o jugo benfazejo da veneração divina: a humildade. Por meio dela todas as potências diabólicas são domadas, e tudo é bom e se conserva puro naqueles que a escolheram.
16. Quem crê conhece o temor. Quem crê é humilde. Quem é humilde é manso, pois recebeu o estado que detém os movimentos contra a natureza suscitados pelo ardor e pelo desejo. Quem é manso observa os mandamentos. Quem observa os mandamentos é purificado. Quem é purificado é iluminado. E quem é iluminado é considerado digno de habitar com o Esposo, o Verbo, no tesouro dos mistérios.
17. Assim como um cultivador que busca um terreno conveniente para transplantar árvores rústicas e se depara com um tesouro inesperado, também todo asceta humilde, simples, imberbe em sua alma isenta de qualquer pilosidade material, interrogado pelo Pai, como aconteceu com o bem-aventurado Jacó a respeito do modo como caçara – “Como você encontrou tão depressa, meu filho?” – responde: “O Senhor Deus fez vir a caça ao meu encontro [10]”. Com efeito, quando Deus nos concede as sábias contemplações de sua própria sabedoria, sem que tenhamos que penar e quando menos o esperamos, consideremos termos encontrado subitamente um tesouro espiritual. Pois o asceta experiente é um cultivador espiritual que transplanta a percepção do sensível, como uma árvore rústica, para o campo do inteligível, e encontra aí um tesouro [11]: por intermédio da graça, a revelação da sabedoria que há nos seres. 1374
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[7] Cf. Malaquias 3: 20. [8] Cf. Êxodo 7: 13, etc. [9] Cf. Efésios 2: 22. [10] Gênesis 27: 30. [11] Cf. Mateus 13: 44.
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18. O conhecimento das contemplações divinas que cai subitamente sobre um asceta sem que este esperasse, por humilde, destrói o pensamento daquele que, penosamente e com esforço, as procura para ostentá-las e não as encontra. Então surge no insensato o ciúme contra seu irmão, ideias de morte e amargura, porque ele não pode inchar de orgulho com os louvores.
19. Aqueles que buscam penosamente pelo conhecimento e não o encontram, fracassam, seja por incredulidade, seja porque, por sua incapacidade, invejam os que conhecem e se revoltam contra eles como outrora o povo contra Moisés. Destes, a Lei dirá justamente que alguns transgrediram e subiram a montanha, e que o Amorreu que nela habitava saiu e os matou [12]. É preciso, com efeito, que aqueles que, por ostentação, contradizem a virtude, não apenas sejam desviados, porque falseiam a piedade, mas que sejam também mortos pela consciência. 1376
20. Quem busca o conhecimento para ostentação e não o encontra, que não inveje seu próximo nem se aflija. Ao contrário, prepare-se, aderindo a alguma ascese que lhe esteja ao alcance, como foi ordenado. Apronte-se pela ação, colocando todos os seus cuidados primeiramente em seu corpo, para preparar a alma para o conhecimento.
21. Aqueles que se dirigem diretamente ao seres com piedade e sem conceber nenhum modo de ostentação, encontrarão, indo ao seu encontro, as contemplações luminosas dos seres, estas contemplações que lhes permitirão conhecer a si mesmos mais rigorosamente. É deles que diz a Lei: “Entrem e herdem as cidades grandes e ricas que vocês não construíram, casas cheias de riquezas que vocês não encheram, poços abertos que vocês não cavaram, vinhas e olivais que vocês não plantaram [13]”. Pois quem não vive para si mas para Deus [14], locupleta-se com todos os carismas, estes carismas que não se dão a conhecer enquanto as paixões impõem sua perturbação. 1377
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22. A sensação pode se expressar de duas maneiras. Existe uma sensação passiva, ligada ao hábito: quando dormimos, ela não percebe nada do que está diante de nós e não serve para nada porque ela não está tensionada para a ação. E existe uma sensação ativa, ligada à energia, pela qual percebemos as coisas sensíveis. Da mesma maneira, o conhecimento é duplo. Um é conhecedor: ele nomeia por costume as razões dos seres, mas não serve para nada por não estar tensionado para a energia dos mandamentos. O outro é prático, ligado à energia: ela considera como verdadeira esta compreensão dos seres pela experiência.
23. Enquanto passa despercebido, o hipócrita se mantém calmo. Ele busca a glória fingindo-se justo. Mas quando é pego na mentira, profere palavras venenosas. Ele tenta assim encobrir sua própria feiura com injúrias dirigidas aos outros. A palavra de Deus o comparou à prole da víbora, por sua perfídia, e o
[12] Cf. Deuteronômio 1: 43-44. [13] Deuteronômio 6: 10-11. [14] Cf. II Coríntios 5: 15.
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condenou a produzir frutos dignos de arrependimento [15], ou seja, a transformar em modos aparentes a disposição oculta em seu coração. 1379
24. Alguns dizem que é selvagem todo animal que vive nos ares, sobre a terra ou no mar e que é considerado impuro pela Lei [16], mesmo que por seu comportamento ele pareça domesticado. A palavra de Deus dá assim a todo homem um nome de animal, que corresponde à própria paixão de cada um. 1380
25. Quem simula amizade para prejudicar seus vizinhos é como um lobo que esconde suas más intenções sob uma pele de cordeiro. Quando ele descobre neles uma conduta ou palavra pura, maquinada ou dita com simplicidade segundo Cristo, ele se apodera dela e a destrói. Espalhando difamações aos milhares, ele ataca as palavras e as condutas dos irmãos, como um espião da liberdade que eles têm em Cristo [17]. 1381
26. Quem, por malícia, finge silêncio, estende uma armadilha ao seu próximo [18]. Se fracassa, retira-se, acrescentando o sofrimento à sua própria paixão. Mas o que se cala para prestar um serviço faz crescer a amizade, e se vai alegremente porque recebeu a iluminação que liberta das trevas. 1382
27. Quem, numa assembleia, interrompe bruscamente uma leitura, mostra que não superou a vanglória; é um doente. Tomado pela vaidade, coloca inúmeras proposições, como se fossem caminhos e atalhos, porque o que ele quer é quebrar o encadeamento do que está sendo dito.
28. O sábio ensina e é ensinado, ele quer aprender e ensinar apenas as coisas que são úteis. Quem só é sábio em aparência, quando interroga ou é interrogado, só coloca questões supérfluas.
29. Um homem que partilha da graça dos bens de Deus está obrigado a transmiti-los em abundância a outros. Pois foi dito: “Vocês receberam gratuitamente, deem gratuitamente [19]”. Quem esconde um dom acusa o Senhor de ser avaro [20]. Economiza a carne para recusar a virtude. E quem vende a verdade aos inimigos será logo condenado por ter amado a vanglória, e se perderá, não suportando a vergonha [21]. 1383
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30. Aqueles que temem o combate contra as paixões e têm medo das agressões dos inimigos, devem se calar, ou seja, não tentar refutar os inimigos para sustentar a virtude, mas, pela oração, remeter a Deus o [15] Cf. Mateus 3: 7-8. [16] Cf. Levítico 11: 1-43. [17] Cf. Gálatas 2: 4. [18] Cf. Provérbios 26: 24. [19] Mateus 10: 8. [20] Cf. Mateus 25: 24. [21] Cf. Mateus 27: 3-5.
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cuidado de velar por eles. É destes que foi dito no Êxodo: “O Senhor combaterá por vocês; detenhamse [22]”. E aqueles que, depois da desaparição de seus perseguidores, passam a buscar os modos de virtude a fim de aprender com gratidão, só têm uma coisa a fazer: manter aberto o ouvido do intelecto. É deles que foi dito: “Escute, Israel [23]”. Enfim, ao que procura ardentemente o conhecimento para se purificar, a este convém a segurança que é dada pela piedade. A ele será dito: “Porque você me chama? [24]” Assim, a quem o silêncio foi imposto pelo temor, convém fugir para Deus. Aquele a quem foi prescrito escutar deve estar pronto a obedecer aos mandamentos. Enfim, aquele que possui o conhecimento deve suplicar incessantemente, para permanecer livre do mal e dar graças por ter parte no bem. 1386
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31. Uma alma jamais consegue tender para o conhecimento de Deus se o próprio Deus, descendo até ela, não a tocar e a levar consigo. Pois o intelecto humano não pode se elevar até perceber uma iluminação divina se o próprio Deus não o puxar para cima, na medida em que o intelecto humano consegue ser arrebatado, e não o iluminar com os esplendores divinos.
32. Aquele que imita os servidores do Senhor não recusa, por causa dos Fariseus, caminhar no sábado pelos campos de trigo e colher as espigas [25]. Ao contrário, tornado impassível a partir do conhecimento prático, ele colhe as razões das criaturas, nutrindo-se piedosamente da ciência divina dos seres. 1389
33. Aquele que é simplesmente fiel e segue o Evangelho, é capaz, pela ação, de mover a montanha de sua malícia [26]. Ele afasta de si seu primitivo pendor para a errância das coisas submetidas à sensação. Aquele que pode ser discípulo e que recebe das mãos do Verbo migalhas do pão do conhecimento alimenta milhares de homens [27]: pela ação ele mostra o poder multiplicado do Verbo. Mas quem é capaz de se tornar apóstolo, cura as doenças e enfermidades e expulsa os demônios [28], isto é, põe em fuga a energia das paixões e cura os doentes, por intermédio da esperança, devolvendo ao estado de piedade os que dela estavam privados, e conforta pelas palavras do Juízo os que esmoreciam no desleixo. Pois, exortado a caminhar sobre serpentes e escorpiões [29], ele abole o começo e o fim do pecado. 1390
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34. O apóstolo e o discípulo são fiéis em todos os casos. O discípulo nem sempre é apóstolo, mas é sempre fiel. Aquele que é apenas fiel não é nem discípulo nem apóstolo. Entretanto, por sua conduta e sua contemplação, ele pode chegar à ordem e à dignidade do segundo, e este pode alcançar a ordem e a dignidade do primeiro.
[22] Êxodo 14: 14. [23] Deuteronômio 6: 4. [24] Êxodo 14: 15. [25] Cf. Mateus 12: 1-2. [26] Cf. Mateus 17: 20. [27] Cf. Mateus 14: 19-20. [28] Cf. Mateus 10: 1-8. [29] Cf. Lucas 10: 19.
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35. Aquilo que foi criado no tempo e conforme o tempo está submetido a um fim e colocará um termo ao seu crescimento segundo a natureza. Mas aquilo que é feito pela ciência de Deus conforme a virtude, uma vez chegado ao fim retorna ao crescimento. O fim das primeiras coisas é o começo de outras. Pois quem, pelas virtudes, segundo a ação, inverteu em si próprio o fundamento das coisas corruptíveis, abre o caminho para outras configurações mais divinas. Deus jamais cessa de fazer o bem, o qual não tem início. Da mesma forma, com efeito, como a qualidade da luz é iluminar, também é próprio de Deus fazer o bem. É por isso que na Lei, que expõe o curso das coisas tais como elas nascem e morrem segundo o tempo, o sábado é honrado com o repouso, mas no Evangelho, que ensina o estado das coisas inteligíveis, este mesmo sábado é iluminado pela bem-aventurança das boas obras, ainda que isto irritasse aqueles que não sabiam que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado, e que o Filho do homem é Senhor inclusive do sábado [30]. 1394
36. Existe na Lei dos Profetas um sábado [31], sábados [32] e sábados de sábados [33]. Do mesmo modo, há uma circuncisão e uma circuncisão da circuncisão [34], uma colheita [35] e uma colheita da colheita, conforme foi dito: “Quando vocês colherem sua colheita [36]”. O primeiro termo significa a completude da filosofia prática, física e teológica. O segundo significa a libertação do devir e das razões do devir. O terceiro significa a obtenção e o pleno proveito das razões mais espirituais dos sentidos e do intelecto. Existem assim três termos para cada uma das coisas que mencionamos, para que aquele que possui o conhecimento saiba por que razão Moisés celebrou o sábado morrendo fora da terra santa [37], por que razão José circuncidou os filhos de Israel depois da passagem do Jordão [38] e por que razão aqueles que herdam a boa terra levam a Deus, em grande quantidade, a oferenda da dupla colheita [39]. 1395
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37. O sábado é a impassibilidade da alma dotada de razão que, pelo conhecimento prático, apaga totalmente os estigmas do pecado.
38. Os sábados são a liberdade da alma dotada de razão, que, pela contemplação natural do espírito, está separada desta energia que, conforme a natureza, atua sobre os sentidos.
39. Os sábados dos sábados são a calma espiritual da alma dotada de razão, que despojou o intelecto de todas estas razões mais divinas que estão nos seres. No êxtase amoroso ela se revestiu somente de Deus, e pela teologia mística tornou o intelecto inteiramente imóvel diante de Deus.
[30] Cf. Marcos 2: 27-28 [31] Cf. Isaías 66: 23. [32] Cf. Êxodo 16: 23. [33] Levítico 16: 31. [34] Cf. Gênesis 17: 13. [35] Cf. Gênesis 8: 22. [36] Levítico 23: 10. [37] Cf. Deuteronômio 24: 5. [38] Cf. Josué 5: 3. [39] Cf. Levítico 23: 10-11.
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40. A circuncisão é aquilo que, referente ao devir, afasta da alma o estado passional.
41. A circuncisão da circuncisão é a rejeição que, referente ao devir, elimina totalmente até os movimentos naturais da alma.
42. A colheita da alma dotada de razão é a arte de recolher e reconhecer as razões mais espirituais dos seres, segundo a virtude e segundo a natureza.
43. A colheita da colheita é – inacessível antes da contemplação mística das coisas inteligíveis – a compreensão de Deus que se organiza de forma incognoscível para o intelecto. É desta compreensão que testemunha, como convém, aquele que honra o Criador a partir das criaturas visíveis e invisíveis.
44. Existe ainda outra colheita ainda mais espiritual. É aquela que é chamada colheita de Deus. Existe também outra circuncisão mais secreta. E existe outro sábado mais oculto, no qual Deus, celebrando o sábado, repousa de suas obras. Tudo isso foi dito: “A colheita é grande, mas poucos são os trabalhadores [40]”. E: “A circuncisão do coração no espírito [41]”. E: “Deus bendisse o sétimo dia e o santificou. Pois ele repousou de todas as coisas que havia feito [42].” 1404
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45. A colheita de Deus está em todo lugar aonde repousam e permanecem aqueles que são dignos de estar nele no final dos séculos.
46. A circuncisão do coração no espírito é a eliminação total das energias naturais dos sentidos e do intelecto referente às coisas sensíveis e inteligíveis, pela chegada do Espírito que transfigura imediata e totalmente o corpo e a alma, em vista daquilo que é mais divino.
47. A celebração do sábado de Deus é a total finalização dos seres nele. Ele fará então com que a energia mais divina inefavelmente cumprida repouse da energia natural que ele desdobrou no seio das criaturas. Pois pode ser que Deus repouse da energia natural que se encontra em cada ser (esta energia pela qual cada ser se move naturalmente), no momento em que cada um, depois de haver recebido segundo sua medida a energia divina, determinar ele próprio em relação a Deus sua própria energia segundo a natureza.
[40] Mateus 9: 37. [41] Romanos 2: 29. [42] Gênesis 2: 3.
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48. Os monges zelosos devem procurar quais são as obras cuja gênese se pode pensar ter sido iniciada por Deus, e quais são aquelas que, ao contrário, ele não iniciou. Pois se ele repousou de todas as obras que ele começou por criar, está claro que ele não repousou daquelas que ele não começou. As obras de Deus que começaram a ser no tempo não são senão todos os seres que participam, tais como as diferentes espécies de seres. Pois nessas obras o não-ser é mais antigo do que o ser. Houve um tempo em que os seres participantes não existiam. E as obras de Deus que sem dúvida não começaram com o tempo são os seres “participados”, dos quais, pela graça, os seres participantes têm participação: por exemplo, a bondade e tudo o que está contido no termo e simplesmente toda vida, imortalidade, simplicidade, imutabilidade, infinitude, e aquilo que é essencialmente contemplado em torno dele. Estas também são obras de Deus, e elas não começaram com o tempo. Pois aquilo que não existia não é mais antigo do que a virtude, nem do que as coisas que mencionamos, mesmo se aquilo que participa dessas coisas tenha começado a ser com o tempo. Pois as virtudes nunca começaram: o tempo não é mais antigo do que elas, uma vez que Deus e somente Deus engendra eternamente o ser.
49. Deus se ergue infinitamente ao infinito acima dos seres participantes e participados. Pois tudo o que significa razão de ser é obra de Deus, ainda que determinada coisa segundo a gênese tenha começado a ser com o tempo, e se determinada outra coisa segundo a graça esteja infundida nas criaturas, como uma potência inata que proclama fortemente que Deus está em todos.
50.Tudo o que é imortal e a própria imortalidade, tudo o que é vivo e a própria vida, tudo o que é santo e a própria santidade, tudo o que é virtuoso e a própria virtude, tudo o que é bom e a própria bondade, tudo o que é e a própria ipseidade, são evidentemente obras de Deus. Mas algumas começaram a ser com o tempo. Houve um tempo em que não existiam nem virtude, nem bondade, nem santidade, nem imortalidade. E é por participarem daquilo que não começou com o tempo que as coisas que começaram com o tempo são o que são e têm os nomes que têm. Pois Deus é o Criador de toda vida, de toda imortalidade, de toda santidade, de toda virtude. Ele se ergue acima da essência de tudo o que pensamos e nomeamos.
51. Segundo a Escritura, o sexto dia introduziu a finalização dos seres submetidos à natureza. No sétimo dia termina o movimento da temporalidade. E o oitavo dia significa o modo do estado mais elevado do que a natureza e o tempo.
52. Quem passa o sexto dia apenas conforme a Lei, fugindo da potência ativa das paixões que afligem a alma, atravessa sem temor o mar e se encaminha para o deserto [43]. Este celebra o sábado pela simples detenção das paixões. Mas quem atravessa o Jordão e se desembaraçou deste estado no qual nada se faz além de deter as paixões entra na herança das virtudes [44]. 1407
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[43] Êxodo 15: 19-22. [44] Cf. Josué 3.
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53. Quem passa o sexto dia como manda o Evangelho, depois de haver inicialmente destruído os primeiros movimentos do pecado, chega, por meio das virtudes, ao estado de impassibilidade desprovido de qualquer malícia. Em seu intelecto ele celebra o sábado que detém esta pura imaginação das paixões. Mas quem atravessou o Jordão penetra no país do conhecimento, aonde o intelecto, por tanto tempo secretamente edificado pela paz, se torna a morada de Deus no Espírito [45]. 1409
54. Quem cumpriu divinamente em si mesmo o sétimo dia pelas obras e os pensamentos necessários, e que, com Deus, executou com sucesso suas próprias obras, ultrapassou pela compreensão toda hipóstase daquilo que está submetido à natureza e ao tempo e penetrou na contemplação mística dos séculos e das coisas eternas: este celebra o sábado no “desconhecimento”, em seu intelecto, pelo total abandono e a total superação dos seres. Mas quem foi considerado digno do oitavo dia ressuscitou dos mortos, vale dizer, de todo o sensível e de todo o inteligível, de todas as palavras e de todos os pensamentos que seguem a Deus. Este vive a vida bem-aventurada de Deus, a única que pode ser chamada de vida e que é vida verdadeiramente. Assim, pela deificação, ele próprio se torna Deus.
55. O sexto dia é o cumprimento total das energias naturais dos ativos que praticam a virtude. O sétimo dia é o término e o repouso dos pensamentos naturais dos contemplativos que recebem o conhecimento inefável. O oitavo dia é a mudança da ordem, que faz passar à deificação aqueles que dela são dignos. Mostrando sem dúvida estes sétimo e oitavo dias mais misticamente do que nunca, o Senhor chamou de dia e hora do cumprimento [46], uma vez que tal dia finaliza completamente os mistérios e as razões de todas as coisas. Não é possível às potências celestes e terrestres conhecer este dia antes de tê-los experimentado. Isto só é possível à Divindade bem-aventurada que fez estas coisas [47]. 1410
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56. O sexto dia significa a razão de ser dos seres. O sétimo dia designa o modo do bem estar dos seres. O oitavo dia anuncia o mistério inefável do bem estar eterno dos seres.
57. Sabendo que o sexto dia é o símbolo da energia ativa, quitemos neste dia toda a dívida das obras da virtude, para que também de nós seja dito: “E Deus viu tudo o que havia feito, e viu que era muito bom [48]”. 1412
58. Aquele que por intermédio do corpo coloca todo seu cuidado na diversidade bem ordenada das virtudes quita a dívida da bela obra louvada por Deus.
[45] Cf. Efésios 2: 22. [46] Cf. Mateus 13: 39 e 24: 36. [47] Cf. Mateus 24: 36. [48] Gênesis 1: 31.
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59. Quem finalizou completamente a preparação das obras da justiça alcança o repouso da contemplação gnóstica, pela qual, abraçando divinamente as razões dos seres, repousa do movimento do intelecto que envolve esta contemplação.
60. Quem participou do repouso do sétimo dia que Deus dispôs para nós participará igualmente de sua energia do oitavo dia na deificação que ele nos oferece, vale dizer, no repouso místico por meio do qual ele próprio deixou no túmulo o lençol posto e o sudário da cabeça [49]. Aqueles que os veem, como Pedro e João, creem que o Senhor ressuscitou. 1413
61. O túmulo do Senhor é tanto este mundo quanto o coração de cada um dos fiéis. O lençol são as razões das coisas sensíveis e, com elas, os modos da virtude. O sudário é o conhecimento simples e invariável das coisas inteligíveis, e com ele, a teologia possível. É por intermédio dessas coisas que o Verbo dá a conhecer inicialmente, pois, sem elas, sua compreensão, que as ultrapassa, nos é totalmente inacessível.
62. Aqueles que sepultaram honrosamente o Senhor vê-lo-ão ressuscitar em glória, ele que permanece invisível para todos os que não o fizeram. Pois seus adversários já não o podem alcançar, uma vez que ele não tem mais o invólucro das coisas exteriores, pelo qual ele parecia estar entregue nas mãos dos que o perseguiam e pelo qual ele suportou sofrer para a salvação de todos.
63. Aquele que sepultou o Senhor honrosamente é venerado pelos que amam a Deus. Pois ele o livrou convenientemente da exposição e do opróbrio, ele não deixou aos infiéis sua crucificação sobre o lenho como um objeto de blasfêmia. Os que selaram o túmulo e lá colocaram soldados [50] fizeram com isto uma coisa odiosa. Eles caluniaram o Verbo ressuscitado, dizendo que ele havia sido roubado [51]. Assim como eles usaram com dinheiro o falso discípulo para que ele traísse (falo do modo ostensivo da virtude), também assim eles obrigaram os soldados para que caluniassem o Salvador ressuscitado. Quem possui o conhecimento sabem que o que eles disseram era aparente. Este não ignora como e de que maneira ele foi crucificado, sepultado e como ressuscitou no Senhor. Ele fez morrer os pensamentos passionais depositados no coração pelos demônios. Diante das tentações ele divide, como as vestimentas, os modos da beleza moral. E ele destrói, como os selos, as imagens dos pecados de presunção colocados sobre a alma [52]. 1414
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64. Todo homem que ama o dinheiro e contraria a virtude por precaução, ao se ver procurando a matéria de sua cobiça, renega o modo pelo qual ele antes se acreditava discípulo de Cristo.
[49] Cf. João 20: 6-7. [50] Cf. Mateus 27: 66. [51] Cf. Mateus 28: 13. [52] Cf. Mateus 27: 35.
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65. Quando vemos certos orgulhosos não suportar que os melhores sejam elogiados, e fazer intrigas para não pregar a verdade anunciada, afastando-a por meio de mil tentações e calúnias sacrílegas, penso que o Senhor está sendo novamente crucificado por eles, sepultado e guardado por soldados e selos. Mas o Verbo os desorienta e ressuscita. Ele brilha antes mesmo de ser combatido. Do mesmo modo ele foi morto entre sofrimentos para atingir a impassibilidade. Pois ele é mais forte do que todos, ele que é, e que é chamado, a verdade.
66. O mistério da encarnação do Verbo em um corpo traz em si o poder de todos os enigmas e de todas as imagens da Escritura, e a ciência das criaturas visíveis. Quem conheceu o mistério da cruz e do sepultamento, conheceu as razões das imagens e das criaturas. Mas quem foi iniciado na potência inefável da ressurreição conheceu o objetivo pelo qual, no início, Deus constituiu todas as coisas.
67. Todas as coisas visíveis necessitam da cruz: do estado daquilo que nelas desenvolve a relação sensível. E todas as coisas inteligíveis têm necessidade do sepultamento: da imobilidade total daquilo que nelas age pelo intelecto. De fato, quando a energia e o movimento naturais ao redor de tudo foram suspensos junto com a relação, o Verbo, único existente por si próprio, apareceu novamente, como ressuscitado dentre os mortos: ele próprio delimitou tudo o que vinha dele, uma vez que absolutamente ninguém está unido a ele por uma relação natural. Pois é pela graça, e não pela relação, que ele é a salvação dos que são salvos [53]. 1417
68. Os séculos, os tempos e os lugares pertencem às coisas que estão em relação com outra. Sem eles, não existe nada daquilo que se concebe com eles. Mas Deus não pertence à categoria das coisas que estão em relação com outra. Pois nele nada há que se conceba com ele. Portanto, se a herança dos que são dignos é o próprio Deus, quem é digno desta graça é mais alto do que os séculos, os tempos e os lugares. Seu lugar será o próprio Deus, conforme foi escrito: “Seja para mim um Deus que me protege, e um lugar fortificado para me salvar [54]”. 1418
69. O fim não tem absolutamente nada que se pareça com o meio. Pois ele não tem fim. Mas o meio é tudo o que existe entre o começo e o fim. Portanto, sem todos os séculos, todos os tempos e todos os lugares acompanham tudo o que se concebe com eles, eles estão depois de Deus, que está no começo mas que não tem começo. E como eles existem antes do fim, eles não diferem do meio. Deus é o fim para os salvos. E nada do que está no meio será contemplado entre os que serão salvos no fim último.
70. O mundo inteiro está limitado por suas próprias razões. Ele se chama o lugar e o século dos que habitam nele. Por natureza, ele tem como modos de contemplação as razões ligadas a ele e que são capazes de criar neles uma compreensão parcial da sabedoria de Deus que está acima de tudo. Na medida em que as razões se servem dos modos para permitir a compreensão, elas não podem estar fora do meio, e só permitem uma compreensão parcial. Mas desde que diante da aparição do perfeito o parcial é abolido, todos os espelhos e todos os enigmas passam: como a verdade se manifesta face a face, o salvo que atingiu [53] Cf. Efésios 2: 5. [54] Salmo 70 (71): 3.
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a perfeição divina estará acima de todos os mundos, de todos os séculos, de todos os lugares, nos quais até então ele estivera em pé como uma criança.
71. Pilatos é a imagem da lei natural, e a multidão dos Judeus é a imagem da lei escrita. Portanto, aquele que, pela fé, não se eleva acima das duas leis, não pode receber a verdade que está acima da natureza e da razão. Mas de alguma maneira ele crucifica o Verbo, seja porque, como Judeu, ele considera que o Evangelho é um escândalo, seja porque, como Grego, ele considera que o Evangelho é uma tolice [55]. 1419
72. Quando você vê Herodes e Pilatos tomarem-se de amizade um pelo outro durante a prisão de Jesus [56], pense na conjunção do demônio da prostituição com o da vanglória, que se põem de acordo para destruir a razão da virtude e do conhecimento. O demônio da vanglória, imitando o conhecimento espiritual, envia para o demônio da prostituição. Este, simulando hipocritamente a pureza, envia ao demônio da vanglória. Diz-se que Herodes enviou Jesus a Pilatos depois de tê-lo vestido com vestes esplêndidas [57]. 1420
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73. É benéfico para o intelecto não consentir com a carne nem se ligar às paixões. Pois foi dito que não se colhem figos sobre cactos, ou seja, a virtude sobre as paixões; nem uvas em espinheiros [58], ou seja, o conhecimento que se regozija sobre a carne. 1422
74. O asceta experimentado pela paciência nas tentações e que alcançou a perfeição aplicando-se às mais altas contemplações, torna-se digno da consolação divina. Pois o Senhor, disse Moisés, nos veio no Sinai, ou seja, nas tentações; ele nos apareceu em Seir, ou seja, nas penas corporais; e ele resplandeceu na montanha de Faran com as miríades de Cades [59], ou seja, na montanha da fé, com as miríades dos santos conhecimentos. 1423
75. Herodes tem como razão o cuidado com a carne. Pilatos, os sentidos. César, as coisas sensíveis. Os judeus, os pensamentos psíquicos. Portanto, quando, por ignorância, a alma se abandona às coisas sensíveis, ela entrega o Verbo aos sentidos para fazê-lo morrer, pois então, com esta proclamação, ela faz prevalecer para si mesma o reino das coisas corruptíveis. Com efeito, os judeus disseram: “Não temos outro rei senão César [60]”. 1424
76. Herodes ocupa o lugar da energia das paixões. Pilatos, o lugar do estado falsificado por elas. César, o lugar da potência tenebrosa que domina o mundo. Os judeus, o lugar da alma. Assim, quando a alma se
[55] Cf. I Coríntios 1: 22-23. [56] Cf. Lucas 23: 12. [57] Cf. Lucas 23: 7-11. [58] Cf. Lucas 6: 44. [59] Cf. Deuteronômio 33:2. [60] João 19: 15.
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deixa levar pelas paixões, ela entrega a virtude nas mãos do estado de malícia, renega claramente o Reino de Deus e se dirige para a tirania corruptora do diabo.
77. Submeter as paixões não é o suficiente para que a alma atinja a alegria espiritual. Ela ainda precisa adquirir as virtudes cumprindo os mandamentos. Pois foi dito: “Não se regozijem porque os demônios estão submetidos a vocês – ou seja, a energia das paixões – mas porque seus nomes estão inscritos no céu [61]”, transcritos pela graça da adoção através das virtudes, para o lugar onde reina a impassibilidade. 1425
78. A riqueza das virtudes adquirida pela razão é absolutamente necessária àquele que possui o conhecimento. De fato, foi dito: aquele que possui uma bolsa – ou seja, o conhecimento espiritual – cuide dela. O mesmo deve fazer aquele que possui um embornal, ou seja, a abundância das virtudes que, generosamente, alimentam a alma. Mas aquele que não possui nem bolsa nem embornal, nem conhecimento nem virtude, venda seu manto e adquira uma espada [62]. Pois foi dito: que de todo seu coração ele entregue sua carne às penas da virtude e que, pela paz de Deus, ele conduza sabiamente o combate contra as paixões e os demônios. Vale dizer, que ele alcance este estado que, pela palavra de Deus, distingue o melhor do pior. 1426
79. O Senhor se deu a conhecer quando fez trinta anos [63]. Com este número, ele ensina secretamente aos que têm o dom da clarividência os mistérios que lhe dizem respeito. Pois o número trinta, considerado e transposto misticamente, representa o Senhor como Criador e a Providência dos tempos, da natureza e dos seres inteligíveis que estão acima da natureza visível. Ele é o Senhor do tempo pelo sete, pois o tempo é setenário. Ele é o Senhor da natureza, pois a natureza é quíntupla, pois os sentidos estão divididos em cinco. E ele é o Senhor dos seres inteligíveis pelo oito, pois a gênese dos seres inteligíveis está acima do período medido pelo tempo. Ele é a Providência pelo dez, pela santa década dos mandamentos que faz os homens penetrarem no bem, e pela letra inicial [64] que o Senhor deu misticamente a seu nome, quando se fez homem. Adicionando-se o cinco, o sete, o oito e o dez, totalizamos o número trinta. Assim, aquele que sabe seguir o Senhor como a seu mestre sobre o bom caminho, não ignorará a razão pela qual ele se mostrou com trinta anos de idade para pregar o Evangelho do Reino. A partir do momento em que ele criar com sua ação, de modo irrepreensível, o mundo das virtudes como uma natureza visível, sem alterar o período que, com um tempo, cumpriu-se em sua alma através dos contrários, quando ele tiver colhido infalivelmente o conhecimento por meio da contemplação, e que ele poderá levar providencialmente aos outros este estado, então também ele, como se fosse a idade de seu corpo, terá trinta anos em espírito, revelando, com seus próprios bens, a energia que ele transmite aos outros. 1427
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80. Quem se torna paralisado pelos prazeres do corpo não é capaz de se abrir para a virtude e não se volta facilmente ao conhecimento. Assim sendo, não há ninguém – ou seja, não existe pensamento sábio – capaz de atirá-lo à piscina quando as águas se agitam, ou seja, de conduzi-lo para a virtude que recebe o conhecimento e que cura toda enfermidade, se acaso o enfermo, retardado pela negligência, é sempre [61] Lucas 10: 20. [62] Cf. Lucas 22: 36. [63] Cf. Lucas 3: 23. [64] Em grego o número 10 é indicado pela letra iota, que é também a inicial do nome de Jesus nesta língua.
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precedido por algum outro que o impede de alcançar a cura. É por isso que, passados trinta e oito anos, ele continua deitado doente [65]. Pois quem não contempla a criação visível para render glória a Deus, e que não eleva piedosamente seu pensamento para a natureza inteligível, permanece com justiça doente pelo número de anos que mencionamos. Com efeito, o número trinta, tomado naturalmente, simboliza a natureza sensível, assim como, considerado na prática, simboliza a virtude ativa. E o número oito, compreendido misticamente, designa a natureza inteligível dos incorpóreos, assim como, contemplado gnosticamente, designa a sapientíssima teologia. Aquele cuja natureza inteligível e cuja teologia não se voltam para Deus permanece paralisado, até que o Verbo venha lhe ensinar o caminho curto da cura, dizendo: “Levante-se, tome seu leito e caminhe [66]”, encorajando-o assim a retirar do intelecto o amor ao prazer que o paralisa, a tomar seu corpo sobre as espáduas da virtude e a voltar para casa, ou seja, para o céu. Pois mais vale que o pior seja carregado sobre as espáduas da ação para atingir a virtude, do que o melhor seja carregado pelo pior para se encaminhar, através da preguiça, para o amor ao prazer. 81. Enquanto com toda pureza, pelo pensamento, não formos capazes de sair de nossa essência e da essência de tudo o que está aquém de Deus, não teremos adquirido o estado de imutabilidade dado pela virtude. Mas quando esta dignidade nos for concedida pelo amor, então conheceremos o poder da promessa divina. É preciso crer, de fato, que os que são dignos de se estabelecerem na imutabilidade acham-se no lugar onde o intelecto, depois de ser levado adiante, enraíza seu poder pelo amor. Pois quem não sai de si mesmo e de tudo o que pode ser pensado de uma maneira ou de outra, e que não está fundamentado no silêncio que ultrapassa o entendimento, não pode de modo algum libertar-se da constante mudança. 1429
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82. Todo pensamento significa de qualquer modo uma multitude, ou no mínimo uma dualidade. Com efeito, trata-se de uma relação que se mantém no meio entre dois extremos que ela reúne entre si: o que pensa e o que é pensado. E nem um nem outro possui naturalmente a simplicidade. Com efeito, o que pensa é um sujeito, que tem o poder de pensar inteiramente contido em si mesmo. O que é pensado também é sujeito, ou está contido num sujeito: ele tem o poder de ser pensado contido em si mesmo, ou antes, a essência de cujo poder ele era sujeito anteriormente. Pois nenhum ser é inteiramente por si mesmo uma essência ou um pensamento simples, a ponto de ser também uma mônada indivisível. Quanto a Deus, se dissermos que ele é uma essência, ele não terá naturalmente o poder de ser pensado compreendido em si mesmo, porque ele não é composto. Se dissermos que ele é pensamento, ele não possui naturalmente essência que seja um sujeito capaz de receber o pensamento. Mas Deus por si mesmo é em essência pensamento, e inteiramente pensamento, e somente pensamento. E, segundo o pensamento, ele é em si mesmo essência, e inteiramente essência, e inteiramente acima da essência. É por isso que ele é uma mônada simples, sem divisão nem partes. Portanto, aquele que, de um modo ou de outro, tem em si algum pensamento, ainda não conseguir sair da dualidade. Mas quem se desembaraçou inteiramente de qualquer pensamento alcança, de certa maneira, a mônada: ele despojou-se eminentemente do poder de pensar.
83. No múltiplo existe alteridade, dissemelhança e diferença. Mas em Deus, que é propriamente um e único, não há senão identidade, simplicidade e semelhança. Assim, não é prudente se dedicar às contemplações que levam a Deus, antes de sair do múltiplo. É o que nos mostra Moisés, quando coloca fora do acampamento a tenda dos pensamentos [67] para se encontrar com Deus. É perigoso exprimir o inefável com palavras de discurso, pois um discurso é uma dualidade, e até mais. É mais eficaz contemplar aquilo que é, sem nada dizer, apenas com a alma, pois então estamos dentro da mônada 1431
[65] Cf. João 5: 5-7. [66] João 5: 8. [67] Êxodo 33: 7.
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indivisível, e não na multiplicidade. Com efeito, o Sumo Sacerdote, a quem estava prescrito penetrar uma vez ao ano no Santo dos Santos por detrás do véu [68], não ensina outra coisa: quem atravessou a antessala e os lugares santos, e que penetrou no Santo dos Santos, ou seja, quem ultrapassou a natureza do sensível e do inteligível, e que foi purificado de tudo o que é próprio do nascimento, deve se abrir às aparições que revelam Deus com o intelecto nu e despojado. 1432
84. Quando fincou sua tenda fora do acampamento [69], ou seja, quando fundou seu julgamento e seu pensamento fora do visível, o grande Moisés começou a adorar a Deus e, nas trevas, no lugar onde o conhecimento se vê desprovido de toda forma e de toda matéria, cumpriu as celebrações mais sagradas. 1433
85. A treva é um estado sem forma, sem matéria, sem corpo. Este estado traz em si o conhecimento exemplar dos seres. Quem nele penetra, como Moisés, compreende naturalmente o imortal dentro de um corpo mortal. Depois de se haver neste estado desenhado em si mesmo a beleza das virtudes divinas, como uma escritura que perpetua a imagem bem copiada da beleza original, ele desceu para oferecer-se em pessoa àqueles que desejavam imitar a virtude. E com isto ele mostrou a bem-aventurança e a benevolência da graça que ele recebeu em partilha.
86. Aqueles que, sem nenhuma falta, procuram o amor à sabedoria segundo Deus, encontram na ciência fornecida por esta sabedoria um ganho imenso: eles já não modificam mais seu julgamento conforme as coisas, mas, com firme certeza, empreendem resolutamente tudo o que está de acordo com a razão da virtude.
87. Recebemos a primeira incorruptibilidade da carne ao sermos batizados em Cristo pelo Espírito. E recebemos a última incorruptibilidade segundo Cristo mantendo sem mácula a primeira incorruptibilidade, pela oferenda das boas obras e pela morte voluntária. Segundo esta última, nenhum dos que a possuem devem temer a perda dos bens adquiridos.
88. Tendo desejado, por amor a nós, enviar do céu a todos os que estão sobre a terra a graça da virtude divina, Deus preparou simbolicamente a tenda sagrada e tudo o que está nela: esta tenda é a imagem, o símbolo e a imitação da sabedoria.
89. A graça do Novo Testamento está misteriosamente oculta no texto do Antigo. É por isso que o Apóstolo disse que a Lei é espiritual [70]. Portanto, a Lei passa e envelhece pela letra, condenada à inação. Mas ela rejuvenesce pelo Espírito, sempre ativa. Pois a graça jamais pode envelhecer. 1434
[68] Levítico 16; Hebreus 9: 7. [69] Cf. Êxodo 20: 21 e 33: 7. [70] Cf. Romanos 7: 14.
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90. A Lei simboliza a sombra do Evangelho. E o Evangelho é a imagem dos bens que virão. Pois a primeira impede a ação do mal; e o segundo suscita as ações do bem.
91. Dizemos que toda a Sagrada Escritura é dividida em carne e Espírito, como se ela fosse um homem espiritual. Quem diz que o texto da Escritura é carne, e que sua inteligência é Espírito, ou alma, não faltará com a verdade. E é sábio quem, depois de haver abandonado o corruptível, se dedica inteiramente ao incorruptível.
92. A Lei é a carne do homem espiritual simbolizado pela Sagrada Escritura. Os Profetas são os sentidos. E o Evangelho é a alma dotada de inteligência, que age pela carne da Lei e pelos sentidos dos Profetas, manifestando sua própria potência por suas energias.
93. A Lei simboliza a sombra [71], e os Profetas são a imagem dos bens divinos e espirituais trazidos pelo Evangelho. Mas é o Evangelho que nos mostra a própria verdade, presente nas coisas, anteriormente recoberta pela sombra da Lei e prefigurada pelos Profetas. 1435
94. Quem cumpre a Lei com sua vida e sua conduta não faz mais do que impedir que o mal chegue a termo, sacrificando a Deus a energia das razões irracionais. A este basta dirigir-se assim para a salvação, por meio da infância espiritual que mele reside. 95. Aquele que, pelas palavras proféticas, é instruído a rejeitar a energia das paixões, afasta igualmente de si os assentimentos que se formam na alma. Assim, resolvido a abster-se do mal nas coisas menores, ou seja, na carne, não esquece de agir fortemente sobre o mal nas coisas maiores, vale dizer, na alma.
96. Aquele que realmente abraçou a vida evangélica afastou de si mesmo o começo e o fim do mal. Ele busca toda a virtude nas obras e nas palavras. Ele celebra o sacrifício do louvor e da confissão [72]. Ele se separou da perturbação causada pela energia das paixões. Ele se libertou do combate do intelecto contra elas. Ele não traz em si senão a esperança dos bens futuros, que alimenta a alma com um prazer do qual ela jamais se sacia. 1436
97. Aos que se aplicam com o máximo fervor às divinas Escrituras, a palavra do Senhor aparece sob duas formas: uma, comum e pública, que todos podem ver, e da qual foi dito: “Nós o vimos, e ele não possuía nem aparência nem beleza [73]”; a outra, secreta e acessível a poucos, aos que já se tornaram como os santos apóstolos Pedro e João, diante de quem o Senhor se transfigurou numa glória mais forte do que os sentidos [74], na qual ele é belo diante dos filhos dos homens [75]. A primeira destas duas formas é adaptada 1437
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[71] Cf. Hebreus 10: 1. [72] Cf. Salmo 49 (50): 14 [73] Isaías 53: 2. [74] Cf. Mateus 17: 2.
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aos noviços e a segunda corresponde aos que tornaram perfeitos no conhecimento, na medida em que isto é possível. Uma é a imagem da primeira vinda do Senhor. É a ela que se dever reportar oque diz o Evangelho: ela purifica os ativos por meio do sofrimento. A outra é uma prefiguração da segunda e gloriosa vinda. É nela que se compreende o Espírito: ela transfigura os gnósticos pela sabedoria, em vista da deificação. Pela transfiguração do Verbo neles, com o rosto descoberto, eles contemplam como num espelho a glória do Senhor [76]. 1440
98. Aquele que, por virtude, suporta firmemente as infelicidades, tem operando em si a primeira vinda do Verbo, que o purifica de toda mancha. Mas o que, pela contemplação, transportou seu intelecto ao estado dos anjos, tem a potência da segunda vinda, que nele cumpre a impassibilidade e a incorruptibilidade.
99. Os sentidos acompanham o monge ativo que, com suas penas, conduz-se com sucesso às virtudes. Mas o desaparecimento dos sentidos acompanha o monge gnóstico que separou o intelecto da carne e do mundo para levá-lo a Deus. O primeiro, que, pela ação, se esforça por libertar a alma do laço que a prende naturalmente à carne, tem sua faculdade de conhecimento constantemente debruçada sobre as penas. O outro, que, pela contemplação, livrou-se das amarras que o prendiam, não é mais retido por nada. Ele já está purificado de toda paixão e domina naturalmente todas as que o querem capturar.
100. O maná que foi dado a Israel no deserto [77] é a palavra de Deus que sacia com todo prazer espiritual os que dela se alimentam. E a palavra se transforma em todos os alimentos segundo os diferentes desejos de cada um dos que a recebem, pois ela tem as qualidades de todos os alimentos espirituais. É por isso que, para os que nasceram pelo Espírito do alto e de uma semente incorruptível, ela é o leite da razão [78] em estado puro. Para os que são fracos, ela é uma erva [79] que conforta a potência moribunda da alma. Enfim, para os que, por hábito, têm os sentidos da alma treinados em discernir o bem e o mal, ela fornece um alimento sólido [80]. A palavra de Deus possui ainda outras potências infinitas, que não cabem aqui em baixo. Quando um homem morre e se torna digno de ser estabelecido [81] sobre muitas ou sobre todas as potências da palavra, ele a todas receberá, ou a muitas dentre elas, porque aqui em baixo em algumas coisas. Pois tudo aquilo que existe de mais elevado nos carismas dados aqui em baixo é pouco e modesto em comparação com os bens futuros. 1441
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[75] Cf. Salmo 44 (45), 3. [76] Cf. II Coríntios 3: 18. [77] Cf. Êxodo 16: 14-15; Sabedoria 16: 20. [78] Cf. I Pedro 2: 2. [79] Cf. Romanos 14: 2. [80] Cf. Hebreus 5: 14. [81] Cf. Mateus 25: 21.
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SEGUNDA CENTÚRIA
1. Existe um único Deus, pois só existe uma Divindade: sem começo, simples, mais elevado do que a essência, sem partes nem divisão. A Divindade é Unidade a Trindade. A mesma Divindade é inteiramente Unidade, e a mesma Divindade é inteiramente Trindade. A mesma Divindade é inteiramente Unidade por sua essência, e a mesma Divindade é inteiramente Trindade por suas hipóstases. Pois a Divindade é Pai, Filho e Espírito Santo. E a Divindade está no Pai, no Filho e no Espírito Santo. A mesma Divindade está inteiramente no Pai inteiro, e o Pai inteiro está inteiramente na mesma Divindade inteira. A mesma Divindade está inteiramente no Filho inteiro, e o Filho inteiro está inteiramente na mesma Divindade inteira. A mesma Divindade está inteiramente no Espírito Santo inteiro, e o Espírito Santo inteiro está inteiramente na mesma Divindade inteira. Pois a Divindade não está em parte no Pai, nem o Pai é Deus em parte. E a Divindade não está em parte no Filho, nem o Filho é Deus em parte. E a Divindade tampouco está em parte no Espírito Santo, nem o Espírito Santo é Deus em parte. A Divindade não é divisível, e o Pai, o Filho e o Espírito Santo não são um Deus imperfeito. Mas a mesma Divindade perfeita está inteira perfeitamente no Pai perfeito, e a mesma Divindade perfeita está inteira perfeitamente no Filho perfeito, e a mesma Divindade perfeita está inteira perfeitamente no Espírito Santo perfeito. O Pai está inteiramente e perfeitamente no Filho inteiro e no Espírito inteiro. O Filho está inteiramente e perfeitamente no Pai inteiro e no Espírito inteiro. O Espírito está inteiramente e perfeitamente no Pai inteiro e no Filho inteiro. É por isso que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus. Pois existe uma única e mesma essência, uma única e mesma potência, uma única e mesma energia do Pai, do Filho e do Espírito Santo, sendo que nenhum é, nem pode ser pensado, sem os outros.
2. Todo pensamento é próprio do que pensa e do que é pensado. Ora, Deus não pertence nem ao que pensa, nem ao que é pensado: ele está acima. Pois, por definição, o que pensa necessita da relação com o que é pensado, ou, através da relação, o que é pensado depende naturalmente do que pensa. Resta compreender que Deus nem pensa nem é pensado, mas está acima do que pensa e do que é pensado. Pensar e ser pensado é próprio das criaturas que vêm depois dele.
3. Todo pensamento, do mesmo modo como possui, como qualidade, seu lugar em uma essência, também possui seu movimento em torno de uma essência criada. Aquilo que é por si mesmo totalmente livre e simples não pode receber tal pensamento, pois este não é livre e simples. Ora, Deus, que em ambos é totalmente simples – essência independente do sujeito, e pensamento tendo de uma vez por todas um objeto – não pertence ao que é pensado, uma vez que ele está evidentemente acima da essência e do pensamento.
4. Assim como o lugar central, de onde partem as linhas retas, é considerado completamente indivisível, também aquele que foi considerado digno de estar em Deus verá todas as razões das criaturas preexistir nele segundo um conhecimento simples e indivisível.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Centúrias sobre a teologia e a economia da encarnação do Verbo de Deus – Segunda centúria.
5. Sendo o pensamento formado por aquilo que é pensado, um único pensamento é feito de numerosos pensamentos: ele é a imagem de todas as formas daquilo que é pensado. Quando, depois de haver atravessado a multitude de coisas sensíveis e inteligíveis que o compõem, ele se separa inteiramente de toda forma, então a razão que ultrapassa o entendimento se une a ele estreitamente, desviando-o daquilo que aliena a reflexão pelas formas. Aquele que experimentou isto descansa de suas obras, como Deus descansou das suas.
6. Quem alcançou a perfeição possível aos homens aqui em baixo, carrega, por Deus, os frutos do amor, da alegria, da paz, da paciência, e, visando o século futuro, também os frutos da incorruptibilidade, da eternidade e de tudo o que lhes assemelha. Os primeiros frutos só chegam a quem obteve a perfeição da prática, e os segundos a quem saiu do criado pelo verdadeiro conhecimento.
7. Assim como a obra típica da desobediência é o pecado, a obra própria da obediência é a virtude. E assim como a transgressão dos mandamentos e a separação d'Aquele que ordenou são seguidas pela desobediência, também a obediência aos mandamentos e a união com Aquele que ordenou produzem a obediência. Vale dizer que quem observa um mandamento por obediência cumpre com toda a justiça e não se separa daquilo que o une por amor Àquele que ordenou.
8. Quem se concentra separando-se da transgressão, recusa em primeiro lugar as paixões, depois os pensamentos passionais, depois a natureza e as razões da natureza, depois os pensamentos e os conhecimentos dos pensamentos. Por fim, escapando da diversidade das razões da providência, chega por meio do “desconhecimento” a esta razão da unidade. Nesta razão, depois de haver contemplado sua simples imutabilidade, o intelecto se regozija, cheio de inexprimível alegria, porque recebeu a paz de Deus que ultrapassa toda inteligência, e que guarda continuamente de toda falta quem é considerado digno dela.
9. O temor da geena predispõe os noviços a fugir do mal. O desejo da recompensa dos bens dá aos que progridem o ardor em trabalhar as virtudes. Mas o mistério do amor eleva-se acima de todas as criaturas: ele torna o intelecto cego a tudo o que vem depois de Deus. Com efeito, o Senhor concede a sabedoria àqueles que se tornaram cegos para todas as coisas que vêm depois de Deus, mostrando-lhes o que é mais divino.
10. A palavra de Deus, semelhante a um grão de cevada, parece bem pequena antes de ser cultivada. Mas quando é cultivada corretamente, ela se mostra tão grande que as razões nobres das criaturas sensíveis e inteligíveis repousam sobre ela. Pois ele abarca todas as razões de todos os seres, mas a ele próprio nenhum ser é capaz de conter. É por isso que quem tem a fé como um grão de cevada pode, pela palavra, mover uma montanha, como disse o Senhor, ou seja, expulsar o poder que o diabo tem sobre nós e mudar de fundamento.
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11. O Senhor é um grão de cevada, semeado em espírito pela fé no coração dos que o recebem. Quem, graças às virtudes, o cultiva cuidadosamente, move a montanha dos cuidados terrestres. E depois de haver afastado de si mesmo o hábito do mal, tão difícil de dobrar, deixa repousar em si as palavras dos mandamentos e os modos de existência ou as potências divinas, como pássaros do céu.
12. Quando erguemos verticalmente o edifício dos bens, colocamos sobre o Senhor, como se fosse sobre uma fundação de fé, o ouro, a prata, as pedras preciosas: vale dizer, uma teologia pura e inalterada, uma vida transparente e clara, pensamentos divinos e reflexões luminosas. Mas não colocamos nem madeira, nem ervas, nem sapé, ou seja, nem a idolatria, esta demência que cerca o sensível, nem a vida desprovida de razão, nem os pensamentos passionais privados do conhecimento da sabedoria, como espinhos.
13. Aquele que busca o conhecimento deve fazer repousar os fundamentos imóveis de sua alma junto ao Senhor, conforme disse Deus a Moisés: “Venha para perto de mim”. Mas é preciso saber que entre os que se mantêm próximos ao Senhor existe uma diferença, se acaso os que amam aprender não leiam superficialmente o seguinte: “Alguns dos que estão aqui não experimentarão a morte até que tenham visto o Reino de Deus vir em seu poder”. Pois o Senhor não aparece sempre em sua glória àqueles que estão próximos a ele. Aos noviços, ele vem em auxílio sob a forma do servidor. Aos que podem segui-lo quando ele sobe a alta montanha de sua transfiguração, ele aparece sob a forma de Deus, na qual ele existia antes que o mundo fosse. Assim, é possível que o Senhor não pareça o mesmo, nem que apareça da mesma maneira a todos os que se acham próximos a ele. Mas a alguns ele aparece de um jeito, a outros de outro, na medida da fé de cada um.
14. Quando o Verbo de Deus se faz claro e luminoso em nós e sua face resplandece como o sol, suas vestimentas parecem também brilhantes: vale dizer, as palavras da Santa Escritura dos Evangelhos, límpidas e claras, sem nada escondido. Mas Moisés e Elias estão igualmente presentes com ele: ou seja, as palavras espirituais da Lei e dos Profetas.
15. Assim como o Filho do homem vem com seus anjos na glória do Pai, conforme está escrito, também a cada progresso da virtude se transfigura o Verbo de Deus vindo com seus anjos na glória do Pai para os que são dignos. Pois as palavras mais espirituais que estão na Lei e nos Profetas, e que Moisés e Elias representam ao aparecer com o Senhor durante a transfiguração de Deus, perpetuam a analogia da glória que está nelas: elas revelam àqueles que delas são dignos a potência que, até então, se retirava.
16. Aquele que de algum modo foi iniciado na palavra relativa à unidade, também conheceu as palavras correspondentes relativas à providência e ao julgamento. É por isso que, segundo são Pedro, é bom que se ergam três tendas para aqueles que o viram [durante a transfiguração], ou seja, três estados de salvação, a saber: o estado de virtude, o estado de conhecimento e o estado de teologia. O primeiro exige a coragem e a castidade na ação, cuja imagem é o bem-aventurado Elias. O segundo pede a justiça da contemplação natural, que o grande Moisés representa. E o terceiro pede a pura perfeição da sabedoria, que foi revelada
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pelo Senhor. E estes estados foram chamados de tendas, porque as partes que serão concedidas aos que delas forem dignos, no século futuro, serão outras, melhores e mais luminosas do que estas.
17. É dito que o monge ativo reside na carne. Pois, por meio das virtudes, ele afasta da alma a relação com a carne e se despoja dos enganos das coisas materiais. Mas também é dito que o monge gnóstico reside na própria virtude, pois ele ainda contempla a verdade em espelhos e enigmas: ele ainda não viu como são as formas mais fundamentais dos bens, desfrutando do conhecimento face a face. Por não ver, de fato, senão a imagem dos bens, como que em vista do século futuro, todo santo caminha proclamando: “Eu sou um estrangeiro, um viajante, como todos os meus pais”.
18. Quem ora não deve jamais deter a alta elevação que conduz a Deus. Pois assim como se deve subir seguindo a elevação de potência em potência no progresso ativo das virtudes, para, a seguir, seguir a ascensão dos conhecimentos espirituais da contemplação de glória em glória, e finalmente seguir a passagem da palavra da Santa Escritura ao Espírito, também os que alcançam o lugar das orações devem agir assim: elevar o intelecto para longe das coisas humanas e colocar sobre as coisas mais divinas o sentimento da alma, a fim de que o intelecto possa seguir a Jesus o Filho de Deus, que atravessou os céus, que está em toda parte, que a tudo percorre por nós em sua economia, para que nós mesmos, seguindo-o, atravessemos tudo o que está antes dele e cheguemos até perto dele, considerando-o não na dimensão menor de sua descida até nós em sua economia, mas na grandeza de sua natureza sem limite.
19. Devemos nos deter e buscar a Deus como nos foi ordenado. Pois, ainda que o busquemos por toda a nossa vida presente, não conseguiremos atingir o fundo da profundidade de Deus. Mesmo assim, se chegarmos a descobrir um pouco desta profundidade, poderemos contemplar o que é mais santo do que o santo e mais espiritual do que o espiritual. É o mostra a figura do Grão Sacerdote, quando vai do lugar santo, mais santo do que o vestíbulo, ao Santo dos Santos, mais santo do que o lugar santo.
20. Nenhuma sentença de Deus é dita em muitas palavras, nenhuma é falatório. Mas uma mesma sentença é feita de diferentes contemplações, das quais cada uma é uma parte da sentença. Assim, aquele que fala a verdade – na medida em que é possível falar a verdade sem nada omitir daquilo que está em causa – emite uma única e mesma sentença de Deus.
21. Em Cristo, verdadeiro Deus e Verbo do Pai, toda plenitude da Divindade reside realmente em um corpo. Mas em nós, a plenitude da Divindade reside por graça, quando recolhemos em nós mesmos toda virtude e toda sabedoria, e na medida em que estas não estão de modo algum afastando-se da verdadeira imitação do modelo, tanto quanto isto é possível ao homem. A partir do momento em que o Verbo nos adota, é natural, com efeito, que em nós resida também a plenitude da Divindade, que é feita das contemplações espirituais.
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22. Assim como nossa própria palavra, que, por natureza, provém de nosso intelecto, é um Anjo dos movimentos secretos deste intelecto, também o Verbo de Deus, que realmente conhece o Pai como a palavra conhece a inteligência que a engendrou (sendo que nenhum dos que foram engendrados podem ir ao Pai sem ele), revela o Pai que ele conheceu, pois ele é Verbo por natureza. É assim que ele é chamado de Anjo do grande Conselho.
23. O grande Conselho de Deus Pai é o mistério da economia, guardado pelo segredo do silêncio e desconhecido: este mistério que o Filho único, tornado Anjo do grande Conselho eterno de Deus Pai, revelou cumprindo-o pela encarnação. Quem conheceu a palavra do mistério torna-se Anjo do grande Conselho de Deus, elevado ao mais alto ponto através de tudo, de maneira incompreensível, pela obra da palavra, até atingir Aquele que está neste ponto e que desceu até ele.
24. Se o Verbo de Deus em sua economia desceu por nós até as regiões mais baixas da terra, e se ele subiu mais alto do que os céus, ele que é totalmente imóvel por natureza, cumprindo previamente o devir em si mesmo, em sua humanidade, segundo a economia, então que aquele que deseja o amor pelo conhecimento pense em se regozijar no mistério: qual é o fim prometido aos que amam ao Senhor.
25. Se Deus, Verbo de Deus Pai, tornou-se Filho do homem e homem para tornar deuses e filhos de Deus os homens, acreditemos que estaremos lá aonde agora está o próprio Cristo, cabeça do corpo inteiro, tornado para nós precursor de nossa natureza diante do Pai. Pois Deus estará na assembleia dos deuses, na assembleia dos que foram salvos. Ele estará no meio deles e distribuirá as recompensas da beatitude entre eles. Nenhum espaço o separará dos que são dignos.
26. Aquele que ainda está cheio dos desejos passionais da carne habita na terra dos Caldeus, pois adora e fabrica ídolos. Mas quando, depois de haver discernido um pouco das coisas, ele toma consciência dos modos convenientes da natureza, deixa a terra dos Caldeus e vai a Haram na Mesopotâmia, ou seja, alcança o estado intermediário entre a virtude e o vício, pois é isto que designa Haram. Enfim, se ele ultrapassa o conhecimento medíocre e comum do bem, conhecimento este dado pelos sentidos, ele se apressa em direção à boa terra, vale dizer, para o estado livre de todo vício e de toda ignorância, que o Deus que não mente mostra e promete dar em recompensa da virtude àqueles que o amam.
27. Se o Verbo de Deus foi crucificado por nós em virtude da fraqueza e se ele ressuscitou em virtude do poder de Deus, está aí, com toda evidência, aquilo que ele faz sempre por nós e prova tornando-se tudo para nos salvar a todos. É assim com toda justiça que o Apóstolo divino, diante dos fracos Coríntios, explicou que ele nada sabia, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Mas aos Efésios, que eram perfeitos, ele escreveu: “Deus nos ressuscitou junto e nos estabeleceu juntos nos lugares celestes de Cristo”. Deste modo ele afirmou que o Verbo de Deus chega a nós conforme o grau de conhecimento que corresponde a cada um. Assim é que ele foi crucificado por aqueles cuja vida ativa conduziu à piedade. Pelo temor a Deus ele reduziu ao silêncio suas atividades passionais. Mas ele ressuscitou e subiu aos céus por aqueles que foram inteiramente despojados do homem velho, corrompido pelas concupiscências do erro, pelo que se revestiram inteiramente do homem novo, criado pelo Espírito à imagem de Deus, e
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finalmente pelos que foram ao Pai da graça que reside neles, acima de toda autoridade, de todo poder, de toda potência, de toda dominação e de todo nome dado neste século ou no século futuro. Pois tudo o que antes de Deus – as coisas, os nomes e as honras – será submetido àquele que nascerá em Deus pela graça.
28. Assim como antes de sua manifestação visível na carne o Verbo de Deus residiu em espírito dos Patriarcas e nos Profetas, prefigurando assim os mistérios de sua manifestação, também antes de se manifestar no meio de nós, ele não apenas assiste aos que são ainda crianças, nutrindo-os espiritualmente e fazendo-os crescer até o formato da perfeição de Deus, como ainda assiste aos perfeitos, apresentandolhes secretamente, como em imagem, os sinais de sua manifestação futura.
29. Assim como as palavras da Lei e dos Profetas, que foram os precursores da manifestação de Cristo na carne, dirigiram as almas para Cristo, também o Verbo de Deus encarnado, quando foi glorificado, tornouse ele mesmo o precursor de sua manifestação espiritual, instruindo as almas, por suas próprias palavras, para que recebam sua divina manifestação visível, que ele cumpre sempre que, pela virtude, faz passar da carne ao Espírito aqueles que são dignos. Isto ele fará igualmente no fim do século, revelando claramente a todos o que está oculto agora.
30. Na medida em que eu sou imperfeito e desordenado, que eu não obedeço a Deus pela prática dos mandamentos e não trago no coração a perfeição do conhecimento, também Cristo é visto em mim como imperfeito e desordenado em minha natureza. Eu o diminuo e o mutilo, uma vez que não partilho com ele de um mesmo crescimento segundo o Espírito, por não ser senão parcialmente corpo e membros de Cristo.
31. O sol se levanta e o sol se deita, diz a Escritura. O mesmo acontece com o Verbo: nós o consideramos seja em cima, seja embaixo, ou seja, conforme a dignidade, a razão ou a maneira daqueles que alcançam a virtude e giram ao redor do conhecimento divino. Mas feliz é aquele que, como Josué, mantém em si, sem que se deite, o sol de justiça, durante toda a medida do dia da vida presente, sem ser limitado pelo crepúsculo do vício e da ignorância, a fim de poder legitimamente expulsar os demônios malignos que se levantam contra ele.
32. Erguendo-se em nós pela ação e a contemplação, o Verbo de Deus nos atrai para si, sacrificando pela virtude nossos pensamentos e nossas palavras relativas à carne, à alma, à natureza dos seres, aos próprios membros do corpo e aos sentidos, e colocando o conhecimento sob seu jugo. Portanto, aquele que vê as coisas divinas, que suba fervorosamente em busca do Verbo, até chegar ao lugar onde ele está. Pois é para lá que ele atrai, como diz o Eclesiastes. Ele atrai para seu lugar, é evidente, os que o seguem como o Sumo Sacerdote que se introduz no Santo dos Santos, aonde ele penetrou por nós, como precursor de nossa natureza.
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33. Aquele que, em sua piedade, busca o amor à sabedoria e se prepara para combater as potências invisíveis, deve rezar para que permaneça nele o discernimento natural que traz uma luz à sua altura, e para que permaneça nele a graça iluminadora do Espírito. Pois o discernimento conduz, pela ação, a carne até a virtude. Mas a graça ilumina o intelecto permitindo-lhe preferir a tudo a vida com sabedoria, por meio da qual ele derruba as fortalezas do mal e tudo o que subleva contra o conhecimento de Deus. E Josué o mostra, quando pede que o sol se detenha sobre Gabaon, ou seja, que permaneça nele, sem se deitar, a luz do conhecimento de Deus sobre a montanha da contemplação do intelecto; e quando ele pede que a lua se detenha sobre o vale de Aialon, ou seja, que o discernimento natural, tornado imutável pela virtude, se coloque sobre a fraqueza da carne.
34. Gabaon é a inteligência elevada. O vale de Aialon é a carne humilhada pela morte. O sol é o Verbo que ilumina o intelecto, fornecendo-lhe a potência das contemplações e livrando-o de toda ignorância. A lua é a lei natural que obriga a carne a se submeter legitimamente ao Espírito, a fim de receber o jugo dos mandamentos. Por ser mutável, a lua é um símbolo da natureza. Mas nos santos ela não muda mais, graças ao estado imutável da virtude.
35. Os que procuram o Senhor não devem fazê-lo fora de si mesmos, mas dentro de si mesmos, pela fé com que trabalham. Pois foi dito: “A palavra está perto de você, em sua boca e em seu coração”, ou seja, a palavra da fé, como o próprio Cristo: a palavra daquele a quem buscamos.
36. Ao considerarmos a grandeza da infinitude divina, não desesperemos do amor de Deus pelo homem pensando que, devido a esta grandeza, ele não chegará até nós. E quando refletirmos sobre a profundidade infinita da queda a que nos levou o pecado, não ponhamos em dúvida a ressurreição da virtude que está morta em nós. Pois ambas as coisas são possíveis a Deus: descer e iluminar nosso intelecto pelo conhecimento, para depois ressuscitar a virtude em nós e nos elevar junto consigo pelas obras da justiça. Pois foi dito: “Não diga em seu coração: quem subirá aos céus? Isto é: para fazer Cristo descer. Ou: quem descerá ao abismo? Isto é: para fazer Cristo subir de entre os mortos”. Segundo uma outra acepção, o abismo também pode ser tudo o que está antes de Deus, tudo aquilo em que, por sua providência, o Verbo de Deus se fez inteiro por nós, como a vida que veio residir no meio daqueles que estavam mortos. Pois tudo o que vive por uma participação na vida, está morto. Como céu, o Apóstolo entende o segredo natural de Deus, segundo o qual ele é incompreensível a todos. Mas se entendermos também que o céu é a palavra da teologia e que o abismo é o mistério da economia, em minha opinião não estaremos desprovidos de razão. Pois ambos são dificilmente acessíveis aos que buscam encontrá-los apoiando-se em demonstrações. Ao contrário, aquilo que sondamos aqui é totalmente inacessível sem a fé.
37. No monge ativo, o Verbo, alimentado pelos modos das virtudes, torna-se carne. No contemplativo, refinado pelos pensamentos espirituais, ele se torna aquilo que no começo era Deus o Verbo junto ao Pai.
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38. Aquele que, por exemplos e palavras sólidas, cumpre o ensinamento moral do Verbo na medida em que os que o escutam são capazes de receber, faz do Verbo carne. Mas aquele que, pelas altas contemplações, expõe a teologia mística, faz Verbo o Espírito.
39. Quem busca a Deus pela afirmação, a partir daquilo que se coloca, faz do Verbo carne: ele não conhecerá a Deus como Criador senão nas coisas visíveis e palpáveis, Mas quem procura a Deus pela negação, a partir daquilo que rejeita, torna o Verbo Espírito, tal como era Deus no começo: por não partir de algo conhecido, ele conhece como se deve Aquele que é mais do que desconhecido.
40. Quem aprendeu com os Patriarcas a cavar pela ação e a contemplação o poço das virtudes e do conhecimento que estão em si, encontrará lá dentro a Cristo, a fonte da vida, à qual a Sabedoria nos ordena beber quando diz: “Beba a água dos seus vasos e da fonte dos seus poços”. Se fizermos isto, encontraremos dentro de nos seus verdadeiros tesouros.
41. Aqueles que vivem apenas para os sentidos, como animais, fazem do Verbo carne fora de toda certeza. Para servir às suas paixões, eles abusam das criaturas de Deus e não consideram que a palavra de sabedoria foi manifestada a todos para que Deus seja conhecido e glorificado a partir de suas criaturas, e para que eles compreendam de onde, porque, no que e aonde vieram para se deixar conduzir pelo visível. Mas, atravessando este século nas trevas, eles tateiam com as duas mãos por causa da sua total ignorância de Deus.
42. Aqueles que se acomodam junto a uma única sentença da santa Escritura e que, pelo culto corporal da lei, entravam a dignidade da alma, fazem por si sós carne do Verbo, de maneira censurável, pensando agradar a Deus com o sacrifício de animais sem razão. Eles estão demasiadamente ocupados com seus corpos submetendo-os a purificações exteriores. Mas eles negligenciaram a beleza de suas almas marcadas pelo peso das paixões, estas almas pelas quais foi suscitada toda a potência do visível e pelas quais foram dadas todas as sentenças e todas as leis divinas.
43. O Senhor será causa da queda e da ressurreição de muitos em Israel, diz o santo Evangelho. Consideremos então que ele será causa de queda para aqueles que, apenas em função dos seus sentidos, contemplam a criação visível e seguem não mais do que a letra da santa Escritura, porque em seu devaneio não conseguem caminhar em direção ao Espírito novo da graça; e ele será causa de ressurreição dos que, espiritualmente, contemplam as criaturas de Deus, escutam suas palavras e, pelos meios convenientes, velam pela imagem divina da alma.
44. Que o Senhor seja causa da queda e da ressurreição de muitos em Israel significa, num sentido unicamente louvável: pela queda das paixões e dos pensamentos maus em cada um dos que creem, e pela ressurreição das virtudes e de todo pensamento agradável a Deus.
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45. Quem acha que o Senhor é apenas o Criador dos seres que existem no devir e na corrupção não o conhece, vendo nele o jardineiro, como Maria Madalena. É por isso que, para seu bem, o Mestre evita o contato com tal homem. Ele lhe diz: “Não me toque”, pois ele ainda não é capaz de segui-lo até o Pai. Ele sabe que quem chega a ele presumindo-o menor do que ele é faz mal a si próprio.
46. Aqueles que chegaram da Galileia e que, por medo dos judeus, fecharam as portas e se reuniram no andar superior, colocaram-se, por medo dos espíritos do mal, ao abrigo nas alturas das contemplações divinas e fecharam seus sentidos como se fecham as portas, e receberam Deus o Verbo de Deus, que chegou a eles sem que eles saibam como, que lhes aparece fora da percepção dos sentidos, que lhes concede a impassibilidade pela paz, que pelo sopro partilha com eles o Espírito Santo, que lhes concede o poder de expulsar os maus espíritos e lhes mostra os símbolos de seus mistérios.
47. Para os que buscam conhecer na carne o Verbo de Deus, o Senhor não sobe para o Pai. Mas para aqueles que procuram pelas altas contemplações no Espírito, ele sobe para o Pai. Assim, não mantenhamos continuamente em baixo Aquele que, para nós, veio até aqui, em seu amor pelo homem, mas acompanhemo-lo até o alto, subindo com ele até o Pai, deixando a terra e as coisas da terra, a fim de que ele não diga, também a nós, aquilo que ele disse aos judeus que não se deixaram conduzir: “Aonde eu vou, vocês não podem ir”. Pois sem o Verbo, é impossível chegar ao Pai do Verbo.
48. A terra dos Caldeus é a vida passional, na qual são fabricados e adorados os ídolos do pecado. A Mesopotâmia – o país entre dois rios – é o modo que se mantém em meio aos dois contrários. A terra prometida é o estado cheio de todo o bem. Como é possível que, conforme o antigo Israel, alguém negligencie esta condição e seja novamente atraído pela escravidão das paixões, privado da liberdade que lhe foi concedida?
49. Devemos notar que nenhum dos santos desceu de vontade própria à Babilônia. Pois não é permitido – e não por causa de uma inteligência racional – que os que amam a Deus escolham o pior em detrimento do bem. Mas se alguns deles foram forçados a descer para junto do povo, consideramos que ao fazer isto, não fundamentalmente mas acidentalmente, por causa da salvação daqueles que precisam ser conduzidos, eles deixaram a razão mais elevada do conhecimento e seguiram o ensinamento relativo às paixões, segundo o qual o próprio Apóstolo considerava ser mais útil permanecer na carne, ou seja, no ensino ético dado aos discípulos, embora ele desejasse terminar com este ensino ético para estar junto a Deus, pela simples contemplação do intelecto, além do mundo.
50. Assim como o bem-aventurado Davi aliviava com sua harpa a Saul que estava atormentado pelos maus espíritos, também toda palavra espiritual, cheia da doçura que lhes dá a contemplação gnóstica, alivia o intelecto agredido, libertando-o a má consciência que o atormenta.
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51. Aquele cuja palavra cheia de conhecimento brilha tanto quanto a claridade de sua vida em Deus é ruivo e possui belos olhos, como Davi. É desta claridade e deste conhecimento que nascem a ação e a contemplação. Uma é iluminada pelos modos das virtudes, outra é iluminada pelos pensamentos divinos.
52. O reino de Saul é a imagem do culto corporal da Lei, que o Senhor aboliu uma vez que este culto não levava ninguém à perfeição De fato, foi dito que a Lei não conduzia ninguém à perfeição. Mas o reino do grande Davi prefigura o culto evangélico, porque ele encerra em si perfeitamente as vontades do coração de Deus.
53. Saul representa a lei natural que, de início, recebeu do Senhor o domínio da natureza. Uma vez que ele transgrediu o mandamento pela desobediência, poupando Agag, rei de Amalek – ou seja, o corpo – e se deixando levar pelas paixões, ele foi expulso do reino para que Davi se encarregasse de Israel. Davi representa a lei do Espírito, que engendra a paz, que constrói para Deus em plena luz o templo da contemplação.
54. O nome de Samuel significa obediência a Deus. Portanto, enquanto a palavra obediente foi pregada entre nós, ainda que Saul poupe Agag, ou seja, os cuidados terrestres, esta palavra – o sacerdote – o matará com seu ardor ciumento: ela bate e confunde o intelecto pecador, quando ele transgrede os julgamentos divinos.
55. Quando o intelecto, opondo-se em seu orgulho à palavra que o treinou e o untou para a luta contra as paixões, cessa de interrogar numa busca conveniente aquele que poderia lhe dizer o que fazer e o que evitar, em sua ignorância ele tomba inteiramente na mão das paixões. Por intermédio destas, em parte separado de Deus, ele avança em meio a dificuldades involuntárias, divinizando o ventre sob a ação dos demônios e pretendendo nele encontrar o consolo das coisas que o angustiam. Convença-se pelo exemplo de Saul, quando este se recusou a receber a Samuel para que este o aconselhasse em tudo, destruindo a si mesmo votando-se à idolatria e interrogando a necromancia ventríloqua, como se esta fosse um deus.
56. Quem, em suas orações, pede para receber o “pão que vem”, não recebe este pão inteiramente, tal como ele é, mas apenas como ele próprio é capaz de concebê-lo. Pois, em seu amor pelo homem, o pão da vida se dá a todos os que o pedem. Porém ele não se dá da mesma maneira a todos, mas primeiro aos que fizeram grandes obras de justiça, e menos aos que fizeram menos. Ele se dá a cada um conforme aquilo que o estado de seu intelecto é capaz de conceber.
57. O Senhor tanto parte para longe como permanece por perto. Quando o contemplamos face a face, ele permanece próximo; quando o contemplamos num espelho e através de enigmas, ele parte para longe.
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58. No monge ativo, o Senhor reside pelas virtudes. Mas ele abandona aquele que em nada cumpre com a virtude. Da mesma forma, no contemplativo, ele reside pelo verdadeiro conhecimento dos seres. Mas ele o abandona se este se desviar dele em alguma coisa.
59. Quem passa do estado ativo para o estado gnóstico despede-se da carne, como que arrastado para as nuvens pelos pensamentos mais elevados, para o espaço diáfano da contemplação mística, aonde ele sempre poderá estar com o Senhor. Mas abandona o Senhor quem não é capaz, com um intelecto puro e sem a energia dos sentidos, contemplar na medida do possível os pensamentos de Deus, e que não abraça a razão simples, sem enigmas, relativa ao Senhor.
60. O Verbo de Deus é chamado de carne, não apenas porque ele se encarnou, mas também porque, tendo sido concebido desde o começo simplesmente como Deus o Verbo junto a Deus Pai, e trazendo em si os signos claros e nus da verdade relativa às coisas, ele não carrega consigo nem parábolas, nem enigmas, nem histórias que tenham necessidade de alegorias. Mas uma vez que ele veio para viver com os homens, que não são capazes de alcançar com o intelecto nu o espiritual nu, falando das coisas que lhes eram habituais, assumindo a variedade das histórias, dos enigmas, das parábolas e das sentenças obscuras, ele se fez carne. Pois, em seu primeiro movimento, nosso intelecto não se aplica a uma sentença nua, mas a uma sentença encarnada, ou seja, feita de uma variedade de palavras: sentença verdadeira por natureza, mas carne na aparência, de modo que a maioria crê não ver mais do que a carne, mesmo que, em verdade, esteja ali uma sentença. A inteligência da Escritura não é o que aparece para a maioria, mas outra, contra as aparências. Pois, através de cada palavra escrita, é a sentença que se faz carne.
61. A instrução dos homens que buscam adquirir a piedade começa naturalmente pela carne. Pois no primeiro movimento que nos leva a venerar a Deus, nós nos confiamos à letra, não ao Espírito. Mas quando avançamos parcialmente no Espírito e limamos a espessura das palavras em buscas mais e mais refinadas, nos tornamos puros num Cristo puro (na medida em que isto é possível aos homens) a ponto de podermos dizer com o Apóstolo: “Mesmo que tenhamos conhecido a Cristo na carne, já não é assim que o conhecemos agora”. Vale dizer, que o conhecemos pelo simples movimento do intelecto em direção à palavra, sem aquilo que a recobre, uma vez que, conhecendo o Verbo na carne, progredimos no caminho da glória que ele possui de seu Pai, como Filho único.
62. Quem viveu a vida em Cristo, ultrapassou a justiça da Lei e da natureza. É o que nos mostra o Apóstolo divino quando diz: “Em Jesus Cristo não há circuncisão nem incircuncisão”. Por circuncisão ele entende a justiça da Lei; por incircuncisão, ele alude à igualdade que visa a lei natural.
63. Alguns nascem de novo pela água e pelo Espírito; outros recebem o batismo no Espírito Santo e no fogo. Eu considero que estas quatro coisas – a água e o Espírito, o Espírito Santo e o fogo – são o único e mesmo Espírito de Deus. Para uns o Espírito Santo é água, pois ele lava as manchas exteriores do corpo; para outros ele é Espírito, pois coloca em ação os bens da virtude. Para outros ainda ele é fogo, pois purifica as marcas interiores profundas da alma. Para outros, enfim, conforme o grande Daniel, ele é
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Espírito Santo, pois dispensa a sabedoria e o conhecimento. Com efeito, é devido à diferença das atividades conforme às condições que o único e mesmo Espírito recebe diferentes nomes.
64. A Lei prescreveu o sábado para que repousem o animal de carga e o servidor. Estes dois nomes, por enigmas, designam o corpo. Pois o corpo é um animal submetido ao intelecto ativo, e que os modos das virtudes votadas à ação obrigam pela força a carregar fardos. E ele é o servidor do contemplativo, pois daí em diante ele está submetido à razão pela contemplação e está, pela razão, a serviço das ordens gnósticas do intelecto. Nos dois – na besta de carga e no servidor – é sábado para os que colocam mãos à obra no cumprimento dos bens conformes à ação e à contemplação, e este sábado concede a cada um o repouso que lhe convém.
65. Quem conduz bem a virtude, com o conhecimento apropriado, faz do corpo uma besta de carga: pela razão, ele engaja-se a agir como se deve. E ele torna servidor o modo de agir que leva à virtude, ou seja, este modo pelo qual a virtude se forma naturalmente e que recebe sua paga, como se fosse em dinheiro, em pensamentos que discernem. Enfim, o sábado é a condição impassível e apaziguada da alma e do corpo suscitada pela virtude, ou seja, o estado imutável.
66. Para aqueles que ainda estão às voltas com os cuidados para com as formas corporais da virtude, a palavra de Deus se torna a palha e o feno que alimentam a parte passional da alma a serviço das virtudes. Mas para os que chegaram a contemplar a verdadeira inteligência do divino, ela é como o pão que alimenta a parte espiritual da alma em vista da perfeição semelhante a Deus. É por isso que encontramos os Patriarcas provisionando pão para si mesmos e forração para suas mulas. E no livro dos Juízes, o levita diz ao ancião que o acolheu em Gabaon: “Temos pão para nós e palha para nossas mulas. Seus servidores não deixaram faltar nada”.
67. A palavra de Deus é chamada – e é – orvalho, água, fonte e rio, como está escrito. Ela é e se torna estas coisas, conforme o poder que ela dá aos que a recebem. Para uns, ela é orvalho, pois ela extingue a inflamação e a energia das paixões que, desde fora, cercam o corpo. Para outros, que estão profundamente queimados pelo veneno da malícia, ela é água, não apenas porque a destrói com sua aversão pelo inimigo, mas também porque transmite um poder vital em vista do bem estar. Para aqueles nos quais jorra inesgotavelmente o estado de contemplação, ela é uma fonte, porque distribui a sabedoria. Para os que espalham como ondas o ensinamento piedoso, reto e salutar, ela é um rio, pois ela provê com abundância os homens, os animais, as feras e as plantas, a fim de que os homens sejam deificados, elevados pelo sentido do que é dito; que aqueles que se tornaram como animais sob o efeito das paixões, humanizados pelo cumprimento rigoroso dos modos da virtude, redescubram a arte natural de falar; que os que se tornaram como feras sob o efeito dos maus hábitos e das malfeitorias, domados pela exortação amável e suave, retornem à doçura da natureza; e que os que são insensíveis como as plantas, refinados pela leitura em profundidade da palavra tomem conhecimento de sua qualidade, esta qualidade que as nutre, a fim de alcançar a fertilidade e a potência.
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68. O Verbo de Deus é o caminho para aqueles que, levando a vida ativa, correm bem e virtuosamente sobre a estrada da virtude, que não se desviam nem para a direita pela vanglória, nem para a esquerda para as paixões, mas que, seguindo a Deus, dirigem retamente seus passos. Diz-se que Asa, rei de Judá, que não havia observado este mandamento, sofreu dos pés em sua velhice, pois havia se esgotado percorrendo o caminho da vida em Deus.
69. O Verbo de Deus é chamado de porta, pois ele conduz ao conhecimento aqueles que bem percorreram todo o caminho das virtudes engajando-se na via irretocável pela ação, e também porque ele mostra como uma luz os tesouros resplendentes da sabedoria. Pois e mesmo Verbo é caminho, porta, chave e Reino. Ele é caminho, porque guia; ele é chave, porque abre, e ele se abre aos que são dignos do divino; ele é porta, porque deixa entrar; e ele é Reino, porque é herdeiro, e está em todos por participação.
70. O Senhor é chamado de luz, vida, ressurreição e verdade. Ele é luz, porque é o esplendor das almas, dissipa as trevas da ignorância, esclarece o intelecto para que ele compreenda as coisas ocultas e revela os mistérios somente visíveis aos puros. Ele é a vida, pois ele dá o movimento que convém às almas, quando estas amam o Senhor nas coisas divinas. Ele é a ressurreição, pois afasta do pendor morto pelas coisas materiais o intelecto purificado de toda corrupção e de toda mortalidade. E ele é verdade, pois concede aos que são dignos o conhecimento do estado imutável dos bens.
71. Deus Verbo de Deus Pai existe misticamente em cada um de seus próprios mandamentos. Deus Pai é inteiramente inseparável: ele está naturalmente inteiro em seu Verbo. Portanto, quem recebe o mandamento divino e o cumpre, recebe o Verbo de Deus presente no mandamento. E quem, pelos mandamentos, recebe o Verbo, através dele recebe o Espírito que está naturalmente nele. Pois foi dito: “Amém, eu lhes digo, aquele que recebe a quem eu enviei recebe a mim, e aquele que me recebe, recebe Aquele que me enviou”. Portanto, aquele que recebeu e cumpriu com um mandamento, recebeu e traz em si misticamente a Santa Trindade.
72. Quem não venera a Deus apenas em palavras, mas em nome da virtude suporta por Deus os sofrimentos e as penas, glorifica a Deus em si mesmo. m toca, ele é glorificado pelo Deus da glória que está nele, e obtém por participação a graça da impassibilidade, como recompensa da virtude. Pois quem quer que glorifique a Deus em si mesmo pelos sofrimentos suportados pela virtude, depois de ter levado a vida ativa, será glorificado em Deus pela impassibilidade dos esplendores divinos na contemplação. De fato, quando chegou à Paixão, o Senhor disse: “Agora, o Filho do homem foi glorificado, e Deus foi glorificado nele. Deus o glorificará nele, e logo ele o glorificará”. Assim, fica claro que os carismas divinos seguem-se aos sofrimentos que suportamos pelas virtudes.
73. Na medida em que vemos no texto da sagrada Escritura, de diversas maneiras e através de diferentes enigmas, o Verbo de Deus encarnado, ainda não contemplamos em espírito o Pai incorpóreo, simples, uno e único, tal como ele está no Filho incorpóreo, simples, uno e único, como diz o Evangelho: “Quem viu a mim, viu ao Pai” e “Eu estou no Pai e o Pai está em mim”. É preciso muita ciência para, fugindo dos véus
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que rodeiam a trama das palavras, contemplar com o intelecto nu o Verbo puro, tal como ele está em si mesmo, mostrando em si o Pai tão claramente como aos homens é possível compreende-lo. É por isso que é necessário que quem busca a Deus piedosamente não seja dominado por nenhuma palavra, a fim de, mesmo involuntariamente, não tomar Deus pelas coisas que o cercam, ou seja, afeiçoando-se perigosamente às palavras da Escritura em lugar do Verbo. É que o Verbo, então, escapa ao intelecto, que acredita agarrá-lo pela vestimenta, a ele que é incorpóreo, como o Egípcio que agarrou, não José, mas suas roupas, e como os homens antigos que, detendo-se diante da única beleza que viam, adoravam a criação em lugar do Criador.
74. Quando despojadas da composição de palavras que são corporalmente modeladas sobre si, as sentenças da sagrada Escritura, segundo os mais elevados pensamentos, é como o sussurro de uma brisa leve que se revela ao intelecto mais clarividente. Por estar inteiramente desembaraçado das energias da natureza, este pode perceber a simplicidade única de certo modo indicada pela sentença, tal como o grande Elias que, na caverna de Horeb, foi considerado digno desta visão. Horeb quer dizer “terra em repouso”: trata-se do estado virtuoso no Espírito novo da graça. A caverna é o lugar escondido da sabedoria segundo o intelecto, sabedoria na qual aquele que a recebe sentirá misticamente o conhecimento que ultrapassa os sentidos, este conhecimento do qual se diz que nele se encontra a Deus. Assim quem quer que busque verdadeiramente a Deus, como o grande Elias, não apenas chegará a Horeb, ou seja, atingirá o estado virtuoso como um monge ativo, como também encontrar-se-á na caverna que está sobre Horeb, ou seja, será como o contemplativo no lugar oculto da sabedoria, que só se encontra no estado virtuoso.
75. Quando o intelecto se desembaraçou das numerosas opiniões que lhe foram impostas a respeito dos seres, então a palavra da verdade lhe surge clara, dando-lhe os fundamentos do verdadeiro conhecimento e expulsando os antigos preconceitos que o recobriam como escamas impedindo a visão, tal como aconteceu com o grande e glorioso apóstolo Paulo. Pois as escamas na verdade são colocadas sobre a clarividência da alma e impedem sua passagem para a palavra pura da verdade: elas representam os pré-julgamentos relativos à simples letra da Escritura, e as percepções do visível misturadas à paixão dos sentidos.
76. O divino apóstolo Paulo diz que só conhecemos o Verbo em parte. Mas o grande evangelista João afirma que viu sua glória: pois “nós vimos sua glória, disse ele, a glória que ele partilha com o Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade”. Mas são Paulo diz que jamais conheceu o Verbo de Deus senão em parte. O Verbo, de certo modo, não é conhecido a não ser a partir das energias. Pois o conhecimento do Verbo segundo a essência e a hipóstase é inacessível tanto aos anjos como aos homens, e ninguém o possui. Mas são João, iniciado na palavra perfeita da encarnação do Verbo entre os homens, diz que ele contemplou a glória na carne da palavra, ou seja, no Verbo, e portanto viu o objetivo pelo qual Deus se fez homem, cheio de graça e de verdade. Pois o Filho único não foi cheio de graça por ser Deus em essência e consubstancial a Deus Pai. Mas por ter tomado a natureza do homem pela economia ele se fez consubstancial a nós, e por isso foi cheio de graça por nós que precisamos da graça, e que a recebemos de sua plenitude continuamente e proporcionalmente à medida de nosso progresso. Assim, aquele que guardar inviolável em si mesmo a palavra perfeita portará, cheio de graça e de verdade, a glória de Deus o Verbo que se encarnou por nós, e que glorificou e santificou a si mesmo em nossa natureza, quando de sua vinda. Com efeito, foi dito: “Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele”.
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77. Na medida em que a alma passa de potência em potência e de glória em glória, ou seja, na medida em que ela progride mais e mais de virtude em virtude, elevando-se sempre de conhecimento em conhecimento, ela não deixa de ser estrangeira, conforme foi dito: “Minha alma viveu muito no estrangeiro”. Com efeito, é grande a distância e grande o número de conhecimentos pelos quais é preciso passar até alcançar o lugar da moradia maravilhosa, a casa de Deus, dentre os cantos de júbilo e de louvor e os ecos da festa, acrescentando sempre um canto espiritual aos cantos espirituais, na medida do progresso das contemplações divinas, regozijando-se em seu intelecto com o que ele contempla, ou seja, vivendo na alegria e na gratidão que lhe corresponde. Estas festas são celebradas por todos aqueles que receberam o Espírito da graça em seus corações, clamando: “Abba, Pai!”.
78. O lugar da moradia maravilhosa é o estado impassível e íntegro das virtudes, no qual aquele que se ornou palavra de Deus ornamenta a alma, como uma tenda, com as diferentes belezas das virtudes. A casa de Deus é o conhecimento formado pelas numerosas e diferentes contemplações, a partir das quais Deus, vindo habitar na alma, enche o cálice da sabedoria. O canto de júbilo é o salto que a alma dá diante da riqueza das virtudes. O canto de louvor é a ação de graças à glória do festim da sabedoria. E o eco é a contínua glorificação mística da mistura de ambos, ou seja, do júbilo com o louvor.
79. Quem lutou nobremente contra as paixões do corpo, que combateu como convém os espíritos impuros e que expulsou do país de sua alma seus pensamentos, deve rezar para que lhe seja concedido um coração puro e que em seu corpo seja restaurado um espírito firme, ou seja, para que ele seja perfeitamente despojado dos falsos pensamentos, que se encha de pensamentos divinos pela graça, a fim de se tornar um mundo espiritual de Deus, luminoso e grande, nascido das contemplações éticas, físicas e teológicas.
80. Quem purificou seu coração não apenas conhecerá as razões daquilo que aconteceu depois de Deus, mas também, de certa maneira, verá o próprio Deus depois da passagem de todas as coisas: aquilo que é o fim último dos bens. Vindo a um tal coração, Deus o tornará digno de gravar pelo Espírito as mesmas letras que foram gravadas sobre as tábuas de Moisés, na medida em que este coração estiver dilatado pela ação e pela contemplação, conforme o mandamento que ordena misticamente: “Crescei!”.
81. Um coração que pode ser chamado de puro é o que não apresenta de nenhum modo nenhum movimento em direção a seja lá o que for. Penetrando nele, como sobre uma folha que a extrema simplicidade tornou completamente lisa, Deus escreve suas próprias leis.
82. Um coração é puro quando remete a Deus sua memória totalmente despojada de qualquer forma ou imagem, pronta para ser marcada apenas com os sinais com que Deus se faz naturalmente visível.
83. O Intelecto de Cristo que os santos recebem – conforme o que foi dito: “Temos o intelecto de Cristo” – não é dado quando a potência espiritual nos falta, nem para completar nosso próprio intelecto, nem para
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passar com a essência e a hipóstase para outro intelecto, mas para iluminar a potência de nosso intelecto com sua própria qualidade, e para levá-la até ele a fim de que o nosso adquira a mesma energia. Está aí, com efeito, posso dizê-lo, o que significa ter o intelecto de Cristo, intelecto que compreende segundo ele e que o compreende em tudo.
84. Somos chamados de corpo de Cristo, conforme o que foi dito: “Somos o corpo de Cristo e cada qual é um de seus membros”. Não é privando-nos de nossos corpos que nos tornamos este corpo. Também não é porque ele se transporta a nós em sua hipóstase, ou porque ele se divida em seus membros. Nós nos tornamos este corpo em nos desembaraçando da corrupção do pecado pela semelhança com a carne do Senhor. Pois assim como Cristo estava livre do pecado, pela carne e pela alma, segundo a natureza e na medida em que podemos considerar que ele é homem, também nós, que cremos nele, podemos ficar sem pecado.
85. Existem na Escritura séculos temporais. E existem séculos que contêm o cumprimento de outros séculos, conforme foi dito: “Agora, de uma vez por todas, até o final dos tempos, etc.” Existem ainda outros séculos que estão livres de qualquer natureza temporal após este século presente que vai até o fim dos séculos, conforme foi dito: “A fim de mostrar nos séculos futuros a extraordinária riqueza”, etc. Encontramos na Escritura uma multitude de séculos passados, presentes e futuros. Alguns são séculos dos século, século do século, anos eternos, gerações futuras. E para não alongar o discurso e sair do objeto dizendo o que a palavra de Deus entende como séculos temporais, o que ele entende como anos eternos e como gerações futuras, e o que ele chama simplesmente de século, e quais são os séculos dos séculos, e o que é chamado simplesmente século do século, deixando o cuidado de examinar o que concerne a estas coisas aos que amam aprender, voltemos ao objetivo que tínhamos em vista quando começamos a falar.
86. Sabemos pela Escritura que existe alguma coisa mais elevada do que o século. A Escritura sinalizou que esta coisa existe, mas ela não deu nome a esta coisa, conforme está escrito: “O Senhor reinará no século e sobre o século”. Existe, portanto, alguma coisa que é mais elevada do que os séculos, que é o puro Reino de Deus. Pois não se pode dizer que o Reino de Deus começou, ou que ele se manifestou nos séculos ou no tempo. Nós cremos que o Reino de Deus é a herança, a moradia, o lugar dos que se salvam, como foi transmitido pela verdadeira palavra, tal como o fim daqueles que por seu movimento foram transportados ao fim último daquilo que desejavam: quando o atingiram, eles receberam o repouso, a detenção de todo e qualquer movimento, uma vez que para eles já não havia nenhum tempo, nenhum século a percorrer. Assim, depois de todas as coisas eles chegaram a Deus, que está antes de todos os séculos e a quem a natureza dos séculos é incapaz de atingir.
87. Enquanto estamos nesta vida, mesmo que pela ação e pela contemplação exista um fim do estado daqui de baixo, temos um conhecimento parcial, a profecia, as garantias do Espírito Santo, mas não temos a plenitude em si. Chegaremos aí um dia, depois da consumação dos séculos, no fim perfeito face a face, que mostra aos que são dignos esta verdade que se mantém por si mesma, de sorte que não teremos mais uma parte da plenitude, mas, por participação, a plenitude da graça por inteiro. Pois todos os salvos, diz o Apóstolo divino, alcançam o estado do homem perfeito, à medida da plenitude de Cristo, em que estão
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escondidos os tesouros da sabedoria e do conhecimento, por intermédio dos quais, no momento de sua manifestação, desaparecerá tudo o que é parcial.
88. Alguns tentam saber qual será o estado daqueles que são dignos da perfeição no Reino de Deus. Qual dos dois prevalecerá? Haverá progressão e mudança, ou identidade imóvel? O que serão os corpos e as almas? Que devemos pensar disto? Responderemos a isso com uma dupla conjectura, dizendo que o alimento, na vida corporal, tem uma dupla razão de ser: uma é o crescimento, outra é a conservação dos que se alimentam. Pois até que alcancemos a perfeição do desenvolvimento corporal, nos alimentamos para crescer. Mas quando o corpo atingiu seu pleno desenvolvimento em tamanho, ele já não se alimenta para crescer, mas para se conservar. Da mesma forma, na alma, a razão da alimentação é dupla. Pois a alma se alimenta para progredir nas virtudes e nas contemplações, até que tenha ultrapassado a todos os seres e atinja, na força da idade, a medida da plenitude de Cristo. Aí chegando, ela cessa toda progressão no crescimento e no desenvolvimento através de meios: ela passa a se alimentar diretamente daquilo que ultrapassa o entendimento. É por isso que esta espécie de alimento incorruptível, mais elevado do que o crescimento, conserva a perfeição divina que foi dada à alma e manifesta seus infinitos esplendores. Pois, ao tomar tal alimento, a alma recebe o bem estar eterno, sempre igual, e se torna Deus pela participação na graça divina. Ela mesma acabou com todos os assuntos do intelecto e dos sentidos, deteve em si as energias naturais do corpo, agora deificado nela participando de sua deificação no modo que lhe corresponde. Assim Deus aparece através da alma e do corpo quando, neles, pela superabundância da glória, são transportadas as marcas naturais.
89. Alguns dos que amam aprender buscam saber qual será a diferença entre as moradias eternas e as promessas. Qual das duas prevalecerá? O próprio lugar? Ou os sentidos da qualidade e da quantidade próprios a cada moradia espiritual? Para uns, parece ser a primeira, a outros a segunda. Optará por esta aquele que sabe o que significa: “O Reino de Deus está em vocês” e “A casa de meu Pai tem muitas moradas”.
90. Alguns procuram saber a diferença que existe entre o Reino de Deus e o Reino dos céus. Eles se diferenciam pela realidade ou pelo sentido? Por qual dos dois? Devemos dizer-lhes que eles se diferenciam não pela realidade, mas pelo sentido. Pois o Reino dos céus é a compreensão do puro conhecimento dos seres segundo suas próprias razões, conhecimento que já estava em Deus antes dos séculos. E o Reino de Deus é a transmissão pela graça dos bens naturalmente ligados a Deus. Um está relacionado com o fim dos seres. O outro, pelo sentido, está além do fim dos seres.
91. “O Reino dos céus está próximo” não se relaciona, penso eu, com um encerramento dos tempos. Pois o Reino não virá de maneira que o possamos observar, e não poderemos dizer: “Ele está aqui, ele está lá”, mas ele está ligado à relação que têm com ele os que dele são dignos, por seu estado. De fato, foi dito: “O Reino de Deus está em vocês”.
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92. O Reino de Deus Pai está potencialmente em todos os que creem. Mas ele age nos que, por seu estado, depositaram totalmente toda a vida da alma e do corpo segundo a natureza, adquiriram a vida única no Espírito e podem dizer: “Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim”.
93. Alguns dizem que o Reino dos céus é a vida que no céu vivem aqueles que são dignos. Outros dizem que ela é a condição dos que foram salvos, semelhante à dos anjos. Para outros enfim ela é esta forma de beleza divina que têm os que trazem a imagem do celeste. Parece-me que as três opiniões concordam com a verdade sobre este ponto. Pois a graça futura é dada a todos, na medida da justiça que existe em cada um, em qualidade e quantidade.
94. Na medida em que conduzimos corajosamente os combates divinos segundo a filosofia prática, trazemos em nós o Verbo que, pelos mandamentos, saiu do Pai para vir ao mundo. Mas quando nos afastamos das lutas da ascese contra as paixões, vencedores das paixões e dos demônios, alcançamos a filosofia gnóstica pela contemplação, permitimos que o Verbo deixe misticamente o mundo e retorne ao Pai. É por isso que o Senhor disse aos discípulos: “Vocês me amaram e acreditaram que eu saí do Pai. Eu saí do Pai e vim ao mundo; agora, novamente eu deixo o mundo para ir ao Pai”. Podemos dizer que ele chama de “mundo” o trabalho que temos em praticar a virtude, e que ele chama de “Pai” o estado do intelecto mais elevado do que o mundo e livre de qualquer pensamento material, este estado segundo o qual o Verbo de Deus vem a nós, detendo o combate contra as paixões e os demônios.
95. Aquele que, pela ação, matou seus membros que estão sobre a terra e venceu, pela palavra dos mandamentos, o mundo das paixões que existia em si, já não terá mais nenhuma aflição. A partir daí ele terá deixado o mundo e entrado em Cristo, que venceu o mundo das paixões e que dá toda a paz. Pois quem não abandona seu pendor pelas coisas materiais estará sempre aflito: ele muda de sentimento ao mesmo tempo em que as coisas mudam segundo a natureza. Mas quem entrou em Cristo já não sentirá nenhuma mudança material qualquer que seja. É por isso que o Senhor disse: “Eu lhes disse estas coisas para que vocês tenham paz em mim. Vocês serão afligidos pelo mundo, mas tenham coragem. Eu venci o mundo”. Vale dizer: em mim, o Verbo da virtude, vocês têm a paz, estão livres do turbilhão e da perturbação das paixões e das coisas materiais. Mas no mundo, ou seja, em seu pendor pelas coisas materiais, vocês serão afligidos por vê-las mudar umas depois das outras. Pois ambos são afligidos: o que trabalha pela virtude, por causa das penas a que está ligado, e o que ama o mundo, por causa da perda das coisas materiais. Mas a aflição do primeiro é salutar, e a do segundo é corruptora e funesta. Mas o Senhor é reconforto para os dois. Ele conforta a um si mesmo, durante a contemplação, pela impassibilidade. E ao outro ele liberta, pelo arrependimento, do pendor passional que o leva às coisas que se corrompem.
96. O libelo de acusação contra o Senhor nos ensina claramente que o crucificado era Rei e Senhor da filosofia prática, da natural e da teológica. Diz-se que a inscrição estava em latim, grego e hebraico. Eu entendo pelo latim a filosofia prática, pois o Império romano foi definido por Daniel como o reino mais forte de todos os que existiram sobre a terra, e a força é característica da filosofia prática. Entendo pelo grego a contemplação natural, pois o povo grego se ocupou da filosofia natural mais dos que os outros homens. Enfim, eu entendo pelo hebraico a iniciação gnóstica, pois este povo foi claramente consagrado a Deus desde a origem dos Patriarcas.
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97. Devemos não apenas eliminar as paixões corporais, como também destruir os pensamentos passionais da alma, conforme disse um santo: “De manhã eu eliminei todos os pecadores da terra, para extirpar da cidade do Senhor todos os que cometem injustiça”: vale dizer, as paixões do corpo e os pensamentos iníquos da alma.
98. Quem, por um pensamento piedoso e reto, guardou o caminho da virtude de todo o mal, sem se desviar para a direita nem para a esquerda, verá em si a chegada do Senhor, pela impassibilidade. Pois eu cantarei e compreenderei quando você vier a mim por um caminho irretocável. O Salmo significa, com efeito, a ação virtuosa. A compreensão significa a ciência gnóstica da virtude, pelo qual sentimos a chegada divina. E aquele que, pela vigília das virtudes, recebe seu Senhor, pode ser considerado fiel e bom.
99. Quem começa a marchar sobre o caminho da piedade não deve ser levado à prática dos mandamentos apenas pela bondade, mas acima de tudo deve combater lembrando-se dos mandamentos e cortando. Ele pode avançar, com a condição de não apenas amar o divino com todo seu desejo, mas de afastar-se do mal pelo temor. “Eu cantarei sua compaixão e seu juízo, Senhor”, a fim de cantar a Deus nas delícias do desejo, e de ter força para cantar, firmado no temor.
100. Quem, pela virtude e o conhecimento, entregou o corpo à alma, torna-se uma cítara, um templo, um pátio de Deus. Uma cítara, pois guardou a harmonia das virtudes. Um pátio, pois, pelas contemplações divinas, recebeu a inspiração do Espírito. E um templo, pois, devido à pureza do intelecto, tornou-se uma moradia do Verbo.
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TERCEIRA CENTÚRIA
CAPÍTULOS SOBRE A TEOLOGIA, A ECONOMIA, A VIRTUDE E O VÍCIO
1. Uno é o bem que, acima de tudo, não tem começo e é mais do que a essência: a Santa Unidade em três hipóstases, Pai, Filho e Espírito Santo. União infinita de três infinitos, mantendo totalmente inacessível ao seres a razão de ser: como ele é, o que ele é e quem ele é. Pois esta razão escapa à compreensão dos que pensam: ela não sai absolutamente da interioridade oculta segundo a natureza, e ela ultrapassa infinitamente todo conhecimento de todos os conhecimentos.
2. O bem em sentido próprio, em sua essência, é aquilo que não tem começo, nem fim, nem causa de ser, nem tampouco, no ser, qualquer movimento em direção a uma causa. O que não for assim não será em sentido próprio, pois terá um começo e um fim, uma causa de ser, e, no ser, um movimento em direção a uma causa. Aquilo que não é em sentido próprio, ainda que seja chamado de ser, é e será chamado de ser por participação, pela vontade d'Aquele que é em sentido próprio.
3. Se alguma razão dirige o devir dos seres, ela não foi, não é, nem será uma razão amis elevada do que o Verbo. O Verbo não é nem sem inteligência nem sem vida, mas é inteligente e vivo, pois ele traz em si o Pai que é o Intelecto gerador, e traz em si a vida cuja existência está realmente ligada ao Espírito Santo.
4. Existe um só Deus, Pai que engendra seu Filho, e que é a fonte do Espírito Santo, Unidade sem confusão e Trindade sem divisão, Intelecto que não tem começo, Pai único que engendra realmente o Verbo único que não tem começo, e fonte da única vida eterna, ou seja, o Espírito Santo.
5. Existe um único Deus, pois ele é a única Divindade: a Unidade que não tem começo, que é simples, mais do que essência, sem partes nem divisão. A mesma é Unidade e Trindade, etc.
6. Se toda participação dos que participam é pré-concebida, a causa dos seres que, por sua natureza, existe e é concebida antes dos seres, ultrapassa evidentemente e de todas as maneiras todos os seres, de forma clara e incomparável. Não porque ela seja a essência das criaturas, pois então o divino se revelaria composto, uma vez que ele precisaria da realidade dos seres para completar sua própria existência, mas porque ela é a supra-essência da essência. Se, com efeito, as artes imaginam as formas que constroem e se a natureza em seu conjunto inventou as espécies que ela suscita, quanto mais Deus que criou do nada as essências dos seres, ele que é mais do que essência e que, antes de tudo, está infinitamente além daquilo que o poderia estabelecer na supra-essência, ele que uniu as ciências e as artes para que estas inventem as
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formas, que deu à natureza a energia que lhe permite suscitar as espécies, e que fundou tal como é este ser das essências.
7. Aquele de cuja essência os seres não participam, mas que, de outra maneira, quer que os que podem dele participem, não sai absolutamente do segredo da essência. Assim como o mundo segundo o qual ele deseja ser partilhado e que ele sabe que permanece continuamente invisível a todos, também ele quer fundar o que participa, segundo uma razão que só ele conhece, no superabundante poder de sua bondade. Aquilo que foi feito pela vontade do Criador não pode ser eterno com Aquele que o quis.
8. O Verbo de Deus, nascido de uma vez por todas na carne, deseja sempre, por amor ao homem, nascer no Espírito naqueles que o desejam. Ele se torna criança, formando a si próprio neles pelas virtudes, revelando-se na medida em que ele sabe que o carrega aquele que o recebe, não diminuindo por ciúme a revelação de sua própria grandeza, mas medindo a potência dos que o querem ver. Assim, ao mesmo tempo em que ele se manifesta sempre aos modos daqueles que dele participam, o Verbo de Deus, em sua transcendência, permanece sempre invisível a todos. É por isso que, depois de haver examinado com sabedoria o poder do mistério, o divino Apóstolo disse: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre”. Ele sabia que o mistério é sempre novo e que jamais envelhece na compreensão do intelecto.
9. O Cristo Deus nasceu, tornou-se homem assumindo a carne que tem uma alma espiritual, ele que havia dado aos seres nascer do nada, e que a Virgem concebeu sobrenaturalmente sem perder nenhuma marca de sua virgindade. Pois assim como ele se tornou homem sem mudar a natureza e sem alterar a potência, também ele fez Mãe e manteve Virgem aquela que o concebeu. Ele explica o milagre com outro milagre, ao mesmo tempo em que esconde um com o outro. Pois em si mesmo Deus é sempre mistério em sua essência; ele não sai do segredo natural senão para torná-lo ainda mais secreto pela manifestação, e não fez da Virgem uma Mãe que concebe senão para gerar pela gestação os laços da virgindade impossíveis de romper.
10. As naturezas foram renovadas e Deus tornou-se homem. Não foi apenas a natureza divina, constante e imóvel, que se pôs em movimento em direção à natureza móvel e inconstante a fim de que ela cessasse de ser levada. E não foi apenas a natureza humana que, sem semente, mais elevada do que a natureza, cultivou uma carne levada a seu termo pela razão divina, a fim de deixar de ser levada. Mas foi também a estrela que em pleno dia apareceu no Oriente e conduziu os Magos ao local da encarnação do Verbo, a fim de dar significado à palavra que estava na Lei e nos Profetas, misticamente mais forte do que os sentidos, conduzindo as nações à imensa luz do conhecimento. Pois a palavra da Lei e dos Profetas tinha claramente em vista o conhecimento do Verbo encarnado, assim como a estrela, considerada com piedade, conduziu aqueles que, por desígnio de Deus, foram chamados pela graça.
11. Uma vez que eu, homem, transgredi voluntariamente o mandamento divino, e uma vez que o diabo, depois de haver-me seduzido, arrastou a firmeza de minha natureza para longe da esperança na divindade, para um prazer do qual ele se orgulharia – por colocar aí o fundamento da morte e por fazer suas delícias
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da corrupção da natureza – Deus tornou-se homem perfeito, sem nada omitir da natureza, salvo o pecado, pois este não pertence à natureza. Assim, depois de tê-lo atraído colocando a carne diante de si, ele atraiu o dragão insaciável que abriu sua bocarra para engolir esta carne, que o iria em seguida destruir pelo poder da divindade presente nela, ao mesmo tempo tornando-se remédio para a natureza dos homens, repondo a graça original pela mesma potência que foi colocada nela. Pois, assim como o diabo corrompeu a natureza quando esta provou do veneno da malícia presente na árvore do conhecimento, também ele se autodestruiu pelo poder da divindade presente na carne do Mestre.
12. O grande mistério da encarnação de Deus no homem permanece sempre um mistério, não apenas porque, revelado na medida em que o podem ver aqueles que foram salvos por ele, o que não foi visto é ainda maior do que o que foi revelado, mas porque até mesmo o que foi revelado permanece ainda totalmente oculto e não pode ser conhecido tal como é. Que isto que dizemos não pareça paradoxal! Com efeito, Deus, que é mais do que essência e que está acima de toda supra-essência, quando quis vir numa essência, existiu nela ao mesmo tempo em que permanecia acima dela. É por isso que ele permanece sempre acima do homem mesmo quando, em seu amor pelo homem, ele se tornou verdadeiramente homem a partir da essência dos homens, mas sem que fosse revelado o modo pelo qual ele se tornou homem, pois foi acima do homem que ele se tornou homem.
13. Consideremos com fé o mistério da encarnação de Deus no homem, e, acima de toda pesquisa, glorifiquemos apenas Aquele que por bem quis se tornar isto por nós. Quem, com efeito, baseado no poder de uma demonstração lógica, pode dizer como se fez a concepção do Verbo de Deus? Como pode uma carne se formar sem semente? Como nasceu ela sem corrupção? Como pode uma mãe permanecer virgem depois de engravidar? Como pode Aquele que está acima de tudo crescer em idade? Como pode ser batizado Aquele que era puro? Como alimentava os outros Aquele que tinha fome? Como dispunha de força Aquele que estava fatigado? Como dava remédios Aquele que sofria? Como suscitava a vida Aquele que morria? E, para falarmos do começo e do fim, como Deus se tornou homem? E o que é ainda mais misterioso, como ele pode estar essencialmente na carne, em sua hipóstase, o Verbo, que, em sua essência, estava inteiro hipostaticamente no Pai? Como o mesmo pode ser inteiramente Deus em sua natureza, tendo se tornado inteiramente homem em sua natureza, sem recusar nenhuma das naturezas, nem a divina, segundo a qual ele é Deus, nem a nossa, segundo a qual ele se tornou homem? Apenas a fé, que é o fundamento das coisas que ultrapassam o intelecto e a razão, pode abarcar tais mistérios.
14. Adão, com sua desobediência, ensinou que a gênese da natureza vem do prazer: mas, banindo a este da natureza, o Senhor não aceitou a concepção que vem da semente. A mulher, pela transgressão do mandamento, mostrou que a gênese da natureza começava na dor: mas, separando a esta da natureza, ao nascer, o Senhor não permitiu que aquele que o gerou sofresse a corrupção, a fim de retirar da natureza ao mesmo tempo o prazer voluntário e a dor involuntária sofrida por causa do prazer. Assim ele se tornou destruidor daquilo de que não era criador, e ensinou misticamente como começar resolutamente uma outra vida, que de início pode estar ligada ainda à dor e às penas, mas que em todo caso termina num prazer divino e num regozijo infinito. É por isso que Aquele que criou o homem tornou-se homem e nasceu como homem para salvar o homem, e fez-se paixão, para curar nossas Paixões com sua Paixão. Apagando deste modo, de nossa carne, nossas paixões, além de toda medida, ele renovou nossas faculdades no Espírito por seu amor pelo homem.
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15. Quem, por amor a Deus, venceu o pendor da alma pelo corpo, não tem mais limites, ainda que permaneça num corpo. Pois Deus, que atrai o ímpeto daquele que deseja, é incomparavelmente mais elevado do que tudo e não permite que aquele que deseja aplique seu ímpeto a qualquer coisa que esteja abaixo de Deus. Assim, desejemos a Deus como todo nosso poder e impeçamos as coisas do corpo de dominar nossa resolução. Por nosso estado, estejamos acima dos seres sensíveis e inteligíveis. Assim, os limites naturais não nos prejudicarão em absolutamente nada em nossa resolução de estarmos com Deus que, por sua natureza, é infinito.
16. A vida dura que os santos levam é um combate entre o ciúme e a virtude. O ciúme, para que este o arraste em seu amor pela disputa. A virtude para que, a tudo suportando, ela permaneça invencível. Um que conduz o combate do mal, para abrir para si um caminho para o castigo daqueles que progridem. A outra, para reter os bons, mesmo quando estes estão em meio aos sofrimentos.
17. Lutar durante as penas é o combate da virtude, e o prêmio da vitória dos que têm paciência é a impassibilidade da alma, na qual esta, unida a Deus pelo amor, se torna disposta para separar-se do corpo e do mundo. Pois tratar o corpo com dureza fortifica a alma dos que são pacientes.
18. Enganados de início pela ilusão do prazer, nós preferimos a morte à vida verdadeira. Assim é que experimentamos com gratidão as penas do corpo que destroem o prazer. Assim, à morte do prazer, fazendo desaparecer consigo a morte que havia suscitado, recebemos em troca, voltando para nós, a vida que havia sido vendida ao prazer resgatada pelos pequenos sofrimentos da carne.
19. Se, quando a carne é bem tratada, a força do pecado cresce, é claro que a força da virtude se eleva naturalmente e com todo direito quando a carne é maltratada. Portanto, suportemos nobremente a aflição da carne, que lava as manchas da alma e suscita a glória por vir. Pois os sofrimentos do tempo presente nada são comparados com a glória futura que irá se revelar em nós.
20. Nem os médicos que cuidam do corpo ministram a todos o mesmo remédio, nem Deus que cura as doenças da alma apresenta um mesmo tratamento que convenha a todos. Mas ao atribuir a cada alma aquilo que lhe é necessário, ele promove as curas. Rendamos-lhe graças, nós que somos assim curados, mesmo se o que nos acontecer for uma provação, pois o fim é bem-aventurado.
21. Nada revela tanto o estado do homem como as revoltas de uma carne duramente conduzida. Se a alma cede, parecerá que ela ama a carne mais do que a Deus. Se ela permanecer inquebrantável ante seus apelos, ela demonstrará honrar a virtude mais do que a carne. Pela virtude, ela receberá em si a moradia de Deus que por ela suportou os sofrimentos em nossa natureza, e que anunciou outrora aos discípulos: “Tenham coragem, eu venci o mundo”.
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22. Se todos os santos foram castigados, também nós rendamos graças por sermos castigados com eles, a fim de sermos julgados dignos de tomar parte em sua glória, pois “o Senhor castiga a quem ele ama, e fustiga todo filho a quem acolhe”.
23. Depois de recebido a costela que lhe proporcionou o prazer, Adão fez sair do Paraíso a natureza humana. Mas pelo sofrimento, com o flanco aberto pela lança, o Senhor fez entrar o ladrão no Paraíso. Portanto, amemos o sofrimento da carne, e odiemos o prazer. Pois o primeiro faz entrar e restabelece nos bens, enquanto o outro faz sair e separa dos bens.
24. Se Deus se tornou homem e sofreu na carne, quem não se regozijaria de dividir com Deus seu sofrimento? Sofrer com ele abre o Reino. Pois é verdade o que foi dito: “Se sofrermos com ele, também seremos glorificados com ele”.
25. Se devemos sofrer de qualquer modo por causa do prazer que o ancestral misturou à natureza, suportemos nobremente os sofrimentos passageiros, que amolecem em nós o aguilhão do prazer e nos livram dos castigos eternos aos quais este nos condena.
26. O amor é o fim de todos os bens, pois ele é o mais extremos dos bens que levam a Deus, e a causa de todo bem, conduzindo, dirigindo , reunindo os que caminham nele, ele que é fiel e não engana jamais. Pois a fé é o fundamento do que vem antes dela, ou seja, da esperança e do amor: ela toma sobre si com toda certeza o que é verdadeiro. A esperança é a força dos extremos, ou seja, do amor e da fé: ela revela por si mesma o que é fiel e o que é amoroso num e noutro, e para chegar a isto, ela ensina a correr por si própria. Quanto ao amor, ele é o cumprimento da fé e da esperança, a última virtude que desejamos: ele abraça inteiro a tudo, proporciona às duas virtudes a detenção do movimento, que leva a crer que ele é e a esperar que ele será, fazendo por si só gozar do presente.
27. A mais perfeita obra do amor e o cumprimento de sua energia por uma troca que mantém aquilo que ele uniu, consiste em adaptar uns aos outros os caracteres próprios e por em movimento as vocações: Deus criou o homem, e o homem se torna e mostra Deus, para que se cumpram o desígnio e o movimento únicos e semelhantes dos dois segundo a vontade divina.
28. Se somos de todo modo à imagem de Deus, devemos pertencer a nós mesmos e a Deus, ou melhor, devemos pertencer inteiramente a Deus único e inteiro, não trazendo conosco nada de terrestre, a fim de nos aproximarmos de Deus e nos tornarmos deuses, recebendo de Deus o sermos deuses. É assim que são honrados os dons divinos e que é acolhida com amor a chegada da paz de Deus.
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29. O amor é um grande bem, o primeiro dos bens, um bem extraordinário, pois ele une por si mesmo, naquele que o possui, Deus e os homens, e prepara o caminho sobre o qual o Criador dos homens se manifestou como homem, para que no bem, tanto quanto é possível ao homem, o deificado se assemelhe a Deus. Penso que por em movimento esta semelhança é o mesmo que amar ao Senhor Deus de todo coração, com toda a alma, toda a força, e ao próximo como a si mesmo.
30. É preciso saber como, com suas mentiras, por meio do egoísmo, com maledicência e hipocrisia, depois de nos ter enganado colocando em nós o prazer, o diabo resolutamente nos separou de Deus e separou-nos uns dos outros: ele entortou o que era direito e desta forma dividiu a natureza, e a picotou em numerosas opiniões e imaginações.
31. Existem três enormes coisas que são a fonte do mal e que, em uma palavra, engendram toda malícia: falo da ignorância, do egoísmo e da tirania. Estas três coisas dependem umas das outras e criam umas às outras. Com efeito, o egoísmo vem da ignorância de Deus, e a tirania em relação ao próximo vem do egoísmo. Nenhuma palavra contradirá: é pelo mau uso das potências próprias da razão, do desejo e do ardor, que o maligno fundou estas coisas em nós.
32. Pela razão, em ugar da ignorância, devemos nos por em busca apenas de Deus pela via do conhecimento. Pelo desejo que purifica a paixão do egoísmo, devemos nos transportar com todo nosso amor apenas para Deus. Pelo ardor desembaraçado da tirania, devemos nos esforçar para encontrarmos apenas a Deus. E devemos suscitar o amor divino e bem-aventurado que provém destas faculdades e graças ao qual elas existem, este amor que une a Deus e deifica aquele que ama a Deus.
33. Quando desenraizamos o egoísmo que, como eu disse, é a fonte e a mãe dos males, tudo o que vem dele, tudo o que vem depois dele é arrancado junto. Pois quando o egoísmo não existe, é impossível que haja o menor traço ou a menor espécie de malícia.
34. Devemos nos ligar a nós mesmos e uns aos outros na mesma medida em que Cristo, tomando a dianteira, nos mostrou por si mesmo, suportando sofrer por nós.
35. Pelo amor todos os santos se opuseram ao pecado, não fazendo caso algum da vida presente. Eles sofreram a morte de muitas maneiras, a fim de deixar o mundo, de se unirem a si mesmos e a Deus e de tapar em si as brechas da natureza. Esta é a verdadeira e irretocável sabedoria divina dos fiéis, esta sabedoria da qual a bondade e a verdade são o fim, se as marcas da caridade são a bondade do amor pelo homem e a verdade do amor a Deus na fé. Pois a sabedoria une os homens a Deus e os homens entre si. É por isso que ela traz consigo, sem falha, a permanência dos bens.
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36. O verdadeiro estado de benevolência voluntária para com o próximo é a energia e a prova do perfeito amor de Deus. Pois quem não ama a seu irmão a quem vê, diz o divino João, não pode amar a Deus a quem não vê.
37. O amor é o caminho da verdade. Ao dar este nome a si mesmo, o Verbo de Deus encaminha a Deus Pai, purificados de toda espécie de manchas, aqueles que andam no caminho da verdade.
38. Tal é a porta pela qual nos tornamos aquele que entra no Santo dos Santos e nos pomos a contemplar a beleza inacessível da Santa e Real Trindade.
39. É verdadeiramente terrível e além de toda condenação fazer morrer voluntariamente, por amor às coisas corrompíveis, a vida que recebemos de Deus pelo dom do Espírito Santo. Este é um temor conhecido daqueles que se aplicaram em preferir a verdade ao egoísmo.
40. Estejamos em paz quando se deve e, depois de rejeitarmos o amor que devíamos ao mundo e àquele que detém o mundo no mal, detenhamos, ainda que tardiamente, o combate que, por causa das paixões, mantemos contra Deus. E depois de termos concluído com ele a indissolúvel aliança pela paz, cessemos de lhe ser hostis, destruindo o corpo do pecado.
41. Nos é impossível unirmo-nos no amor a Deus enquanto, pelas paixões, nos revoltamos contra ele e suportamos pagar o tributo da malícia ao diabo, o tirano enganador e assassino das almas, a menos que sejamos primeiro combatidos pelo maligno. Até então, na medida em que queremos ser escravos das paixões da desonra, nos fazemos de inimigos de Deus e o combatemos, mesmo que nos atribuamos o nome de fiéis. De nada nos serve confiarmo-nos à paz do mundo, quando a alma está mal disposta, revoltando-se contra seu Criador e não suportando ser submetida a seu Reino. Pois ela permanece ainda tributária de mil mestres cruéis, que a empurram para o mal e a levam, enganando-a, a escolher o caminho que leva à perdição, mais do que à vida que pode salvar.
42. Deus nos criou para que nos comuniquemos com a natureza divina, para que tenhamos parte em sua eternidade e para que pareçamos semelhantes a ele na deificação que vem da graça, pela qual toda constituição dos seres é também permanência, e toda criação do que não existe é também devir.
43. Se desejamos ser chamados e sermos filhos de Deus, esforcemo-nos para não trair o Verbo pelas paixões, como fez Judas, e para não negá-lo, como fez Pedro. Pois deixar de fazer o bem por medo é uma negação do Verbo. E o pecado cometido em ato e a impulsão pelo pecado são uma traição.
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44. A alegria é o fim de toda aflição. O repouso é o fim das penas. A glória é o fim da desonra. Em uma palavra, ir com Deus, estar continuamente com ele, desfrutar do repouso eterno que não acaba, é o fim de todos os sofrimentos que suportamos pela virtude.
45. Desejando nos unir a todos na natureza e no conhecimento, e empurrando para isto toda a raça humana, em sua bondade Deus nos traçou os mandamentos salutares que amam o homem. Ele assim simplesmente nos deu por lei termos piedade e sermos tratados com piedade.
46. O egoísmo e a inteligência dos homens, pela rejeição ou a mentira mútuos, bem como pela rejeição ou a fraude da Lei, dividiram a natureza única em numerosas partes. Depois de haver introduzido a insensibilidade, que agora domina a natureza, a disseminaram, e armaram com uma razão especiosa esta natureza tal como ela é. É por isso que qualquer um que, por um pensamento sábio e pela nobreza de sentimentos, tenha dissipado esta anomalia da natureza, sente piedade de si mesmo diante dos outros: ele suscitou a resolução conforme a natureza, encaminhou-se resolutamente para Deus seguindo a natureza, e mostrou em si de que maneira a razão da imagem se exprime e como Deus, depois de haver criado no início nossa natureza semelhante a ele próprio, como uma clara representação de sua própria bondade, a estabeleceu nela, em tudo a mesma, pacífica, calma, apaziguada, colada a Deus e a ela por amor, conforme nos liguemos a Deus pelo desejo, e uns aos outros pela compaixão.
47. Deus que ama os homens se tornou homem a fim de reunir em si próprio a natureza dos homens, e para que esta cessasse de se maltratar, sublevada e dividida sobretudo contra si mesma, e sem a menor constância, devido ao movimento versátil da vontade de cada um.
48. Nada do que vem depois de Deus é mais precioso, ou melhor, nada é mais amado por Deus do que o amor perfeito, naqueles que possuem a inteligência. Pois este amor reúne em um aqueles que estavam divididos e ele pode suscitar em muitos, ou em todos, em sua resolução, uma mesma identidade pacífica. Pois ele pode mostrar a única resolução própria ao amor daqueles que assim buscam.
49. Se, por natureza, o bem unifica e reúne aquilo que estava dividido, é evidente que o mal divide e destrói aquilo que estava unido. Por natureza, como efeito, o mal é disperso e volátil, toma muitas formas e divide.
50. O verdadeiro amor a Deus com conhecimento de causa e a recusa total da afeição da alma pelo corpo e por este mundo são a libertação de todos os males e o caminho mais curto para a salvação, pelo qual, rejeitando a concupiscência do prazer e o medo da dor, somos libertos do egoísmo mau, elevados que seremos ao conhecimento do Criador. E, substituindo o egoísmo mau pelo bom e espiritual amor a nós mesmos desembaraçado de toda afeição corporal, não cessaremos de adorar a Deus pela beleza de tal
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amor, e buscaremos sempre junto a Deus o recolhimento da alma. Esta é, com efeito, a verdadeira adoração que agrada realmente a Deus: Cuidar rigorosamente da alma por meio das virtudes.
51. Quem não cobiça o prazer corporal e que não teme absolutamente a dor se torna impassível. Pois, ao mesmo tempo em que estes e junto com o egoísmo que os engendrou, ele destruiu todas as paixões suscitadas por sua causa e provenientes deles, incluindo a ignorância, esta causa primeira dos males. Assim ele se liga inteiramente à beleza que, por natureza, é estável, constante, sempre a mesma: com ela ele permanece totalmente imóvel, com o rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, pois, no esplendor luminoso que existe em si, ele contempla a glória divina e inacessível.
52. Devemos na medida do possível recusar o prazer e a dor da vida presente e nos separarmos de todo pensamento de paixão e de toda malfeitoria demoníaca. Pois é por causa dos prazeres que amamos as paixões e é por causa da dor que fugimos das virtudes.
53. Uma vez que todo vício é destruído naturalmente do mesmo modo como foi suscitado, o homem, constatando por esta experiência que a dor sucede de um modo ou de outro ao prazer, atirou-se por completo ao prazer e fugiu totalmente da dor. Ele combateu pelo primeiro com toda sua força e lutou contra o outro com todo seu ardor. Por meio deste artifício, ele pensou – embora fosse impossível – em separá-los um do outro e unir seu egoísmo apenas ao prazer separando-o totalmente da dor. Mas, sob o efeito da paixão, ignorou que é naturalmente impossível que o prazer subsista para sempre sem que jamais surja a dor. Pois a pena que engendra a dor está naturalmente mesclada ao prazer, mesmo que aqueles que o experimentam pareçam esquecer-se disto, pois, sob o efeito da paixão, se deixam levar pelo prazer. Com efeito, é o que o conduz que se manifesta naturalmente, recobrindo a sensação daquilo que substitui. Portanto, nos arrogando o prazer para satisfazer nosso egoísmo esforçando-nos por nos separarmos da dor pela mesma razão, fomentamos a indizível gênese das paixões corruptoras.
54. Quando nos ligamos a Deus, ignoramos a sensação de prazer e de dor, pois somente ele é digno de amor, e desejável; para dizê-lo melhor, quando a ele unimos o intelecto liberado da relação corporal.
55. Assim como não podemos adorar a Deus com toda pureza se não purificarmos totalmente a alma, também não podemos adorar a criação se não moderarmos o corpo. Cumprindo no corpo a adoração corruptora, e com isto se tornando egoísta, o homem suscita continuamente o prazer e a dor: ele continua se alimentando da árvore da desobediência – a árvore do conhecimento do bem e do mal. Assim, em seus sentidos desordenados, ele tem a experiência do conhecimento. Assim, se dissermos que a criação visível é a árvore do conhecimento do bem e do mal, não estaremos longe da verdade, porque participamos naturalmente daquilo que suscita o prazer e a dor.
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56. Onde não impera a razão, os sentidos predominam naturalmente. É a partir desta predominância que petrificou-se, de certo modo, a potência do pecado que, pelo prazer, realmente leva a alma à miséria da carne tão próxima. Assim, o pela vida segundo a natureza, tomando-se de cuidados pela carne com paixão e prazer, como se isto fosse a obra natural da alma, a convence a suscitar o vício onde este não existia.
57. O esquecimento dos bens da natureza é o vicio da alma dotada de inteligência. Este esquecimento provém do estado passional da carne e do mundo. A razão dirigida conforme a ciência espiritual suprime este estado: ela sonda a natureza do mundo e da carne e empurra a alma para o país que lhe é próximo, o país das coisas inteligíveis, aonde a lei não permite que chegue o pecado, pois este não é como uma ponte que permite a passagem dos sentidos para o intelecto: esta ponte, daí em diante, no que se refere à alma em seu estado, é destruída e rejeitada nas visões sensíveis que o intelecto já não sente, depois de haver ultrapassado o estado e a natureza.
58. Assim como a razão que domina as paixões faz dos sentidos órgãos da virtude, também as paixões, quando dominam a razão, moldam os sentidos em vista do pecado. É preciso considerar e estudar com sobriedade e vigilância como a alma fará o bom retorno de modo conveniente, servindo-se das coisas que antes a levaram ao erro para alcançar a gênese e a realidade das virtudes.
59. O santo Evangelho ensina a recusa da vida carnal e a confissão da vida espiritual. Falo aqui dos que morreram segundo o homem, vale dizer, segundo a vida humana na carne ligada ao século, mas que viveram segundo Deus pelo Espírito único, seguindo o Apóstolo divino e os que o rodeavam, que já não viviam uma vida que lhes era própria, mas carregavam o Cristo vivo em suas almas. Assim, os que morreram por Deus neste século foram julgados por sua própria carne: eles sofreram muitas aflições, tormentos e angústias, e suportaram com alegria as perseguições e toda espécie de provações.
60. Toda paixão nasce de alguma forma de união entre uma coisa sensível, os sentidos e uma potência natural, por exemplo, de um ardor ou eventual desejo daquele que se desnaturou. Assim, se depois de perceber em sua união o fim recíproco de sensível, do desejo e da potência natural contida neles, o intelecto, discernindo à parte cada um dos três (o sensível, o sentido e a potência natural), consegue retornar à razão que lhe é própria por natureza e contemplar em si mesmo o sensível fora da relação que o sentido tem para com ele, e o sentido independentemente daquilo que o une ao sensível, e o desejo, por exemplo (ou outra das potências naturais) fora de qualquer pendor passional pelos sentidos e pelo sensível, assim como o movimento próprio da paixão prepara a chegada da contemplação, ele dissipa e transforma em poeira, como o bezerro de ouro de Israel, qualquer paixão que se formaria e espalha esta poeira sobre a água do conhecimento, destruindo por completo esta pura imaginação das paixões, por restabelecer em si mesmas as coisas que, segundo a natureza, constituíam a paixão.
61. A vida manchada pelas numerosas faltas das paixões suscitadas pela carne é como uma túnica com nódoas. Como veríamos numa vestimenta, é, com efeito, por sua maneira de viver que transparece aquilo que é um homem: justo ou injusto. Um, que veste uma túnica pura, vive na virtude. Outro tem sua vida
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manchada por más obras. Ou antes, é o estado e a disposição da consciência, que moldam a alma pela lembrança dos maus movimentos e das más ações da carne, que são a túnica machada pela carne. Vendo continuamente ao seu redor, como uma túnica, este estado e esta disposição, a alma se enche do mau odor das paixões. De fato, do mesmo modo pelo qual, por meio das virtudes tecidas conforme razão a alma recebe do Espírito uma túnica de incorruptibilidade e se torna bela e gloriosa depois de tê-la vestido, também recebe uma túnica impura e manchada que, por si só, a faz reconhecer e lhe dá uma outra forma e uma outra imagem do que a forma e a imagem divinas.
62. A encarnação de Deus no homem, que faz do homem um deus na mesma medida em que Deus se tornou homem, esta encarnação é um a firme razão para confiarmos na esperança da deificação da natureza humana. Pois é claro que Aquele que, sem pecado, se tornou homem, deificará a natureza sem nada alterar na divindade, e a elevará através de si mesmo tanto quanto se abaixou através do homem. É isto que o grande Apóstolo ensina, quando diz que será mostrada nos séculos futuros a superabundante riqueza da bondade de Deus por nós.
63. Dominando o ardor e o desejo a razão suscita as virtudes. Aplicando-se às razões das criaturas, o intelecto reúne em si o conhecimento infalível. Portanto, quando a razão, depois de haver repelido os adversários, encontra o que é amável segundo a natureza, e igualmente o intelecto, depois de haver atravessado as coisas conhecidas, recebe a causa que é mais elevada do que a essência, do que o conhecimento e do que os seres, chega então a experiência da deificação pela graça, experiência que transporta a razão para fora do discernimento natural, aonde não há nada a discernir, e que permite ao intelecto repousar da compreensão segundo a natureza, aonde nada há para conhecer, enfim, que deifica pela identidade das atitudes aquele que é considerado digno da união divina.
64. O sofrimento purifica a alma manchada pela ferrugem do prazer e a separa da relação com as coisas materiais, quando a alma aprende a partir daí o mal que lhe fez o amor por estas coisas. É por esta razão que Deus, em seu justo juízo, permite que o diabo oprima os homens com tormentos.
65. O prazer e a dor, a concupiscência e o medo, e as coisas que se lhes seguem, não foram criados primitivamente com a natureza dos homens. Pois eles contribuiriam para definir a natureza. Eu digo – e o aprendi do grande Gregório de Nysse – que foi devido à queda para fora da perfeição que estas coisas começaram, e que elas nasceram na porção da natureza menos favorecida pela razão. Foi por ela que, em lugar de carregar a imagem bem-aventurada e divina, desde o momento da transgressão o homem começou a se assemelhar clara e visivelmente aos animais sem razão. A partir do momento em que a dignidade da razão foi coberta por um véu, entranhada pelas marcas da irracionalidade, tornou-se necessário castigar a natureza dos homens para que ela sabiamente tomasse consciência do gênio da razão de Deus que dirige o homem.
66. Nos homens fervorosos, mesmo as paixões se tornam boas quando, separando-os das coisas corporais, as tomamos para adquirir as coisas do céu. Isto acontece quando transformamos a concupiscência em
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movimento tendendo ao desejo espiritual das coisas de Deus, quando fazemos do prazer o santo desfrutar da atividade dos carismas divinos do intelecto, quando fazemos do medo o cuidado de nos preservarmos do castigo futuro das nossas faltas e quando fazemos da dor o arrependimento que nos corrige do mal presente. Em uma palavra, como o fazem os médicos mais sábios que, utilizando o corpo de uma víbora selvagem e venenosa, curam a ferida real ou imaginada, nós nos servimos dessas paixões para suprimir o mal presente ou esperado, e para adquirir e guardar a virtude e o conhecimento.
67. A lei da primeira Aliança purifica a natureza de toda mancha por meio da filosofia prática. Mas a lei da nova Aliança, pela mistagogia da contemplação, eleva a consciência à ordem do conhecimento, fazendo-a passar das coisas do corpo às visões que aproximam das coisas espirituais.
68. Os que debutam e chegam às portas da moradia divina das virtudes são chamados pela Escritura “aqueles que temem a Deus”. Os que adquirem o estado que convém às palavras e aos modos da virtude ela denomina “aqueles que progridem”. Enfim, ela chama de “perfeitos” os que, pela virtude, atingiram pelo conhecimento o cume da verdade revelada pelas virtudes. Portanto, quem se desviou da maneira como vivia antes em meio às paixões, e que, pelo temor, abriu para as coisas de Deus todas as disposições de sua alma, não deixará de receber nenhum bem dos que cabem aos que começam, mesmo que ainda não tenha adquirido o estado de virtude e que não participe ainda da sabedoria que é mencionada entre os perfeitos. Aquele que progride não deixará de receber nenhum dos bens correspondentes ao seu grau, mesmo que não tenha adquirido, como os perfeitos, o conhecimento iminente das coisas de Deus. Pois os perfeitos serão daí em diante considerados dignos da teologia contemplativa. Eles purificaram o intelecto de toda imaginação material, fizeram dele uma imagem que traz em si sem falha a inteira imitação da beleza divina, e parecem abarcar em si próprios o amor de Deus.
69. O temor é duplo. Existe o temor puro, e existe um temor que não é puro. O temor que se fundamenta por excelência no castigo das faltas e que tem como causa de sua própria gênese o pecado não é puro nem é durável, pois, com o arrependimento, ele desaparece junto com o pecado. Quanto ao temor puro, ele é formado independentemente da aflição das faltas, e este não passa jamais. É por isso que, ultrapassando a criação, ele de certa forma está ligado essencialmente a Deus, tornando manifesta sua natureza venerável, sua eminência acima de todo reino e de todo poder.
70. Quem não teme a Deus porque ele é juiz, mas que o reverencia por causa da altíssima eminência de sua potência infinita, a este não falta nada, pois ele é perfeito no amor por amar a Deus com respeito e veneração convenientes. Este homem possui o amor que permanece pelos séculos dos séculos e a ele nada faltará.
71. É por intermédio dos seres que conhecemos Aquele que é a causa dos seres. É pela diferença entre os seres que somos instruídos na sabedoria inerente à hipóstase do ser. E é pelo movimento natural dos seres que aprendemos a vida inerente à hipóstase do ser, a potência que vivifica os seres: o Espírito Santo.
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72. O Espírito Santo não está ausente em nenhum dos seres, singularmente nos que tem algo partilhado com a razão. Pois ele compreende em si mesmo todo o conhecimento. Uma vez que o Espírito Santo também é Deus, contendo sempre providencialmente e suscitando segundo a natureza a razão em cada um, ele permite por meio desta, àqueles que conseguem, perceber os feitos contra a natureza, e ceder facilmente em sua vontade para acolher os pensamentos retos suscitados pela natureza É por isso que, mesmo dentre os homens mais bárbaros e mais nômades, encontramos muitos que partilham do belo e do bom e que anulam em si as leis selvagens que carregavam desde a origem.
73. O Espírito Santo está simplesmente em todos, na medida em que ele abarca todos os seres e coloca em movimento as sementes naturais. Ele está singularmente em todos aqueles que estão sob a Lei, uma vez que ele denuncia a transgressão dos mandamentos e esclarece a promessa anunciada em nome de Cristo. E ele está em todos os que vivem segundo Cristo, ademais das razões precedentes, por permitir a adoção. Mas, na medida em que ele suscita a sabedoria, ele não está pura e simplesmente naquilo que foi anunciado: ele está apenas nos que compreendem e que, levando a vida divina, se tornam eles mesmos dignos da habitação deificante, Pois quem quer que não faça a vontade de Deus, por fiel que seja, tem o coração ignorante, como um lugar que forja maus pensamentos, e o corpo cheio de dívidas pelos pecados cometidos, pois é mantido continuamente na sujeira das paixões.
74. Deus, que deseja a salvação de todos os homens e que tem fome de sua deificação, seca sua presunção, como fez à figueira estéril, a fim de que aqueles que preferem ser justos mais do que parecer justos, despojados da túnica da ostentação moral hipócrita e buscando sem recorrer à fraude a existência virtuosa como manda a palavra divina, passem sua vida na piedade, revelando a Deus a disposição de sua alma mais do que aos homens a aparência exterior de sua conduta.
75. Uma coisa é razão de fazer, outra a razão de sentir. A razão de fazer é o poder natural que coloca em movimento as virtudes. A razão de sentir é, ou bem a graça das coisas mais elevadas do que a natureza, ou bem o acidente que permite as coisas contra a natureza. Com efeito, na medida em que não temos o poder natural d'Aquele que é mais do que o ser, temos por natureza o poder do não-ser. Experimentamos então pela graça a deificação, pois ela é mais elevada do que a natureza, mas não a criamos, pois, por natureza, não possuímos um poder capaz de receber a deificação. Experimentamos igualmente o mal, em pensamento, por acidente, na medida em que ele é contra a natureza, pois não temos o poder natural que nos permite praticar o mal. Assim, aqui em baixo praticamos as virtudes que estão em nós por natureza, pois temos em nós o poder natural que nos permite praticá-las. E experimentamos a deificação como aquilo que deve ser, uma vez que recebemos gratuitamente a graça que nos permite experimentá-la.
76. Praticamos por nós mesmos, na medida em que o temos em nós por natureza, agindo em nos, o poder da razão, que coloca em movimento as virtudes, bem como o poder irresistivelmente espiritual que recebe todo o conhecimento, que ultrapassa toda a natureza daquilo que é e daquilo que é conhecido, e que suscita todos os séculos atrás de si. E experimentamos quando, ultrapassando perfeitamente as razões daquilo que provém dos seres, chegamos à causa dos seres no “desconhecimento” e deixamos repousar nossas próprias potências com aquilo que passa por natureza, tornados algo que não é uma ação do poder segundo a natureza, porque esta não possui o poder capaz de compreender Aquele que é mais elevado do
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que ela. Pois nada do que existe segundo a natureza pode criar a deificação, por ser incapaz de compreender a Deus. É naturalmente próprio da graça divina, e dela apenas, conceder aos seres a deificação correspondente àquilo que eles são. Pois ela ilumina a natureza com a luz que é mais elevada do que a natureza, e a coloca sob sua própria condição, na superabundância da glória.
77. Depois desta vida, deixamos de praticar as virtudes, mas não deixamos de experimentar a deificação que, pela graça, é mais elevada do que elas. Pois aquilo que experimentamos acima da natureza é sem limites, porque age. Mas o que é contra a natureza não existe e não pode agir.
78. As imagens dos bens divinos são os modos da virtude e as razões dos seres. É por meio delas que o homem se torna continuamente Deus. No seu corpo, estão os modos das virtudes. E em sua alma, as razões espirituais do conhecimento, por meio das quais Deus deifica os que são dignos, gravando neles o sinal inerente à hipóstase da virtude e lhes concedendo a existência essencial de um conhecimento que não varia jamais.
79. O intelecto fiel e ativo, como são Pedro aprisionado por Herodes, a lei epidérmica (pois Herodes quer dizer epiderme, ou seja, os cuidados da carne), é encerrado sob a supervisão de duas sentinelas de guarda e atrás de um portão de ferro, vale dizer, ele é combatido pela energia das paixões ou pelo consentimento do pensamento submetido às paixões. Ora, sob o efeito da palavra da filosofia prática, como pela intervenção de um anjo, ele supera as duas sentinelas de guarda, ou seja, as prisões, e chega ao portão de ferro que dá para a cidade, ou seja, a relação forte, dura, difícil de vencer, que os sentidos têm para com as coisas sensíveis. Abrindo esta porta, a palavra da contemplação natural envia, por seu próprio movimento, na direção das coisas inteligíveis que lhe estão próximas, o intelecto agora livre e sem medo, para longe da fúria de Herodes.
80. O diabo é ao mesmo tempo o inimigo de Deus e o vingador de Deus. Ele é o inimigo quando, em sua inveja de Deus, o miserável faz cara de quem tem amor pelos homens, persuadindo nosso desejo, pelos modos das paixões voluntárias e por intermédio do prazer, preferir as coisas que passam aos bens eternos: desviando por meio destas coisas o impulso da alma, ele nos afasta inteiramente do amor divino e faz de nós inimigos voluntários do Criador. E ele é vingador quando, deixando a descoberto a inveja que tem de nós, reclama o castigo que nos aguarda, desde que, por causa do pecado, estamos agora em seu poder. Pois não há nada de que o diabo goste tanto quanto ver um homem castigado. Uma vez que ele recebe esta permissão, projetando ataques sucessivos de paixões involuntárias, ele se porta insaciavelmente como um furacão contra aqueles que ele recebeu para exercer seu poder com a permissão de Deus; não que ele queira cumprir a ordem divina, mas ele deseja saciar sua própria paixão, que o leva a nos odiar, a fim de que, sob o peso dos dissabores que a afligem, a alma, dobrada sobre si mesma por causa de seu relaxamento, se separe do poder da esperança divina, fazendo da irrupção dos eventos dolorosos uma causa de ateísmo, ao invés de uma advertência.
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81. Quando aqueles que participam do estado ativo e da ciência contemplativa vão buscar a glória diante dos homens, disfarçando com a aparente prática das virtudes e apenas repetindo as palavras da sabedoria e do conhecimento, eles mostram aos outros, nesta sabedoria e neste conhecimento, as fumaças do orgulho, sem as obras da justiça, e são atirados justamente às penas merecidas, a fim de aprenderem pela provação a humildade que, em sua vã presunção, ignoraram.
82. Cada demônio, conforme aquilo de que é capaz por si mesmo, contribui para tal ou qual ataque das tentações. Cada qual, com efeito, suscita um vício diferente. E cada qual é mais impuro que o outro e mais hábil em seu gênero de vício.
83. Sem a permissão divina, esses demônios não conseguem prestar nenhum serviço ao diabo. Pois o próprio Deus, com a presciência necessária e em seu amor pelo homem e sua bondade, sabe como permitir ao diabo fazer seus servidores administrarem diversos castigos, o que é claramente mostrado no livro de Jó, quando se diz que o diabo não podia absolutamente se aproximar de Jó sem a vontade de Deus.
84. A fé manifesta e ativa é a fé inerente à hipóstase, segundo a qual o Verbo de Deus se revela aos ativos tomando o corpo dos mandamentos. E é por estes mandamentos que em sua pessoa de Verbo ele conduz os que agem ao Pai no qual ele está por natureza.
85. O mistério do Novo Testamento anuncia a mudança de vida, o culto angélico, a hostilidade voluntária da alma para com o corpo e a gênese da transformação divina em espírito. A palavra de Deus chama de circuncisão espiritual a ruptura da relação passional da alma com o corpo.
86. Deus, que é bom e quer nos arrancar a semente do mal, ou seja, o prazer que despoja o intelecto do amor divino, permite ao diabo nos infligir penas e castigos: da mesma maneira, ele elimina pelas penas da alma o veneno do prazer passado. Ele deseja colocar em nós a aversão e o desgosto perfeito pelas coisas presentes, que apenas incham os sentidos e não tem por ganho senão o castigo, e quer fazer do poder que tem o diabo de castigar e odiar o homem a causa acidental que conduz à virtude aos que dela escaparam voluntariamente.
87. É conveniente e justo que sejam castigados pelo diabo aqueles que receberam com prazer seus maus conselhos, que os levaram aos pecados voluntários. Com efeito, por meio das paixões voluntárias o diabo semeia o prazer, e por meio das paixões indesejadas ele conduz à dor.
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88. É por isso que o intelecto voltado para a contemplação e o conhecimento precisa, para ser castigado, ser entregue muitas vezes ao diabo que lhe inflija justamente penas e infelicidades, a fim de que ele aprenda a amar a sabedoria, sofrendo para aguentar e suportar as penas, mais do que se agarrar vã e orgulhosamente ao que não existe.
89. Aquele que sofre por haver transgredido um mandamento de Deus, se reconhecer a palavra de providência divina que o cura, receberá com alegria e gratidão a infelicidade e corrigirá a falta por cuja causa foi castigado. Mas quem permanece insensível a este tratamento será com justeza afastado da graça que lhe havia sido dada e, deixado livre para passar ao ato, será entregue à confusão das paixões cujo desejo acalentava do fundo de si mesmo.
90. Qualquer um que, tomando consciência das faltas que cometeu, suporte voluntariamente e com a conveniente gratidão enfrentar os penosos assaltos das tentações involuntárias, não será banido do estado virtuoso e da graça, por ter se colocado sob o jugo do rei da Babilônia e, como quem quita uma dívida, aceitado os tormentos que lhe são infligidos. Mas ao permanecer em tais aflições, ele cede ao rei da Babilônia as penas violentas que a natureza ressente e o consentimento de seu pensamento a estas penas, pois ele as deve por causa de suas faltas passadas, e ele oferece a Deus, como um culto verdadeiro, vale dizer, por uma humilde disposição, o endireitamento das negligências.
91. Aquele que não aceita com gratidão a infelicidade que, por meio das tentações involuntárias e com a permissão de Deus, lhe são infligidas para que ele se corrija, que não se distancia, arrependendo-se, da presunção de ser justo, que recusa aquilo que Deus prescreve com seus julgamentos justos e que não aceita se colocar por si próprio sob o jugo do rei da Babilônia, segundo a ordem divina, este homem será atirado ao cativeiro, às cadeias, às correntes, à chibata, ao glaivo e será expulso de sua terra. Pois são estas coisas, e outras mais, que sofre quem é expulso do estado de virtude e de conhecimento, como se fosse de sua própria terra, por não querer, por orgulho e vã presunção, quitando o julgamento que sofreu por suas faltas, aceitar as aflições, os constrangimentos e as angústias, segundo o Apóstolo divino. Pois o grande Apóstolo sabia que a humildade fundada nas penas que afligem o corpo guarda os tesouros divinos da alma. É por isso que ele perseverava na paciência perante si mesmo e perante aqueles para quem ele era modelo de virtude e de fé, a fim de que, mesmo que eles fossem afligidos por serem culpados, como o Coríntio castigado, eles tivessem para se consolar e para imitar na paciência Aquele que sofreu sem ser culpado.
92. Quem não se detém nas formas das coisas visíveis para satisfazer os sentidos, mas que busca em seu intelecto suas razões como imagens das coisas inteligíveis, ou que contempla as razões das criaturas sensíveis, aprende que nada é impuro dentre as coisas visíveis. Pois tudo foi criado bom por natureza.
93. Quem não se deixa transformar pelo movimento das coisas sensíveis segue a prática inalterada das virtudes. Quem não deixa moldar seu intelecto pelas suas formas recebe em retorno a verdadeira glória
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dos seres. E aquele que, pelo pensamento, ultrapassou até a essência dos seres, como um excelente teólogo, deixa-se dirigir pelo “desconhecimento”, depois desta, até a unidade.
94. Todo intelecto contemplativo que, portanto a espada do Espírito, ou seja, a palavra de Deus, faz perecer em si mesmo o movimento da criação aparente, conduz bem a virtude. Afastando de si a imaginação das formas sensíveis, encontra a verdade que está nas razões dos seres, esta verdade que suscita a contemplação natural. E, elevando-se acima da essência dos seres, ele recebe a iluminação da Unidade divina que não tem começo, esta iluminação que é suscitada pelo mistério da verdadeira teologia.
95. Deus aparece a cada um conforme o pensamento que cada qual tem de Deus no fundo de si mesmo. Aos que, em sua impulsão, ultrapassaram a mistura material e possuem as potências da alma que têm todas o mesmo sentido e o mesmo movimento perpétuo ao redor de Deus, ele aparece como Unidade e Trindade, a fim de mostrar sua própria existência e ensinar misticamente o modo desta existência. Aos outros, cujo impulso não vai além de girar ao redor da mistura material e cujas potências da alma permanecem sem laço entre si, ele aparece não como é, mas como eles são, mostrando com isto que eles estão presos pelas duas mãos da díade material, segundo a qual o mundo corpóreo foi criado de matéria e forma.
96. O Apóstolo divino diz que as diversas energias do Espírito Santo são carismas diferentes manifestamente submetidos à ação de único e mesmo Espírito. Portanto, se a manifestação do Espírito é concedida na medida da fé de cada um na participação ao carisma, isto quer dizer que cada fiel, proporcionalmente à fé e à disposição de sua alma, recebe na sua medida a energia do Espírito, que lhe concede a faculdade, de acordo com a própria energia, de cumprir tal ou tal mandamento.
97. Assim como um recebe uma palavra de sabedoria, outro uma palavra de conhecimento, outro uma palavra de fé, outro algum dos demais carismas do Espírito enumerados pelo grande Apóstolo, também cada um recebe pelo Espírito, proporcionalmente à fé, o carisma do amor perfeito e direto de Deus, para além de toda matéria; outro, pelo mesmo Espírito, recebe o carisma do amor perfeito pelo próximo, e outro ainda, segundo o mesmo Espírito, recebe algum outro carisma, cada qual, como eu disse, pondo a trabalhar em si seu próprio carisma. Pois ele disse que toda faculdade de cumprir um mandamento é um carisma de Deus.
98. O batismo do Senhor é a morte total de nossa vontade, sua morte para o mundo sensível. E a taça é a renúncia a esta vida, nossa vida presente, pela verdade.
99. O batismo do Senhor é a imagem das penas voluntárias que suportamos deliberadamente pela virtude. É por meio delas que, rejeitando as manchas da consciência, aceitamos a morte voluntária do desejo das coisas visíveis. Quanto à taça, ela é a imagem das tentações involuntárias que se levantam contra nós por
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acidente quando resolvemos combater pela verdade. É por intermédio destas tentações que, escolhendo o desejo divino da própria natureza, ultrapassamos voluntariamente a morte acidental da natureza.
100. O batismo difere da taça no seguinte: o batismo faz morrer, pela virtude, o desejo que nos leva aos prazeres da vida; a taça dá aos homens piedosos a capacidade de preferir a verdade à própria natureza.
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QUARTA CENTÚRIA
1. Cristo tomou a taça antes do batismo, pois a virtude está para a verdade, e não a verdade para a virtude. É por isso que quem pratica a virtude pela verdade não é ferido pelas flechas da vanglória. Mas quem se aplica à verdade por causa da virtude tem em casa a presunção da vanglória.
2. Ele disse que o conhecimento divino é a verdade e que os combates que enfrentam os que buscam a verdade são as virtudes. Portanto, aquele que, por causa do conhecimento, suporta as penas da virtude não cai na vanglória: ele sabe que as penas não podem, por natureza, captar a verdade, pois, por natureza, o que é primeiro não pode estar compreendido no que é segundo. Mas quem se aplica ao conhecimento a fim de poder conduzir os combates pela virtude, de alguma maneira acaba caindo na vanglória porque imagina receber a coroa antes do suor: ele não sabe que as penas existem para as coroas, e não as coroas para as penas. Pois toda via cessa, por natureza, de ser empreendida, a partir do momento em que aquilo pelo que ela existe está cumprido, ou parece estar cumprido.
3. Aquele que se aplica apenas ao conhecimento – ou seja, à razão pura – ou apenas à imagem da virtude – ou seja, a moral pura – é como um Judeu: inflado de orgulho pelas imagens da verdade.
4. Quem não vê por meio dos sentidos todo o culto aparente da Lei, mas que, por aproximações do intelecto, estudou profundamente cada um dos símbolos visíveis, e que aprendeu a razão divina oculta em cada um, encontra a Deus na Lei procurando bem, tateando, pelo poder do intelecto, na matéria dos preceitos jurídicos, como num pântano, se topar, escondida no meio da carne da Lei, com a pérola, a razão que escapa totalmente aos sentidos.
5. Quem não limita apenas aos sentidos a natureza das coisas visíveis, mas sabiamente procura conhecer pelo intelecto a razão que existe em cada criatura, encontra a Deus aprendendo, na magnificência criada dos seres, a causa destes seres.
6. Portanto, uma vez que o discernimento é característico do homem que busca tateando, quem se aproxima com conhecimento de causa dos símbolos da Lei e que contempla com ciência a natureza visível dos seres, quem discerne a Escritura, a criação e a si próprio (a Escritura, distinguindo a letra do espírito; a criação, distinguindo a razão da aparência; a si mesmo, distinguindo o intelecto dos sentidos), quem captou o espírito da Escritura, a razão da criação e o intelecto de si próprio, que os uniu indissoluvelmente entre si, este encontrou a Deus. Pois, como se deve e tanto quanto é possível, ele conheceu a Deus que está em seu intelecto pelo Verbo e o Espírito, por estar liberto de tudo o que distrai e arrasta em inumeráveis opiniões, vale dizer, liberto da letra, da aparência e dos sentidos, nos quais reside a pluralidade diversa e
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contrária à unidade. Mas se alguém mistura tudo, enlaçando-os mutuamente, a letra da Lei, a aparência das coisas visíveis e seus próprios sentidos, este é cego, pois tem a vista curta, e é doente por ignorar a causa dos seres.
7. O divino e grande Apóstolo, ao definir a fé, disse: “A fé é o fundamento daquilo que se espera, a prova das coisas que não vemos”. Mas se alguém a definisse como sendo um bem interior ou como o verdadeiro conhecimento no sentido dos bens ocultos, não estaria longe da verdade.
8. A fé é a potência que permute alcançar a união, ou é a posse efetiva desta união sobrenatural, direta, perfeita, entre aquele que crê e Deus, no qual ele crê.
9. Assim, uma vez que o homem é feito de alma e corpo, ele oscila entre duas leis, ou seja, a lei da carne e a lei do Espírito. A lei da carne tem sua energia nos sentidos, e a lei do Espírito tem sua energia no intelecto. A lei da carne, colocada em movimento pelos sentidos, religa naturalmente à matéria; e a lei do Espírito, colocada em movimento pelo intelecto, une naturalmente a Deus. Aquele que não se dividiu em seu coração, vale dizer, que não dividiu seu intelecto, que não cortou ao meio a união direta que, pela fé, o religava a Deus, com todo direito ordenará à montanha que se mova, e ela se moverá. Pois ele é impassível, ou antes, pela fé, ele se tornou daí em diante Deus por esta união. Ele assim demonstra e mostra o significado do cuidado com a lei da carne, esta lei verdadeiramente pesada e difícil de deslocar, e até mesmo imóvel e inamovível por uma potência natural.
10. O poder da irracionalidade está de tal modo enraizado pelos sentidos na natureza dos homens, que a maior parte deles pensa assim: os homens não possuem de seu senão a carne, a potência que carrega os sentidos e permite usufruir da vida presente.
11. É dito que tudo é possível àquele que crê e não duvida, ou seja, àquele que, para religar a alma ao corpo nos sentidos, não divide a união com Deus, que lhe foi dada ao intelecto pela fé. Pois o que v em do mundo e da carne aliena o intelecto. Mas o que foi elevado à perfeição pelas obras retas se aparenta a Deus. É isto que deve ser subentendido nas palavras: “Tudo é possível àquele que crê”.
12. A fé é um conhecimento indemonstrável. Mas se ela é um conhecimento indemonstrável, é porque é uma relação mais elevada do que a natureza: por intermédio dela, no “desconhecimento” e sem que possamos demonstrar o que quer que seja, unimo-nos a Deus pela união que ultrapassa o entendimento.
13. O intelecto que recebeu o dom de estar unido a Deus diretamente, coloca em movimento o poder de compreender e de ser compreendido totalmente. Porém, quando ele relaxa este poder depois de haver
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concebido qualquer coisa que vem depois de Deus, ele se divide, por ter rompido a união que ultrapassa o entendimento, segundo a qual, na mesma medida em que ele se liga a Deus acima da natureza e se torna Deus por participação, ele desloca e substitui a lei de sua própria natureza, com se ela fosse uma montanha imóvel.
14. Aquele que se engaja no caminho da piedade, instruindo-se com as obras da justiça, não faz outra coisa do que cumprir a ação com toda obediência e com fé: ele se alimenta das aparências como se fossem a carne das virtudes, ou seja, ele se nutre da pedagogia ética. Mas as palavras dos mandamentos, nas quais se encontra o conhecimento dos perfeitos, ele as remete a Deus pela fé, incapaz que é até o momento de se estender sobre todo o comprimento da fé [do conhecimento].
15. O perfeito que não apenas conheceu e ultrapassou a ordem dos que estão engajados, mas ainda a ordem dos que progridem, não ignora as palavras que o levaram a cumprir os mandamentos, mas, depois de tê-los bebido primeiro em espírito, ele come por intermédio das obras toda a carne das virtudes, elevando na direção do conhecimento pelo intelecto aquilo que foi percebido pelos sentidos.
16. O Senhor que disse: “Busquem primeiro o Reino de Deus e sua justiça”, ou seja, antes de tudo o conhecimento da verdade, e a partir daí o cumprimento dos deveres, mostrou claramente que os crentes devem procurar apenas o conhecimento divino e a virtude que, pelas obras, ornam este conhecimento.
17. Porque são muitas as coisas que buscam os crentes em vista do conhecimento de Deus e da virtude – a libertação das paixões, a paciência nas tentações, as razões das virtudes, as maneiras de agir, o abandono da tendência da alma pela carne, o banimento de toda relação dos sentidos com as coisas sensíveis, a anacorese total do intelecto para longe de todas as criaturas – e porque, numa palavra, existem milhares de coisas que nos permitem nos abster do mal e da ignorância e alcançar com sucesso o conhecimento e a virtude , é com todo direito que o Senhor disse: “Tudo o que vocês pedirem com fé, receberão”, afirmando que os homens piedosos devem buscar e pedir com ciência e fé tudo o que tende simplesmente ao conhecimento de Deus e à virtude, e somente isto. Pois são estas as coisas que importam, e o Senhor as concede de alguma forma àqueles que as pedem.
18. Portanto, aquele que, apenas pela fé, ou seja, pela união direta com Deus, procura todas as coisas que levam à união, as receberá de um modo ou de outro. Mas quem as procura por outros motivos, mesmo que procure outras coisas, ou as coisas a que nos referimos, este não as receberá. Porque ele não crê. Uma vez que não existe fé, e com sua própria glória que ele se ocupa nas coisas divinas.
19. Aquele que, por sua resolução, é puro da corrupção do pecado, corrompe a corrupção daquilo que se corrompe naturalmente. Pois a incorruptibilidade da intenção mantém naturalmente incorruptível a
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corrupção da natureza, não permitindo que, pela graça do Espírito que está nela e conforme a providência, que ela seja alterada pelas qualidades contrárias.
20. Uma vez que não existe uma única e mesma razão da natureza e da graça, de nada serve se perguntar como alguns santos tanto vencem as paixões como sucumbem às paixões. Sabemos, com efeito, que o milagre é da ordem da graça, e a paixão da ordem da natureza.
21. Aquele que, pela imitação, mantém a memória da vida que levavam os santos, se separa da morte que as paixões trazem consigo e recebe a vida das virtudes.
22. Conforme seu desejo, ele que ordenou a vida de cada um antes dos séculos, Deus encaminha cada qual, seja ele justo ou injusto ao fim da vida, para o fim que lhe cabe.
23. A escura tempestade que assaltou o bem-aventurado Paulo significa para mim o fardo das tentações involuntárias. A ilha simboliza o estado firme e inquebrantável da esperança divina. O fogo significa o estado de conhecimento. A braçada de lenha seca significa a natureza das coisas visíveis, que Paulo ajuntou com a mão, ou seja, a faculdade que o intelecto tem de tocar pela contemplação, e, com os pensamentos engendrados por tal potência, nutrir o estado de conhecimento, que alivia a tristeza infligida à reflexão pela tempestade das provações. A víbora significa o poder do mal, mortal, secretamente escondido na natureza das coisas sensíveis, que mordeu a mão (ou seja, a energia da contemplação do intelecto, que lhe permite tocar), mas não fez mal ao intelecto clarividente. Pois este, com a luz do conhecimento, como um fogo, destruiu esta potência mortal que, vinda da contemplação do sensível, havia colado ao movimento ativo do intelecto.
24. O Apóstolo era um odor que levava da vida à vida, pois, por seu próprio exemplo, ele preparava os fiéis para se dirigirem na ação para o perfume das virtudes, ou porque, com sua predicação, ele fazia passar da vida dos sentidos para a vida em espírito aqueles a quem a palavra da graça persuadia. Mas ele era um odor de morte que levava à morte para aqueles que iam da morte da ignorância à morte da incredulidade: ele os fazia sentir a condenação que os esperava. Ou melhor: ele era um odor que levava da vida à vida para aqueles que se elevavam à contemplação a partir da ação. Mas ele era um odor de morte que levava à morte para os que, depois de terem levado à morte seus membros que estão sobre a terra por cessarem de combater o pecado, se dirigiam para a morte consentida que lhes traziam os pensamentos e as imaginações passionais.
25. Existem três potências da alma: a razão, o ardor e o desejo. Pela razão, buscamos; pelo desejo, tendemos para o bem que procuramos; e pelo ardor, lutamos por este bem. Assim, é por meio destas três virtudes que aqueles que amam a Deus perseveram nas palavras divinas sobre a virtude e o conhecimento.
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Buscando por meio de uma, desejando pela outra, lutando pela terceira, eles recebem um alimento incorruptível que cumula o intelecto pelo conhecimento das criaturas.
26. O Verbo de Deus tornado homem voltou a encher de conhecimento a natureza do conhecimento que havia sido dado, esta natureza que havia morrido. Depois de haver colocado nela a força para que não mais se deixasse desviar, ele a deificou não por natureza, mas por qualidade. Sem cessar ele a marcou com o sinal de seu próprio Espírito, transformando-a para tonificá-la, como a água, pela qualidade do vinho. Pois para isto foi que ele se tornou verdadeiramente homem: para fazer de nós deuses, pela graça.
27. Deus, que criou a natureza dos homens quando por sua vontade os trouxe à vida, acrescentou-lhes o poder de cumprir os deveres. Digo o poder, que é o movimento essencialmente semeado pela natureza para que as virtudes sejam postas em movimento, e resolutamente manifestado na prática para que aquele que a possui possa agir.
28. Temos a lei da natureza como critério natural, que nos ensina que antes de alcançar a sabedoria que está em tudo, é preciso que a mistagogia do Criador do universo nos dê o impulso.
29. O poço de Jacó é a Escritura. A água é o conhecimento que está contido na Escritura. A profundidade é o lugar dos enigmas da Escritura, difíceis de sondar. O balde é a aprendizagem da palavra divina pelas letras, aprendizado que ignorava o Senhor, a ele que é a própria palavra e que não dá aos que creem um conhecimento vindo da aprendizagem e do estudo, mas concede aos que são dignos uma sabedoria inesgotável que vem da graça espiritual e que não cessa jamais. Pois o balde – ou seja, o aprendizado – que não recebe senão uma parte ínfima do conhecimento, não permite conter o todo, de modo algum. Mas o conhecimento pela graça possui, sem estudo, toda a sabedoria acessível aos homens, que cresce de muitas maneiras em função das necessidades.
30. A árvore da vida e a árvore que não o é têm uma grande e inefável diferença, que é o fato de que uma é chamada de árvore da vida e a outra é chamada, não de árvore da vida, mas árvore do conhecimento do bem e do mal. Pois a árvore da vida suscita a vida, de um modo ou de outro. E é evidente que a árvore que não é da vida suscita a morte. A árvore que não suscita a vida, porque não foi chamada de árvore da vida, pode, com efeito, claramente, suscitar a morte. Pois nada mais divide a vida opondo-se a ela.
31. A árvore da vida também tem, enquanto sabedoria, uma grande diferença em relação à árvore do conhecimento do bem e do mal, que não é sabedoria nem é chamado assim. Pois a característica da sabedoria é a inteligência e a razão. E a característica do estado que se opõe à sabedoria é a irracionalidade e os sentidos.
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32. Uma vez que o homem nasce composto de uma alma dotada de inteligência e de um corpo dotado de sentidos, a inteligência da alma, na qual se encontra o uso da sabedoria, é deliberadamente a árvore da vida. E os sentidos do corpo são a árvore do conhecimento do bem e do mal, nos quais se encontra evidentemente o movimento da irracionalidade, que o homem havia recebido a ordem divina de não tocar para experimentar; mas ele não obedeceu a esta ordem.
33. As duas árvores, segundo a Escritura, são marcadas pelos sinais do intelecto e dos sentidos. Assim, o intelecto tem o poder de discernir o que é inteligível do que é sensível, as coisas que passam das coisas eternas. Acima de tudo, por se constituir no poder de discernimento da alma, ele a persuade a se ligar às coisas eternas e a se elevar acima das outras. Quanto aos sentidos, eles constituem o poder de discernir o prazer e a dor do corpo. Acima de tudo, por serem uma potência dos corpos vivos e sensíveis, eles os persuadem a abraçar o prazer e a rejeitar a dor.
34. Ao se dedicar apenas ao discernimento do corpo que lhe permite sentir o prazer e a dor, transgredindo o mandamento divino, o homem come da árvore do conhecimento do bem e do mal, ou seja, da irracionalidade dos sentidos, pois ele não possui senão o conhecimento típico da natureza dos corpos, pelo qual ele abraça o prazer como sendo o bem e rejeita a dor como sendo o mal. Mas se ele se devotar completamente apenas ao discernimento do intelecto que distingue o que é passageiro do que é eterno, observando o mandamento divino, ele come da árvore da vida, vale dizer, da sabedoria que se forma no intelecto, por ter apenas o discernimento próprio à natureza da alma, por meio do qual ele abraça como sendo o bem a glória da que é eterno e rejeita como sendo o mal a corrupção daquilo que é passageiro.
35. O estado impassível que conduz ao Espírito é o bem para o intelecto. Mas a relação passional que liga aos sentidos é o mal. O movimento passional do prazer que transporta para o corpo é o bem para os sentidos. Mas o estado e que priva os sentidos de prazer é para eles o mal.
36. Aquele que convenceu sua consciência de que aquilo que ele faz de mal é o bem por natureza, este, apoiando-se na vida ativa, colhe de modo condenável da árvore da vida, considerando que o pior é imortal por natureza. É por isso que, ao colocar naturalmente na consciência do homem a aversão ao mal Deus a separou da vida, para que, ao se tornar voluntariamente mal e fazer o mal, este não pudesse persuadir sua consciência de que o mal é bom por natureza.
37. A vinha fornece o vinho; o vinho traz a embriaguez; a embriaguez, o êxtase. A palavra bem-vinda – ou seja, a vinha – cultivada pelas virtudes, engendra assim o conhecimento. E o conhecimento engendra o bem êxtase, que permite ao intelecto deixar sua relação com os sentidos.
38. Em sua maledicência, o maligno costume juntar aos seus pensamentos as aparências e as formas das coisas sensíveis. Pois é por meio dos pensamentos que são criadas naturalmente as paixões em torno das
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manifestações do visível, quando se detém a energia da razão que, em nós, atravessa os sentidos mediadores para alcançar o intelecto. É então que o maligno consegue força para devastar a alma e arrastá-la na confusão das paixões.
39. A palavra de Deus é lâmpada da mesma maneira como esta ilumina: ela ilumina aquilo que os fiéis pensam segundo a natureza, ela queima o que pensam contra a natureza, ela dissipa as trevas da vida dos sentidos naqueles que, pelos mandamentos, se apressam na direção da vida esperada, e castiga pelo fogo do juízo os que abraçam voluntariamente, por amor à carne, esta noite tenebrosa da existência.
40. Diz-se que quem não começou por retornar a si mesmo rejeitando as paixões contra a natureza, jamais retornará à sua própria causa, ou seja, a Deus, adquirindo com a graça os bens mais elevados do que a natureza. Pois é preciso que aquele que une verdadeiramente a Deus se separe em pensamento das criaturas.
41. A obra da lei escrita consiste em escapar às paixões. A obra da lei natural consiste em honrar de maneira igual a todos os homens. A perfeição da lei espiritual consiste em se tornar semelhante a Deus, na medida em que isto é possível ao homem.
42. A potência do intelecto é, por natureza, capaz de receber o conhecimento dos corpos e dos incorpóreos. Mas é apenas pela graça que ele recebe as manifestações da Santíssima Trindade, pois então ele apenas crê, mas não se torna, por essência, presunçoso em nada, como é o intelecto demoníaco. Quem não participa do conhecimento ignora totalmente o modo da virtude que liberta do mal.
43. Quem ama a mentira entrega a si mesmo à perdição, a fim de conhecer, através do sofrimento, aquilo que ele cercava de cuidados, e a fim de aprender, instruído pela experiência, como, contra sua vontade, ele abraçava a morte ao invés da vida.
44. Apenas Deus tem conhecimento do bem, pois ele é por essência a natureza e o conhecimento do bem. E ele ignora o mal, por ser incapaz de perpetrá-lo. Pois ele possui por essência a conhecimento daquilo que ele tem o poder de fazer por natureza.
45. O peito, no Levítico, representa a mais forte e elevada contemplação. A espádua significa a ação. Ou seja, o estado e a atividade do intelecto, ou o conhecimento e a virtude, sendo que o conhecimento conduz diretamente o intelecto ao próprio Deus, e a virtude afasta-o do conhecimento dos seres pela ação: aquilo que a palavra divina consagrou aos sacerdotes, únicos a possuírem a Deus por herança para sempre e a nada possuírem de terrestre.
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46. Uma vez que aqueles que são totalmente conduzidos em espírito pelo conhecimento e a virtude propiciam aos corações dos demais receber, pela palavra do conhecimento, a piedade e a fé, apagando seu estado e sua potência ativa, eles transportam as obras da natureza corruptível para a energia dos bens incorruptíveis mais elevados do que a natureza. Com direito eles oferecem em sacrifício a Deus o peito da vítima imolada sobre o altar, ou seja, oferecem o coração; e oferecem a espádua, ou seja, a ação. A palavra de Deus ordenou que estas duas coisas sejam consagradas aos sacerdotes.
47. Toda a justiça daqui de baixo, compara com a do século futuro, tem o sentido de um espelho, de uma imagem dos modelos que são as coisas primitivas, pois ela não possui estas coisas que existem por si mesmas. E todo conhecimento das coisas supremas daqui de baixo, comparado ao conhecimento do século futuro, é um enigma, uma aparência da verdade, mas não possui, como existindo por si só, esta verdade que deverá se revelar.
48. Uma vez que as coisas divinas estão contidas na virtude e no conhecimento, o espelho mostra os modelos de virtude, e o enigma mostra os modelos de conhecimento.
49. Aquele que, pela ação, agradou a Deus, transporta pela contemplação o intelecto ao país dos inteligíveis, a fim de não ver por uma imaginação dos sentidos a morte que reside nas paixões. Pois nada do que tenta agarrá-lo consegue mais encontrá-lo.
50. Quem, pelo olho puro da fé, viu a beleza dos bens do século futuro, obedece de todo coração a ordem de deixar a terra, os parentes, a casa paterna: ele abandona a carne, os sentidos, as coisas sensíveis, a relação e a paixão. Ele é mais elevado do que a natureza no momento da tentação e dos combates, pois ele preferiu a causa à natureza, como o grande Abraão preferiu Deus a Isaac.
51. Aquele que não se aplica em buscar a virtude ou em estudar as palavras divinas pela glória ou a cupidez, por interesse, para agradar aos homens ou por ostentação, mas que tudo faz, diz e pensa por Deus, caminha no conhecimento sobre a estrada da verdade. Pois a palavra de Deus, por natureza, não gosta de ser engajada em caminhos que não os direitos, ainda que em alguns encontre a via preparada.
52. Uma pessoa jejua e se abstém do gênero de vida que inflama as paixões. Por outro lado, faz de tudo para contribuir a livrar-se do mal. Este homem preparou a via de que falamos. Mas se ele se aplica a esta ascese por vanglória, por cupidez, por interesse ou por qualquer outra causa que não a de agradar a Deus, ele não endireita os caminhos do Senhor. Ele se deu ao trabalho de preparar a via, mas não conseguiu que Deus marche sobre seus caminhos.
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53. Todo abismo será preenchido, mas não simplesmente todos os abismos, nem os abismos de todos, pois não serão preenchidos os abismos daqueles que não prepararam a via do Senhor nem endireitaram seus caminhos. Assim, enquanto o abismo – ou seja, a carne dos que prepararam como um cavalo a via do Senhor e endireitaram seus caminhos – for cumulado de conhecimento e de virtude pela chegada do Verbo de Deus que marcha neles através dos mandamentos, todos os espíritos do falso conhecimento e da malícia serão rebaixados, pois o Verbo os pisará e submeterá. Ele derrubará o poder mau sublevado contra a natureza humana, e os abaterá como à grandeza e a altura das montanhas das colinas, e os conduzirá para encher os abismos. Pois a rejeição das paixões contra a natureza e a ligação às virtudes segundo a natureza cumulam a alma, cavada como o abismo, e abate o poder dos maus espíritos, sublevado como a montanha.
54. Os caminhos rochosos, ou seja, as vertentes das provações involuntárias, serão transformadas em caminhos pavimentados, quando o intelecto, alegre, aceitar as enfermidades, aflições e necessidades, desligando-se de todo o poder das paixões voluntárias pelas penas que ele não desejou. Pois o profeta chamou de rochosos os eventos ligados às provas involuntárias, mas que se transformam em caminhos pavimentados pela paciência da ação da graça.
55. Quem busca a vida verdadeira, sabendo que toda pena, voluntária ou involuntária, torna-se a morte do prazer, que por sua vez é a mãe da morte, acolherá com alegria, regozijando-se, todas as penas rochosas das provações involuntárias. Pois, pela paciência, ele transformará as aflições em caminhos fáceis, caminhos pavimentados que, sem desvios, o levarão à recompensa que somos chamados a receber do alto: com toda piedade, ele percorrerá estes caminhos da via divina. Pois o prazer é a mãe da morte. Mas a pena – tanto a desejada como a que não foi escolhida – é a morte do prazer.
56. Qualquer um que, pela temperança, tenha conseguido reabsorver as numerosas circunvoluções e dobras do prazer mesclado de muitas maneiras às coisas sensíveis, transformou por isso mesmo os caminhos tortuosos em caminhos direitos. E qualquer um que tenha pacientemente percorrido as encostas rochosas das penas, nas quais é difícil caminhar, transformou os caminhos rochosos em caminhos pavimentados. É por isso que, como uma recompensa da virtude e dos esforços que fez por ela, aquele que lutou bem e regularmente, que venceu o prazer pelo desejo da virtude, que suscitou a dor por amor ao conhecimento e que, por uma ou outra destas ações, a conduziu nobremente nos combates divinos, verá, como está escrito, a salvação que vem de Deus.
57. Quem ama a virtude extingue em si mesmo a fornalha dos prazeres. E quem formou o intelecto pelo conhecimento da verdade, não mais detém, graças às penas involuntárias, o movimento contínuo que conduz a Deus em seu impulso.
58. Aquele que, pela temperança, tornou retos os caminhos tortuosos das paixões voluntárias, ou seja, os movimentos do prazer, e que, pela paciência aplainou as passagens rochosas das provações involuntárias, ou seja, os modos da dor, e as transformou em caminhos pavimentados, com todo direito verá a salvação
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que vem de Deus, pois seu coração é puro. Por meio das virtudes e das contemplações suscitadas pela piedade, ele vê a Deus em seu coração ao final dos combates, segundo o que foi dito: “Bem-aventurados os corações puros, pois eles verão a Deus”. Em troca das penas da virtude, ele receberá a graça da impassibilidade. Nada, mais do que esta graça, revela Deus aos que a possuem.
59. A Escritura denomina poços os corações que recebem as graças celestes do conhecimento. Estes corações, cavados pela firme palavra dos mandamentos, rejeita como a terra retirada o amor aos prazeres que leva às paixões e a relação que a natureza tem para com as coisas sensíveis. Eles são cheios de conhecimento no espírito, que lhes vem do alto, que liberta das paixões, que cria a vida e alimenta as virtudes.
60. O Senhor cava poços no deserto, ou seja, no mundo e na natureza dos homens: ele retira a terra dos corações dos que são dignos disto e os alivia do peso e dos cuidados com a matéria, e faz deles um amplo espaço capaz de receber as chuvas divinas da sabedoria e do conhecimento, para que eles deem de beber aos rebanhos de Cristo que necessitam de ensinamento ético, vale dizer, dos que têm necessidade disto devido à infantilidade de suas almas.
61. A Escritura chama a alta contemplação da natureza em espírito de “país da montanha”, cultivado pelos que vêm das imagens dos sentidos e vão em direção às razões do intelecto por meio das virtudes.
62. Por ter viva nela a lembrança de Deus, o intelecto busca o Senhor pela contemplação, não simplesmente, mas com temor do Senhor, ou seja, pela prática dos mandamentos. Pois quem busca o Senhor pela contemplação sem a ação não o encontra, porque não procurou o Senhor com temor a ele, e o Senhor não abençoou seu caminho. Pois o Senhor abre o caminho a todo homem que age com conhecimento, ensinando os modos dos mandamentos e revelando as verdadeiras razões dos seres.
63. O mais alto louvor da Divindade é uma torre que foi fortificada na alma pela energia dos mandamentos. É o que diz a Escritura: Osias construiu torres em Jerusalém. Pois quem seguiu o bom caminho em sua busca do Senhor pela contemplação, com o temor que tem em si, ou seja, pela prática dos mandamentos, constrói torres em Jerusalém, elevando louvores à Divindade, no estado simples e apaziguado da alma.
64. As razões daquilo que é parcial, aproximando-se do que é universal, reúnem o que havia sido separado. Pois o universal abarca na unidade as razões do particular, às quais o parcial se reporta naturalmente, mas do intelecto aos sentidos, do céu à terra, do sensível ao inteligível, da natureza à razão, existe em espírito uma palavra que mantém todas as coisas e lhes permite manterem-se unidas umas às outras.
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65. Quem conseguiu separar os sentidos das paixões, e que afastou a alma da relação com os sentidos, conseguiu com isto obstruir a entrada que o diabo havia aberto no intelecto por meio dos sentidos. É por isso que no deserto, vale dizer, na contemplação natural, este homem construiu como torres seguras seus pensamentos sobre os seres, todos de piedade. Quem se refugia neles não teme os demônios que pilham no deserto, vale dizer, na natureza das coisas visíveis que, pelos sentidos, desorientam o intelecto e o arrastam para as trevas da ignorância. Este não teme os demônios que, através das aparências, fazem perderem-se os homens.
66. Todo intelecto capaz de contemplação é um verdadeiro cultivador, protegendo as sementes divinas dos bens livres de toda erva daninha, com seu próprio esforço e atenção, até que surja nele, para preservá-lo, a lembrança de Deus. Pois está dito: “Ele buscou o Senhor no tempo de Zacarias que vivia no temor do Senhor”. A razão sabe que Zacarias, traduzido para o grego, significa a lembrança de Deus. É por isso que sempre oramos ao Senhor, para que guardemos em nós sua lembrança salutar, e que a obra cumprida graças à lembrança não altere a alma que atingiu a altura e ousou, como Osias, enfrentar o sobrenatural.
67. A infalível contemplação dos seres precisa de uma alma desembaraçada das paixões. Ela é chamada de Jerusalém, por causa da virtude bem ordenada e do conhecimento imaterial. E ela é suscitada, não apenas pela abstenção das paixões, como também pela abstenção das imagens sensíveis.
68. Sem a fé, a esperança e o amor, nenhum mal pode ser totalmente abolido, nenhum bem inteiramente adquirido. Com efeito, a fé persuade o intelecto combatido a recorrer a Deus: ela se torna para ele um consolo, preparando-lhe mil armas espirituais para encorajá-lo. Quanto à esperança, ela é para o intelecto a garantia verídica do socorro divino: ele recebe a promessa de que as potências contrárias serão destruídas. Enfim, o amor prepara o intelecto, mesmo quando este é combatido, a não se deixar capturar facilmente, ou antes, a permanecer imóvel na afeição divina, amarrando ao desejo de Deus toda a potência de sua natureza.
69. A fé alivia o intelecto combatido fortificando-o com a esperança no socorro. A esperança, colocando diante dos olhos o socorro no qual se acreditou, repele a agressão dos adversários. E o amor permite ao intelecto que ama a Deus deter o ataque dos inimigos, totalmente eliminado pelo impulso na direção de Deus.
70. O primogênito, o filho único da parte verdadeiramente divina, ou seja, o verdadeiro conhecimento, é a palavra que, na fé, testemunha a ressurreição divina em nós, ligada à economia necessária do julgamento, vale dizer, do discernimento, pois este distingue as sublevações da provas voluntárias. A fé bem ordenada pelas obras dos mandamentos é a primeira ressurreição de Deus morto pela falta cometida por nossa ignorância.
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71. O retorno a Deus anuncia claramente por si só o inteiro cumprimento da esperança divina. Sem este cumprimento, não existe naturalmente nenhuma inclinação para Deus, por ser próprio da esperança colocar diante dos olhos as coisas do porvir como coisas presentes e jamais deixar de chamar por Deus, que sustenta aqueles que são combatidos pelas potências contrárias: é por ele e por causa dele que os santos sustentam seu combate. Pois sem a espera de alguém, seja ela fácil ou difícil, ninguém pode naturalmente retornar ao bem.
72. Nada, tanto quanto o amor reúne verdadeiramente os que estão dispersos e cria neles a resolução única mantida por um sopor comum, esta resolução que suscita a beleza da igualdade de honra. O amor é assim o fruto da reunião e da união das forças da alma juntas ao redor das coisas de Deus, ou seja, o fruto da razão, do ardor e do desejo. Inscrevendo por meio dele na memória a beleza do esplendor divino, os que já receberam pela graça a igualdade de honra que conduz a Deus não esquecem nunca mais o impulso do amor divino, que rememora e imprime na razão que dirige a alma a beleza sem mescla.
73. Todo intelecto cingido de poder divino, como alguns anciãos e alguns príncipes, possui o poder da razão, de onde nasce naturalmente a fé gnóstica, segundo a qual ele aprende a conhecer inefavelmente a Deus sempre presente e vivo pela esperança nas coisas do porvir como nas coisas presentes. Ele possui igualmente o poder do desejo fundado pelo amor divino, pelo qual, voluntariamente aplicado à busca fervorosa da Divindade pura, ele tem em si, livre de todo entrave, o impulso que o transporta para Aquele a quem procura. Enfim, ele possui o poder do ardor, que o liga à paz de Deus para além de qualquer separação, nele concentrando o movimento do desejo em direção ao eros divino. Todo intelecto tem assim em si as potências que o ajudam a suprimir o vício e conservar a virtude.
74. Sem o poder da razão, não existe conhecimento que instrua. E sem o conhecimento não é possível nascer a fé, de onde vem, como um bom fruto, a esperança, por meio da qual o fiel vive com as coisas futuras como se fossem presentes. Sem o poder do desejo não pode nascer a busca fervorosa cujo fim é o amor: pois é próprio do desejo amar alguém. E sem o poder do ardor, que conforta o desejo e leva à união que suscita o prazer, não existe naturalmente nenhuma paz, pois a paz é verdadeiramente a fruição do amor, uma fruição total que nada pode perturbar.
75. Quem ainda não se purificou das paixões não deve se dedicar à contemplação natural pois as imagens das coisas sensíveis podem moldar e levar às paixões o intelecto que não foi perfeitamente libertado. O intelecto que, através dos sentidos, segue em sua imaginação as aparências das coisas sensíveis, suscita em si mesmo as paixões impuras: ele é incapaz de alcançar, por meio da contemplação, as coisas inteligíveis que lhe são em realidade aparentadas.
76. Aquele que fecha os sentidos no momento em que se levantam as paixões, que afasta totalmente a imaginação e a memória das coisas sensíveis e que reduz os movimentos naturais do intelecto em sua busca das coisas exteriores, graças à mão divina, deixa confusa a potência má e tirânica que se levantou contra ele.
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77. Quando a razão se torna insensata, quando o ardor é arrastado e o desejo se torna irracional, e quando a ignorância, a tirania e o deboche se apoderam da alma, o hábito do vício se torna efetivo, mesclado ao prazer que domina os sentidos.
78. O intelecto que, por seu conhecimento, é capaz de escapar dos laços invisíveis, não deve buscar a contemplação natural, nem fazer outra coisa, quando as potências do mal o assaltam, senão rezar, dominar o corpo por meio das penas, suprimir com todo fervor os cuidados terrestres e guardar as muralhas da cidade, vale dizer, as virtudes que velam sobre a alma, e os caminhos – a temperança e a paciência – que mantêm as virtudes, para que ao dar de beber à alma uma libação confusa não se afaste de Deus fingindo lançar-se a ele, fraudando por seguir os vícios da direita e levando para o pior, com a aparência de bens, a reflexão que busca o bem.
79. Quem fechou nobremente os sentidos pela temperança e a paciência refletidas e englobantes e que, pelas potências da alma, obstruiu a entrada das formas sensíveis até o intelecto, destrói facilmente as enganações do diabo devolvendo-o em confusão ao caminho pelo qual ele chegou. Ora, o caminho por onde vem o diabo são as coisas materiais que parecem confortar o corpo.
80. O intelecto que, por meio da razão, ligou a si mesmo os sentidos conforme a natureza, recolhe o verdadeiro conhecimento que extrai da contemplação natural.
81. As fontes que ficam fora da cidade, ou seja, fora da alma, que Ezequias tapou, são todas as coisas sensíveis. As águas destas fontes são os pensamentos das coisas sensíveis. O rio que separa em duas partes a cidade é o conhecimento fornecido pela contemplação natural e que provém dos pensamentos sensíveis, pois esta é uma fronteira entre o intelecto e os sentidos. Com efeito, o conhecimento das coisas sensíveis não é inteiramente estranho à potência do intelecto, nem totalmente abarcado pela atividade dos sentidos. Encontrando-se como um meio entre a convergência do intelecto para os sentidos e dos sentidos para o intelecto, realiza em si mesmo sua união recíproca. Na ordem dos sentidos, ela é moldada especificamente pelas formas das coisas sensíveis. Na ordem do intelecto, ela transforma em razões as imagens das formas. O conhecimento das coisas visíveis é chamada de rio que divide em duas a cidade, por se achar no meio dos extremos, entre o intelecto e os sentidos.
82. Aquele que permanece longe da contemplação durante as tentações, e que se agarra à oração, retirando seu intelecto de tudo para se dirigir somente a Deus, destrói o estado engendrado pela malícia e põe em fuga confuso o diabo que havia suscitado o dito estado e que, fiando-se nele, chegou à alma com sua arrogância, através de pensamentos orgulhosos, em sua revolta contra a verdade. Foi isto que conheceu e provou o grande Davi, que tinha a experiência dos desdobramentos de todos os combates do intelecto, e que disse: “Quando o ímpio estava diante de mim, eu permaneci surdo e humilhado, e me calei, por causa dos seus bens”. É isto que o divino Jeremias tinha em comum com ele, ao ordenar o povo que não saísse da cidade, pois as espadas dos inimigos cercavam-na por toda parte.
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83. Da mesma forma o bem-aventurado Abel, se tivesse se guardado e não tivesse saído ao encontro de Caim no campo, ou seja, no espaço da contemplação natural, antes de obter a impassibilidade, não veria levantar-se contra si a lei da carne, que é Caim e é chamada de Caim, e não teria sido morto, enganado pelas mentiras dos vícios da direita durante a contemplação dos seres antes de receber o estado perfeito.
84. Da mesma forma, se Dina, a filha do grande Jacó, não tivesse saído para procurar as mulheres do país, ou seja, as imagens das coisas sensíveis, Siquém, o filho de Hamor, não teria se dirigido a ela e não a teria humilhado.
85. É bom não tocarmos na contemplação natural antes do estado perfeito, a fim de que sem querer não recolhamos paixões aos buscarmos as razões espirituais das criaturas. Pois as formas aparentes das coisas visíveis reinam sobre os sentidos dos homens imperfeitos, mais do que as razões das criaturas, escondidas pelas formas, reinam sobre suas almas. Assim, aqueles que, como os Judeus, ligaram seu pensamento apenas à letra, compreendem segundo este século as promessas de bens sem mescla, ignorando os bens que, por natureza, pertencem à alma.
86. Aquele que carrega a imagem celeste esforça-se por seguir sempre o espírito da sagrada Escritura, no qual, pela virtude e pelo conhecimento, a alma permanece preservada. Mas quem carrega a imagem do terrestre não se preocupa senão com a letra, na qual se encontra o culto dos sentidos para o corpo, que suscita as paixões.
87. A virtude que apaga as paixões é o poder de Deus. E a virtude que guarda os pensamentos é o poder dos homens piedosos. É esta virtude que é engendrada pela prática dos mandamentos, por meio da qual, com a ajuda de Deus, ou antes graças ao poder de Deus, destruímos as potências do mal que se opõem ao bem. E o conhecimento da verdade é a altura de Deus. Tal conhecimento é engendrado pela pena concedida pela contemplação das criaturas e pelos suores que se seguem à prática das virtudes e que são as mães das penas. Pelo conhecimento, destruímos por completo o poder da mentira que se opõe à verdade, abatendo e derrubando toda a altura dos maus espíritos que se levantam contra o conhecimento de Deus. Pois assim como a ação engendra a virtude, também a contemplação engendra o conhecimento.
88. O conhecimento que escapa ao esquecimento, que traz em si, sem limites, ao redor da infinitude divina, o movimento do intelecto acima do entendimento, é no ilimitado a imagem da glória mais do que infinita da verdade. E a imitação livre e voluntária da sábia bondade da providência coloca sua honra na assimilação do intelecto a Deus, com toda clareza, na medida do possível.
89. A língua é o símbolo do conhecimento da alma. A garganta é o testemunho do amor egoísta natural pelo corpo. Assim, que liga um ao outro de maneira condenável não é capaz de se lembrar do estado de
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virtude e do conhecimento da paz. Em seu ardor, ele está sob o encanto e a confusão das paixões corporais.
90. Os desejos e os prazeres segundo a natureza, que não carregam a divisão nos que os têm, são como uma consequência necessária dos apetites naturais. O prazer segundo a natureza, independente de nossa vontade, vem do alimento que nos é dado, que alivia nossa fome. Vem da bebida, que mata a sede. Vem ainda do sono, que renova as forças que dispendemos no estado de vigília. Tudo o mais que se encontra entre as coisas naturais é necessário para confortar a natureza e é útil aos homens fervorosos na aquisição da virtude. É o que acontece ao intelecto, quando ele foge da confusão do pecado a fim de não permanecer, por causa dessas coisas, preso na escravidão das paixões desviadas e contra a natureza, que estão em nós, que não têm em nós outro movimento que o das paixões segundo a natureza e que não nos acompanharão até a perpetuidade na vida imortal.
91. As palavras de Deus, pura e simplesmente proferidas, não são entendidas, por não terem por voz a ação dos que a proferem. Mas se elas são proferidas pela prática dos mandamentos, elas dissolvem os demônios sob o efeito desta voz e, pelo progresso das obras da justiça, ajudam os homens a edificar na obediência o templo divino do coração.
92. Assim como Deus, em sua essência, não está sujeito ao conhecimento, também sua palavra não é abarcada pelo nosso conhecimento. Com efeito, a palavra da sagrada Escritura, mesmo que possa ser descrita segundo a letra, se limita ao tempo das coisas que são contadas. Mas, pelas contemplações do inteligível, segundo o espírito, é sempre impossível descrevê-las.
93. Aquele que, pelo conhecimento, em vista da alma, compreende segundo Cristo a sagrada Escritura, deve também trabalhar para explicar os nomes, sendo capaz de esclarecer o sentido das palavras escritas, se se preocupar com sua compreensão exata. Mas ele não deve, como os Judeus, trazer para o corpo e para a terra a altura do Espírito, nem circunscrever na corrupção das coisas que passam as promessas divinas e puras dos bens inteligíveis.
94. Assim como o voto é a promessa dos bens que os homens oferecem a Deus, também a prece dita como se deve será claramente o pedido dos bens que Deus dispensa aos homens para sua salvação, e esta demanda implica que seja dada em troca a boa disposição das premissas. Quanto ao apelo, ele é o desenvolvimento e o crescimento dos modos virtuosos da ação e das visões gnósticas da contemplação, no tempo em que se levantam os demônios malignos. Por este apelo, Deus escuta, antes de tudo, naturalmente, como uma voz forte, a disposição daqueles que se aplicam à virtude e ao conhecimento.
95. O reino mau e funesto do diabo, que é figurado pelo reino dos Assírios e que concentrou o combate contra a virtude e o conhecimento, imagina derrubar a alma pelas potências que estão nela. Primeiramente
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Centúrias sobre a teologia e a economia da encarnação do Verbo de Deus – Quarta centúria.
pelo desejo, empurrando-a a cobiçar as coisas que são contra a natureza e persuadindo-a a preferir o sensível ao inteligível. Depois pelo ardor, encorajando-a a lutar pelo sensível que o desejo escolheu. Enfim, pela razão, ensinando-a a conceber os modos dos prazeres dos sentidos.
96. É próprio da bondade extrema não apenas ter feito com que as essências divinas e incorpóreas das coisas inteligíveis sejam as imagens da glória inefável de Deus, recebendo nelas analogicamente e na medida do possível toda o incompreensível esplendor da beleza inacessível, mas também haver mesclado às coisas sensíveis, que estão tão abaixo das essências inteligíveis, os ecos de sua própria grandeza capazes de conduzir a Deus sem se perder o intelecto humano levado por elas, elevado acima de todas as coisas sensíveis, após ter chegado à extrema beatitude.
97. A toda inteligência coroada de virtude e conhecimento é dado reinar como o grande Ezequias sobre Jerusalém, ou seja, sobre o estado que vê apenas a paz total, a condição desembaraçada de paixões de toda espécie. Pois Jerusalém significa a visão da paz. Pelas formas que a preenchem, ela tem em seu poder toda a criação que leva a Deus, como dons, por causa de si mesma, as razões espirituais do conhecimento que ela possui, que lhe oferece igualmente como presente os modos da lei natural que nela existem e que conduzem à virtude, enfim, que, pelos dois – as razões e os modos – acolhe o que pode ser mais honrado segundo uns e outros, vale dizer, o intelecto que ama a sabedoria e que, em palavras e vida, alcança a perfeição pela ação e a contemplação.
98. Aquele que, pela ação e a contemplação, conduziu com sucesso até o fim a virtude e o conhecimento, sobrepuja com justiça todas as paixões condenáveis da carne. Ele também está acima dos corpos chamados naturais, ou seja, dos seres submetidos ao devir e à corrupção. Em uma palavra, está, em sua contemplação, acima de todas as formas submetidas aos sentidos e ultrapassou, em seu conhecimento, todas as razões contidas nelas. Este homem elevou seu intelecto até as coisas divinas que lhe são aparentadas.
99. Quem conseguiu habitar a impassibilidade, como Jerusalém, pelas penas da ação, que se livrou de todos os tormentos do pecado, que não faz, não diz, não escuta, não considera senão a paz, depois de ter recebido pela contemplação natural a natureza das coisas visíveis, a qual, por ele, oferece ao Senhor como dons as razões mais divinas que contém e lhe entrega como a um rei as leis que nela estão, este elevou-se acima de todas as nações: ele está acima de todos. Vale dizer que, pela ação, ele está acima das paixões da carne e que, pela contemplação, ele está acima dos corpos naturais e de todas as formas percebidas pelos sentidos, pois ele alcançou as razões e os modos espirituais que estão nelas.
100. A filosofia ativa eleva o monge ativo acima das paixões. A contemplação eleva o monge gnóstico acima das coisas visíveis, levando seu intelecto até as coisas inteligíveis que lhe são aparentadas.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Centúrias sobre a teologia e a economia da encarnação do Verbo de Deus – Quinta centúria.
QUINTA CENTÚRIA
1. Quem conhece ao mesmo tempo em que age, e que age ao mesmo tempo em que conhece, é o trono e o pedestal de Deus. É o trono, por causa do conhecimento, e o pedestal, por causa da ação. E se alguém disser que o intelecto humano é um céu quando purificado de toda imagem material e consagrado às maravilhas divinas das coisas inteligíveis, ou antes enfeado com a beleza das razões, não me parece que esteja longe da verdade.
2. Todo homem que ama a sabedoria, ou seja, que é piedoso, que é protegido pela virtude, ou pela ação e a contemplação, ao ver o poder do mal levantar-se contra si através das paixões como o rei dos Assírios se voltou contra Ezequias, tem, para se livrar do mal, um único recurso: Deus, com o qual ele se concilia sem jamais se calar, sempre estendendo diante de si a virtude e o conhecimento. Ele assim recebe um anjo que o assiste, ou antes que o salva, vale dizer, uma palavra de sabedoria e conhecimento, que destrói no campo dos adversários todos os homens fortes e todos os combatentes, todos os príncipes e todos os senhores da guerra.
3. O sensível ao qual nos ligamos está naturalmente na origem de toda paixão. Pois sem uma coisa inicial que coloca em movimento para si as potências da alma por meio de um dos sentidos, jamais se formaria uma paixão. Sem algo sensível, nenhuma paixão se forma. Se não existir uma mulher, não existirá a prostituição; se não houver comida, não haverá gula; se não existir ouro, não existirá avareza. Portanto, o sensível, vale dizer, o demônio que por meio dele excita a alma em vista do pecado, está na origem de todo movimento passional das potências naturais que existem em nós.
4. O apagamento do mal suprime sua energia, e sua extirpação suprime o próprio pensamento. Pois o apagamento é a libertação da ação passional, tal como se exerce em sua energia; mas a extirpação é a desaparição total dos movimentos maus dos pensamentos.
5. O sensível e o inteligível são intermediários entre Deus e os homens. O intelecto humano que avança para Deus está acima deles. Na ordem da ação, ele não está sujeito ao sensível. E na ordem da contemplação, ele não é retido pelo inteligível.
6. A criação acusa os homens ímpios. Pois, pelas razões que estão nela, ela proclama seu Criador. E pelas leis naturais que nela regem cada espécie, ela dirige o homem para a virtude. Portanto, as razões são conhecidas pela continuidade da permanência de cada espécie. E as leis são manifestadas pela identidade da energia natural da espécie em cada um. Por não nos ligarmos a elas com todo o poder do intelecto que existe em nós, nós ignoramos a causa dos seres e fomos consumidos por todas as paixões contra a natureza.
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7. A fim de revelar o infinito da bondade divina, o Verbo ordenou que sejam oferecidos por nós dons a Deus, e ele recebe de nós como dons aquilo que oferecemos, considerando que nossa oferenda é tudo, mesmo que ela não quite nada previamente. Ele mostra que a bondade de Deus é grande e inefável ao redor de nós, pois Deus recebe como se fossem nossas as coisas que são dele e que nós lhe oferecemos, e ele reconhece que nos deve estas coisas, como se lhe fossem estranhas.
8. O homem que compreende as razões espirituais do visível aprende que existe um Criador das coisas aparentes, mas deixa sem examinar, por entendê-la inacessível, a questão de saber quem é o Criador. A criação visível permite, com efeito, compreender claramente que existe um Criador, mas não quem é o Criador.
9. A cólera de Deus é o sofrimento que sentem aqueles que recebem a instrução. E o sofrimento que eles sentem é a irrupção das penas involuntárias por meio das quais Deus costuma levar o intelecto a se encerrar e se humilhar, quando este se mostra inflado pela virtude e o conhecimento. Assim ele lhe permite conhecer a si mesmo, e testemunhar sua própria fraqueza. Quando ele a entende, ele se livra do vão inchaço do coração.
10. A cólera de Deus é a suspensão do dom dos carismas divinos, infligida para seu próprio bem a todo intelecto que se levanta, se incha e se orgulha dos bens que lhe são dados por Deus, como se estes viessem de suas próprias ações direitas.
11. Todo intelecto gnóstico e filosófico possui em si Judá e Jerusalém. Judá, que é como a filosofia ativa, e Jerusalém, que é como a mistagogia contemplativa. Portanto, quando, pela graça divina, o intelecto que ama a Deus e que afastou, seguindo a filosofia ativa e contemplativa, toda potência contrária à virtude e ao conhecimento, que cingiu-se perfeitamente com a força que se opõe aos espíritos de malícia, mas que não rendeu a Deus, que é origem de sua vitória, a ação de graças que lhe é devida, mas glorificou-se em seu coração considerando ser ele mesmo a causa da ação direita, então, por não ter rendido a Deus a oferenda que devia lhe dar em retribuição, não apenas receberá sobre si a cólera do abandono, mas também Judá e Jerusalém – ou seja, os estados de ação e de contemplação – receberão, por uma permissão de Deus, de uma parte a cólera das paixões que se levantam contra a ação e mancham a consciência que até então estava pura, e de outra parte a cólera dos pensamentos enganadores mesclados à contemplação dos seres e que entortam a doutrina do conhecimento, que até então era direita. Pois a desonra das paixões segue a quem se orgulha da ação. E o justo julgamento permite que aquele que se glorifica do conhecimento decaia da verdadeira contemplação.
12. Existe nos seres uma condição e uma lei da providência, ambas divinas em verdade, que permite que sejam castigados pelas adversidades, para adquirir a gratidão, aqueles que parecem insensíveis ao melhor. Elas permitem também que a experiência das coisas contrárias dê a conhecer a potência divina que dirige os bens, a fim de que, mesmo que a providência permita que nossa presunção não seja inteiramente destruída sobre a via do melhor, não escorreguemos para o estado de orgulho oposto a Deus pensando que
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a posse da virtude e do conhecimento seja fruto de nosso labor, a fim de que não utilizemos o bem para que nos venha o mal. Seria preciso que, nestas condições, o conhecimento divino permanecesse inquebrantável, ainda mais solidamente ligado a nós, ainda que, para o demais, estivéssemos doentes de ignorância.
13. Sabemos que existe nos seres uma condição e uma lei divinas, que são a providência que engloba todos os seres. Segundo um justo julgamento, a providência castiga pela raridade dos bens, e para que dela adquiram a gratidão aqueles que se mostram sem reconhecimento pela abundância destes bens para com Aquele que os deu. E pelas adversidades, ela os leva a saber discernir Aquele concede tais bens. Pois a presunção da virtude, se não for corrigida, engendra facilmente a doença do orgulho, que traz em si o estado oposto a Deus.
14. Quem considera que já alcançou o fim da virtude, não mais buscará daí por diante a causa que é a fonte dos bens: este encerrou em si apenas a potência do desejo, e priva a si mesmo da condição da salvação, ou seja, Deus. Mas quem sentiu o quanto os bens lhe faltam naturalmente, jamais cessa de correr adiante para Aquele que pode cumular sua indigência.
15. Quem provou do infinito da virtude não cessa mais de correr por seu caminho, para não se provar do próprio princípio e do fim da virtude, ou seja, de Deus, detendo ao redor de si mesmo o movimento do desejo, e para não considerar sem querer que chegou à perfeição, o que o faria decair daquilo que é verdadeiramente e daquilo para o que tende todo movimento do monge fervoroso.
16. A cólera, ou seja, o abandono, como foi dito, castiga justamente o intelecto orgulhoso. Com efeito, Deus permite que ele seja perturbado pelos demônios durante a contemplação, a fim de que ele tome consciência de sua própria fraqueza natural, que ele reconheça a potência e a graça divinas que o recobrem e assumem a totalidade dos bens, que ele se humilhe afastando de si toda altura estranha e contra a natureza, e que assim, rebaixado e sentido Aquele que lhe concede os bens, a outra cólera não o atinja, aquela que retira os carismas concedidos.
17. Aquele que não recebeu da primeira forma de cólera – o abandono – a sabedoria para alcançar a humildade, considerando que esta ensina o bom juízo, receberá claramente a outra cólera, que virá sobre ele retirando-lhe a energia dos carismas e o despojando de sua potência, que o protegia até então. Pois Deus disse da ingratidão de Israel: “Eu retirarei sua proteção e ela será levada. Abaterei seus muros, que serão pisoteados. Eu abandonarei minha vinha, e ela não será podada nem arrancada. Ali nascerão espinheiros como numa terra inculta, e eu ordenarei às nuvens para que não deixem cair ali a chuva”.
18. Existe ainda um caminho que inclina à impiedade: é o de não sentir que prejudicamos as virtudes. Pois aquele que está habituado a desobedecer a Deus por meio dos prazeres da carne, renega o próprio Deus na
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primeira ocasião. Pois ele prefere a Deus a vida na carne, que ele considera oferecer mais prazeres do que as vontades de Deus.
19. Quando julgamos que o intelecto foi afetado de um modo ou de outro, acreditamos que sua potência de agir e de contemplar foi afetada junto com ele, de alguma maneira, segundo as razões naturais da ação e da contemplação. Pois não é possível que o fundamento seja afetado e que aquilo que ele sustenta não o seja. Chamo de fundamento o intelecto, pois é ele quem recebe a virtude e o conhecimento. E chamo aquilo que ele sustenta de ação e contemplação, que dirigem para o intelecto a razão dos eventos; é por isso que, de alguma maneira, elas são afetadas junto com o intelecto afetado, pois elas têm seu movimento, que é o começo de sua própria transformação.
20. Todo homem virtuoso e amado por Deus, como o foi Ezequias, todo homem que, em seu conhecimento, cingiu-se do poder contra os demônios, quando é agredido pelos maus espíritos que o combatem invisivelmente em seu intelecto e recebe pela oração um anjo enviado por Deus, vale dizer, uma palavra de sabedoria, se dispersar e destruir toda a falange do diabo mas não atribuir a Deus tal vitória e salvação, mas atribuir a si mesmo toda a vitória, este homem não terá agradecido a Deus o que recebeu dele, pois não deu à sua ação de graças a amplitude igual à grandeza da salvação, e não ofereceu as disposições de sua própria alma em retribuição à benfeitoria d'Aquele que o salvou.
21. Iluminemos o intelecto com pensamentos divinos e o corpo com alegria pelos modos das razões refletidas e mais divinas ainda, fazendo do intelecto um lugar da razão onde é elaborada a virtude pela rejeição das paixões. Pois as paixões inatas do corpo, quando dirigidas pela razão, não dividem. Mas quando elas se desenvolvem sem a razão, trazem consigo a divisão. É preciso rejeitá-las, pois, se seu movimento é inato, seu uso é muitas vezes contra a natureza, caso não sejam governadas pela razão.
22. Quem quer que tenha glorificado seu coração orgulhando-se dos carismas recebidos e fazendo como se ele não os houvesse recebido, com toda justiça será atingido pela cólera. Pois Deus permite então ao diabo que se una a este homem em espírito, sacudindo os modos pelos quais age a virtude e perturbando as razões claras do conhecimento dadas pela contemplação, a fim de que, tendo aprendido com sua própria fraqueza, este homem reconheça a única potência que combate em nós as paixões, e se humilhe arrependendo-se, rejeitando o inchaço da presunção, se reconcilie com Deus e escape à cólera, que cai sobre os que não se arrependem, afastando a graça que protege a alma e deixando vazio o intelecto.
23. A cólera salvadora é a permissão que Deus dá aos demônios para combater por meio das paixões o intelecto orgulhoso, a fim de que, sofrendo na desonra por ter se orgulhado das virtudes, este aprenda a saber quem é Aquele que dá estas virtudes, ou então que ele seja despojado dos bens que lhe eram estranhos e que ele pensava possuir como se não os tivesse recebido.
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24. Verdadeiramente bem-aventurado é o intelecto que, de modo digno de louvor, morreu para todos os seres. Ele está morto para as coisas sensíveis pela retirada da energia dos sentidos; e está morto para as coisas inteligíveis pela detenção do movimento da inteligência. Note que a morte louvável do intelecto acolhe naturalmente a vida que provém da graça divina. Em lugar dos seres, ele terá recebido de maneira incompreensível Aquele que é a origem dos seres.
25. Bem-aventurado aquele que uniu a vida ativa ao bem segundo a natureza e a vida contemplativa à verdade segundo a natureza. Pois toda ação se faz naturalmente para o bem. E toda contemplação busca o conhecimento apenas pela verdade. Quando se leva uma e outra a termo, absolutamente nada mais atingirá a vida ativa da alma, e a duração das coisas contempladas não virá apagar sua vida contemplativa. Pois a alma estará então além de todo ser e de todo pensamento, e terá entrado em Deus, único bom e verdadeiro acima de todo ser e de todo entendimento.
26. O fim da virtude ativa, se diz, é o bem. Este é o cumprimento da energia divina, que conduz a razão da alma, que se serve do ardor e do desejo segundo a natureza, quando na alma aparece naturalmente a beleza criada à semelhança de Deus. E o fim da filosofia contemplativa, diz-se é a verdade, que é indivisivelmente o conhecimento simples de todas as coisas de Deus, este conhecimento para o qual se dirige o intelecto puro, que apagou totalmente de si mesmo o julgamento dos sentidos. Vale dizer que, neste conhecimento, se mostra sem a menor alteração a dignidade da imagem de Deus.
27. Ninguém pode verdadeiramente bendizer a Deus se não santificou o corpo pela virtude, se não iluminou a alma com os conhecimentos. Pois o estado de virtude é a face do intelecto contemplativo, esta face que se eleva como o céu até a altura do verdadeiro conhecimento.
28. Bem-aventurado aquele que sabe em verdade que é Deus quem cumpre em nós, que somos como que seus instrumentos, toda ação e toda contemplação, toda virtude e todo conhecimento, toda vitória e toda sabedoria, toda bondade e toda verdade, quando nós mesmos não contribuímos com nada outro do que nossa disposição em querer o bem. O grande Zorobabel tinha esta disposição, e falava das coisas que mencionamos acima quando declarava a Deus: “Bendito seja, você que me deu a sabedoria, e eu lhe confesso, Senhor dos Pais: de você vem a vitória, a sabedoria, sua é a glória, eu não passo de um servidor”. Como um servidor verdadeiramente reconhecido, ele rendia tudo a Deus quem lhe havia dado, de quem ele havia recebido e possuía a sabedoria, e ele reconhecia como do Senhor dos Pais o poder dos bens com os quais ele havia sido gratificado e que eram, como foi dito, a união da vitória com a sabedoria, da virtude com o conhecimento, da ação com a contemplação, da bondade com a verdade, que, em união entre si, brilhavam como o raio da glória e do esplendor únicos de Deus.
29. Todas as obras direitas dos santos eram manifestamente carismas de Deus. Nenhum deles, com efeito, possuía algo além do bem que lhe foi dado, medido pelo Senhor Deus na proporção do conhecimento e da bem-aventurança daquele que o recebia e não possuía senão as coisas que apresentava ao mesmo Mestre que as havia dado.
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30. O intelecto que preside a virtude e o conhecimento e que deseja que a alma seja liberta da escravidão das paixões diz: “As mulheres a transportam e a verdade triunfa”. As mulheres são as virtudes deificantes pelas quais o amor unificante – o amor a Deus e o amor mútuo – é dado aos homens. Este amor arranca a alma de todas as coisas sujeitas ao devir e à corrupção, mas também às essências inteligíveis que estão acima destas coisas. Ele abraça a Deus como se abraça numa união amorosa, na medida em que isto é possível à natureza humana. E ele suscita misticamente uma intimidade pura e divina. Enfim, o intelecto denomina “verdade” apenas a causa única e singular dos seres – a origem e o Reino, o poder e a glória – pela qual e para a qual tudo foi e é feito. É por ela e por causa dela que todo fervor e todo movimento são dados àqueles que são amados por Deus.
31. Por “mulheres” a Escritura mostrou o fim das virtudes, que é o amor, ou seja, o prazer sem mácula e a união indivisível extraídos do desejo dos que participam do bem por natureza. E por “verdade” ela simbolizou o termo de todos os conhecimentos e de todas as coisas conhecidas em si mesmas: aquilo para o que são atraídos por uma razão geral, como para a origem e o termo de todos os seres, os movimentos da natureza, quando a origem e a causa dos seres – a verdade – a tudo venceu segundo a natureza, e atrai para si o movimento das criaturas.
32. Quando nos afastamos totalmente do múltiplo, a verdade aparece naturalmente como uma só e única coisa. Ela recobre as faculdades do conhecer naqueles que podem compreender ou serem compreendidos, pois, por sua existência acima do ser, ela está acima do que pensa e do que é pensado, Englobando com sua potência infinita as extremidades dos seres desde sua origem até seu fim, ela atrai para si todos os movimentos de todos. A uns ela concede o conhecimento claro da graça de que estavam privados. A outros, uma percepção inefável e por participação, o conhecimento evidente da bondade que eles desejavam.
33. O intelecto é o órgão da sabedoria. A razão é o órgão do conhecimento. A plenitude natural dos dois é o órgão da fé, que procede de um e outro. E o amor natural dos homens é o órgão dos carismas e das curas. Pois todo carisma divino tem em nós um órgão apropriado e inato que o recebe; este órgão é como uma potência, ou um estado, ou uma disposição. Assim, aquele que purificou o intelecto de toda imaginação das coisas sensíveis, recebe a sabedoria. Aquele que permitiu à razão dominar as paixões que nos são naturais, vale dizer, o ardor e o desejo, recebe o conhecimento. Aquele que possui a inquebrantável certeza das coisas divinas em seu intelecto e sua razão, recebe a fé que tudo pode. E quem levou a bom termo o amor natural pelos homens, depois de se ter separado totalmente do egoísmo, recebe os carismas e as curas.
34. Cada um de nós possui a energia manifesta do Espírito em proporção à própria fé. Assim sendo, cada qual é o intendente de sua própria graça. Jamais alguém de boa disposição poderá invejar aquele que é honrado pelas graças, uma vez que nele repousa a disposição de receber os bens de Deus.
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35. O que faz com que os bens de Deus permaneçam em nós é a medida da fé de cada um. Pois é na medida em que cremos que nos é dado o fervor para agir. Portanto, que age revela a medida de sua fé na proporção de sua ação: ele recebe a graça na medida daquilo em que acredita. Mas quem não age revela a medida de sua incredulidade na proporção de sua inércia: ele recebe a privação da graça segundo sua descrença. O invejoso faz mal em denegrir aqueles cuja obra é reta, quando é a ele e a nenhum outro que é pedido escolher que creia, para receber a graça na medida de sua fé.
36. Aquele que é presa dos bens [celestes] se deixa levar voluntariamente pelas razões da sabedoria da providência em direção à graça da deificação. E aquele que não ama os bens [celestes] é involuntariamente desviado do mal pelos modos do castigo, de acordo com um justo julgamento. Um, por ser amado por Deus, é deificado pela providência. Mas o julgamento não permite que o segundo, que ama a matéria, seja condenado. Pois Deus, em sua bondade, cuida daqueles que o querem pelas razões da sabedoria, e cura pelos modos do castigo os que têm dificuldade em se engajar no caminho da virtude.
37. A verdadeira fé é a verdade que abraça e reúne, pois ela é isenta de mentira. E a boa consciência traz consigo o poder do amor, pois ela não transgrede jamais um único mandamento.
38. A Escritura diz que sete espíritos repousarão sobre ele: o espírito da sabedoria, o espírito da inteligência, o do conhecimento, o da ciência, o espírito do conselho, o da força, o do temor a Deus. E os seguintes são próprios destes carismas espirituais: é próprio do temor a rejeição do mal; é próprio da força a prática do bem; é próprio do conselho o discernimento dos adversários; é próprio da justiça a justa percepção dos deveres; é próprio do conhecimento a compreensão ativa das razões divinas que residem nas virtudes; é próprio da inteligência a total disponibilidade da alma em relação àquilo que ela conhece; é próprio da sabedoria a união incognoscível que leva a Deus, união pela qual, nos que são dignos, o desejo se torna fruição, pois ela torna, por participação, um Deus aquele que a experimenta e lhe permite ser um intérprete da beatitude divina, em seu impulso e sua aproximação inesgotáveis e irreversíveis que a conduzem para aqueles que rezam pelos mistérios divinos.
39. O espírito de temor a Deus é a abstenção do mal ativo. O espírito da força é o impulso e o movimento ferventes que conduzem à energia e à prática dos mandamentos. O espírito do conselho é o estado de discernimento, que nos permite, com a razão, praticar os mandamentos divinos e separar o melhor do pior. O espírito da ciência é a infalível percepção dos modos da ação virtuosa: praticando, graças a ela, o correto julgamento da razão, não caímos jamais. O espírito do conhecimento é a compreensão dos mandamentos e das razões contidas neles, segundo as quais são formados os modos das virtudes. O espírito da inteligência é o consentimento aos modos e às razões das virtudes, ou mais precisamente a transformação pela qual as potências naturais se unem aos modos e às razões dos mandamentos. O espírito da sabedoria é a restauração e a união que conduz para a causa os mais espirituais dos mandamentos, união pela qual, no incognoscível, simplesmente iniciados nas razões dos seres que estão em Deus, na medida do possível, nós oferecemos de diversas maneiras aos homens a verdade que está em tudo, como de uma fonte que brota do coração.
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40. Das últimas coisas criadas por Deus, que estão próximas de nós, devemos nos elevar progressivamente e em ordem até as primeiras coisas, que estão longe de nós mas próximas de Deus. Pois da abstenção do mal pelo temor alcançamos a prática das virtudes pela força. Da prática das virtudes, passamos ao discernimento do conselho. Do discernimento, chegamos ao estado de virtude, ou seja, à ciência. Do estado de virtude, atingimos o conhecimento das razões que estão contidas nas próprias virtudes. Do conhecimento, entramos no estado de renovação que conduz às razões conhecidas das virtudes, vale dizer, a inteligência. Enfim, da inteligência abordamos a contemplação simples e precisa da verdade que está em todas as coisas. E, lançando-nos de tal contemplação, testemunhamos em retorno a verdade das palavras piedosas, numerosas e diversas, extraídas da sábia contemplação das essências sensíveis e inteligíveis dos seres.
41. O primeiro bem a agir sobre nós – o temor – foi colocado em último lugar pelo texto da Escritura, que o chama de começo da sabedoria. Levados pelo temor, nós nos elevamos até o fim da sabedoria, que é a inteligência, depois da qual nos aproximamos do próprio Deus, porque a sabedoria é a única capaz de assegurar por seu intermédio nossa união com Deus. Pois não é possível que receba a sabedoria quem, pelo temor e por meio de outros carismas que nos foram distribuídos, não tenha antes sacudido de si a peste da ignorância e a poeira da malícia. É por isso que a ordem da Escritura coloca a sabedoria perto de Deus e o temor perto de nós, a fim de que aprendamos a condição e a lei na ordem correta.
42. Assim, elevando-nos com os olhos da fé, ou seja, pelas iluminações, somos conduzidos para a unidade divina da sabedoria. Pelas elevações parciais das virtudes, fazemos convergir para sua causa comum os carismas que nos foram distribuídos, sem omitir nenhum dos citados, com a ajuda de Deus, a fim de que não tornemos cega e sem olhos nossa fé, privada das luzes que as obras do Espírito fornecem, por nos deixarmos levar pouco a pouco pela negligência, e para que não sejamos castigados com justiça nos séculos infinitos por termos cegado em nós mesmos os olhos divinos da fé, na medida em que isto estava em nosso poder.
43. Quem quer que tenha fechado em si os olhos da fé, por não praticar os mandamentos, está condenado de um modo ou de outro, pois Deus não o olha mais. De fato, se a palavra divina chama de energias do Espírito os olhos do Senhor, quem não abre seus próprios olhos pela prática dos mandamentos não tem em si a Deus que o olhe. Pois, como é natural, Deus não olha com outros olhos aqueles que estão sobre a terra, uma vez que a luminosidade de nossa virtude é um raio da visão divina.
44. A sabedoria é uma unidade, indivisivelmente contemplada nas diferentes virtudes que ela suscita, depois concebida em sua forma única por suas energias, e novamente revelada como uma unidade simples a partir do momento em que as virtudes que dela provinham se restabelecem nela, quando nós mesmos, para que ela as faça progredir paulatinamente, convirjamos para ela, impulsionados para frente por cada virtude.
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45. Quem não cumpre as ordens divinas da fé tem a fé cega. Pois, se as ordens de Deus são luz, isto significa que quem não cumpre as ordens divinas de Deus está desprovido da luz divina. Ele deixa sem resposta o apelo divino; verdadeiramente, ele não responde.
46. Ninguém, tendo pecado, pode tomar para se defender a fraqueza da carne. Pois a união com Deus o Verbo deu força a toda a natureza, destruindo a maldição e retirando todo pretexto da tendência de nossa vontade pelas paixões. A divindade do Verbo que, pela graça, se une sempre aos que nele creem, quebrou, com efeito, a lei do pecado da carne.
47. Aquele que, pela fé em Deus e o amor por ele, venceu as tolas concupiscências e com elas os movimentos irracionais das paixões contra a natureza, da mesma forma ultrapassou a lei natural e transportou-se inteiro para o país dos inteligíveis. E ele expulsa de si o que lhe é aparentado por natureza, assim o que lhe chega da escravidão que lhe é estranha.
48. O conhecimento ligado à ação que não possui o freio do temor a Deus, suscita o orgulho, pois convence aquele que se orgulha dele de considerar como seu aquilo que é emprestado, usando para seu próprio louvor a atributo da palavra. Mas a ação que cresce com o desejo de Deus e não coloca o conhecimento acima do que faz, torna humilde o monge ativo, o qual, segundo as razões que ultrapassam seu próprio poder, se retira para dentro de si mesmo.
49. O estado impassível da virtude e o conhecimento que não contém em si nenhum pensamento errôneo que combata este estado são uma morada celeste.
50. Assim como o múltiplo é o fim da unidade em movimento e a unidade é o começo do múltiplo imóvel (pois a imobilidade em si é nitidamente o começo de todo fim e o cumprimento do movimento em si é o fim de todo começo), também a fé, que é o começo das virtudes segundo a natureza, tem por fim o cumprimento do bem que elas suscitam. E o bem segundo a natureza, que é o fim das virtudes e que tem por começo a fé, é conduzido interiormente para esta última. Pois a fé é o bem interior, e o bem é a fé operando. Deus é fiel e bom por natureza; ele é bom, por ser o primeiro bem, e é fiel por ser a última instância visada pelo desejo. A bondade e a fidelidade, que estão ligadas uma à outra, constituem a mesma coisa, pois, salvo se as moldarmos como um projeto, não existe nenhuma razão para que elas se dividam, por causa do movimento que se inicia e termina nele. Portanto, o múltiplo, que traz em si a empresa da aspiração última do desejo, abarca o impulso perfeito daquilo que se dirige a este ponto último. E a unidade, que traz o signo do primeiro bem, traz consigo o fundamento perfeito daquilo que provém daquele bem.
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51. A primeira impassibilidade é a total abstenção do mal ativo: podemos observá-la nos noviços. A segunda impassibilidade é a rejeição total, na reflexão, dos pensamentos que consentem no mal: ela cabe aos que buscam a virtude com a razão. A terceira impassibilidade é a total imobilidade do desejo que leva às paixões, naqueles que, através das formas, contemplam em seu intelecto as razões do visível. A quarta impassibilidade é a total purificação do próprio imaginário, nos que fizeram de sua razão um espelho de Deus, puro e transparente, pelo conhecimento e contemplação. Assim, aquele que se purificou da energia das paixões, que se libertou do consentimento que lhe era trazido por seus pensamentos, que deteve o movimento do desejo que o levava para elas e que protegeu seu intelecto de ser manchado por sua simples imaginação, este, tendo em si as quatro impassibilidades gerais, deixa a matéria e as coisas materiais e vai receber sua parte nas coisas inteligíveis, o espiritual, o divino, o pacífico.
52. A primeira impassibilidade é o movimento ativo, intocável, dirigido contra os pecados do corpo. A segunda impassibilidade é a rejeição perfeita dos pensamentos passionais da alma, por meio da qual se domina o movimento das paixões que não apareciam na primeira impassibilidade, incendiando-a e levando-a a agir. A terceira impassibilidade é a perfeita imobilidade do desejo que conduz às paixões, imobilidade pela qual foi suscitada a segunda impassibilidade, fundada pela pureza dos pensamentos. Enfim, a quarta impassibilidade é o abandono de todas as imaginações sensíveis pelo pensamento, abandono do qual nascera a terceira impassibilidade, que não possuía imaginações das coisas sensíveis para formar imagens das paixões.
53. Em todo monge ativo, como se fossem servos, a razão e o pensamento trabalham, concebendo e suscitando os modos de ação virtuosa depois de se terem oposto com toda sua potência aos espíritos contrários de malícia e de ter conduzido com sucesso a filosofia prática, representada pelo sexto ano (pois se diz que o número seis designa a filosofia prática). Vale dizer que a razão e o pensamento, depois de alcançarem a contemplação das razões inatas que estão contidas nos seres, partem livres para a filosofia espiritual.
54. O ardor e o desejo são servos estrangeiros que, por sua coragem e castidade são continuamente postos pelo intelecto ativo sob o jugo da razão para servirem às virtudes, sem deixá-los partir em liberdade até que a lei da natureza tenha sido perfeitamente absorvida pela lei do Espírito, como a morte da carne miserável é absorvida pela vida infinita, e até que se tenha revelado em sua pureza toda imagem do Reino que não tem começo, trazendo em si por imitação a forma total do Modelo. Feito a esta imagem, o intelecto contemplativo deixa livres o ardor e o desejo, conduzindo o desejo para o prazer sem mescla e a atração sem mancha do eros divino, e transportando o ardor para a ebulição espiritual, o calor da imobilidade e a sabedoria do delírio amoroso.
55. A imagem do Reino que não tem começo é a imobilidade do intelecto voltado para o verdadeiro conhecimento, e a incorruptibilidade dos sentidos voltados para a virtude, quando alma e corpo – quando em espírito os sentidos se transformam no intelecto – se unem um ao outro apenas pela lei divina do Espírito: com esta transformação, eles têm em si a energia penetrante do Verbo, sempre em movimento e continuamente vivo, no qual toda irracionalidade é totalmente afastada do divino.
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56. O prazer é o desejo em ação, na medida em que este é um bem presente conforme sua definição. O ardor é o movimento ativo do delírio amoroso, e o delírio amoroso é o ardor em ação. Assim, aquele que submeteu suas potências à razão, encontrará nela o desejo transformado em prazer quando, pela graça, a alma se unir ao divino sem nenhuma mancha. E encontrará o ardor, a ebulição pura, o delírio amoroso do prazer do divino, este sábio delírio que o protege quando o impulso da potência atraída da alma o faça deixar os seres. Portanto, na medida em que o mundo vive em nós e que a alma está por si mesma em relação com as coisas materiais, não devemos dar liberdade a estas potências, para evitar que, misturadas às coisas sensíveis como se estas lhe fossem aparentadas, elas combatam a alma e a capturem, prisioneira das paixões, como outrora os Babilônios tomaram Jerusalém. Pois o Verbo quis dizer que havia uma relação de conhecimento entre a alma e este mundo, o século no qual a Lei ordenou que fossem sujeitados os filhos dos estrangeiros, sendo este mundo a vida presente: com isto ele mostrou o sentido espiritual das coisas reportadas pela história.
57. O mal teve um começo: este começo foi nosso movimento contra a natureza. Mas o bem não teve começo, pois ele é o bem por natureza antes de todos os séculos e de todos os tempos. O bem é inteligível: só é preciso compreendê-lo. Mas o mal não é inteligível: só é preciso não compreendê-lo. O bem é falado, pois só é preciso enunciá-lo. E é advindo, pois, sendo incriado por natureza, aceita vir a nós pela graça em seu amor pelo homem, para nos deificar, nós que o praticamos e enunciamos. Nós fazemos o bem, portanto basta que ele seja. Mas não devemos fazer o mal, portanto é preciso apenas que ele não seja. O mal é corruptível: de fato, é a corrupção a natureza do mal, que não tem existência própria em nada. Mas o bem é incorruptível, pois ele é permanente, jamais deixa de ser e protege a todos nos quais se encontra. É isto que buscamos pela razão, aquilo ao que tendemos pela desejo, que pelo ardor guardamos inviolável, aquilo por meio de que, pelos sentidos aplicados ao conhecimento, discernimos sem adversidades, que pela voz, ao falarmos, deixamos claro aos que ignoram, que multiplicamos pela fecundidade, ou antes, a bem dizer, aquilo pelo que nós mesmos nos multiplicamos.
58. O intelecto contemplativo que reina sobre os pensamentos, as visões e os movimentos próprios que residem nos seres, deve estar num estado tal que não engendre o mal, ou seja, que não o conceba em absoluto nem o traga para o mundo. É preciso que ele se dirija para este estado de contemplação, para evitar que, colocando sobre os seres seu olhar espiritual, não o deite contra sua vontade sobre algum espírito maligno que, por meio de alguma das coisas sensíveis, corrompa naturalmente o olhar puro do coração.
59. Aquele que, por causa da virtude e do conhecimento, se deixou ferir pelo amor à vanglória, nutrindo em vão, como Absalão, a cabeleira da presunção, presa à presilha e trançada, exibe a vida moral, como a mula, para enganar aos que o miram. Assim, suspenso no ar, ele acredita dominar o Pai que o engendrou pelo ensinamento da palavra, pretendendo, em seu orgulho, atrair para si, como um tirano, toda a glória da virtude e do conhecimento que, vinda de Deus, retorna para o Pai. Mas este homem, quando se coloca no campo da contemplação natural em espírito a fim de conduzir o combate da razão pela verdade, se vê retido pela intrincada galharia do carvalho dos espetáculos naturais, que é a imagem deste mundo, que prende a ele, em vista da morte, a vã presunção que o segura entre o céu e a terra. Pois o vaidoso não possui o conhecimento que, como um céu, o atrairia para o alto, para longe da presunção que o arrasta para baixo. E ele também não possui a terra, ou seja, o fundamento da ação, na humildade, que o atrairia para baixo, para fora do orgulho que o leva para cima. Ele está morto, e o mestre que ama a Deus e que o
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engendrou chora, em seu amor pelo homem, pois, à imitação de Deus, ele não quer a morte do pecador, mas que ele retorne e viva.
60. A sabedoria é o começo e o fim da salvação de cada um. É o começo por suscitar desde logo o temor, pois este conduz ao termo por gerar o desejo. Ou antes, para nós, pela economia, ela se torna temor de início, a fim de que aquele que for tomado de amor se abstenha do mal. Depois, ao final, ela se torna desejo, a fim de encher de riso inteligível aqueles que mudaram a vida que levavam junto aos demais seres.
61. A sabedoria é temor, quando se torna privação pela fuga naqueles que não se dirigem para ela. E ela é desejo quando se torna um estado de regozijo ativo naqueles que a amam. Pois quando, pela esperança, ela se livra do castigo das paixões, ela suscita o temor e cumpre o desejo, habituando o intelecto, pela aquisição das virtudes, a ver as coisas do século por vir.
62. Toda confissão humilha a alma; uma humilha a alma justificada pela graça de Deus; outra humilha a alma ensinando-a, quando, por suas faltas ela afunda na negligência de sua própria vontade.
63. A confissão pode ser feita de duas maneiras: dando graças pelos bens que nos foram dados, ou verificando e examinando o que fizemos de mal. Pois chamamos de confissão tanto a enumeração das benesses divinas que assumimos alegremente com gratidão, como a enumeração das faltas reveladas aos responsáveis. Ambas as formas suscitam a humildade. Pois humilha-se quem rende graças pelos bens e quem se examina para descobrir suas faltas; um se julga indigno dos bens que lhe foram dados, outro pede por receber a absolvição das faltas.
64. A paixão do orgulho é feita de duas ignorâncias, que convergem para se unir constituindo um mesmo sentimento cheio de confusão. Pois só é orgulhoso quem ignora o socorro divino e a fraqueza humana. O orgulho é assim a privação do conhecimento divino e humano. Pois a negação dos verdadeiros extremos desemboca numa mesma afirmação enganadora.
65. A vanglória nos desorienta para longe do objetivo de Deus. Ela nos transporta para um outro objetivo que vai de encontro ao objetivo divino. Pois o vaidoso é aquele que se aplica à virtude para sua própria glória, não para a glória de Deus, e que troca suas penas pelos elogios inconsistentes dos homens.
66. Quem busca agradar aos homens só presta atenção às condutas aparentes e, com certeza, às palavras do adulador, a fim de atrair a vista de uns e os ouvidos de outros que, encantados ou influenciados apenas pelas aparências e as palavras ouvidas, entendem as virtudes apenas pelos sentidos. Dizemos que tal
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homem busca agradar aos homens quando aquilo que ele faz sob o véu da virtude é a ostentação da conduta e das palavras.
67. A hipocrisia é uma imitação da amizade, ou uma aversão escondida sob a forma da amizade, ou uma inimizade que se exerce sob a cobertura de uma benevolência, ou uma inveja que imita o caráter do amor, ou uma vida que mostra a boa ordem da virtude por fingimento mas não em realidade, ou uma afetação de justiça mantida pelas aparências, ou uma ilusão que toma a forma da verdade e à qual se aplicam aqueles que, pela perversidade de sua conduta, imitam a serpente.
68. A causa dos seres e dos bens que neles existem está em Deus. Portanto, que eleva a si mesmo na virtude e no conhecimento e não acrescenta à medida da virtude que a graça lhe concede – ou seja, à medida de seu progresso – a consciência de sua própria fraqueza, não escapou ainda do mal do orgulho. Quem se dedica ao bem para sua própria glória prefere a si mesmo do que a Deus, esvaziado que está pela vaidade. Quem pratica a virtude ou dela fala para ser visto pelos homens coloca a aprovação humana acima da aprovação divina, por estar enfermo da paixão de agradar aos homens. Enfim, aquele que, com a gravidade da virtude, não faz senão colorir sua conduta para enganar os outros, e que encobre sob a aparência da piedade a malícia de seus desígnios, troca a virtude pela mentira e a hipocrisia. Este homem se desviou do objetivo para correr atrás de outras coisas, ao encontro da causa de cada uma delas.
69. Nenhum dos demônios malignos será capaz de impedir o fervor do homem virtuoso. Mas na realidade, depois de ter devastado com mentiras as insuficiências das virtudes, os demônios prolongam sua ação participando dos esforços do que combate, a fim de tomar para si os pensamentos do asceta, quando este perde o equilíbrio do meio, e encaminhá-los contra a vontade deste a outro lugar, enquanto ele pensa ir ao encontro do bom.
70. Os demônios não odeiam a castidade, não detestam nem o jejum, nem a distribuição das riquezas, nem a hospitalidade, nem a salmodia, nem a leitura, nem a hesíquia, nem os mais altos ensinamentos, nem o dormir sobre o chão duro, nem as vigílias noturnas, nem todas as outras coisas que caracterizam a vida consagrada a Deus, até conseguirem fazer com que se inclinem para eles o objetivo e a causa de tudo o que fazemos.
71. Talvez, derrubando os outros demônios, o asceta escape com facilidade ao mal que eles causam. Mas os demônios que fingem participar do curso da virtude, como se quisessem construir o templo com o Senhor, qual intelecto, ainda que o mais elevado, seria capaz de capturá-los sem a palavra de Deus ativa e viva que não cessa de avançar, penetrante até separar a alma do corpo, ou seja, capaz de discernir quais obras e quais pensamentos são psíquicos – portanto formas ou movimentos naturais da virtude – e quais obras e quais pensamentos são espirituais – ou seja, são mais elevados do que a natureza e representam a Deus? Estas obras e estes pensamentos são dados por natureza segundo a graça. Pois a palavra de Deus sabe como as articulações e a medula se unem, bem ou mal, às razões espirituais dos modos da virtude, e ele julga os sentimentos e os pensamentos dos corações, ou seja, as relações que mencionamos,
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escondidos nas profundezas, e suas causas invisíveis na alma. Para a palavra de Deus, em nós que parecemos esquecer, não existe criação oculta: existe tudo o que foi criado e pensado, mas também tudo o que será criado e pensado por nós.
72. O que separa a alma do espírito é a diferença entre o crescimento das virtudes cujas razões possuímos naturalmente, e os carismas do Espírito cuja graça recebemos gratuitamente. Pois a palavra que julga faz claramente a distinção entre uma coisa e outra.
73. Os sentimentos e os pensamentos que a palavra de Deus distingue são as relações da alma com as razões e os pensamentos divinos, e as causas destas relações. Com efeito, o sentimento suscita a memória, da qual ele é a relação; e o pensamento visa o termo, que representa a causa.
74. Se Deus é o conhecimento em sua essência, o intelecto precede claramente todo conhecimento, e este depende naturalmente do intelecto. Portanto, Deus está acima do conhecimento, porque está também infinitamente acima de todo intelecto, do qual, de um modo ou de outro, depende o conhecimento.
75. Quem poderá, se não tiver a razão divina morando nas profundezas de seu coração, após ter derrotado as armadilhas escondidas que os demônios dirigem contra nós, conduzir a si mesmo, absolutamente só e sem se ligar a ninguém, e construir o templo do Senhor, como o fizeram o grande Zorobabel, Josué e os chefes das tribos, dizendo em alta voz aos impostores do orgulho, da vanglória e da hipocrisia, que só querem agradar aos homens: “Não é tarefa nossa e de vocês construir a casa do Senhor nosso Deus, mas apenas a nós caberá construir para o Senhor de Israel”. Este sabe que o fato de se misturar a tais homens leva à ruína e destruição de todo o edifício e impede a graça da beleza das oferendas divinas.
76. Ninguém que possua um dos demônios de que falei pode construir para o Senhor. Pois ele não carrega a Deus como o fim das criaturas, para assumir a virtude contemplando a Deus, mas traz em si a paixão suscitada por esta virtude.
77. Os demônios que nos combatem pela falta de virtude são os que nos ensinam a prostituição e a embriaguez, a avareza e a inveja. Os demônios que nos combatem pelo excesso de virtude são os que nos ensinam a presunção, a vanglória e o orgulho que, por meio dos vícios de direita incrustam secretamente em nós os vícios de esquerda.
78. Possamos nós sempre dizer aos que se dirigem invisivelmente ao espírito de malícia imitando a amizade espiritual, que por meio do bem querem secretamente chegar à morte dada pelo pecado, e que dizem: “Construamos com vocês o templo de nosso Senhor”, possamos nós dizer a eles: “Não cabe a nós e
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a vocês construir a casa do Senhor nosso Deus, mas apenas nós, sozinhos, construiremos para o Senhor de Israel”. Construiremos sozinhos porque, libertos dos espíritos que nos combatem pela falta de virtude, dos quais nos afastamos, não mais queremos, levados por nós mesmos ao excesso, ceder outra vez e conhecer uma queda ainda mais dura do que a primeira, e tanto mais dura na medida em que a esperança de retorno ainda era fácil aos que haviam sido perdoados por sua fraqueza. Agora, ou bem já não haverá esperança, ou bem a esperança será difícil aos que foram detestados por seu orgulho e que se dedicaram a um vício ainda mais à direita do que o vício da direita. Por outro lado, porém, não estaremos sozinhos, pois teremos os santos anjos, os quais assumirão os bens, ou melhor, teremos ao próprio Deus, que se revelará a nós pelas obras da justiça e nos edificará para si como a um templo santo e livre de toda paixão.
79. A condição da virtude é, com conhecimento de causa, a união da fraqueza humana com a potência divina. Portanto, aquele que se encerra na fraqueza da natureza, não atinge a condição da virtude. É por isto que ele está em falta, por não ter recebido ainda a potência que dá força à fraqueza. Quanto ao que tem a presunção de fazer de sua própria fraqueza uma força em lugar da potência divina, este transgrede a condição da virtude. É por isto que, estando também em falta por causa do excesso que provocou, ele não aprende a conhecer, porque pensa que sua falta é uma virtude. O que se encerrou na fraqueza de sua natureza, separando-se passivamente da virtude, talvez por desleixo, é mais facilmente perdoável do que o que faz de sua própria fraqueza uma força no lugar da potência divina para cumprir seus deveres, frequentemente por presunção.
80. Como se diz que a oração do justo pode muito por sua ação, eu sei que ela age de duas maneiras. Ela age de uma primeira maneira quando, com as obras que o mandamento ordena, aquele que vem a Deus lhe entrega esta oração, não como a prece inerte e inconsistente que sai da língua e não é feita senão de palavras e do vão ruído da voz, mas como a prece ativa, viva, animada pelas obras dos mandamento. Pois o fundamento de toda oração é o evidente cumprimento dos mandamentos pelas virtudes, graças ao qual o justo tem em si a prece poderosa que tudo pode, posta a operar pelos mandamentos. Enfim, a oração age segundo uma outra maneira, quando aquele que deseja a prece do justo a põe para trabalhar corrigindo sua vida anterior e assumindo esta prece poderosa fortificada por sua própria boa conduta.
81. A prece do justo não tem serventia quando este apela para ela mais do que para as virtudes daquele que tem prazer em suas faltas. Assim, o grande Samuel, antigamente, chorou a culpa de Saul, mas não conseguiu apaziguar a Deus, pois não recebeu, para atender às suas lágrimas, a correção que o culpado deveria operar. É por isso que Deus, detendo as lágrimas insensatas de seu servidor, lhe disse: “Até quando você chorará Saul? Eu o rejeitei para que ele não mais reine sobre Israel”.
82. O compassivo Jeremias tampouco foi ouvido, quando rezou pelo povo judeu que permanecia agarrado aos erros dos demônios. Pois ele não trazia consigo, para dar poder à sua oração, a conversão dos judeus ateus arrependidos de seu erro. É por isso que, dissuadindo-o de orar em vão, Deus lhe disse: “Não reze por este povo, não peça piedade por eles, não suplique, não mais venha a mim interceder por eles: pois eu não o escutarei mais”.
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83. Quem se entrega ao prazer é verdadeiramente de uma enorme ignorância, para não dizer inteiramente louco, se buscar a salvação por meio da prece dos justos e pedir o perdão daqueles nos quais se glorifica, enquanto se suja deliberadamente por seus atos. Quem deseja a prece dos justos não deve permitir que ela se torne inerte e imóvel, se estiver verdadeiramente perseguido pelo ódio dos demônios malignos. Ele deve fazer com que ela seja ativa e poderosa, levada pelas asas de suas próprias virtudes, para que ela alcance Aquele que pode conceder o perdão das faltas.
84. A oração do justo pode muito se for feita, seja pelo justo que a cumpre, seja por aquele que pede ao justo. Quando ela é feita pelo justo, ela lhe dá toda a liberdade diante d'Aquele que pode atender as demandas dos justos. E quando ela é feita pelo que pede ao justo, ela o afasta de sua pena anterior, dispondo-o para a virtude.
85. Uma vez que o Apóstolo disse: “Vocês se regozijarão nisto, ainda que tenham que sofrer diversas provas por algum tempo”, como não se regozijará em sua aflição aquele que é afligido pelas provações?
86. A palavra da verdade ensina que a aflição é dupla. Existe uma aflição que está invisivelmente fundada na alma, e existe uma aflição que está visivelmente fundada sobre os sentidos. Uma abarca toda a profundidade da alma atormentada pelo martelo da consciência. A outra compreende todos os sentidos crispados sob o peso das dores do escoamento natural. Uma é o fim do prazer dos sentidos; outra o fim da alegria da alma. Ou antes, uma é o cumprimento do conhecimento dos sentidos e a outra o cumprimento das paixões deste falso conhecimento.
87. A aflição, me parece, é um estado privado de prazeres. A privação dos prazeres suscita em nós as penas. A pena é claramente a ausência ou a perda de uma faculdade natural. A ausência de uma faculdade natural é a paixão da potência da natureza que está submetida a esta faculdade. A paixão da potência da natureza submetida a esta faculdade é o modo da energia natural em seu mau uso. E o mau uso do modo da energia é o movimento da potência que não é feita bem está fundamentada conforme a natureza.
88. A aflição da alma é o objetivo do prazer dos sentidos, pois a aflição da alma é suscitada por este prazer. Do mesmo modo, a aflição da carne é a finalidade do prazer da alma, pois a aflição da carne se torna o regozijo da alma.
89. Existem duas aflições. Uma é a dos sentidos: ela é feita da privação dos prazeres do corpo. Outra é a do intelecto: ela é feita da privação dos bens da alma. As provações também são duplas. Umas são voluntárias, outras involuntárias. As provas voluntárias estão na origem do prazer corporal dos sentidos, e engendram a aflição da alma, pois, quando este é cumprido, o pecado aflige a alma. E as provas involuntárias, que se revelam nas penas como um falso conhecimento, estão na origem do prazer da alma e engendram a aflição corporal dos sentidos.
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90. Assim como a palavra da verdade ensina a dupla aflição, como eu disse, também ela conhece o duplo modo das provações. O primeiro modo consiste nas provas que nos acontecem como as desejamos; o outro, nas provas que nos acontecem contra nossa expectativa. Um suscita prazeres voluntários; outro leva a dores involuntárias. Pois a prova que desejamos suscita claramente prazeres voluntários que nos agradam. Mas a prova que não esperamos nos impõe manifestamente penas involuntárias que não nos agradam. Umas estão na origem da aflição da alma; outras na origem da aflição dos sentidos.
91. A prova que desejamos suscita a aflição da alma, e engendra claramente o prazer dos sentidos; mas a prova que não esperamos impõe o prazer da alma e a aflição da carne.
92. Penso no que disse nosso Senhor e nosso Deus quando ensinou a seus discípulos como deveriam rezar para conjurar o tipo de provas que desejassem: Ele disse: “Não nos deixe cair em tentação”. Isto significa que eles deveriam se acostumar a orar para não serem abandonados às provações voluntárias voltadas ao prazer e ao conhecimento. Penso também naquilo que o grande Tiago, chamado de irmão do Senhor. Disse das provações involuntárias, quando ensinou aos que combatiam pela verdade que não se deixassem abater. Ele disse: “Considerem uma grande alegria, meus irmãos, serem vítimas de toda sorte de provações”, ou seja, da provas involuntárias que não esperamos e que suscitam as penas. Isto fica claramente demonstrado pelo fato de que o Senhor acrescenta: “Livra-nos do mal”, e o grande Tiago: “Vocês sabem que o valor de sua fé suscita a paciência. Mas que a sua paciência traga consigo uma obra perfeita, para que vocês sejam perfeitos e completos, não deixando nada a desejar”.
93. O Senhor nos ensina a esconjurar as provas voluntárias, pois elas suscitam o prazer da carne e a dor da alma. E o grande Tiago nos exorta a que nos regozijemos com as provas involuntárias, pois elas apagam o prazer da carne e a dor da alma.
94. É perfeito aquele que combate com a temperança as provas voluntárias e que suporta com paciência as provas involuntárias. É completo aquele que alia a ação ao conhecimento, e cuja contemplação não acontece sem a ação.
95. Quando a aflição e o prazer são divididos entre a alma e os sentidos, aquele que se volta para o prazer da alma e que assume com paciência a aflição dos sentidos, é primeiro noviço, depois perfeito e por fim completo. Ele se torna um noviço experiente, por sua experiência nas adversidades que combatem os sentidos. Ele se torna perfeito, pois, pela temperança e a paciência, ele combate implacavelmente o prazer e a aflição dos sentidos. E ele se torna completo, pois, na constância da identidade da razão, ele mantém intactas as faculdades que combatem as disposições dos sentidos opostas umas às outras. Estas faculdades são a ação e a contemplação, que estão unidas entre si e jamais se separam. Mas a ação manifesta por seus modos o conhecimento da contemplação; e a contemplação manifesta a virtude recoberta pela armadura da ação, não menos do que a da razão.
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96. Podemos chamar de noviço experiente a quem conheceu a aflição e o prazer da carne, pois ele teve a experiência da satisfação e das dificuldades das coisas da carne. Podemos chamar de perfeito aquele que, pelo poder da razão, combateu o prazer e a dor da carne. E podemos chamar de completo a quem, pela intensidade de seu desejo por Deus, guardou inalteráveis as faculdades de ação e de contemplação.
97. A aflição da alma tem dois modos. Um é suscitado pelas faltas que nos são próprias. Outro é provocado pelas faltas que nos são estranhas. A causa de tal aflição é manifestamente o prazer dos sentidos daquele que é afligido, ou o prazer daqueles por quem ele se aflige. Rigorosamente falando, não existe praticamente nenhum pecado dentre os homens que não tenha a origem de sua própria gênese na relação irracional entre a alma e os sentidos, por causa do prazer. Quanto à causa do prazer da alma, ela está manifestamente na aflição dos sentidos daquele que se regozija e se alegra com suas próprias virtudes e com as virtudes dos outros, Pois, falando rigorosamente, não existe praticamente nenhuma virtude dentre os homens que não tenha a origem de sua própria gênese na aversão racional da alma em relação aos sentidos.
98. Sem a relação passional entre a alma e os sentidos, não existe pecado entre os homens. Mas o prazer da carne precede toda aflição que se forma na alma.
99. A verdadeira gênese da virtude é a transformação voluntária da alma diante da carne. Quem domina a carne pela penas voluntárias cumula a alma de alegria espiritual.
100. Quando a alma, por meio das virtudes, chega a ter aversão pelos sentidos, estes sentirão necessariamente as penas. Pois eles não terão mais, unido a eles numa relação de conhecimento, o poder da alma que concebe os prazeres. Ao contrário, pela temperança, este poder repele corajosamente o levante dos prazeres, e por intermédio da paciência permanece implacável diante da agressão das penas involuntárias e contra a natureza. Ela não deixa a dignidade e a glória divina da virtude pelo prazer inconsistente. E pelos sentidos, que fazem sofrer e que não tombam das alturas das virtudes, ela se abstém da carne, a fim de assumir as penas. A causa da aflição dos sentidos é a obra da alma inteiramente ocupada comas coisas segundo a natureza. Mas a energia da alma contra a natureza é manifestamente o prazer dos sentidos, que não pode ter outra origem para se formar do que a demissão da alma, quando ela desiste das coisas segundo a natureza.
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SEXTA CENTÚRIA
1. A potência intelectual da alma permite ao pensamento ultrapassar a si mesmo. Separado da relação com os sentidos, em sua resolução ele deixa a carne vazia de toda busca pelo prazer e não tenta consolar a dor da carne, a tal ponto está, em sua resolução, ocupado com as coisas de Deus.
2. O intelecto e os sentidos se opõem pela energia de suas naturezas, tão extremas são a diferença e a alteridade que as fundamenta. Um tem por fundamento as essências inteligíveis e incorpóreas, às quais ele se liga naturalmente em seu próprio ser. Os outros têm por fundamento as naturezas sensíveis e corpóreas, às quais, também eles, se ligam naturalmente.
3. A demissão da alma e a desistência das coisas segundo a natureza é naturalmente o começo do prazer dos sentidos. Pois enquanto a alma sente falta dos bens segundo a natureza, a potência capaz de encontrar o modo do prazer dos sentidos não pode se manifestar.
4. Aonde a razão precede e guia os sentidos, durante a contemplação do visível, a carne fica privada de todo prazer segundo a natureza, pois ela não tem em si, a serviço de seus próprios prazeres, a impulsão desabrida, desembaraçada dos bens da razão. É por isso que quando a razão que está em nós a carrega devido à necessidade, a carne é posta à prova, por estar submetida à razão para alcançar a virtude.
5. Uma vez que ele dirige seus próprios bens segundo a natureza, o intelecto misturado às manifestações do sensível pensa nos prazeres da carne, por ser incapaz de atravessar a natureza das coisas visíveis, pois está ligado à relação passional que o leva para os sentidos.
6. Se não é possível ao intelecto dirigir-se ao inteligível que lhe é aparentado sem contemplar as coisas sensíveis projetadas no intervalo, também é impossível que tal contemplação possa acontecer sem os sentidos, que, de um lado, estão ligados ao intelecto e, de outro são aparentados ao sensível por natureza. Se, em seu impulso, ele mergulha nas manifestações do sensível, pensando que os sentidos que estão ligados a ele são uma energia natural, o intelecto se desliga do inteligível segundo a natureza, e é capturado com as duas mãos pelos corpos contra a natureza, como se diz. Dirigido por eles de encontro à razão, por causa dos sentidos vitoriosos, ele engendra a tristeza da alma, atormentada pelos repetidos golpes da consciência, e suscita visivelmente o prazer dos sentidos, fecundado que está pelos pensamentos dos modos que reconfortam a carne. Mas se, ao mesmo tempo em que se lança em direção aos sentidos ele apaga a manifestação do visível, ele verá as razões espirituais dos seres, purificados das formas que os recobrem: ele terá chegado ao prazer da alma que não está mais prisioneira das coisas sensíveis que ela
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contempla, e ele terá suscitado a aflição dos sentidos que ficam privados de todo o sensível segundo a natureza.
7. Uma vez que o prazer dos sentidos suscita a aflição, ou seja, as penas da alma (pois ambas, uma pela outra, são a mesma coisa), o prazer da alma suscita naturalmente a aflição, ou seja, as penas dos sentidos. Aquele que busca a vida esperada, a vida de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, pela ressurreição dos mortos, na herança guardada nos céus longe de toda corrupção, de toda mancha e de toda condenação, tem na alma um regozijo e uma alegria inefáveis: ele está constantemente radiante, iluminado pela esperança dos bens futuros, mas carrega na carne e nos sentidos uma aflição, as penas que lhe vêm das tentações de todas as sortes e dos sofrimentos que elas infligem. Pois o prazer e a pena acompanham toda virtude. A pena da carne, quando esta é privada dos sentidos agradáveis e lisos. E o prazer da alma, quando esta se regozija nas delícias das razões no espírito, purificadas de toda coisa sensível.
8. É preciso que no decorrer da vida presente o intelecto, afligido pela carne – penso eu – devido às numerosas penas e provas que lhe acontecem por causa da virtude, se regozije sempre na alma e seja cumulado de prazer por causa da esperança nos bens eternos, ainda que os sentidos estejam oprimidos. “Pois os sofrimentos do tempo presente em nada se comparam à glória do provir, que deverá se revelar em nós”, disse o Apóstolo divino.
9. A carne pertence à alma, mas a alma não pertence à carne. Com efeito, a Escritura diz que o homem inferior está submetido ao superior, mas não o superior ao inferior. Portanto, uma vez que a lei do pecado foi misturada à carne pela transgressão (tal é o prazer dos sentidos, por cuja causa a condenação à morte foi pronunciada por intermédio das penas da carne), aquele que sabe que a morte veio por causa do pecado, depois de haver concebido a anulação da lei da carne para a destruição daquele, permanece sempre alegre em sua alma que, através de todas as espécies de penas, vê a lei do pecado desaparecer de sua própria carne, para receber a vida no espírito, a vida bem-aventurada do século futuro. Mas não é possível descobrir esta vida de outro modo: na vida presente, segundo a relação que a une à vontade, a carne deve primeiro se esvaziar da lei do pecado, como se esvazia uma vaso.
10. Aquele que é afligido pela virtude em sua carne por causa dos pecados, regozija-se em sua alma por esta mesma virtude, pois vê, como se estivesse presente, a beleza das coisas do porvir, pela qual morre diariamente em sua vontade de deixar a carne, como o grande Davi, quem que se renova continuamente seguindo o devir da alma no Espírito, por ter em si o prazer salvador e a aflição útil. Chamamos de aflição, não a aflição insensata que atormenta a alma quando esta é privada das numerosas paixões e das coisas materiais que suscitam os impulsos contra a natureza em direções e fugas indevidas, mas a aflição submetida à razão, esta aflição que confirma aos sábios o divino e que lhes apresenta o mal presente. Os sábios dizem, com efeito, que o mal presente é a aflição que se forma na alma quando o prazer dos sentidos prevalece sobre o discernimento da razão, e é a aflição que se insinua nos sentidos quando a trajetória da alma sobre o caminho da virtude é conduzido de forma correta e livremente, levando aos sentidos penas na mesma medida em que suscita o prazer e a alegria na alma, que se dirige a Deus pelo esplendor da virtude e do conhecimento que lhe é aparentado.
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11. O prazer salvador é a alegria da alma dada pela virtude e pela aflição útil, é o sofrimento da carne por causa da virtude. Assim, quem se consome nas paixões e nos afazeres dirige seus impulsos indevidamente. E quem não busca as ocasiões capazes de privá-lo das paixões e dos afazeres foge também indevidamente.
12. Nem a graça divina opera as iluminações do conhecimento se não houver quem receba, por intermédio de uma potência natural, a iluminação, nem tampouco aquele que é capaz de receber opera a iluminação do conhecimento sem a graça que a concede.
13. A graça do Santíssimo Espírito Santo não produz nem a sabedoria nos santos sem o intelecto para recebê-la, nem o conhecimento sem a potência da razão para recebê-lo, nem a fé sem que haja no intelecto e na razão a certeza das coisas do século por vir, estas coisas que até agora estão ocultas a todos, nem os carismas das curas sem o amor aos homens conforme a natureza, nem nenhum dos outros carismas sem a faculdade e a potência que deve, receber cada um deles. E, certamente, não existe homem capaz de adquirir por sua potência natural sequer um dos carismas que enumeramos sem a potência divina que os concede. É isto que mostram claramente todos os santos que, depois das revelações das coisas divinas, buscaram as razões daquilo que lhes havia sido revelado.
14. Quem pede sem paixão recebe a graça de poder agir praticando as virtudes. Quem busca impassivelmente encontra na contemplação natural a verdade que está no coração dos seres. E quem bate impassivelmente na porta do conhecimento, entrará sem ser impedido na graça oculta da teologia mística.
15. Quem busca impassivelmente as coisas divinas receberá certamente aquilo que busca. Mas quem busca com qualquer paixão não obterá o que procura. Com efeito, o Apóstolo disse: “Vocês pedem e não recebem, porque pedem mal”.
16. O Espírito Santo busca e sonda em nós o conhecimento dos seres. Mas não é por si mesmo que ele busca isto, pois ele é Deus e está além de todo conhecimento. Assim como o Verbo se fez carne, não por si mesmo, certamente, mas por nós, cumprindo o mistério pela carne (pois não foi sem a carne animada pelo intelecto que o Verbo da carne produziu de maneira divina as coisas conforme a natureza), também o Espírito Santo não cumpre nos santos os conhecimentos dos mistérios sem a potência que busca e sonda, conforme a natureza, o conhecimento.
17. Assim como não é possível que, sem a luz do sol, o olho perceba as coisas sensíveis, da mesma forma, sem a luz espiritual, um intelecto humano não é capaz de receber uma contemplação espiritual. Com efeito, a luz sensível ilumina os sentidos, na ordem da natureza, para que estes percebam as coisas corporais. E a luz espiritual, na ordem da contemplação humana, ilumina o intelecto, para que este compreenda o que está acima dos sentidos.
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18. A natureza dos homens recebeu as potências que buscam e sondam as coisas divinas fundamentalmente como depósito de Deus quando de sua própria passagem pelo ser. Mas as revelações do divino, é a potência do Espírito Santo que as realizou pela graça, quando ele veio habitar entre nós. Uma vez que no princípio, pelo pecado, o maligno fixou estas potências à natureza das coisas visíveis (e ninguém havia que compreendesse ou buscasse a Deus, pois tudo o que participava da natureza tinha a potência de seu intelecto e de sua razão encerrada na manifestação das coisas sensíveis, sem noção alguma das coisas mais elevadas do que os sentidos), com direito a graça do Santíssimo Espírito Santo restabeleceu a potência que havia sido fixada às coisas materiais, depois de desligá-las, naqueles que deliberadamente não se submeteram mais ao erro de sua vida anterior. É esta potência que tais homens primeiro buscaram e sondara, quando receberam a graça por sua pureza. E foi então que eles puderam buscar e sondar mais profundamente: pela graça mesma do Espírito.
19. Evidentemente, a finalidade da fé consiste propriamente na salvação das almas. A finalidade da fé é a verdadeira revelação de tudo aquilo no que acreditamos. A verdadeira revelação de tudo aquilo no que acreditamos é, de modo indizível, seu resultado na proporção da fé de cada um. O resultado daquilo em que acreditamos é o retorno ao início, conforme o fim daqueles que creram. O retorno ao início próprio ao fim dos que creram é o cumprimento ao qual leva o impulso dos que vão manifestamente em direção a Deus. O cumprimento a que leva o impulso é o movimento perpétuo ao redor daquilo que desejam aqueles que buscam. O movimento perpétuo ao redor daquilo que desejam aqueles que buscam é a fruição contínua e incessante do desejável. A fruição contínua e incessante do desejável é a participação nas coisas divinas mais elevadas do que a natureza. A participação nas coisas divinas mais elevadas do que a natureza é a semelhança daqueles que participam com aquilo que eles recebem em participação. A semelhança daqueles que participam com aquilo que eles recebem em participação é, na ação, a identidade dos que participam pela semelhança e aquilo mesmo que eles recebem por participar. A identidade possível, na ação, daqueles que participam pela semelhança é, pela semelhança daquilo que eles recebem em partilha, a deificação dos que são dignos de ser deificados. A deificação é, segundo a razão do modelo, o desenvolvimento e o fim de todos os tempos e de todos os séculos e de tudo o que está contido nos tempos e nos séculos. O desenvolvimento e o fim de todos os tempos e de todos os séculos e de tudo o que está contido neles é a unidade do começo puro e simples com o fim puro e simples naqueles que foram salvos. A unidade contínua do começo puro e simples com o fim puro e simples nos salvos é a mais elevada saída das coisas da natureza, fundamentalmente medidas pelo começo e o fim. A saída das coisas da natureza, fundamentalmente limitadas pelo começo e pelo fim, é a energia de Deus, toda poderosa e mais do que poderosa, imediata, infinita, aberta ao infinito, naqueles que foram considerados dignos da saída das coisas da natureza. A energia de Deus, toda poderosa e mais do que poderosa, imediata, infinita, aberta ao infinito, é o prazer e a alegria inefáveis e mais do que inefáveis daqueles que foram cumulados desta energia, na união silenciosa que ultrapassa o entendimento, esta união cuja razão, sentido ou expressão são absolutamente impossíveis de se achar na natureza dos seres.
20. A natureza não contém as razões daquilo que é mais elevado do que a natureza, assim como não contém as leis daquilo que é contra a natureza. Chamo de mais elevado do que a natureza ao impensável prazer divino que Deus suscita por natureza, unindo-se pela graça àqueles que dela são dignos. E chamo de contra a natureza a dor indizível provocada pela privação da graça que Deus continuou a suscitar por natureza unindo-se contra toda a graça àqueles que são indignos dela. Conforme a qualidade das disposições inerente a cada um, Deus, unido a todos, como quiser, dará a cada um a faculdade de sentir, conforme cada um formou a si mesmo para receber Aquele que se unirá totalmente a todos no fim dos séculos.
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21. Os que buscam as razões e os modos espirituais de tal salvação serão levados pelo Espírito Santo a compreender, sem que neles permaneça imóvel e inerte a potência pela qual eles buscam naturalmente as coisas divinas.
22. Buscamos em primeiro lugar destruir o pecado pela intenção, e destruir a intenção de pecar: examinaremos então como e de que maneira devemos destruí-los um pelo outro, e, após havermos destruído perfeitamente a ambos, buscaremos dedicar a vida à intenção pela virtude, e a dedicar a vida à intenção da virtude: examinaremos então como e de que maneira devemos suscitar a vida em uma e outra. A busca, para defini-la assim, consistirá na tendência pela coisa desejada. E o exame é o modo eficaz da tendência pela coisa desejada.
23. Na verdade, aquele que é chamado à salvação deve não apenas destruir o pecado pela intenção mas também destruir a intenção de pecar; e não apenas ele deve ressuscitar a intenção pela virtude, como também a própria virtude pela intenção, a fim de que a intenção morta não se sinta inteiramente separada do pecado inteiramente morto, e que a intenção viva se sinta inteiramente em união contínua com a virtude inteiramente viva. Aquele que destruiu a intenção de pecar se torna, por semelhança, da mesma natureza que a morte de Cristo. E quem ressuscitou a intenção pela justiça torna-se também da mesma natureza que sua ressurreição.
24. O pecado e a intenção, que se destroem mutuamente, são duplamente insensíveis um quanto ao outro. Da mesma forma, a justiça e a intenção, que se dão vida reciprocamente, são duplamente sensíveis.
25. Cristo, que é Deus e homem por natureza, é por nós recebido em herança pela graça, em sua divindade, mais elevada do que a natureza, conforme a inefável participação. E por nós, unido a nós em sua humanidade que tomou nossa forma, ele herdou de si mesmo conosco, segundo a incompreensível compaixão. Depois de tê-lo antes contemplado misticamente em espírito, os santos aprenderam convenientemente que os sofrimentos sofridos por ele presentemente em vista da virtude precedem a glória em Cristo que, por causa da virtude, será manifestada no século por vir.
26. O intelecto levado inconsciente à causa dos seres, seguindo apenas seu desejo, não faz mais do que buscar. Mas a razão, examinando de muitas maneiras, sonda as verdadeiras razões que estão nos seres.
27. A busca, ligada ao desejo, é o movimento inicial e simples do intelecto em direção à sua própria causa. O exame, ligado a um dado pensamento, é o discernimento inicial e simples da razão em direção à sua própria causa. A busca profunda é novamente, ligada a um desejo ardente, o movimento gnóstico do intelecto na direção de sua própria causa, conforme a ciência; e o exame profundo, ligado a um pensamento refletido e sábio, é o discernimento da razão sobre sua própria causa, conforme a atividade das virtudes.
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28. Os santos e os divinos profetas, que buscaram profundamente e que sondaram profundamente a salvação das almas, tinham em si, em seu desejo fervoroso e ardente, o movimento do intelecto para Deus, ligado À ciência e ao conhecimento, e tinham, refletido e sábio, o discernimento da razão, conforme a energia das coisas divinas. Aqueles que os imitam com conhecimento e ciência também buscam profundamente a salvação das almas. E, sondando profundamente com prudência e sabedoria, eles chegam a discernir as obras divinas.
29. A palavra da verdade ensina que o conhecimento das coisas divinas é duplo. Um é o conhecimento relativo, situado apenas na razão e nos pensamentos e não trabalha com a percepção daquilo que é conhecido pela experiência: é por este conhecimento que somos governados durante nossa vida presente. O outro é o conhecimento próprio, o conhecimento verdadeiro fundamentado apenas sobre a experiência, e que trabalha, fora da razão e dos pensamentos, com a percepção total daquilo que é conhecido pela graça, na participação: é por este conhecimento que recebemos, acima da natureza, a deificação que não cessa de trabalhar para o momento do século por vir. Os sábios dizem que o conhecimento relativo, que está situado na razão e nos pensamentos, coloca em movimento o impulso para o conhecimento que trabalha pela participação; e que o conhecimento operacional, que cumpre o impulso em direção àquilo que é conhecido pela experiência, na participação, apaga o conhecimento situado na razão e nos pensamentos.
30. Existem dois conhecimentos. Um, que está situado na razão e nos pensamentos divinos, não possui em realidade propriamente a percepção dos inteligíveis. O outro, que trabalha, tem apenas, fora da razão e dos pensamentos, a fruição real daquilo que é verdadeiro. Com efeito, uma vez que, pelo conhecimento, a razão representa naturalmente aquilo que é conhecido, ela desenvolve o desejo por aquilo que ela suscita, com vistas a usufruir daquilo que ela representou.
31. Os sábios dizem que é impossível a coexistência do discurso sobre Deus com a experiência de Deus, ou a intelecção e a percepção de Deus. Chamo de discurso de Deus a analogia que extraímos dos seres quando contemplamos a Deus para conhece-lo. Chamo de percepção a experiência dos bens mais elevados do que a natureza, esta experiência que permite a participação. E chamo de intelecção o conhecimento simples e único que temos dele a partir dos seres. Mas é possível conhecer de um modo totalmente diferente: se a experiência de uma dada coisa suprime o discurso sobre ela, e se a percepção de uma dada coisa suscita a intelecção que se consagra a ela. Chamo de experiência este a conhecimento em ato, que vem depois de toda palavra. E chamo de percepção a esta participação ao conhecido, que se manifesta depois de toda intelecção. Está aí, justamente, o que é ensinado misticamente pelo grande Apóstolo, quando diz: “As profecias serão abolidas, as línguas cessarão, o conhecimento desaparecerá”, falando do conhecimento situado na razão e nos pensamentos.
32. Era necessário, em verdade, que Aquele que é por natureza o Criador da essência estivesse também na origem da deificação das criaturas pela graça, a fim de que Aquele que dá o ser aparecesse igualmente como Aquele que concede ao ser o bem eterno. Uma vez que nenhum ser conhece outra coisa senão aquilo que ele é por essência, está claro que nenhum ser possui por natureza a presciência de nada do que está por vir, salvo Deus que está acima dos seres e conhece a si mesmo – aquilo que ele é por essência – e que
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conheceu, antes mesmo que nascessem, a existência de todos os que foram criados por ele, e que buscará, para os seres, pela graça, o conhecimento de si mesmos e dos outros – aquilo que eles são por essência – e manifestará as razões de seu porvir, que pré-existem nele na unidade.
33. Deus o Verbo, que criou a natureza dos homens, não fundou com ela nem o prazer nem a dor dos sentidos. Mas ele suscitou nela uma potência do intelecto que a conduz ao prazer pelo qual ela poderá inefavelmente usufruir dele. Ora, depois de haver dado aos sentidos, como devir, esta potência – quero dizer o impulso do intelecto para Deus – neste primeiro movimento o primeiro homem se ligou ao prazer voltado contra a natureza para as coisas sensíveis, por intermédio dos sentidos. Foi aí que, então, Aquele que vela por nossa salvação fixou sua providência, a dor, como uma potência vingadora, por meio da qual a lei da morte foi enraizada com sabedoria na natureza dos corpos, limitando o desejo da loucura do intelecto, voltado contra a natureza para as coisas sensíveis.
34. O prazer e a dor não foram criados junto com a natureza dos corpos. Mas a transgressão concebeu um pata corromper a vontade, e condenou a outra a dissolver a natureza, a fim de que o prazer fizesse do pecado a morte voluntária da alma, e a dor, pela dissolução, suscitasse a desaparição da forma exterior da carne. Com efeito, foi com sua providência, para castigar o prazer voluntário, que Deus deu à natureza a dor involuntária e a morte.
35. Por causa do prazer entranhado na natureza de encontro à razão, a dor penetrou em seguida, segundo a razão, por meio de numerosos sofrimentos, nos quais e pelos quais veio a morte, a fim de suscitar a supressão do prazer contra a natureza, mas não a supressão total pela qual se manifesta naturalmente a graça do prazer divino.
36. O desejo pelas penas voluntárias e o ataque às penas involuntárias suprimem o prazer e detêm sua atividade, mas não fazem desaparecer a potência que se encontra na própria natureza como uma lei do devir. Pois a filosofia ligada à virtude, esta filosofia pela qual a graça do prazer divino no intelecto sucede à impassibilidade da reflexão, suscita naturalmente a impassibilidade da reflexão, mas não a da natureza.
37. Toda pena que tem por causa de sua própria gênese o ato de prazer que a precedeu é, evidentemente, uma dívida adquirida por esta causa por aqueles que tem parte com a natureza. Pois a pena natural segue com certeza o prazer contra a natureza em todos aqueles cujo porvir é guiado, sem que haja causa, pela lei do prazer. Chamo sem causa ao prazer que vem da transgressão, pois, evidentemente, ele não sucede uma pena que o tenha precedido.
38. Era impossível que a natureza decaída sob o prazer voluntário e a dor voluntária fosse novamente chamada à vida original, se o Criador não se tivesse tornado homem, recebendo voluntariamente a dor concebida para castigar o prazer voluntário da natureza (esta dor que não precedera o devir saído do
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prazer), a fim de libertar a natureza do nascimento que segue à condenação, uma vez que ele assumiu o nascimento cuja origem não foi o prazer.
39. Uma vez que após a transgressão todos os homens passaram a carregar o prazer que precede naturalmente seu próprio devir, ninguém havia que estivesse de todo livre naturalmente do devir passional ligado ao prazer. Mas como todos pagaram as penas como uma dívida natural e suportaram a morte ligada ao devir, o modo da liberdade era impossível aos que estavam tiranizados pelo prazer injusto e naturalmente entravados pelas justas penas e a justíssima morte que estas carregavam consigo. Para suprimir o prazer injusto e as justas penas sofridas por sua causa, estas penas pelas quais o homem sofredor estava, digno de piedade, feito em pedaços, extraindo da corrupção do prazer a origem de seu devir e terminando sua vida na corrupção e na morte, e também para reendireitar a natureza sofredora, era preciso conceber uma pena e uma morte a um tempo injustas e sem causa. Sem causa, porque elas não teriam conhecido nenhum prazer que fosse anterior ao devir; injustas, porque elas não teriam sucedido a absolutamente nenhuma vida passional, a fim de que, tomadas como intermediárias entre o prazer injusto e a pena e a morte justas, a pena e a morte injustas suprimissem totalmente a origem injusta vinda do prazer e o justo fim da natureza que, por causa do prazer, vem pela morte, e para que a raça dos homens fosse novamente livre, desembaraçada do prazer e da dor, tendo a natureza recuperado a boa parte que possuía de início, esta parte que não foi manchada por nenhum dos traços que marcam naturalmente aquilo que está submetido ao devir e à corrupção. É por isso que o Verbo de Deus, que é Deus perfeito por natureza, se tornou homem perfeito composto de uma alma dotada de inteligência e de um corpo votado ao sofrimento, próximo de nós por natureza, mas sem pecado. Pois absolutamente nenhum prazer – saído da transgressão – havia precedido seu nascimento de uma mulher no tempo. E por amor ao homem, por sua vontade, ele assumiu a dor – a dor sofrida por causa do prazer – que é o fim da natureza, a fim de, sofrendo injustamente, suprimir a origem do devir, que tiraniza a natureza por um prazer injusto (pois a morte do Senhor não foi como o pagamento de uma dívida originada pelo devir, como acontece com os demais homens, mas de algo projetado sobre ele), e fazer desaparecer o justo fim da natureza pela morte, pois ele não tinha como causa de ser o prazer único por cuja causa a morte entra, e castigar com justeza a esta morte.
40. Era preciso – era verdadeiramente necessário – que o Senhor, que é sábio, justo e poderoso por natureza, em sua sabedoria não ignorasse o modo de cura, em sua justiça não mantivesse tirânica a salvação do homem voluntariamente tomado pelo pecado, em sua plenipotência não descansasse, a fim de levar a cura até o bem sucedido fim.
41. A sabedoria de Deus se revela no fato de que ele nasceu por natureza segundo a verdade. Sua justiça se revela no fato de que ele assumiu como nós o sofrimento segundo o devir da natureza. Sua potência se revela quando, pelos sofrimentos e pela morte, ele fez da vida eterna por natureza uma impassibilidade imutável.
42. O Senhor deixou manifesta a razão da sabedoria no modo da cura, tornando-se homem sem mudança e sem transformação de qualquer espécie. Ele mostrou a igualdade da justiça na grandeza da compaixão, assumindo voluntariamente a sentença que condenava a natureza a se submeter ao sofrimento e fazendo
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desta sentença uma arma para suprimir o pecado e a morte devida ao pecado, ou seja, o prazer e a dor engendrada pelo prazer, mesmo diante da existência do poder do pecado e da morte, da tirania do pecado ligado ao prazer e do poder da morte ligada à dor por causa do pecado. Pois o poder do prazer e o poder da dor existem, evidentemente, no fato de estar a natureza submetida ao sofrimento. De uma certa maneira, nos aumentamos, de fato, a pena que, segundo a natureza, nos destina à dor forçando-nos a aliviar esta dor com o prazer. Querendo escapar à sensação da dor, fugimos para o prazer, tentando aliviar a natureza oprimida pela violência da dor. Mas, ao nos esforçarmos para amaciar pelo prazer os movimentos da dor, logo confirmamos a caução que estes movimentos deram ao prazer, incapazes que somos de termos em nós o prazer livre da dor e das penas.
43. Pelas adversidades que sofreu, ele tornou evidente a força da potência transcendente, uma vez que colocou na natureza o devir inalienável. Ao dar à natureza a impassibilidade pela paixão, a quitação das dívidas pelas penas e a vida eterna pela morte, ele restabeleceu as faculdades da natureza renovando-as por sua renúncia e privação na carne e ao dar à natureza, com sua própria encarnação, a graça sobrenatural: a deificação.
44. Deus se tornou homem verdadeiramente e deu um novo começo à natureza, a origem de uma segunda gênese, que pelas penas desemboca no prazer da vida do século futuro. Com efeito, da mesma forma como Adão o Ancestral, ao transgredir o mandamento divino, fez entrar na natureza um outro começo da gênese, oposto à primeira origem, que nascia do prazer mas terminava na morte pelo sofrimento; assim como concebeu, seguindo o conselho da serpente, um prazer que não era decorrente de uma pena anterior mas que estava presente na própria pena; e assim como, por causa da origem injusta extraída do prazer, carregou consigo, na morte, pela pena, todos os que nasceram dele na carne à sua imagem; também o Senhor, quando se tornou homem e suscitou na natureza, pelo Espírito, outro começo de uma segunda gênese, recebendo a justa morte de Adão pelo sofrimento – esta morte que nele era evidentemente injusta (pois ele não tinha como origem de sua própria gênese o prazer injusto que fora dado a Adão pela transgressão) – o Senhor, ao suprimir os dois, a origem e o fim do devir humano em Adão, retirou aquilo que até então não era de Deus e libertou da culpabilidade deste devir todos os que dele receberam espiritualmente o novo nascimento.
45. Depois de haver suprimido o prazer do pecado nascido da lei para ultrapassar o nascimento carnal dos que haviam nascido pelo Espírito na graça, o Senhor lhes concedeu, a fim de condenar o pecado, que recebessem a morte anteriormente destinada a condenar a natureza, pois eles já não tinham o prazer do devir de Adão, este prazer que vinha dele, mas apenas a dor que agia sobre eles por causa de Adão, não porque ela quitava o pecado, mas pela economia (a lei e a ordem do projeto divino), para reencontrar a com dição de estado da natureza: a morte do pecado. Quando já não tem para gerá-la o prazer da qual é a justiceira natural, a morte se torna como o pai da vida eterna. Pois, assim como a vida de prazer que Adão tinha se tornou a mãe da morte e da corrupção, da mesma forma a morte do Senhor por Adão, por estar livre do prazer nascido de Adão, engendra a vida eterna.
46. A natureza dos homens depois da transgressão teve por origem de seu próprio devir a concepção nascida da inseminação pelo prazer e o nascimento a partir da ejaculação. Ela termina na morte pela dor e
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na corrupção. Mas o Senhor, que não tinha esta origem no seu nascimento carnal, não pôde ter tido este mesmo fim, ou seja, a morte.
47. Depois de haver seduzido a Adão no princípio, o pecado o persuadiu a transgredir o mandamento divino, segundo o qual, por haver suscitado o prazer e por ter se enterrado pelo prazer nesta profundidade da natureza, ele condenava à morte toda a natureza, empurrando a natureza dos seres criados para a decomposição e a morte pelo homem. Tudo isto foi tramado pelo semeador do pecado e pai da malícia, o maligno diabo, que, devido a seu orgulho, foi banido da glória divina, mas em sua inveja contra nós e contra Deus, fez banir Adão do Paraíso para fazer desaparecer as obras de Deus e destruir o que havia sido criado em vista do devir.
48. O diabo, que invejava a Deus e que nos inveja, depois de haver com suas armadilhas persuadido o homem de que este era invejado por Deus, preparou-o para que transgredisse o mandamento. Como ele invejava a Deus, ele o fez de tal modo que a potência digna de todo louvor deste, que deificava o homem, não se tornasse visível. E como ele invejava o homem, ele fez de modo a que este, por sua virtude, não participe realmente da glória divina. Pois o impuro não apenas inveja nossa glória que conduz a Deus pela virtude, mas também inveja o poder de Deus digno de todo louvor, que nos chega pela salvação.
49. Assim como em Adão a morte foi a condenação da natureza, que tinha como origem de seu devir o prazer, também a morte de Cristo foi a condenação do pecado, uma vez que em Cristo a natureza se revestiu novamente de seu devir puro de todo prazer.
50. Se mesmo nós, que fomos, no Espírito, considerados dignos de nos tornamos morada de Deus pela graça, devemos dar provas de paciência quando sofremos pela justiça em vista da condenação do pecado e devemos nos dirigir de bom coração para a morte ignominiosa como se fôssemos malfeitores, ainda que sejamos bons, qual será o fim daqueles que desobedecem ao Evangelho de Deus? Vale dizer, qual será o fim, qual será a condenação daqueles que, não somente em suas almas e corpos, vontades e natureza, carregam em si até o final, apressadamente, vivo e ativo, o devir da natureza que dominou a Adão por meio do prazer, mas não recebem nem Deus Pai – que consola por intermédio do Filho encarnado – nem o próprio mediador, o Filho que intercede junto ao Pai, e que ofereceu a si mesmo à vontade do Pai em sua morte por nós a fim de nos reconciliar com o Pai e deste modo nos glorificar por sua própria causa, iluminando-nos com a beleza de sua própria divindade, que ele mesmo aceitou ser desonrada por nós e pelos nossos sofrimentos?
51. Uma vez que Deus será o lugar sem limites, sem dimensões, sem fim, de todos os salvos, tornado tudo em todos na medida da justiça, ou melhor, na medida dos sofrimentos que suportou aqui em baixo conscientemente pela justiça, dando a si mesmo a cada membro (pois a graça revela a si mesma na obra conforme o poder que reside no coração de cada membro e a partir daí no próprio ser cujos membros foram conservados em vida), onde ficam o ímpio e o pecador privados desta graça? Pois onde se
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encontrará quem não pode acolher em si a presença eficiente de Deus na beatitude, quando sofrer o banimento para longe da vida divina que é mais elevada do que o século, o tempo e o espaço?
52. Quem não tem Deus, que mantém a vida voltada para a beatitude e que deve se tornar um lugar para todos os que são dignos dele, uma vez que não terá por si a Deus na morada e no edifício da beatitude em Deus? E se o justo é salvo com grandes penas, o que acontecerá, ou a quem se confiará aquele que nada fez de piedoso nem de virtuoso durante a vida presente?
53. Pelo poder infinito de uma mesma resolução de sua bondade, Deus manterá unidos todos os seres, os anjos e os homens, os bons e os maus. Mas nem todos participarão igualmente de Deus, que os separou absoluta e irresistivelmente, e sim participarão conforme ao que são em si mesmos.
54. Os que guardaram sua reflexão continuamente igual à natureza e a tornaram capaz de receber por sua atividade as razões da natureza ligadas à razão global da beatitude, por causa do prazer com que esta reflexão se volta para a vontade divina, estes participarão totalmente da bondade da vida divina que brilha sobre eles, tanto homens como anjos. Mas os que tornaram sua reflexão continuamente desigual à natureza e que mostraram isto dispersando com sua atividade as razões da natureza ligadas à razão global da beatitude, por causa da repugnância com que esta razão se volta para a vontade divina, estes serão derrubados de toda bondade porque neles se manifesta a alienação do pensamento voltado para a beatitude. Por causa desta alienação, estes homens serão separados de Deus, por não trazerem em si, na expressão de seu pensamento, a razão da beatitude fecundada pela energia dos bens, esta razão segundo a qual a vida divina aparece naturalmente.
55. Quando vier o Juízo, a razão da natureza será a balança que pesará cada pensamento, pois ela mostra o movimento que pende para mal ou para o bem, movimento segundo o qual se dá ou não a participação na vida divina. Com efeito, por sua presença, Deus manterá no ser e no ser eterno a todas as criaturas. Mas não o fará de um modo particular, no ser eterno pleno de felicidade, senão aos anjos e aos santos homens, deixando aos que não o são o ser eternamente infeliz, como o fruto alterado de seus pensamentos.
56. O mistério da encarnação divina não coloca sobre o mesmo plano a alteridade segundo a natureza – a alteridade dos seres que a constituem – e a diferença segundo a hipóstase. De um lado, para que o mistério da Trindade não receba adjunção e, de outro, para que ninguém seja por natureza semelhante e consubstancial à Divindade. Com efeito, a união das duas naturezas numa hipóstase não se deu em uma única natureza, a fim de que a unidade da hipóstase se revelasse ao se realizar na união, a partir das duas naturezas que convergiam uma para a outra, e para que fosse acrescentada fé à diferença destas naturezas que se uniram na união indissolúvel segundo sua propriedade natural, e para que esta diferença permanecesse fora de toda mudança e de toda confusão.
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57. Nós não dizemos que em Cristo exista uma diferença de hipóstase, pois a Trindade permaneceu Trindade mesmo quando o Verbo se encarnou; a encarnação não acrescentou uma pessoa à Santíssima Trindade. Nós dizemos que existe uma diferença de naturezas, a fim de que não se considere que, segundo a natureza, a carne é consubstancial ao Verbo.
58. Quem não diz que existe uma diferença de natureza não tem nenhum meio de confirmar a confissão de que o Verbo se fez carne sem se alterar. Pois ele não sabe que o que assumiu e o que foi assumido estão salvaguardados em suas naturezas, depois da união, no seio da única hipóstase do Cristo único, Deus e Salvador.
59. Se em Cristo existe, depois da união, uma diferença de natureza (pois a divindade e a carne jamais são a mesma coisa em essência, para poder se tornar um só natureza), jamais houve uma união das naturezas conjuntas, mas união em vista de uma só hipóstase, na qual não encontramos em Cristo, seja do modo que for, nenhuma diferença. Pois o Verbo na hipóstase se identifica à sua própria carne, uma vez que, se Cristo tinha em si uma diferença, ele não poderia ser um de nenhum modo. Mas na medida em que ele recusa absolutamente toda diferença, qualquer que seja ela, ele possui em si de todas as maneiras, na piedade, o ser e o nome do Um.
60. Pela esperança, a fé suscita o amor perfeito a Deus. A boa consciência assume o amor ao próximo pela guarda dos mandamentos. Pois a boa consciência não tem contra ela nenhum mandamento que tenha sido transgredido e que a acuse. Somente o coração dos que desejam a salvação verdadeira se confia naturalmente aos mandamentos.
61. Nada é mais rápido do que crer, e nada mais fácil do que confessar pela boca aquilo em que se acreditou. Um simboliza o amor vivo que o crente dirige ao Criador; o outro, a benevolência ao próximo, amado por Deus. O amor e a verdadeira benevolência, ou seja, a fé e a boa consciência, são manifestamente obras do movimento do coração, esta obra que não necessita de matéria interior para acontecer.
62. Aquele que sofre ser incapaz de se mover no bem, se coloca certamente à disposição do mal. Pois é impossível permanecer imóvel nos dois. É por isso que a Escritura pode chamar de pedra a negligência da alma no bem, quando a alma é insensível às virtudes, e pode chamar de madeira o ardor no mal. Mas o movimento dos sentidos, quando ligado à atividade do intelecto, suscita a virtude com o conhecimento.
63. Em minha opinião a Escritura denominou muro de divisa a lei do corpo segundo a natureza. E chamou de fechamento àquilo que nos liga às paixões pela lei da carne, ou seja, o pecado. De fato, somente a relação mantida entre as paixões da infâmia e a lei da natureza, ou seja, a parte da natureza submetida às paixões, se torna um fechamento, que separa o corpo e a alma e não permite que, sob o efeito da ação, a razão das virtudes passe para a carne por intermédio da alma. Mas quando a razão vem trazer seu auxílio e
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combate a lei da natureza, ou seja, a parte da natureza submetida às paixões, ela suprime a relação que essas paixões contra a natureza tinham no seio desta lei.
64. Quando, com suas intrigas e mentiras o maligno se apodera da virtude da natureza, desta virtude implantada em Deus, ele é como um ladrão que tenta fazer passar para si a veneração por Deus. Vale dizer que ele desvia para longe das razões espirituais que estão nas criaturas a faculdade intelectual de contemplar, e a limita à simples capacidade de observar superficialmente as coisas sensíveis. Mas a partir do momento em que, começando pelos movimentos naturais que conduzem às coisas da natureza, ele arrasta de maneira falaciosa a potência prática e, com sua persuasão, por meio de supostas benesses, ele liga ao pior o impulso desta potência, ele jura falsamente em nome do Senhor, conduzindo a alma dócil para outras coisas, ao encontro de suas promessas. Ele é ladrão, pois ele despoja para si próprio o conhecimento da natureza. E ele é perjuro, pois ele convence a potência prática da alma a trabalhar penosamente para fazer o que é contrário à natureza.
65. Ou ainda, o ladrão é aquele que, para enganar aos que os escutam, aparentemente utiliza as palavras divinas, das quais não conhece o poder por obras, fazendo da simples enunciação da glória um comércio e buscando com as palavras de sua boca o elogio que lhe fazem os que o escutam e o consideram como um justo. Numa palavra, aquele cuja vida não está em harmonia com a palavra e cuja disposição de alma é contrária ao conhecimento, é um ladrão que, escondido pelos bens estrangeiros, não se deixa ver com clareza. É dele que o Verbo disse: “Deus disse ao pecador: Porque você recita meus mandamentos e tem na boca minha aliança?”.
66. Também é um ladrão aquece que recobre a maldade escondida na alma por atitudes e modos aparentes, e que dissimula a disposição interior sob o disfarce da bondade. Como aquele que, pela enunciação das palavras do conhecimento, rouba o entendimento dos que o escutam, este homem, pelo modo hipócrita de seu comportamento, rouba os sentidos daqueles que o veem. Ser-lhe-á dito igualmente: “Sejam confundidos, vocês que usam vestes estrangeiras”, e: “Neste dia o Senhor retirará o véu de suas roupas”. De fato, a cada dia, no lugar secreto das obras do coração, parece que ouço Deus me dizer estas palavras, condenado que sou por umas e outras.
67. O perjuro, ou seja, aquele que faz um juramento falso em nome do Senhor, é o homem que promete a Deus viver segundo a virtude e que se ocupa de coisas estranhas, malgrado a garantia de sua promessa, e transgrede seu engajamento de abraçar a vida santa não praticando os mandamentos. Numa palavra, aquele que escolheu viver segundo Deus e que não morre completamente para a vida presente é um mentiroso e um perjuro, pois fez um voto a Deus prometendo lutar irrepreensivelmente nos combates divinos, mas não mantém sua promessa; é por isso que ele não é louvado. É louvado quem jura por ele, Deus, ou seja, quem oferece sua vida a Deus e realiza pela verdade das obras da justiça os votos de sua bela promessa.
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68. Quem imita o conhecimento apenas pela enunciação por meio das palavras, rouba para sua própria glória os pensamentos dos que o escutam. E quem imita a virtude com suas maneiras, rouba para sua própria glória a vista dos que o veem. Roubando com mentiras, os dois desviam, um os pensamentos da alma dos que o ouvem, outro os sentidos do corpo dos que o veem.
69. Se aquele que sustenta suas promessas é inteiramente digno de louvor, pois fez um voto a Deus e diz a verdade, é claro que o que transgrede seu próprio contrato merecerá a vergonha e a desonra, pois fez uma promessa a Deus e mentiu.
70. Nenhum homem que nasce neste mundo é totalmente esclarecido pela palavra. Pois muitos permanecem sem luz e não participam da luz do conhecimento. Mas é claro que quem nasce para o verdadeiro mundo das virtudes é iluminado segundo sua própria resolução. Com efeito, qualquer um que nasce segundo a verdade neste mundo passando voluntariamente pelo nascimento escolhido é iluminado pela palavra, pois recebe o estado imutável da virtude e da ciência infalível do verdadeiro conhecimento.
71. Nem tudo que tem a mesma pronúncia é compreendido de uma mesma e única maneira. Mas cada palavra dita deve ser compreendida à luz do poder que fundamenta o modo da Santa Escritura, se tentarmos mirar corretamente o objetivo com que foi escrita.
72. Nenhum dos personagens, dos lugares e dos tempos, nenhuma das coisas vivas ou inanimadas, sensíveis ou inteligíveis, mencionadas nas Escrituras, tem sua história ou seu sentido espiritual em perfeita harmonia, segundo um modo de compreensão sempre igual. É por isso que quem se dedica impecavelmente à ciência divina da Escritura deve compreender diferentemente, em sua diversidade, cada uma das coisas que enumeramos, que surgem ou que são ditas, e esperar a visão do sentido espiritual que concorde com elas convenientemente, segundo o modo e o tempo.
73. A todos os que estão no mundo se deve ensinar a viver e se conduzir apenas pela razão e a não ter cuidados com o corpo senão para romper, pela prática da atenção, a relação entre este corpo e a alma, e não permitir a esta nenhuma imaginação material, uma vez que doravante a razão extingue os sentidos que antes a repeliam e que recebiam a irracionalidade do prazer como uma cobra que serpenteia. É justamente a estes sentidos que foi oposta a morte, para que eles cessem de oferecer ao diabo uma entrada para a alma.
74. Os sentidos, que em gênero são uma coisa só, possuem cinco formas: através do ato de percepção própria a cada um deles, eles persuadem a alma perdida a amar o mundo sensível correspondente, em lugar de Deus. É por isso que quem segue sabiamente a razão antes da morte forçada e contrária ao desejo decide-se voluntariamente pela morte da carne, separando totalmente o desejo dos sentidos.
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75. Quando os sentidos têm o intelecto em seu poder, eles ensinam cada qual o politeísmo, honrando as paixões com a servidão, como se o mundo que lhes corresponde fosse divino.
76. Quem permanece estrito à letra da Escritura não possui mais do que os sentidos para captar a natureza, e por meio deles somente a relação da alma com a carne se deixa ver naturalmente. A palavra que não é entendida espiritualmente não tem por ela senão os sentidos, que determinam o modo como ela é enunciada e não permitem que o poder daquilo que está escrito passe para o intelecto. Ora, se a palavra não está ligada senão aos sentidos, quem a receber apenas na ordem da história, como o fazem os judeus, viverá segundo a carne do pecado, morrendo a cada dia em sua faculdade cognitiva, por causa dos seus sentidos vivos, incapaz que é de fazer morrer pelo Espírito as obras do corpo para vive no Espírito a vida bem-aventurada. Pois “se vocês vivem segundo a carne, vocês morrerão, disse o Apóstolo divino, mas se fizerem morrer as obras do corpo pelo Espírito, vocês viverão”.
77. Não coloquemos debaixo de uma vasilha a lâmpada divina – ou seja, a palavra iluminada pelo conhecimento – quando a acendemos com a contemplação e a ação, a fim de não sermos condenados por termos encerrado na letra o poder da sabedoria, que ninguém pode limitar. Coloquemo-la sobre o candelabro, ou seja, a Santa Igreja, onde ela fará brilhar sobre todos, nas alturas da verdadeira contemplação, a luz do divino.
78. Quem resiste aos ataques das provas involuntárias com um coração inquebrantável, como bemaventurado Jó e os nobres mártires, é uma lâmpada sólida: este mantém inextinguível a luz da salvação mantida pela paciência da coragem, pois o Senhor é sua força e seu louvor. E quem combate as intrigas do maligno e não ignora os enfrentamentos dos combates invisíveis envolto na luz do conhecimento é também uma lâmpada: este diz, como convém ao santo Apóstolo: “Nós não ignoramos os seus desígnios”.
79. Nos que são dignos da pureza das virtudes, o Espírito Santo opera a purificação pelo temor, a piedade e o conhecimento. Aos que são dignos da luz, ele concede a iluminação do conhecimento dos seres nas razões de sua existência pela força, o conselho e a inteligência. Aos que são dignos da deificação, ele concede a graça da perfeição pela sabedoria luminosa, simples e total, elevando-os diretamente por todos os meios até a causa dos seres, na medida em que isto é possível ao homem: eles se reconhecem simplesmente nas propriedades divinas da bondade, uma vez que conhecem a si mesmos a partir de Deus e conhecem Deus a partir de si mesmos, pois nada existe entre eles que os separe. Entre a sabedoria e Deus não há intermediário. Eles possuirão em si a inalienável imutabilidade quando tiverem ultrapassado todos os intermediários nos quais existia antes o perigo de se enganar no caminho do conhecimento. Chamamos de intermediário a essência das coisas inteligíveis e das coisas sensíveis pelas quais o intelecto humano se eleva naturalmente até Deus como para a causa dos seres.
80. O temor, a piedade e o conhecimento colocam a trabalhar a filosofia prática. A força, o conselho e a inteligência levam a cabo a contemplação natural no Espírito. Mas apenas a sabedoria divina concede a graça da teologia mística.
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81. Assim como é impossível manter uma lâmpada acesa sem óleo, também é impossível manter viva a luz dos carismas sem o hábito de alimentar os bens com os comportamentos, as palavras, as atitudes e as condutas, as reflexões e os pensamentos convenientes. Pois todo carisma espiritual necessita do hábito que está ligado a ele e assim não cessa de espargir sobre este, como óleo, a própria matéria do intelecto, a fim de se manter continuamente no hábito daquele que o recebeu.
82. Assim como é impossível encontrar o verdadeiro óleo natural sem a oliveira, assim como é impossível conservar este óleo sem um vasilhame que o contenha, assim como a luz da lâmpada seguramente se extingue se não for alimentada de óleo, também, sem a Sagrada Escritura, não é possível que o poder dos pensamentos seja verdadeiramente divino, e, sem o hábito que contém os pensamentos como um vasilhame, nenhum pensamento divino consegue se formar. Se não for alimentada pelos pensamentos divinos, a luz do conhecimento que existe nos carismas não sobrevive naqueles que os possuem.
83. Eu penso que a oliveira da esquerda representa o Antigo Testamento: ele pertence primeiramente à filosofia prática. E penso que a oliveira da direita representa o Novo Testamento: ele ensina o mistério novo e suscita o estado contemplativo em cada fiel. Um traz os modos da virtude, outro as razões do conhecimento aos que amam a sabedoria do divino. Um, arrebatando à bruma das coisas divinas, eleva o intelecto purificado de toda imaginação material até aquilo que lhe é aparentado. Outro separa do pendor material, arrancando pela tensão da coragem, como um martelo, os pregos que ligam o corpo ao pensamento.
84. O Antigo Testamento eleva até a alma o corpo conduzido à razão por meio das virtudes, impedindo o intelecto de descer para o corpo. O Novo Testamento eleva para Deus o intelecto consumido pelo fogo do amor. Um faz do corpo a mesma coisa que o intelecto no movimento de adoção. Outro torna semelhante a Deus o intelecto em estado de graça, que se assemelha a Deus a ponto de conhecê-lo através de si, a Deus a quem ninguém absolutamente conhece em sua natureza a partir de si mesmo, como se pode conhecer um modelo a partir de uma imagem.
85. O Antigo Testamento, que é o símbolo da prática da virtude, prepara o corpo para se adaptar ao intelecto e seguir seu movimento. O Novo Testamento, que suscita a contemplação e o conhecimento, ilumina por intermédio dos pensamentos divinos e dos carismas o intelecto que, misticamente, se liga a ele. Assim o Antigo Testamento fornece ao monge gnóstico os modos das virtudes, e o Novo Testamento concede ao monge ativo as verdadeiras razões do conhecimento.
86. Deus é chamado, e pela graça se torna tal, o Pai dos que nascem para a virtude, este nascimento único e voluntário no Espírito, segundo o qual eles passam a possuir pelas virtudes como que o rosto da alma, o sinal visível do Deus nascido. Deste modo eles preparam os que os veem durante esta vida para que glorifiquem a Deus pela mudança dos hábitos, oferecendo a eles suas próprias vidas para que as imitem, como excelentes modelos de virtude. Pois Deus não é naturalmente glorificado pela simples palavra; é pelas obras da justiça que eles proclamam com palavras muito mais fortes a magnificência divina.
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87. A lei natural fica à esquerda, por causa dos sentidos: ela conduz à razão os modos das virtudes e torna o conhecimento ativo. Mas a lei espiritual está à direita, por causa do intelecto: ela mistura aos sentidos as razões espirituais que estão nos seres e torna a ação refletida.
88. Aquele que mostrou o conhecimento encarnado pela ação e a ação vivificada pelo conhecimento encontrou o modo exato da verdadeira teurgia. Mas quem traz em si um separado do outro, ou bem fez do conhecimento uma imaginação inconsistente ou fez da ação um simulacro. Pois o conhecimento que não fecunda a ação não difere em nada da imaginação; ele não traz em si esta razão que a fundamenta. E a ação que não é penetrada pela e razão não passa de um simulacro: ela não possui o conhecimento que a vivifica.
89. O mistério de nossa salvação faz da vida a manifestação da razão e da razão a glória da vida. Ele mostra que a ação é uma contemplação ativa, e que a contemplação é uma ação iniciada, numa palavra, que a virtude é a manifestação do conhecimento, que o conhecimento é o poder que preserva a virtude e que os dois, a virtude e o conhecimento, suscitam uma sabedoria única, a fim de que saibamos que os dois Testamentos concordam inteiramente um com o outro na graça, primeiramente unindo-se um com o outro, para realizar um só e mesmo mistério neste acordo, que a alma e o corpo só se unem para formar um homem.
90. Assim como uma alma e um corpo fazem um homem ao se unirem, também a ação e a contemplação, quando conjugadas, constituem uma mesma sabedoria gnóstica, e o Antigo e o Novo Testamento colocam em ação e um só e mesmo mistério. Mas o bem pertence por natureza a Deus apenas, de quem recebe a luz e a bondade tudo o que é iluminado e que se torna bom por participação.
91. Quem compreende o mundo visível contempla o mundo inteligível. Ele representa as coisas inteligíveis pelos sentidos imaginando-as e modela segundo o intelecto as razões que contemplou, transportando para os sentidos, de diversas maneiras, a constituição do mundo inteligível, bem como, para o intelecto, a composição complexa do mundo sensível. Ele considera os sentidos no mundo inteligível transportando pelas razões o mundo sensível para o intelecto. E ele considera o intelecto no mundo sensível inserindo por meio das formas, com ciência, o mundo inteligível nos sentidos.
92. O profeta chamou de cabeça à primeira razão que fundamenta a unidade (pois ela é a origem de toda virtude) quando disse: “Minha cabeça está mergulhada nas anfractuosidades das montanhas”. Ele chamou de anfractuosidades das montanhas os pensamentos dos espíritos de malícia, sob os quais nosso intelecto é soterrado por causa da transgressão. Ele chamou de terras baixas a terra que não percebe o conhecimento divino, e de vida conforme a virtude o estado de traz em si tal movimento. Ele chamou de abismo a ignorância ligada ao estado de malícia, como a terra que é invadida pelo oceano do mal. Ou ainda, ele chamou de terra a consolidação do mal. Enfim, ele chamou de barreiras eternas as tendências passionais das coisas materiais, que mantêm o pior estado.
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93. A paciência dos santos esgota o poder mau e agressivo. Pois ela persuade a que nos glorifiquemos nas penas sofridas pela verdade, e ensina a nos deitarmos antes nos sofrimentos do que no conforto. Nos que se preocupam demasiado com a vida carnal, ela suscita o fundamento de um poder do Espírito que ultrapassa a fraqueza natural da carne pelo sofrimento. De fato, veja como a natureza fraca dos santos, mais forte do que o diabo orgulhoso (conforme nos mostrou o Senhor) é o fundamento do mais alto poder divino.
94. A palavra da graça, por meio de numerosas provas tocantes à natureza dos homens – vale dizer, a Igreja das nações – como Jonas viajando a Nínive, a grande cidade, através de numerosas aflições, persuade a lei reinante, a lei da natureza, a deixar o trono, ou seja, o estado anterior do mal ligado aos sentidos, a retirar suas vestes, ou seja, despojar-se do orgulho da glória mundana ligada aos costumes, e a se revestir de um saco, ou seja, do luto e da difícil e rude ascese do sofrimento, esta ascese que convém à vida levada segundo Deus, e, enfim, a assentar-se sobre as cinzas: estas representam aqui a pobreza de espírito sobre a qual se assenta todo homem que aprende a viver na piedade e que porta o flagelo da consciência, que o atormenta pelas faltas cometidas.
95. Considere que o rei representa a lei natural; o trono, o estado passional dos sentidos; as vestes, a agressão da vanglória; o saco, o luto a que leva o arrependimento; a cinza, a humildade; os homens, os que se enganam em sua razão; os cavalos, os que se enganam em seus desejos; os bois, os que se enganam em seu ardor; os cordeiros, os que se enganam em sua contemplação das coisas visíveis.
96. Quem, pela virtude conforme a lei esquece as paixões da carne, estes pecados da esquerda, e que, pelo conhecimento infalível, não se deixa prender em seus sucessos contra a doença da presunção orgulhosa, este pecado da direita, se torna um homem que não conhece sua direita, porque não deseja uma glória separada de Deus, e que tampouco conhece sua esquerda, pois não é excitado pelas paixões da carne. Como de costume, chamamos de vício da direita a vanglória dos sucessos aparentes, e chamamos de vício da esquerda o deboche nas paixões infames. Pois a razão da virtude desconhece o pecado da carne, que é o vício da esquerda; e a razão do conhecimento desconhece a malícia da alma, que é o vício da direita.
97. O conhecimento das virtudes segundo a razão, ou seja, o verdadeiro reconhecimento eficiente da causa das virtudes suscita naturalmente uma total ignorância dos vícios da direita e da esquerda, que são o excesso e a falta de um lado e de outro do centro das virtudes. Pois se nada é naturalmente insensato na razão, que se elevou claramente até a razão das virtudes não conhecerá jamais a adoção das coisas insensatas. Com efeito, não é possível deplorar como um mesmo mal os dois vícios que se opõem e, ao mesmo tempo, conhecer um porque se parece com o outro.
98. Se na fé não existe uma única palavra de incredulidade, se, por natureza, a luz não causa as trevas, e se o diabo não se mostra naturalmente junto com Cristo, fica claro que o que é insensato tampouco pode coexistir com a razão. E se o insensato não pode existir junto com a razão, que se eleva à razão das virtudes tampouco adotará coisas insensatas, porque só conhece a virtude tal como ela é e não tal como a
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imagina. É por isso que ele desconhece o vício da direita pelo excesso e o vício da esquerda pela falta. Pois em ambos ele considera claramente o vício insensato.
99. A incredulidade é a recusa aos mandamentos, como a fé é sua aceitação. As trevas são a ignorância do bem e a luz, seu discernimento. Chamamos a Cristo de essência e hipóstase do bem. E chamamos ao diabo de pior estado, que engendra todos os males.
100. Se a razão é a condição e a medida dos seres, o mesmo acontece com a irracionalidade. É por isso que o que vai contra a condição e contra a medida dos seres, ou que se coloca acima de sua condição e acima de sua medida, é insensato. Pois ambas as atitudes provocam igualmente, nos que assim caminham, a queda para fora do ser em si. Uma os persuade a tornar invisível e indeterminado o movimento de seu curso, pois na desmedida da inteligência este movimento não tem a Deus como objetivo, como um fim concebido por eles previamente; estes se colocam mais à direita que o vício da direita. A outra os persuade a desviar do objetivo o movimento de seu curso, dirigindo-o apenas aos sentidos, por um relaxamento do intelecto: eles pensam que o fim concebido previamente é aquele que eles encerram em seus sentidos. Tudo isso ignora (porque não experimenta) aquele que está ligado apenas à razão da virtude e que fez penetrar nesta razão todo o movimento do próprio poder de seu intelecto. É por isso que ele não pode pensar em nada que esteja acima ou contra a razão.
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SÉTIMA CENTÚRIA
1. A razão da natureza, por intermédio das virtudes, eleva naturalmente ao intelecto aquele que se aplica à ação. E o intelecto, pela contemplação, faz penetrar na sabedoria aquele que busca o conhecimento. Mas a paixão insensata faz quem negligencia os mandamentos se entregar aos sentidos, cujo fim está em trancar o intelecto nos prazeres.
2. Chamamos de virtude ao estado perfeitamente impassível e firme do bem. Nada se intromete neste estado, pois este traz em si a marca de Deus, à qual nada se opõe. Deus é a causa das virtudes. E o conhecimento eficiente de Deus é a mudança que conduz ao Espírito, de acordo com seu estado, ao que verdadeiramente conheceu a Deus.
3. Se a razão determinou, como é natural, o devir de cada um, nenhum ser pode por si mesmo ultrapassar o limite, nem por si só permanecer em retirada. O limite dos seres é assim o reconhecimento desejado da causa, e sua medida é a imitação eficiente da causa, na medida em que lhe for possível. Levar além do limite e da medida o desejo dos que participam do movimento torna vão seu curso, uma vez que eles não alcançam a Deus, em quem se detém o movimento do desejo de todos, o qual recebe como inelutável fim o regozijo em Deus. Mas permanecer aquém do limite e da medida o desejo dos que participam do movimento torna igualmente vão o curso, pois ao invés de atingir a Deus eles alcançam apenas os sentidos, nos quais, devido ao prazer, penetrou o regozijo infundado das paixões.
4. O intelecto irresistivelmente voltado para a causa dos seres permanecerá em total ignorância, por não contemplar nenhuma razão de Deus que, em toda causa, está por essência acima de qualquer razão. Retirando-se de todos os seres para tender unicamente a Deus, o intelecto ignora totalmente as razões dos seres dos quais ele se separou, para inexplicavelmente contemplar, pela graça, o Único para quem ele se dirige. Mesmo as razões dos incorporais são deixados de lado pelo intelecto que se eleva para Deus em êxtase. Pois, desde que ele vê a Deus, ele deixa naturalmente de ver tudo o que está antes de Deus.
5. A ostentação é uma paixão verdadeiramente maldita. Ela é feita da mistura de dois males, o orgulho e a vanglória. Destes dois, o orgulho recusa a causa da virtude e da natureza, e a vanglória falsifica a natureza e a própria virtude. Pois, para o orgulhoso nada se faz segundo Deus e, para o vaidoso nada acontece segundo a natureza.
6. É típico do orgulho negar que Deus seja o Pai da virtude e da natureza. E é típico da vanglória dividir a natureza, para permitir a complacência. A ostentação é naturalmente a filha dos dois: ela é um estado composto, um estado de malícia que traz em si a recusa voluntária de Deus e a ignorância da igualdade de honra que todos os homens possuem por natureza.
7. A ostentação constitui uma mistura de orgulho e de vanglória. Ela sente por Deus o desprezo com o qual acusa de modo blasfemo a providência. E sente pela natureza a aversão alienante com a qual maneja contra a natureza, para abusá-la, todas as coisas da natureza, deformando sua beleza.
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8. O sopor ardente significa não apenas as tentações como também o abandono de Deus, este abandono que retirou dos judeus o dom dos carismas divinos. Mas o parentesco com o Espírito liberta da carne a relação da vontade, que o desejo de amor corre a ligar a Deus.
9. A razão natural, quando nela os sentidos não se sobrepõem à razão, persuade a que abracem o que é próximo e semelhante, sem nada receber, todos os que a própria natureza ensina o socorro de que necessitam os demais, e os persuade a todos desejarem para os outros aquilo que cada qual pensa ser-lhe agradável vindo dos demais. É o que o Senhor ensina ao dizer: “Façam aos outros o que querem que lhes façam”.
10. A obra da lei natural é a relação unânime do pensamento que une todos a todos. Aqueles cuja natureza é dirigida pela razão possuem naturalmente uma mesma disposição. Se sua disposição é a mesma, seu modo de conduta e o curso de suas vidas serão natural e manifestamente os mesmos. E se forem os mesmo o seu modo de conduta e o curso de suas vidas, o laço da relação de uns com os outros segundo o pensamento será igualmente o mesmo, pois ele conduz todos os seres segundo um mesmo pensamento para a razão única da natureza, na qual não se encontra jamais a divisão que reina quando existe o egoísmo. Mas a lei escrita, que, pelo temor dos castigos, retém os impulsos desordenados dos mais desequilibrados costuma ensinar-lhes a ver apenas a permanência da igualdade segundo a qual o poder da justiça, afirmado pelos tempos, se transforma em natureza, fazendo do temor uma disposição lentamente confirmada, pouco a pouco, pelo pensamento do bem, e fazendo do comportamento um hábito purificado pelo esquecimento das primeiras faltas, que engendra consigo o afeto mútuo.
11. A lei escrita, ao impedir a iniquidade por meio do temor, acostuma à justiça. Com o tempo, o hábito cria uma disposição cheia de amor pelo que é justo, suscitando um estado estável, voltado para o bem e que conduz ao esquecimento da malícia anterior.
12. Mas a lei da graça ensina diretamente aqueles a quem ela conduz a imitar o próprio Deus, que nos amou mais do que a si mesmo, se podemos dizê-lo (e isto mesmo que tenhamos sido seus inimigos por causa do pecado), que, sem se alterar, ele veio a nós, ele que estava acima de todos os seres, recebendo acima dos seres nossa natureza, fazendo-se homem, tornando-se como os homens, não recusando tornar sua nossa condenação. E assim como pela economia ele se fez homem, pela graça nos deificou, a fim de que não apenas aprendêssemos a nos ligar naturalmente uns aos outros e a nos amar espiritualmente uns aos outros como anos mesmos, como também a cuidarmos divinamente uns dos outros mais do que de nos mesmos, e a dar provas do amor que temos uns pelos outros escolhendo de bom grado, pela virtude, morrermos voluntariamente uns pelos outros. Pois Cristo disse que não há maior amor que o de dar a própria vida a quem se ama.
13. A lei da natureza, numa palavra, é a razão natural que toma os sentidos sob seu poder, a fim de suprimir a irracionalidade, que divide o que estava unido naturalmente. A lei escrita é a razão natural que,
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depois da supressão da irracionalidade nos sentidos, assume também o desejo espiritual, o qual mantém a conexão com aquilo que nos é aparentado. E a lei da graça é a razão que, acima da natureza, conduz à deificação transformando inflexivelmente a natureza, mostrando à natureza dos homens, como uma imagem e de modo incompreensível, o modelo que ultrapassa a essência e a natureza, e oferecendo a permanência do ser eternamente bem-aventurado.
14. Considerar o próximo como a si mesmo é como cuidar só de sua vida em seu ser: isto é próprio da lei natural. Amar o próximo como a si mesmo consiste em, pela virtude, velar sobre a vida do próximo para sua beatitude: é isto que a lei escrita prevê. Mas amar ao próximo mais do que a si mesmo, isto só a lei da graça permite.
15. Quem se afasta das ocasiões de se entregar aos prazeres do corpo aprende as razões da providência que retêm a matéria inflamada das paixões. E quem aceita os golpes que fazem o corpo sofrer se instrui nas razões do juízo que o purifica das manchas anteriores por meio das penas involuntárias.
16. Se a Escritura opôs a ligação de Deus com Nínive ao profeta afligido pela cabana e da mamoneira, ou seja, pela carne e o prazer da carne, é claro que o que é amado por Deus é bem melhor e mais precioso que todos os seres queridos que prendem os homens; estes seres não são melhores nem mais preciosos, apenas são presumidos assim por um julgamento errôneo. Nenhum deles é uma razão fundamentada na existência. Cada qual não passa de uma imaginação que engana o intelecto e que, por meio da paixão, dá uma forma vazia ao que não é, embora não possa lhe dar uma hipóstase.
17. O conhecimento exato das palavras do Espírito é revelado naturalmente apenas àqueles que são dignos do Espírito, os quais, purificando o intelecto da escória das paixões por meio de uma grande aplicação na prática das virtudes, recebem como um espelho puro e brilhante o conhecimento das coisas divinas, que se imprime neles como um rosto e os invade ao tocá-los. Mas àqueles cuja vida foi manchada pelas sujeiras das paixões, é no mínimo difícil testemunhar o conhecimento das coisas divinas a partir de perspectivas justas e, com mais razão ainda, não ter a arrogância de pensar e expressar estas coisas de forma justa.
18. Diz-se de quem recebeu como uma forma do intelecto o conhecimento que no Espírito divino provém das virtudes, que este experimentou as coisas divinas, por ter assumido este conhecimento não pela natureza da existência, mas pela graça da participação. Mas quem não recebeu o conhecimento que vem da graça, mesmo q eu diga algo gnóstico, não conhece por experiência o poder daquilo que disse. Pois o simples fato de ter aprendido não implica um conhecimento real.
19. O intelecto purificado ao extremo pelas virtudes faz naturalmente justiça às razões das virtudes, ao fazer seu rosto do conhecimento divinamente marcado por elas. Com efeito, todo intelecto, que por si só é
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sem forma nem marca, só adquire uma forma se esta lhe vier, seja do conhecimento suscitado pelas virtudes através do Espírito, seja da ignorância trazida pelas paixões.
20. Quem decaiu do amor divino traz a lei que está na carne e que reina pelo prazer, e não quer nem pode observar nenhum mandamento de Deus. De fato, uma vez que preferiu a vida de amor ao prazer à vida da virtude no Espírito de Deus e ao Reino, atrai sobre si mesmo a ignorância ao invés do conhecimento.
21. Aquele que, em seu intelecto, não acede à beleza divina que existe no Espírito no interior da letra da lei, engendra naturalmente a tendência voluntária ao prazer, ou seja, o pendor mundano e o amor pelo mundo, pelo fato de aprender unicamente seguindo as palavras que ouviu dizer.
22. A desonra da boca consiste no exercício dos pensamentos do intelecto por amor ao mundo e ao corpo, uma vez que, seguindo a tendência voluntária, o mundo – ou seja, a disposição para amar o mundo e o exercício dos pensamentos do intelecto por amor ao prazer – provém naturalmente da formação do corpo tal como ela aparece na letra da lei. Com efeito, aquilo a que estamos dispostos por nossa tendência será também aquilo sobre quê exerceremos nossa inteligência.
23. Ou ainda: a desonra da boca consiste no movimento do intelecto que oferece uma forma às paixões e que molda a beleza pelo prazer, para satisfazer os sentidos. Pois, sem o poder intelectual da inteligência, nenhuma paixão seria capaz de modelar a menor forma. Ou então: o movimento das paixões, material, sem beleza e sem forma, é anátema. E a desonra da boca consiste no movimento que dá uma forma à paixão abrindo a ela os sentidos que, por meio dos pensamentos, fornece a matéria correspondente à paixão.
24. Aquele que acredita que Deus ordenou na lei os sacrifícios, as festas, os sábados e as luas novas apenas para as delícias e o conforto do corpo, estará inteiramente sob os golpes da atividade das paixões e conhecerá a vergonha da impureza dos pensamentos infames ligados a estas paixões. Ele estará submetido ao mundo corrompido e aos cuidados do amor pelo corpo em seus pensamentos. Pois, sujeitado à matéria e à forma das paixões, nada terá de precioso fora das coisas corrompidas.
25. Aquele que está persuadido de que usufruir dos prazeres do corpo segundo a lei é uma prescrição divina, recebe como se fosse um dom de Deus a gula, a fim de viver alegremente nela: deste modo, ele engendra as maneiras que mancham a atividade dos sentidos por meio do abuso.
26. A partir do momento em que a faculdade contemplativa da alma abarca, englobando-as na lei escrita, as delícias da alma como se elas fossem divinas, a fim de viver com elas conforme o mandamento, ela
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busca utilizar os sentidos contra a natureza, não permitindo a nenhum dos sentidos usar a energia de acordo com a natureza. Pois ela engendra o costume e a atividade das paixões e faz da gula sua moradia, como se a gula fosse divina: assim ela suscita comportamentos que mancham os sentidos por meio do abuso, e acaba por suprimir as razões e as sementes naturais que residem nos seres.
27. Se alguém se aplica apenas à observância corporal da lei não será capaz de receber nenhuma palavra e nenhum pensamento natural, porque os símbolos e a natureza não são a mesma coisa. Pois quem se apega aos símbolos da lei não é capaz de ver segundo a razão a natureza dos seres nem se apropriar das razões que o Criador colocou realmente nos seres, por causa da diferença que separa os símbolos da natureza dos seres.
28. Quem considera que o ventre é Deus e se vangloria da vergonha como se ela fosse uma glória, apegase com ardor às paixões da infâmia como se elas fossem divinas. É por isso que ele confere todos os seus cuidados apenas às coisas temporais, vale dizer, à matéria, à forma e à quíntupla energia dos sentidos em seu mau uso. Com efeito, quando, misturando-se com elas, os sentidos se unem à matéria e à forma, eles desembocam naturalmente nas paixões, e acabam por matar e destruir as razões da natureza. Ora, a paixão e a natureza, segundo a razão do ser, não podem viver uma com a outra. Pois a razão da natureza não se manifesta naturalmente com a paixão, assim como a paixão, em seu devir, não é gerada com a natureza.
29. Quem não crê que a Escritura é espiritual não percebe sua própria indigência na ordem do conhecimento, mas é corroído pela fome. Pois a fome é na verdade a falta dos bens que a experiência da Escritura permite conhecer, a total insuficiência dos alimentos espirituais que confortam a alma. De fato, como não considerar como uma fome ou um dano a perda daquilo que um dia se conheceu?
30. Na verdade, o povo tem fome da verdade daquilo que é digno de fé e conhecido. E a alma de cada um tem fome, pois ela busca a contemplação espiritual na graça, mas se submete à servidão formal da letra, não alimentando o intelecto com o gênio dos pensamentos, mas enchendo os sentidos de imaginações passionais, pelas imagens corporais que nele imprimem os signos escritos.
31. Quem não se abre para a contemplação espiritual da Santa Escritura é porque não afastou a lei natural nem a lei escrita dos judeus e porque ignorou a lei da graça, segundo a qual é dada a contemplação [deificação] aos que levam sua vida neste caminho. Assim é que quem recebe de maneira corporal a lei escrita não alimenta a alma de virtudes. Quem não se aplica às razões dos seres não dá generosamente ao intelecto o festim da sabedoria variada de Deus. E quem não conhece o grande mistério da nova graça não se regozija na esperança da deificação por vir. Assim, a ausência de contemplação ligada à lei escrita tem como consequência a falta da sabedoria variada de Deus concebida segundo a lei natural, falta que por sua vez tem como decorrência a ignorância da deificação de todos, que é dada pela graça segundo o novo mistério.
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32. Todo intelecto perspicaz segundo Cristo e capaz de visão deseja e busca sempre a face do Senhor. Ora, a face do Senhor é a verdadeira contemplação e o verdadeiro conhecimento das coisas divinas segundo a virtude. É procurando esta contemplação e este conhecimento que este intelecto aprende a causa da falta e da necessidade que existem nele. Pois, assim como o rosto permite distinguir as pessoas, o conhecimento espiritual simboliza manifestamente o divino. Diz-se daquele que procura este conhecimento, que ele busca a face do Senhor. Mas aquele que, segundo a letra da lei, se besunta de sacrifícios sangrentos, tem em si uma ignorância plena de desejo, pois compreende o mandamento apenas no sentido do prazer da carne e se apega de maneira corporal, por intermédio dos sentidos, apenas à matéria da letra.
33. Aquele que serve segundo a lei, mas de maneira corporal, engendra na ordem da matéria o pecado ativo e modela de modo material, na ordem das formas, o consentimento da lei ao pecado, pelos prazeres correspondentes dos sentidos. Mas quem compreende a Escritura de modo espiritual mata por meio dos pensamentos naturais, da altura da contemplação, a atividade do pecado na ordem da matéria e o consentimento ao pecado na ordem das formas, juntamente com os modos dos sentidos que vão contra o uso e que conduzem ao prazer.
34. A matéria e a forma, e os cinco modos dos cinco sentidos que vão contra o uso na ordem da matéria e na ordem das formas – vale dizer, a união passional e contra a natureza dos sentidos e das coisas sensíveis, ou seja, das coisas que estão submetidas ao tempo e ao escoamento – depois de ultrapassada a observância da letra da lei e a ignorância, são entregues pela lei espiritual e o intelecto para serem mortas pelas razões e os pensamentos mais elevados da contemplação natural, a partir do momento em que estas alcançam a altura da lei da contemplação espiritual, para destruir e levar à morte a relação universal que, nos símbolos, as coisas submetidas ao tempo têm com os sentidos e o corpo.
35. Sem a contemplação natural ninguém é capaz de discernir o quanto os símbolos da lei estão afastados das coisas de Deus. Pois se, em primeiro lugar, não vemos natural e profundamente que as coisas divinas e inteligíveis não aparecem nos símbolos, considerando que fora do divino é impossível que os sentidos cheguem a desejar conforme o intelecto a beleza das coisas inteligíveis, não podemos nos livrar de uma vez por todas da diversidade corporal que existe no espaço. Nesta diversidade, na medida em que ela permanece ligada à letra, não existe nenhuma razão para que seja atenuada a indigência que provém da fome de conhecimento, pois ela esta condenada a comer, tal como a serpente enganadora, a terra da Escritura, ou seja, o corpo. Mas o mesmo não acontece com aquele que, seguindo a Cristo, se alimenta do céu, do espírito e da alma da Escritura, ou seja, do pão celeste e angélico, da contemplação e do conhecimento espirituais das Escrituras em Cristo, que Deus concede em abundância como que por acréscimo aos que os querem, conforme está escrito: “Ele lhe deu o pão celeste, e o homem comeu do pão dos homens”.
36. A compreensão da Escritura que passa pelos sentidos e leva ao corpo engendrando manifestamente as paixões e o pendor pelas coisas temporais que escoam, ou seja, a energia passional dos sentidos voltados para as coisas sensíveis, como os filhos e descendentes de Saul, devem desaparecer pela contemplação natural sobre a montanha à qual nos levam as palavras de Deus, se quisermos ser cumulados da graça divina.
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37. O povo judeu e a lei concebida apenas como letra alteram a verdade. Também a altera aquele que é seu imitador pelo pensamento, uma vez que encerra na pura letra o poder da lei e não recebe, para que se manifeste o conhecimento secretamente oculto na letra, a contemplação natural que é um intermediário entra as imagens e a verdade, de umas afastando e da outra aproximando os que ela conduz. Mas aquele homem recusa totalmente esta contemplação e age fora de toda iniciação aos mistérios de Deus. Os que se aplicam às visões divinas sobre a montanha, na altura do conhecimento, devem destruir por meio da contemplação natural esta acepção corporal e passageira da lei submetida ao tempo e ao escoamento.
38. Faz desaparecer completamente a intelecção corporal da Escritura aquele que, na ação e pela contemplação natural destrói sua tendência a amar os prazeres e o corpo – esta tendência que, na alma, conduz a lei escrita à matéria instável e flutuante –, por interditar a passagem à intelecção vulgar da lei, como aos filhos e descendentes de Saul, por meio da contemplação natural a partir da altura da contemplação (como sobre uma montanha); ele assim desvela diante do Senhor, pela confissão, a antiga acepção da lei, voltada para o corpo. É assim que pode ser entendido pelos que amam aprender, “estar exposto ao sol” diante do Senhor. Este homem leva para a luz, pelo conhecimento, a presunção errada da lei. Isto implica revelar, da altura da contemplação e pelo conhecimento no Espírito, que a letra da lei está morta.
39. A Escritura diz que a letra mata e que o Espírito vivifica. É por isso que se deve destruir pelo Espírito vivificante aquilo que mata por natureza. É totalmente impossível que um e outro existam ao mesmo tempo, ativamente e da mesma maneira – o caráter corporal e o caráter divino da lei –, a letra e o Espírito. Pois o que dá a vida conforme a natureza não se compõe com o que pode destruí-la.
40. O Espírito abarca a vida, mas a lei a destrói. Assim, a letra não pode agir da mesma maneira que o Espírito, assim como o que vivifica não pode coexistir com o que corrompe.
41. A circuncisão mística consiste na ablação total do pendor passional do intelecto até se tornar estranho a ele. Pois, se nos aplicamos naturalmente às coisas, sabemos que a ablação daquilo que, conforme à natureza, é ordenado por Deus, não consiste numa perfeição. A natureza truncada por um artifício e suprimindo ela própria por uma decisão do intelecto o excedente da criação que provém de Deus conforme a razão, não constitui uma perfeição, para que não tomemos como certo que o artifício é mais forte do que a justiça de Deus e para que não façamos daquilo que roubamos à natureza por decisão do intelecto uma complemento daquilo que nos falta na justiça da criação. Em lugar da parte que foi circuncidada, aprendamos a fazer voluntariamente a circuncisão do estado passional da alma, segundo a qual a vontade é primeiramente disposta a se conformar à natureza, corrigindo a lei passional de um devir que lhe é estranho.
42. O prepúcio é natural. Ora, toda obra natural da criação divina é boa, conforme a palavra: “E Deus viu o que havia feito e viu que era bom”. Mas a lei, ordenando retirar o prepúcio pela circuncisão, como se ele fosse impuro, tenta levar Deus a corrigir sua própria obra por meio de um artifício, o que é ímpio pensar.
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Assim, quem se aplica naturalmente aos símbolos da lei sabe que Deus não corrige a natureza com artifícios, mas que ele ordena circuncidar a parte passional da alma dócil à razão e figurada pelo membro corporal, que o conhecimento suprime naturalmente, graças à coragem ativa da vontade. Pois o sacerdote que circuncisa simboliza o conhecimento, que, como o ferro posto contra o sofrimento, tem a coragem ativa da razão. A tradição da lei desaparece, com efeito, quando o Espírito supera a letra.
43. O sábado das paixões é também o repouso do movimento do intelecto ao redor da natureza dos seres. Da mesma forma, a perfeita inércia das paixões e a detenção total do movimento do intelecto ao redor daquilo que o ocupa são o meio perfeito para passar para o divino. Quem chegou ao divino pela virtude e o conhecimento, na medida do possível, não deve mais se lembrar da matéria das paixões, qualquer que seja ela, esta matéria que queima como madeira, nem buscar em hipótese alguma as razões da natureza, a fim de que não sustentar, como fazem os gregos, que Deus sente prazer nas paixões ou que ele pode ser medido pelos limites da natureza, Deus, o único que proclamou o silêncio perfeito e que representa por excelência o desconhecimento total.
44. A fé pura é uma coroa de bondade, florida pela sublimidade dos dogmas à maneira de pedras preciosas e pelas palavras e os pensamentos espirituais que encerram como a cabeça o intelecto amado por Deus. OU antes, é a própria palavra de Deus que é uma coroa de bondade, esta palavra que, pela diversidade dos modos da providência e do juízo – ou seja, pela abstenção das paixões voluntárias e pela paciência nas paixões involuntárias – envolve o intelecto como a cabeça que, pela participação na graça e na deificação, torna ainda mais belo do que ela este intelecto.
45. Aqui em baixo, a temperança é uma obra da providência, na medida em que ela purifica das paixões voluntárias. E a paciência do julgamento é uma ação reta, na medida em que ela resiste às tentações involuntárias e é o símbolo da filosofia prática, transportando para a virtude, como para longe do pecado do Egito, aqueles que estavam dominados pelo pecado.
46. Deus não quer que os dias sejam honrados pelos homens. Ele prescreveu que sejam honrados o sábado, as luas novas e as festas. Assim é que ele ensinou nos mandamentos da lei: aqueles que pensam que os dias são santos e dignos de serem venerados servem à criação em lugar do Criador. Mas ele declarou que seria ele próprio que, simbolicamente, seria venerado através dos dias: pois ele mesmo é o sábado, ele o repouso das penas da alma na carne e o apaziguamento das penas sofridas em nome da justiça. Ele é a Páscoa, ele a origem e o fim dos seres e a palavra que a tudo criou na natureza. Considere que a lei perde os que a compreendem de maneira corporal, persuadindo-os a servir a criatura em lugar do Criador e a pensar que são veneráveis por natureza as coisas que foram feitas por eles, pois eles ignoram Aquele pelo qual elas foram feitas.
47. O mundo é um lugar realizado e um estado acabado, e o tempo é um movimento limitado. É por isso que o movimento da vida muda aqueles que estão no tempo. Mas quando a natureza, que pela energia e o pensamento atravessa o espaço e o tempo – ou seja, aquilo sem o que ela não é, vale dizer, o estado e o
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movimento realizados – e se lega diretamente à providência, ela encontra esta providência, que é simples e estável por natureza e que não tem nenhum limite, assim como não tem, por conseguinte, absolutamente nenhum movimento.
48. A natureza que existe no mundo de maneira temporal traz em si o movimento que a transforma devido ao estado realizado do mundo e do curso do tempo ligado à transformação. Mas chegando a Deus, por causa da unidade natural d’Aquele por quem ela foi criada, ela adquire um estado imóvel e um movimento próprio estável, que se faz eternamente ao redor do mesmo, do um e do único, este movimento do qual a razão sabe ser uma moradia fixa, imediata, ao redor da causa primeira dos que foram criados por ela.
49. O mistério do Pentecostes é a união direta que liga à providência aquilo que havia sido concebido previamente, ou seja, a união da natureza e da Palavra segundo o desígnio da providência, união na qual não existe absolutamente nenhuma manifestação do tempo e do devir. E mais: a Palavra é nossa trombeta, pois ela nos faz ouvir os conhecimentos divinos e inefáveis. Ela é a expiação, pois, depois de se apropriar de nossa natureza, ela apaga nela nossas faltas e, pelo dom da graça no Espírito, deifica a natureza que havia pecado. E ela é a festa dos Tabernáculos, pois nos imobiliza em torno do bem, no estado que imita a Deus, e nos liga a todos à transformação que nos torna imortais.
50. Quem se regozija apenas com sacrifícios cruentos, passional que é, prepara os sacrificadores a se voltarem para as paixões. Pois quem venera verdadeiramente quer se regozijar com aquilo que o adorado se regozija. É por isso que a razão sabe que os sacrifícios são antes a imolação das paixões e a oferenda das potências naturais. Dentre estas potências, o cordeiro é a imagem da razão, o touro traz em si o símbolo do ardor e a cabra representa o desejo.
51. Sabemos que os sacrifícios espirituais são não apenas a condenação à morte das paixões imoladas pela espada do Espírito – vale dizer, pela palavra de Deus – e a kénose ou esvaziamento deliberado de toda a vida que existe na carne, como a efusão do sangue, mas também a oferenda das condutas filosóficas e de todas as potências naturais consagradas a Deus e consumidas pelo fogo da graça do Espírito, em vista a receber a herança divina.
52. Quando a inteligência terrestre da Escritura domina a alma, ela rejeita as razões naturais eliminando-as pelo mau uso das potências da natureza. Pois esta inteligência viva, que limita a lei apenas à carne, na verdade vem em busca das razões e dos pensamentos – refiro-me àqueles que seguem a natureza –, ela os expulsa e as conduz igualmente à perdição, honrando como se fossem divinas as paixões da infâmia, estas mesmas paixões que os pensamentos conformes à natureza destroem e matam quando recebem a lei do Espírito de liberdade.
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53. Quando buscamos racionalmente a filosofia das virtudes, também transportamos naturalmente para o Espírito a compreensão das Escrituras, servindo a Deus ativamente por meio das mais altas contemplações sob o novo regime do Espírito e não sob o regime caduco da letra. Ao contrário, se assumirmos a lei em um nível mais baixo, nos sentidos e tendo em vista o corpo, alimentaremos as paixões, como o fazem os judeus, e flertaremos com o pecado.
54. Quando cessamos de compreender a Escritura segundo os sentidos, com vistas ao corpo, lançamo-nos para o Espírito, segundo o intelecto, por intermédio da natureza. Aquele que procede na ordem do Espírito do modo como os judeus realizam na ordem do corpo atrai sobre si a ira de Deus.
55. Todo intelecto que tende para o alto e se eleva conforme a Deus imola por isso mesmo a atividade das paixões e o movimento deslocado dos pensamentos. Além disso, ele imola os modos desordenados da atividade dos sentidos em seu mau uso. Pois as paixões são destruídas pelos altos pensamentos da natureza e são levadas cativas ao triunfo da contemplação mais elevada.
56. O poder do pecado, ou seja, o cuidado com a carne é eliminado naturalmente pela graça do batismo, e a obediência ativa aos mandamentos divinos o destrói com a espada do Espírito, ou seja, pela palavra do conhecimento divino no Espírito, que interpela misticamente a paixão do pecado, como o grande Samuel interpelou Agag: “Assim como a sua espada privou as mães de seus filhos, também hoje sua mãe dentre as mulheres será privada de seu filho”.
57. Pelo pensamento agudo do prazer, como que por uma espada, a paixão da gula priva de filhos muitas virtudes. Pela intemperança, ela mata as sementes da castidade. Pela cupidez, ela altera a igualdade de honra que nos mantém na justiça. Pelo egoísmo, afasta aquilo que leva a amar os homens e que provém da natureza. Numa palavra, a paixão da gula destrói todos os frutos da virtude.
58. A paixão da gula destrói todos os frutos divinos das virtudes, mas é destruída pela graça da fé e a obediência aos mandamentos de Deus, por meio da razão do conhecimento.
59. Nosso Senhor é realmente a luz das nações, pois ele desvela por meio do verdadeiro conhecimento os olhos do intelecto fechados pelas trevas da ignorância, e, depois de se ter oferecido novamente aos povos fiéis como um bom exemplo da virtude da pessoa virtuosa, ele se tornou para eles o modelo e a imagem da conduta divina. Vendo-o como o príncipe da nossa salvação, conduzimos com sucesso as virtudes por meio da ação, imitando-o tanto quanto nos é possível.
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60. Quem quer que odeie por inveja e que difame e calunie o que é mais forte no combate das virtudes e na eloquência do conhecimento espiritual é como Saul sufocado pelo espírito maligno: ele não suporta a boa reputação que a abundância de virtude e conhecimento concede ao melhor, e por isso fica cada vez mais furioso por não poder agredir seu benfeitor. Muitas vezes ele afasta amargamente seu querido Jonatas, vale dizer, o pensamento inato da consciência, que lhe reprova a raiva injusta e lhe lembra com todo o amor da verdade as boas ações daquele a quem ele detesta.
61. Peçamos também nós, à imagem de Davi, que faça soar a cítara da contemplação e do conhecimento espirituais em nosso intelecto demente submetido às coisas materiais, e que expulse o maligno da materialidade que cerca os sentidos, a fim de que possamos compreender espiritualmente a lei, encontrar misticamente a razão escondida nela e dela fazer um bem suficiente para que se torne um viático da vida eterna.
62. Quem quer que se torne presa da salvação se aplicará absolutamente, seja à ação, seja à contemplação. Pois sem a virtude e sem o conhecimento ninguém jamais pode de nenhum modo descobrir a salvação. Quanto à virtude, ela assinala o lugar próprio ao movimento do corpo, detendo ciosamente, por meio do pensamento reto, como um freio, o impulso que conduz à extravagância. Quanto à contemplação, ela decide escolher sabiamente o que foi bem pensado e bem julgado.
63. Uma vez que pensar é intelectual e que aquilo que é pensado é inteligível e é o alimento e como que a constituição daquele que pensa, está claro que Deus, pelo fato de que os incorpóreos são inteligências, é ele próprio pensado e lhes é inteligível na medida em que eles chegam até ele, e que ele lhes ilumina o coração do intelecto que pensa e que é alimentado.
64. Uma coisa é o inteligível, outra coisa o intelectual. Pois o inteligível é como que o alimento do intelectual, como já se disse. Quanto ao que é pensado, ou seja, o inteligível, ele é maior do que o que pensa, ou seja, do que o intelectual, e é concebido antes dele. De fato, chamamos de intelectuais os inteligíveis transcendentes pensados pelo intelecto. Pois o inteligível é o que é pensado, e é também o alimento do intelectual, ou seja, daquele que pensa.
65. É preciso saber no que consistem os efeitos, as imagens possíveis das causas, pois os efeitos são tudo o que foi levado à criação, e as causas são o que leva à criação. Entre causas e efeitos não há nenhuma semelhança.
66. É preciso saber que nosso intelecto tem a capacidade de pensar, por meio da qual ele enxerga os inteligíveis, e que ele traz em si a união que ultrapassa sua natureza, por maio da qual ele se liga ao que está além de si mesmo. É assim por meio desta união, não por nossa natureza, que devemos compreender as coisas divinas: é quando por inteiro saímos inteiramente de nós mesmos e nos entregamos inteiramente
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a Deus. Pois é melhor estar com Deus do que conosco. É assim que o divino será dado aos que estão com Deus.
67. O intelecto que pretende pensar desce de si mesmo quando mergulha nas intelecções. Pois as intelecções estão abaixo daquele que pensa: na medida em que são pensadas e compreendidas, elas consistem naturalmente numa dispersão e numa divisão da unidade do intelecto em si. Com efeito, o intelecto é simples e indivisível, mas as intelecções são múltiplas e dispersam o intelecto, ao menos em sua forma. É por isso que o que é intelectual, ou seja, aquilo que pensa, é inferior ao que é inteligível ou ao que é pensado. Chama-se união do intelecto aquilo por meio de quê o intelecto se prolonga além de si mesmo, ou seja, se dirige para a contemplação de Deus, saindo de todas as coisas sensíveis e inteligíveis, e até mesmo de seu próprio movimento: é assim que ele pode receber o raio do conhecimento divino.
68. Se o que é intelectual de desenvolve em relação a si mesmo em todo o intelecto, certamente ele pensa. E se ele pensa, certamente ele é presa daquilo em que pensa. Se for presa, certamente conhece o êxtase que o conduz àquilo que recebe seu amor. Se ele conhece o êxtase, é claro que ele se apressa. Apressandose, ele certamente faz crescer o ardor do movimento. Aumentando o ardor de seu movimento, ele não terá parada enquanto não se colocar por inteiro naquilo que ele ama inteiramente, enquanto nele não se envolver voluntariamente e por inteiro, recebendo como desejava o abraço salutar, a fim de obter por inteiro a qualidade daquilo que o abraça por inteiro, de sorte que aquilo que é abraçado não possa mais ser inteiramente conhecido a partir de si mesmo, mas a partir daquilo que o abraça, como o espaço inteiramente iluminado pela luz, como o ferro inteiramente abrasado pelo fogo, ou coisas semelhantes.
69. Não existe semelhança exata entre efeitos e causas. Mas os efeitos trazem em si as imagens das causas que eles podem receber. Estas causas de efeitos são lançadas por si mesmas e reconstruídas acima delas próprias conforme a razão de sua própria origem. Pois o que reside nos efeitos está antes nas causas, para além do necessário e realmente.
70. Os efeitos são tudo o que foi levado à criação, seja no céu, seja na terra. As causas são o que levou à criação, ou seja, as Três Pessoas da Santíssima Trindade. É claro, assim, que não há semelhança possível entre umas e outras, vale dizer, entre causas e efeitos.
71. É múltipla a relação entre o que pensa e o que é pensado, entre o que sente e o que é sentido. O homem, que é capaz de sentir com sua alma e com seu corpo através da relação e da propriedade naturais da troca entre uma e outra destas duas partes da criação, é determinado e determina. Ele é determinado pela essência, e determina pela potência. Pois ele é naturalmente determinado pelas coisas inteligíveis e sensíveis, uma vez que ele é alma e corpo, e ele naturalmente determina essas coisas em potência, uma vez que ele pensa e sente. Mas Deus está de maneira simples e fora de todo limite acima de todos os seres, os que abarcam e os que são abarcados, pois ele é totalmente irredutível a seja lá o que for.
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72. Todo prazer das coisas proibidas provém da paixão e se coloca natural e certeiramente sobre algo de sensível por intermédio dos sentidos. Com efeito, o prazer não passa de uma forma de sensação: ele se manifesta através de alguma coisa sensível na parte da alma capaz de sentir. Ou é um modo da atividade dos sentidos constituído por um desejo contrário à razão. Com efeito, quando se dirige aos sentidos, o desejo se transforma em prazer conduzindo ele próprio a esta forma de sensação: e quando se veem no movimento do desejo, os sentidos suscitam o prazer atraindo o sensível para si. Sabendo então que, por intermédio da carne, a alma levada contra a natureza para a matéria reveste-se da forma terrestre, os santos, voltados para Deus segundo a natureza por intermédio da alma, conceberam unir convenientemente a carne a Deus, vestindo-a com a beleza das revelações divinas pelo exercício das virtudes, na medida em que isto é possível.
73. Segundo o modo verdadeiro e infalível do movimento da natureza, os santos atravessaram nobremente o século presente e seus abismos. Depois de ter, por intermédio da razão, unido os sentidos ao intelecto, que traz em si as razões dos seres, e de ter conduzido a Deus este intelecto claramente liberto de seu movimento ao redor dos seres e desembaraçado de sua própria atividade natural, até de sua energia, totalmente unidos no intelecto para se dirigir a Deus, foram considerados dignos de se misturar inteiros pelo Espírito a Deus por inteiro, portando inteira a imagem do celeste, na medida em que isto é possível aos homens, e foram de tal modo atraídos pela revelação divina que, à força de serem atraídos foram eles próprios colhidos em Deus, se podemos nos exprimir assim.
74. Deus e o homem são modelos um para o outro. Tanto, diante do homem, Deus se torna homem por amor ao homem, quanto, diante de Deus, o homem se deifica quando por amor o consegue. E tanto o homem é arrebatado por Deus em seu intelecto para alcançar aquilo que ele pode conhecer, quanto manifesta por suas virtudes o Deus invisível por natureza.
75. Quem tenha feito morrer seus membros que estão sobre a terra, quem tenha apagado todo o cuidado com sua própria carne e tenha se desembaraçado da relação que o ligava a ela, esta relação que divide o amor que somente a Deus devemos, quem tenha renunciado a todas as marcas da carne e do mundo por causa do amor divino até poder repetir com o bem-aventurado apóstolo Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo?”, este se tornou, como o grande Melquisedeque, um homem sem pai nem mãe , sem genealogia, sem nada possuir em si que seja dominado pela carne e pela natureza, e inteiramente unido ao Espírito.
76. Penso que não é justo chamar de “morte” ao término da vida presente, mas que devemos chama-lo de “libertação da morte”, desembaraço da corrupção, libertação da escravatura, detenção da perturbação, supressão das guerras, recuo das trevas, alívio das penas, calma que apazigua a agitação, véu que cobre a vergonha, fuga para longe das paixões, numa palavra, fim de todas as obras do mal. Chegando a este ponto por se terem já voluntariamente liberto da morte, os santos se fizeram estranhos à existência, viajantes, combatendo nobremente o mundo, o corpo e suas revoluções. Depois de haverem sufocado o erro suscitado pelo mundo e pelo corpo na união dos sentidos e das coisas sensíveis, eles mantiveram em si mesmos a dignidade da alma fora de qualquer servidão.
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77. A própria natureza nos dá uma boa prova de que o conhecimento da providência foi semeado naturalmente em nós, quando, nos revezes súbitos, voltando-nos para Deus com orações que não foram ensinadas, ela nos prepara para receber a salvação. Com efeito, partir do momento em que somos colhidos bruscamente por uma necessidade, buscamos o socorro de Deus espontaneamente sem pensar em mais nada, como se a própria providência nos atraísse para ele fora de qualquer pensamento, ultrapassando a rapidez de que é capaz o intelecto e mostrando que o socorro divino é mais forte do que tudo. Ora, a natureza não nos empurraria espontaneamente a buscar onde não houvesse natureza. Tudo o que persegue naturalmente uma coisa, seja ela qual for, traz em si, coo ao prova forte e irrefutável, o poder da verdade, que todo mundo pode ver.
78. Uma vez que, dentre os seres, alguns são bons e outros maus, que uns pertencem ao século presente e outros ao século por vir, chamamos de desejo o bem que se espera e de prazer o bem presente. E, em sentido inverso, chamamos de temor ao mal que se espera e de tristeza ao mal presente. Assim, o prazer e o desejo fazem parte dos bens, sejam eles reais ou supostos, ou são considerados como tais, enquanto que a tristeza e o temor fazem parte dos males, ou são considerados como tais. Com efeito, quando o desejo atinge seu objetivo, ele suscita o prazer, mas quando não o alcança suscita a tristeza.
79. Por sua própria natureza, toda tristeza é um mal. Mesmo se, em sua compaixão, o monge diligente se afligir com a infelicidade alheia, ele não o fará a priori, deliberadamente, mas depois, e conforme as circunstâncias. Quanto ao contemplativo, que se mantém igualmente impassível diante dessas infelicidades, ele se mantém unido a Deus e se faz estrangeiro da todas as coisas daqui.
80. Todos os santos que tomaram sobre si a palavra divina e infalível atravessaram o século presente sem imprimir os traços da alma em nenhum dos encantos que existem aí. Pois, com todo direito, eles desenvolveram o intelecto nas palavras que exprimem Deus até o limite do que é possível aos homens, ou seja, as palavras de bondade e de amor. Eles aprenderam que Deus, transportado pelo movimento destas palavras, concede aos seres seu ser e também a graça de ser bem, se é que podemos, a respeito de Deus que é o único imóvel, falar de movimento o invés da vontade que põe tudo em movimento, que faz tudo ser e que mantém a tudo sendo, sem jamais e de modo algum estar submetido ao movimento.
81. A alma, que é um ser com intelecto e razão, pensa e raciocina. Ela tem o poder da inteligência, como movimento a intelecção, como atividade o pensamento. Este é o termo da intelecção da que pensa e do que é pensado, na medida em que define a relação dos extremos entre si. Pois a alma que pensa deixa de pensar o que pensou depois de sua intelecção. O que foi pensado propriamente de uma vez por todas não suscita mais a potência que lhe permitiria ser pensado outra vez. Cada pensamento assume assim a detenção da intelecção do que foi pensado nele.
82. Assim como a ignorância separa os que estão perdidos, a presença da luz inteligível reúne e une os que são iluminados, os conduz à perfeição e os faz regressar ao ser em si, reunindo-os longe das opiniões
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múltiplas, recolhendo suas diferentes perspectivas das coisas, ou, falando propriamente, suas imaginações, em um só conhecimento, verdadeiro, puro e simples, cumulando-os com a luz única e unificante.
83. O belo é a mesma coisa que o bom, pois tudo busca o belo e o bom em toda causa, e não existe ser que não participe do belo e dom bom. Pois o belo e o bom estão em todos, na medida em que todos são verdadeiramente admiráveis, desejáveis, amáveis, eleitos e amados. Note que o eros divino, que preexiste ao bem, gerou o bom eros que existe em nós, pelo qual nós buscamos o belo e o bem, segundo o que foi dito: “Eu me tornei amante de sua beleza”, e: “Ame-a e ela o guardará. Estreite-a e ela o honrará”.
84. Os teólogos chamam o divino às vezes de eros, às vezes de ágape, às vezes de amável e amado. Por isso, enquanto eros e ágape, ele é conduzido pelo movimento, mas enquanto amável e amado e carrega sobre si mesmo tudo o que recebe o eros e o ágape. Para dizê-lo mais claramente, ele é levado pelo movimento quando suscita uma relação do eros e do ágape naqueles que os recebem. Mas quando ele atrai por natureza, ele coloca em movimento o desejo tensionado dos que são levados a ele. E novamente ele coloca em movimento e é levado pelo movimento, na medida em que tem sede de ter sede, é presa de ser presa e ama ser amado.
85. O eros divino é extático, pois ele não permite que os amantes pertençam a si mesmos, mas àqueles de quem são presa. Eles mostram que os superiores estão votados a cuidar dos inferiores, que os iguais estão destinados a se unir uns aos outros, que os inferiores estão convocados a retornar mais divinamente aos primeiros. É por isso que o grande Paulo, que era possuído pelo eros de Deus e que participava da potência extática, disse com sua boca divina: “Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”. Como um verdadeiro amante, fora de si, como ele próprio disse a Deus, ele já não vivia sua própria vida, mas a vida daquele a quem amava, esta vida profundamente amada.
86. A respeito da verdade, é preciso ousar dizer o seguinte: Aquele que é ele próprio a causa de tudo se coloca fora de si por amor a tudo, pelo eros belo e bom, em sua imensa bondade amorosa, quando cuida de todos os seres, e ele fica como que encantado pela bondade, a afeição e o eros. A partir daquilo que o separa de tudo e que o coloca acima de tudo, ele desce em tudo, em sua potência extática mais elevada que o ser e inseparável de si mesmo. É por isso que os que conhecem bem as coisas divinas o chamam de ciumento, tão grande é seu bom amor pelos seres, tanto seu ciúme excita seu impulso amoroso, e tanto ele se mostra ciumento, ele que tem ciúme do que busca como o tem dos seres de quem cuida.
87. Com toda evidência, o próprio Deus suscitou e engendrou o ágape e o eros. Foi ele mesmo quem conduziu ao exterior, ou seja, para as criaturas, este amor que existe nele. É como foi dito: “Deus é ágape”, e também: “Ele é doçura e desejo”, ou seja, eros. É ele próprio que é amado e verdadeiramente amável. Assim, de um lado se diz que o eros amoroso escorre dele e que ele mesmo, que engendrou o eros, é levado pelo seu movimento; de outro, se diz que é ele próprio que é verdadeiramente amável e amado, desejado e digno de ser eleito: ele coloca em movimento os seres que velam por isso. Eles, a quem se dirige o poder de seu desejo, o desejam na mesma medida.
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88. Penso que Deus seduz e coloca em movimento para a união amorosa que existe no Espírito. Vale dizer que ele é o mediador desta união e que ele a ajusta, de modo a receber ele mesmo o eros e o ágape de suas criaturas. Ele coloca em movimento, por que ele leva cada ser a retornar para ele segundo sua própria razão. Quanto ao fato de que ele nos seduz, mesmo que para os profanos isto significa algo que não é puro, ele é aqui em baixo a mediação que provoca a união em Deus.
89. O movimento amoroso do bem, que preexiste no bem, que é simples, que se move por si só e que provém do bem, logo retorna ao seu lugar, pois ele não tem começo nem fim. Este movimento simboliza nosso impulso perpétuo para o divino e nossa união com ele. Pois a união amorosa com Deus se eleva e se situa acima de todas as uniões.
90. Quando dizemos que o eros é divino, ou angélico, ou intelectual, ou psíquico, ou natural, entendemos por isto uma potência que conduz à união e à fusão. Ele leva os seres superiores a cuidar do inferiores; depois leva os iguais a se ajudarem mutuamente; e, por fim, leva os seres inferiores a retornar aos seres melhores situados acima deles.
91. Se o conhecimento unifica o que foi conhecido, e se a ignorância é sempre uma causa de transformação e da divisão que vem de si mesmo para aquele que ignora, ele nunca afastará da mesa da verdadeira fé aquele que acreditou em verdade, segundo a palavra sagrada. É lá que ela portará a permanência da identidade imóvel e imutável. Pois aquele que está unido à verdade sabe bem que está bem, mesmo que a maioria reprove o fato de que ele está fora de si. Com efeito, à maioria escapa naturalmente que pela verdade da verdadeira fé ele escapou do erro. Ele próprio não sabe se foi presa da loucura, como lhe dizem, mas ele sabe que se libertou da instável e mutante corrupção das múltiplas variedade do erro, pela verdade simples que segue sempre a mesma vida e que é sempre idêntica.
92. Os santos eram bons, amaram os homens, se tornaram misericordiosos e compassivos. Ele se esforçaram para não ter senão uma única e sempre mesma disposição de amor para com todo o gênero humano. Possuindo por esta disposição a forma suprema de todos os bens, vale dizer, a humildade constante por toda a duração de suas vidas, esta humildade que protege os bens e destrói os vícios contrários, eles não deram chance a absolutamente nenhuma das tentações que nos perturbam, sejam elas voluntárias e dependentes de nossa razão, sejam involuntárias e independentes de nós, reduzindo pela temperança os levantes de umas e derrubando pela paciência os ataques das outras.
93. A fé reta e o temor verídico de Deus suscitam a ação perfeita da virtude. A firma esperança e a consciência íntegra suscitam a contemplação natural infalível devotada à elevação. E o amor perfeito e a inteligência voluntária e totalmente separada dos seres na transcendência suscitam a deificação por meio da qual Deus nos assume.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Centúrias sobre a teologia e a economia da encarnação do Verbo de Deus – Sétima centúria.
94. A obra da filosofia prática é de tornar o intelecto puro de toda imaginação passional. A obra da contemplação natural é de mostrar aos que receberam o ser a causa pela qual eles existem, como Aquele mesmo que traz em si o verdadeiro conhecimento. E a obra da mistagogia teológica é de tornar, pela graça, em seu estado, semelhante a Deus e igual a ele, na medida do possível, aquele que, por causa da transcendência, já não pensa em mais nada que esteja abaixo de Deus.
95. Aquilo que o éter – ou seja, o elemento fogo – representa no mundo percebido pelos sentidos, a sabedoria representa no mundo do pensamento, como um estado luminoso simbolizando as razões, em especial as razões espirituais que estão em cada um dos seres, manifestando por meio deles a causa que está em todos infalivelmente, e atraindo para ela o desejo do divino que reside na alma. Aquilo que representa o ar no mundo sensível equivale à coragem no mundo do pensamento, como um estado que coloca em movimento, reúne, faz com que aja a vida inata do Espírito e conforta o movimento perpétuo da alma ao redor do divino. Aquilo que a água representa no mundo sensível corresponde à castidade no mundo do pensamento: ela é um estado que suscita a fecundidade vivificante do Espírito e que engendra o encanto amoroso, que não cessa de se espalhar no impulso que leva ao divino. E aquilo que a terra representa no mundo sensível, representa a justiça no mundo do pensamento: ela é um estado que engendra segundo sua espécie as razões que estão nos seres, e que opera de maneira igual a difusão vivificante do Espírito, elevando de maneira imutável o fundamento que ela própria coloca no belo com sua ação.
96. Assim como alma é atormentada e entenebrecida pelas paixões quando a carne é vigorosa e opulenta, e que nesta condição recuam o estado de virtude e a iluminação do conhecimento, também o homem exterior se destrói quando a alma é protegida e iluminada pela beleza divina das virtudes e pela iluminação do conhecimento, e quando, para que a razão se estabeleça, a carne rejeita seu vigor natural.
97. Não seria possível que o homem criado se revelasse filho de Deus em Deus segundo a deificação pela graça, se antes ele não tivesse nascido deliberadamente do Espírito graças ao poder que se move por si só com toda liberdade e que o une naturalmente a Deus, qual um nascimento vivificante, divino e imaterial este nascimento que o primeiro homem desleixou por preferir as delícias visíveis dos sentidos aos bens concebidos pelo intelecto e ocultos até então. Assim foi ele condenado a carregar o devir do corpo, irrefletido, material e mortal.
98. Agora o homem se agita, ou bem ao redor das imaginações irracionais das paixões suscitadas pelo erro causado pelo amor ao prazer, ou bem ao redor das razões das obras suscitadas pelas circunstâncias em função das necessidades, ou bem ao redor das razões naturais da natureza com a finalidade de aprender. Na origem, nada disto atraía necessariamente o homem, que havia sido justamente criado acima de tudo. Era preciso que fosse ele assim, desde o começo, ele que não era distraído por nenhuma das coisas que vieram depois dele, ou que estavam ao redor dele, ou que existiam por sua causa, ele que para se realizar só precisava de uma única e só coisa, o movimento irresistível suscitado pela potência inteiramente amorosa, este movimento que o levava para Aquele que estava acima dele, ou seja, Deus.
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TI, VIII – MÁXIMO, O CONFESSOR – Centúrias sobre a teologia e a economia da encarnação do Verbo de Deus – Sétima centúria.
99. O primeiro homem não tinha entre ele e Deus nada que precisasse conhecer e que impedisse o parentesco livremente escolhido por amor, este parentesco que deveria se realizar no movimento que conduzia o homem a Deus. Pois desde que, pela graça, ele era impassível, ele não era levado pelo prazer à ilusão das paixões. Não tendo necessidade de nada, ele era livre da necessidade das obras que as circunstâncias impunham pela necessidade. Enfim, sendo sábio, ele se estabelecera acima da contemplação da natureza para alcançar o conhecimento.
100. Deus, que com sabedoria fundou toda a natureza e nela colocou secretamente seu conhecimento para confortar cada um dos seres racionais, nos deu também, a nós homens, um mestre generoso, o desejo e o eros tensionados em sua direção, depois de haver juntado o eros à potência da razão por meio da qual nos esforçamos para poder conhecer facilmente os modos de realização do desejo e não nos perdermos nos erros que podemos vir a cometer. Levados por este desejo, e confessando vivamente que ele nos dirige através das coisas, partimos em busca e ao encontro d’Aquele graças a quem recebemos o desejo.
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THALASSIUS O AFRICANO Nosso santo Padre Thalassius, que se tornou padre e higoumeno, viveu sob o regime de Constantino Pogonato, por volta do ano 660. Ele foi contemporâneo de são Máximo, que lhe endereçou um conjunto de questões escritas e suas soluções. As quatro presentes centúrias de capítulos, redigidas por ele foram inseridas aqui para grande socorro espiritual de nossos leitores.
*
Thalassius o Africano, ou o Líbio, higoumeno de um mosteiro na Líbia no século VII, teria sido um desses grandes monges que parraram quase sem deixar traços, se sua vida não tivesse sido ligada ao testemunho histórico de Máximo o Confessor. Este, quando de seu exílio depois de 626, foi beneficiado com sua hospitalidade, escreveu-lhe inúmeras cartas [1], dedicou-lhe suas duas centúrias sobre a teologia e, sobretudo, redigiu, para responder às suas interrogações, uma de suas principais obras, as Questões a Thalassius. Ele próprio se dizia seu discípulo [2]. É verdade que o higoumeno teve que confortar o errante, mas também é certo que Thalassius se colocou sob a escola do gênio teológico de Máximo. 1446
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Em todo caso, existe um paralelismo formal entre suas quatro centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, e as quatro centúrias do Confessor sobre o amor: mesma estrutura, mesmo título, mesmo tema, mesma concisão. Notaremos apenas o gosto que Thalassius mostra pelas construções rigorosas e imbricadas. Os capítulos das quatro centúrias são todos reduzidos à sua expressão mais simples: sentenças breves, muitas vezes feitas de duas frases complementares ou contrastantes, à maneira dos provérbios bíblicos, e sempre construídas sobre suas letras iniciais que em conjunto formam um
[1] Cartas 9, 26, 40-42. [2] Cf. Carta 9 (PG 91, 449A: Opúsculos, ibid. 29D).
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acróstico [3]. Mas a forma lapidar apenas coloca em relevo o fundo comum no qual, ligando-se e se desligando ao sabor das sentenças, passam os grandes temas filocálico. 1448
Primeiro o amor absoluto, o eros divino, o amor tensionado para Deus, portanto o amor igual por todos. E paradoxalmente, junto com este amor, a temperança (mestra das paixões e totalmente contida) que permite ao amor a todos se tornar verdadeiramente amor a Deus. Depois a hesíquia (a retirada do criado, a “bela hesíquia”, como diz Thalassius), a ascese do corpo, a ascese do intelecto, a prece, a deificação (“Deus está sobre a terra, o homem está nos céus”). Enfim, para além de toda inteligência, a teologia, conhecimento apofático [4] de Deus e contemplação do invisível a partir daí. 1449
Entre Máximo e Thalassius não existe outra influência do que a da energia divina. É a mesma literatura filocálica, feita de osmose e de comunhão, dedicada ao testemunho e à transmissão. Longe de ser um apêndice da obra do Confessor, as quatro centúrias de Thalassius, como um exercício cotidiano da vida monástica, podem ser consideradas uma semente pura e dura.
[3] Os apócrifos estão apresentados em grego e português, no início de cada centúria. [4] Apófase: refutação feita pelo autor daquilo que afirmara anteriormente.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Primeira Centúria
DE NOSSO SANTO PADRE TEÓFORO THALASSIUS O AFRICANO, SOBRE O AMOR, A TEMPERANÇA E A CONDUTA DO INTELECTO, AO PADRE PAULO
PRIMEIRA CENTÚRIA
ACRÓSTICO
ΠΝΕΥΜΑΤΙΚΩ ΑΔΕΛΦΩ ΚΑΙ ΑΓΑΠΗΤΩ ΚΥΡΙΩ ΠΑΥΛΩ, ΘΑΛΑΣΣΙΟΣ, ΤΩ ΜΕΝ ΦΑΙΝΟΜΕΝΩ ΗΣΥΧΑΣΤΗΣ, ΤΗ Δ΄ΑΛΗΘΕΙΑ ΠΡΑΓΜΑΤΕΥΤΗΣ ΚΕΝΟΔΟΞΙΑΣ
Para meu irmão espiritual amado senhor Paulo. Thalassius, que parece hesiquiasta, mas que é na verdade um estudioso de vaidades.
1. Um desejo inteiramente tensionado para Deus liga a Deus e liga entre si os que desejam.
2. Um intelecto que adquiriu o amor espiritual não leva em conta nada que não convenha ao amor, quando considera o próximo.
3. Quem bendiz com a boca mas despreza com o coração [5] esconde a hipocrisia sob uma cobertura de amor. 1450
4. Quem adquiriu o amor suporta sem se perturbar as coisas aflitivas e penosas suscitadas pelos inimigos.
[5] Cf. Salmo 61 (62): 5.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Primeira Centúria
5. Somente o amor une a criação a Deus e os seres entre si na concórdia.
6. Possui o verdadeiro amor aquele que não tolera nem suspeitas nem palavras contra o próximo.
7. Quem não empreende nada que possa destruir o amor é honrado por Deus e pelos homens.
8. É típica do amor sincero uma palavra verdadeira que provém de uma boa consciência.
9. Quem reporta a um irmão as censuras que vêm de outro esconde a inveja sob o manto da benevolência.
10. Assim como as virtudes carnais atraem a glória dos homens, as espirituais atraem a glória de Deus.
11. O amor e a temperança purificam a alma, mas a prece pura ilumina o intelecto.
12. É um homem forte aquele que, pela ação e o conhecimento, expulsa o mal.
13. Encontra graça junto a Deus quem adquiriu a impassibilidade e o conhecimento espiritual.
14. Se você quiser vencer os pensamentos passionais, adquira a temperança e o amor ao próximo.
15. Guarde-se da intemperança e da raiva, e você não encontrará nada que seja um obstáculo no momento da oração [6]. 1451
16. Assim como não é possível sentir perfumes no lodo, também é impossível sentir o bom odor do amor numa alma rancorosa. [6] Cf. Evagro, Sobre a oração, 13.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Primeira Centúria
17. Domine vigorosamente o ardor e a concupiscência e você logo se livrará dos maus pensamentos.
18. O trabalho oculto suprime a vanglória, e não desprezar a ninguém expulsa o orgulho.
19. Características da vanglória são a hipocrisia e a mentira; do orgulho, a presunção e a inveja.
20. Pode comandar a outros quem comandou a si mesmo e submeteu à razão a alma e o corpo.
21. A autenticidade de um amigo se manifesta na provação, quando ele comunga de nossa infelicidade.
22. Firme seus sentidos por meio da hesíquia, e julgue os pensamentos que são colocados no seu coração.
23. Responda sem ressentimento aos pensamentos que o afligem, mas mostre sua aversão aos pensamentos que amam o prazer.
24. A hesíquia, a oração, o amor e a temperança são o quádruplo arreio que eleva aos céus o intelecto.
25. Consuma seu corpo por meio dos jejuns e das vigílias, e você expulsará o carrasco, o pensamento do prazer.
26. Assim como a cera se funde ao fogo [7], também o pensamento impuro derrete diante do temor a Deus. 1452
27. Faz mal à alma prudente deixar por muito tempo o intelecto envolvido com uma paixão condenável.
[7] Salmo 67 (68): 3.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Primeira Centúria
28. Suporte os ataques do que o entristece e aflige, pois é por meio deles que a providência divina o purifica.
29. Se você rejeitou a matéria e se desligou do mundo, desligue-se agora dos maus pensamentos.
30. A obra que compete ao intelecto é de sempre estudar a palavra de Deus.
31. Assim como a obra de Deus consiste em dirigir o mundo, a obra da alma consiste em governar o corpo.
32. Com que esperança iremos ao encontro de Cristo, nós que até hoje estamos subjugados aos prazeres da carne?
33. A vida dura e a aflição – voluntárias ou suscitadas pela Providência – apagam o prazer.
34. O amor ao dinheiro é a matéria das paixões, pois ele aumenta o prazer que abarca tudo.
35. A perda do prazer engendra a tristeza, mas o prazer estava ligado a todas as paixões.
36. Você será medido por Deus com a mesma medida que você usa para medir tudo em relação a seu corpo [8]. 1453
37. As obras dos julgamentos divinos são as justas retribuições daquilo que foi feito pelo corpo.
38. A virtude e o conhecimento geram a imortalidade, mas sua privação é a mãe da morte.
[8] Cf. Mateus 7: 2.
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39. A tristeza conforme a Deus apaga o prazer, e a desaparição do prazer é a ressurreição da alma.
40. A impassibilidade é a imobilidade da alma diante do mal. É impossível atingi-la sem a compaixão de Cristo.
41. Cristo é o Salvador da alma e do corpo; quem seguir suas pegadas estará livre do mal.
42. Se você quiser obter a salvação, rejeite o prazer e tome sobre si a temperança e o amor, juntamente com uma prece assídua.
43. O discernimento verdadeiro é típico da impassibilidade. Faça tudo com tal discernimento, observando a medida e a regra.
44. Jesus Cristo é nosso Senhor e nosso Deus. O intelecto que o seguir não andará nas trevas [9]. 1454
45. Recolha seu intelecto e guarde seus pensamentos. E combata os que achar passionais.
46. Existem três canais pelos quais você recebe os pensamentos: os sentidos, a memória e o temperamento do corpo. Os pensamentos mais importunos provêm da memória.
47. Aquele a quem foi dada a sabedoria conhece as razões dos incorporais: qual o começo e qual o fim do mundo.
48. Não negligencie a prática e sua inteligência será iluminada. Foi dito: “Eu lhe abrirei secretamente tesouros invisíveis [10]”. 1455
[9] Cf. João 12: 46. [10] Isaías 45: 3 LXX.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Primeira Centúria
49. Quem se liberta das paixões encontra a graça de Deus. Quem se torna digno do conhecimento encontra sua grande piedade.
50. O intelecto liberto das paixões se torna luminoso; ele é iluminado sem cessar pela contemplação dos seres.
51. A luz da alma é o santo conhecimento. Privado disto, o insensato caminha nas trevas [11]. 1456
52. Insensato é aquele que vive nas trevas; as trevas da ignorância o seguem.
53. Quem ama a Jesus será liberto do mal, e quem o segue verá o verdadeiro conhecimento.
54. O intelecto liberto das paixões vê os pensamentos nus, quando vela sobre o coro e durante o sono.
55. O intelecto purificado ao extremo sente-se apertado no meio dos seres; ele quer se afastar de todas as criaturas.
56. Bem-aventurado aquele que alcançou o infinito sem limites; ele chegou a ultrapassar tudo o que tem um fim.
57. Quem venera a Deus busca as suas razões. Quem é presa da verdade as encontra.
58. O intelecto movido pela retidão encontra a verdade; mas o intelecto movido por qualquer paixão a perderá.
59. Assim como Deus não pode ser conhecido em sua essência, também em sua grandeza ele é infinito.
[11] Cf. Salmo 81 (82): 5; Eclesiastes 2: 14.
1456
532
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Primeira Centúria
60. Se uma essência não tem começo nem fim, é impossível descobrir sua natureza.
61. A salvação de toda a criação é a providência mais do que boa com a qual o Criador a cerca.
62. Em sua compaixão, o Senhor sustenta todos os que caem, e levanta todos os que foram derrubados.
63. Cristo dá a justa retribuição aos vivos e aos mortos, e às ações de cada qual.
64. Se você quiser comandar a alma e o corpo, antes de tudo afaste as causas da paixão.
65. Una as virtudes às potências da alma, e elas se afastarão totalmente da tirania das paixões.
66. Refreie os impulsos do desejo com a temperança. E refreie os impulsos do ardor com o amor espiritual.
67. A hesíquia e a prece são as armas supremas da virtude. Pois, purificando o intelecto, elas o tornam clarividente.
68. A conversa é útil, mas apenas a conversa espiritual. Quanto às demais conversas, a hesíquia é preferível elas.
69. Dos cinco modos de conversação, escolha os três primeiros, não frequente o quarto e evite o quinto.
70. Quem não é afetado pelas coisas do mundo ama a hesíquia. E quem não ama as coisas humanas, ama a todos os homens.
71. A consciência é um verdadeiro mestre. Quem a obedece está sempre protegido contra tropeços.
533
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Primeira Centúria
72. A consciência não julga aqueles que sozinhos vão até o fim da virtude, ou até o fim do mal.
73. A impassibilidade extrema afina os pensamentos, e o conhecimento extremo conduz até Aquele que é mais do que incognoscível.
74. A perda dos prazeres é uma aflição vergonhosa; quem despreza os prazeres permanece sem aflição.
75. A aflição geralmente é a privação do prazer, quer seja concebida segundo Deus, quer seja concebida segundo o mundo.
76. O Reino de Deus é a bondade e a sabedoria; quem as descobriu é cidadão dos céus [12]. 1457
77. É miserável o homem que, em suas obras, preferiu o corpo à alma e o mundo a Deus.
78. Quem não inveja os bons e se apieda dos maus traz em si o amor a todos.
79. Quem coloca as coisas da virtude como uma lei na alma e no corpo deveria sempre comandar.
80. Executa uma obra espiritual aquele que rejeita do mesmo modo os encantos e as aflições da vida em função das coisas do século por vir.
81. O amor e a temperança fortificam a alma; a prece pura e a contemplação espiritual fortalecem o intelecto.
82. Quando você ouvir um discurso útil, não julgue aquele que fala, a fim de não se privar da advertência que lhe fará bem.
[12] Cf. Filipenses 3: 20.
1457
534
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Primeira Centúria
83. A má vontade deseja o mal e, desconhecendo as ações direitas do próximo, as considera como defeitos.
84. Não dê confiança ao pensamento que julga o próximo, pois, sendo o mal seu tesouro [13], ele considera o mal. 1458
85. O bom coração carrega bons pensamentos, pois é em direção ao seu tesouro que vão as reflexões.
86. Guarde seus pensamentos e fuja da malícia, a fim de que o intelecto entenebrecido não tome uma coisa pela outra.
87. Considere os judeus e guarde a si mesmo, pois, cegos pela inveja, eles ignoraram seu Senhor e seu Deus e tomaram-no por Belzebu [14]. 1459
88. Uma suspeita maldosa entenebrece o intelecto e o faz considerar, ao invés do caminho, a via contrária [15]. 1460
89. Os vícios foram colados às virtudes. É por isso que os bandidos ignoram as virtudes e as transformam em vícios.
90. O intelecto que se demora no prazer ou na aflição logo cai na paixão da acídia.
91. Uma consciência pura eleva a alma; mas um pensamento imundo a afunda na terra.
92. Quando suscitamos as paixões, elas expulsam a vanglória. Mas quando as apagamos, elas a fazem retornar.
[13] CF. Mateus 6: 21; 12: 35. [14] Cf. Mateus 10: 25. [15] Cf. Eclesiastes 3: 24.
1458
1459
1460
535
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Primeira Centúria
93. Se você quiser se desembaraçar de todas as paixões de uma vez, tome sobre si a temperança, o amor e a oração.
94. O intelecto que, pela oração, passa seu tempo com Deus, liberta as paixões da parte passional da alma.
95. Deus, que fez ser as criaturas, ligou todas as coisas à sua providência.
96. Ele, que é mestre e se fez escravo [16], revelou à criação o cume de sua providência. 1461
97. Deus o Verbo, que se encarnou sem se alterar, uniu-se na carne a toda a criação.
98. Um estranho milagre aconteceu no céu e na terra: Deus está sobre a terra, e o homem está nos céus.
99. Depois de ter unido os homens aos anjos, ele concedeu a deificação a todo o mundo criado.
100. A santificação e a deificação dos anjos e dos homens é o conhecimento da Trindade santa e consubstancial.
[16] Cf. Filipenses 2: 6-7.
1461
536
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
SEGUNDA CENTÚRIA
ACRÓSTICO
ΕΥΞΑΙ ΥΠΕΡ ΕΜΟΥ ΑΔΕΛΦΕ ΤΙΜΙΩΤΑΤΕ, ΟΤΙ ΜΕΓΑΛΑ ΚΑΚΑ ΠΡΟΣΔΟΚΩ, ΑΞΙΑ ΤΗΣ ΕΜΗΣ ΠΡΟΑΙΡΕΣΕΩΣ, ΛΥΠΑΣ ΤΗ ΨΥΧΗ ΚΑΙ ΟΔΥΝΑΣ ΤΩ ΣΩΜΑΤΙ.
Ore por mim, honesto irmão, porque estou esperando coisas muito ruins contra a minha vontade, tristeza na minha alma e dores no meu corpo.
1. Se você quiser se livrar dos vícios com um só golpe, rejeite a mãe dos vícios, o amor por si mesmo.
2. A saúde da alma consiste na impassibilidade e no conhecimento, coisas impossíveis de se atingir enquanto somos escravos dos prazeres.
3. A temperança unida à paciência e o amor unido à longanimidade secam os prazeres do corpo e da alma.
4. O começo dos males da alma foi o egoísmo. Ora, o egoísmo não passa do amor que dedicamos ao corpo.
5. É característico da natureza racional submeter-se à razão, trabalhar arduamente e sujeitar o corpo [17]. 1462
[17] Cf. I Coríntios 9: 27.
1462
537
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
6. A desmedida, para a natureza racional, consiste em se submeter à irracionalidade e se deixar levar por desejos infamantes [18]. 1463
7. A má obra da alma dotada de razão consiste em desleixar o Criador e servir ao corpo.
8. Foi-nos ordenado fazer do corpo um servidor, e não sermos submetidos contra a natureza aos seus prazeres.
9. Rompa os laços de amor que você com seu corpo, e não conceda nada ao seu servidor que não seja absolutamente necessário.
10. Encerre seus sentidos na cidadela da hesíquia, a fim de que eles não arrastem o intelecto aos seus próprios desejos.
11. As maiores armas daquele que, com paciência, leva sua vida na hesíquia são a temperança e o amor, a atenção e a leitura.
12. O intelecto não cessa de traçar um círculo em torno dos prazeres, até conseguir se consagrar à contemplação, depois de haver sujeitado a carne.
13. Combatamos pelos mandamentos, a fim de nos livrarmos das paixões. E combatamos pelos dogmas divinos, para que nos tornemos dignos do conhecimento.
14. A imortalidade da alma consiste na impassibilidade e no conhecimento. Quem permanece sujeito aos prazeres é incapaz de obtê-la.
15. Conduza duramente o corpo despojando-o dos prazeres e livre-o de toda servidão dolorosa.
[18] Cf. Romanos 13: 14.
1463
538
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
16. Criado livre e chamado à liberdade [19], não suporta estar submetido às sugestões da impureza. 1464
17. Por meio das aflições e dos prazeres, dos desejos e dos medos, os demônios amarram o intelecto ao sensível.
18. O temor a Deus domina os desejos; e a tristeza conforme a Deus liberta do prazer.
19. O desejo de sabedoria despreza o medo, e o prazer do conhecimento expulsa a aflição.
20. As Escrituras contêm estas quatro coisas: os mandamentos, os dogmas, as ameaças e as promessas.
21. A temperança e as penas detêm a concupiscência. A hesíquia e o eros divino a reduzem.
22. Não fira seu irmão com palavras maldosas. Pois se você tivesse que sofrer o mesmo tratamento, você não suportaria.
23. A paciência e a ausência de ressentimentos detêm a cólera. O amor e a compaixão a reduzem.
24. A quem recebeu o conhecimento foi dada a luz do intelecto. Mas quem, depois de haver recebido esta luz, a desonra, verá as trevas.
25. A observância dos mandamentos de Deus engendra a impassibilidade. E a impassibilidade da alma preserva o conhecimento.
26. Faça subir o sensível até a contemplação intelectual, e você arrastará os sentidos acima do sensível.
[19] Cf. Gálatas 5: 13.
1464
539
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
27. O sensível feminino simboliza a alma ativa; quando o intelecto se une a ela, ela gera as virtudes.
28. O estudo das palavras de Deus ensina o conhecimento de Deus a quem busca a verdade, com desejo e piedade.
29. O que a luz representa para o que vê e o que é visto, representa Deus para o que pensa e o que é pensado.
30. O firmamento sensível simboliza o firmamento da fé, no qual os santos brilham como luminares.
31. Jerusalém é o conhecimento celeste dos incorporais. É nela onde se contempla a paz.
32. Não negligencie a ação quando diminuir o conhecimento; e se vier a fome, você descerá para o Egito [20]. 1465
33. A libertação das paixões é a liberdade intelectual, à qual ninguém chega sem a compaixão de Cristo.
34. O Reino dos céus é a terra prometida, suscitada pela impassibilidade e o conhecimento.
35. O entenebrecimento das paixões é o Egito, para onde ninguém vai se não tiver sentido fome.
36. Se seu ouvido frequenta as palavras espirituais, seu intelecto se afastará dos pensamentos impuros.
37. Somente Deus é bom e sábio por natureza. Mas o intelecto se torna bom e sábio por participação, se se aplicar a isto.
[20] Cf. Gênesis 41: 57 e 46: 6.
1465
540
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
38. Domine o ventre, o sono, o ardor e a língua, e seu pé não se ferirá na pedra [21]. 1466
39. Esforce-se por amar todos os homens igualmente, e você afastará todo o conjunto das paixões.
40. A contemplação do sensível é comum ao intelecto e aos sentidos. Mas o que é característico do intelecto é o conhecimento do inteligível.
41. É impossível ao intelecto se consagrar ao inteligível se ele não tiver rompido toda relação com os sentidos e com o sensível.
42. Os sentidos têm um pendor natural para as coisas sensíveis, e eles distraem o intelecto, que se deixa arrastar e passa a girar em torno deles.
43. Incline os sentidos a serviço do intelecto, e não lhes dê tempo para arrastá-lo em sentido contrário.
44. Quando ocorrer de o intelecto se ocupar de coisas sensíveis, arraste os sentidos na direção contrária, conduzindo para o intelecto tudo o que está próximo.
45. Este é o sinal de que o intelecto se ocupa do inteligível: ele despreza tudo o que adula os sentidos.
46. Quando o intelecto se abre à contemplação do inteligível, é difícil arrancá-lo do prazer que ele extrai disto.
47. Quando o intelecto se enriquece com o conhecimento da unidade, ele mantém sujeitos os sentidos.
48. Impeça seu intelecto de girar ao redor das coisas sensíveis, a fim de não colher nelas o prazer e a aflição. [21] Cf. Salmo 90 (91): 12.
1466
541
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
49. Naqueles em quem o intelecto se consagra continuamente às coisas de Deus, mesmo a parte sensível se torna uma arma divina.
50. É impossível que o intelecto se dedique ao conhecimento, se primeiro não expulsar para longe de si, por suas próprias virtudes, a parte sensível.
51. O intelecto se torna estrangeiro às coisas do mundo quando interrompe totalmente sua relação com os sentidos.
52. É típico da parte racional da alma consagra-se ao conhecimento de Deus, e é típico da parte sensível consagrar-se ao amor e à temperança.
53. É impossível que o intelecto se ocupe realmente do sensível se não houver nenhuma paixão que o arraste para ele.
54. Perfeito é o intelecto afeito ao conhecimento. E perfeita a alma que se mistura às virtudes.
55. A relação que liga os sentidos ao intelecto o torna escravo dos prazeres do corpo.
56. Quando a parte sensível da alma é conduzida para fora das virtudes que lhe são próprias, o intelecto é levado para fora do lugar do conhecimento.
57. Nós recebemos a faculdade de nos tornarmos filhos de Deus [22]. Mas se não nos despojarmos das paixões, jamais nos tornaremos tais. 1467
58. Ninguém deve considera que se tornou realmente filho de Deus se não tiver em si próprio as marcas divinas.
[22] Cf. João 1: 12.
1467
542
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
59. Aquilo que permite nos juntarmos ao bem ou ao mal faz de nós filhos de Deus ou filhos de Satanás.
60. O homem prudente é atento a si mesmo [23]: ele se apressa em se livrar de qualquer mancha. 1468
61. A alma endurecida não sente quando é fustigada, e não se dá conta de seu benfeitor.
62. Uma veste manchada nos interdita participar das bodas divinas e nos atira nas trevas exteriores [24]. 1469
63. Quem teme a Deus cuida de sua alma e se afasta de toda má relação.
64. Quem é desleixado e se sujeita aos prazeres é incapaz de descobrir a compaixão de Deus.
65. Foi Jesus quem disse, mesmo que não acreditemos, que não se pode servir a dois senhores [25]. 1470
66. A alma manchada de paixões se torna endurecida; sem amputação e sem cauterização, ela não suporta crer.
67. Julgamentos terríveis aguardam os corações duros. Pois sem grandes penas eles não aceitam amolecer.
68. O homem prudente vela sobre si mesmo, e por meio de penas voluntárias ele evita as penas involuntárias.
69. A alma deve assumir a vida dura e a humildade, pois é por meio delas que Deus perdoa os nossos pecados.
[23] Cf. Êxodo 23: 21. [24] Cf. Mateus 22: 12-13. [25] Cf. Mateus 6: 24.
1468
1469
1470
543
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
70. Assim como as concupiscências e cóleras multiplicam os pecados, a temperança e a humildade os apagam.
71. A tristeza conforme a Deus parte o coração; mas ela é gerada pelo temor do castigo.
72. A tristeza conforme a Deus purifica o coração e afasta dele as manchas do prazer.
73. A paciência é o amor às penas na alma. Onde existe o amor às penas, o amor ao pecado é banido.
74. Todo pecado provém do prazer, e todo perdão nos vem da vida dura e da aflição.
75. A providência faz cair nas penas involuntárias a quem não se aplica a se arrepender pelas penas voluntárias.
76. Cristo é o Salvador do mundo inteiro, e ele deu para a salvação dos homens o arrependimento.
77. A observância dos mandamentos gera o arrependimento e purifica a alma.
78. A purificação da alma é a libertação das paixões, e a libertação das paixões gera o amor.
79. É pura a alma que ama a Deus. Do mesmo modo, é puro o intelecto que se desembaraçou da ignorância.
80. Combata até a morte pelos mandamentos de Cristo. Pois, purificado por eles, você entrará na via.
81. Trate o corpo como um servidor dos mandamentos, guardando-o tanto quanto possível longe de todo o prazer e de toda enfermidade.
544
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
82. A revolta da carne provém da negligência em relação à prece, à frugalidade e à bela hesíquia.
83. A bela hesíquia faz nascer lindas crianças: a temperança, o amor e a oração pura.
84. A leitura e a oração purificam o intelecto. O amor e a temperança purificam a parte sensível da alma.
85. Mantenha a temperança sempre igual, a fim de não cair nos caminhos contrários por falta de equilíbrio.
86. Quem estabelece uma lei para si mesmo não a transgrida. Pois quem engana a si mesmo se ilude.
87. As almas passionais são ocasos inteligíveis; é sobre elas que se põe o Sol de justiça.
88. Filho de Deus é quem se faz semelhante a Deus por meio da bondade e da sabedoria, do poder e da justiça.
89. O estado de malícia é a enfermidade da alma, mas o pecado ativo é a sua morte.
90. A impassibilidade total é a despossessão inteligível. Quando o intelecto chega a este ponto ele parte para longe das coisas daqui.
91. Mantenha num mesmo acordo as virtudes da alma, pois é daí que nascerá o fruto da justiça.
92. Diz-se que a contemplação dos inteligíveis é incorpórea, pois ela é inteiramente desprendida da matéria e da forma.
545
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Segunda Centúria
93. Assim como os quatro elementos nascem da matéria e da forma, também nascem assim os corpos feitos de matéria e de forma.
94. Quando o Verbo se fez carne [26] em seu amor pelo homem, ele não mudou aquilo que ele era, nem modificou aquilo no que se tornou. 1471
95. Assim como dizemos que o único e mesmo Cristo nasceu da divindade e da humanidade, e que ele existe em sua divindade e sua humanidade, também afirmamos que ele nasceu das duas naturezas e que existe nas duas naturezas.
96. Nós confessamos em Cristo uma única hipóstase indivisivelmente unida em duas naturezas.
97. Nós pensamos que a única hipóstase de Cristo é sem divisões, e que a união das naturezas é sem confusão.
98. Nós adoramos a essência da Divindade, uma em três Pessoas, e confessamos a santa Trindade consubstancial.
99. As três hipóstases têm cada qual como característica a paternidade, a filiação e a sucessão. E elas têm em comum a essência, a natureza, a divindade e a bondade.
100. O perdão dos pecados é a libertação das paixões. Quem, pela graça, ainda não se viu livre das paixões, é porque ainda não descobriu o perdão.
[26] Cf. João 1: 12.
1471
546
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Terceira Centúria
TERCEIRA CENTÚRIA
ACRÓSTICO
ΠΛΗΝ ΚΑΚΑ ΚΥΡΙΩΣ ΟΥ ΤΑ ΤΗΝ ΣΑΡΚΑ ΜΕΝ ΚΑΚΟΥΝΤΑ, ΤΗΝ ΔΕ ΨΥΧΗΝ ΚΑΘΑΙΡΟΝΤΑ. ΤΑ ΔΕ ΤΗΝ ΣΥΝΕΙΔΗΣΙΝ ΛΥΠΟΥΝΤΑ, ΤΕΡΠΟΝΤΑ ΔΕ ΤΗΝ ΣΑΡΚΑ.
Mas as coisas ruins não são as dores do corpo, mas as que quebram a alma, entristecem a consciência, mas dão prazer ao corpo.
1. Pense somente o bem daquele que é bom por natureza; e tenha belos pensamentos a respeito de todos os homens.
2. No dia do Juízo Deus nos pedirá contas de nossas palavras, nossas obras e nossos pensamentos.
3. O costume da virtude ou do vício nos leva a pensar, dizer ou fazer o que é bom ou o que é mau.
4. O intelecto dominado pelas paixões pensa o que é inconveniente; depois as palavras e as ações manifestam o pensamento.
5. A paixão precede o mau pensamento; os sentidos são a causa da paixão; e a causa do mau uso dos sentidos é manifestamente o intelecto.
6. Firme os sentidos, combata a presunção e destrua as paixões por meio das armas dos mandamentos.
547
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Terceira Centúria
7. O vício inveterado precisa de uma longa ascese. Pois o hábito enraizado não muda de um golpe.
8. A ascese mantida pela temperança e o amor, pela paciência e a hesíquia, suprime aquilo que nos oprime.
9. Leve continuamente o intelecto à oração e você destruirá os pensamentos que chegam ao coração.
10. A ascese requer paciência e longanimidade. Pois o amor durável às penas bane o amor pelo prazer.
11. É fácil se dedicar às penas da ascese se você o fizer moderadamente e entro das regras.
12. Mantenha sempre igual a medida da ascese, e você não romperá a regra sem necessidade.
13. Assim como o amor e a temperança purificam os pensamentos, a contemplação e a oração abatem as alturas do orgulho [27]. 1472
14. As penas da ascese, como o jejum, a vigília, a paciência e a longanimidade tornam a consciência pura.
15. Quem suporta os ataques das tentações involuntárias se torna humilde, possui a boa esperança e é experiente.
16. A paciência é na alma um amor sem sofrimento que nasce das penas voluntárias e das tentações involuntárias.
17. A constância nas vicissitudes faz afundar a malícia, e manter-se até o fim paciente acaba por destruí-la por completo.
[27] Cf. II Coríntios 10: 5.
1472
548
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Terceira Centúria
18. A intrusão das penas aflige os sentidos, e a irrupção da tristeza arranca o prazer.
19. Existem quatro paixões gerais, das quais a providência se serve opondo-as entre si.
20. Pois a intrusão da tristeza reduz o prazer e o medo do castigo derruba a concupiscência.
21. Um intelecto prudente exercita sua alma e acostuma o corpo à ascese.
22. Livrando-se das paixões, esforce-se por mostrar que o monge não é o homem exterior, mas o interior.
23. A primeira renúncia é se desembaraçar das coisas. Mas a segunda e a terceira renúncias consistem em se desprender das paixões e da ignorância.
24. Para quem quer, é fácil se desprender das coisas. Mas é muito difícil se desprender dos pensamentos voltados para as coisas.
25. Dominando o desejo você se tornará mais forte do que o ardor, porque o desejo é a causa que suscita o ardor.
26. Já nos desembaraçamos dos pensamentos passionais e recebemos em troca a prece pura e imaterial, ou ainda não?
27. Grande é o intelecto que se desprendeu das paixões, que se separou dos seres e que vive com Deus.
28. É um filósofo quem progride nestas três vias: nos mandamentos, nos dogmas e na fé na Santíssima Trindade.
549
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Terceira Centúria
29. O intelecto separado das paixões se encontra aqui: nos pensamentos simples, na contemplação dos seres e na sua própria luz.
30. As piores paixões estão escondidas em nossa alma, e elas aparecem quando afastamos as coisas.
31. O intelecto que descobriu uma impassibilidade parcial eventualmente escapa à perturbação, mas ainda não possui a experiência da ausência das coisas.
32. As paixões são suscitadas por estas três coisas: pela memória, pela compleição do corpo e pelos sentidos, conforme já dissemos.
33. O intelecto que fechou os sentidos e acalmou a compleição do corpo permanece em guerra apenas com a memória.
34. Quando faltam a temperança e o amor espiritual as paixões são suscitadas pelos sentidos.
35. O jejum calculado, a vigília e a salmodia apaziguam naturalmente a compleição do corpo.
36. Estas três causas alteram, e evidentemente degradam a compleição do corpo: a desordem do regime alimentar, a mudança de ares e o contato com os demônios.
37. Despojamo-nos das lembranças passionais por meio da prece, da leitura, da temperança e do amor.
38. Primeiro feche os sentidos por meio da hesíquia, e então combata as lembranças com as armas das virtudes.
39. O vício da reflexão é o mau uso dos pensamentos, e o pecado ativo é o mau uso das coisas.
550
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Terceira Centúria
40. O mau uso dos pensamentos e das coisas consiste em não utilizá-los com piedade e justiça.
41. As paixões vergonhosas são entraves ao intelecto, pois o encerram nas coisas sensíveis.
42. Existe uma impassibilidade perfeita, que não é afetada nem pelas coisas nem pelas suas lembranças.
43. Uma boa alma faz o bem ao próximo. Se este é ingrato para com ela, ela é paciente a respeito; se a faz sofrer, ela suporta o mal que lhe é feito.
44. Os maus pensamentos são males reais: quem não se desembaraçar deles não poderá ser instruído pelo conhecimento.
45. Quem escuta a Cristo se ilumina, e quem o imita se endireita.
46. O ressentimento é lepra da alma. Ele chega a ela por causa de uma desonra, de uma aflição, ou de uma suspeita gerada em seus pensamentos.
47. O Senhor cega o intelecto invejoso, pois este se aflige injustamente diante dos bens do próximo.
48. Uma alma maledicente tem uma língua de três pontas. Pois ela faz mal a si própria, a quem a escuta e até aquele em quem ela pensa.
49. Quem ora por seu opressor não tem ressentimentos, e quem doa com generosidade se livra do ressentimento.
50. A morte da alma é o ódio ao próximo. É ele que possui e faz a alma do caluniador.
551
TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Terceira Centúria
51. A acídia é a negligência da alma. A alma negligente é aquela doente de amor ao prazer.
52. Quem ama a Jesus se exercita sofrendo; a resistência aos sofrimentos expulsa a acídia.
53. A alma se fortalece pelas penas da ascese. E, fazendo tudo com medida, ela expulsa a acídia.
54. Quem domina o ventre submete a concupiscência, e seu intelecto não é mais sujeito aos pensamentos da prostituição.
55. O intelecto do homem temperante é um templo do Espírito Santo. Mas o intelecto do guloso é um ninho de corvos.
56. A saciedade faz desejar a variedade de alimentos, enquanto que a sua falta faz considerar delicioso o próprio pão seco.
57. Livra-se da inveja o homem que se diverte secretamente com quem é invejado; afasta a inveja o homem que cobre o que é invejado.
58. Afaste-se de quem leva uma vida negligente, mesmo que ele tenha muito renome perante muitos.
59. Tenha por amigo um homem que ama as penas, e você encontrará uma proteção para os seus olhos.
60. O homem negligente passa por muitos mestres, e vive como eles o conduzem.
61. Ele é benevolente como um amigo quando você está em paz, e lhe combate como um inimigo quando você passa por uma provação.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Terceira Centúria
62. Ele dá a sua vida por você antes que cheguem as paixões, mas quando elas chegam, ele toma a sua vida.
63. A terra inculta se cobre de espinheiros [28], e a alma negligente se cobre de paixões impuras. 1473
64. O intelecto prudente coloca um freio à sua alma. Ele trata o corpo com dureza e subjuga as paixões [29]. 1474
65. Os movimentos manifestados são sinais dos movimentos interiores, assim como os frutos que nascem em árvores que não conhecemos bem são sinais que nos permitem reconhecer estas árvores.
66. As palavras e as obras denunciam o hipócrita e desmascaram o falso profeta que se oculta nele.
67. Um intelecto que perdeu a razão já não corrige sua alma. Ele se afasta do amor e da temperança.
68. A causa dos falsos pensamentos é o mau hábito feito de orgulho e de presunção.
69. São características dos vícios mencionados acima a hipocrisia e a astúcia, a enganação, a dissimulação e toda ilusão mentirosa.
70. As virtudes devem subjugar a inveja, a querela e a cólera, a tristeza e o ressentimento.
71. Lá está o caminho dos que levam a vida na negligência. E aqui o tesouro do que está oculto em mim.
72. A vida dura e a humildade salvam a alma e a libertam das paixões mencionadas acima.
[28] Cf. Isaías 5: 6. [29] Cf. I Coríntios 9: 27.
1473
1474
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73. Característica de um pensamento prudente é uma palavra útil, e de uma alma boa uma ação virtuosa.
74. O intelecto iluminado profere palavras de sabedoria. E a alma pura cultiva pensamentos divinos.
75. Os pensamentos do homem fervoroso se aplicam à sabedoria, e suas palavras iluminam aos que o escutam.
76. Quando as virtudes estão no fundo da alma esta cultiva pensamentos bons. Mas quando são os vícios que estão no fundo da alma, ela engendra falsas ideias.
77. A alma do passional é uma fábrica de maus pensamentos, e ele extrai coisas malignas de seus próprios tesouros [30]. 1475
78. O bom tesouro é o costume das virtudes. O bom intelecto retira deste costume as coisas do bem.
79. O intelecto dirigido pelo amor divino cultiva os bons pensamentos em torno de Deus. Mas quando ele é dirigido pelo amor a si próprio ele faz o contrário.
80. O intelecto levado pelo amor ao próximo não cessa em pensar no bem deste. Mas quando ele é levado pelo contrário, imagina o mal.
81. As causas dos bons pensamentos são as virtudes, e as causas das virtudes são os mandamentos. Já a causa da prática das virtudes está na resolução.
82. As virtudes e os vícios que vêm e vão dispõem a alma para o bem ou para o mal, levando-a a ter pensamentos que correspondem a um ou outro.
[30] Cf. Mateus 23: 35; Lucas 6: 45.
1475
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83. As causas dos maus pensamentos estão nos vícios. A causa destes está na desobediência, e a causa desta está num erro dos sentidos. Mas a causa do erro dos sentidos é a negligência do intelecto que não vigia por sua segurança.
84. Naqueles que progridem, as disposições dos adversários são firmes. Mas nos perfeitos, os hábitos são difíceis de mudar dos dois lados.
85. A força da alma está no estado inflexível da virtude. Quem alcançou este estado disse, como um homem a quem nada mais é capaz e corromper: “Quem nos separará do amor de Cristo?”.
86. O amor por si próprio precede todas as paixões, e o orgulho ainda permanece ao final de tudo.
87. Os três pensamentos fundamentais da concupiscência têm sua origem na paixão do amor por si mesmo.
88. Queremos dizer com isto as paixões da gula, da vaidade e da avareza, que seguem todos os pensamentos passionais, embora não com a mesma intensidade.
89. O pensamento da prostituição se segue ao da gula. O pensamento do orgulho se segue ao da vaidade. E os demais seguem-se comumente aos três.
90. Os que seguem os três são os pensamentos da tristeza, da cólera, do ressentimento, da inveja, da acídia e todos os demais.
PRECE
91. Mestre de tudo, ó Cristo, livra-nos de todos estes males, das paixões que nos destroem
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Terceira Centúria
e dos pensamentos nascidos das paixões.
92. Por causa sua fomos criados, para usufruirmos das delícias em que nos colocou no jardim do Paraíso por você plantado.
93. Mas atraímos sobre nós a desonra presente porque preferimos às delícias bem-aventuradas a ruína
94. da qual recebemos em nós a retribuição em nós, que trocamos a vida eterna pela morte.
95. Agora, ó Mestre, como nos olhou então, olha-nos agora. assim como você se fez homem, salve-nos agora.
96. Porque você veio nos salvar, a nós que estávamos perdidos. Não nos separe da parte dos que se salvam.
97. Ressuscite as almas e salve os corpos, purifique-nos de toda mancha.
98. Quebre os laços das paixões que nos mantêm, você que destruiu as falanges dos demônios impuros.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Terceira Centúria
99. E livre-nos de sua tirania, a fim de que possamos servir apenas a você, Luz eterna,
100. ressuscitados dentre os mortos e com os anjos, dançando a bem-aventurada ronda, eterna e indissolúvel. Amém.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Quarta Centúria
QUARTA CENTÚRIA
ACRÓSTICO
ΟΜΩΣ ΟΥΝ ΚΑΙ ΕΚ ΤΩΝ ΚΥΡΙΩΣ ΚΑΚΩΝ, ΚΑΙ ΤΩΝ ΜΗ ΚΥΡΙΩΣ, ΝΟΜΙΖΟΜΕΝ ΔΕ, ΕΥΞΑΙ ΕΚΤΕΝΩΣ ΠΡΟΣ ΚΥΡΙΟΝ ΤΟΝ ΘΕΟΝ ΗΝΩΝ ΛΥΤΡΩΘΗΝΑΙ ΗΜΑΣ.
Mas, não importa se essas coisas são muito ou pouco ruins, eu penso em você para que ore profundamente por mim para que o nosso Senhor Deus nos salve.
1. Quem afastou o intelecto do amor e da adulação pela carne leva à morte, pela ação do Espírito vivificante, as ações do corpo.
2. Não creia que você deixou de estar ligado à carne se seu intelecto ainda se ocupa das coisas da carne.
3. Assim como os sentidos e o sensível são próprios à carne, o intelecto e o inteligível são próprios à alma.
4. Retire sua alma da sensação do sensível e seu intelecto se encontrará em Deus no inteligível.
5. As naturezas intelectuais perceptíveis apenas pelo intelecto são próprias da divindade. Os sentidos e o sensível foram feitos para servir ao intelecto.
6. Que os sentidos e o sensível o ajudem a encontrar a contemplação espiritual, e que, inversamente, o que conduz à concupiscência da carne não sirva aos seus sentidos.
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7. Foi-nos ordenado que matássemos as ações do corpo [31], a fim de ressuscitarmos por meio das penas a alma destruída pelos prazeres. 1476
8. Seja dominado por Deus e domine os seus sentidos. Você traz o melhor em si; não entregue o poder ao pior.
9. Deus é eterno, sem fim, sem limites, e ele prometeu bens eternos, sem fim, inefáveis, aos que o escutarem.
10. É próprio do intelecto viver em Deus, pensar nele, em sua providência, em seus julgamentos terríveis.
11. Você tem o poder de se inclinar para um ou outro lado. Dê o melhor de si, e você submeterá o pior.
12. Os sentidos são belos e o sensível é belo, como todas as obras do bom Deus. Mas eles não se comparam ao intelecto e ao inteligível.
13. O Mestre criou o ser dotado de razão e de intelecto para receber o universo e o conhecimento de si próprio, e suscitou os sentidos e o sensível para servir à razão e ao intelecto.
14. Assim como não convém que um mau servidor submeta seu bom mestre, não convém que um corpo corruptível submeta um intelecto racional.
15. O intelecto que não domina os sentidos cai no mal por causa deles. Pois, iludido pelo prazer do mundo, ele engendra em si próprio a falsidade.
16. Se você dominar os sentidos, coloque também num lugar seguro sua memória. Pois as noções adquiridas pelos sentidos suscitam as paixões.
[31] Cf. Colossenses 3: 5.
1476
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17. Conduza com dureza seu corpo [32], ore continuamente, e logo você se libertará dos pensamentos nascidos das noções adquiridas. 1477
18. Jamais deixe de se consagrar às palavras divinas. Pois as penas que você suporta por elas consomem as paixões.
19. A leitura e a vigília, a oração e a salmodia colocam o intelecto acima do erro das paixões.
20. Assim como a primavera faz crescer as plantas, a impassibilidade leva o intelecto ao conhecimento dos seres.
21. Observe os mandamentos [33] e você encontrará a paz, amará a Deus e obterá o conhecimento. 1478
22. É em meio às penas, ao sofrimento e ao suor do seu rosto que você foi condenado a comer o pão do conhecimento [34]. 1479
23. Foi a negligência que levou o Ancestral à transgressão. Em lugar das delícias do Paraíso, ele foi condenado à morte [35]. 1480
24. Seja mais forte do que Eva. Vigie a serpente, para que ela não o engane e não lhe transmita o fruto da árvore [36]. 1481
25. Assim como a alma vivifica o corpo de acordo com a natureza, a virtude e o conhecimento vivificam a alma.
[32] Cf. I Coríntios 9: 27. [33] CF. Eclesiástico 15: 14; 37: 12. [34] Cf. Gênesis 3: 19. [35] Cf. Gênesis 3: 22. [36] Cf. Gênesis 3: 1-5.
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26. Uma nuvem sem água [37] é como o intelecto cheio dos fumos da presunção e levado pelos espíritos da vaidade e do orgulho. 1482
27. Se você dominar a vaidade, guarde-se da prostituição, para que ao fugir das honrarias você não caia na desonra.
28. Se você fugir da vaidade, volte seus olhos para Deus. Senão você poderá cair na presunção ou na prostituição.
29. É típica da vaidade a busca da ostentação. Típicos do orgulho são o desprezo e a animosidade.
30. Se você fugir da gula, guarde-se de tentar sensibilizar os homens mostrando ostensivamente a palidez do seu rosto.
31. O jejum conveniente é aquele que se satisfaz com uma alimentação frugal, que se contenta com uma comida simples e que não tenta agradar aos homens.
32. Se você jejua até o entardecer, não coma então até se saciar, para não reconstruir o que você demoliu [38]. 1483
33. Se você não bebe vinho, não se sacie de água. Senão você estará entregando a mesma matéria à prostituição.
34. O orgulho afasta o socorro divino, faz com que confiemos em nós mesmos e nos voltemos contra os homens.
35. Duas coisas se opõem ao orgulho. Quem não acolhe estas duas coisas receberá uma terceira, extremamente violenta.
[37] Cf. Judas 12. [38] Cf. Gálatas 2: 18.
1482
1483
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36. Destroem o orgulho a oração entre lágrimas, não desprezar ninguém e as infelicidades involuntárias.
37. Aprender com as tentações é como um açoite espiritual, que ensina a humildade a quem se levanta na irracionalidade.
38. É obra característica do intelecto não suportar nenhum pensamento que calunie insidiosamente o próximo.
39. Assim como o jardineiro que não arranca as ervas daninhas sufoca os legumes, o intelecto que não purifica os pensamentos perde sua pena.
40. O homem salvo é aquele que escuta o conselho, e em especial o conselho que seu pai espiritual lhe dá segundo Deus.
41. Aquele que sucumbiu às paixões não percebe o conselho e não suporta a instrução espiritual.
42. Quem não recebe o conselho não vai reto pelo caminho, mas é engolido pelas valas e os abismos.
43. Monge é o intelecto que renunciou aos sentidos e que não suporta sequer o pensamento do prazer.
44. Médico é o intelecto que curou a si próprio e que cura os demais daquilo que ele mesmo se curou.
45. Procure a virtude e não lhe cause nenhum dano, a fim de não viver vergonhosamente e de não morrer miseravelmente.
46. Nosso Senhor Jesus trouxe a luz a todos, mas os que não se confiam a ele cobrem a si próprios de trevas.
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47. Não creia que não é grave o mal que causamos à virtude. Pois é por causa dele que o mal penetrou no mundo.
48. A obediência ao mandamento é a ressurreição dos mortos, pois a vida acompanha a virtude, não a natureza.
49. Quando o intelecto morre pela transgressão do mandamento, a morte do corpo se segue por necessidade.
50. Do mesmo modo como Adão, depois de haver transgredido [39], caiu sob o domínio da morte, o Salvador, depois de haver obedecido [40], destruiu a morte. 1484
1485
51. Mate o vício a fim de não ressuscitar morto, e para não passar da pequena morte para a grande.
52. Por causa da transgressão de Adão o Salvador se fez homem, para ressuscitar todos os seres apagando a condenação.
53. Quem deu morte às paixões e se separou da ignorância passa da vida à vida.
54. Sonde as Escrituras e você encontrará os mandamentos; faça o que está dito ali e você se livrará das paixões.
55. A obediência aos mandamentos purifica a alma, e a purificação da alma permite participar da luz.
56. A árvore da vida [41] é o conhecimento de Deus. O homem puro que recebe sua participação nesta árvore se torna imortal. 1486
[39] Cf. Gênesis 3. [40] Cf. Romanos 5: 19. [41] Cf. Gênesis 9.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Quarta Centúria
57. O começo da prática é a fé em Cristo, e seu fim o amor de Cristo.
58. Cristo, nosso Senhor e nosso Deus, é Jesus, que nos deu a fé e nos conduziu à vida.
59. Ele nos apareceu numa alma e num corpo e em sua divindade, a fim de nos livrar da morte da alma e do corpo, ele que é Deus.
60. Adquiramos a fé a fim de alcançarmos o amor, do qual nascem a iluminação e o conhecimento.
61. O temor a Deus, o domínio dos prazeres, a paciência nas penas, a esperança em Deus, a impassibilidade e o amor se seguem, nesta ordem, à aquisição da fé.
62. Do amor puro nasce o conhecimento natural. A este sucede a última aspiração do desejo, que é a graça da teologia.
63. O intelecto que domina as paixões certamente as domina pelo temor: ele se confia a Deus nas coisas que espera, das quais recebeu a promessa.
64. A quem foi dada a fé é pedida a temperança. Com o tempo, esta engendra a paciência, que é um estado que suscita muitas penas.
65. O sinal da paciência é o amor às penas. Confiando-se a elas, o intelecto espera descobrir o que foi prometido, e fugir do que o ameaçava.
66. A espera do bens por vir liga o intelecto àquilo que ele espera. De tanto viver com estes bens, ele esquece as coisas presentes.
67. Quem provou das coisas que espera abandona as coisas presentes, pois dedica àquelas todo o seu desejo.
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Quarta Centúria
68. Deus é quem nos prometeu as coisas que virão. O homem temperante que crê nele deseja estes bens como se eles estivessem presentes.
69. O sinal de que o intelecto vive nos bens que ele espera é que ele esquece totalmente das coisas aqui de baixo, e se apaga no conhecimento das coisas por vir.
70. Bela é a impassibilidade que nos ensina o Deus da verdade, o qual, a partir dela, cumula de certeza a alma a que ama.
71. Mais alto que os séculos, antes de todos os séculos, além do intelecto e da razão, estão os bens reservados aos herdeiros da promessa.
72. Regremo-nos a partir dos modelos da piedade, para não descambarmos da esperança desviando-nos pelos caminhos das paixões.
73. Jesus é Cristo, um dos da Trindade, da qual também você deve se tornar herdeiro [42]. 1487
74. Quem aprendeu com Deus o conhecimento dos seres não tem dificuldade em crer na Escritura quanto ao que já referimos.
75. Quando encontra um intelecto despojado de paixões o Espírito Santo o inicia, conforme o grau de seu despojamento, nos bens que ele espera.
76. A alma recebe o conhecimento das palavras divinas conforme o grau de purificação do intelecto.
77. Quem submete seu corpo à regra e passa a vida no conhecimento, purifica-se a cada dia por meio deste conhecimento.
[42] Cf. Romanos 8: 17.
1487
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Quarta Centúria
78. O intelecto que se dedica ao estudo do divino começa pela fé, depois continua pelas coisas intermediárias e termina por desembocar na fé mais elevada de todas.
79. No começo do estudo do divino vemos conforme o temor; no final, vemos preceder o amor.
80. O intelecto que se dedica ao estudo do divino vai da fé atenta à teologia, que está para além de toda inteligência e que podemos definir coo a fé sem fim e coo a contemplação da realidade invisível.
81. As palavras que dizemos sobre Deus são consideradas pelos santos não como se referindo a ele, mas ao que está ao redor dele.
82. Todas as palavras que designam as coisa que estão ao redor de Deus também se referem a Deus, umas por afirmação, outras por negação.
83. A essência, a divindade, a bondade, tudo o que é dito de maneira catafática [43] é dito por afirmação. 1488
84. Sendo a Santíssima Trindade uma essência única que ultrapassa o intelecto e a razão, bem como uma divindade oculta, podemos afirmar que as qualidades supracitadas que vemos ao redor dela são semelhantes.
85. Assim como os Padres afirmam que existe apenas uma divindade na Santíssima Trindade, eles pensam que existem três hipóstases da divindade única.
86. Os Padres consideram que as qualidades mencionadas por afirmação ou por negação são comuns à Santíssima Trindade consubstancial, salvo os caracteres próprios, uma vez que eles falam da maioria deles por afirmação, mas de alguns por negação.
87. Eles dizem, de resto, que os caracteres próprios das hipóstases divinas são a paternidade, a filiação e a sucessão, e toda denominação particular. [43] Perspectiva de Deus que se aproxima por afirmação.
1488
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TI, VIII – THALASSIUS, O AFRICANO – Centúrias sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto, ao padre Paulo – Quarta Centúria
88. Eles definem a hipóstase como sendo a essência somada aos caracteres próprios. Assim, cada hipóstase tem em comum a essência, e como própria a sua hipóstase.
89. Eles consideram igualmente fundamental aquilo que, por negação, foi dito do que é comum à Santíssima Trindade. Mas o mesmo não acontece com os caracteres próprios, pois eles falam de alguns por afirmação e de outros por negação, conforme dissemos. É o que acontece com o engendrado e com o não engendrado, e com outros caracteres semelhantes. Pois não ter sido engendrado não difere do engendrar senão pelo significado: não ter sido engendrado se refere ao Pai; e ter sido engendrado se refere ao Filho.
90. Assim é que nos servimos de termos e de nomes para que fiquem claras as palavras que versam sobre o que está ao redor da essência da Santíssima Trindade, como foi dito. Estas palavras são desconhecidas e inefáveis para qualquer intelecto ou razão, e elas só são conhecidas da Santíssima Trindade.
91. Assim como os Padres dizem que a essência única da divindade é tri-hipostática, eles confessam que a Santíssima Trindade é consubstancial.
92. Consideramos também que o Pai não tem começo e que ele é o começo. Ele não tem começo, porque é não engendrado; e ele é o começo, pois é o gerador e o processador dos que provêm dele pela essência e que existem nele por toda eternidade, ou seja, o Filho e o Espírito Santo.
93. A unidade que eles trazem em si na Trindade permanece Unidade. E, por seu turno, a Trindade reunida na Unidade permanece Trindade, o que é igualmente paradoxal.
94. Eles pensam também que o Filho e o Espírito também não têm começo e são eternos. Eles não são sem começo como o Pai, pois eles remontam a um começo e a uma fonte. Mas eles são eternos, pois existem com o Pai por toda eternidade, um por ser engendrado, outro por sucessão.
95. Eles mantêm indivisível a divindade única da Trindade e mantêm inconfundíveis as três hipóstases da Divindade única.
96. Quanto aos caracteres próprios, eles dizem que o Pai não tem começo e que ele é não engendrado; que o Filho estava no começo e é engendrado; e que o Espírito Santo estava no começo e procede. Eles dizem
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que o começo do Filho e do Espírito Santo não é temporal. De fato, como seria? Eles mostram a causa pela qual eles existem por toda eternidade, assim como a luz existe por causa do sol. Eles não existem depois da causa, mas existem por causa dela na essência.
97. Eles afirmam ainda que as hipóstases tem como caráter próprio serem sem movimento e sem falha, e que a essência, ou seja, a divindade, tem como caráter comum ser indivisível.
98. Eles confessam que a Unidade está na Trindade e que a Trindade está na Unidade, indivisivelmente separada, e unida na separação.
99. Eles sabem que o começo de tudo é o Pai, pois ele é o genitor e a fonte eterna do Filho e do Espírito, ele é eterno e infinito com eles, sem limites, consubstancial, sem divisão. E ele é o criador, a providência e o juiz dos seres. Ele o é, evidentemente, pelo Filho e pelo Espírito Santo. Com efeito, foi dito: “Tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém.
100. Eles dizem ainda que o Filho e o Espírito são eternos com o Pai, mas não são sem começo do mesmo modo que ele. Eles são eternos com o Pai, pois existem com ele no infinito, mas não são sem começo da mesma maneira que ele, pois eles não são sem causa. Eles são dele como a luz é do sol, mesmo não sendo depois dele, como foi dito. Mas eles acrescentam que eles não têm começo, se entendemos por começo um começo temporal, para que não pensemos que estão submetidos ao tempo aqueles de quem o tempo procede. Assim, eles não são sem começo perante Aquele que é sua causa, mas são sem começo em relação ao tempo. Pois eles existem antes de todo tempo e de todo século, acima de todo século e acima do tempo, eles por quem existem todo tempo e todo século, e tudo o que está no século e tudo o que está no tempo. E eles são eternos com o Pai, como foi dito. A ele, com eles, a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.
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ABADE FILEMON Nosso bem-aventurado Abade Filemon que, dentre os Padres Teóforos levou ao mais alto grau a nepsis e o luto, viveu num tempo que sua história não registrou. O presente relato permite a quem quiser ver, que ele foi, mais do que todos, inteiramente devotado à piedade, à experiência, à hesíquia, à imitação fiel do grande Arsênio.
Por suas preces e suas súplicas, dia e noite, perseverante em sua cabana de asceta como na câmara alta da existência, lavando-se na fonte das lágrimas e dos gemidos, ultrapassando pelo amor a Deus não apenas o que está submetido ao mal como também o que provém da melhor parte, tanto o sensível como o inteligível, ele se apresentou surdo e mudo ao Senhor, conforme está escrito, e alcançou a bela iluminação da graça por meio da qual, no extremo da hesíquia e do silêncio e sob o efeito da irradiação solar, ele recebeu abundantemente o dom de examinar e de discernir, de ver e de prever. Testemunho fiel do que dizemos é o presente relato, no qual o ensinamento eminente da santa nepsis é transmitido à perfeição como uma vestimenta bordada tecida por Deus. Às vezes ele se volte para a ação, às vezes permanece na contemplação, pela longa experiência que, através das obras, complementa a própria fé. Assim se alguém quiser se despojar das manchas e do peso das vestes da paixão, se quiser se despojar do homem velho e se cobrir com a túnica luminosa da impassibilidade e da graça, que constitui o novo homem conforme a Jesus Cristo, pensando continuamente Nele e colocando todo seu labor para chegar ao objetivo de suas meditações, ele alcançará seu louvável desejo.
*
O Abade Filemon foi um desses grandes anacoretas que povoaram os desertos do Egito, do século IV ao VII, até a conquista árabe em 640. Ele próprio deve ter vivido no século VI. É o que nos deixa entender o “discurso” inserido na antologia filocálica – metade relato de sua vida, metade testemunho de sua experiência – que Diádoco de Foticéia menciona no passado mostrando um Egito no qual os monges, mesmo fugindo das heresias alexandrinas, iam e vinham à vontade e comunicavam com Constantinopla: o Islã ainda não chegara. É provável que esta transcrição anônima dos gestos e ditos de Filemon tenha sido redigida a partir de testemunhos de seus discípulos pouco depois da sua morte, talvez no início do século VII. Seria assim um dos últimos testemunhos diretos dos Padres do deserto, ou ainda o testamento da anacorese egípcia.
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Todas as aquisições da experiência eremítica, desde Evagro e Diádoco, estão aí reunidas: a hesíquia, a nepsis, a purificação do intelecto, e sobretudo a prece do coração, que Filemon denomina “meditação secreta”, formulando-a como “Senhor, tenha piedade”, ou “Senhor Jesus, tenha piedade”; porém, ele também nos transmite – e é um dos primeiros a faze-lo – a fórmula tradicional: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”, a mesma herança que os Sinaítas receberam, guardaram e cultivaram.
Resta o que dificilmente poderia ser transmitido: o extremo rigor, a extrema delicadeza, a extrema liberdade da vida dos Padres do deserto. E nisto Filemon é exemplar: profundamente despojado, solitário e silencioso, capaz de mergulhar dia e noite nas preces canônicas de sua “liturgia” cotidiana como na prece do coração, ao mesmo tempo em que renunciava, por humildade, celebrar a eucaristia, embora fosse padre; mas também capaz de exortar longamente o monge que desejava segui-lo, de responder a todas as perguntas dos que vinham vê-lo, de trabalhar com suas mãos e de oferecer o fruto de seu trabalho no mercado. Em tudo isto Filemon não mostrava senão sua fraqueza, suas provações, sua confiança: “Eu não trago nada, dizia ele, senão a prece contínua”.
Com seu retiro, com seu silêncio, ele manteve sempre entre si e os demais uma treva, um espaço vazio, que pode revelar fora de toda paixão os dons mesmos do Deus vivo: o amor e a liberdade. O caminho do coração se abre ao intelecto em prece, à “meditação secreta”, e pode levar a este ponto de concentração e êxtase, onde, diz ele, “mesmo a carne é abrasada pelo Espírito", tornando-se a luz de Deus que se fez carne em Cristo. A partir daí, tudo foi dito. No próprio momento de passar pela recapitulação do Sinai e seguir o movimento que levará ao monte Athos, a experiência hesiquiasta aparece aqui em germe, tal como será.
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DISCURSO MUITO ÚTIL
Conta-se do abade Filemon, o anacoreta, que ele havia se encerrado numa pequena gruta, afastada da comunidade dita “dos Romanos”, e que ali enfrentava os combates da ascese repetindo em seu coração, como um encantamento, aquilo que o grande Arsênio [1] dizia a si mesmo: “Filemon, por que você partiu?”. 1489
Ele passou um longo tempo nesta gruta, fabricando cordas e tecendo bolsas, que entregava ao ecônomo, recebendo deste pãezinhos para sua alimentação. Pois ele não comia senão pão e sal. Ele não tomava nenhum cuidado com a carne [2], mas se consagrava à contemplação e penetrou na iluminação divina. Tendo alcançado a inefável mistagogia ele vivia alegre. Aos sábados e domingos ia à igreja, só e recolhido, e não permitia que ninguém dele se aproximasse, para manter em si sem falha a obra do intelecto. Na igreja, imóvel num canto, rosto contra a terra, ele derramava rios de lágrimas. Ele tinha em si um contínuo luto, a lembrança da morte e o exemplo dos santos Padres, em especial o de Arsênio, cujas pegadas se esforçava por seguir. 1490
Quando estalou a heresia em Alexandria e na sua região, ele partiu e se colocou na comunidade vizinha da cidade de Nicanor. Paulino, o amado de Deus, o recebeu, consagrou a ele o lugar onde ele próprio se retirara e o estabeleceu na hesíquia total. Durante todo um ano ele só admitiu recebê-lo uma única vez. Ele próprio só o incomodava nos momentos em que lhe dava o pão de que necessitava. Pouco antes da Ressurreição de Cristo, no momento de sua visita, eles evocaram entre si o estado eremítico. Filemon, sabendo que este irmão, em sua grande piedade, desejava também este objetivo, separou para ele passagens de textos ascéticos, das Escrituras e dos Padres, e lhe mostrou por meio deles que é impossível agradar a Deus sem uma perfeita hesíquia, como disse Moisés [3], este Padre admirável, em seu amor pela sabedoria: “A hesíquia engendra a ascese; a ascese engendra as lágrimas; as lágrimas engendram o temor; o temor engendra a humildade; a humildade engendra a visão profética; a visão profética engendra o amor; o amor liberta a alma das enfermidades e das paixões. Então o homem sabe que ele não está longe de Deus”. 1491
Então ele lhe disse: “É preciso purificar totalmente o intelecto e lhe dar um trabalho espiritual incessante por meio da hesíquia. Pois, assim como o olho se volta para as coisas sensíveis e admira aquilo que vê, também o intelecto puro se dirige às coisas inteligíveis [4], sai de si mesmo sob o efeito da contemplação espiritual, e retorna de seu êxtase com dificuldade. E na mesma medida em que se despoja e se livra das paixões por meio da hesíquia, ele se torna digno do conhecimento. O intelecto é perfeito quando ultrapassa o conhecimento dos seres e se une a Deus [5], a ponto de não mais suportar ser privado da 1492
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[1] Cf. Sentenças dos Padre do Deserto, Arsênio 40. [2] Cf. Romanos 13: 14. [3] Segundo Hausherr, o monge Ammonas. [4] Carta de Evagro erroneamente atribuída a são Basílio. [5] Cf. Evagro, Centúria III, 49 e Carta 58.
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dignidade real que adquiriu; então ele não é mais sacudido pelas concupiscências de baixo, ainda que lhe sejam oferecidos todos os reinos da terra”.
“Assim sendo, se você quiser alcançar todas as virtudes, não se preocupe com nenhum homem, fuja do mundo, siga de todo coração o caminho dos santos, tenha uma aparência negligente, uma vestimenta pobre, uma túnica humilde. Que seu comportamento seja simples, sua palavra constante, seu caminhar discreto, sua voz natural. Viva na pobreza, desprezado por todos. Sobretudo, guarde seu intelecto, mantenha a sobriedade e a vigilância, suporte com paciência todas as angústias e conserve firmes e intactos todos os bens que lhe forem dados. Enfim, mantenha-se rigorosamente atento a si mesmo [6], para não acolher nenhum dos prazeres que tentam penetrar em você contra sua vontade. Pois as paixões da alma são adormecidas pela hesíquia. Mas excitadas e exacerbadas elas se tornam naturalmente mais e mais selvagens, obrigam aos que as recebem a pecar e, como as feridas do corpo que coçamos e esfregamos, se tornam difíceis de curar. Uma razão preguiçosa pode ainda afastar de Deus o intelecto, quando os demônios a constrangem e persuadem os sentidos.” 1494
“Guardar a alma constitui um grande combate e um grande temor. É preciso nos separar do mundo todo, afastarmos a alma de toda paixão pelo corpo, não possuirmos nem cidade, nem casa, nem nada de nosso, nem dinheiro, nem domínio, nem nos ocuparmos de nada, nem estarmos ligados a ninguém, é preciso ser ignorante das coisas humanas, humildes, compassivos, bons, doces, calmos, prontos a receber em nossos corações as marcas deixadas pelo conhecimento divino. Pois é impossível escrever sobre a cera sem primeiro apagar os sinais que nela se acham impressos; é isto que nos ensina o grande Basílio [7].” 1495
“Este é o coro dos santos: totalmente separado da vida que levamos no mundo. Conservando límpido em si próprios o pensamento do céu, os santos receberam a luz das leis divinas. Eles brilharam através de suas obras e de suas palavras piedosas, mortificando por meio da temperança, do temor e do desejo por Deus seus membros que estavam sobre a terra [8]. Com efeito, graças à oração contínua e à meditação das divinas Escrituras, os olhos do intelecto e da alma se abrem e veem o Senhor dos Exércitos, e uma grande alegria e um desejo violento se apossam da alma abrasada e, quando a carne é também arrebatada pelo Espírito, o homem se torna inteiro espiritual. É por isso que aqueles que se abrem à bem-aventurada hesíquia, que levam a vida mais estrita e que se separam de todo conforto humano, conversam com toda pureza com o Mestre que está nos céus: a sós com o Único.” 1496
Ao ouvir essas palavras, este irmão amado por Deus, com a alma mortificada pelo desejo divino, foi com ele a Sceta, aonde os maiores dentre os santos Padres trilharam com sucesso o caminho da piedade. Eles permaneceram na comunidade de João Colobos, depois de entregar ao ecônomo da comunidade a responsabilidade de cuidar deles, pois desejavam viver apenas a hesíquia. Pela graça de Deus, eles viviam na total hesíquia, mas saiam discretamente aos sábados e domingos. Mas nos outros dias da semana cada um se aplicava pacientemente em fazer as orações e as liturgias. A liturgia do ancião era a seguinte: à noite e em paz ele cantava todo o saltério e as odes, e recitava uma passagem do Evangelho. Depois se [6] Cf. Gênesis 24: 6, [7] Carta II, 2. [8] Cf. Colossenses 3: 5.
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sentava e dizia consigo mesmo: “Senhor, tem piedade”, com tanta tensão e durante tanto tempo quanto conseguia pronunciar estas palavras. Então ele adormecia um pouco e pela madrugada cantava a hora prima, sentava-se em seu banco, voltado para o oriente, e salmodiava seguindo a ordem do ofício, e novamente recitava de cor as passagens do Apóstolo e do Evangelho. Assim passava ele todo o dia, cantando e orando sem relaxar [9], nutrido pela contemplação das coisas do céu, a ponto de que muitas vezes seu intelecto se elevava na contemplação e ele já não sabia estar sobre a terra. 1497
Vendo-o assim inflexivelmente voltado para o cumprimento dessas liturgias e totalmente transformado pelos pensamentos divinos, o irmão lhe disse: “O que tem você, Pai, velho como é, para se entregar desta maneira às pensa, mortificando e sujeitando seu corpo? [10]”. Ele lhe respondeu: “Creia-me, filho, foi Deus quem colocou em minha alma tamanho ardor e desejo pela liturgia, pois eu sou incapaz de chegar por mim mesmo ao fim desta tensão. O desejo por Deus e a esperança nos bens futuros são mais fortes do que a fraqueza do corpo”. Todo o desejo de seu intelecto estava assim transportado para o céu como que por asas, tanto na hora das refeições como em todos os outros momentos. 1498
Um dia, um irmão que estava com ele lhe perguntou: “Qual é o mistério da contemplação?”. Vendo que ele desejava a prender e que tinha pressa, o ancião lhe disse: “Filho, digo-lhe naturalmente que, se o intelecto de um homem é puro no mais alto grau, Deus lhe revela as contemplações das próprias potências e das ordens litúrgicas”.
Ele então lhe perguntou: “Porque, Pai, você é cumulado de doçura pelo saltério, mais do que por toda a divina Escritura? E porque, quando você canta tranquilamente, você diz as palavras como se conversasse com alguém?”. Ele respondeu: “Filho, eu lhe digo: Deus imprimiu o poder dos salmos em minha pobre alma como no profeta Davi, e eu não posso evitar a doçura das contemplações de todas as espécies que existem neles. Pois eles abarcam por completo toda a divina Escritura”. Veja com quanta humildade ele se esforçou para revelar essas coisas para o bem daquele que o interrogou.
Um irmão chamado João veio do mosteiro dos Paraliotas [11] encontrar este santo Padre, o grande Filemon e, jogando-se aos seus pés, lhe disse: “Pai, que devo fazer para ser salvo? Pois vejo meu intelecto girar e errar por lugares onde ele não deveria”. Ele esperou um pouco, e respondeu: “Esta paixão é dos homens do mundo, ela persiste porque você ainda não adquiriu um desejo perfeito por Deus. O calor do conhecimento e do desejo de Deus ainda não penetrou em você”. 1499
O irmão disse: “Pai, o que devo fazer?”. Ele lhe respondeu: “Fique retirado até alcançar em seu coração uma meditação secreta [12], que possa purificar de tudo isso seu intelecto”. O irmão, que não sabia do que falava o ancião, disse: “Pai, o que é a meditação secreta?”. Ele lhe respondeu: “Permaneça em retiro, seja 1500
[9] Cf. I Tessalonicenses 5: 17. [10] Cf. I Coríntios 9: 27. [11] Situado no litoral (paralia). [12] Kryptè mélétè: a prece do coração.
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sóbrio e vigilante, diga em seu intelecto: ‘Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim’. Isto é o que o bemaventurado Diádoco transmitiu aos seus discípulos [13]”. 1501
O irmão se foi, e com a ajuda de Deus e das orações do Padre, alcançou a hesíquia e por algum tempo foi cumulado de doçura por essa meditação. Porém, de repente ela se afastou dele, e como ele já não conseguia cultivá-la com sobriedade e vigilância e orar, ele retornou ao ancião e lhe disse o que sucedera. Este lhe falou: “Veja, você acaba de conhecer o rastro da hesíquia e da prática e teve a experiência da doçura contida nelas. Guarde isto em seu coração todo o tempo. Comendo, bebendo, na companhia de outros, fora de sua cela, a caminho, que ela nunca o abandone: com o pensamento sóbrio e vigilante e com um intelecto firme e direito, reze sempre esta oração, cante e medite as preces litúrgicas e os salmos. Mesmo nas necessidades do corpo, não deixe seu intelecto parar de meditar e orar em segredo. Assim você poderá compreender as profundidades da divina Escritura e o poder oculto nela, e dar ao seu intelecto um trabalho contínuo, a fim de cumprir a palavra do Apóstolo que disse: ‘Orem sem cessar [14]’. Esteja rigorosamente atento e guarde seu coração para não acolher os maus pensamentos, ou não importa quais pensamentos vãos e inúteis. A todo o momento, em pé ou deitado, comendo ou bebendo, quando encontrar alguém, que em sua reflexão seu coração medite os salmos, ou que ele recite a prece: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’. Mesmo quando você cantar em voz alta, vigie para não dizer as palavras com a boca enquanto os pensamentos vagam por aí”. 1502
O irmão ainda lhe perguntou: “Em meus sonhos vejo muitas imagens vãs”. Mas o ancião lhe disse: “Não tema nem se inquiete. Mas antes de se deitar, faça muitas preces em seu coração e resista aos pensamentos, para não ser desviado pelas vontades do diabo, e para que Deus o acolha. Tanto quanto puder, só durma depois dos salmos e da sábia meditação [15]. Não seja negligente, e não permita que seu intelecto acolha pensamentos estranhos. Deite-se meditando nos pensamentos que teve durante a oração, a fim de que seu intelecto o guarde durante o sonho e que ao despertar ele converse com você [16]. Ainda antes de dormir, diga o Símbolo da fé ortodoxa. Pois glorificar a Deus corretamente é a fonte e a guarda de todos os bens”. 1503
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Ele ainda lhe perguntou: “Faça-me uma caridade, Pai. Diga-me, qual é a obra de seu intelecto? Ensine-me, para que também eu seja salvo”. O ancião lhe respondeu: “Porque você me interroga assim?”. Mas o irmão, levantando-se, abraçou os pés do santo e implorou-lhe que respondesse. Depois de algum tempo, este lhe disse: “Você ainda não pode possuir isto. Pois é preciso que você seja um homem que tenha entrado na posse dos bens da justiça para dar a cada sentido a obra que lhe cabe. Sem nos purificarmos totalmente dos pensamentos vãos do mundo, é impossível nos tornarmos dignos de tal graça. Por isso, se você deseja estes bens, mantenha no coração puro a meditação secreta. Se, com efeito, sua prece e sua meditação das Escrituras permanecerem contínuas os olhos de sua inteligência se abrirão, seu intelecto experimentará uma grande alegria e um desejo inefável e violento: mesmo sua carne será abrasada pelo Espírito, a ponto de que todo o seu ser se tornará espiritual. Então, quando Deus o julgar digno de orar dia e noite com um intelecto puro, longe de toda distração, não se prenda mais à sua própria regra, mas, tanto
[13] Diádoco de Foticéia, Cem capítulos, 59 e 61. [14] I Tessalonicenses 5: 17. [15] Nounéchès: intelectual. [16] Cf. Provérbios 6: 22.
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quanto puder, una-se primeiro a Deus. É ele quem iluminará seu coração sobre a obra espiritual que você deverá cumprir”.
Ele acrescentou o seguinte: “Um dia, um ancião se aproximou de mim e, como eu o interroguei sobre o estado de seu intelecto, ele me disse: Eu passei dois anos rezando a Deus de todo o meu coração pedindolhe sem descanso que me permitisse ter, impressa em meu coração, continuamente e sem distração, a prece que ele próprio transmitira a seus discípulos. Vendo minhas penas e minha paciência, o Senhor que tudo nos concede atendeu o meu pedido”.
Ele disse ainda: “Os pensamentos de vaidade que atravessam o intelecto são enfermidades da alma preguiçosa e negligente. Convém, portanto, conforme está escrito, que guardemos nosso intelecto com toda atenção [17], que cantemos com todo conhecimento, sem distrações, e que oremos com um intelecto puro. Eis por que, irmãos, Deus quer que mostremos o fervor com o qual nos voltamos para ele, primeiro nas penas, depois no amor e na oração contínua, e então ele próprio nos abrirá o caminho da salvação. Ora, é claro que para chegar ao céu não existe outro caminho do que a perfeita hesíquia, a fuga de todo mal, a aquisição dos bens, o amor perfeito a Deus e a união com ele na santidade e na justiça; se alguém chegar a isto, se elevará rapidamente ao coração celeste. Mas é absolutamente necessário que quem deseja se elevar a estas alturas mortifique seus membros que estão sobre a terra [18]. Com efeito, quando nossa alma se regozija na contemplação do bem verdadeiro, ela já não se volta para nenhuma das paixões que conduzem ao prazer. Mas, dando as costas a toda fruição do corpo, com um intelecto puro e sem manchas, ela recebe a graça de Deus”. 1505
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“Assim, estejamos atentos, submetamos nossos corpos às provações e purifiquemos nossas almas, a fim de fazermos de nossas almas a moradia de Deus e a fim de cumprirmos sem falta seus divinos mandamentos. E ele próprio, no futuro, nos ensinará a guardar com segurança suas leis, enviando-nos como raios de sol suas próprias energias, pela graça do Espírito Santo que ele depositou em nós. Pois é pelas penas e pelas provações que devemos purificar a imagem que fez de nós seres dotados de razão, capazes de receber a compreensão e a semelhança de Deus, trazendo em nós os sentidos puros e sem mancha, de certo modo forjados na fornalha das provas e transformados com vistas à dignidade real. Foi para que ela participasse de todos os bens que Deus criou a natureza humana capaz de contemplar pelo intelecto os coros dos anjos, os esplendores das Dominações, as Potestades e os Principados, os Exércitos, a luz inacessível e a glória que brilha acima de tudo”.
“Quando você conseguir alcançar com sucesso uma virtude, não se volte contra seu irmão pensando que você obteve aquilo em que ele foi negligente: este é o começo do orgulho. Com toda sua força, evite fazer o que quer que seja para agradar aos homens. Se você combate a paixão, não perca a coragem. Se a guerra persistir, não relaxe. Levante-se, atire-se diante de Deus e diga com todo o coração como o Profeta: ‘Senhor, julgue os que me ultrajam [19], pois eu nada posso contra eles’. E ele, vendo a sua humildade, lhe enviará depressa o seu socorro. Quando você caminhar na companhia de alguém, recuse qualquer 1507
[17] Cf. Provérbios 4: 23. [18] Cf. Colossenses 3: 5. [19] Cf. Salmo 34 (35): 1.
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conversa vã. Continue dando ao seu intelecto seu trabalho espiritual, a fim de que este se torne para ele um bom costume e o esquecimento dos prazeres do mundo, alcançando assim o porto da impassibilidade”.
Depois de ter instruído o irmão com estas e outras palavras, despediu-se dele. Pouco tempo depois, este voltou para conversar com ele, começando por esta questão: “Pai, que fazer? Durante minha liturgia noturna o sono me ataca e não me permite orar com sobriedade e vigilância, nem mesmo velar. Sinto vontade de fazer trabalhos manuais quando salmodio”. Ele respondeu: “Quando você orar com sobriedade e vigilância não realize trabalhos manuais. Mas se você for tomado de acídia, reaja um pouco ameaçando o pensamento, e atire-se ao trabalho manual”.
O irmão lhe disse ainda: “Você mesmo não é acossado pelo sono durante sua liturgia?”. Ele lhe respondeu: “Miseravelmente. Mas se o sono me ameaça um pouco, eu reajo e começo por dizer uma passagem do Evangelho de João, voltando para Deus o olhar do intelecto, e logo o sono se dissipa. Faço o mesmo com os pensamentos: quando eles chegam, vou ao seu encontro como um fogo, com lágrimas, e eles se dissipam. Você ainda não pode estar armado desta maneira, mas mantenha sempre a meditação secreta e as preces cotidianas formuladas pelos santos Padres, ou seja, as horas terceira, sexta, nona e as vésperas. E esforce-se por cumprir as liturgias noturnas, evitando com todas as suas forças de fazer o que seja para agradar aos homens, bem como evitando toda aversão aos seus irmãos. A fim de não se separar de Deus. Esforce-se por guardar seu intelecto sem distração e cuidadosamente voltado para os pensamentos interiores. Quando você estiver na igreja e for comungar os mistérios divinos [20] de Cristo, não tome nenhuma iniciativa antes de sentir em si mesmo a perfeita paz. Permaneça em pé no mesmo lugar e não saia daí até o fim. Considere que você está no céu e que vai ao encontro de Deus com os santos anjos e que vai recebê-lo em seu coração. Prepare-se com grande temor e tremor para não tomar parte indignamente das santas Potências”. 1508
Depois de ter armado o irmão com estas palavras e tê-lo confiado ao Senhor e ao Espírito de sua graça [21], ele o despachou. 1509
O irmão que vivia com ele contava também o seguinte: “Um dia, quando eu estava sentado perto dele, perguntei se ele havia sido provado pelas agressões dos demônios quando estava no deserto. Ele me disse: Irmão, perdoe-me. Se Deus permitisse que sobre você caíssem as tentações que eu recebi do diabo, receio que você não teria suportado tal amargor. Tenho setenta anos, ou quase isto. Passei a maior parte de minha vida entre tentações, morei em diferentes desertos na mais extrema hesíquia, fui tão provado e sofri tantas tentações que é inútil descrever seu amargor aos que ainda não receberam a experiência da hesíquia. Nas tentações, era assim que eu sempre agia: entregava toda minha esperança a Deus, com quem eu me engajara para renunciar ao mundo. Logo ele me livrava da angústia. É por isso, irmão, que eu já não me ocupo de mim mesmo: pois eu sei que ele se preocupa comigo, e assim suporto com mais facilidade as provações que me sobrevêm. De mim, só trago uma coisa: a prece contínua [22]. Eu sei que os infortúnios crescem na medida em que quem os suporta recebe mais e mais coroas. Este é um pacto perante o Justo. 1510
[20] O sacramento da Eucaristia. [21] Cf. Atos 20: 32. [22] Cf. I Tessalonicenses 5: 17.
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“Assim sendo, se você sabe disto, irmão, não caia na negligência. Você sabe que permanece combatendo em meio à batalha e que numerosos são os que combatem por nós o inimigo de Deus. Pois como seria possível que ousássemos encarar um adversário tão terrível de nossa raça, se a direita do Verbo de Deus não nos sustentasse com toda a sua força, envolvendo-nos e nos cobrindo de solicitude? Como poderia a natureza humana escapar das armadilhas que lhe coloca o inimigo? Com efeito, foi dito: ‘Quem abrirá suas vestes? Quem penetrará nas dobras de sua couraça? De sua boca saem chamas ardentes e brotam braseiros de fogo. Uma fumaça levanta-se de suas narinas, como cinzas fumegantes ou brasas de fogo. Seu sopro são brasas. Uma chama se ergue de sua boca. No seu pescoço reside sua força. Diante dele corre a perdição. Seu coração é duro como pedra, inflexível como uma bigorna. Ele faz o abismo ferver como uma chaleira. Ele agita o mar como se fosse um vidro de perfume. Ele conduz o cativo às profundezas abissais. Ele enfrenta tudo que se ergue, ele que reina sobre tudo o que existe nas águas [23]’. É contra ele que lutamos, irmão: este tirano com tanto poder, conforme descrito na Escritura. Mas àqueles que assumem a vida solitária como se deve é fácil vencê-lo, nada possuindo de seu, renunciando ao mundo, trabalhando as virtudes com sucesso, nelas conduzindo Aquele que combate por nós. Com efeito, diga-me: quem, depois de se ter aproximado do Senhor e de ter aberto seu intelecto ao temor de Deus, não foi transformado em sua natureza? E quem, depois de se ter iluminado sob a chama da lei e das obras de Deus, não viu cumulada de luz sua alma, e não a preparou assim para irradiar as reflexões e os pensamentos divinos? Este não a deixa estéril, pois ela agora traz a Deus consigo, Deus que leva o intelecto a buscar a luz insaciavelmente. Se esta alma não cessa de agir assim, o Espírito não permite que ela se esgote nas paixões. Ela agora é como um rei: ela opõe aos seus adversários seu sopro poderoso e terrível, despedaça inexoravelmente e jamais bate em retirada. Pela ação ela ergue as mãos para o céu e pela prece do intelecto ela obtém a vitória no combate”. 1511
O mesmo irmão contava ainda: “O abade Filemon, além de outras virtudes, havia adquirido esta: ele jamais se permitia escutar propostas insignificantes. Se alguém, por desatenção, lhe falava de algo que não objetivava o bem da alma, ele simplesmente não lhe respondia. E se eu partisse para uma missão, ele não perguntava: ‘Porque você está partindo?’. Quando eu regressava, ele não indagava: ‘Porque você partiu?’, ou: ‘Como?’, ou: ‘O que você foi fazer?’. Um dia, precisei ir a Alexandria de barco, e de lá fui até a rainha das cidades [24] por negócios da igreja. Resolvido o assunto com os piedosos irmãos que lá se achavam, ali permaneci, sem enviar nenhuma notícia ao servidor de Deus. Depois de ter passado em Constantinopla por um tempo bastante longo, retornei a Sceta para junto de Filemon. Ele ficou feliz de me ver, me abraçou, fez uma oração e se sentou, mas não me perguntou nada e permaneceu mergulhado em sua contemplação”. 1512
“Uma vez quis pô-lo à prova: passei muitos dias sem lhe levar o pão para comer. Mas ele não me procurou nem disse nada. Então fiz uma metanias e lhe disse: ‘Faça-me uma caridade, Pai, e me diga: você não ficou aflito por não ter eu lhe trazido o pão como de costume?’ Ele respondeu: ‘Perdoe-me, irmão. Se durante vinte dias você não me trouxesse o pão para comer, mesmo assim eu não lhe pediria. Pois, pelo tempo que suportasse minha alma, suportaria meu corpo”. A este ponto ele estava tomado pela contemplação do verdadeiro bem”.
[23] Jó 41: 5-26. [24] Constantinopla.
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Ele dizia: “Depois que cheguei a Sceta não mais permiti que meu pensamento deixasse a cela. Não pensei em outra coisa senão no temor a Deus e na geena no século por vir. Lembrei-me do julgamento que ameaça os pecadores, do fogo eterno e das trevas exteriores, e de como as almas dos pecadores serão separadas das dos justos, e de quais bens serão reservados aos justos, recebendo cada qual seu salário de acordo com o que fez [25]: um, pelo acúmulo de suas penas; outro, por sua compaixão e amor sem hipocrisia; outro, por sua pobreza e sua renúncia ao mundo inteiro; outro, por sua humildade e sua profunda hesíquia; outro, por sua extrema submissão; outro, por sua hospitalidade. Quando eu reflito sobre tudo isso, não deixo mais nenhum pensamento agir em mim e já não posso estar com os homens nem permitir que meu intelecto se ocupe deles, a fim de não me separar dos pensamentos mais divinos”. 1513
Ele acrescentava a história de um eremita: “Ele alcançou a impassibilidade e recebia da mão de um anjo o pão que o alimentava. Mas, por sua negligência, ele perdeu esta honra. De fato, quando uma alma relaxa pouco a pouco a concentração e a tensão do intelecto a noite toma conta dela. Pois aonde não brilha Deus, tudo escoa nas trevas, e a alma já não é capaz de ver a Deus e de tremer às suas palavras. ‘Eu sou um Deus próximo, disse o Senhor, e não um Deus distante. Se um homem se esconde em segredo, não o verei? Será que eu não preencho o céu e a terra, diz o Senhor?’ [26]”. 1514
Ele evocava as lembranças de tantos outros que haviam passado pelas mesmas provas. Também lembrava a queda de Salomão, que depois de haver recebido tamanha sabedoria e ter sido glorificado por todos – pois era como a estrela da manhã que se levanta na aurora, iluminando todos os seres com a claridade de sua sabedoria – por um pequeno prazer perdeu sua glória [27]. Devemos, portanto, temer a negligência. É preciso orar continuamente [28], para que nenhum outro pensamento venha a nos separar de Deus nem tome lugar em nossa inteligência. Pois o coração puro inteiramente tomado pelo Espírito Santo vê como toda pureza, como num espelho, Deus por inteiro. 1515
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“Quando escutei estas suas palavras, disse o irmão, compreendi que por suas próprias obras as paixões da carne já não trabalhavam nele. Ele desejava absolutamente o melhor, a ponto de o vermos sempre transformado pelo Espirito, exalando suspiros inefáveis [29], voltado para si mesmo, pesando a si mesmo e lutando para que nele não entrasse fosse lá o que fosse para turbar a pureza de sua reflexão e que, contra sua vontade, pudesse lhe ser prejudicial”. 1517
“Vendo isso tudo, disse o irmão que vivia com ele, eu o pressionava todo o tempo, excitado por imitar tantas marcas de virtude, e lhe fazia numerosas perguntas. Eu lhe dizia: ‘Como posso adquirir como você um intelecto puro?’. Ele respondia: ‘Vá, trabalhe penosamente. É preciso que o coração trabalhe e pene. Não é quando dormimos e estamos deitados que nos chega aquilo que é digno de nosso esforço e de nossas penas. Nem os bens terrestres vêm às pessoas sem penas. Quem quer alcançar o progresso [25] Cf. I Coríntios 3: 8. [26] Jeremias 23: 23-24. [27] Cf. I Reis 11: 1-11. [28] Cf. I Tessalonicenses 5: 17. [29] Cf. Romanos 8: 26.
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espiritual deve antes de tudo renunciar à suas próprias vontades, ter em si constantemente o luto e a pobreza, não prestar atenção aos pecados dos outros mas apenas aos seus, chorar por eles dia e noite, e não ligar a ninguém por amizade. Pois a alma que é oprimida pelos infortúnios e mortificada pela lembrança de seus pecados anteriores morre para o mundo, e o mundo para ela [30]. Vale dizer que as paixões da carne não mais agem e que o homem está morto para as paixões. Pois quem renuncia ao mundo, que se une a Cristo e se consagra à hesíquia, este ama a Deus, guarda sua imagem e é rico em sua semelhança. Do alto, Deus lhe concede o dom do Espírito: ele se torna morada de Deus e não habitação de demônios, e em Deus ele obtém a experiência das obras justas. A alma purificada da existência e liberta das manchas da carne, nem possuindo mais crostas nem rugas [31], recebe a coroa da justiça e brilha com a beleza das virtudes’. Assim falava ele”. 1518
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“Pois naquele que, no início da renúncia, não traz o luto em seu coração, nele não existem nem lágrimas espirituais, nem memória do castigo sem fim, nem verdadeira hesíquia, nem prece constante, nem salmodia, nem meditação das divinas Escrituras: ele não tem o hábito desta ascese, que faz com que o intelecto, mesmo que ele não queira, o obrigue a praticá-la na continuidade da paciência. O temor a Deus domina seus pensamentos, mas ao mesmo tempo este homem repousa na amizade do mundo e não é capaz de adquirir a pura inteligência na oração. Pois a piedade unida ao temor de Deus purifica a alma das paixões, predispõe o intelecto para a liberdade, leva-o à contemplação natural, permite que ele se aplique à teologia que recebe como a própria imagem da beatitude, cujas garantias ele confia aos teólogos aqui de baixo, enfim, ele a guarda em paz”.
“Dediquemo-nos com todas as nossas forças ao trabalho ativo por meio do qual somos conduzidos à piedade, que é a pureza do intelecto, cujo fruto é a contemplação natural e teológica. Pois a ação é a via de acesso para a contemplação, como o afirmou uma inteligência penetrante e inteiramente teológica [32]. Portanto, se negligenciarmos a ação, ficaremos desprovidos de toda filosofia. Mesmo que alguém tenha alcançado o mais alto cume da virtude, ele precisará das penas da ascese para colocar um freio nos impulsos desordenados do corpo e guardar atentamente os pensamentos. Desta maneira dificilmente conseguiremos nos tornar morada de Cristo. Pois na medida em que aumenta em nós a justiça aumentanos também a coragem espiritual. E o intelecto que se tornou perfeito se une inteiramente a Deus, cercado do esplendor da luz divina, e descobre os segredos indizíveis dos mistérios. Ele então aprende em verdade onde está o entendimento, onde está a força, onde está a compreensão de todas as coisas, onde estão a longevidade e a vida, onde está a luz dos olhos e a paz [33]. Com efeito, enquanto ele estiver ocupado em combater as paixões, não terá tempo de usufruir destes bens. Pois as virtudes e os vícios tornam o intelecto cego [34]. Os vícios, para que ele não veja as virtudes; e as virtudes, para que ele não veja os vícios. Mas quando lhe é concedido colocar fim à guerra e se torna digno dos carismas espirituais, ele se torna inteiramente luminoso, permanece constantemente sob o efeito da graça, firme na contemplação espiritual. Este homem já não estará ligado às coisas aqui de baixo, mas terá passado da morte para a vida [35]”. 1520
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[30] Cf. Gálatas 6: 14. [31] Cf. Efésios 5: 27. [32] Gregório de Nazianze, Discursos IV, 133. [33] Cf. Baruq 3: 14. [34] Cf. Evagro, Tratado Prático 62. [35] Cf. João 5: 24.
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TI, VIII – ABADE FILEMON – Discurso muito útil.
“Quem se aproxima da vida consagrada e que se dirige para Deus, deve ter o coração casto e a boca pura, a fim de que a palavra pura que sai de sua boca possa louvar a Deus condignamente. Pois s alma unida a Deus conversa com ele continuamente”.
“Irmãos, queiramos alcançar este cume de virtudes, não permaneçamos agarrados à terra por causa das paixões. Pois quem combate, que consegue se aproximar de Deus, que participa da santa luz, que é abençoado pelo desejo que sente por ela, desfruta no Senhor de uma alegria espiritual inconcebível. Como diz o salmo divino: ‘Deleite-se também no Senhor, e ele concederá os desejos do seu coração; ele fará sobressair a sua justiça como a luz, e o seu juízo como o meio-dia [36]’. De fato, qual desejo da alma é tão violento e insuportável quanto aquele que Deis concede à alma purificada de todo mal e que diz com o coração verdadeiramente voltado para ele: ‘Eu desfaleço de amor [37]’? Os relâmpagos da beleza divina são inteiramente indizíveis e inexplicáveis. A palavra não os descreve, os ouvidos não os recebem. Mesmo que pudéssemos invocar a beleza da estrela da manhã, o clarão da lua, a luz do sol, todas estas coisas nada são comparadas a esta glória, e estão tão distantes da verdadeira luz como uma noite profunda ou a mais espessa treva está do brilho puro do meio-dia. É isto que Basílio, tão admirável em seus ensinamentos, recebeu por experiência e ensinou, e nos transmitiu [38]”. 1524
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Tudo isto nos contou o irmão que com ele vivia. Mas quem não se admiraria deste traço dele, que nos dá outra grande prova de sua humildade? Muito depois que ele havia sido considerado digno do sacerdócio e alcançado os bens celestes por sua conduta e seu conhecimento, ele fugia da majestade das divinas hierurgias [39] a tal ponto que, durante a maior parte dos anos que durou o combate de sua ascese, ele jamais aceitou se aproximar da Santa Mesa. E ele ainda fugia da comunhão aos mistérios divinos. Ele vivia com tanto rigor que não comungava depois de ter conversado com os homens, mesmo que não tivesse dito nada de terrestre e que tivesse tido a conversa pelo bem daqueles que lhe pediam a palavra. Se ele tinha que comungar dos divinos mistérios, ele suplicava a Deus por preces, salmodias e confissões. Ele tremia à voz do padre, quando este chamava para a comunhão e exclamava: “Os santos dons para os santos”. Pois ele dizia que toda a igreja estava cheia com os santos e anjos e com o Rei dos Exércitos em pessoa, que celebrava misteriosamente e se transformava em nossos corações em corpo e sangue. Por isso, ele dizia: “É preciso ousar – com castidade e pureza, como se estivéssemos fora da carne, sem hesitar nem duvidar – entrar na comunhão dos puríssimos mistérios de Cristo, a fim de participar da iluminação que provém destes mistérios. Dentre os santos Padres são muitos os que veem os anjos que os guardam. É por isso que eles se mantém em silêncio, guardando-se, e não falam com ninguém”. 1527
Ele ainda dizia que, se tivesse que vender ele próprio o trabalho de suas mãos, ele se colocaria, fazendo-se de louco, de medo que, a custa de falar e responder, proferisse uma mentira, ou um juramento, ou uma vanglória, ou qualquer outra espécie de pecado. Quem quisesse adquirir o fruto de seu trabalho recebê-loia dele e lhe daria o quanto quisesse. Ele confeccionava coroas. E este homem verdadeiramente filósofo recebia com gratidão aquilo que lhe davam, sem dizer palavra.
[36] Salmo 36 (37): 4, 6. [37] Cânticos 5: 8. [38] São Basílio, Grande Regra 2. [39] A celebração dos mistérios de Deus.
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TEOGNOSTES
Se o bem-aventurado Teognostes, pai dos presentes capítulos, foi Alexandrino e exegeta como diz Photius, ou qualquer outra coisa, e em que tempo viveu, não sabemos exatamente. Mas na medida em que podemos reconhecer a árvore por seus frutos, ele foi um homem engajado na ação e no conhecimento, e, pela pureza de sua vida obteve em si a graça do Espírito Santo. Com o intelecto iluminado pelos esplendores aos quais está naturalmente ligada a revelação do todo e, qual um instrumento, inspirado pelos sopros da vida, ele cantou os presentes capítulos como uma melodia harmoniosa e sagrada. Pelo efeito da graça e dos significados espirituais destes capítulos, ele encanta o entendimento e a inteligência dos leitores e os conduz ao zelo prático da ação direita. Assim o extraordinário modo da ação mostra o caminho, e a subida da contemplação é ensinada sem falha. Quem é, e quem deve ser aquele que honra o cargo de sacerdote, isto é ensinado com precisão em cada uma destes capítulos. Para os que buscam também as penas da ascese esta obra é de grande valia moral: ela suscitará neles a nepsis, uma sobriedade e uma vigilância salutares.
*
“Se você quiser ser conhecido por Deus, seja desconhecido pelos homens”, escreve Teognostes no primeiro dos seus sessenta e quatro capítulos. Estaria ele pensando em si mesmo? Seu nome significa “conhecido de Deus”. Mas ignoramos, senão como, mas com quem, onde e quando ele viveu. Mas ele cita João Damasceno: portanto, ele não viveu antes da segundo metade do século VIII. É possível que ele tenha sido um destes padres letrados que, do século IX ao XII asseguraram a Constantinopla a transição entre os últimos místicos bizantinos e os Sinaítas, a quem ele seguia talvez de perto, talvez de longe. Que o vigésimo quinto capítulo de João de Cárpatos, próximo dos Sinaítas, esteja inserido tal e qual no vigésimo sexto capítulo da obra de Teognostes, poderia ser um sinal nesse sentido, mas não uma prova. Seria igualmente possível, a considerar seu testemunho, situá-lo entre os contemporâneos de Gregório Palamas, mas também aí nada existe de comprobatório. Resta a obra em si, breve, sólida e densa, inteiramente consagrada aos dois estado limítrofes da vocação cristã.
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O primeiro é a pleroforia, a plena certeza da visão de Deus, aqui e agora. Esta experiência oculta e esta questão colocada atravessam de parte a parte da longa história do monaquismo que jamais deixou de ser trabalhado pela única necessidade do segundo nascimento: a passagem do criado ao incriado, impossível para o homem (que deve “se apagar”), mas possível a Deus, por meio de Cristo e do Espírito Santo. É isto que significa Teognostes. A pleroforia participa do paradoxo evangélico: “Quanto mais você descer, mais se elevará”, diz ele. Os caminhos de aproximação indicados aqui – a renúncia, a humildade (“desça ao abismo da humildade”), a hesíquia, a impassibilidade, a temperança, a prece do coração, a pureza, a morte – não têm senão um objetivo: polir o espelho no qual a imagem de Deus em nós pode receber, pela graça do Espírito Santo, a incandescência do incriado.
O segundo estado limite é o sacerdócio, tratado nos capítulos de 13 a 21, 49 a 60, 70 a 74. Teognostes coloca em alto lugar a consciência do sacerdote, tão alto que ela se une na origem do mundo ao próprio ato de amor a Deus, à sua descida e sua imolação. O sacerdote, para Teognostes, não é o sacrificador senão na medida em que é também, e acima de tudo, a imagem do Cordeiro. “Aniquile a si mesmo, diz ele, como o cordeiro enviado à imolação, considerando que todos estão em verdade acima de você”. Teognostes identifica pura e simplesmente a vocação sacerdotal à vocação monacal. Tornar-se sacerdote, para ele, equivale a se engajar em levar uma vida semelhante à dos anjos. Ele encabeça a hierarquia da santidade: o contrário da hierarquia do mundo. Assim, o sacerdócio, como a pleroforia, se situa no fundo na ordem do impossível, onde somente Deus pode agir.
A plena certeza da visão de Deus e a celebração eucarística tornam-se aqui as duas faces de um testemunho comum que não poderia ser transmitido abertamente, ostensivamente, mas que deve acontecer, interiormente e como que num vazio, pela via negativa da ascese, sob o duplo selo do mistério e da revelação: o próprio testemunho de Teognostes.
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TI, VIII – TEOGNOSTES – Sobre a ação, a comtemplação e o sacerdócio.
SOBRE A AÇÃO, A CONTEMPLAÇÃO, E O SACERDÓCIO
1. Considere que você terá em si a virtude verdadeira quando tiver desprezado perfeitamente tudo o que existe sobre a terra, guardando seu coração, graças a uma consciência pura, sempre pronta a partir para o Senhor. Se você quiser ser conhecido de Deus, seja desconhecido pelos homens, na medida do possível.
2. Veja as consolações supérfluas do corpo e retire-se delas, para que elas não suprimam nenhuma de suas penas, na medida em que, com toda evidência, o conforto resultante destas consolações penetra então nas penas anteriores, tomando o lugar da impassibilidade. Considere que o mal, para você, não é ser privado das coisas agradáveis, mas desviar-se do melhor por desfrutar destas coisas.
3. Considere-se como uma formiga ou um verme em todos os sentidos, a fim de se tornar o homem criado por Deus. Pois se você não começar por aí, não haverá sequência. Quanto mais você descer, mais se elevará; será quando você se considerar como nada diante do Senhor [1], conforme o Salmista, que você se tornará grande, por ter estado oculto durante algum tempo. E será quando você considerar que nada possui e que nada sabe que você se tornará rico na ação e no conhecimento louváveis no Senhor. 1528
4. Quebre o braço do pecador e do ladrão [2], vale dizer, do prazer e da malícia, dois quais nascem todos os vícios. Quebre-os por meio da temperança e da inocência trazida pela humildade, a fim de que nada seja encontrado em você, se uma nobre palavra lhe pedir conta de seus pecados, no momento em que suas obras forem examinadas. Pois as faltas são aniquiladas quando, odiando as causas que fizeram com que as tenhamos cometido, nos dedicamos a combatê-las: assim substituímos a primeira derrota pela vitória última. 1529
5. Nada é melhor do que a prece pura, de onde, como de uma fonte, jorram as virtudes: a compreensão e a doçura, o amor e a temperança, o socorro e a consolação que Deus concede pelas lágrimas. E esta é a beleza desta prece: a concentração se concentra nela apenas nas suas palavras e nos seus pensamentos. Tal é igualmente a insaciável e contínua tensão que a leva a descobrir o divino, quando o intelecto, seguindo as pegadas de seu próprio Mestre através da contemplação dos seres e buscando com um desejo ardente, sedento, encontrar e ver o invisível, ou, contemplando as trevas, sua retirada [3], se volta outra vez para si mesma, recolhida com toda piedade, pois neste instante ela se contenta com a contemplação que lhe é revelada para seu bem e que a consola. E ela tem toda a esperança de alcançar aquilo que ela deseja, 1530
[1] Cf. Salmo 38 (39): 5-6. [2] Salmo 9: 36. [3] Cf. Salmo 17 (18): 12.
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TI, VIII – TEOGNOSTES – Sobre a ação, a comtemplação e o sacerdócio.
quando se cumprirem as profecias, e aquilo que ela imaginava no meio das sombras, como num espelho e por enigmas [4], e que ela verá continuamente face a face com toda pureza. 1531
6. Retire-se das mais altas contemplações se você ainda não atingiu o cume da impassibilidade, e não corra a buscar, sem poder atingir, aquilo que o ultrapassa. De fato, foi dito: se você quiser se tornar teólogo e contemplativo ao mesmo tempo, eleve-se pela vida que você leva e adquira por meio da purificação aquilo que é puro. E, como eu mencionei a teologia, vele para não se estender ao infinito sobre a sua altura, e considere que não é permitido aos que ainda bebem o leite das virtudes [5] tentar voar nestas alturas, para que não despenquem como passarinhos imperfeitos, mesmo que o mel do conhecimento excite o desejo. Mas quando, purificados pela castidade e pelas lágrimas, formos elevados da terra como Elias [6] ou Habacuque [7], anunciando então ao arrebatamento em meio às nuvens [8], e quando encontrarmos Deus estando fora de nossos sentidos pela oração pura, contemplativa e desembaraçada de toda distração, então talvez desabrochemos de algum modo a teologia. 1532
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7. Se você deseja se tornar digno da visão e da aparição divinas no espírito, primeiro abrace a vida pacífica da hesíquia. Assim desembaraçado, conheça a si mesmo e conhecerá a Deus. Pois se isto acontecer, nada impedirá que, como numa leve brisa, no estado puro que nenhuma paixão pode perturbar, seja visto em seu intelecto Aquele que é invisível a todos e que lhe anunciará a boa nova da salvação por uma manifestação altíssima de seu conhecimento.
8. Quando acaba de ocorrer o relâmpago, logo esperamos pelo trovão. Da mesma forma, onde brilha a reconciliação divina, a tempestade das paixões se acalma. E quando isto acontece, com quem atingiu esta conciliação estará também a garantia, a beatitude do Reino. Mas não há piedade divina nem esperança de impassibilidade numa alma que ama o mundo mais do que o Criador, que tem um gosto apaixonado pelas coisas visíveis e que agarra totalmente aos prazeres e ao desfrute da carne.
9. Não busque no intelecto o que pode ser o divino, nem onde ele está. Pois ele está acima do ser e não depende de lugar, uma vez está acima de tudo. Reflita apenas em você, como num espelho, na medida do possível, Deus o Verbo circunscrito em nossa natureza, irradiando luz em sua natureza divina e simbolizando num lugar Aquele que está em toda parte, pois a Divindade é infinita. Enquanto isto, quanto mais você se purificar, mais se tornará digno de iluminação.
10. Se você está tomado pelo conhecimento e pela indubitável certeza da salvação, dedique-se sabiamente a romper os laços passionais que ligam a alma ao corpo e, despojando-se de sua tendência para as coisas materiais, desça ao abismo da humildade: lá você encontrará a pérola preciosa [9] de sua salvação, 1536
[4] Cf. I Coríntios 13: 12. [5] Cf. I Coríntios 3: 2. [6] Cf. II Reis 3: 2. [7] Cf. Daniel 14: 36. [8] Cf. I Tessalonicenses 4: 17. [9] Cf. Mateus 13: 46.
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escondida no conhecimento divino como numa concha e anunciando antecipadamente o esplendor do Reino de Deus.
11. Quem chegou à submissão do intelecto sujeitando a carne ao espírito não precisa de submissão humana. Pois este homem se submete à palavra e à lei de Deus, como um sujeito reconhecido. Mas nós, em quem o corpo combate a alma e lhe faz guerra, devemos nos submeter, entregando-nos a alguém que nos comande e nos dirija, segurando o leme com ciência e buscando o melhor, a fim de que não sejamos destruídos pelos adversários espirituais nem engolidos pelas paixões por nossa falta de experiência.
12. Quando você não está perturbado por nenhuma paixão e o desejo divino cresce em seu coração, quando, considerando-a como um sono, você não teme a morte e ao contrário deseja a dissolução, então você terá adquirido a garantia da salvação e fará retornar para você o Reino dos céus [10], regozijando-se numa alegria indizível. 1537
13. Se você foi considerado digno do sacerdócio divino e venerável, você se colocou na obrigação de ser imolado pela morte das paixões e dos prazeres e de assim ousar se juntar ao sacrifício vivo e terrível, se não quiser ser totalmente consumido pelo fogo divino como uma matéria inflamável. Pois se o serafim não ousou tocar sem pinças a brasa divina [11], como tocaria você esta brasa sem a impassibilidade, por meio da qual você terá sacrificado sua língua, pela qual seus lábios terão sido purificados, sua alma e seu corpo terão se tornado castos e suas próprias mãos se terão tornado mais brilhantes do que o ouro, como servidores do fogo e da vítima mais elevada do que o ser? 1538
14. Compreenda bem a força do que está dito aqui: você é iniciado a cada dia nesta salvação de Deus, que o velho Simeão viu de uma vez por todas: ele ficou maravilhado e pediu ao Mestre que o deixasse ir em paz [12]. Mas se você não recebeu do Espírito Santo ser um mediador entre Deus e os homens, como se fosse igual aos anjos, não se arrisque temerariamente a celebrar a terrível e pura iniciação aos mistérios divinos, esta iniciação reverenciada pelo anjos e que, por sua pureza sem mistura, muitos santos recusaram com toda piedade. Não tenha essa audácia, para não ser destruído como Ouza [13], por haver dissimulado o bem. 1539
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15. Vigie a si mesmo, como disse o Senhor, a fim de que, mesmo tendo recebido sobre si, talvez por fraqueza, alguma mancha, seja esta consumida pelo fogo divino, e que você possa sempre transportá-la para além dos seus pecados anteriores. Pois assim você será capaz de transformá-la na natureza da prata ou na natureza do ouro, como um vaso de eleição, útil, puro e digno de tal vítima, ainda que alguns vasos sejam de madeira ou barro, desde que, em sua liberdade, você tenha o pendor divino em você. Pois onde Deus está pronto a escutar, não há obstáculos na transformação disto naquilo. [10] Cf. Lucas 17: 21. [11] Cf. Isaías 6: 6. [12] Cf. Lucas 2: 29. [13] Cf. II Samuel 6: 6-8.
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16. Considere o tamanho da honraria, semelhante à dos anjos, da qual você foi considerado digno, e esforce-se por meio de todas as virtudes e de toda pureza, para se manter no grau de dignidade para o qual você foi chamado e aí permanecer intocável. Pois você sabe de que altura caiu Lúcifer em seu orgulho. Não sofra a mesma coisa se glorificando, mas considere que você é terra e cinzas [14], impuro e cão, e se lamente continuamente de ter sido inteiramente considerado digno de ser chamado à comunhão e ao parentesco divinos por seguir o caminho sobre o qual os santos cumpriram a terrível celebração, pelo indizível amor que Deus dedica ao homem e por sua inefável bondade. 1541
17. O homem que se consagra deve se manter puro de todas as paixões, em especial da prostituição e do ressentimento, e não se abandonar à imaginação, para não ter o rosto destruído ou coberto de alcatrão quando tocar o corpo real, e não ser odioso e execrável.
18. Tornado acima de tudo mais branco do que a neve pelos flocos das lágrimas, com a consciência alva de pureza, agarre-se aos santos, como um santo, deixando transparecer a beleza interior da alma sob a brancura exterior semelhante aos anjos. E na celebração dos mistérios divinos, vigie para não ser investido apenas pela tradição dos homens, mas para que, de maneira oculta e misteriosa, a graça esteja em você, permitindo-lhe conhecer as coisas mais elevadas.
19. Se você foi tomado pela incorruptibilidade e a imortalidade, procure na fé, com veneração e piedade, aquilo que vivifica e não se altera, desejando partir daqui, pois, pela fé você chegou ao objetivo. Mas se você teme a morte, é porque você ainda não se uniu por amor a Cristo, cujo sacrifício você se tornou digo de celebrar com suas mãos, e de cuja carne você se sacia. Pois se você foi tomado pela incorruptibilidade, é porque você se esforçou para ir aonde se encontra o Bem-Amado, já não mais levando em nenhuma consideração a vida e a carne.
20. Tornando-se sacrificador e participando da carne de Deus pela comunhão, você deve se tornar da mesma natureza que ele e assimilar-se à sua morte [15], não vivendo mais para si mesmo, como diz o Apóstolo, mas para aquele que foi crucificado e que morreu por você [16]. Mas se, por causa da carne e do mundo, você vive de maneira passional, prepare-se, através da morte, para um castigo eterno se você não se detiver espontaneamente antes da celebração do sacrifício incruento. Pois muitos dos que celebraram indignamente o sacrifício aqui em baixo, levados por uma morte súbita, foram enviados à Geena no além. 1542
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21. Um sacerdote, que era monge ao mesmo tempo, tinha uma reputação de piedade e era honradamente considerado por sua aparência exterior; mas por dentro era secretamente sujo e debochado. Certa vez, quando ele celebrava a Divina Liturgia e se aproximava do Canto dos Querubins, ele se aproximou inclinando a cabeça diante da santa Mesa, conforme o costume, e começou a ler em voz alta: “Ninguém é digno”; neste instante, caiu morto: sua alma o havia deixado neste estado. [14] Cf. Gênesis 18: 27. [15] Cf. Romanos 6: 5. [16] Cf. Gálatas 2: 20.
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22. Nada é melhor do que uma palavra e um conhecimento retos, pois é daí que nascem o temor e o desejo por Deus. O temor purifica a piedade e o aquietamento. O desejo leva à perfeição pela iluminação e o discernimento, e arrebata o intelecto às alturas pela contemplação suprema e pela elevação. Sem o temor é impossível ser transportado para o amor divino, é impossível voar graças a ele para aquilo que se espera e naquilo em que se deseja repousar.
23. Se você me crê, você que deseja a salvação ardentemente e que para alcançá-la corre até obtê-la, cansando-se na sua busca, pedindo sem descanso e batendo com paciência [17] até encontrá-la, depois de ter construído uma fé sólida e uma humildade que sejam como que uma fundação sob seus pés: você obteve o que desejava, não apenas quando conseguiu a remissão de seus pecados, mas quando já não sente apreensão nem teme mais o levante de nenhuma paixão, tendo se separado da carne sem medo e com toda segurança. 1544
24. Peça, vertendo muitas lágrimas, para receber uma plena certeza, mas não antes do fim, se você for humilde, para não ser desprezado depois por seu descuido. Naquele momento, peça para se encontrar perto da morte e poder alcançá-lo, a fim de não perder aquilo que você deseja, por ser um ridículo presunçoso em sua suposta segurança, quando vier o tempo que você espera. E aonde iria você, infeliz, sem garantia e sem a plena e indubitável certeza que só o Espírito concede?
25. Você que está imbuído da impassibilidade deificante, descubra antes pela obediência e pela humildade aquilo que deseja, a fim de não se fatigar passando por outro caminho. Não possui a impassibilidade aquele que ora é perturbado pelas paixões ora está calmo e repousado, mas aquele que desfruta continuamente desta impassibilidade, que permanece sem balançar diante das causas presentes das paixões e aquele, por excelência, não se perturba nem como o pensamento das paixões.
26. [18] Combatendo e injuriando, o inimigo penetra destemidamente na alma que saiu do corpo, e se faz acusador amargo e terrível de suas faltas. Mas mesmo que em outros tempos a alma tenha sido muitas vezes ferida por pecados, podemos ver agora a alma que ama a Deus não mais atingida pelos assaltos e as ameaças do inimigo, mas antes confortada no Senhor, elevando-se em alegria como sobre asas, encorajada pelas santas potências que a conduzem, cercada pela luz da fé e replicando ao maligno com toda segurança: “O que existe entre você e nós, desertor dos céus e mau servidor? Você não tem nenhum poder sobre nós. Somente Cristo, o Filho de nosso Deus e Deus do universo, tem este poder. É contra ele que pecamos, será diante dele que responderemos, tendo como garantia sua misericórdia por nós, e como salvação sua cruz preciosa. Quanto a você, miserável, fuja para longe de nós: não existe nada entre você e os servidores de Cristo”. Quando a alma disser estas palavras resolutamente, o diabo dar-lhe-á as costas, lamentando-se e gritando, incapaz de suportar o nome de Cristo. De pé sobre o inimigo, a alma pisará nele e lhe baterá como faz ao corvo o “oxyptero [19]”, pássaro de asas rápidas. Neste momento a alma é reconhecida pelos anjos divinos e pode se regozijar no lugar que lhe foi assinalado na medida de seu estado. 1545
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[17] Cf. Mateus 7: 7. [18] Este parágrafo repete quase textualmente João Cárpatos, Exortação aos monges da Índia, 25. [19] Literalmente: “de asas rápidas”
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27. O desejo pelas coisas que passam não o arrastará para baixo, para a terra, se você imaginar as coisas do céu. Mas se um pendor passional pelas coisas da terra o prender a ela, você se parecerá com uma águia presa pelas garras numa armadilha, incapaz de voar às alturas. Considere e veja todas as coisas como dejetos [20], na esperança do melhor. E depois de se ter desembaraçado desta carne, quando vier o tempo, siga o anjo de Deus que o buscará. 1547
28. Assim como a moeda que não possui o timbre real não pode ser colocada dentre os tesouros do rei com as peças usuais, também sem conhecimento direito e sem impassibilidade é impossível receber a garantia da beatitude do além, de partir das coisas daqui com segurança e plena certeza para ganhar aquilo que se espera e ser contado entre os eleitos. Chamo de conhecimento não a sabedoria, mas a infalível percepção de Deus e do divino. Assim, aquele que ama a Deus e não é atraído pelas paixões se eleva para a deificação por meio da graça do Espírito.
29. Ainda que você tenha praticado todas as virtudes, não tenha a pretensão de ter alcançado a impassibilidade e de permanecer descuidado neste mundo, para que não tenha dificuldade em partir depois de ter modelado aqui em baixo as formas das paixões. Dirigido continuamente pelo temor, vigie sua natureza versátil e mutante. Na sabedoria, afaste-se das causas das paixões. Pois a impassibilidade eminentemente imutável reside naqueles que alcançaram o amor perfeito, que por meio de uma contemplação contínua ultrapassaram as coisas sensíveis e que atravessaram a humildade ainda em seus corpos. A chama das paixões, extinta pela voz do Senhor [21], já não os abrasa, porque eles já foram transformados no caminho da incorruptibilidade. 1548
30. Não se imagine impassível antes do tempo, a fim de não sofrer o que sofreu o primeiro homem ao comer o fruto prematuro da árvore do conhecimento [22]. Ao contrário, trabalhando pacientemente na via de uma temperança envolvente e um prece contínua, guardando os frutos de seu trabalho pela vergonha de si mesmo e pela extrema humildade, receba a graça da impassibilidade no tempo certo. Depois da grande tempestade e de tanto tumulto, chegue ao porto do repouso. Pois Deus não é injusto, que feche a porta da impassibilidade aos que caminham retamente. 1549
31. Seja como a formiga em seu rebaixamento e sua negação, ó preguiçoso, você que ainda não foi testado, e aprenda comigo que Deus, a quem nada falta e que transborda, não tem necessidade de nossos bens, mas cumula de benesses abundantes e salva, com sua graça, seus eleitos reconhecidos, mesmo que, em seu amor pelos homens, ele receba os trabalhos que estes fizeram na medida de suas forças. Assim, se você se esforça porque lhe deve bens que antes de você já existiam, você faz bem e está perto da piedade divina. Mas se você considera que é Deus quem lhe deve por causa do bem que você imagina ter feito, você se afastou da via reta. Pois como pode o benfeitor dever? Corra como um servidor assalariado e, progredindo pouco a pouco, você conseguirá o que busca, com a compaixão de Deus.
[20] Cf. Filipenses 3: 8. [21] Cf. Salmo 28 (29): 7. [22] Cf. Gênesis 3: 6.
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32. Quer que eu lhe mostre outro caminho de salvação, ou melhor, de impassibilidade? Incomode o Criador tanto quanto puder com suas orações, não se afaste do objetivo que lhe foi assinalado, continuamente apelando, para chegar a ele, pela mediação de todas as potências celestes, de todos os santos e da Toda Pura Mãe de Deus. Não procure pela impassibilidade se você não for digno deste dom. Mas peça a salvação, trabalhando arduamente, e junto com ela você receberá a impassibilidade. Pois esta é semelhante à prata, mas a salvação é parecida com o ouro puro. E agarre-se tanto quanto puder à obra secreta que serve a Deus e às palavras dos mistérios ocultos junto a ele, estas palavras que o deificam, nas quais o divino se regozija e desce a nós.
33. Esforce-se para receber secretamente em seu coração, com plena e indubitável certeza, a garantia da salvação, para não se perturbar nem se aterrorizar desprevenido no momento da morte. Neste momento, se você não tiver mais um coração que o condena por suas faltas, ainda terá uma consciência que o fustiga por suas provocações. Se, pela graça de Deus, você pôde se libertar da selvageria das paixões brutais, se correrem as lágrimas da consolação, o intelecto rezará com toda pureza e sem nenhuma distração. Então, com o coração pronto, você receberá com doçura a morte terrível da qual a maioria foge.
34. As palavras de vida eterna de Deus o Verbo, conforme o testemunho do corifeu dos apóstolos [23], são as razões daqueles que ele criou, estas razões que o homem iniciado nos seus mistérios possui daí por diante: a vida eterna, a garantia do Espírito e a esperança da salvação, que nada pode confundir. Não é digno disto quem prefere a carne à alma e que tem um pendor passional pelas coisas terrestres. 1550
35. O homem racional não é aquele que se exprime pela palavra; isto, todo homem faz. O homem racional é aquele que, pela razão, busca encontrar a Deus e segue suas pegadas. Ele não encontrará aquilo que o Supra-essencial é em sua essência; pois isto é impossível para qualquer natureza. Mas ele o descobrirá por intermédio da sabedoria criadora dos seres, pela providência e pela direção, a coesão, a conduta e a conservação, nas quais se encontra e nas quais, podemos dizê-lo, se pode ver o artista supremo e de certo modo também o arquiteto, através das obras de suas próprias mãos.
36. Você não acessará convenientemente a despossessão sem a impassibilidade; nem a impassibilidade sem o amor; nem o amor sem o temor e a prece pura; tampouco chegará aí sem a fé e a ausência de cuidados, por meio de quê o intelecto alado rejeita os pensamentos que o assaltam e voa para as alturas e os lugares elevados, à procura de seu próprio mestre.
37. Abrace a pureza como a menina dos olhos, para se tornar o templo de Deus e morada digna de ser amada. Pois é impossível, sem a castidade, conseguir se unir a Deus. Isto é engendrado pelo desejo divino, a ausência de pendores passionais e a fuga do mundo. E a humildade, a temperança, a prece constante, a
[23] Cf. João 6: 68.
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contemplação espiritual, as lágrimas abundantes e a constância da alma conservam a castidade. Mas sem a impassibilidade, você não alcançará a beleza do discernimento.
38. Que ninguém o engane, irmão, dizendo-lhe que se pode ver a Deus independente da santificação de que fala o Apóstolo [24]. Pois o Senhor mais do que puro, que está acima de toda pureza, não aceita aparecer ao impuro. Do mesmo modo como aquele que ama a seu pai ou sua mãe, ou seus filhos e filhas mais do que a ele [25], não é digno dele, também não o é quem ama seja lá o que for de passageiro e material. Com mais razão ainda, não é digno dele quem prefere o pecado infame e pútrido ao amor do Senhor. Pois Deus derruba quem não se desvia da sujeira. O que é corrupto não pode herdar a incorruptibilidade [26]. 1551
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39. Sem o conhecimento, você não será considerado digno do amor divino. E você não será considerado digno do conhecimento sem a fé. Eu chamo de fé não apenas a fé nua, mas a fé que deriva da prática das virtudes. Você alcançará a compunção verdadeira quando, depois de ter subjugado o prazer inato da carne por meio da temperança e das vigílias, da prece e da humildade, se crucificar junto com Jesus [27], não mais vivendo as paixões, mas vivendo pelo Espírito divino e seguindo a esperança da herança do alto [28]. 1554
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40. Clame por Deus: “Veja por que eu reconheço sua benevolência: meu inimigo já não se rejubila sobre mim [29], ele que, por meio das paixões, me tiraniza e me ultraja. Mas para que você me resgate de suas mãos antes da morte, depois de ter me tornado digno de viver espiritualmente, conforme lhe apraz, possa você, para um bom final, me conduzir diante de seu Trono, salvo e trazendo, graças à sua compaixão, a garantia da salvação e da plena e indubitável certeza recuperada, uma vez que, sem perturbação e sem temor de não estar pronto no momento do êxodo, eu considero insuportável essa aflição, mais amarga e pior do que a morte e o castigo”. 1556
41. A fé e a esperança não acontecem por si, pura e simplesmente, e não são fortuitas. A fé necessita de uma alma firme, e a esperança de uma vontade e um coração retos. Sem a graça, de fato, como crer facilmente naquilo que não vemos? E como esperar pelos bens invisíveis do século futuro, se não tivermos nenhuma experiência direta dos carismas do Senhor? É por meio destes carismas que recebemos a plena certeza dos bens futuros coo se eles estivessem presentes. Para uns e outros a virtude é necessária, assim como a impulsão e o socorro de Deus. Se estas coisas não estão em nós, nós nos estafamos sem saber aonde estamos indo.
42. O fruto da verdadeira virtude é, seja o conhecimento, seja a impassibilidade, seja ambos. Se isto não acontecer é por que agimos em vão, e a virtude é fingida e falsa. Pois se nos orgulharmos agora, não só [24] Cf. Hebreus 12: 14. [25] Cf. Mateus 10: 37. [26] Cf. I Coríntios 15: 40. [27] Cf. Gálatas 2: 19-20. [28] Cf. Gálatas 5: 25. [29] Salmo 40 (41): 12.
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das folhas mas também dos frutos, buscando o que agrada aos homens ou a n´[os próprios, ou buscando qualquer outra coisa que não agrade a Deus, estaremos sendo bastardos e não amados de Deus. Mas nós, que corrigimos a causa, sem dúvida receberemos, para nosso benefício, a graça de nosso Deus bom, esta graça que traz em si, quando necessário e na medida do necessário, o conhecimento e a impassibilidade.
43. Pela iluminação da graça, compreenda os pensamentos do inimigo e, derramando lágrimas diante de Deus, confesse sua fraqueza considerando a si mesmo como nada, mesmo se o enganador o persuadir a se ver como alguém. Não se considere digno de receber os carismas, exceto os que suscitam a salvação e preservam a humildade. Busque o conhecimento que não infla, como a causa do conhecimento de Deus, para não ser oprimido até o fim pelas paixões, como se estas fossem tiranos, e para se libertar da carne por meio da impassibilidade, ou, mais humildemente, pelo sofrimento que experimentado com as faltas.
44. Assim como não é possível voar sem asas às alturas e às regiões elevadas, também é impossível alcançar o que esperamos sem a plena e indubitável certeza do além. Ora, a plena certeza provém de uma extrema humildade, ou da graça do Espírito Santo naqueles que estão perfeitamente reconciliados com Deus e nos quais a impassibilidade se encontra total ou parcialmente, ou da maneira mais perfeita no momento da reconciliação e da purificação. Quanto aos que, ao contrário, se separam de seus corpos quando ainda estão no meio da tempestade das paixões ou no sábado [30] (ou seja. os que não praticam as virtudes), estes tombam sob o golpe do juízo e do exame, pois devem responder no tempo da retribuição. 1557
45. Salvo gratuitamente, dê graças a Deus seu Salvador. Mas se você quiser oferecer dons, ofereça com todo o reconhecimento de sua alma viúva estas duas pequeninas peças: a humildade e o amor. Ele as receberá no tesouro [31] da salvação, disto sei bem, com mais gosto do que a multitude de virtudes depositadas por muitos. Mas se você pedir para voltar à vida como Lázaro, depois de ter conhecido a morte por causa das paixões, coloque-as na sua frente, a humildade e o amor, como duas irmãs, para que elas intercedam junto a ele, e assim você certamente obterá o que pede. 1558
46. Depois de ser bem sucedido na prática das virtudes, não será por causa dela apenas que você poderá alcançar a impassibilidade, para orar com toda pureza e sem distração, se ao intelecto faltarem as contemplações espirituais do conhecimento esclarecedor e da compreensão dos seres, por meio de que, alado e iluminado, o próprio intelecto, no amor totalmente cativo da verdadeira prece, se eleva, despojando-se, até as luzes com as quais é aparentado, as luzes das ordens imateriais do alto, e daí, tanto quanto possível, até a grande luz do triplo sol da Trindade na divina Origem.
47. Não seremos castigados no século futuro por havermos pecado, não seremos condenados por isto, nós que recebemos em comum uma natureza versátil e mutante. Seremos condenados, isto sim, por que depois de termos pecado, não nos arrependemos nem deixamos o mau caminho para nos voltarmos para o Senhor, dele recebendo a faculdade e o tempo para o arrependimento, a fim de manifestar o bem (que é o [30] Cf. Mateus 24: 20. [31] Cf. Marcos 12: 41-43.
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divino e não o seu contrário, o passional, com a cólera e a violência) e não o mal (que não faz parte de nós, pois o bem exclui toda paixão e toda violência, mesmo que se diga que o Senhor se conforma com nossas obras e nossas disposições, tal como um espelho, remetendo a cada qual sua parte conforme valeu sua vida).
48. Sacudido a ponto de perder o equilíbrio, não grite, mas endireite-se retornando depressa ao estado anterior, com tristeza, amargura e vergonha de si, vertendo muitas lágrimas com o espírito quebrantado. É assim que, escapando à queda que você experimentou, você chegará ao vale do salutar regozijo, confortado daí por diante na medida do possível, a fim de que, sem mais irritar o Juiz, você possa pedir as lágrimas e a aflição que expiem suas faltas. Se você não fizer isto, certamente conhecerá o castigo no século futuro.
49. É preciso voltar ao sacerdócio venerável como a uma ordem e uma purificação angélicas, como a uma segurança e uma castidade maiores agora do que antes. O que era sujo se tornou puro, e agora como poderá o puro se tornar sujo? Caso contrário, por misturarmos as trevas à luz e os maus odores ao perfume, teremos em comum a perdição e o infortúnio, como se fôssemos sacrílegos semelhantes a Ananias e Safira [32]. 1559
50. Mesmo que, a partir de um vaso perdido e inútil, você pareça ter obtido toda a dignidade do sacerdócio celeste semelhante aos anjos e, por ter se purificado um pouco, tenha se tornado conforme Paulo [33] um vaso de eleição útil ao Senhor, conserve sem mácula a honra de que foi digno, guardando o dom divino como a menina dos olhos, para não ser atirado do alto no abismo por ter comungado sem atenção; dificilmente você encontrará o caminho de volta. 1560
51. Considere com sabedoria que ninguém é condenado se for purificado por Deus [34]. Se, depois de ter sido chamado, você entrou na graça do sacerdócio divino, esta graça mais elevada do que o mundo, não se preocupe mais com sua vida anterior, caso esta tenha sido manchada por qualquer coisa. Graças a Deus, ela está no terreno que foi purificado pela sua correção. Daqui para diante seja ardente e vigilante em não ocultar a graça, para que ninguém duvide sem razão de sua celebração por causa de sua vida anterior, e para que se alguém o fizer, que ouça dizer a voz divina: “Não manche o que Deus purificou [35]”. 1561
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52. O fardo do sacerdote é leve e seu jugo é doce [36] na medida em que ele é assumido e carregado como se deve, e na medida em que a graça do Espírito divino não é algo que se adquire. Mas quando se negocia o invendável com uma aplicação inteiramente humana e como um dom corruptível, quando a vocação não vem do alto, o fardo se torna muito pesado, pois o carregamos além de nosso mérito e de nossas forças. Se 1563
[32] Cf. Atos 5: 10. [33] Cf. II Timóteo 2: 21; Atos 9: 15. [34] Cf. Romanos 8: 33-34. [35] Atos 10: 15. [36] Cf. Mateus 11: 30.
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ele não for removido, o jugo se tornará ainda mais duro, esgotando o pescoço e o vigor daquele que o sustenta, até consumi-lo totalmente.
53. Se você teve a audácia de se colocar sob o jugo do sacerdócio, endireite seus caminhos e distribua fielmente a palavra da verdade, como temor e tremor, obtendo com isto sua salvação [37], “pois nosso Deus é um fogo devorador [38]”. Se você o tocar, sendo você mesmo como o ouro ou a prata, não tema ser queimado, assim como as crianças da Babilônia não temeram o fogo [39]. Mas se você é como a erva e o junco, feito de matéria inflamável, porque só pensa na terra, trema para não ser queimado pelo fogo celeste se não fugir da cólera como Lot [40], abstendo-se daquilo que nos inspira o maior terror. Eu ignoro se as menores faltas cometidas por fraqueza serão ou não consumidas por este fogo divino no culto puríssimo, e se você mesmo não será queimado pelo fogo ou se permanecerá intacto, como o frágil arbusto [41]. 1564
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54. Você que é incapaz de se libertar do estado passional em que o corrimento seminal o colocou por causa do hábito contumaz, como você ousa, infeliz, segurar aquilo que mesmo os anjos não tocam? Portanto, ou bem trema e se abstenha da celebração divina daqui para frente e, por meio desta expiação se reconcilie com o divino, ou, permanecendo insensível e incorrigível, espere para cair em plena cólera nas mãos do Deus vivo [42], que não o livrará, em seu amor pelo homem, mas que o castigará sem compaixão por ter você ousado comparecer às núpcias reais com a alma e a vestimenta manchadas, indigno não se de entrar [43], mas ainda de se sentar à mesa. 1569
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55. Eu conheci um sacerdote que ousou tocar indignamente nas coisas de Deus ao mesmo tempo em que estava sob o jugo de uma paixão que o prostituía. Primeiro ele caiu numa enfermidade incurável e penosa, e logo a morte se aproximava. Ele fez de tudo para deter o mal, mas nada conseguia: ao contrário, o mal se alastrava por ele. Então ele teve um lampejo de consciência de que morria assim por celebrar indignamente, e fez um voto de renunciar imediatamente à santa Liturgia. Rapidamente ele estava de pé e se curou, de tal modo que já não restou nem traço da doença.
56. O cargo do sacerdote e a vestimenta sacerdotal são luminosos, mas apenas na medida em que também a alma brilha por sua pureza. Quando ela é culpada de desatenção e a consciência que a acusa de vergonha é desprezada, a luz se torna treva e suscita as trevas e o fogo eternos. Se neste momento deixarmos este caminho cercado de precipícios, devemos nos voltar para outra via que, pela virtude e a humildade, nos conduza sem perigos ao Reino de Deus.
[37] Cf. Filipenses 2: 12. [38] Hebreus 12: 29. [39] Cf. Daniel 3: 17-18. [40] Cf. Gênesis 19: 17-29. [41] Cf. Êxodo 3: 2. [42] Cf. Hebreus 10: 31. [43] Cf. Mateus 22: 12.
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57. Alcançamos a salvação pela simplicidade e a virtude, não pelo sacerdócio glorioso, que exige que levemos uma vida semelhante à dos anjos. Assim sendo, ou bem você torna impassível, à maneira dos anjos, seu pensamento levando-o para fora do mundo e da carne, elevando-se por esta escada celeste, ou bem, reconhecendo sua própria fraqueza, tema as alturas, que podem causar uma enorme queda aos que não são totalmente direitos. Lembre-se de que a vida que a maioria leva e testemunha não está menos próxima de Deus do que a primeira. Mesmo se você cair levando esta vida, é fácil se endireitar pelo arrependimento, pela compaixão e pela graça de Deus.
58. A carne e o sangue não herdarão o Reino de Deus [44]. Como é que você, que comunga com a carne e o sangue de Deus, não se torna uma mesmo corpo com ele e não se une ao seu sangue? Você, que já tem em si o Reino dos céus, como pode ser ainda acossado pelas paixões da carne e do sangue? Temo que o Espírito de Deus não permaneça em você, porque você é carnal, e que você não será separado no momento do Juízo, quando lhe for retirado o venerável sacerdócio na medida em que você foi indigno de tal graça; temo que você seja enviado ao castigo eterno. 1571
59. Quando o temor de Deus não está colocado diante dos seus olhos [45] você pensa que não haverá consequências em celebrar indignamente: mas você se engana por amor a si mesmo e se ilude a respeito do bem divino. É isto que um dia experimentaram Datan e Abiram, até que a terra os engolisse [46]. Você que teme isto e que teme verdadeiramente, compreenda a grandeza do que você faz: ou bem você exerce com toda a dignidade e pureza, para não dizer como um anjo, o encargo do sacerdócio divino, ou tenha o bom senso de não mais celebrar o culto divino, de medo que, tendo nisto desprezado e enganado a própria consciência que o denuncia, você, condenado, diga em sua dor, quando for julgado e corrigido: “Aquilo que eu temia chegou até mim. Aquilo de que eu tinha medo me aconteceu [47]”. 1572
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60. Sobriamente, com vigilância e aflição, ofereça primeira para si mesmo, com o coração contrito e lágrimas, o santo sacrifício expiatório que salva o mundo. Pois, que terá você para se afligir e para oferecer em sacrifício depois de morto? É por isso que, com o intelecto vivo e tomando a dianteira, prepare desde já seu enterro e comemore a si mesmo, quando intercedendo pela salvação, depois de oferecer a Deus estes santos dons sobre a Mesa santa, você rememore a lembrança de sua divina imolação voluntária aqui em baixo, em seu amor pelo homem.
61. É inefável e inexprimível o prazer da alma que, com a plena certeza, se separa do corpo e se despoja dele como de uma vestimenta. Com efeito, desde que ela já obteve aquilo que esperava, ela se desembaraça do corpo sem tristeza e avança em paz para o Anjo que vem do alto radioso e alegre, ela atravessa o espaço sem encontrar obstáculos, sem que em nada a prejudiquem os espíritos do mal, elevando-se alegre com confiança e gratidão, até que, chegando ao objetivo, ela se prosterna diante do Criador e recebe a sentença que a coloca no número de seus semelhantes e iguais em virtude, esperando pela ressurreição comum. [44] Cf. I Coríntios 15: 50. [45] Cf. Salmo 35 (36): 2. [46] Cf. Números 16: 31-33. [47] Jó 3: 25.
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62. Eu lhe proponho uma linguagem estranha, e não se espante se os pressupostos que talvez o tiranizem o impedem de adquirir a impassibilidade. Mas se, no momento do êxodo, você se encontrar no abismo da humildade, você será elevado acima das nuvens tanto quanto o impassível. Pois se o tesouro dos impassíveis é feita da reunião de todas as virtudes, a pedra preciosa da humildade tem mais valor do que todas juntas. Não apenas ela concede ao que a possui a expiação diante de Deus, como também o encaminha junto com os eleitos para o lugar das bodas em seu reino.
63. Se você receber de Deus a graça de expiar suas faltas, glorifique Aquele que esquece e suporta o mal, na medida em que você tiver certeza de estar acima dos seus erros voluntários, tanto quanto possível. Pois se até o êxodo, a cada dia você expiar suas faltas, parece haver em você uma inconsciência em pecar facilmente com conhecimento de causa. Porém, se, atirando-lhe a pedra da boa esperança, você expulsar o cão da desesperança, e se não cessar de pedir, obstinadamente e sem vergonha nenhuma, seus numerosos pecados serão perdoados [48], a fim de que também você, resgatado, possa amar acima de tudo Àquele que é compassivo e mais do que bom no século futuro. 1575
64. Quando, levado pela graça divina, você se ver em lágrimas diante de Deus na oração, deixe-se cair por terra com os braços em cruz e, batendo no chão com a cabeça, peça para ir-se daqui para se livrar da corrupção e se libertar das tentações; não do modo como você quer, mas como Deus quiser, quando e onde ele quiser. Você já deseja e ama sua partida desta vida se se dirige em lágrimas ao Senhor no abismo da humildade, a fim de lá permanecer sem se preocupar com o fervor do desejo e da prece. Porém, agora suporte o tempo que o separa da vida melhor que Deus proverá [49]. Mas faça o juramento de buscar com todas as forças aquilo que conduz ao objetivo: o que não fazer, o que não dizer, o que não visar e não empreender, a fim de não se distanciar de Deus. 1576
65. Você que carrega sua carne, não tente sondar as coisas inteligíveis tais como elas são, mesmo que a faculdade intelectual da alma o conduza a elas pela pureza. Pois se o incorpóreo retido pelo sopro e o sangue não dissolver a pesandez da carne e não reunir as coisas inteligíveis ele não poderá pensar e compreender estas coisas como convém. Assim, quando você estiver pronto para partir da matéria como de um novo ventre materno, como de uma segunda matriz tenebrosa, para ir em direção às coisas imateriais e luminosas, alegre-se, glorificando o Benfeitor que nos dez passar pela morte para nos conduzir até aquilo que esperamos. E esteja sempre sóbrio e vigilante, por causa dos demônios ímpios que vão e vêm ao nosso redor [50], que estendem armadilhas às honras que receberemos e que picam nossos calcanhares [51], no fim de nossas vidas: trema até sua partida, pois o século futuro é impenetrável, e você foi criado variável e mutante em sua liberdade. 1577
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66. O inimigo caminha na nossa frente, nos enviando tentações selvagens e terríveis quando percebe a alma transportada por grandes volumes de virtude, demonstrados pelas palavras da prece e pelo movimento que nos eleva acima do par material da carne e das coisas sensíveis. Em sua inveja, o [48] Cf. Lucas 7: 47. [49] Cf. Hebreus 11: 40. [50] Cf. Salmo 11 (12): 9. [51] Cf. Gênesis 3: 15.
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demônio, que odeia o homem, nos envia tentações tais que já não sabemos se poderemos sobreviver [52]. Mas tudo isto é em vão, e ele ignora os bens que suscita em nós quando, por meio da paciência, ele nos torna seres experimentados e nos trança coroas ainda mais radiosas. 1579
67. Não existe combate maior do que o da castidade e da virgindade. Pois aquele que honra o celibato é admirado pelos próprios anjos e não é menos coroado do que os mártires. Quantas penas e suores são necessários para imitar pela pureza a imaterialidade dos incorpóreos quando ainda se está ligado à carne e ao sangue! A empresa é tão grande e tão elevada, em verdade, que parece quase impossível por estar acima da natureza, se Deus não a assumir conosco do alto, confortando a fraqueza de nossa natureza, sustentando a precariedade da terra e aliviando-a de certo modo com o amor divino e a esperança das honras que nos estarão reservadas.
68. Uma alma impregnada de bebidas e sono é um obstáculo à castidade. A verdadeira castidade permanece imóvel mesmo no meio das imaginações que atravessam o sono. Que o intelecto corra atrás delas é sinal de que ele recai na grave doença da paixão. Mas se ele foi tornado digno de estar, mesmo sem o corpo, em relação com Deus durante o sono, ele permanecerá intacto. Apaziguadas as imaginações, ele se mantém como o guardião atento da alma e do corpo, como um cão sóbrio e vigilante que vela, por causa dos lobos insidiosos, e não permite ser roubado.
69. Vou lhe dizer uma coisa paradoxal, e não se espante: existe um mistério que se desenrola secretamente entre Deus e a alma. Este mistério se refere aos graus mais altos: a purificação perfeita, o amor e a fé. Quando o homem, reconciliado até o fim, se une a Deus na intimidade por meio da prece e da contemplação contínuas, então Elias fecha o céu impedindo a chuva [53] e queima o sacrifício com o fogo celeste [54], Moisés abre o mar [55] e erguendo os braços derruba Amalek [56], Jonas é salvo do monstro marinho e do abismo [57]. Pois quem é considerado digno de Deus é por ele conduzido em seu amor por nós para onde ele quiser, mesmo se este homem ainda estiver na carne, desde que ele tenha ultrapassado a medida da corrupção e da condição mortal, vendo a morte como um sono ordinário, que o envia agradavelmente para aquilo que ele espera. 1580
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70. Reverenciando os sofrimentos do Mestre e a kenose do Verbo de Deus que se despojou por nós, bem como o sacrifício e a comunhão em nós do corpo e do sangue divinos e vivificantes dos quais fomos considerados dignos não apenas de receber mas ainda de celebrar, humilhe-se, como o cordeiro levado à imolação, considerando que na verdade todos estão acima de você. E esforce-se para não ferir a consciência de ninguém, principalmente sem razão. E se você não foi santificado, não tenha a audácia de tocar nos santos dons, para não ser destruído, queimado como a erva e fundido como a cera pelo fogo divino.
[52] Cf. II Coríntios 1: 8. [53] Cf. I Reis 17: 1. [54] Cf. I Reis 18: 36-38. [55] Cf. Êxodo 14: 21. [56] Cf. Êxodo 17: 11-13. [57] Cf. Jonas 2: 2-11.
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71. Certamente que, se você cumprir convenientemente a terrível celebração da divina e venerável hierurgia e se sua consciência não o acusar em nada, pode esperar desta celebração a salvação. Pois o benefício que você extrair dela lhe será concedido acima de todo trabalho e de toda contemplação. Se não for assim, você verá por si mesmo, é melhor reconhecer a própria fraqueza e renunciar à altura do sacerdócio do que assumi-lo de maneira imperfeita e impura e de aparecer a todos suspenso no ar, pendurado como um cadáver por sua indignidade.
72. O culto que o venerável sacerdote oferece, o sacrifício que ele celebra para obter a graça do divino, a súplica que ele lhe dirige, o colocam acima de toda salmodia e de toda prece, assim como o sol supera as estrelas. Pois nós oferecemos e expomos o sacrifício do próprio Filho único e invocamos Aquele que, por amor ao homem, foi gratuitamente imolado por nossos pecados. Não apenas pedimos o perdão por nossas faltas, mas também por eles, os pecadores, para seu bem, se sua consciência não foi manchada. E, como uma brasa que inflama toda a matéria das iniquidades, o que se uniu à Divindade ilumina os corações dos que se aproximam com fé. Do mesmo modo, o sangue divino e precioso lava e purifica, mais do que qualquer hissopo, toda marca e toda mancha dos que ousam tocar os santos dons tão pura e inocentemente quanto possível, quando se colhe em si o que acontece lá.
73. Não é o corpo do Verbo de Deus depois de sua Ascenção que é sacrificado ao descer dos céus, como disse um santo [58], mas o próprio pão e o vinho que são transformados no corpo e sangue de Cristo, oferecidos em sacrifício com fé, temor, desejo e piedade pelos que são considerados dignos do sacerdócio divino: o pão e o vinho são o lugar da mudança, pela energia e a vinda do Espírito Santo. O pão não se torna outro corpo que o corpo do Mestre mas, transformado neste corpo, concede a incorruptibilidade sem se destruir. Quanta pureza e santidade precisa ter o sacerdote quando ele toca o corpo divino! E de quanta segurança ele precisa, ele que se torna o mediador entre Deus e os homens e que, para interceder junto a ele, se cerca da puríssima Mãe de Deus, de todas as potências celestes dos anjos e dos santos desde a origem dos séculos! Assim como ele necessita da dignidade angélica e arcangélica, me parece que ele precisa também da intimidade divina. 1585
74. Você deve notar, Pisinius, que os santos dons são expostos sem véus sobre a Mesa santa depois do Símbolo da fé, quando serão consagrados, para que o padre reze de certa maneira pelo que é oferecido e para que chame com palavras inefáveis Aquele que habita nos céus. Pois o Deus que olha não olha de lado, ele que vê e parece não ver. Ele se lembra da kenose voluntária pelos pecadores, de sua inefável descida entre nós e de sua imolação por amor ao homem. Pois não foi por nós, que fomos justificados, que o bom Deus que suporta o mal deu a redenção e a salvação por meio de seus sofrimentos, mas ele teve piedade daqueles que haviam naufragado e que ele resgatou.
75. Mesmo que você se dedique à prece pura que une imaterialmente a Deus o intelecto imaterial, e que tenha visto como num espelho a sorte que o espera depois desta vida aqui de baixo por ter recebido a garantia do Espírito [59] e mesmo que você tenha em si o Reino dos céus [60] que você percebe plenamente e 1586
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[58] João Damasceno, Da fé ortodoxa IV, 13. [59] Cf. II Coríntios 5: 5. [60] Cf. Lucas 17: 21.
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como toda certeza, não aceite ser libertado da carne sem primeiro conhecer a morte. Ore muito para aí chegar e tenha a boa esperança de chegar antes do êxodo, se for para seu benefício, Prepare-se continuamente para partir, rejeitando todo temor, quando, depois de ter atravessado o espeço e escapado dos espíritos do mal, você penetrar com confiança e sem medo no interior das abóbodas celestes, unindose às ordens angélicas, aos eleitos e aos justos desde a origem dos séculos; então você verá o divino, tanto quanto possível. Se você se encontrar aí, você terá a intelecção dos bens divinos e do Verbo de Deus que ilumina com seus raios o que está além do céu, celebrado numa adoração única, com sua carne puríssima e com o Pai e o Espírito, por todas as ordens celestes e todos os santos. Amém.
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TI, VIII –FILOTEU, O SINAÍTA – Quarenta capítulos népticos.
FILOTEU, O SINAÍTA
QUARENTA CAPÍTULOS NÉPTICOS 1. Existe em nós um combate do intelecto mais duro do que o combate dos sentidos. O operário da piedade deve correr e perseguir este objetivo [1] em seu intelecto: guardar perfeitamente, como uma pérola ou uma pedra preciosa [2], a lembrança de Deus em seu coração. É preciso renunciar a tudo, até ao corpo, desprezar mesmo a vida presente, a fim de possuir em seu coração apenas a Deus. Pois, disse o divino Crisóstomo, basta a visão de Deus no intelecto para derrotar os espíritos maus [3]. 1588
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2. Os que conduzem o combate do intelecto devem assim, com toda sua força, extrair das divinas Escrituras as práticas espirituais e aplicá-las à sua inteligência como salutares medicamentos. Já foi dito que desde a manhã, com a lembrança precisa de Deus e a prece contínua de Jesus Cristo na alma, devemos corajosamente e com todo rigor nos manter à porta do coração levando à morte, pela guarda do intelecto, todos os pecados da terra [4] e, em êxtase e na extensão da fiel lembrança de Deus, abater as cabeças dos poderosos [5], graças ao Senhor, cortando pela raiz os pensamentos inimigos. Com efeito, sabemos que nos suores do intelecto reside um trabalho e um mandamento divinos. É assim que devemos agir, nos violentado até a hora do almoço. Então, depois de dar graças ao Senhor que, em seu amor único pelo homem, nos sacia duplamente de alimento, no espírito e no corpo, devemos nos dedicar à lembrança e à meditação da morte, continuando firmemente aplicados à obra da manhã. Se agirmos assim a cada dia, sem economizar nossas penas, conseguiremos a força para escapar no Senhor às redes do inimigo invisível. Com o tempo, tudo isto engendrará em nós estas três coisas: a fé, a esperança e o amor. A fé nos dispõe a temer a Deus verdadeiramente. A esperança, superando o temor servil, liga o homem ao amor de Deus, pois a esperança não admite confusão [6] uma vez que ela engendra o duplo amor do qual estão 1591
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[1] Cf. Filipenses 3: 14. [2] Cf. Mateus 13: 41-46. [3] João Crisóstomo, Homilias sobre são João III. [4] Cf. Salmo 100 (101): 8. [5] Cf. Habacuque 3: 14. [6] Cf. Romanos 5: 5.
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suspensos a Lei e os Profetas [7]. Quanto ao amor, ele não passa jamais [8], além de permitir a quem dele partilha cumprir as vontades divinas neste século e no século futuro. 1594
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3. É muito raro encontrar homens cuja razão esteja em estado de hesíquia. Isto é próprio daqueles que fazem o seu melhor, por meio das coisas que tratamos aqui, para que deles se aproxime a graça e a consolação divinas. Assim, se queremos seguir a filosofia segundo Cristo – a ascese espiritual na guarda do intelecto, a sobriedade e a vigilância – devemos nos engajar nesta via nos abstendo de comer demais, até não tomarmos mais do que a justa medida de alimento e bebida, na medida em que isto nos for possível. Com efeito, temos todas as razões para chamar a sobriedade e a vigilância de caminho que conduz ao Reino, tanto que está em nós quanto aquele por vir; e para as chamarmos de ascese espiritual, na medida em que elas moldam e purificam as disposições do intelecto e o transformam levando do passional ao impassível. Pois elas são semelhantes a uma janela iluminada pela qual Deus se debruça para aparecer ao intelecto.
4. O verdadeiro lugar de Deus [9], o céu do coração onde a armada dos demônios não fica porque Deus habita ali, está onde estão a humildade, a lembrança de Deus suscitada pela sobriedade e a vigilância e a permanência da prece dirigida contra os inimigos. 1596
5. Nada perturba mais do que a falação, nada pior e mais capaz de turbar a condição da alma do que uma língua destemperada. Com efeito, ele destrói aquilo que construímos a cada dia [10]. Com uma linguagem inconsiderada ela dispersa o que reunimos com grande esforço. O que existe de pior do que a língua? Ela é um mal irresistível [11]. É preciso assinalar-lhe limites, opor-se a ela com força e sufocá-la, por assim dizer, a fim de constrangê-la a não servir além do necessário. Quem poderá descrever todo o mal que a língua pode fazer à alma? 1597
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6. A primeira porta que conduz à Jerusalém inteligível, à atenção do intelecto, é o silêncio da boca com conhecimento de causa, mesmo que o intelecto ainda não tenha alcançado a hesíquia. A segunda porta é a temperança calculada em matéria de alimentos e bebidas. A terceira porta é a memória e a meditação da morte, que purificam o intelecto e o corpo. Eu vi uma vez a hora desta morte e, semimorto e arrebatado em espírito, não com os olhos, eu a quis por companheira para toda a minha vida, prisioneiro que me tornei de sua beleza e de sua nobreza, a tal ponto ela é humilde, a um tempo alegre e dolorosa, refletida, temente do justo julgamento e avessa às marcas das lembranças desta vida. Dos olhos do corpo ela faz jorrar naturalmente uma água viva que cura, e dos olhos da alma uma fonte que espalha pensamentos sábios que, murmurando e saltitando, alegram o coração. Esta filha de Adão, como eu a chamei – falo da memória da morte – eu a quis para minha esposa, eternamente, quis dormir com ela, conversar com ela, buscar com ela pelo que nos acontecerá depois que nos retirarmos do corpo. Mas a filha tenebrosa do diabo, o nefasto esquecimento, não o permitiu. [7] Cf. Mateus 22: 40. [8] Cf. I Coríntios 13: 18. [9] Cf. Gênesis 28: 16-17. [10] Cf. Gálatas 2: 18. [11] Cf. Tiago 3: 8.
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7. Pois existe uma guerra que é secretamente travada pelos espíritos do mal e que os lança contra a alma por intermédio dos pensamentos. Como a própria alma é em si invisível estas potências maléficas se adaptam à sua natureza e se voltam contra ela travando esta guerra invisível. Podemos ver, entre estas potências e a alma, as armas, uma batalha organizada, armadilhas enganosas, uma guerra terrível, o envolvimento nos combates e, de parte a parte, vitórias e derrotas. Mas esta guerra invisível de que falamos se distingue da guerra visível num ponto: o cronograma da guerra. Pois a guerra visível pode ser fixada num tempo e numa ordem. Mas a outra guerra, sem previsão, despeja subitamente no meio do coração todas as tropas necessárias e leva a alma à morte pelo pecado. Por que razão e com que objetivo este combate e esta luta são dirigidos contra nós? Para que a vontade de Deus, da qual dizemos na oração: “Seja feita a sua vontade”, não seja cumprida por nós. O que deve ser cumprido por nós são os mandamentos de Deus. E se, depois de termos atentamente, sóbria e vigilantemente mantido no Senhor e guardado do erro seu próprio intelecto, se depois disto tivermos superado rigorosamente os truques das potências maléficas e seus ataques surgidos da imaginação, acabaremos por encontrá-lo através da prova. É por isso que o Senhor, que toma a seu encargo opor-se aos maléficos demônios – pois ele prevê seus projetos – conduzindo-os ao seu próprio objetivo, estabeleceu os mandamentos e ameaçou aqueles que os transgridem.
8. Depois de alcançarmos um certo estado de temperança, ou seja, de abstenção do mal a parente que se exerce pelos cinco sentidos, poderemos daí em diante guardar nosso coração com Jesus, vê-lo iluminado por ele e, levados por um desejo ardente, provar de sua bondade em nosso intelecto. Pois não é por outra razão que recebemos a lei da purificação do coração: quando as nuvens da malícia deixarem o espaço do coração e forem dissipadas pela continuidade da atenção, então poderemos, com toda pureza, como num céu sereno, ver a Jesus, o Sol de justiça, e também, de certo modo, as razões de sua grandeza brilharem em nosso intelecto. Com efeito, estas razões não se manifestam a todos, mas apenas aos que purificam seus pensamentos.
9. Estes devem a cada dia se colocar num estado em que possam aparecer diante de Deus. Com efeito, diz o profeta Oséias: “Guarde o amor e a justiça e aproxime-se constantemente de seu Deus [12]”. Malaquias, por sua vez, diz da parte de Deus: “Um filho glorifica seu pai e um servidor, seu mestre, Mas se eu sou pai, onde está minha glória, e se sou mestre, onde o respeito que me é devido? – diz o Senhor todopoderoso [13]”. Também o Apóstolo diz: “Purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito [14]”. E a Sabedoria: “Guarde seu coração com toda vigilância, pois é dele que procede a vida [15]”. Quanto ao Senhor Jesus Cristo, ele diz: “Purifique o interior do cálice, para que o exterior se torne puro [16]”. 1599
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10. As conversas intempestivas nos trazem às vezes a aversão dos que nos escutam e outras vezes as injúrias e ironias dos que percebem a inépcia de nossas propostas. Outras conversas nos mancham a consciência. Outras, enfim, atraem sobre nós a condenação de Deus e a tristeza do Espírito Santo, o que é ainda mais terrível do que todo o resto.
[12] Oséias 12: 17. [13] Malaquias 1: 6. [14] II Coríntios 7: 1 [15] Provérbios 4: 23. [16] Mateus 23: 26.
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11. Aquele que, no Senhor, purifica seu coração, arranca o pecado até a raiz, se esforça por chegar ao mais alto conhecimento de Deus e ver com o intelecto aquilo que é invisível à maioria, este não deve se glorificar em nada. Pois nenhum dos seres criados é mais puro que o incorpóreo nem mais cheio de conhecimento do que o anjo. E por ter se orgulhado, este foi precipitado dos céus como um raio. O mesmo acontecerá com este homem: o orgulho é considerado por Deus como uma impureza. Mas os que cavam a terra para obter ouro vivem na claridade.
12. O Apóstolo disse: “Aquele que luta se abstém de tudo [17]”. Pois não é possível aos que estão ligados a esta carne miserável, que não cessa de conspirar contra o Espírito [18], se alinhar contra os poderes, contra as potências invisíveis e maléficas, estando locupletado de alimentos. Pois o Reino de Deus não é feito de comidas e bebidas [19]. Ele acrescenta que o cuidado com a carne implica aversão a Deus, por não se submeter à lei de Deus, e até mesmo por não poder fazê-lo [20]. É evidente que não pode fazê-lo, pelo fato de que o ser terrestre – sendo uma mistura de fluxo, sangue e humores, constantemente puxado para baixo – não cessa de se desfrutar das coisas da terra e dos prazeres perecíveis do século presente. Pois o cuidado com a carne é a morte [21], e os que se agarram à carne não podem agradar a Deus [22]. 1604
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13. Precisamos de muita humildade para nos dedicar no Senhor à guarda do intelecto, primeiro diante de Deus, depois diante dos homens. De todos os modos e de todos os lados devemos quebrantar nosso coração, praticando todas as coisas que o forçam a se humilhar. Ora, o que mais contribui para quebrantar e humilhar o coração são as lembranças de nossa antiga conduta perante o mundo, desde que dela nos lembremos com precisão. A lembrança de nossos pecados desde a infância – que nosso intelecto deve examinar um por um, com exceção dos pecados da carne, cuja recordação é nociva – pode também humilhar, produzir lágrimas e nos levar a dar graças a Deus de todo nosso coração, do mesmo modo como a lembrança constante e manifesta da morte. Pois esta mesma lembrança gera também o luto, junto com uma certa doçura, uma alegria, a sobriedade e a vigilância do intelecto. Também o que humilha fortemente o coração são as lembranças dos sofrimentos de nosso Senhor Jesus Cristo, uma por uma, tais como a leitura e a meditação mantêm na memória. Enfim, para humilhar verdadeiramente a alma estão as numerosas benesses de Deus, que podemos enumerar e considerar uma por uma, quando tivermos que lutar contra os demônios do orgulho.
14. Também você, não recuse por amor próprio estes remédios que salvam a alma. Pois assim você com certeza não será discípulo de Cristo, nem imitador de Paulo, dele que disse: “Eu não sou digno de ser chamado de Apóstolo [23]”, e também: “Eu que antes era blasfemador, perseguidor e violento... [24]”.Você vê, orgulhoso, como o santo estava longe de esquecer sua vida pregressa? E todos os santos, desde a origem da criação até hoje, se cobriram com a última das vestes, a santa vestimenta de Deus. Pois o próprio nosso Senhor Jesus Cristo, que é Deus além de toda compreensão, de todo conhecimento e de toda linguagem, querendo mostrar o caminho da vida eterna e da santidade, revestiu-se de humildade durante 1610
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[17] I Coríntios 9: 25. [18] Cf. Gálatas 5: 17. [19] Cf. Romanos 14: 17. [20] Cf. Romanos 8: 7. [21] Cf. Romanos 8: 6. [22] Cf. Romanos 8: 8. [23] I Coríntios 15: 9. [24] I Timóteo 1: 13.
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toda sua vida na carne. A santa humildade deve ser assim denominada virtude verdadeiramente divina: o mandamento do Mestre e sua vestimenta. O anjos e todas estas potências luminosas e divinas praticam e observam esta virtude, pois eles sabem o que foi a queda de Satanás quando se orgulhou, e é para inspirar o temor de tal queda aos anjos e aos homens que o maligno jaz no abismo. Deus fez dele aos olhos de todos os seres o mais desonrado de toda a criação, por causa de seu orgulho. E sabemos como Adão caiu por causa de seu orgulho. Tendo assim tantos exemplos desta virtude útil à alma, humilhemo-nos continuamente e de todas as maneiras, seguindo-os tanto quanto pudermos. Humilhemo-nos em nossa alma, em nosso corpo, em nosso coração, nossa vontade, nossas palavras, nossos pensamentos, nosso comportamento, tanto interior quanto exteriormente. É isto que devemos buscar acima de tudo, a fim de não termos contra nós Aquele que é por nós: Jesus Cristo, o Filho de Deus e ele próprio Deus. Pois o Senhor se opõe aos orgulhosos, mas concede sua graça aos humildes [25]. E: “Todo coração orgulhoso é impuro diante do Senhor [26]”. E: “Aquele que se rebaixa será elevado [27]”. E: “Aprendam comigo que sou manso e humilde de coração [28]”. Por tudo isto, devemos estar atentos. 1612
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15. “Vigiem, disse nosso Salvador, para que seus corações não fiquem pesados e insensíveis”, e depois: “Aquele que luta deve se abster de tudo”. Sabemos de tudo isto, pois a Escritura nos disse: levemos nossa vida na temperança. Antes de tudo, na ordem e no costume da virtude, acostumemos nosso corpo a não comer demasiado, dando-lhe alimento comedidamente. Assim apaziguaremos com mais facilidade os levantes do desejo, aos quais devemos acrescentar provavelmente os levantes do ardor, para submetê-los à razão que nos governa. Assim nos iremos abster com mais facilidade também de outras faltas. Pois os que tiveram a experiência da virtude consideram que aí está a virtude: numa temperança que a tudo abarca, ou seja, na abstenção de toda espécie de mal. Com efeito, antes de tudo, a fonte da pureza é Deus, que suscita e concede todos os bens. Depois vem a temperança, igual e comedida a cada dia, nos afastando dos excessos na comida.
16. Com efeito, do mesmo modo como Satanás, em sua oposição a Deus e para que não se cumpra a vontade de Deus – ou seja, os mandamentos – combate contra Deus por nosso intermédio se esforçando por nos separar de sua vontade, também é por meio de nós que Deus quer que se cumpra sua santa vontade, ou, como já dissemos, seus mandamentos divinos e vivificantes, derrubando por nosso intermédio e com seu impulso os desígnios funestos do maligno. Com efeito, a vontade vã do inimigo, que parece se opor a Deus através daqueles que o maligno leva a transgredir os mandamentos, o próprio Deus a destrói pela fraqueza humana. Veja se não é assim que acontece. Todos os mandamentos do divino Evangelho parecem fornecer leis para sanear as três faculdades da alma [29] naqueles que são regidos pelas suas ordens. Melhor, elas não só parecem sanear, elas de fato saneiam as três faculdades. Por isso o diabo as combate noite e dia. E, se Satanás combate estas três faculdades, é claro que ele está combatendo os mandamentos de Cristo. Por que Cristo, com seus mandamentos, deus suas leis às três faculdades da alma, que são o ardor, o desejo e a razão. Considere o seguinte: “Quem se irrita com seu irmão sem motivo será passível de julgamento [30]”, e outras advertências: assim é tratado o ardor. Mas o inimigo, por seu turno, por meio de querelas e pensamentos de inveja e ressentimento tentará, de dentro, destruir este mandamento e os que lhe são correlatos. Pois o adversário sabe que o guia que dirige o ardor é a razão. Crivando-o de flechas por meio dos pensamentos de suspeita, de inveja, de discórdia, de querela, de 1616
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[25] Cf. Provérbios 3: 34; Tiago 4: 6. [26] Provérbios 16: 5. [27] Mateus 23: 12. [28] Mateus 11: 29; [29] As três partes da alma: desejo, ardor e razão. [30] Mateus 5: 22.
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mentiras, de vaidade, ele persuade a razão a abandonar sua autoridade própria e deixar as rédeas ao ardor, sem mais conduzi-lo. E o ardor, tendo escapado à razão que o governava, deixa escapar em palavras, pela boca, tudo o que foi depositado diante de si e acumulado no coração pelos pensamentos do inimigo e a negligência do intelecto. Então vemos o coração cheio, não do Espírito de Deus e de pensamentos divinos, mas de malícia, como disse o Senhor: “A boca fala daquilo que o coração está cheio [31]”. Pois se o maligno é capaz de fazer sair em palavras aquilo que meditamos internamente, o irmão que caiu nesta falta não dirá apenas a seu irmão “idiota” ou “estúpido [32]”, mas das palavras injuriosas poderá chegar até o assassinato. Por causa de Deus, que em seu mandamento ordenou que não nos irritemos sem razão, o maligno se serve desses pensamentos que ele não poderia fazer surgir em palavras de injúria e tudo o que se segue, se, no momento da agressão, elas tivessem sido expulsas do coração pela prece e a atenção interior. É assim que o maldito alcança seus fins, porque ele consegue dissolver o mandamento divino com aquilo que ele atira dentro do coração por intermédio dos pensamentos. 1618
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17. O que foi ordenado ao desejo pelo divino mandamento do Mestre: “Aquele que olha uma mulher para deseja-la já cometeu adultério com ela em seu coração [33]”. E quando obreiro do mal vê uma mulher assim exposta, que rede não tece ele ao redor do intelecto contra o mandamento! Levando a guerra bem mais longe do que o corpo que provocou o desejo, ele desliza para o interior do intelecto. Podemos então ver desenhadas por ele as formas e as imagens da prostituição e ouvir as palavras que provocam a paixão, sem falar do resto que bem conhecem aqueles que tem a experiência do intelecto. 1620
18. E qual o mandamento que foi dado à razão? “Eu lhes proíbo jurar [34]”. “Que seu sim seja sim, seu não seja não [35]”. “Quem não renunciou a tudo para me seguir não é digno de mim [36]”. E: “Entrem pela porta estreita [37]”. Isto tudo foi ordenado à razão. Mas também aí, o inimigo, como querendo submeter ao seu poder este excelente general que é a razão, entorta sua cabeça sugerindo-lhe pensamentos de gula e de indiferença. Depois, fazendo-a se comportar por um general bêbado e expulsando-a do comando, o dragão se serve do ardor e do desejo como executores de suas próprias vontades. E estas potências, o desejo e o ardor, livres da razão, se servem dos nossos cinco sentidos para ajudá-los a pecar abertamente. E assim sucumbimos. Então os olhos não têm mais o intelecto interno para detê-los e se tornam indiscretos, o ouvido começa a apreciar bobagens, o olfato relaxa, a boca se torna intemperante e as mão tocam o que não devem. Como consequência, a injustiça toma o lugar da justiça, a irracionalidade substitui o bom senso, o deboche toma o lugar da castidade, a escravidão o lugar da coragem. Estas são exatamente as quatro virtudes gerais: a justiça, o bom senso, a castidade e a coragem. Quando bem dirigidas, elas impedem os sentidos de se desenvolver. Então o intelecto, em paz consigo mesmo, com suas potências divinamente governadas e dóceis, conduz corajosamente e com facilidade seu bom combate. Mas se, por negligência, ele põe em confusão suas potências, vencido pelos ataques do maligno, ele transgride os mandamentos divinos. Certamente, esta transgressão será seguida ou de um arrependimento proporcional à falta, ou de um castigo no século futuro. É bom, portanto, que o intelecto seja sóbrio e vigilante. Mantido em seu estado natural, ele se torna o verdadeiro guardião das ordens divinas. 1621
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[31] Mateus 12: 34. [32] Cf. Mateus 5: 22. [33] Mateus 5: 28. [34] Mateus 5: 34. [35] Mateus 5: 37. [36] Mateus 10: 37-38. [37] Mateus 7: 13.
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19. A alma foi sitiada, encerrada, acorrentada nas trevas pelos espíritos do mal. Por causa das trevas que a cercam ela é incapaz de orar como desejaria. Pois ela está acorrentada na escuridão e seus olhos interiores estão cegados. Quando ela começar a orar a Deus e a velar graças a esta oração, então, graças à oração, ela será libertada das trevas. É impossível que se liberte de outro modo. Pois agora a alma reconhece que existe dentro do coração uma outra luta, outra oposição oculta, outra guerra contra os pensamentos dos espíritos do mal, como testemunham as santas Escrituras. De fato, elas dizem: “Se o espírito daquele que tem o poder se eleva contra você, não abandone seu posto [38]”. Ora, o lugar do intelecto é a firme constância na virtude, a sobriedade e a vigilância. Pois existe uma constância na virtude e uma constância no vício. Foi dito: “Bem-aventurado o homem que não se senta na assembleia dos ímpios nem se detém no caminho dos pecadores [39]”. E o Apóstolo: “Sejam firmes, cingidos com o cinturão da verdade [40]”. 1625
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20. Agarremo-nos com toda força a Cristo, por causa daqueles que se esforçam continuamente para separá-lo da alma, a fim de que Jesus não se vá [41], afastando-se da multidão de pensamentos que estão no lugar da alma. Não é possível nos agarrarmos com toda força a ele sem que a alma se esforce. Tentemos nos aproximar de sua vida na carne, a fim de conduzirmos a nossa com humildade. Agarremo-nos à sua Paixão, a fim de suportarmos o que nos aflige, tentando imitá-lo. Provemos da inefável economia que ele fez descer a nós: quando a alma tiver experimentado de sua doçura, saberemos então que o Senhor é bom [42]. Além de tudo isso, ou antes de tudo isso, creiamo-lo, tenhamos uma fé inquebrantável naquilo que ele nos disse, aceitemos dia a dia o que nos traz sua providência. E seja o que for que nos traga, acolhamos com ações de graça, com alegria e com todo o coração, a fim de aprendermos a não ver senão Deus, que governa o universo com as razões divinas de sua sabedoria. Quando tivermos feito tudo isso não mais estaremos longe de Deus, pois a piedade é uma perfeição que jamais se esgota, como disse um dia um destes homens que traziam a Deus em si e eram perfeitos em espírito [43]. 1628
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21. Pois quem bem resgata sua vida, quem se consagra inteiramente ao pensamento e à lembrança da morte e retira sabiamente o intelecto do domínio das paixões, este homem, por isso mesmo, vê com naturalidade chegar sobre si os ataques dos demônios quando estes vêm, muito mais depressa do que o que decidiu descartar de sua vida a lembrança da morte. Este último, que purifica seu coração só com seu conhecimento, sem no entanto o subtrair aos pensamentos de luto, mesmo que às vezes ele pareça dominar com maestria e habilidade todas as paixões desastrosas, pode ainda ser prisioneiro de uma delas, a pior de todas, e cair no orgulho, longe de Deus. Ele precisará de uma extrema vigilância para não afogar seu coração nas brumas do orgulho. Com efeito, como diz Paulo, as almas que vão daqui para ali em busca de conhecimento enchem-se naturalmente de orgulho diante das que sabem menos [44]. Na minha opinião, nelas não existe a menor centelha da caridade que edifica. Mas quem não se esquece de meditar toda tarde sobre a morte, percebendo mais depressa os ataques do demônio do que o outro, os repele e expulsa. 1631
22. A alegre lembrança de Deus, ou seja de Jesus, unida ao ardor do coração e a uma aversão salvadora, dissipa naturalmente todos os sortilégios dos pensamentos, as reflexões, os raciocínios, as imaginações, as [38] Eclesiastes 10: 4. [39] Salmo 1: 1. [40] Efésios 6: 14. [41] Cf. João 5: 13. [42] Cf. Salmo 33 (34): 9. [43] João Clímaco, A escada santa XXIX, 4. [44] Cf. I Coríntios 4: 6.18.19.
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formas tenebrosas, numa palavra, tudo aquilo por meio de quê o malfeitor se prepara para combater as almas e as enfrenta tentando desencorajá-las e engoli-las. Mas se o invocamos, Jesus consome tudo isto facilmente. Pois nossa salvação não é outra senão em Cristo Jesus. De resto, o Salvador disse de si mesmo: “Sem mim vocês nada podem [45]”. 1632
23. Então, a toda hora e a cada instante guardemos em segurança nosso coração [46] dos pensamentos que vêm obscurecer o espelho da alma, sobre o qual Jesus Cristo, a sabedoria e o poder de Deus Pai [47] coloca sua marca e inscreve sua imagem luminosa, e busquemos sem descanso no interior do coração o Reino dos céus [48]. O grão de cevada [49], a pérola [50], o levedo [51] e todo o resto, tudo isso encontraremos misticamente dentro de nós mesmos se purificarmos o olho de nosso intelecto. É por isso que nosso Senhor Jesus Cristo disse: “O Reino dos céus está dentro de vocês [52]”. Com isto ele quis dizer que a divindade habita no interior do coração. 1633
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24. A sobriedade e a vigilância iluminam e purificam primeiro a consciência. Depois, tendo purificada a consciência, como uma luz oculta que brilha subitamente, ela expulsa as densas trevas. E, quando as trevas são expulsas por uma contínua e verdadeira vigilância, a consciência revela outra vez o que estava escondido. Por meio da sobriedade da vigilância ela ensina a luta invisível do intelecto e o combate da razão. Ela mostra como o intelecto deve atirar as lanças neste combate singular por Cristo, a luz desejada, face às trevas maléficas, como, com flechas que atingem o alvo, ela deve evitar as flechas que vêm sobre si, bater os pensamentos sem ser batido. Quem provou desta luz compreenderá o que digo. Provar desta luz dá mais fome à alma, que dela se alimenta mais jamais fica saciada; quanto mais come, mais fome tem. Esta luz, que atrai o intelecto como o sol atrai os olhos, esta luz inexplicável que a palavra não pode explicar, que só pode ser experimentada por quem a provou, ou, para falar com mais exatidão, por quem foi por ela abençoada, esta luz ordena que eu me cale. Pois o intelecto se arrisca à arrogância se falar disto, do qual foi dito: “Procurem com todos a paz e a santificação, sem as quais ninguém verá o Senhor [53]”. Isto tudo para adquirir o amor e a pureza; pois neles estão a paz e a santificação. 1640
25. É preciso armar nosso ardor apenas contra os demônios que, na ordem da razão, nos acossam e exercem seu ardor contra nós. Quanto ao modo de conduzir conforme as circunstâncias esta guerra que se desenrola em nós, escute e faça o seguinte: junte à prece a sobriedade e a vigilância, pois a vigilância purifica a prece, e a prece purifica a vigilância. A sobriedade e a vigilância, que não cessam de velar, percebem os que entram e os impedem de entrar, chamando pelo socorro do Senhor Jesus Cristo para que ele expulse os inimigos pérfidos. A atenção os impede de entrar, pondo-se a eles; e Jesus, invocado, expulsa os demônios e seus fantasmas.
[45] João 15: 5. [46] Cf. Provérbios 4: 23. [47] Cf. I Coríntios 1: 24. [48] Cf. Mateus 6: 33. [49] Cf. Lucas 13: 19. [50] Cf. Mateus 13: 45. [51] Cf. Mateus 13: 33. [52] Cf. Lucas 17: 21. [53] Hebreus 12: 14.
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26. Coloque o máximo de rigor em guardar seu intelecto. Uma vez que você toma ciência de um pensamento, refute-o. Mas rapidamente peça ajuda a Cristo. O doce Jesus, antes mesmo que você tenha acabado de falar, lhe dirá: “Eu vim para assegurar sua defesa”. E quando a oração houver derrubado todos esses inimigos, volte a vigiar seu intelecto. Pois vagas ainda mais numerosas do que as primeiras virão umas após outras, e sobre elas se debaterá sua alma a nadar. Mas Jesus voltará, chamado por seu discípulo, e em Deus comandará os maus ventos [54]. Por estas graças, consagre uma hora, se puder, ou um só instante, para glorificar Àquele que o salvou, e para pensar na morte. 1641
27. Tomemos o caminho com o coração totalmente atento e a alma desperta. Pois se ambos seguem juntos ao longo dos dias, a atenção e a prece se parecem com o carro de fogo de Elias [55]: elas transportam às alturas do céu os que vão com elas. Mas, que digo eu? Se o coração alegre obtém ou se esforça por obter a sobriedade e a vigilância, com o sol, a lua e as estrelas ele se desdobra como um céu inteligível e, na ordem da contemplação e da elevação místicas ele se torna o espaço de Deus que nada pode conter. Quem ama a virtude divina deve tentar com todas as suas forças manifestar o Senhor e transmitir com todo o coração suas palavras em seus atos. E se ele controlar com rigor os cinco sentidos, que ele sabe serem nocivos à alma, ele permitirá ao seu intelecto sustentar mais facilmente o combate e a guerra do coração. Repila, então, por meio de uma ascese do intelecto, todos os pensamentos que lhe vierem de fora e combata pelos caminhos divinos e incorpóreos os pensamentos de dentro provocados pelos primeiros. Expulse os prazeres com a fadiga das vigílias. Quanto ao alimento e à bebida, seja temperante. Extenue seu corpo o suficiente para tornar mais facilmente suportável a guerra do coração: é a você que fará bem, não a outra pessoa. Proteja sua alma com o pensamento da morte. E com a lembrança de Jesus Cristo recolhe seu intelecto disperso. Com efeito, é na noite que primeiro descobre em si o intelecto a serenidade do céu nas contemplações luminosas de Deus e do divino. 1642
28. Não recusemos as fadigas da ascese corporal. Pois o trigo sai da terra, e das fadigas nascem a alegria espiritual e a experiência dos bens. Não enganemos nossa consciência quando ela nos engaja a seguir os caminhos da salvação e da ação, e não cessa de nos falar de nossas obrigações e de nossos deveres, e mais ainda se ela for purificada por uma sobriedade e uma vigilância ativas, efetivas e rigorosas do intelecto. A partir daí, por causa de sua pureza, ela traz em si julgamentos penetrantes, equilibrados e indiscutíveis. É por estas razões que não devemos enganar a consciência: ela anuncia dentro de nós a vida que agrada a Deus e, com sua firme reprovação à alma quando esta Às vezes mergulha o coração no pecado, ela lhe mostra como endireitar sua falta, repreendendo este coração que não soube se arrepender e lhe mostrando o remédio que prescreve com doçura.
29. Os olhos ardem ao suportar a fumaça da madeira queimando, mas esta fumaça lhe mostra a seguir a luz e regozija aqueles a quem antes incomodara. Da mesma forma, a atenção, que nos força a velar sem descanso, acaba por nos pesar. Mas se a seguir você chamar Jesus em sua oração, ele iluminará seu coração. Pois sua lembrança lhe levará, com a iluminação, o melhor dos bens. 30. Por assim dizer, é natural que o inimigo tente nos forçar a comer da terra [56]: ele deseja que fiquemos com ele. Ele gostaria que aquele que foi criado à imagem de Deus [57] também rastejasse sobre o ventre [58]. 1643
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[54] Cf. Mateus 8: 23-27. [55] Cf. II Reis 2: 11. [56] Cf. Gênesis 3: 14. [57] Cf. Gênesis 1: 27.
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Por isso Deis disse: “Eu colocarei inimizade entre você e ele [59]”. E esta é a razão pela qual devemos respirar continuamente Deus, a fim de passar a nossa vida, dia após dia, sem sermos feridos pelas flechas inflamadas do diabo [60]. Foi dito: “Eu o protegerei, porque ele conhece meu nome [61]”. E: “Sua salvação está próxima daqueles que o temem [62]”. 1646
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31. O bem-aventurado Apóstolo, o vaso de eleição [63], que falava em Cristo [64] e tinha uma grande experiência no combate interior e invisível do intelecto, que acontece dentro de nós mesmos, escrevia aos Efésios: “Não lutamos contra a carne e o sangue, mas contra as autoridades, contra os poderes, contra as potências das trevas deste século que dominam o mundo, contra os espíritos do mal que habitam os lugares celestes [65]”. Por sua vez, o apóstolo Pedro disse: “Permaneçam sóbrios, vigiem, pois seu adversário, o diabo, ronda como um leão que ruge, buscando ao que devorar. Resistam a ele, firmes na fé [66]”. E nosso Senhor Jesus Cristo, falando das diversas escolhas que devem fazer aqueles que ouvem as palavras do Evangelho, disse: “Depois vem o diabo, e retira do coração a palavra – ou seja, ele a rouba mergulhando-o num esquecimento ruim – de medo que eles creiam e sejam salvos [67]”. E de novo o Apóstolo: “O homem interior em mim ama a lei de Deus, mas eu vejo uma outra lei que se opõe à lei de meu intelecto e que em trava [68]”. Eles disseram estas coisas para nos ensinar e para que saibamos aquilo que nos escapa. 1650
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32. Por assim dizer, é natural que o conhecimento infle o orgulho com o pensamento de que somos mais do que os outros, se não soubermos acusar a nós mesmos e sermos humildes. Partilhemos os sentimentos dos que reconhecem suas fraquezas, escutando aquele que disse: “Irmãos, eu não considero que já tenha alcançado. Só afirmo uma coisa: esquecendo o que ficou para trás, miro o que está adiante e corro para o objetivo com vistas a obter a recompensa com a qual Cristo nos chama do alto [69]”. E ainda: “Assim corro eu, mas não ao acaso. Assim bato eu, mas não como alguém que soca o ar. Mas eu conduzo duramente meu corpo e o submeto, por medo de, depois de haver pregado aos outros, eu me veja eliminado [70]”. Você conhece uma humildade grande assim, capaz de ser também, no mesmo homem, uma corrida para a virtude? Vê como havia em são Paulo, um homem tão eminente e tão importante, tamanha humildade? “Cristo, disse ele, veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro [71]”. Assim sendo, não é uma necessidade para nós, que nos humilhemos, se considerarmos a baixeza de nossa própria natureza? O que há de mais baixo, de fato, do que lama? Devemos nos lembrar de Deus, porque fomos criados a partir dela. E também devemos nos dedicar à temperança, para podermos correr ligeiros ao Senhor. 1656
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[58] Cf. Gênesis 3: 14. [59] Gênesis 3: 15. [60] Cf. Efésios 6: 16. [61] Salmo 90 (91): 14 LXX. [62] Salmo 84 (85): 10. [63] Cf. Atos 9: 15. [64] Cf. II Coríntios 2: 17. [65] Efésios 6: 12. [66] I Pedro 5: 8. [67] Lucas 8: 12. [68] Romanos 7: 22-23. [69] Filipenses 3: 13-14. [70] I Coríntios 9: 26-27. [71] I Timóteo 1: 15.
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33. A quem se entrega a maus pensamentos é impossível guardar seu homem interior a salvo dos pecados. E se ele não desenraizar de seu coração os maus pensamentos, ele não poderá impedi-lo de se voltar para as más obras. A causa do olhar adúltero está em que o olho interior já se entregou ao adultério e às trevas. E a causa do desejo de escutar infâmias está em que escutamos o que nos murmuram os demônios infames que habitam em nós. Devemos assim cada um de nós, no Senhor, nos purificarmos por dentro e por fora, guardar nossos próprios sentidos, nos mantermos puros de toda atividade inspirada pela paixão e pelo pecado. E assim como antes estávamos ligados à vida do mundo e, na nossa ignorância e na vaidade de nosso intelecto, estávamos sujeitados de toda nossa inteligência e de todos os nossos sentidos às mentiras do pecado, retornando à vida em Deus devemos, com toda nossa inteligência e nossos sentidos, nos sujeitarmos ao Deus vivo e verdadeiro [72], à sua justiça e à sua vontade. 1659
34. Primeiro existe a sugestão. Depois vem a adesão, depois o consentimento, depois o cativeiro, e enfim uma paixão formada pelo hábito e a continuidade. Assim é a vitória do inimigo em sua luta contra nós. Assim é que a definem os santos Padres.
35. Eles dizem que a sugestão é um pensamento simples, ou talvez a imagem de uma coisa, que nasce no coração como uma aparição fortuita e que subitamente se mostra ao intelecto; que a adesão consiste em se entreter, de modo passional ou sem paixão, com isto que apareceu; que o consentimento é a complacência da alma por isto que lhe foi dado ver; que o cativeiro é o que arrasta consigo o coração à força e contra sua vontade, ou o que o une duravelmente ao que nos acontece, porém destruindo nosso estado mais nobre. Enfim, eles dizem que a paixão é o que se esconde por um longo tempo e apaixonadamente na alma. De todos estes graus, o primeiro não é um pecado; o segundo não o é inteiramente; o terceiro coloca em cheque o estado daquele que combate. A luta conduz, seja ao coroamento, seja ao castigo.
36. Pois o cativeiro não tem o mesmo sentido, conforme somos arrebatados no momento da oração ou em qualquer outro momento. Quanto à paixão, ela é o fundamento, ou bem do arrependimento que lhe corresponde, ou bem do castigo que virá. Portanto, quem resiste desde o começo, ou seja, desde a sugestão, e que a recebe impassivelmente, corta pela raiz todas as infâmias. Esta luta dos demônios do mal contra os monges e os não monges se resolve, como dissemos, por uma derrota ou por uma vitória. O resultado será a coroa em caso de vitória ou as penas para os derrotados que não se arrependerem. Assim, devemos conduzir o combate do intelecto contra estes demônios, a fim de não deixar que suas vontades maléficas passem para nossas obras como pecados reais. Se arrancarmos o pecado de nossos corações, encontraremos em nós mesmos o Reino de Deus [73]. Por meio desta bela ascese, guardemos em nome de Deus a pureza e a contínua compunção do coração. 1660
37. Muitos monges não se apercebem dos erros do intelecto para os quais os levam os demônios. Eles se voltam para a ação e não se preocupam com o intelecto. Eles são simples e rústicos e atravessam esta vida, imagino eu, o que é a pureza do coração e ignorando totalmente as trevas das paixões exteriores. Portanto, aqueles que não conhecem a luta de que fala Paulo [74], e que, provavelmente tampouco receberam por 1661
[72] Cf. I Tessalonicenses 1: 9. [73] Cf. Lucas 17: 21. [74] Cf. Efésios 6: 12.
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experiência a marca do bem, imaginam que apenas os pecados por ação representam quedas e não consideram que os pecados em pensamento possam ser desafios que podem dar lugar a vitórias, porque nenhum olhar pode vê-los: eles permanecem secretos e só são conhecidos por Deus, o único árbitro do combate, e da consciência daquele que luta. É deles, penso eu, que foi dito nas Escrituras: “Eles disseram: paz. Mas não havia paz neles [75]”. Sua simplicidade os consagra, dentre os irmãos, a rezar por eles e a se instruir o melhor que podem para evitar o mal que possam vir a praticar pelas ações. Quanto àqueles cujo desejo por Deus leva a purificar o olhar da alma, estes estão consagrados a outra ação e outro mistério, o mistério de Cristo. 1662
38. A clara memória da morte é verdadeiramente comum a muitas virtudes. Ela produz o luto, incita à temperança em tudo, lembra a Geena, é a mãe da prece e das lágrimas. Ela é a guarda do coração, que torna a terra enquanto tal indiferente, e é uma fonte de perspicácia e discernimento. Seus filhos são o duplo temor a Deus, bem como a purificação que retira do coração os pensamentos passionais e que contém numerosos mandamentos do Mestre. É nela que podemos ver o duro combate que devemos combater no tempo oportuno, e que é a preocupação da maior parte dos que lutam por Cristo.
39. Um acidente ou uma infelicidade súbita não perturba pouco a atenção dos pensamentos. Atirando o intelecto fora dos caminhos que o levam ao melhor estado, na virtude e na beleza, estas coisas o desviam para disputas e querelas que desembocam no pecado. A causa daquilo que nos fere assim é nossa total despreocupação em relação às agressões.
40. Nada nos perturbará e nada nos oprimirá dentre as aflições que encontramos a cada dia, se de uma vez por todas o saibamos e colocarmos em nossa meditação contínua. É por isso que o divino Paulo disse: “Eu me comprazo nas fraquezas, nos ultrajes, nas angústias [76]”, E: “Todos os que querem viver com piedade em Cristo Jesus serão perseguidos [77]”. A ele a glória pelos séculos dos séculos [78]. Amém. 1663
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[75] Ezequiel 13: 10. [76] II Coríntios 12: 10. [77] II Timóteo 3: 12. [78] Romanos 11: 36.
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ELIAS DE ECDICOS
FLORILÉGIO DE SENTENÇAS DOS FILÓSOFOS CONSAGRADOS À VIRTUDE, COMPOSTO E PREPARADO PELO HUMILDE PADRE ELIAS DE ECDICOS
Uma fonte abundante Um discurso em que correm as águas da conduta moral, Isto você encontrará aqui, se verdadeiramente buscar.
1. Longe de não se inquietar, todo cristão que crê retamente em Deus deve sempre esperar pela prova e se preparar para recebê-la, a fim de não se assustar nem se perturbar quando ela chega, mas aguentar esta prova e esta aflição com reconhecimento e compreender bem o que ela lhe diz, cantando com o Profeta: “Ponha-me à prova, Senhor, teste-me [1]”. Ele não diz: “A educação que você me deu está terminada”, mas: “Não cesse de me endireitar [2]”. 1666
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[1] Salmo 25 (26): 2. [2] Salmo 17 (18): 36.
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2. O começo dos bens é o temor a Deus, e o fim é o desejo de amá-lo.
3. O começo de todo bem é a razão que fundamenta a ação e a ação que fundamenta a razão. Por isso, nenhuma ação é boa sem a razão e nenhuma razão progride sem ação.
4. A ação do corpo é o jejum e as vigílias. A ação da boca é a salmodia, a prece e o silêncio mais precioso do que a palavra. A ação das mãos consiste em fazer seu trabalho sem autocomiseração. E a ação dos pés é de caminhar para o objetivo à primeira exortação.
5. Tudo isso é precedido pela compaixão e a verdade, cujos frutos são a humildade e o discernimento que, segundo os Padres, provém da humildade: sem ela, nem a compaixão nem a verdade verão seus próprios limites. Pois a ação que rejeita o jugo da razão pode errar aqui e ali, como um bezerro, em meio às vaidades. E a razão que recusa vestir os mantos preciosos da prática não mantém seu posto, mesmo que, de um modo ou de outro, mantenha as aparências.
6. A alma corajosa que, como uma mulher, mantém ao longo de toda sua vida acesas as duas lâmpadas da vida ativa e da vida contemplativa, esta cumpre com seu dever. Mas a alma que se abandona aos prazeres faz o contrário.
7. Para se libertar perfeitamente do vício não é suficiente o sofrimento voluntário: a alma também deve se deixar consumir pelo sofrimento involuntário. Se, como uma espada, ela não passa pelo fogo e pela água [3], ou seja, pelas penas voluntárias e involuntárias, ela não pode evitar curvar-se sob as adversidades que lhe sobrevêm. 1668
8. Assim como as provas voluntárias têm três causas gerais, a saúde, a riqueza e a glória, as provas involuntárias têm três causas, que são a ruína, o ultraje e a doença. Estas coisas acontecem para edificar a uns e purificar a outros.
9. Á alma estão ligados o desejo e a tristeza, ao corpo estão ligados o prazer e a dor. A causa da dor é o prazer, pois é tentando evitar a penosa sensação de dor que corremos para o prazer. E a causa da tristeza é o desejo.
[3] Cf. Salmo 65 (66): 12.
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10. O homem virtuoso planta o bem em seu coração, mas o vaidoso o faz girar em sua cabeça. Quanto ao mal, aquele que se consagra à virtude o leva na superfície, mas quem ama o prazer o tem em profundidade.
11. A ação da alma consiste em alcançar a temperança que suscita a simplicidade, e a simplicidade que suscita a temperança.
12. A ação do intelecto consiste em chegar à prece na contemplação, e à contemplação na prece.
13. Quem tem aversão ao mal só o comete raramente, e de modo inadvertido. Mas quem se liga às suas causas é levado ao mal de modo frequente e deliberado.
14. Aqueles que não se arrependem de si mesmos não cessam de cometer faltas. Mas os que pecam contra sua vontade se arrependem plenamente e não se tornam alvo fácil, por causa do arrependimento.
15. Que os sentidos e a consciência estejam de acordo nas palavras que proferimos, para que a divina palavra de paz se encontre no meio delas sem ser confundida pelo que possa nelas haver de desconsiderado ou desmedido.
16. Não é bastante não prejudicar a alma em ato, para mantê-la pura em palavras, nem basta mantê-la pura em palavras para não manchá-la; pois o pecado é tríplice [4]. 1669
17. Você não poderá ver o rosto da virtude enquanto tiver prazer em observar o do vício. Mas este lhe parecerá detestável quando você houver banido o gosto pelas delícias desejadas e pela visão de suas formas.
18. É primeiro pelos pensamentos, não pelos atos, que os demônios combatem a alma. Pois os atos a combatem por si sós. A fonte dos atos é o ouvido e o olho; a dos pensamentos são o costume e os demônios.
[4] Ver infra no. 19.
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TI, VIII – ELIAS DE ECDICOS – Florilégio de sentenças dos filósofos consagrados à virtude.
19. A parte pecadora da alma é tríplice, pois ela peca em pensamentos, palavras e obras. Mas o bem da impecabilidade é sêxtuplo, pois ele guarda sem faltas os cinco sentidos e mais a palavra proferida. Quem não comete nisto nenhum erro é um homem perfeito, capaz de refrear igualmente as demais partes da alma [5]. 1670
20. A parte irracional da alma se divide em seis: os cinco sentidos e a palavra proferida. Esta palavra é mantida sem faltas se for impassível, ao mesmo tempo em que é guardado inseparavelmente dela aquele que é testado pelas paixões. Mas se ela própria for passional, ela molda em si mesma seu próprio vício.
21. Nem o corpo pode se purificar sem o jejum e as vigílias, nem a alma pode se purificar sem compaixão e sem verdade, nem o intelecto pode se purificar sem a intimidade e a contemplação de Deus. As conexões aqui são claríssimas.
22. Dentro do conjunto das virtudes que mencionei, a alma opõe às tentações um guarda imperturbável, que é a paciência. “É por sua paciência que vocês salvarão suas almas”, disse o Verbo. Se isto não acontecer, ela cairá sob as alavancas da lassidão, como uma cidade sem muralhas cai ante os gritos que vêm de longe.
23. Os que são sensatos em suas palavras nem sempre o são nos seus pensamentos. E os que são sensatos em seus pensamentos talvez não o sejam nos seus sentidos exteriores. Pois se todos somos tributários dos sentidos, nem todos pagam seu tributo da mesma maneira. Com efeito, por uma natural simplicidade, a maior parte não é capaz de honrar os sentidos naquilo que lhes é próprio, como os próprios sentidos o pedem.
24. O bom senso, que é indivisível por natureza, é repartido de maneira desigual. A um é dado antes, a outro menos, até que a virtude prática, que tem como companheiras de viagem as virtudes gerais, atinja o bem de quê cada um é capaz. Pois a maioria das pessoas é sensata na medida da insuficiência de sua vida prática.
25. Poucos homens prudentes podem ser encontrados, no que se refere a agir em conformidade com a natureza. Mas encontraremos muitos dispostos a fazer o que é contra a natureza. Com efeito, nas coisas submetidas ao temor, os que extirparam todo bom senso natural são pouco prudentes, mas o são muito nas coisas que ultrapassam a circunspecção, mesmo que por natureza elas não sejam louváveis.
[5] Cf. Tiago 3: 2.
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26. O tempo e a circunspecção são os convivas do silêncio devotado à razão, e a verdade é seu festim. Quando estão presentes, no momento em que a alma se retira, o pai da mentira não encontra nela nada do que procura.
27. O homem verdadeiramente compassivo não é aquele que dá com gosto o supérfluo, mas o que abandona o necessário aos agressores.
28. Uns adquirem o imaterial pela riqueza material, observando as leis da compaixão. Outros são despossuídos do material pelo imaterial, quando tomam consciência do indefectível.
29. Todos gostam de ser ricos de bens. Mas para quem se enriqueceu com a riqueza de Deus, é doloroso não ter recebido a plena liberdade de se regozijar disto.
30. Por fora, a alma parece sã. É por dentro, na raiz dos sentidos, que se esconde normalmente a doença. Se, de fora, tal enfermidade implica absolutamente que sejam colhidas provas dela, e se, por dentro, uma saúde tal implica a renovação do intelecto, será insensato aquele que rejeitar as provas e que não tiver vergonha de permanecer sempre acamado pela enfermidade da insensibilidade.
31. Não se irrite contra quem o maltratou sem querer. Diante do remédio desagradável que ele lhe ministrou você pode se considerar infeliz, mas glorifique aquele que lhe prestou tal serviço cumprindo a economia de Deus.
32. Não recuse a doença como se ela fosse uma coisa temível, mas afaste-se dela usando remédios eficazes – os remédios do amor e das penas – se você quiser cuidar da saúde de sua alma.
33. Não fuja de quem lhe faz mal curando-o quando isto é necessário, mas vá até ele e ele lhe mostrará como é bom aquilo que ele aplica sobre os seus sentidos. Você comerá o doce alimento que dá a saúde quando tiver destruído o alimento que rejeitou por ser amargo.
34. Na mesma medida em que você se ressente das penas que lhe fazem mal, deve aceitar aquele que as inflige repreendendo você. Com efeito, ele está, em relação a você, na origem de uma purificação perfeita, sem a qual o intelecto não conseguirá penetrar no espaço puro da oração.
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TI, VIII – ELIAS DE ECDICOS – Florilégio de sentenças dos filósofos consagrados à virtude.
35. Quando você for repreendido, ou bem se cale, ou bem responda com doçura a quem o repreendeu. Se você é repreendido, você deve responder não para formular suas reivindicações, mas para restabelecer a verdade naquele que o repreendeu sem saber e que talvez tenha se enganado.
36. Quanto àquele que ofendeu alguém, se se arrepender antes de que o ofendido o cite na justiça, não receberá nenhuma das penas merecidas; e se se arrepender depois da citação, receberá metade da pena. Entretanto, aquele que nunca foi excluído da assembleia por ter ofendido alguém ganhará todas as cauções depositadas. Mas quem perdoar completamente a falta de outro acrescentará para si uma recompensa.
37. Nem o orgulhoso conhece seus defeitos, nem o humilde conhece suas qualidades. Uma loucura de perdição cobre o primeiro; mas uma loucura que agrada a Deus cobre o segundo.
38. O orgulhoso não quer ser comparado aos seus iguais no bem. Mas quando é comparado aos que o superam no mal, acha suportável sua inferioridade.
39. A vergonha firma a alma, mas o elogio a relaxa e a torna mais lenta em fazer o bem.
40. O fundamento da riqueza é o ouro, o fundamento da virtude é a humildade. Portanto, do mesmo modo como o que não tem ouro é pobre ainda que pareça rico aos olhos dos outros, também sem humildade quem combate não será nunca virtuoso.
41. Assim como um mercador sem ouro não é um verdadeiro mercador, por mais que seja dotado para os negócios, sem a humildade o asceta se verá impedido de alcançar as doçuras da virtude, ainda que confie totalmente em sua sabedoria.
42. Quem se abre para a humildade reabsorve o sentimento que tem de si mesmo. Mas quem não tem humildade exalta este sentimento: este homem não suporta voluntariamente ser contado entre os menores, e é por isso que sua inveja se manifesta em relação aos primeiros lugares [6]. 1671
[6] Cf. Lucas 14: 7.
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43. Para quem combate é bom ter pensamentos que permaneçam antes daquilo que faz, e conduzir ações que sejam mais fortes que sua preguiça. Assim ele será um operário respeitado pelos homens e irrepreensível diante de Deus.
44. Quem teme ser visto como um estrangeiro no meio dos que estão diante de si no local das núpcias [7] deve, seja assumir retamente os mandamentos de Deus, seja colocar todo seu esforço sobre um único: a humildade. 1672
45. Una a temperança à simplicidade, a verdade à humildade, e você será visto como um conviva da justiça, à mesa da qual todas as demais virtudes gostam de se reunir.
46. Sem a humildade, a verdade é cega. Pois então ela toma como guia a contradição, que tem que se apoiar sobre qualquer coisa, mas não encontra nada senão a fortaleza do ressentimento.
47. Uma conduta afável testemunha a beleza da virtude, e o equilíbrio dos membros do corpo testemunha uma alma em paz.
48. O primeiro bem consiste em não cair em nenhum erro. O segundo consiste em não esconder sua falta por vergonha, nem mergulhar nela, mas se humilhar, acusando a si próprio se for acusado, e aceitando a pena com alegria. Se não fizermos isto, nada permanecerá daquilo que oferecemos a Deus.
49. Além do sofrimento que enfrentamos voluntariamente, também é preciso acolher o sofrimento involuntário, ou seja, as penas e as enfermidades que provêm dos demônios. Quem não acolhe estes sofrimentos mas os recusa, é semelhante ao homem que quer comer seu pão não com sal, mas apenas com mel; ele não terá sempre o prazer como companheiro, mas antes terá como vizinho constante o desgosto.
50. Embora seja um mestre, parece revestido de uma roupa de escravo [8] aquele que lava com palavras divinas o manto esfarrapado do próximo ou que o remenda para que ele possa usar. Porém, que age assim deve tomar cuidado para não perder, por vanglória ou por não agir como um servidor, a recompensa e a honra que lhe é própria, a honra da liberdade. 1673
[7] Cf. Mateus 12: 12. [8] Cf. Filipenses 2: 7.
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51. Assim como a fé é o fundamento daquilo que se espera [9], a sabedoria é o fundamento da alma e a humildade o fundamento da virtude. Isto pode espantar: sem estes atributos, o perfeito em si é imperfeito. 1674
52. Está dito: “O Senhor guardará sua entrada e sua saída [10]”, manifestamente pela temperança nos alimentos e nas palavras. Pois quem modera a entrada e a saída dos alimentos e das palavras foge da concupiscência dos olhos e acalma o ardor da convulsão. Ora, é nisto que deve se aplicar e trabalhar acima de tudo e de toda maneira aquele que conduz o combate. Pois são estas coisas que reconfortam a vida ativa e firmam a vida contemplativa. 1675
53. Alguns são muito atentos à entrada dos alimentos, mas negligenciam a saída das palavras. Estes não sabem afastar a cólera de seus corações [11], nem a concupiscência de sua carne, como diz o Eclesiastes: é por meio destas coisas, normalmente, que o Espírito novo cria um coração puro. 1676
54. Encontraremos a frugalidade nas refeições na qualidade inferior dos alimentos, e a retidão das palavras na qualidade maior do silêncio.
55. Consuma seus rins abstendo-se de alimentos, guarde seu coração moderando suas palavras, e assim você colocará a serviço do bem o desejo e o ardor.
56. O prazer do baixo ventre se perde nos ascetas quando o corpo perde sua vitalidade. Mas o prazer da língua permanece naquele que ainda não se desembaraçou do supérfluo. É preciso que você se dedique, agindo sobre a causa, a purificar o ultraje do efeito, a fim de não se revestir de vergonha se for pego estranho à virtude da temperança lá em baixo.
57. É preciso que o asceta saiba quando e com que alimentos nutrir seu corpo como se este fosse seu inimigo, quando consolá-lo como a um amigo e quando reconfortá-lo como a um enfermo, a fim de não oferecer por engano ao amigo o que cabe ao inimigo, nem ao inimigo o que é do amigo, nem fazer-lhes guerra no momento da tentação por haver escandalizado a uns e outros.
58. Quando aquele que se alimenta coloca o alimento antes do desfrute, a graça das lágrimas que penetram nele começa a consolá-lo e a fazê-lo esquecer das outras doçuras, como se estas doçuras fossem daqui por diante, sem comparação, engolidas pela própria doçura das lágrimas.
[9] Cf. Hebreus 11: 1. [10] Salmo 120 (121): 8. [11] Cf. Eclesiástico 11: 10.
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59. Naquele que vive com largueza as lágrimas são reabsorvidas. Mas elas se espalham em quem ama a via estreita [12]. 1677
60. Nem o pecador nem o justo escapam à aflição. Um, porque não está totalmente afastado do pecado; outro, porque ainda não alcançou a perfeição.
61. Dependem de nós as virtudes que estão ao nosso alcance: a prece e o silêncio. Não dependem de nós, mas em geral do estado do corpo, o jejum e a vigília. É preciso buscar o que está mais acessível àquele que combate.
62. A morada da alma é a paciência: ela aí reina. Mas seu trabalho é a humildade, que a alimenta.
63. Se você não suporta as penas, não será honrado com os louvores. Se você preferir a dor ao prazer, você evitará ser afligido.
64. Não se deixe prender pelas pequenas coisas e não será sujeitado pelas grandes. Pois não cometemos naturalmente as faltas maiores sem antes termos cometido as menores.
65. Se você tiver os olhos postos nos grandes inimigos, você será temido pelos pequenos. Mas se os menores o desdenharem, parecerá que você sucumbiu diante dos grandes.
66. Você não poderá alcançar as virtudes maiores, se não conquistar o cume das virtudes que estão ao seu alcance.
67. Naqueles em quem reinam a compaixão e a verdade, tudo agrada a Deus. Pois a verdade não julga ninguém sem a compaixão, e esta não ama os homens sem a verdade.
68. Se você unir a temperança à simplicidade, você estará em condições de compreender a beatitude do Reino.
[12] Cf. Mateus 7: 13.
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69. Você não verá mais as paixões que o combatem se previamente não deixar baldia a terra em que elas vicejam.
70. Uns se dedicam a purificar somente a matéria do corpo. Outros se dedicam também a purificar a matéria da alma. Pois uns são atacados apenas pelos pecados da ação, enquanto outros o são pela paixão. Mas bem poucos enfrentam o pecado do desejo.
71. A matéria ruim do corpo é a emoção passional. A matéria ruim da alma é o desfrute passional. A matéria ruim do intelecto é o pendor passional. A primeira é simbolizada pelo tato; a segunda pelos demais sentidos; e a última é simbolizada pela disposição hostil.
72. O homem passional no seu desfrute é semelhante ao homem passional nas suas emoções. O homem passional nos seus pendores é semelhante ao homem passional nos seus desfrutes. Mas o impassível está distante de ambos.
73. O homem passional nas suas emoções é um homem cuja tendência ao pecado é mais forte do que a razão, mesmo que até então ele não tenha pecado exteriormente. O homem passional em seu desfrute é aquele em quem o pecado ativo domina a razão, mesmo que ele só experimente o pecado interiormente. O homem passional nos seus pendores é o que busca a liberdade mais do que a sujeição dos que permanecem no entremeio. O homem impassível será aquele que ignora a diferença que separa todos esses estádios.
74. A emoção passional é retirada da alma pelo jejum e a oração. O desfrute passional é retirado da alma pelas vigílias e o silêncio. O pendor passional é retirado da alma pela hesíquia e a atenção. Mas a impassibilidade nasce da lembrança de Deus.
75. Dos lábios da impassibilidade escorrem as palavras da vida eterna, como favos de mel [13]. Quem será considerado digno de unir estes lábios aos seus [14], de repousar em seus seios, de sentir o doce odor de suas vestes [15], ou seja, de cair sob o encantamento da lei das virtudes, da qual se diz que ultrapassa todos os perfumes do conhecimento sensível? 1678
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76. Muitos talvez tenham se despido das vestes do amor próprio. Poucos se despojaram das vestes do amor ao mundo. Mas somente os impassíveis se despojaram da veste da vanglória, que se diz ser a última. [13] Cf. Cântico dos Cânticos 4: 11. [14] Cf. Cântico dos Cânticos 1: 13. [15] Cf. Cântico dos Cânticos 4: 10-11.
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77. Toda alma será despojada do corpo visível. Mas do corpo do pecado só será despojada a alma que tiver aproveitado pouco dos prazeres daqui de baixo.
78. Todos passarão visivelmente da vida à morte. Mas morrerão para o pecado [16] apenas os que tiverem aversão deliberada a ele. 1681
79. Quem se verá despojado do pecado antes da morte comum do corpo? E quem conhecerá a si mesmo e saberá qual é sua própria natureza, antes do despojamento futuro?
A alma ferida pelo amor nupcial, saberá a prece, aqui em baixo, uni-la ao esposo [17]. 1682
80. À alma dotada de razão, situada na fronteira entre a luz vista pelos sentidos e a luz vista pelo intelecto é dado bem ver, por meio de uma, as coisas do corpo e, por meio da outra, as coisas do Espírito. Mas uma vez que nela uma se obscurece e outra se aviva, por causa do hábito adquirido desde o começo, ela já não consegue tendes totalmente para as coisas divinas se não estiver mergulhada na oração com a luz vista pelo intelecto. Ela permanece necessariamente no intervalo que separa as trevas da luz, voltada para a luz por seu estado, e para as trevas pela imaginação.
81. O intelecto passional não pode entrar pela porta estreita da prece antes de ter renunciado aos cuidados de seu estado. Ocupada ao redor das moradas da prece, ele não deixará de se afligir.
82. Que a prece permaneça no intelecto, como um raio de sol. Sem a prece, as preocupações dos sentidos, desenvolvendo-se como nuvens sem água, privam o intelecto de sua própria luminosidade.
83. A força da oração está na fome, pela qual nos privamos de alimentos voluntariamente. A força da fome está em não ouvir nem ver nada do mundo sem uma extrema necessidade. Quem não se precaver contra estas coisas não conseguirá consolidar o edifício do jejum, e fará ruir com ele o edifício da oração.
[16] Cf. Romanos 6: 11. [17] Cf. Cântico dos Cânticos 2: 5.
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84. Se o intelecto não se libera de todo sombreamento dos sentidos, ele não poderá se voltar para o alto nem conhecer sua própria dignidade.
85. O jejum é o símbolo do dia, por sua claridade, e a prece é o símbolo da noite, por sua escuridão. Quem caminhar por uma e outra destas duas vias alcançará a cidade que procura, de onde fugiram a dor, a aflição e os gemidos [18]. 1683
86. O trabalho espiritual se faz naturalmente independentemente das penas do corpo. Feliz daquele, portanto, que considera o trabalho imaterial melhor do que o trabalho material. É por meio deste trabalho que ele completa o que faltou à obra material, vivendo a vida de oração, que é oculta, mas que Deus vê.
87. O Apóstolo divino nos exorta a permanecer firmes na fé, a nos alegrarmos na esperança, a perseverar na prece [19], para que em nós persista o bem da alegria. Se é assim, aquele que não permanece firme não é fiel, e aquele que não se regozija não possui a boa esperança. Porque ele rejeitou a causa da alegria, que é a prece, por não ter perseverado nela. 1684
88. Se o intelecto que desde o princípio viveu nos pensamentos do mundo se ligou completamente a eles, como não tornará sua a prece contínua? Com efeito, como se diz, onde se passa muito tempo, é ali que se desabrocha [20]. 1685
89. Assim como o intelecto depois de muito tempo separado de sua própria morada esquece o esplendor de lá, da mesma forma ele deve retornar por meio da oração, esquecendo, por sua vez, as coisas aqui de baixo.
90. Como uma criança deitada sobre o seio frio de sua mãe, assim se sentirá o intelecto que se deita sobre uma prece que não pode consolá-lo. Mas se for de outro modo, se a prece consolá-lo, ele será como uma criança que dorme prazerosamente nos braços de sua mãe.
91. É aí, diz-se, sobre o leito austero da vida virtuosa, que, como no leito de que fala o Cântico dos Cânticos, a esposa, a prece, poderá dizer àquele que a ama: “Eu lhe darei meus seios [21], se você se consagrar inteiramente a mim”. 1686
[18] Cf. Isaías 35: 10. [19] Cf. Romanos 12: 12. [20] Cf. Máximo o Confessor, Sobre o amor III, 71. [21] Cântico dos Cânticos 7: 13.
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92. Não consegue sentir afeição pela prece aquele que não renunciou a toda a matéria.
93. Quando for reza separe-se de tudo, salvo a vida e o sopro, se quiser estar a sós com o intelecto.
94. O testemunho de um intelecto amado por Deus é a prece do único nome divino, o testemunho de um pensamento sábio é a linguagem oportuna, o testemunho de uma sensibilidade livre é o gosto simples. É por meio destes três testemunhos, diz-se, que são reconfortadas as coisas da alma.
95. A natureza de quem ora deve ser doce e terna, como das crianças, a fim de que lhe seja possível se abrir docilmente, como elas fazem, ao desabrochar que a prece ordena. Portanto, não seja negligente, você que deseja se unir assim à oração.
96. Nem todos têm o mesmo objetivo quando oram. Um visa isto, outro aquilo. Um pede que seu coração esteja sempre em estado de prece, se for possível. Outro pede para ir além da oração. Outro pede para não ser interrompido por pensamentos enquanto ora. Mas todos pedem para ser guardados no bem e protegidos do mal.
97. Se é verdade que ninguém termina a oração sem um coração humilhado (pois que ora está quebrantado pela humildade), o homem que coloca sua confiança em outra coisa não ora com humildade.
98. Se orarmos considerando a viúva que insistiu na sua demanda diante do juiz iníquo [22], jamais nos desencorajaremos por tardarem os bens prometidos. 1687
99. A oração não permanecerá em você se você se demorar nos pensamentos interiores e nas conversas exteriores. Ela se volta para aqueles que, por causa dela, se cortaram da maior parte das coisas.
100. Se as palavras da oração não penetrarem nas profundezas da alma, as lágrimas não poderão banhar as maçãs do rosto.
[22] Cf. Lucas 18: 2-5.
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101. Para o agricultor, a colheita crescerá, ainda que ele não tenha sob seus olhos a semente que derramou sobre a terra. Mas para o monge, as lágrimas não brotarão, a menos que ele siga, sem se desviar do esforço, as palavras da oração.
102. A prece é a chave do Reino dos céus. Quem se liga a ela como se deve enxerga os bens que ela prepara para os que a amam. Mas quem não coloca sua confiança no Reino só terá olhos para as coisas presentes.
103. No momento da prece, o intelecto não poderá dizer a Deus: “Você rompeu os meus laços; eu lhe oferecerei um sacrifício de louvor [23]”, se, por desejar o melhor, não tiver rompido com a lassidão e a negligência, o sono prolongado e os festins, de onde provêm todas as derrotas. 1688
104. Quem se perde em fantasias quando ora permanece fora do primeiro véu. Quem atingiu a prece única do nome divino penetrou no interior. Mas só é admitido ao Santo dos Santos [24] aquele que, com os pensamentos naturais em paz, considera aquilo que concede a outra paz, a que ultrapassa toda inteligência [25], e que é considerado digno de receber do alto uma revelação divina. 1689
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105. Quando, depois de se ter desligado das coisas exteriores, a alma se liga à prece, então, semelhante a uma chama que a envolve assim como quando o fogo envolve o ferro, ela se abrasa inteira. A alma permanece a mesma, mas já não podemos tocá-la, assim como não podemos tocar o ferro ao rubro pela ação do fogo.
106. Feliz o homem que nesta vida foi considerado digno de ser assim considerado, semelhante a uma estátua de argila por natureza, mas de fogo pela graça.
107. Para os que se engajam nesta via, a lei da oração é um mestre rigoroso. Mas para os que progrediram ela é como o amor, que arrasta para um festim suntuoso os que têm fome.
108. Quanto aos que se dedicam devidamente à ascese, a prece tanto os cobre como uma nuvem [26], deles afastando os pensamentos que queimam, tanto lhes abre as contemplações espirituais derramando sobre eles a fina chuva das lágrimas. 1691
[23] Salmo 115 (116): 7-8. [24] Cf. Hebreus 9: 6-7. [25] Cf. Filipenses 4: 7. [26] Cf. Êxodo 13: 21.
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109. A doçura do prazer que sentimos quando ouvimos alguém tocar a cítara é e será sempre exterior. Mas se as palavras secretas que ela diz em espírito não produzem o mesmo som quando ela ora, a alma não se acha em estado de compunção. Pois é por “não saber o que pedir quando oramos, etc. [27]” que ora aquele que ora. 1692
[27] Romanos 8: 25.
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Do conhecimento
O intelecto recebe a luz da contemplação gnóstica quando se eleva às alturas. Mas se ele busca as razões ele retorna às trevas, deslizando para a paixão.
1. É preciso que o gnóstico saiba: seu intelecto tanto é o país da origem dos pensamentos quanto o país dos raciocínios, quanto o país dos sentidos. E ele retorna ao primeiro país se encontrar primeiro os pensamentos que lhe vêm a propósito do que os que lhe vêm fora de propósito.
2. O intelecto que não permanece na origem dos pensamentos fica por inteiro nos raciocínios. Se permanecer nos raciocínios, não ficará na origem dos pensamentos. Se penetrar nos sentidos, ficará no meio de todas as coisas.
3. Por meio da origem dos pensamentos o intelecto se une ao inteligível. Por meio do raciocínio, a razão encontra o racional. E, por meio da imaginação, os sentidos encontram a vida prática.
4. O intelecto que se recolhe sobre si mesmo não contempla nem as coisas dos sentidos nem as coisas do raciocínio, mas os pensamentos nus e os raios da luz divina, de onde transbordam a paz e a alegria.
5. Uma é a inteligência da coisa, outra a inteligência em si, e outra ainda a que se refere aos sentidos. Existem aí a essência, o acidente e a diversidade do fundamento material.
6. O intelecto pode abrir numerosos caminhos: ele se mostra insaciável. É somente quando ele se engaja na via única da prece que, antes de alcançar o objetivo, ele se sente apertado: então ele suplica ao que partilha de seu caminho que o envie de volta ao ponto de onde saiu. 626
TI, VIII – ELIAS DE ECDICOS – Florilégio de sentenças dos filósofos consagrados à virtude – Do conhecimento.
7. Se se deixar levar para longe daquilo que está no alto, o intelecto não conseguirá regressar para lá sem suscitar em si o perfeito desdém pelo que está em baixo, consagrando-se apenas às coisas divinas.
8. Se você não consegue fazer com que sua alma permaneça apenas com seus pensamentos, pelo menos obrigue seu corpo a permanecer na solidão para aí considerar continuamente sua miséria. É assim que, com o tempo e a piedade de Deus, você poderá retornar à dignidade primeira de sua origem nobre.
9. O monge ativo pode facilmente submeter o intelecto à oração, e o monge contemplativo pode facilmente submeter a oração ao intelecto. Um separa os sentidos das formas visíveis. Outro transporta sua alma para as razões ocultas nas formas. Um leva o intelecto a ignorar as razões dos corpos. Outro conduz o intelecto a compreender as razões dos incorpóreos. Ora, os incorpóreos são as razões dos corpos, suas naturezas próprias e suas essências.
10. Quando você tiver liberado seu intelecto dos prazeres do corpo, do dinheiro e da comida, então aquilo que você fizer será considerado por Deus como uma oferenda pura. Em retribuição, lhe será concedido abrir os olhos de seu coração e estudar com toda clareza as palavras que Deus inscreveu nele, as quais, pela doçura que transmitem, são consideradas pela boca de sua inteligência como favos de mel [28]. 1693
11. Você não poderá fazer com que seu intelecto esteja acima do desejo do corpo, do dinheiro e das comidas desnecessárias se você não conseguir fazê-lo penetrar no país da pureza, no país dos justos, onde a lembrança da morte e a lembrança de Deus escorrem e apagam do coração terrestre todos os levantes do desejo.
12. Nada é mais terrível do que o pensamento da morte e nada mais maravilhoso do que a lembrança de Deus. Um suscita uma tristeza salutar, a outra traz alegria. “Eu me lembrei de Deus, diz o Profeta, e me alegrei [29]”. E o sábio disse: “Lembre-se do seu fim e você não pecará mais [30]”. É impossível se regozijar com a lembrança de Deus sem ter antes tido a amarga experiência da morte. 1694
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13. Enquanto o intelecto não olhar de frente para a glória de Deus [31] a alma não poderá dizer com conhecimento de causa: “Eu me regozijarei no Senhor, exultarei na sua salvação [32]”. Pois o véu do amor próprio cobre seu coração, impedindo que lhe sejam revelados os fundamentos do universo, que são as razões das criaturas. E este véu não lhe será retirado sem as penas voluntárias e involuntárias. 1696
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[28] Salmo 18 (19): 11; 118 (119): 103. [29] Salmo 76 (77): 4 LXX [30] Eclesiástico 7: 36. [31] Cf. II Coríntios 3: 18 [32].Salmo 34 (35): 9.
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14. Não foi após fugir do Egito, que é o pecado pela ação, nem depois de passar o mar Vermelho, que é a sujeição à natureza, mas depois de haver permanecido no deserto, nomeio dos efeitos e dos movimentos dos vícios, que o guia do povo de Israel pode ver a terra prometida [33], que é a impassibilidade, e enviar suas forças para olhar e observar. 1698
15. Alguns, que permanecem no deserto, ou seja, na inércia das paixões, não conhecem os bens desta terra bem-aventurada senão por ter ouvido falar. Outros, depois de haver examinado estes bens, mantiveram-se apenas e simplesmente na consideração daquilo que viram. Outros enfim, que foram considerados dignos de entrar na terra prometida, foram premiados com o sentir plenamente as palavras que escorrem dela como leite e mel [34], vale dizer, as palavras da primeira e da segunda contemplação. 1699
16. Aquele que ainda traz em si os movimentos naturais da carne ainda não pode se considerar crucificado com Cristo [35]. Nem foi enterrado com Cristo aquele que arrasta atrás de si as concupiscências da alma. Como poderão então tais homens ressuscitar com ele para levar a vida nova? 1700
17. As três virtudes fundamentais da alma são o jejum, a oração e o silêncio. Aquele que pretende sair da oração deve buscar o repouso de uma contemplação natural. Quem pretende sair do silêncio deve buscar o repouso de uma conversação moral. E quem pretende sair do jejum deve buscar o repouso de um segundo alimento agradável.
18. Enquanto o intelecto está entretido com as coisas de Deus, ele salvaguarda a semelhança divina permanecendo bom e compassivo. Passando para as coisas dos sentidos, se descer oportuna e convenientemente, ele transmite sua experiência, adquire outra e retorna a si mesmo com renovadas forças. Mas se descer despropositadamente e sem necessidade, ele se verá como um general insensato, separado do grosso de suas tropas no decurso do combate.
19. O paraíso da impassibilidade oculto em nós é a imagem daquele que deve receber os justos. Porém, dos que não forem capazes de penetrar neste paraíso que trazemos em nós, nem todos serão excluídos do outro.
20. O sol sensível mantém seus raios no exterior de uma casa fechada. E o sol espiritual não consegue acariciar com suas doçuras a alma que o recebe sem manter os sentidos fechados às coisas sensíveis.
[33] Cf. Josué 2: 1-3. [34] Cf. Êxodo 3: 8. [35] Cf. Gálatas 2: 20.
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21. É gnóstico aquele que coloca a grandeza nas descidas de sua alma, e a humildade nas suas elevações.
22. A abelha que vai e vem pelas pradarias mostra de onde tirou seu mel. E a alma que vai e vem pela diversidade dos séculos daí tira a doçura que transmitirá aos seus pensamentos.
23. O cervo que come um serpente corre às fontes de água para extinguir o veneno. Mas a alma que foi ferida pelas flechas de Deus não cessa de aspirar pelo amor que a levará àquele que a feriu.
24. Os pensamentos nus brotam da vida solitária. Os pensamentos do mundo brotam na vida a dois. Mas quando a alma está dividida, os pensamentos se afastam. Somente as inteligências desprovidas de corpos se aproximam dela e lhe manifestam as razões da providência e do julgamento, como se revelassem os fundamentos da terra.
25. Na vida a dois, o homem e a mulher não têm naturalmente uma visão simples. Encontraremos esta visão no coração da vida solitária, na qual, em Jesus Cristo, pela semelhança, não mais encontraremos distinção entre homem e mulher.
26. Os pensamentos não são típicos nem da parte da alma desprovida de razão (pois não existem pensamentos naquilo que é desprovido de razão), nem da parte da alma dotada de inteligência (pois tampouco existem pensamentos entre os anjos). Eles são fruto do trabalho da razão. Servindo-se da imaginação como se fosse uma escada, eles se elevam dos sentidos ao intelecto para lhe relatar as impressões, e dessem do intelecto para os sentidos para lhes confiar as razões.
27. Como homens que saem de um abismo e procuram qualquer coisa em que se agarrar, assim são os maus pensamentos quando o vício se encontra em perigo, como um navio à deriva quando as lágrimas jorram.
28. Dependendo da qualidade fundamental da alma, os pensamentos que a cercam se reúnem, ou bem para atirá-la ao mar como piratas, ou bem para vir em seu auxílio, como remadores, quando ela está em perigo. Aqueles empurram o navio metendo-o no oceano dos pensamentos maléficos. Estes, escolhendo a costa mais próxima, conduzem o navio para praias aprazíveis.
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TI, VIII – ELIAS DE ECDICOS – Florilégio de sentenças dos filósofos consagrados à virtude – Do conhecimento.
29. Se a alma que deseja se desembaraçar do sétimo e último pensamento, o pensamento da vanglória, não se despoja antes dos seis pensamentos precedentes [36], ela não poderá revestir-se do oitavo, que vem depois dos demais, e do qual o Apóstolo disse ter o nome de “morada celeste [37]” e ao qual podem ser levados com seus gemidos aqueles que se desnudam assim para não mais se vestir com as coisas da matéria. 1701
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30. À prece perfeita se reportam naturalmente os pensamentos angélicos. À prece mediana se reportam os pensamentos espirituais. À prece elementar se reportam os pensamentos naturais.
31. Assim como a qualidade do grão se revela normalmente pela espiga, também a pureza da contemplação se revela pela oração. Uma, para dissuadir os pássaros que a bicam se reveste de barbelas como se fossem lanças. Outra, para suprimir as tentações, carrega consigo as meditações da sabedoria.
32. Aquilo que a ação deixa entrever da alma está coberto de prata como as asas das pombas. Mas o que a contemplação dá a compreender – vale dizer, a outra face – é semelhante ao ouro verde [38]. Pois a alma que não está na flor de sua beleza não é capaz de voar e pousar [39] onde se encontra a moradia dos que são felizes [40]. 1703
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[36] Os oito pensamentos de malícia, definidos e classificados por Evagro, são: a gula, a prostituição, o amor ao dinheiro, a cólera, a tristeza, a acídia, a vanglória e o orgulho. Cf. Evagro, Sobre os pensamentos; Cassiano, Sobre os oito pensamentos de malícia. [37] Cf. II Coríntios 5: 2-4. [38] Cf. Salmo 67 (68): 14. [39] Cf. Salmo 54 (55): 7. [40] Cf. Salmo 86 (87): 7. 1701
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TI, VIII – ELIAS DE ECDICOS – Florilégio de sentenças dos filósofos consagrados à virtude – Da ação e contemplação.
Da ação e contemplação
Aqui está a pradaria coberta de frutos da ação e da contemplação espirituais.
33. Outrora foi ordenado aos antigos para que levassem ao templo as primícias do moinho e da moenda [41]. Mas a nós é agora ordenado entregar a Deus as primícias da ação, a temperança e a verdade, e as primícias da virtude contemplativa, o amor e a oração. Para as primeiras, devemos deter os impulsos do desejo e do ardor irracionais. Para as últimas, devemos evitar os pensamentos vãos e as armadilhas nas quais podemos cair por causa do próximo. 1706
34. O começo da prática é a temperança e a verdade. O meio é a castidade e a humildade. O fim é a paz dos pensamentos e a santificação dos corpos.
35. A ação não consiste simplesmente em fazer o bem, mas em fazê-lo como se deve, no tempo adequado e na medida certa.
36. A contemplação não consiste apenas em ver os corpos tais como são, mas também em ver suas razões e aquilo que elas mostram.
37. Não existe ação segura fora da contemplação, nem verdadeira contemplação sem ação. Pois é preciso que a ação tenha sua origem na razão, e que a contemplação seja fruto da ação, a fim de que numa o vício perca a força e na outra a virtude tenha o poder de se comprazer na bondade.
38. O objetivo dos monges ativos é a anulação das paixões. O fim dos monges gnósticos é a contemplação das virtudes.
[41] Cf. Êxodo 22: 28.
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TI, VIII – ELIAS DE ECDICOS – Florilégio de sentenças dos filósofos consagrados à virtude – Da ação e contemplação.
39. Aquilo que a matéria representa para a forma, a ação é relativamente à contemplação. O que o olho é para o rosto, a contemplação é para a ação.
40. Na corrida para a virtude ativa muitos disputam, mas só um recebe o prêmio [42]: o que deseja chegar ao final por meio da contemplação. 1707
41. Durante a prece, o monge ativo bebe a água da compunção. Mas o monge contemplativo se embriaga com a melhor das taças. Um ama a sabedoria nas coisas da natureza. O outro ignora a si próprio na oração.
42. Não é permitido ao monge ativo permanecer por muito tempo na contemplação espiritual. Pois tudo se passa como se ele recebesse a hospitalidade em casa de alguém, devendo se retirar secretamente o mais depressa possível.
43. Assim como os monges ativos passam orando pelas portas dos mandamentos de Deus, os contemplativos entram cantando nas mansões das virtudes. Uns rendem graças por ter sido libertos de seus bens, outros rendem graças por haver capturados os que os combatiam.
44. A força da contemplação deve se regrar pela força da prática. Senão, como um navio cujas velas não se harmonizam, ou bem não suportará o perigo que, por sua desproporção o farão desabalar sob a violência dos ventos, ou não suportará o peso dos ventos, por serem pequenas as velas para o tamanho do barco.
45. Considere que os pensamentos piedosos são os remadores do navio inteligível, e que as potências vitais da alma, o ardor e o desejo, a vontade e a resolução, são como os remos. O monge ativo sempre tem necessidade destes remos, mas não o contemplativo: pois, no momento da prece, depois de ter saudado todos os seres, ele coloca a si mesmo no leme do discernimento e passa toda a noite em contemplação, oferecendo seus louvores Àquele que dirige o universo. Talvez até, retomando um canto de amor, ele cante também à sua alma, enquanto observa os solavancos do mar e seus movimentos violentos, tão tomado de temor está diante dos juízos de Deus e das decisões de sua justiça.
46. Quem se divide com equilíbrio entre a ação e a contemplação não navega, em tudo e por tudo, só com os marinheiros no leme ou só com as velas inteligíveis, mas é com uns e outros que realiza a travessia com felicidade. Ele se regozija de trazer consigo as penas da ação para alcançar a medida da contemplação. E se regozija de ter em si as razões da perfeita contemplação para receber o reconforto da ação. [42] Cf. I Coríntios 9: 24.
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47. O monge contemplativo, no qual convergem a natureza e a vontade, navega sem dificuldade como se fosse levado por uma correnteza. Mas o monge ativo, encontrando um estado natural oposto à resolução, enfrenta uma grande tempestade de pensamentos e corre o risco de, sob tal peso, ser levado ao desespero, ou quase isto.
48. Se não for bem trabalhado, normalmente um campo não devolve ao semeador muitos grãos bons, Da mesma forma, quem se dedica à ação, se não busca-la atentamente e sem ostentação, não verá sua prece lhe trazer muitos bons frutos.
49. O intelecto que não cessa de polir o passo da prece é semelhante a uma terra que é muito percorrida. Esta será plana e aquele direito, para acolher, a segunda pés delicados e a primeira, preces puras.
50. Na ordem das coisas materiais, o intelecto tem o pensamento como auxiliar. Mas na ordem do imaterial, se ele não se remete a uma instância mais competente, ele terá em si um espinho para feri-lo [43]. 1708
51. O monge ativo tem sobre seu coração, durante a prece, um véu – o conhecimento das coisas sensíveis – que não pode ser retirado pela força das coisas. Somente o contemplativo, por escapar à lei da natureza, pode ver em parte a glória de Deus com o rosto descoberto [44]. 1709
52. A prece unida à contemplação espiritual é a terra prometida onde corre, como o leite e o mel [45], o conhecimento das palavras de Deus sobre a providência e o juízo. A prece misturada à contemplação natural é o Egito, no qual a lembrança das concupiscências da abundância vem perturbar os que oram. A prece simples é o maná no deserto [46], que, por sua própria simplicidade, interdita aos que não sabem se conter os bens que procuram em seu desejo de coisas prometidas, e dá aos que se mantém com este alimento frugal o gosto durável das coisas do alto. 1710
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53. A ação unida à contemplação será considerada como um corpo unido ao espírito que o dirige. Mas a ação sem a contemplação será considerada como uma carne unida ao espírito do arbitrário.
54. Os sentidos são o átrio da alma dotada de razão. A reflexão é seu templo. O intelecto, o grãosacerdote. No átrio permanece a inteligência atravessada pelos pensamentos intempestivos; no templo,
[43] Cf. II Coríntios 12: 7. [44] Cf. II Coríntios 3: 18. [45] Cf. Êxodo 3: 6. [46] Cf. Números 11: 7.
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entra a inteligência atravessada pelos pensamentos justos. Mas nenhum desses pensamentos atravessa a inteligência considerada digna de penetrar no santuário divino.
55. São as lamentações, as auto-recriminações e os arrependimentos que encontramos na morada [47] da alma ativa, por causa de seu sofrimento. Mas é a voz do regozijo e da gratidão [48] que ouvimos na morada da alma contemplativa, por causa do seu conhecimento. 1712
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56. O monge ativo deseja morrer através de suas penas e nascer com Cristo [49]. Mas o contemplativo prefere permanecer na carne, pela alegria que ele recebe da prece e pelo bem que ele pode fazer a seu próximo. 1714
57. Entre os mais cultos, a contemplação precede a ação. Entre os mais incultos a ação precede a contemplação. Mas ambas as vias chegam ao mesmo final feliz. Entretanto, este fim se revelará mais depressa para aqueles em quem a contemplação precede a ação.
58. A contemplação dos inteligíveis é o paraíso. O monge gnóstico aí penetra como se fosse sua casa. Quanto ao monge ativo, ele se parece mais como um passante que deseja se debruçar para o interior da casa, mas que é impedido pela grade que lhe impõe sua estatura espiritual.
59. As paixões do corpo se parecem com feras, e as paixões da alma se parecem com pássaros. O monge ativo impede as feras de entrar em sua vinha, mas não consegue impedir os pássaros a menos que acesse a contemplação espiritual. E ainda deve prestar uma atenção extrema à guarda do coração.
60. O monge ativo não é capaz de ir além de uma bela aparência moral se, a exemplo do patriarca Abrahão [50], não abandonar a lei natural como se saísse de sua própria terra, e se não deixar, como a seus parentes, a vida ligada à sua idade e ao seu estado. É assim que ele receberá, como um selo, ser desembaraçado do prazer que encontramos que engendramos todo o tempo e por cuja causa o véu que nos envolve desde o nascimento não permite que nos seja dada a liberdade total. 1715
61. Como um jovem cavalo que na primavera não suporta permanecer no estábulo e aí comer do que lhe é dado, o intelecto que se alista conseguirá perseverar por pouco tempo sobre a via estreita da prece, pois,
[47] Cf. Provérbios 23: 29. [48] Cf. Salmo 41 (42): 5. [49] Cf. Filipenses 1: 23. [50] Cf. Gênesis 12: 1.
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como o cavalo jovem, ele busca mais o que lhe é agradável, saindo para o campo da contemplação natural tal como o encontra na salmodia e na leitura.
62. Assim como a virtude ativa cinge os rins aplicando as potências da vida ao jejum e às vigílias, a virtude contemplativa mantém as lâmpadas acesas [51] aplicando as potências do conhecimento ao silêncio e à prece. Um, por meio do jejum e das vigílias, tem a reflexão por pedagogo. Outro, pelo silêncio e a prece, tem a razão interior para leva-lo ao Esposo. 1716
63. Um intelecto imperfeito não é capaz de penetrar na vinha abundante da oração. Como um pobre que esmola, ele mal conseguirá acessar os simples ecos dos salmos.
64. Assim como nem todos os que são admitidos à audiência do rei são convidados para o banquete, nem todos os que alcançam a bonança da prece irão, a nosso ver, até a contemplação cuja via ela abre.
65. O freio do ardor é o silêncio oportuno. O freio do desejo desregrado é a alimentação comedida. E o freio da razão fogosa é a prece do nome único de Deus.
66. Um mergulha no abismo das águas profundas para nele pescar a pérola sensível, outro mergulha no abismo do conhecimento para aí pescar a pérola inteligível [52]. Mas se não se despojarem, um de suas vestes, outros de seus sentidos, nenhum obterá o que deseja. 1717
67. O intelecto que permanece no coração de seus pensamentos enquanto ora é como o esposo que conversa com a esposa na câmara nupcial. Mas o intelecto que não consente voltar-se para si permanecerá fora, gemendo e chorando: “Quem me levará a uma cidade fortificada? Quem me conduzirá [53], quando eu oro, a não mais contemplar a vaidade e as loucuras passageiras?”. 1718
68. Assim como a comida sem sal é avaliada pela garganta, também o será pelo intelecto a oração cumprida sem compunção.
69. A alma que busca a oração é semelhante à mulher presa das dores do parto. Mas a alma que alcançou a oração se parece com a mulher que deu á luz e que está cheia de alegria à vista de sua criança. [51] Cf. Lucas 12: 35; Efésios 6: 14. [52] Cf. Mateus 13: 46. [53] Salmo 59 (60) 11.
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70. Antigamente, o Amorreu que habitava a montanha veio atacar os que tentavam forçar a passagem [54]. Hoje, o esquecimento pernicioso expulsa os que, sem ter atingido a pureza, tentam se elevar até a mais alta oração, na simplicidade. 1719
71. Os demônios têm naturalmente uma grande aversão à prece pura. O que eles mais temem não é o número de salmos (assim como os inimigos exteriores não temem o exército em marcha), mas o acordo dos três: da intelecto com a razão e da razão com os sentidos.
72. Aos olhos dos que oram a prece simples será reconfortante como pão, a prece acompanhada de alguma meditação nutrirá como o azeite. A prece desembaraçada de toda forma terá o bom aroma do vinho: os que dele beberem conhecerão o êxtase sem jamais ficar saciados.
73. Diz-se que o asno selvagem se ri das cidades superpovoadas [55] e que o unicórnio não pode ser agarrado por ninguém. Também o intelecto, quando domina os pensamentos naturais e os pensamentos contra a natureza se ri dos pensamentos vãos quando ora, e não fica sob o poder de nenhuma das coisas submetidas aos sentidos. 1720
74. Quem brande um bastão para afugentar cachorros os acirra contra si. O mesmo acontece com quem expulsa os demônios pela prece pura.
75. Quem conduz o combate deve reduzir os sentidos ao alimento mais simples e reduzir seu intelecto à prece do nome único de Deus. Assim desembaraçado das paixões ele alcançará a prece até ser conduzido ao Senhor.
76. Quando oram, os que mergulham no prazer e que, por isso, vivem no pântano, veem seus pensamentos se dispersar em todas as direções como sapos. Os que têm as paixões mais dominadas veem suas contemplações diversas se alegrar e responder como rouxinóis que pulam de galho em galho. Mas quando os impassíveis oram eles unem o silêncio a uma grande calma dos pensamentos e das reflexões.
77. Antigamente Maria, a irmã de Moisés, vendo a queda dos inimigos, tomou o tamborim e entoou para os cantores o cântico da vitória [56]. Hoje, porém, para celebrar a alma que venceu as paixões, o amor, a maior das virtudes, se levanta e canta acompanhando-se da cítara na forma de uma contemplação – esta 1721
[54] Cf. Deuteronômio 1: 44. [55] Cf. Jó 39: 7. [56] Cf. Êxodo 15: 20-21.
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cítara que se tocava antes para apreciar uma beleza supérflua – e não cessa de louvar a Deus com as virtudes que a rodeiam em regozijo.
78. Quando, pela perseverança na prece, as palavras do salmo descem ao coração do que ora, então, semelhante à boa terra, o coração passa a carregar consigo, como rosas, a contemplação dos incorpóreos, como lírios o flamejamento dos corpos, e como violetas a diversidade e o difícil discernimento dos juízos de Deus.
79. A chama ligada à matéria carrega consigo a luz. Mas a alma desembaraçada da matéria carrega em si a Deus. Uma é levada a se consumir naturalmente; a outra é levada até seu cumprimento no amor divino.
80. A alma que renunciou perfeitamente a si mesma e que se elevou totalmente voltada para a prece, já não desce mais para baixo quando quer, porque se coloca no cimo da criação. Mas ela descerá quando achar justo Aquele que, com seus pesos e suas medidas, dirige todas as nossas vidas.
81. Quando a acídia se afasta da alma e a malícia é expulsa da reflexão, então o intelecto nu, devotado à simplicidade e à vida despojada, sem precisar de nenhum véu que esconda a vergonha, canta assim a Deus um canto novo. E quando, com alegria, ela entoa este canto ela rende graças celebrando com ele as primícias da vida futura.
82. Quando a alma orante começa a se voltar para a vida mais divina, então, como a esposa do Cântico, ela chama por suas companheiras: “Meu bem-amado passou a mão pelo vão da porta e minhas entranhas estremeceram [57]”. 1722
83. Quando volta da guerra, o soldado se desembaraça do pesa de suas armas. Também o monge ativo se desembaraça dos pensamentos quando alcança a contemplação. Pois nem o primeiro tem necessidade de suas armas quando não está na guerra, nem o outro precisa dos pensamentos se não dá espaço ao que está submetido aos sentidos.
84. Os monges ativos consideram os corpos tais como eles aparecem em sua situação. Os monges contemplativos os consideram tais como eles são em sua natureza. Somente os monges gnósticos veem as razões de uns e de outros.
[57] Cântico dos Cânticos 5: 4.
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85. Nas razões dos corpos se revelam os incorpóreos, e nos incorpóreos se revela a razão mais alta que o ser, para a qual toda alma fervorosa se apressa em correr.
86. As razões dos incorpóreos são, como o esqueleto, recobertas pelo sensível. Ninguém que não tenha se desembaraçado do pendor passional pelo sensível é capaz de vê-las.
87. O soldado que terminou a guerra depõe as suas armas. Da mesma forma, o contemplativo que se desembaraçou de tudo para se dirigir ao Senhor depõe seus pensamentos.
88. O general que não toma o botim da guerra se desencoraja. Também se desencoraja o monge ativo que, na oração, não alcança a contemplação espiritual.
89. O cervo mordido por uma fera corre para as fontes corporais das águas. A alma ferida pela flecha dulcíssima da prece corre para a luz dos incorpóreos.
90. Nem o olho corporal pode ver o grão de trigo, nem o intelecto ativo pode ver sua própria natureza, se o grão de trigo não for debulhado de sua casca e se o intelecto não for despojado das relações que o recobrem.
91. As estrelas se escondem quando o sol se levanta. Os pensamentos se dissipam quando o intelecto retorna à sua própria forma.
92. Ao final da ascese, as contemplações espirituais espalhadas no intelecto, como raios de sol que partem do horizonte parecem se derramar dele como de sua morada, que elas cercam com sua pureza.
93. Quando, pelas necessidades da natureza, o intelecto contemplativo é enviado do céu, ele pode pronunciar as mesmas palavras daquele que disse: o que há de mais maravilhoso do que a beleza de Deus? Que pensamento é mais belo do que o da magnificência de Deus? E que desejo é tão violento e insuportável como o desejo que, desde Deus, passa para a alma purificada de todo vício, quando, no estado em que ela se encontra, ela diz: “Estou ferida pelo amor! [58]”? 1723
[58] Cântico dos Cânticos 2: 5. Cf. São Basílio, Grande Regra 2.
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94. Dizer: “Meu coração está aquecido dentro de mim e em minha meditação um fogo me abrasará [59]” é típico de quem não se cansa de seguir a Deus na oração, pois este homem não deseja contemplar outra coisa por todo o dia. 1724
95. Depois de haver rejeitado o mal, diga a alma ativa, como a esposa do Cântico dos Cânticos se dirigindo aos demônios malignos e aos pensamentos perversos que a constrangem a olhar novamente para as vaidades e as loucuras enganadoras: “Eu despi meu manto, como o vestirei de novo? Eu lavei meus pés, como irei sujá-los novamente? [60]”. 1725
96. Somente uma alma bem-amada por Deus pode ousar dizer: “Responda-me, bom pastor, aonde você leva a pastar suas ovelhas e onde repousa os cordeiros ao meio-dia, para que eu os siga e não seja mais como uma errante em meio aos rebanhos dos seus companheiros? [61]”. 1726
97. Quando a alma ativa tenta descobrir a razão da oração e não a encontra, ela clama, como a esposa do Cântico dos Cânticos: “Sobre meu leito, ao longo das noites, eu busquei aquele a quem amo. Eu o busquei e não o encontrei. Eu o chamei e ele não me escutou. Eu me levantarei e chamarei, sofrendo a cada dia, darei a volta à cidade pelas ruas e pelas praças, buscando àquele a quem amo [62]”. Talvez eu encontre aquele que habita no coração deste universo e talvez então, fora do mundo, eu me saciarei com a visão de sua glória [63]. 1727
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98. Quando, pela alegria da oração, a alma começa a não ser mais do que lágrimas, então, como a esposa a seu esposo, ela clama abertamente: “Que meu bem-amado desça ao meu jardim [64], e que ele prova da consolação de minhas lágrimas, quais frutos, pela qual eu tanto penei”. 1729
99. Quando, diante da grandeza das criaturas, a alma ativa começa a admirar o Criador e a se entregar às delícias do prazer que elas lhe dão, ela também clama maravilhada: “Porque você se adornou de beleza, meu esposo, paraíso de seu Pai? Flor do campo e cedro qual cedros do Líbano, eu desejei me assentar sob sua sombra, e seu fruto é doce em minha boca [65]”. 1730
100. Se aquele que recebe reis em sua casa atrai os olhares, é admirado e coberto de alegria, quanto mais a alma que, purificada, recebe o Rei dos reis [66], conforme a promessa que não mente jamais. Entretanto, 1731
[59] Salmo 38 (39): 4. [60] Cântico dos Cânticos 5: 3. [61] Cântico dos Cânticos 1: 7. [62] Cântico dos Cânticos 3: 1-2. [63] Cf. Salmo 16 (17): 15. [64] Cântico dos Cânticos 4: 16. [65] Cântico dos Cânticos 2: 1-3. [66] Cf. Apocalipse 19: 16.
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esta alma deve estar atenta para guardar a si mesma, jogando fora tudo o que possa perturbar o repouso do Rei e trazendo a ele tudo o que possa agradá-lo.
101. Quem aguarda para ser convocado no dia seguinte à presença do rei, de que cuidará e com que outra coisa se preocupará, senão com que possa agradá-lo? A alma que é assim sóbria vigilante não comparecerá ao tribunal do outro mundo sem estar preparada.
102. Bem-aventurada a alma que, aguardando o dia da vinda de seu Senhor, considera como nada as penas do dia e da noite, pensando que ele virá em seguida, na madrugada.
103. Deus vê todos os seres. E veem a Deus aqueles que mais nada veem quando oram. Os que veem a Deus são também ouvidos por ele. Mas os que não são ouvidos não o veem. Bem-aventurado aquele que crê ser visto por Deus, pois ele não perderá o pé [67] a menos que assim o queira Deus. 1732
104. Os bens do Reino que está dentro de nós [68], estes bens que os olhos ofuscados pela beleza não veem, que os ouvidos que amam as honrarias não escutam e que não chegam ao coração privado do Espírito Santo [69], são as garantias dos bens que Deus concederá aos justos no Reino por vir. Quem não faz suas delícias dos bens que estão dentro de nós, que são os frutos do Espírito [70], tampouco usufruirá dos bens do Reino por vir. 1733
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105. Os pensamentos dos monges ativos são semelhantes aos cervos. Estes tanto sobem às montanhas por medo dos caçadores como descem às ravinas para buscar o alimento que ali se encontra. Assim são os pensamentos dos monges ativos: eles não podem permanecer continuamente na contemplação espiritual por causa de sua insuficiência, mas também não podem permanecer sempre na contemplação natural, porque não buscam o repouso o tempo todo. Quanto aos pensamentos dos monges contemplativos, eles estão acima das buscas que não tocam senão a terra.
106. O orvalho quando cai embriaga os sulcos da terra. Mas a alma em prece secreta gemidos molhados de lágrimas que exsudam do coração.
[67] Cf. Salmo 72 (73): 2. [68] Cf. Lucas 17: 21. [69] Cf. I Coríntios 2: 9. [70] Cf. Gálatas 5: 22.
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107. Ninguém será capaz de contemplar a Divindade concebida na Trindade se não tiver se elevado acima da dualidade da matéria, e inclusive da unidade que lhe é próxima. Nem se elevará acima desta unidade se não fizer de seu próprio intelecto uma solidão em meio aos pensamentos.
108. É mais fácil deter o curso de um rio para que ele não corra para sua foz, do que deter o impulso do intelecto para que ele não se disperse nas coisas visíveis, e conduzi-lo à oração contra sua vontade, para aquilo que está acima de nós e nos é aparentado, mesmo que a elevação vá ao encontro da natureza e a dispersão vá contra a natureza.
109. Os que purificam seu intelecto conduzindo-o para além e para o coração do visível, enchem-se de tal maravilhamento e são cumulados de tamanha alegria que nada do que é terrestre pode alcançá-lo ainda que tudo o que há de mais desejável aqui em baixo se derrame sobre ele.
110. O simples enunciado das leis da natureza basta para causar um grande maravilhamento. Mas quando as compreendemos, descobrimos nelas pradarias cobertas de flores que, como um néctar celeste, espalham de suas flores puras a doçura do festim espiritual.
111. Nas pradarias, dentre as flores úmidas de orvalho, as abelhas rodeiam com seu voo a rainha do enxame. Mas as potências intelectuais que, como sua guarda pessoal, cercam a alma em contínuo estado de compunção, a ajudam a encontrar o que ela deseja.
112. No mundo visível, o homem aparece como outro mundo. No mundo inteligível, o pensamento do céu, da terra e dos seres intermediários, exprime, com efeito, um e outro. O pensamento é o intérprete do intelecto e dos sentidos. Sem eles, os dois mundos permaneceriam surdos.
113. O prisioneiro libertado depois de muito tempo preso não sai da cadeia com tanta alegria como o intelecto que, liberto de seus pendores naturais, vai para as coisas do céu como se fossem seu próprio bem, com céleres pés.
114. Quem não ora com atenção, mas se dispersa, considera os salmos como primitivos. Mas, para o salmo, primitivo é ele. E os demônios consideram tolos a ambos.
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115. Existe uma diferença entre aqueles para os quais o mundo está crucificado e aqueles que são crucificados ao mundo [71]. Para uns, os pregos são os jejuns e as vigílias. Para os outros, a pobreza e a abjeção. Mas sem a pobreza e a abjeção, perde-se tempo jejuando e vigiando. 1736
116. Ninguém pode ter a prece pura em si se for dominado pelo amor ao luxo e às honrarias. Pois os pendores naturais e os pensamentos vaidosos se enrolam ao redor dele como uma cadeia e retêm o intelecto que, como um pássaro preso, tenta voar no momento da oração.
117. É impossível que o intelecto esteja em paz no momento da oração se não estiver em si e afeiçoado à temperança e à caridade. Com efeito, a temperança luta por dissipar a inimizade que tem o corpo pela alma, e a caridade se esforça para dissipar pelo amor de Deus a inimizade que nos opõe ao próximo. A partir daí, a paz que ultrapassa todo entendimento [72] vem habitar no intelecto e promete fazer sua morada nele, que se encontra assim pacificado. 1737
118. Quem luta para entrar no Reino de Deus [73] deve tornar superabundantes de bem suas obras de justiça: na compaixão, dando em sua indigência, nas penas que sofre pela paz e respondendo ao Senhor com sua paciência. 1738
119. Nem o que é sem virtudes por sua negligência, nem o que se imagina cheio de virtudes por sua presunção, chegarão ao abrigo do porto da impassibilidade. Com efeito, nem um nem outro desfrutaram dos bens concedidos pela justiça, que para eles seria um intermediário entre a falta e o excesso.
120. Se a terra não devolver ao semeador muitas vezes cada semente, fazendo-a render o tanto ou mais, ela não o enriquecerá. Da mesma forma, se o ardor que dedica a Deus não for mais forte do que sua intenção, o monge ativo não o poderá tornar justo.
121. Nem todos os que não amam o próximo o odeiam, nem todos que não o odeiam amam-no. Uma coisa é se orgulhar de seu progresso, outra é não tornar isto um obstáculo ao progresso. É aqui que encontramos a falsidade em seu mais alto grau: não apenas ser ferido pela eminência do próximo, mas ainda caluniar o bem que existe nele, como se não existisse.
122. Umas são as paixões do corpo, outras as da alma. Umas são as que estão de acordo com a natureza, outras as que são contra a natureza. Quem repele umas sem se prevenir contra as outras se parece com [71] Cf. Gálatas 6: 14. [72] Cf. Filipenses 4: 7. [73] Cf. Lucas 13: 24.
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alguém que, para se defender dos animais selvagens, ergue uma paliçada alta e bem escondida, mas se felicita de ver os pássaros que vêm devorar as vinhas da razão, que permanecem totalmente expostas.
123. A alma primeiro cria uma representação do mal na imaginação, depois o conduz ao desejo, depois para o prazer ou a tristeza, enfim para os sentidos e, depois dos sentidos, direta ou indiretamente, ela o toca, Em tudo isso os pensamentos se encadeiam, exceto o primeiro movimento: se você não o receber, todo o mal que se seguiria fica sem efeito.
124. Os que se aproximam da impassibilidade são perturbados apenas pelas imaginações. Os que moderam suas paixões são perturbados pelos desejos. Os que fazem mau uso do que é necessário e se afligem com isto trazem o mal nos seus sentidos. Enfim, abraçam o mal aqueles que se habituam a ele e já não se afligem.
125. O prazer está situado em todos os membros do corpo, mas não parece perturbar a todos da mesma maneira. Em alguns ele afeta mais a parte da alma ligada ao desejo, em outros ele afeta o ardor, em outros ainda a razão. Ele os afeta pela gula, pelo enfurecimento e pela malícia, que são as causas de todas as paixões ímpias.
126. É preciso que os sentidos se abram como as portas de uma cidade. Mas quando os sentidos se abrem àquilo de que não temos necessidade, também é preciso não deixar entrar ao mesmo tempo as nações que desejam a guerra e que vêm provocar uma batalha.
127. O prazer é a mãe da concupiscência. O enfurecer-se é a mãe da cólera. A malícia é a mãe da inveja. Quem não combate as causas iniciais não conseguirá ficar em paz com as últimas consequências. E quem transgride os mandamentos não consegue penetrar no porto onde as paixões são moderadas.
128. Os que afastam as sugestões não permitem aos pensamentos penetrar como feras selvagens no interior das vinhas da razão, levando aí a ruína [74]. Os que os acolhem mas não têm prazer nisto, deixamnas entrar na vinha mas em tocar em nada. Mas os que têm prazer em se ligar às paixões por intermédio dos pensamentos, sem chegar ao consentimento, se parecem com alguém que deixa que o javali entre no campo e no interior do cercado [75] sem permitir que este avance nas parreiras, apenas para descobrir que o animal é mais forte do que ele, para então consentir nas paixões. 1739
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[74] Cf. Salmo 79 (80): 14. [75] Cf. Salmo 79 (80): 14.
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129. Quem precisa sempre vigiar os muros da temperança ainda não atingiu a simplicidade. Pois não é o perfeito, como dissemos, que se dedica à temperança, mas o que ainda combate. Este se parece com quem possui um campo ou uma vinha não em meio a outros campos e vinhas, mas num lugar afastado. Por isso esta vinha ou este campo têm que ser guardados, com sobriedade e vigilância. Ninguém atinge a vinha do que alcançou a simplicidade: ele é como um rei ou um príncipe temido, que exerce o poder e cuja simples menção do nome faz tremer de medo os ladrões e os passantes tentados a atacá-lo.
130. Muitos sobem à cruz por meio dos sofrimentos da vida dura, mas poucos aceitam os pregos. Com efeito, muitos se submetem às penas e às aflições que escolheram. Mas às que lhes acontece sem que tenham buscado só se submetem aqueles que morreram perfeitamente para este mundo e seus confortos.
131. Muitos se despojaram de todas as túnicas de pele [76]. Mas da última túnica, a da vanglória, só se despem os que se tomaram de aversão pela mãe dela: a autossuficiência. 1741
132. Quem recebe os louvores dos homens e as comodidades do corpo e as recusa, este, despojado da última túnica – a da vanglória – é a partir daí considerado digno de ser revestido do esplendor da moradia que buscou através de tantos gemidos: a morada do céu [77]. 1742
133. Uma coisa é a energia, outra a operação. Uma indica o pecado cumprido, outra representa apenas o regozijo suscitado internamente, mas não externamente. Da mesma forma, os que não querem se afastar de sua própria terra pagam em tributo aos seus opressores aquilo que lhes é mais caro.
134. Quando o sentido do paladar reina sobre os prazeres, é impossível que os demais sentidos não o sigam, mesmo que o baixo ventre dos mais frios pareça ter se acalmado, como entre os mais velhos que, por esgotamento, não fervem mais. Mas não é por não engravidar que uma mulher estéril que comete adultério será considerada casta. Diremos que é casto o homem a quem a paixão não queima por dentro e que não é seduzido pelo olhar.
135. É nos alimentos, nas formas e nas vozes que o desejo da alma se revela tal como é. Que estas coisas seduzam ou não, é por meio delas que se revela pelo conhecimento, pela vista ou pelo ouvido, seja quem delas usa, seja quem delas abusa, seja quem permanece entre o uso e o abuso.
[76] Cf. Gênesis 3: 21. [77] Cf. II Coríntios 5: 2.
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136. Os pensamentos que não são guiados pelo temor se verão confundidos como ovelhas sem pastor [78]. Mas se o temor os empurra ou os precede, os pensamentos se manterão em ordem, como no interior de um aprisco onde tudo está organizado. 1743
137. O temor é filho da fé. É ele quem leva a pastar os mandamentos. Quem não tem a fé dentro de si, a mãe do temor, não será julgado digno de ser considerado como uma ovelha do rebanho do Senhor.
138. Alguns não têm em si senão o começo dos bens, outros chegaram até a metade, outros foram até o fim. Sem chegar ao fim, somos semelhantes a um simples soldado ou a um oficial que não recebeu seu soldo. É por isso que um não faz mais do que proteger sua casa contra os que a ameaçam, e outro não tem o posto que lhe caiba, aos olhos dos que vai combater.
139. Os que nos convidam, imperfeitos que somos, a partilhar com eles dos prazeres da boca, fazem como quem nos empurra a que caiamos doentes de enfermidades de que já nos curamos, ou que nos arranha uma coceira pelo prazer, ou que nos faz comer algo que aumentará nossa febre, ou que nos incita a fechar nossa vinha deixando penetrar nela o amor à carne como um javali selvagem [79] que irá devorar nossos bons pensamentos como parreiras. Não devemos escutá-los nem nos deixar dobrar pelas bajulações intempestivas, quer venham dos homens ou das paixões. Antes devemos consolidar os muros por meio da temperança, até que os animais selvagens, as paixões da carne, cessem de uivar, e que os pensamentos vãos deixem de descer como pássaros para devastar a vinha, nossa alma, na qual floresce a vida contemplativa em Jesus Cristo nosso Senhor. A ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém. 1744
[78] Cf. Marcos 6: 34. [79] Cf. Salmo 79 (80): 14.
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TOMO II, VOLUME I
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PEDRO DAMASCENO Nosso bem-aventurado Padre Pedro, que foi bispo de Damasco, viveu sob o reino de Constantino Coprônimo, ao redor do ano 770. Primeiramente ele levou sua vida na solidão e na anacorese, e numa pobreza tal que ele não possuía sequer um livro, como ele mesmo diz, recebendo de outros monges os livros do Antigo e do Novo Testamentos, dos doutores da Igreja e dos Padres népticos e teóforos. Ele se dedicou de tal maneira às penas da ascese que, estudando dia e noite a Lei do Senhor, irrigado pelos próprios rios da vida, ele foi em verdade, como diz o Salmo, uma árvore que se elevou até os céus, plantada às margens das águas do Espírito, da qual se diz que produz um único fruto quando chega o tempo. Mas não é o que acontece com ele. Todo o tempo, continuamente e regularmente em flor, ele produziu frutos espirituais, belos de se ver, doces ao paladar, bons de sentir, nutrindo todos os sentidos do corpo e da alma, a mesma doçura do perfume de imortalidade que exalam. Em sua vida ele produziu os grandes e numerosos frutos amadurecidos nas penas de sua ascese, e maiores e mais numerosos ainda com sua morte, quando recebeu a coroa do martírio (pois, por haver denunciado a heresia dos árabes e dos maniqueus, Walid, o filho de Isim e príncipe dos árabes o exilou na Arábia, depois de cortar-lhe a língua. Foi lá que ele morreu.). E depois de sua morte ele continua a dar frutos em abundância, cada vez mais numerosos e maiores. Ele nos deixou, como uma herança paterna inalienável, este livro belíssimo e transbordante de virtudes, que redigiu com cuidado e com graça indescritível: busca comum de todas as virtudes para bem da alma, tesouro das contemplações, comunhão dos carismas do Espírito, montanha sagrada de beatitudes, cadinho das ações do corpo, finíssima análise das paixões, cornucópia da ascese, lugar de conhecimento e de sabedoria divina, numa palavra, recapitulação da santa nepsis, sobriedade e vigilância. Sabendo nós de nosso parentesco com o presente livro, e o quanto ele contribui para conduzir a um fim que também é o nosso, acreditamos ser possível adaptá-lo àquilo que nos é mais necessário. Alguém poderá dizer em tom de brincadeira: adaptar um círculo a um círculo, uma grande filocalia a outra maior, uma mais vasta a uma mais concentrada. Pois não nos pareceu correto separar do coração divino dos santos népticos este livro que é uma massa de tantos frutos espirituais, truncar assim a obra, que exige necessariamente o concerto das vozes, e finalmente privar os irmãos de tal bem. Pois o bem é tanto maior quanto mais benefícios traz. Assim, se alguém, em seu desejo, aspira a tomar as asas de pomba que um dia Davi procurou sem achar, que se dê ao trabalho de abrir este livro. Pois nele encontrará maravilhado toda a prata da ação e todo o ouro da contemplação. E por meio dos dois, erguido acima de todo o terrestre, ele voará para as alturas azuis e habitará nos ninhos do alto, como uma pomba, e repousará na beatitude celeste.
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Nicodemo o Hagiorita identifica Pedro Damasceno a Pedro, bispo de Damasco em 775, morto mártir na Arábia e citado no Sinaxário bizantino em 9 de Fevereiro. Mas esta identificação é contradita pelas datações de dois antigos manuscritos de nosso autor[1], que o situam, um no século XII e outro no século XI. É preciso acrescentar aqui duas observações: de uma parte, Pedro Damasceno menciona Simeão Metafrastes, que viveu na segunda metade do século X; de outra, ele próprio não foi influenciado pela obra decisiva de Simeão o Novo Teólogo (940-1022), cujo nome e influência ignora. Talvez então convenha, como propõe o Padre Staniloae, situar Pedro Damasceno no século XI, depois de Simeão Metrafastes, mas antes que irradiassem por todo o Oriente o testemunho e o exemplo de Simeão o Novo Teólogo. Problema menor, a bem dizer, na medida em que a Filocalia, assim como a Sagrada Escritura, mais do que um registro documental de uma história datada, constituem na transmissão de um sentido último. Pedro Damasceno é assim um desses homens-chave dos quais nada sabemos, e que define a si mesmo como uma ninguém. Monge no sentido estrito: um homem só, enfurnado no buraco negro da nada da criatura. Mas homem apenas diante de Deus, que acumulou conhecimento por toda sua vida e que aqui nos dá seu mel, talvez um pouco misturado com cera, mas sempre perfumado de uma feliz eternidade. A obra é a imagem do homem: singular e comum. Nem fonte, nem rio, antes lago no qual as leituras (sobretudo a Bíblia, João Clímaco, Isaac o Sírio, João Crisóstomo e Gregório o Teólogo), o testemunho da Liturgia bizantina e a experiência da vida monástica vêm embalar as águas. A vida hesiquiasta é aqui menos voltada para seu objetivo do que desenvolvida nas condições de sua manutenção. A escrita não é a espiral rápida que faz cair todo pensamento ante a prece do coração. Ela é larga, aberta, oferecida. Pedro Damasceno ama se estender: ele tem gosto pelas vastas meditações, pelas longas enumerações, pelas séries, as escalas vivas. Aparentemente estamos longe dos rigorosos apotegmas dos Padres do deserto e bem aquém do testemunho extremo e do refinamento de Simeão o Novo Teólogo e dos hesiquiastas dos séculos XIII e XIV. Mas apenas em aparência. Pois entre a ascese do tempo e a graça da eternidade acontece o mesmo combate espiritual. Na articulação entre o primeiro e o segundo milênio Pedro Damasceno medita sobre a aquisição da esperança evangélica e, sem dizê-lo (pois com toda evidência ele não teve a experiência da visão de Deus, e mesmo evita buscá-la), expõe as condições desta visão dada aos corações puros: antes de tudo e no fundo de tudo (“sob a criação”, diz ele) a mais profunda humildade, e acima de tudo a graça do mais alto discernimento. Tal como nos foi transmitida na Antologia de Nicodemo, a obra é dividida em dois livros. O primeiro, precedido de um longo exórdio, é uma soma de meditações, dadas conforme vêm, sobre as modalidades da ascese, o sentido das beatitudes, as “contemplações espirituais”, as virtudes. O segundo livro, que evidentemente prolonga e confirma o primeiro, é mais estruturado. Ele se apresenta como uma série de vinte e quatro meditações (segundo as letras do alfabeto grego), todas terminadas por uma doxologia. Estas vinte e quatro meditações (logoi ou “discursos”, à maneira de Isaac o Sírio) retomam uma após outra o encaminhamento das virtudes. Mas é preciso buscar o coração da obra na exposição das oito “contemplações” ou “gnoses” apresentadas no primeiro livro. Pedro Damasceno nos representa aí seu modelo – o próprio modelo – da vida espiritual: um duplo movimento de descida e ascensão. Primeiro a descida: as meditações do mal, do pecado, da
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morte. Depois, no mais baixo grau da descida, no próprio coração da história, a lembrança da vida de Cristo e dos santos. Enfim a subida, pela experiência da natureza e da contemplação do mundo criado, até a inteligência dos anjos e o conhecimento de Deus, que é a teologia. Duas coisas neste modelo são capitais: 1) a descida se faz pela oração, e nosso Padre dá o exemplo: as três primeiras “contemplações” (sobre o mal, o pecado e a morte) não passam de longas preces, com muitas palavras emprestadas tais e quais da Liturgia bizantina; e 2) na lembrança de Cristo, a subida se faz do agora até o cosmos: o criado, o cósmico, não são apropriados pelo homem nem suprimidos do campo divino, mas colocados no seu verdadeiro lugar, entre o Filho e o Pai, no próprio sopro do Espírito Santo, e são o lugar de nosso combate e de nosso maravilhamento. Assim, o conhecimento do mundo não se perde no vazio: ele remete a Deus. E a lembrança de Cristo não se fecha sobre nós mesmos: ela envia ao Pai. A lição hoje é de grande importância. Onde a inteligência do mundo se volta cada dia mais para a descida ao inferno, a Filocalia coloca a contemplação do criado, e de nossa “encarnação litúrgica” (o que Pedro Damasceno chama de “sete ações do corpo”) ela faz o caminho real de outro conhecimento que permite às nossas vidas bater às portas da eternidade, grávidos de Deus. É o prêmio de uma bela leitura. Pedro Damasceno foi muito lido no Oriente, inclusive na Rússia, onde uma edição de sua obra o tornou conhecido no século XIX, malgrado sua exclusão parcial da Filocalia eslavônica de Païssy Velitchkovsky e sua total ausência da Filocalia russa de Teófano o Recluso. Mas ele não fez escola em seu tempo, como Simeão o Novo Teólogo ou Gregório o Sinaíta. No entanto ele soube transformar a seiva das raízes num dos mais belos frutos da árvore. Deixando de lado alguns abismos – como as inenarráveis enumerações dos vícios e das virtudes no final do primeiro capítulo (que não são feitas para serem lidas, mas para serem vistas como abismos do bem e do mal no qual mergulham nossas vidas) – a linguagem é delicada, os pensamentos são profundos, embora sempre simples e diretamente compreensíveis. Esta obra devotada aos extremos é assim, pela amplitude de sua visão e pela sua beleza formal, um modelo de bom senso e equilíbrio.
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EXÓRDIO Infeliz que recebi de Deus tantas graças e jamais fiz algo de bom, temo que a inércia e a negligência me façam esquecer tais dons, as benesses de Deus e minhas próprias faltas, e que eu nem sequer esteja mais aberto ao meu Benfeitor nem seja mais reconhecido a ele. Assim, para provar minha pobre alma, eu escrevi esta memória e transcrevi expressamente os escritos dos santos Padres – as vidas e as sentenças – que pude encontrar, a fim de tê-los para me lembrar de suas palavras, ainda que parcialmente. Eu não possuo nenhum livro, jamais possuí, mas, como tudo o que contribui para as necessidades do corpo, recebi os textos de fiéis que amam a Cristo, li-os atentamente e os devolvi. Assim eu li os antigos e os novos, o Antigo Testamento, o Saltério, os quatro Livros dos Reis, os seis livros da Sabedoria, os Profetas, os Paralipômenos, os Atos dos Apóstolos, os santos Evangelhos e as interpretações de todos esses. Li também todos os escritos e os ensinamentos dos Padres e dos grandes Doutores: Denis, Atanásio, Basílio, Gregório o Teólogo, João Crisóstomo, Gregório de Nice, Antônio, Arsênio, Macário, Nilo, Efrém, Isaac, Marcos, João Damasceno, João Clímaco, Máximo, Doroteu, Filemon, as Vidas e as sentenças de todos os santos. Pude assim, em minha indignidade, examinar todos os livros com toda a liberdade e a atenção necessárias, e buscar o princípio da salvação e da perdição do homem, ver se tudo o que decidimos empreender, ou o que nos dedicamos a fazer, salva ou não, e que coisa é esta que todos procuram, e como os antigos e os novos pediram a Deus, na riqueza e na pobreza, em meio à multidão dos pecadores e no deserto, no casamento e na virgindade, numa palavra, como, em todo lugar e em todo gesto, encontramos a vida e a morte, a salvação e a perdição, enfim como, entre nós os monges descobrimos também diferentes estados, refiro-me à submissão de corpo e de alma a um pai, a hesíquia que purifica a alma, e ainda o conselho espiritual em lugar da submissão, os encargos de abade e os encargos episcopais. Em todas as situações encontramos quem se salva e quem se perde. E não era apenas disto que eu me admirava, mas também como no céu o antigo anjo em sua natureza imaterial, dotado de sabedoria e de toda virtude, se tornou subitamente um diabo, cheio de trevas e ignorância, princípio e fim de todo vício e de toda malícia. Depois, como Adão, que havia recebido tamanha honra, que desfrutava dos bens, que vivia na intimidade Deus, adornado de sabedoria e virtude, sozinho com Eva no Paraíso [2], foi subitamente banido, exposto ao sofrimento e à morte, condenado ao trabalho, às penas, à fadiga, ao suor e a uma grande aflição[3. E como, sendo dele nascidos Caim e Abel, únicos irmãos sobre toda a terra, pode a inveja se interpor causando a morte, a maldição e o terror[4]. Como, em seguida, pela multitude de faltas de seus filhos, sobreveio o dilúvio[5. E ainda como, em seu amor pelo homem, Deus os salvou na arca, mas um deles se tornou maldito, Canaã filho de Cam, que havia pecado[6], pois para não abolir a bênção de Deus o justo Noé maldisse o filho em lugar do pai. Como vieram depois disto os construtores da torre, os Sodomitas, os Israelitas, Salomão, os Ninivitas, Giezi, Judas[7]- todos os que receberam bens e se voltaram para a malícia. Como o Deus bom, que está além de toda bondade, aceitou, em sua imensa compaixão, que venham ao mundo tantas tentações e tão diversos tormentos. Ele quis conceder uns para que fossem como penas do arrependimento, vale dizer, a fome, a sede, o luto, a privação do necessário, a abstenção dos prazeres, o esgotamento do corpo pela ascese, as vigílias, as fadigas, as penas, a abundância e a amargura das lágrimas, os gemidos, o temor da morte, as peças de acusação, a sentença, a permanência no inferno com os demônios, o dia terrível do Juízo, a vergonha que recai sobre toda a criação, o terror, a amarga condenação dos atos, das palavras e dos pensamentos, a ameaça, a cólera, a diversidade e a eternidade dos tormentos, a inútil dó e as lágrimas contínuas, as trevas sem luz, o temor, o sofrimento, a queda, a tristeza, a angústia, o sufocamento da alma no século presente e no futuro; depois os perigos no mundo, os naufrágios, todas as enfermidades
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TII, VI – PEDRO DAMASCENO – Exórdio.
possíveis, os relâmpagos, o trovão, a geada, os tremores de terra, as fomes, as inundações, as mortes prematuras, todas as infelicidades que nos acontecem sem que queiramos, e que Deus concede. Mas existem males que Deus não quer, e que provêm de nós e dos demônios, como os combates, as paixões, as múltiplas formas do pecado, cujos nomes foram revelados à passagem da palavra, depois a demência até o desespero e a total perdição, a agressão dos demônios, as guerras, a tirania das paixões, os constrangimentos, as perturbações, as revoluções da vida, as cóleras, as calúnias, todos os sofrimentos que nos auto-infligimos voluntariamente e que infligimos aos demais, e que Deus não quer. E ainda, em meio a tantos males, nenhum pode impedir que muitos tenham sido salvos. Mas muitos também se perderam sem que Deus o quisesse. Todas estas coisas das divinas Escrituras e muitas outras, eu tive dificuldade em compreender. A alma quebrantada, escoando como água[8], fui muitas vezes reduzido à impotência. E ainda seria preciso que eu sentisse aquilo de que falo, pois se o sentisse, já não poderia permanecer nesta vida cheia de malícia e desobediência a Deus, que engendra todos os males presentes e futuros. Mas a graça respondeu ao desejo de minhas perguntas, e entre os Padres encontrei o discernimento. O princípio de todo bem é o conhecimento natural que nos é dado pelo próprio Deus, ou pelas Escrituras por intermédio de um homem, ou por meio de um anjo; ou ainda pelo que nos é dado no batismo divino para guarda da alma de cada fiel, a que chamamos também de consciência, a lembrança dos divinos mandamentos de Cristo. É por meio deles, para quem os observa, que o batizado guarda a graça do Espírito Santo. Depois do conhecimento vem, com efeito, a livre decisão do homem. Aí se encontra o princípio da salvação: o homem abandona suas vontades e seus próprios pensamentos e cumpre as vontades e os pensamentos de Deus. E se ele conseguisse cumpri-los, não se encontraria em toda a criação nada, nenhum gesto, nenhum lugar capaz de impedir aquilo que Deus quer que seja desde o princípio: um ser à sua imagem e semelhança[9], um Deus por adoção, segundo a graça, impassível, justo, bom e sábio, seja ele rico ou pobre, vivendo a virgindade ou o casamento, quer tenha o poder e a liberdade, quer seja escravo e cativo, numa palavra, em todos os tempos, todos os lugares e todas as coisas. É por isso que encontramos tantos justos antes da lei como sob a lei, ou na ordem da graça. Pois todos preferiram o conhecimento de Deus e de sua vontade aos seus próprios pensamentos e quereres. Reciprocamente vemos que nas mesmas épocas, engajados nos mesmos gestos, muitos se perderam: pois eles preferiram seus próprios pensamentos e seus próprios quereres aos de Deus. Assim são as coisas. Os lugares e as buscas são diferentes. E devemos poder discernir, seja pela humildade dada por Deus, seja interrogando aqueles que possuem o carisma do discernimento. Pois sem o discernimento nenhuma das coisas que nos acontecem é boa, mesmo que a julguemos assim em nossa ignorância. Mas quando aprendemos com o discernimento aquilo que devemos fazer com seu próprio poder, a coisa começa a agradar a Deus. Entretanto, dissemos, devemos em tudo renunciar às nossas próprias vontades a fim de atingir o objetivo divino, onde quer Deus que cheguemos em nossa busca. Caso contrário, não temos como ser salvos. Pois, depois da transgressão de Adão, todos nós, os passionais, fomos acostumados às paixões, já não queremos o bem com alegria, não buscamos o conhecimento de Deus nem o fazemos por amor, como os impassíveis. Antes amamos as paixões e a malícia, não desejamos fundamentalmente o bem senão por necessidade, por medo dos castigos. Só o querem aqueles que, com uma fé segura e uma boa disposição, receberam a palavra. Quanto a nós outros, não é o que queremos. Sem considerar as aflições da vida e os castigos por vir, estamos de toda nossa alma submetidos às paixões. Alguns sequer sentem sua amargura. Eles buscam por necessidade, e contra sua vontade, as penas e as virtudes. Em nossa ignorância, desejamos aquilo que é digno de aversão. Pois assim como os doentes se servem das ablações e das
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TII, VI – PEDRO DAMASCENO – Exórdio.
cauterizações para recuperar a saúde perdida, também nós nos servimos das tentações, das penas do arrependimento, do temor da morte e dos castigos para restabelecer a saúde original de nossa alma e rejeitar a doença provocada por nossa própria loucura. Daí para frente, quanto mais o médico de nossas almas nos prescrever penas, quer as queiramos quer não, mais graças devemos lhe dar por seu amor pelos homens, e mais devemos recebê-las com alegria. Com efeito, é para nosso bem que ele multiplica as coisas dolorosas de que precisamos para nos conduzirmos voluntariamente ao arrependimento, ou, malgrado nossa vontade, cairmos nas tentações e nos tormentos, a fim de que aqueles que por si mesmos queiram viver em meio às aflições sejam libertos das enfermidades e dos castigos futuros e até mesmo dos presentes, e que os que estejam na ignorância sejam curados pela graça do médico, mesmo que por meio dos tormentos e da multiplicidade das tentações. Mas os que amam a doença e permanecem com ela atraem sobre si mesmos os castigos eternos. Eles se parecem aos demônios e com eles receberão o que lhes é devido, os castigos eternos que estão preparados[10] para eles na medida em que escolheram ignorar o Benfeitor. Pois nem todos acolhemos as benesses da mesma maneira. Se recebemos o fogo do Senhor [11] – sua palavra –, uns pelo trabalho se tornam macios como a cera em seu coração, mas outros, por inércia, se tornam mais endurecidos do que a argila e se tornam pedras. Do mesmo modo, se não a recebemos, a palavra não obriga ninguém. Ela é como o sol que envia seus raios e ilumina o mundo inteiro. Quem quiser vê-lo é por ele visto. Mas quem não quiser vê-lo não é obrigado a isso. Ninguém é provado da luz, senão por si mesmo, se não a quiser ver. Pois Deus fez o sol e o olho, e deu ao homem o poder de contemplar. O mesmo acontece aqui. Deus envia sobre nós, como raios, a luz do conhecimento. Depois do conhecimento ele nos dá o olho da fé. Quem escolhe receber o conhecimento certo pela fé guarda sua memória pelas obras, e Deus lhe concede a partir daí a boa vontade, o conhecimento e a força. Naquele que o escolhe, o conhecimento natural dá nascimento à boa vontade; da boa vontade advém a força de agir. Pela ação se guarda a memória. E a memória produz logo a ação, de onde nasce mais conhecimento. Desta sabedoria do intelecto, como é chamado, nasce a temperança nas ações e a paciência nos infortúnios, de onde provêm a consagração a Deus e a experiência dos dons divinos e de nossas próprias faltas, donde a gratidão, o temor a Deus que conduz à observação dos mandamentos, vale dizer, o luto, a doçura, a humildade, de onde nasce o discernimento, do qual provém a clarividência, que nos faz prever nossas faltas futuras e nos afasta delas antes, graças à experiência e à memória que nos dá a pureza do intelecto das coisas do passado e das coisas presentes que nos sobrevêm de surpresa; Daí a esperança, daí a impassibilidade e o amor perfeito. A partir daí este homem não quer absolutamente nada senão a vontade de Deus. Ele abandona esta vida passageira com alegria, por amor a Deus e ao próximo. Pois ele recebeu a sabedoria e a adoção, e o Espírito Santo habita nele. Ele é crucificado, enterrado, ressuscitado, elevado com Cristo a quem imita em seu intelecto, ainda que continue levando sua vida no mundo. Numa palavra, a graça faz dele um Deus por adoção. Ele recebe as garantias da beatitude do além, como diz Gregório o Teólogo[12]. Quanto aos oito pensamentos[13], ele se torna impassível, justo, bom e sábio. Ele tem a Deus em si, conforme o próprio Cristo o afirmou, e assim observa a ordem dos mandamentos[14], do primeiro ao último. Mais adiante explicarei como deveremos trabalhar os mandamentos. Mas depois de termos falado a respeito do conhecimento das virtudes, devemos agora falar das paixões. O conhecimento vem como o sol. Por incredulidade ou por preguiça o insensato fecha os olhos, ou seja, a resolução. A inércia, que provém da negligência, logo o faz esquecer o conhecimento. Da falta de sentido provém a negligência, daí a inércia, daí o esquecimento, do qual provém o egoísmo, que é o amor por nossas próprias vontades e nossos próprios pensamentos, o amor aos prazeres e o que se chama o amor
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pela vanglória. Daí o amor ao dinheiro, raiz de todos os males[15]. Daí vem o divertir-se com as coisas da vida. Daí a total ignorância dos dons de Deus e de nossas próprias faltas. A partir daí todas as demais paixões habitam em nós, os oito vícios fundamentais, ou seja, a gula, dela a prostituição, depois o amor ao dinheiro e a cólera quando não se deseja o que se quer ou quando se é impedido de realizar uma vontade. Da cólera provém a tristeza, da qual nasce a acídia, daí a vanglória, enfim o orgulho. Quem é devorado por estes vícios acaba no desespero, na perdição total, no banimento para longe de Deus, e termina por se assemelhar aos demônios, como eu disse. O homem está, assim, no cruzamento de duas vias, a justiça e o pecado. Ele pode escolher o caminho que quiser e o seguirá. A partir daí, a via que o acolher e aqueles que ali o conduzirão, ou bem anjos e homens de Deus, ou bem demônios e homens maliciosos, o levarão até o fim, ainda que ele não queira. Os homens da bondade o levarão para Deus e o Reino dos céus. Os homens do pecado o levarão ao diabo e aos castigos eternos. A única causa de nossa perdição é sempre nossa própria vontade. Deus é o Deus da salvação. Junto com a existência ele nos concedeu existir no bem, nos concedeu o conhecimento e o poder, coisas que o homem não tem como obter fora da graça de Deus. Mesmo o diabo não tem nenhum poder para nos perder. Ele não tem resolução contrária, fraqueza, ignorância involuntária, nem seja lá o que for, por meio de quê ele possa forçar o homem. Ele não faz mais do que sugerir-lhe a lembrança do mal. Aquele que trabalha pelo bem deve render graças a Deus que nos deu tudo desde a existência. Mas quem escolhe e faz o contrário, considere-se como o único responsável. Pois, como Deus o criou livre, ninguém pode atraí-lo pela força. Ele será digno dos louvores de Deus quando Deus o ver preferir o bem como toda a sua vontade, e não pela necessidade da natureza, como os seres irracionais e sem alma que participam do bem. Pois ele escolhe o bem como convém a um ser racional, e de acordo com a honra que recebe de Deus. Ora, nós, voluntária e unanimemente, preferimos fazer o mal que o inventor da malícia nos ensinou. Mas o Deus imensamente bom não nos constrange, para que, forçados e indóceis, não incorramos numa grande condenação. Aquele que em todo bem nos concedeu a liberdade não nô-la tira. Mas quem quiser fazer o bem, que peça a Deus na oração, e logo receberá o conhecimento e o poder, a fim de que a graça de Deus lhe apareça justamente. Pois aquilo que ele recebeu pela oração ele também poderia receber sem ela. Mas assim como quem respira o ar para viver não retira disto nenhum mérito, por saber que sem ele não poderia viver, mas ao contrário deve render profundas graças Àquele que criou o ar e que lhe deu narinas para respirar e saúde para receber este ar e viver, também nós devemos agradecer a Deus por ter criado em sua graça a oração, o conhecimento, o poder e as virtudes, e a nós mesmos e tudo o que nos cerca. Não apenas ele criou tudo o que existe como ele não cessa de mover tudo para vencer nossa malícia e nossos inimigos, os demônios. Pois o diabo perdeu o conhecimento de Deus. Sua arrogância e seu orgulho o colocaram na condição de ignorante. Ele não consegue saber por si próprio o que deve fazer, mas ele vê o que Deus faz para nos salvar. Em sua malícia ele se informa da obra divina e inventa meios de contraatacar para nos levar à perdição, pois ele inveja a Deus. Não podendo enfrentá-lo ele nos combate, a nós que somos a imagem de Deus[16]. E se ele percebe que nos sujeitamos à sua vontade, ele pensa assim se vingar de Deus, como diz são João Crisóstomo. Vendo que Deus havia criado Eva para vir em auxílio de Adão[17], o diabo se serviu dela para que trabalhasse com ele pela desobediência e a transgressão. Deus dera uma ordem a Adão para que ele observasse e guardasse a lembrança de seus grandes dons, dando graças por eles a seu Benfeitor. Mas o diabo fez desta ordem uma fonte de desobediência[18] e de morte. Ele suscitou os falsos profetas em lugar dos profetas, os falsos apóstolos em lugar dos apóstolos, a iniquidade em lugar da lei, os vícios em lugar das virtudes, as transgressões em lugar dos mandamentos, as heresias impuras no lugar da justiça. Em seguida, vendo a Cristo descer com sua extrema bondade, como ele dissera, para os santos mártires e os padres bem-aventurados, e aparecer ele mesmo, ou através
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de seus anjos, ou por alguma outra inefável economia, o diabo se pôs também a manifestar em alguns diversas ilusões, para fazê-los perder-se. É por isso que os Padres, que possuíam o discernimento, escreveram que não devemos receber essas manifestações, venham elas de imagens, de uma luz, de um fogo ou de qualquer outra ilusão. Pois o diabo é engenhoso em nos enganar, tanto durante o sono como no estado de vigília. Se recebemos a ilusão, ela permite ao intelecto, por presunção ou ignorância, representar para si próprio formas ou cores onde ele julga que lhe apareceram Deus ou um anjo. Acontece muitas vezes que, no sono ou no estado de vigília, ele nos mostra os demônios aparentemente vencidos. Mas no fundo isto não passa da engenhosidade do demônio para levar à perda aqueles que se deixam persuadir. E então se perde a esperança. É o que dizem os santos Padres: no momento da prece, devemos ter o intelecto livre de toda forma, sem luz, sem fogo, sem nada, seja lá o que for. Ao contrário, devemos com toda força enclausurar a reflexão apenas nas palavras ditas. Pois aquele que ora apenas com a boca, ora para o ar e não para Deus. Deus está atento ao intelecto, não à linguagem, como os homens. Foi dito: “Devemos adorar a Deus em espírito e em verdade[19]”. E: “Prefiro dizer cinco palavras com a minha inteligência, do que dez mil com a língua[20]”. Mas então o diabo, colocando tudo isto em dúvida, nos leva ao desespero pelo pensamento de que os tempos eram outros e outros eram os homens nos quais Deus realizou as maravilhas que fundaram a lei, e que hoje já passou o tempo em que deveríamos nos carregar de pensa. Mas somos todos cristãos e todos carregamos o batismo. Foi dito que aquele que crê e for batizado será salvo[21]. Que mais precisamos? Ora, se nos deixamos persuadir, se permanecemos no estado em que nos encontramos, ficaremos vazios e só seremos cristãos no nome. Ignoramos que quem crê e é batizado deve observar todos os mandamentos de Cristo e dizer, quando tiver completado com sucesso: “Eu sou um servidor inútil[22]”, como o Senhor afirmou aos apóstolos quando lhes ensinou a observar “tudo o ou que eu lhes ordenei[23]”. Com efeito, todo batizado renuncia, quando diz: “Eu renuncio a Satanás e a todas as suas obras, e me uno a Cristo e a todas as suas obras”. Ora, onde está nossa renúncia, se não deixamos para trás todas as paixões e pecados que o diabo quer? Será realmente do fundo da alma que desprezamos o diabo e amamos a Cristo observando seus mandamentos? E como observar seus mandamentos se não renunciarmos a toda vontade própria e a todo pensamento: É preciso dizer, estas vontades e estes pensamentos se opõem às ordens de Deus. Existem alguns que frequentemente, por hábito ou temperamento, amam o bem em certas coisas e odeiam o pior. Mas estes bons pensamentos, que as divinas Escrituras testemunham, devem ser submetidos ao discernimento daqueles que têm experiência. Pois sem discernimento, mesmo aquilo que cremos estar bem pode não ser bom. Agimos inoportunamente, ou contra o dever – vale dizer, indignamente – ou meditando no que nos é dito, mas sem nada saber daquilo. Pois se o que interroga e o que é interrogado não estão ambos atentos não apenas à Escritura, mas também à questão colocada, eles se afastam do sentido das palavras e não é possível superar o mal em pauta. Mesmo eu, quando interrogava ou era interrogado, fui muitas vezes testado. Eu compreendia corretamente o que era dito, mas ficava surpreso em constatar que, apesar de as palavras se corresponderem bem, seus respectivos sentidos se distanciavam completamente uns dos outros. Devemos assim, em todas as coisas, discernir o que fazer para cumprirmos as vontades de Deus. Pois ele é o Criador do universo, e conhece exatamente nossa natureza. Ele próprio ordenou aquilo que é bom para nós, e nos deu as leis que não são estranhas à nossa natureza, mas que lhe são próprias, salvo talvez as virtudes que levam à perfeição os que querem por si sós se elevar a ele sobrenaturalmente, como a virgindade, a despossessão, a humildade, mas não o reconhecimento, que é uma virtude natural. A humildade é uma virtude sobrenatural. Pois o humilde procura todas as demais virtudes. Ele não deve nada, mas se considera devedor de todos e inferior a todos. Quem expressa seu reconhecimento é devedor e confessa que deve. O mesmo acontece com o compassivo: ele é compassivo com tudo o que tem. Mas
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nisto ele não ultrapassa a natureza, como aquele que se despoja de tudo. Aquele que se casa tampouco ultrapassa a natureza, como o que vive a virgindade. Este último carisma é sobrenatural. É por isso que será salvo o primeiro, que renunciou às suas próprias vontades e cumprir as de Deus; o outro, porém, receberá de Deus a coroa da paciência e da glória. Pois ele não apenas abandonou o que é proibido pelas leis, mas, no coração da lei e da própria natureza, com a ajuda de Deus, ele amou com toda sua alma o Senhor que está além de toda natureza e, na medida do possível, imitou sua impassibilidade. Mas nós, nós ignoramos a nós mesmos, ignoramos o que fazemos, ignoramos o objetivo de nossas obras e aquilo que todos buscam. É por isso que nos parece que as divinas Escrituras e as palavras dos santos não estão em acordo com os antigos, os Profetas e os Justos, nem como os novos, os santos Padres. Da mesma forma, aqueles que hoje querem ser salvos estão em desacordo uns com os outros, o que é impossível. Possamos expor aqui em poucas palavras que, pela própria natureza das coisas, nada, nem o tempo, nem o lugar, nem a ação, pode ser obstáculo para o homem que quer ser salvo, com a condição de que ele não busque aquilo que quer fazer, mas que tenda com todo seu pensamento, com correção e discernimento, para o objetivo divino. Pois não existe aí necessidade no que acontece. Tudo provém daquele por intermédio de quem as coisas acontecem. Nós não pecamos malgrado nós; não pecamos se primeiro não concedemos por nós mesmos o assentimento ao pecado, e se não caímos cativos. É o próprio pensamento que leva o cativo a pecar apesar de si e contra sua vontade. Do mesmo modo as faltas cometidas por ignorância provêm do que se se faz com conhecimento de causa. Se não nos embriagamos de vinho nem de desejo, não o ignoramos. Mas uma vez que nos embriagamos, o intelecto começa primeiro a se entenebrecer, depois a tombar e enfim a morrer. Assim é que a morte não chega sem que se saiba. Mas a embriaguez, com nosso conhecimento, nos leva à morte pela ignorância. Poderíamos encontrar muitos exemplos disso, considerando como caímos onde não queremos por causa do que fazemos voluntariamente, e como caímos no que fazemos por causa da ignorância a partir do que fazemos conscientemente. Mas para que as primeiras ações nos pareçam leves e doces, partimos para as segundas sem o querer e sem o saber. Pois, se desde o começo tivéssemos querido guardar os mandamentos e permanecer tal como éramos quando fomos batizados, não chegaríamos a estas coisas, nem tampouco precisaríamos dos trabalhos e das penas do arrependimento. Entretanto, uma vez mais, se quisermos, a segunda graça de Deus – o arrependimento – pode nos conduzir à antiga beleza. Mas se não o quisermos, seremos como os demônios, que não se arrependem; queiramos ou não, iremos com eles para o castigo eterno. Pois Deus não nos criou para nos lançar na cólera, mas para nos salvar[24], a fim de que desfrutemos de seus bens e sejamos plenos de ações de graça e de reconhecimento para com nosso Benfeitor. Mas nossa negligência em conhecer seus dons nos leva à irresponsabilidade; esta nos conduz ao esquecimento, e a ignorância passa a reinar sobre nós. Quando queremos iniciar um retorno para o ponto onde caímos, precisamos encarar muitas penas. Porque não queremos abandonar nossas vontades, e pensamos poder satisfazê-las com Deus, o que é impossível. O próprio Senhor disse: “Eu não vim fazer a minha vontade, mas a do Pai que me enviou [25]”. Entretanto, não existe senão uma única vontade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, assim como só existe uma natureza indivisível. Mas ele disse isto por nós. Ele falava da vontade da carne. Com efeito, se a carne não é reabsorvida, se o homem inteiro não é conduzido pelo Espírito de Deus[26], ele não faz a vontade de Deus a menos que seja forçado a isto. Mas quando reina em nós a graça do Espírito, a coisa muda de figura, e tudo o que acontece passa a ser a vontade de Deus. É então que encontramos a paz, e podemos ser chamados de filhos de Deus[27]. Pois estes querem a vontade do Pai, assim como o Filho de Deus, que é ele também Deus. Pois ninguém pode alcançar este estado se não observar os mandamentos que o separam de todo prazer, de toda vontade própria, de toda dor, e se não tiver a necessária paciência quando sofrer por causa dessas
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vontades. É da falta de sentido que provêm, dizem, o prazer e a dor. Pois o insensato é egoísta: ele não é capaz de amar nem a seus irmãos, nem a Deus. Ele não tem temperança nos prazeres, em seu desejo de fazer o que quer, e não tem nenhuma paciência na dor. Mas ele tanto infla de orgulho e prazer quando obtém suas vontades quanto desaba tiranizado pela dor e afunda na mesquinharia, sufocando sua alma, coisas que no fundo constituem a certeza da Geena. Do conhecimento, ou seja, da sabedoria do intelecto, nascem a temperança e a paciência. Pois o homem sábio retém sua própria vontade e suporta o sofrimento que isto traz. Considerando a si mesmo como indigno da mansidão, ele se enche de reconhecimento pelo Benfeitor e lhe rende graças, temendo que por todos os bens que Deus lhe deu no século presente ele não seja provado no século futuro. Assim é que, por meio da temperança, ele trabalha as demais virtudes. Ele se considera devedor de todas elas. Ele não encontra nada com que retribuir ao Benfeitor. E ele pensa que mesmo as virtudes não fazem senão aumentar sua dívida, pois ele recebe sem ter o quê dar em troca. Ele não pede nada além de ser considerado digno de dar graças a Deus. Que Deus possa receber sua ação de graças, pensa ele, é o que o torna ainda mais devedor. Perseverando em sua ação de graças, ele faz sempre o que é bom, sempre devedor, humilhando-se abaixo de todos, regozijando-se em Deus que o cumula de bens, e ele exulta e treme[28], aproximando-se do infalível amor divino, e aceita com humildade tudo aquilo que sofre. Ele se acha merecedor deste sofrimento, como de tudo o que lhe acontece. Ele se regozija por lhe ser dado, por pouco que seja, afligir-se no século presente. Ele recebe até um alívio quando pensa nos numerosos tormentos que o esperam no século futuro. E, como ele reconhece em tudo sua própria fraqueza e não se orgulha de nada, porque lhe foi dado conhecer estas coisas e perseverar na graça de Deus, ele chega ao desejo divino. Pois a humildade é filha do conhecimento, e este, filho das tentações. Àquele que conhece a si mesmo é dado o conhecimento de tudo. Quem se submete a Deus sujeita a si mesmo todos os cuidados da carne. Depois tudo lhe será submetido, quando a humildade reinar em seus membros. É o que dizem são Basílio e são Gregório[29]: quem vê a si próprio como um intermediário entre a grandeza e a baixeza, com sua alma intelectual e seu corpo mortal e terrestre não se orgulha nem se desespera jamais. Mas, honrando a natureza intelectual da alma, se afasta de tudo o que o desonra. Conhecendo sua própria fraqueza, foge de todo orgulho. Assim, aquele que, por meio das numerosas tentações e das paixões da alma conhece sua própria fraqueza, sabe do poder infinito de Deus. Sabe que este liberta os humildes que clamam de todo coração nas penas da prece, e que esta se torna então uma delícia para ele. Ele sabe que, sem Deus, nada pode[30]. Em seu temor de cair, ele se esforça por se agarrar a Deus. Ele se maravilha ao pensar que Deus o salvou de tais tentações, de tantas paixões. Ele dá graças Àquele que o libertou e une à ação de graças a humildade e o amor. Ele não ousa julgar a ninguém, sabendo que do mesmo modo como Deus o ajudou ele pode ajudar a todos os seres quando quiser. É o que diz são Máximo[31]. Ele sabe também que podemos combater muitas paixões e vencê-las, se confessarmos nossa própria fraqueza. Pois então Deus virá mais depressa, para que sua alma não se perca totalmente. Mesmo que seu pensamento seja presa de outras paixões ainda mais numerosas, quem conhece sua própria fraqueza não tomba jamais. Mas é impossível chegar a este ponto sem que se tenha sofrido numerosas tentações do corpo e da alma e sem que se tenha aprendido pela experiência a se submeter pacientemente ao poder de Deus. Este homem não ousará fazer nada por sua própria vontade, nem permanecer num pensamento sem interrogar os que têm experiência. Pois que via se deve seguir quando não se quer fazer ou pensar nada, para viver em seu corpo ou ser salvo em sua alma? Se não soubermos qual vontade ou qual pensamento abandonar, é melhor se abster e dominar toda ação e todo pensamento. Assim é possível experimentar o tipo de perturbação que eles trazem consigo. Pois eles são um mal que se torna prazer e impede a dor, e que é preciso desprezar antes que se torne inveterado e tenhamos trabalho em vencê-lo quando
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percebermos o prejuízo que nos causa. Digo isto de toda ação e todo pensamento sem os quais é impossível viver num corpo e agradar a Deus. Pois o hábito inveterado recebe a força da natureza; mas se não lhe dermos nada ele se esgota, e se perde pouco a pouco. Seja bom ou mau, o tempo o alimenta como a matéria alimenta o fogo. É por isso que devemos com toda força buscar o bem e praticá-lo, para que se torne um costume. O costume trabalha sozinho e sem esforço nas coisas ordinárias. É assim que os Padres venceram as grandes coisas por meio das pequenas. Aquele que não liga para as necessidades básicas do corpo, mas as afasta para seguir o caminho estreito e doloroso[32], como poderá jamais amar as riquezas? Este amor às riquezas não consiste apenas em ter muito; ele pode provir também de algo pelo quê estamos apaixonados, contra seu uso próprio ou além deste uso. Dentre os antigos santos, muitos possuíam muito, como Abrahão[33], Jó[34] e Davi[35] dentre outros. Mas entre eles não existia nenhum desejo desmesurado: eles possuíam as coisas como vindas de Deus, e tentavam agradá-lo por meio delas. Mas o Senhor que está acima de toda perfeição e que é a própria sabedoria cortou a raiz: ele deu por lei aos que o seguem não apenas não possuir dinheiro ou posses, a fim de imitar a extrema virtude, mas ainda desprezar a própria alma[36], ou seja, não possuir nem vontade nem pensamento próprio. Pois nenhum deles jamais fez a própria vontade. Uns submeteram seu corpo e não tinham outra fonte de pensamento que seu Pai espiritual, que era para eles como o próprio Cristo. Outros, nos desertos, fugiram irremediavelmente dos homens, tendo por mestres o próprio Deus, por quem, em sua resolução, suportariam até a morte. Outros seguiram o caminho real, vivendo na hesíquia, como se deve, com um ou dois irmãos[37] e se aconselhando mutuamente com toda bondade para agradar a Deus. Os que estavam sob a tutela de um Padre logo eram chamados a iniciar outros irmãos, e os conduziam à mesma submissão. Eles mantinham as tradições de seus Padres, e toda obra era bela. Mas hoje, quer vivamos na submissão, quer estejamos em situação de comandar, não queremos abandonar nossas próprias vontades. Por isso não progredimos. Não resta mais, se é que ainda é possível, a fuga para longe dos homens e das coisas desta vida: seguir a via real, viver na hesíquia, com um ou dois irmãos e se dedicar noite e dia aos mandamentos de Cristo e à Escritura, a fim de que, experimentados em todas as coisas, pela consciência e a atenção, pela leitura e a oração, cheguemos ao primeiro mandamento, ao temor a Deus, que provém da fé e do estudo das divinas Escrituras, por meio dos quais se alcança o luto, depois os mandamentos de que fala o Apóstolo, a fé, a esperança e o amor[38]. Quem crê no Senhor teme o castigo. Quem teme o castigo observa os mandamentos. Quem observa os mandamentos suporta as aflições. Quem suporta as aflições coloca sua esperança em Deus. A esperança afasta o intelecto de toda tendência passional; afastada a paixão, ele colocará seu amor em Deus. Se tivermos vontade de agir assim, seremos salvos. A hesíquia – que é o princípio da purificação da alma – prepara, sem esforço, para quem a escolhe, o caminho de todos os mandamentos. “Fuja, cale-se, viva na hesíquia, já foi dito; aí estão as raízes da impecabilidade”. E também: “Fuja dos homens e será salvo [39]”. Pois as relações humanas não permitem ao intelecto ver suas próprias faltas e as intrigas dos demônios, para que o home possa se proteger, e também não permite ver as benesses e a providência de Deus, que nos fazem adquirir o conhecimento divino e a humildade. É por isso que aquele que pretende seguir a via curta para Cristo – a impassibilidade e o conhecimento – e atingir a alegria da perfeição, que não se dirija para a esquerda nem para a direita, mas siga diligentemente em sua conduta o caminho real. Com toda força, fuja dos excessos e das faltas. Pois tanto uns como outros suscitam o prazer. Que a abundância de alimentos e de relações não escureça seu intelecto, e que não se torne cego por causa dos divertimentos. Que o jejum prolongado e as vigílias tampouco perturbem sua reflexão. Mas que, trabalhando bem e com paciência as sete formas – ou seja, as sete ações do corpo – ele se eleve como numa escada. Que de uma vez por todas ele traga em si continuamente estas sete formas.
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Ele se dirigirá para a ação moral por meio da qual Deus concede as contemplações espirituais a quem crê, como disse o Senhor[40]. Pois toda Escritura é inspirada e nos auxilia[41]. Ninguém pode impedir aquele que quer ser salvo. E ninguém tem poder sobre nós, senão Deus que nos criou e que está pronto para socorrer e proteger de toda tentação aos que o chamam e querem fazer sua santa vontade. Sem ele, com efeito, ninguém pode fazer nada que preste[42]. Ninguém pode sofrer um mal indesejado, se Deus não o conceder para instruí-lo quando ele estiver em falta e para salvar sua alma. As más obras são nossas obras, nascidas de nossa negligência e da cumplicidade dos demônios. Todo conhecimento, toda virtude, toda força, assim como todas as demais energias, são graças de Deus. Pela graça ele nos permite ter o poder de nos tornarmos filhos de Deus[43], observando os mandamentos divinos. Estes mandamentos nos protegem grandemente e são graças de Deus. Pois sem sua graça não temos forças para observar os mandamentos, nem temos nada a lhe oferecer, senão termos em nós a fé, a resolução e simplesmente todos os dogmas retos recebidos na certeza da fé e do entendimento; sem sua graça não podemos começar o trabalho solidamente, como nos instruímos na escola, e não poderemos aprender assim com atenção pondo mãos à obra nas sete ações em causa, que apresentamos a seguir.
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LIVRO PRIMEIRO
Declaração necessária e bela sobre as quatro virtudes do corpo. A primeira é a hesíquia: uma conduta que não se deixa distrair, que afasta todos os cuidados do mundo [44], a fim de que, pelo afastamento dos homens e dos divertimentos, seja possível fugir daquele que, através das circunstâncias e dos cuidados desta vida, ronda como um leão rugindo que busca nos devorar[45]. A partir daí o monge não tem senão um pensamento: como agradar a Deus, como preparar a alma para que ela chegue à hora da morte sem ser condenada, como aprender com toda a atenção necessária as intrigas do demônio, o quanto suas faltas são mais numerosas do que a areia do mar e o quanto são ignoradas da maioria por serem mais finas que a penugem dos pássaros. Chorando sempre, ele se aflige pela natureza humana, mas em seu reconhecimento ele é consolado por Deus, ele é acalmado por chegar a ver aquilo que não esperava contemplar, ele que jamais saía de sua cela. Ele conhece sua própria fraqueza. Ele teme e espera o poder divino a fim de não tombar pela ignorância, por estar demasiado seguro de si mesmo, e para não desesperar caso alguma adversidade lhe acontecer, esquecendo-se do amor de Deus pelo homem. A segunda ação é o jejum regrado: comer uma vez por dia, sem jamais se saciar. Não comer senão comidas simples, destas que encontramos sem distrair da vida e sem que a alma comece a procurar por outra. Aprender assim a vencer a gula, a glutoneria, a concupiscência e a não se deixar distrair. Mas aprender também a não descartar nenhum tipo de alimento rejeitando como um mal aquilo que foi criado por Deus, e a não comer tudo de uma vez, sem continência e pelo prazer. E alternar, comer para cada dia, com moderação, um tipo de comida, usar de tudo para a glória de Deus, não descartar nada como se fosse um mal, como o fazem os malditos hereges. Beber vinho quando for o tempo. Quando se é velho, quando se está doente, quando se tem frio, o vinho é útil, mas mesmo assim devemos beber pouco. Quando somos jovens, quando está quente, quando temos boa saúde, a água é melhor. Mas também aí, devemos fazer o possível para beber pouco. Pois a sede é a mais forte das ações do corpo. A terceira é a vigília regrada: dormir a metade da noite e passar a outra metade salmodiando e rezando, gemendo e chorando, a fim de que, por meio do jejum e da vigília o corpo se torne dócil à alma, fique são e pronto para as boas obras[46], e para que a alma receba a coragem e a luz e possa ver e fazer o que convém. A quarta é a salmodia, a prece corporal que passa pelos cantos dos salmos e as genuflexões, para que o corpo se esgote, para que a alma se humilhe, para que fujam os demônios nossos inimigos, para que nos assistam os anjos que combatem conosco, para que saibamos de onde nos vem o socorro e para que a ignorância não nos conduza ao orgulho nos levando a pensar que as obras são nossas. Caso contrário, seremos abandonados por Deus para que conheçamos nossa própria fraqueza. A quinta é a prece espiritual que vem pelo intelecto e afasta todo pensamento. O intelecto se cala diante do que ela diz e se prosterna diante de Deus, inefavelmente quebrantado. Ele não busca senão fazer a vontade divina em todas as suas ações, em todas as suas meditações. Ele não recebe nenhum pensamento, nenhuma forma, nenhuma cor, nenhuma luz, nenhum fogo, nem nada semelhante. Ele se mantém sob o olhar de Deus e só com ele conversa. Ele permanece fora de toda imagem, toda cor, toda forma. Assim é a prece pura, que convém àquele que ainda é ativo. Quanto ao contemplativo, ele recebe coisas ainda maiores. A sexta é a leitura das sentenças e das vidas dos Padres. Mas nada sobre doutrinas estrangeiras ou outras opiniões, em particular as heréticas. Assim o monge aprende das divinas Escrituras e do discernimento dos
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Padres como vencer as paixões e adquirir as virtudes. Ele preenche seu intelecto com as palavras do Espírito Santo. Ele esquece daquilo que pode ter impropriamente dito ou pensado um dia, e daqui que ouviu quando estava fora de sua cela. Dedicado à prece e à leitura, ele chega por meio delas a conceber pensamentos benfazejos. Pois a leitura na hesíquia auxilia a oração, e a prece pura auxilia a leitura, quando se está atento ao que é dito e quando não se lê ou canta superficialmente. Mas seu poder é impossível de ser compreendido corretamente quando se está entenebrecido pelas paixões. Muitas vezes nós nos iludimos por presunção, sobretudo os que pensam ter a sabedoria deste mundo e ignoram que oramos para obter um conhecimento ativo que nos permita compreender essas coisas, e que aquele que pretende aprender a conhecer a Deus não é auxiliado apenas por aquilo que entende. Pois uma coisa é o que entendemos, outra o que fazemos. Do mesmo modo como não nos tornamos experientes apenas por termos ouvido um ensinamento, do mesmo modo como não adquirimos sua arte apenas com o tempo, mas à força de fazer e ver, de erramos e sermos corrigidos pelos mais experimentados, de sermos pacientes e sufocarmos nossas vontades próprias, também o conhecimento espiritual não vem apenas do estudo, mas é uma graça de Deus dada aos humildes. É provável que quem lê as Escrituras conheça-as em parte. Não é de se espantar, sobretudo se for um ativo. Mas este homem não tem o conhecimento de Deus: ele apenas entende as palavras daqueles que têm o conhecimento. Dos que escreveram a Bíblia muitos tinham o conhecimento de Deus, como os Profetas. Mas ele ainda não o tem, assim como eu não o tenho. Eu extraí meu bem das divinas Escrituras, mas não me foi dado entender o Espírito: eu apenas aprendi daqueles a quem ele se deu a conhecer. Eu sou como um homem que ouviu falar de uma cidade ou de alguém da boca das pessoas que os tenham visto. A sétima consiste em interrogar os que têm experiência a respeito de toda palavra e de toda ação, a fim de que cessando de pensar e de fazer por ignorância ou autossuficiência uma coisa pela outra, deixemos de nos enganar, como acontece com frequência, e de cair na presunção, imaginando conhecer quando nada sabemos, como diz o Apóstolo[47]. Além dessas ações do corpo, é preciso ter paciência em tudo o que nos acontece e que Deus concede para que aprendamos, experimentemos e conheçamos nossa própria fraqueza. O que quer que aconteça de bom ou de ruim, não devemos extrair disto nem segurança nem desespero. Mas devemos rejeitar todo sonho, toda palavra e obra vãs. E, em todo tempo, todo lugar, toda coisa, sempre meditar no nome de Deus mais profundamente do que respiramos. Prosternarmo-nos diante dele com toda nossa alma, reunir o intelecto longe de todos os pensamentos do mundo e não buscar senão uma coisa: que se faça a vontade de Deus. Então o intelecto começará a ver suas faltas como a areia do mar. Está aí a origem da iluminação da alma, este é o sinal de sua saúde. Simplesmente, a partir daí, a alma estará quebrantada, o coração humilhado [48], e ela se considerará em verdade abaixo de tudo e de todos. Ela começará a compreender as benesses de Deus, particulares e universais, que se encontram nas divinas Escrituras, e suas próprias faltas. Ela guardará também em sua consciência todos os mandamentos, desde o primeiro até o último. Pois o Senhor os dispôs como numa escada, e é impossível pular um para chegar ao seguinte. Como numa escada, devemos subir do primeiro para o segundo, deste ao terceiro, até que eles façam do homem um Deus pela graça Daquele que os deu àqueles que os assumem.
Que aquele que quer observar os mandamentos deve começar pelo temor a Deus, para não tombar no caos. Se quisermos progredir, primeiro devemos mostrar ardor em viver os mandamentos. E que nada nos venha de fora, pois do contrário cairemos no abismo e mesmo no caos. Acontece com as beatitudes do Senhor o mesmo que acontece com os sete carismas do Espírito. Se não começarmos pelo temor, é impossível
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acessar dos demais. “O começo da sabedoria, diz Davi, é o temor ao Senhor[49]”. E outro Profeta, quando se refere a estas coisas, diz, inspirado do alto: “Espírito de sabedoria e de inteligência, Espírito de conselho e de força, Espírito de conhecimento e de piedade, Espírito de temor a Deus [50]”. O próprio Senhor fez seu ensinamento partir do temor, quando disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito[51]”. Devemos estar sempre dobrados sob o temor de Deus, a alma inefavelmente quebrantada. O Senhor fez deste mandamento o fundamento. Ele sabe que sem este mandamento, ainda que vivamos no céu, isto de nada serviria. Pois teríamos a loucura do orgulho, por cuja causa o diabo, Adão e tantos outros tombaram. É por isso que quem quiser observar o primeiro mandamento – este temor – deve estar profundamente atento aos eventos da vida de que falamos mais acima, e às benesses inumeráveis e insondáveis de Deus, às coisas que ele fez e faz conosco através do visível e do invisível, os mandamentos e os dogmas, as ameaças e as promessas, guardando, nutrindo, provendo, dando a vida, livrando dos inimigos visíveis e invisíveis, curando por meio das orações e da intercessão de seus santos as doenças suscitadas pela nossa desordem, sofrendo sempre com paciência por nossos pecados, nossas impiedades e nossas injustiças. Quantas coisas fizemos, fazemos e faremos, das quais sua graça nos liberta. Quanto o provocamos com nossas obras, nossas palavras, nossos pensamentos. Não apenas ele nos suporta, como também por si mesmo, por seus anjos, pelas Escrituras, pelos justos e os profetas, pelos apóstolos e mártires, pelos doutores e os santos Padres, ele nos cumula de grandes benesses. Compreendendo os esforços de uns, os combates de outros, depois admirando a descida de nosso Senhor Jesus Cristo no meio de nós, sua vida no mundo, sua santa Paixão, a cruz, a morte, a sepultura, a Ressurreição, a Ascensão, a vinda do Espírito Santo, os milagres inefáveis que não cessam de acontecer a cada dia, o Paraíso, as coroas, a adoção que nos foi dada, tudo o que está contido nas divinas Escrituras, e considerando tantas outras coisas ainda, o monge se maravilha de compreender o amor que Deus tem pelos homens, ele treme, ele admira sua longanimidade, sua paciência para conosco, e ele se aflige pela perda sofrida por nossa natureza – falo da impassibilidade angélica, do paraíso, de todos os bens de que nos privou a queda – e, concebendo os males nos quais tombamos – falo dos demônios, das paixões e dos pecados – sua alma se aquebranta por sondar quantos males foram suscitados por nossa malícia e pela engenhosidade dos demônios.
Do segundo mandamento. Que o temor engendra o luto. É assim que Deus nos deu o bem-aventurado luto, o segundo mandamento. Foi dito: “Bem-aventurados os aflitos[52]”, referindo-se àquele que chora por si e pelo próximo, por amor e compaixão. Ele chora como se fosse pelos mortos, antes mesmo da morte, diante do pensamento terrível daquilo que acontece depois da morte. Do fundo de seu coração sobem os gemidos, as lágrimas amargas e dolorosas, o pranto inefável. Ele não liga para a honra ou a desonra, despreza esta vida. As penas do coração e o pranto contínuo o faz esquecer até de comer. Assim, a graça de Deus, a Mãe comum a todos nós, lhe concede a mansidão, o começo da imitação de Cristo, ou o terceiro mandamento: “Bem-aventurados os mansos[53]”, como disse o Senhor. Ele se torna como uma pedra fincada que ninguém move, nem os ventos nem as vagas da vida. Ele permanece sempre igual a si mesmo, na abundância e na carência, na facilidade e na dificuldade, na honra e na desonra. Simplesmente, em todo tempo e em todas as coisas ele sabe discernir que tudo passa, tanto o agradável como o doloroso, que esta vida é um caminho para o século futuro, que mesmo que não queiramos o que tiver que acontecer acontecerá, que nos preocupamos em vão[54], que perdemos a coroa da paciência, e que tudo se passa como se nos opuséssemos à vontade de Deus, pois tudo o que Deus faz é muito bom[55] e nós ignoramos isto. Mas está dito que ele conduzirá os mansos até o julgamento[56] e, para além disto, ao discernimento das coisas.
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Mesmo em ocasiões de cólera, este homem manso não se perturba. Antes ele se regozija por encontrar aí uma oportunidade de progredir e de amar a sabedoria, considerando que a tentação não chegou sem causa. Talvez ele tenha, por ignorância ou conscientemente, afligido a Deus, ou ao seu irmão, ou a outros ainda. Mais ainda, ele considera que existe aí uma fonte de perdão: pela paciência, de se fazer perdoar por suas numerosas faltas. Pois se ele não perdoa as dívidas a quem lhe deve, o Pai não lhe perdoará aquilo que ele mesmo deve[57]. Para atingir a remissão dos pecados não existe via mais curta do que esta virtude, ou este mandamento. Pois foi dito: “Perdoem, e lhes será perdoado[58]”. É isto que é dado conhecer e fazer a quem, imitando a Cristo, se torna manso pela graça do mandamento. Ele se aflige por seu irmão, a quem o inimigo comum vem tentando por meio de seus pecados, mas que se tornou um remédio para a cura de sua doença. Pois toda tentação é concedida por Deus como um tratamento para curar a alma do enfermo. Ela permite a remissão das faltas passadas e presentes e se torna um obstáculo diante dos males por vir. Mas não devemos louvar nisto nem o diabo, nem aquele que o tenta, nem o que é tentado. De fato, o diabo, que faz o mal, é digno de aversão, pois ele faz o mal sem jamais se afligir. Aquele que tenta é digno de piedade por parte do que é tentado, não por que tenha agido por amor, mas por que foi um joguete e se encontra acabrunhado. E, para ser considerado digno de louvor, quem é tentado de carregar a aflição por suas próprias faltas e não pelas faltas do outro. Pois ele também não é livre de pecado. E mesmo que fosse, o que é impossível, ele deveria aguardar com esperança as recompensas e o temor do castigo. Esta é a sorte comum. Mas Deus, que não tem em si nenhuma falta e que trabalha pelo bem de todos, é digno de nossa ação de graças. Pois ele suporta pacientemente o diabo e a malícia dos homens, e retribui todo bem, antes e depois do pecado, para os que se arrependem. Aprendendo assim todo o discernimento, aquele a quem foi dado guardar o terceiro mandamento cessa de ser um joguete com conhecimento de causa ou por ignorância. Ele recebe o carisma da humildade. Ele considera a si mesmo como nada. Pois a mansidão é a própria matéria da humildade, e esta é a porta da impassibilidade. É por esta porta que penetra no amor infalível e perfeito aquele que conhece sua própria natureza, aquilo que era antes de nascer e o que se tornará após a morte. Pois o homem não passa desta pequena imperfeição que se perde a qualquer instante. Ele é pior do que o resto da criação. Nenhuma outra criatura, inerte ou animada, jamais contraria a vontade de Deus, como o faz a natureza humana, que recebeu tantas benesses e que sempre provoca a cólera de Deus. É por isso que o quarto mandamento foi dado, o desejo de adquirir as virtudes. Foi dito: “Bemaventurados os que têm fome e sede de justiça[59]”. O homem está como que sedento e faminto de toda justiça, da virtude do corpo e da virtude moral, que é a da alma. Quem não provou disto ignora o que lhe falta, disse Basílio o Grande. E quem provou quer mais. Quem experimentou a doçura dos primeiros mandamentos e sabe que eles lavam pouco a pouco à imitação de Cristo, sente um grande desejo de adquirir os outros, e por causa disto chega até a desprezar a morte. Ele percebe os menores mistérios de Deus ocultos nas divinas Escrituras, e tem uma grande sede em compreendê-los. Mas quanto mais conhecimento ele recebe, mais a sede o abrasa, como se ele bebesse de uma chama. Pois o divino é incompreensível, e permanecemos sempre com sede. O que a saúde e a doença representam para o corpo, a virtude e o vício são para a alma, e o conhecimento e a ignorância para o intelecto. Quanto mais nos dedicamos à piedade ou à ação, mais a inteligência se ilumina com o conhecimento. Então podemos ser considerados dignos da misericórdia através do quinto mandamento, em que o Senhor diz: “Bem-aventurados os misericordiosos[60]”. O misericordioso é aquele que sente compaixão pelo próximo e o ajuda com aquilo que ele próprio recebeu de Deus, seja dinheiro, comida, força, palavra de alento, oração. Com todo seu poder, em sua compaixão ele se abre a quem lhe pede, e se considera seu devedor. Pois ele recebeu muito mais do que o que lhe foi pedido. Cristo lhe concedeu no século presente e no século futuro, em meio a toda a Criação, ser chamado compassivo como Deus. Através do irmão, foi o próprio Deus que precisou dele e foi seu devedor. Mesmo sem aquilo que
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lhe foi pedido, o pobre pode viver. Mas sem a compaixão que sente por ele tanto quanto lhe é possível, ele próprio não pode viver, nem ser salvo. Se ele não é compassivo com sua própria natureza, como pode ele pedir que Deus tenha piedade de si? Considerando estas coisas e muitas outras, aquele a quem foi dado viver os mandamentos dá não só o que possui, mas ainda toda a sua alma pelo seu próximo. Esta é a compaixão perfeita, aquela pela qual Cristo sofreu a morte por nós, mostrando-se diante de todos como modelo e imagem, a fim de que saibamos morrer uns pelos outros, e não apenas por nossos amigos, mas também pelos inimigos, quando o tempo requerer. Pois não é necessário que tenhamos um objeto para com ele sermos compassivos aparentemente. Esta necessidade seria uma fraqueza, isso sim. Quando não temos um objeto específico para nos compadecermos, abrimos nosso coração a todos. Podemos então ajudar os que precisam, permanecendo desinteressados quanto às coisas desta vida, e profundamente voltados para os homens. Mas, por causa da vaidade, não devemos ensinar, a menos que tenhamos praticado. O que pretender ajudar as almas dos fracos apenas com as aparências se tornará muito mais enfermo do que aqueles a quem pretende socorrer. Com efeito, tudo necessita de tempo e discernimento, para que nada aconteça intempestivamente, ou contra aquilo que se deve fazer. Para os fracos, o melhor é fugir de tudo. A despossessão extrema é melhor do que a piedade, pois é por meio do desinteresse que seremos considerados dignos do sexto mandamento, em que o Senhor diz: “Bem-aventurados os puros de coração[61]”, aqueles que, por suas santas meditações praticaram com sucesso todas as virtudes e chegaram a ver as coisas na sua natureza. Assim se entra na paz dos pensamentos. Está dito: “Bem-aventurados os pacificadores[62]”, os que pacificam a alma e o corpo submetendo a carne ao espírito, a fim de que a carne pare de desejar contra o espírito [63], mas que a graça do Espírito Santo reine na alma e a conduza do modo como ela deseja, dando-lhe o conhecimento divino por meio do qual o homem de paz suporta a perseguição, o ultraje e a maledicência por causa da justiça[64], e se regozije, pois sua recompensa será grande nos céus[65]. Com efeito, todas as beatitudes fazem do homem um Deus segundo a graça. O homem se torna manso. Ele deseja toda a justiça. Ele se torna misericordioso, impassível, pacificador. Ele suporta todos os sofrimentos com alegria, por amor a Deus e ao próximo. As beatitudes são dons de Deus. E nós lhe devemos imensamente dar graças por elas e pelas recompensas dadas: no século futuro o Reino dos céus, e aqui a consolação, a plenitude de todos os bens e de toda graça vinda de Deus, e sua revelação ao contemplarmos os mistérios ocultos nas divinas Escrituras e em todas as criaturas, e a grande recompensa que receberemos nos céus[66] quando trazemos sobre a terra a imagem de Cristo e a beatitude de cada mandamento, esta recompensa que é o cume dos bens, o fim de tudo o que desejamos. De fato, segundo o Apóstolo, somente Deus é realmente bem-aventurado, ele que habita a luz inacessível[67]. Nós temos o dever de guardar os mandamentos, e mais até, de sermos guardados por eles. Mas àquele que partindo do mandamento crê nele, Deus, que ama o homem, dará recompensas aqui e além. Tudo provém do bem-aventurado luto. Dele o intelecto recebe um alívio das paixões. E pela amargura e a abundância das lágrimas derramadas pelos pecados ele se reconcilia com Deus. Ele se crucifica com Cristo pela ação moral, ou seja, pela observância dos mandamentos, como foi dito, e pela guarda dos cinco sentidos, a fim de que estes não façam nada contra seu uso. Uma vez que pode conter impulsos irracionais, o intelecto começa a colocar rédeas nas paixões que o cercam, o ardor e a concupiscência. A partir daí, pelo relaxamento da concupiscência ele apazigua o ardor fanfarrão, e pela austeridade do ardor ele adormece a concupiscência. Ele entra em si mesmo e conhece sua própria dignidade, que consiste em se dominar. Ele recebe a visão das coisas em suas naturezas. Pois então se abre o olho esquerdo[68] que, sob o império das paixões, o diabo havia cegado. Então é concedido ao homem ser enterrado com Cristo em seu intelecto longe das coisas do mundo. Ele deixa de ser cativo
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da beleza das formas exteriores. Ele sabe que o ouro, a prata, as pedras preciosas que ele vê provêm da terra, como a madeira e as pedras, como toda coisa inerte. Ele sabe que o homem também não passa de podridão, um pouco de pó no túmulo após a morte. Ele considera como nada todas as delícias desta vida, e sempre vê suas mudanças com esta grande resolução é o conhecimento traz. Com alegria ele morre para o mundo e o mundo morre para si[69]. Ele não traz em si nenhuma violência, apenas repouso e ausência de paixão. Pela pureza da alma também lhe é concedido ressuscitar com Cristo em seu intelecto. Ele recebe a força de ver impassivelmente a beleza exterior das coisas e de glorificar através dela ao Criador do universo. Ele contempla o que está nas criaturas sensíveis, o poder e a providência de Deus, a bondade e a sabedoria de que fala o Apóstolo[70]. Ele vê os mistérios que estão ocultos nas divinas Escrituras. Então é concedido ao seu intelecto elevar-se com Cristo pela contemplação das criaturas inteligíveis, vale dizer, pelo conhecimento das potências intelectuais. Todas as lágrimas que a consciência e a alegria o fazem derramar o ajudam a compreender o invisível a partir do visível[71], e o eterno a partir do efêmero. E ele considera que se este mundo que passa, do qual é dito ser o exílio e a condenação dos que transgrediram o mandamento de Deus[72], é tão bom, quanto mais o serão os bens eternos e incompreensíveis que Deus preparou para os que o amam[73]. E se estes bens são por excelência incompreensíveis, quanto mais será o próprio Deus, que criou tudo do nada. Pois se repousarmos de tudo, se nos ligarmos às ações do corpo e da alma que os Padres chamam de piedade, se desconfiarmos de todo sonho e de toda ideia própria que não seja atestada pela Escritura, se fugirmos de toda relação vã para não ouvir nem ler nada que seja estéril, em particular as coisas que tocam a heresia, então seremos cumulados pelas lágrimas da consciência e da alegria. Poderemos bebê-las, de tão abundantes. E entraremos na outra prece, a prece pura, própria dos contemplativos. Pois assim como deveremos ter então outras leituras, outras lágrimas, também outra será nossa prece daí por diante. Pois o intelecto penetrou nas contemplações espirituais. É por isso que a partir daí devemos ler sem temor nas divinas Escrituras as palavras difíceis de discernir, como fazem os que ainda são ativos e os fracos por sua ignorância. Quando com o tempo conduzimos o combate das ações do corpo e das ações morais, somo de fato crucificados com Cristo, somos enterrados pelo conhecimento das coisas, em sua natureza e em suas transformações, e ressuscitamos pela impassibilidade e pelo conhecimento dos mistérios de Deus nas suas criaturas sensíveis. Depois nos elevamos acima do mundo, pelo conhecimento do intelecto e dos mistérios ocultos nas divinas Escrituras. Do temor, atingimos a piedade, de onde provém o conhecimento, depois a resolução, ou o discernimento, que dá a força, da qual nasce a compreensão. E então alcançamos a sabedoria. Por meio de todas essas ações e de todas essas contemplações de que falamos, nos são dadas a prece pura e perfeita que provém da paz e do amor de Deus, e a morada do Espírito Santo em nós. É como se diz: é preciso adquirir a Deus em si mesmo, descobrir em nós a presença e a morada de Deus, segundo João Crisóstomo, quando o corpo e a alma, como o corpo e a alma de Cristo, abandonam o pecado, na medida em que isto é possível ao homem. É preciso manter o intelecto em meditação em Cristo, pela graça do Espírito e da sabedoria, que é o conhecimento das coisas humanas e divinas[74].
Das quatro virtudes da alma Existem quatro formas de sabedoria. A castidade, ou o conhecimento daquilo que se deve e que não se deve fazer, e o despertar da inteligência. A temperança, ou a arte de manter a salvo o que está no espírito, de modo a poder se manter fora de toda obra, toda palavra, todo pensamento, que não agradem a Deus. A
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coragem ou força, e a paciência nas penas conforme a Deus e nas tentações. E a justiça, ou a partilha, que atribui a todos a mesma coisa. Estas quatro virtudes gerais nascem das três potências da alma. Do pensamento ou do intelecto nascem duas, a prudência e a justiça, ou o discernimento. Do desejo nasce a castidade, e do ardor a coragem. Cada virtude é um meio entre duas paixões contra a natureza. A prudência se situa entre a presunção e a hesitação. A castidade entre a estupidez e o deboche. A coragem entre a temeridade e a preguiça. A justiça entre os sentimentos de inferioridade e de superioridade. As quatro virtudes são a imagem do homem celeste. E as oito paixões[75], a imagem do homem terrestre[76]. Deus conhece todas estas coisas exatamente, assim como conhece o passado, o presente e o futuro. Aquele que pela graça aprende dele as obras que Deus produz as conhece em parte, e a este é concedido se tornar a sua imagem e semelhança[77]. Mas quem pretende saber apenas por ter ouvido falar[78], este se engana. Pois o intelecto do homem jamais pode se elevar aos céus sem Aquele que o conduz. Quem não subiu [aos céus] nem contemplou não pode falar do que não viu. Mas se entendemos uma palavra da Escritura, não devemos repetir senão esta palavra com reconhecimento por havê-la entendido, e confessar o Pai do Verbo, disse Basílio o Grande. E sem pretender possuir o conhecimento de nada, devemos permanecer abaixo do desconhecido. Presumir, diz são Máximo, não nos permite tornarmo-nos aquilo que presumimos[79]. Existe, com efeito, um desconhecimento louvável, como diz são João Crisóstomo, quando sabemos o quanto ignoramos. Mas também existe uma ignorância além do desconhecimento, quando não sabemos o quanto ignoramos. E existe um conhecimento enganoso, quando, segundo o Apóstolo, acreditamos saber quando, na verdade, não sabemos nada[80].
Do conhecimento ativo Existe um conhecimento verdadeiro, e existe um conhecimento total. Mas o melhor de todos é o conhecimento ativo. Pois de que serve a um homem ter todo o conhecimento, e mesmo recebê-lo de Deus por graça como Salomão[81] – que nisto não tem igual – e depois ser atirado ao castigo eterno? De que lhe serve ter o conhecimento se, por meio das obras e de uma fé segura, o testemunho da consciência não lhe der a certeza de estar livre do castigo futuro por não condenar a si próprio de ter negligenciado o que poderia ter feito na medida do possível, como disse João o Teólogo: “Se nosso coração não nos condena, sentiremos confiança ao nos dirigirmos a Deus[82]”. Mas a consciência não nos condena, disse são Nilo, por que ela foi enganada, maltratada pela cegueira das paixões. É o que também afirma João Clímaco[83]. Mas se é apenas a malícia que entenebrece o intelecto, diz Basílio o Grande, se é a presunção que o cega e não permite que aconteça o que se presume, que dizer então dos que estão submetidos às paixões e que acreditam ter a consciência pura, sobretudo quando vemos o Apóstolo Paulo, que tinha em si a Cristo, dizer em atos e palavras: “É verdade que a minha consciência de nada me acusa, mas isso não significa que eu seja inocente[84]”. É por isso que somos profundamente insensíveis, que a maior parte de nós acredita ser alguma coisa, quando na verdade não somos nada. “Quando eles falarem de paz, diz o Apóstolo, será então que a ruína desabará sobre eles[85]”. Pois eles não possuem a paz, diz João Crisóstomo, mas falam dela, insensíveis que acreditam possuí-la. São Tiago, Irmão de Deus, diz também a respeito que eles se esqueceram[86] de
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seus próprios pecados. Muitos orgulhosos se iludiram pensando possuir a impassibilidade, diz João Clímaco[87]. Eu mesmo, tremendo de medo de ser possuído por estes três gigantes do diabo de quem fala são Marcos o Asceta[88] – a negligência, o esquecimento e a ignorância – e com temor de que em minha ignorância eu me visse fora do caminho, como disse santo Isaac[89], reuni estas poucas sentenças. Quem detesta ser convencido do erro mostra que a paixão do orgulhou o marcou, diz João Clímaco [90]. Mas quem prossegue além da reprovação se livra de seus laços. Salomão o diz: “Quando o insensato coloca uma pergunta sobre a sabedoria, ela passa por sábio[91]”. No início eu citei os nomes dos livros e dos santos, a fim de não alongar meu discurso referindo de quem é cada sentença. Os próprios santos Padres muitas vezes transcreveram as palavras das divinas Escrituras. Também Gregório o Teólogo transcreveu as palavras de Salomão. Muitos outros agiram da mesma maneira. Simeão Logoteta o Metafraste falava assim a respeito de João Crisóstomo: “Não seria justo deixar de lado suas palavras para utilizar as minhas”. E no entanto ele poderia. Pois todos os Padres receberam do mesmo Espírito Santo. Mas tanto eles dizem de quem são as sentenças que ornamentam seus discursos, por humildade, preferindo as palavras das Escrituras, tanto as deixam anônimas, por tão numerosas que são, para não sobrecarregar o que é dito.
Que as virtudes do corpo são instrumentos das virtudes da alma Como é melhor do que apelar para as numerosas citações de memória, começarei por transcrever a maior parte das coisas que foram ditas e que não provêm de mim, mas que são as palavras e o discernimento das divinas Escrituras e dos santos homens. João Damasceno disse que as virtudes do corpo, ou antes, que os instrumentos das virtudes são necessários quando os buscamos com humildade e conhecimento espiritual[92]. Pois sem as virtudes do corpo as virtudes da alma não existem. Mas se as virtudes do corpo não trazem em si as da alma, se elas são reduzidas a si mesmas, elas já não servem para nada, como plantas sem frutos. Se não nos consagramos a Deus, se não rompemos com nossas vontades próprias, é impossível aprendermos de forma sábia e segura qualquer arte. Além da ação, temos necessidade de conhecimento, da contínua consagração a Deus longe de tudo e do estudo das divinas Escrituras, sem o que é impossível adquirir as virtudes. Aquele a quem foi dado consagrar-se total e continuamente a Deus, este descobriu o bem supremo. Mas quem não chegou até aí não seja negligente, ainda que de forma parcial. Bem-aventurado o que chega à consagração total, seja por se submeter a um monge ativo que vive solitário e conforme a razão, seja por ele próprio viver na hesíquia e na ausência total de cuidados e longe de tudo, rigorosamente submetido à vontade divina e confiado ao conselho dos que têm experiência em tudo o que se relaciona às palavras e aos pensamentos. Bem-aventurados sobretudo os que querem atingir além de todo esforço a impassibilidade e o conhecimento espiritual pela total consagração a Deus, como ele próprio falou pelo Profeta: “Rendam-se e reconheçam que eu sou Deus[93]”. Os homens votados a esta vida, refiro-me aos homens segundo este mundo, e nós que nos dizemos monges, devemos ainda que parcialmente nos consagrar a Deus como os antigos Justos, para sondar nossa pobre alma antes da morte e suscitar sua correção ou humildade, e não a perdição irreparável para a qual conduzem a ignorância total e as faltas conhecidas e desconhecidas. Davi era rei, mas todas as noites, sentindo a presença do divino, ele molhava de lágrimas seu leito[94]. E Jó disse: “Meus cabelos estão eriçados[95]”, etc. Também nós, ainda que por uma pequena parte do dia ou da noite, como os homens votados a esta vida, consagremo-nos a Deus e vejamos o que responderemos ao justo Juiz no dia terrível do Juízo. Acima de tudo, inquietemo-nos com este Juízo, como com algo necessário, com temor ao castigo eterno, e não preocupados como vamos viver se formos pobres ou como poderemos enriquecer
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sendo caridosos. Colocamos tolamente todo o nosso cuidado nas coisas desta vida, disse o divino Crisóstomo. É preciso trabalhar, mas não nos inquietarmos nem nos agitarmos com um monte de coisas[96], como disse o Senhor a Marta. O cuidado com esta vida jamais deixou alguém cuidar de sua alma e saber o que ela é, como faz aquele que se consagra a Deus e que está atento a si mesmo, como está escrito na Lei: “Guarde-se[97]”, etc. E o grande Basílio escreveu a partir destas palavras um discurso admirável e cheio de sabedoria[98].
Que é impossível ser salvo de outro modo que não a atenção rigorosa e a guarda do intelecto Sem a atenção e a vigília do intelecto nos é impossível ser salvos e libertos do diabo que gira ao nosso redor como um leão que ruge buscando o que devorar[99], disse João Damasceno. É por isso que o Senhor sempre dizia a seus discípulos: “Vigiem e rezem, por que vocês não sabem[100]”, etc. Ele falava da lembrança da morte. E através dos seus discípulos ele nos prescreveu a todos para que estejamos prontos a dar, por meio de nossas obras e de nossa atenção, uma resposta que possa ser recebida. Pois, disse santo Hilário, os demônios imateriais não dormem, e colocam todo seu empenho em nos combater[101], em perder nossas almas pela palavra, pelas obras e pelo pensamento. Nós não somos com eles. Estamos sempre cuidando, seja das delícias e da glória passageira, seja das coisas desta vida, e de tantas outras. Só não cuidamos, mesmo em parte, daquilo que queremos possuir para sondar nossas vidas, a fim de que o intelecto possa adquirir o hábito, e permanecer sem descanso e frequentemente atento a si mesmo. Pois como disse Salomão, você caminha em meio a muitas armadilhas [102]. João Crisóstomo descreveu estas armadilhas com grande clareza e total sabedoria. O Senhor, querendo nos afastar de toda inquietude, nos ordenou desprezar alimentos e vestes para não termos senão um único cuidado – como ser salvos, como libertar o gamo da rede e o pássaro da armadilha[103] – e para podermos enxergar com o olhar penetrante do gamo e a voar como o pássaro nas alturas. É verdadeiramente admirável que Salomão tenha dito isso. Pois ele era rei, assim como seu pai, que havia falado e agido como ele. Em meio a numerosos combates, eles levavam com grande atenção uma vida de sabedoria e virtude. Mas depois de terem recebido tantos carismas e a própria manifestação de Deus, eles foram vencidos pelo pecado. Um teve que chorar um adultério e uma morte[104]. O outro caiu em inúmeros males[105]. Não existem aí motivos, para nós que temos inteligência, para nos encher de temor e de horror, como disseram João Clímaco[106] e Filemon o Asceta[107]? Como não tremer e não fugir do emaranhado desta vida, por causa de nossa fraqueza, nós que nada somos, ao invés de permanecermos insensíveis como os animais irracionais? Miserável que sou, possa eu ao menos guardar minha natureza, como os animais. Pois um cão é melhor do que eu, etc[108].
Que aqueles que querem ver onde se encontram não têm outra coisa a fazer do que fugir de suas próprias vontades, pela submissão e a hesíquia, sobretudo os que são presa das paixões. Se quisermos ver a nós mesmos e aprender o quanto nosso estado traz consigo a morte, fujamos de nossas próprias vontades e das coisas desta vida. Fugindo para longe de tudo, consagremo-nos com esforço ao recolhimento bem-aventurado diante de Deus, cada qual buscando sua alma no estudo das divinas Escrituras, na perfeita submissão da alma e do corpo se ainda estamos sob a força das paixões, ou na hesíquia, esta vida de anjos tão decantada, se já conseguimos conter nossos desejos, pequenos e grandes. Foi dito: “Permaneça na sua cela e ela lhe ensinará tudo[109]”. E também, conforme o grande Basílio: “A hesíquia é o começo da purificação da alma[110]”. Também Salomão disse: “Deus permitiu que os filhos
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dos homens fossem arrastados à vaidade por causa de sua agitação perniciosa[111]”, para que o ócio selvagem e passional não os levasse a algo ainda pior. Quem foi liberto destes dois abismos pela graça de Deus, aquele a quem foi permitido se tornar monge, vestir o hábito angélico e monástico, e revelar por suas palavras e suas obras tanto quanto possível apenas a imitação de Deus, como disse o grande Denis[112], como não verá como seu dever estar sempre consagrado a Deus, manter seu intelecto atento a todas as suas ações e continuamente meditar perante Deus sobre o estado alcançado? É o que os santos Padres, Efrém e outros, diziam aos iniciantes. Um dizia que aqueles a quem ainda não fora dado atingir a contemplação – vale dizer, o conhecimento – tivessem sempre nos lábios um salmo, ou um esticárion, ou que mantivessem o intelecto atento aos salmos e aos tropários, a fim de nunca permanecer sem estudo, no trabalho, nos caminhos, no leito antes de dormir. Mas uma vez que se segue uma regra recebida, é preciso concentrar o intelecto no estudo, para que o inimigo não nos encontre de mãos vazias e longe da lembrança de Deus e nos atazane com seus males. Isto é verdade para todos. Quando, depois de numerosos combates – vale dizer, pelas virtudes do corpo e da alma – podemos, pela graça de Cristo, nos elevarmos em espírito até a obra espiritual – a obra do intelecto – e chorarmos nossas almas, devemos guardar como a menina dos olhos o pensamento que traz as lágrimas dolorosas, disse João Clímaco[113], até que a economia divina faça vir o fogo e a água, a fim de deter a presunção. O fogo é a pena do coração, a fé ardente. A água são as lágrimas. Elas não são dadas a todos, disse o grande Atanásio, mas aos que são dignos de ver os tormentos que precedem e se seguem à morte, pela lembrança contínua que eles têm na hesíquia, como disse Isaías: “O ouvido de quem vive na solidão escuta coisas extraordinárias[114]”. E também: “Detenham-se, e conhecerão[115]”. Pois somente a hesíquia engendra o conhecimento de Deus. Somente ela pode ajudar os passionais e os mais fracos, permitindo-lhes viver sem distração e fugir dos homens, das conversas e dos cuidados que obscurecem o intelecto, e não apenas dos cuidados desta vida, mas também das menores coisas que nos parecem estranhas ao pecado. Como disse João Clímaco: “o menor fio de cabelo perturba o olho [116]”, etc. E santo Isaac: “Não pense que a avareza consiste apenas no fato de possuir ouro ou prata. Ela é também o pensamento do dinheiro, quando este se agarra a nós[117]”. Também o Senhor disse: “Onde estiver seu tesouro, aí estará seu coração[118]”. Seja nas coisas e pensamentos divinos, seja nas coisas e pensamentos terrestres. É por isso que somos chamados à ausência de cuidados e à consagração a Deus. Parcialmente, para aqueles que ainda estão ligados às coisas desta vida, como foi dito, para que cheguem pouco a pouco à prudência e ao conhecimento espiritual. Ou totalmente, para os que podem se consagrar e colocar todo seu empenho em agradar a Deus, para que Deus veja sua resolução, lhes conceda o repouso por meio do conhecimento espiritual e os faça chegar ao estudo da primeira contemplação, no qual eles irão adquirir a inefável contrição da alma e se tornarão pobres em espírito[119]. Conduzindo-os assim paulatinamente às demais contemplações, ele lhes concederá a guarda das beatitudes, até que atinjam a paz dos pensamentos, que é o lugar de Deus, como disse são Nilo [120] se referindo ao Saltério: “Seu lugar é na paz”. Das oito contemplações do intelecto.[121] Existem oito contemplações do intelecto, em minha opinião. Sete pertencem a este século, e a oitava pertence ao século futuro, como disse santo Isaac[122]. A primeira é o conhecimento das aflições e das tentações desta vida, disse são Doroteu[123]. Ela chora por todo o mal que a natureza humana sofre por causa do pecado.
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A segunda é o conhecimento de nossas faltas e das benesses de Deus. É o que dizem João Clímaco [124], santo Isaac e muitos outros Padres. A terceira é o conhecimento dos tormentos que precedem e se seguem à morte, como está nas divinas Escrituras. A quarta é o conhecimento da vida que neste mundo levou nosso Senhor Jesus Cristo, e das obras e palavras de seus discípulos e de outros santos, dos mártires e dos Padres. A quinta é o conhecimento da natureza e da transformação das coisas. É o que dizem os santos Padres, Gregório o Teólogo e João Damasceno. A sexta é a contemplação dos seres, ou seja, o conhecimento e a compreensão das criaturas sensíveis de Deus. A sétima é a compreensão das criaturas inteligíveis de Deus. A oitava é o conhecimento de Deus, a que chamamos teologia. Estas são as oito contemplações. As três primeiras convêm a quem ainda é ativo, a fim de que este possa, sob a abundância e a amargura das lágrimas, purificar sua alma de todas as paixões. Depois ele receberá as demais pela graça. As cinco contemplações seguintes convêm ao contemplativo, ou àquele que sabe, para que ele possa sempre observar e levar a cabo as ações do corpo e as ações morais, ou seja, as ações da alma. É por meio delas que lhe será dado sentir as primeiras, na ordem visível como na ordem do intelecto. Desde a primeira contemplação, o monge ativo recebe, com efeito, o começo do conhecimento e se dedica ao trabalho. Ele estuda os pensamentos que lhe são dados e progride por meio deles, até os fazer seus. O conhecimento seguinte virá por si só ao intelecto. O mesmo acontecerá com todos os demais. Mas para que tudo fique bem claro, mesmo que não me seja possível dizer algo, falarei mais precisamente de cada contemplação, mostrando o que se deve compreender e dizer, para que encontremos em cada contemplação um meio de saber o que devemos fazer, quando a graça começar a abrir-nos os olhos da alma ajudando-nos a entender, ajudando-nos a sermos profundamente tocados pelos pensamentos e as palavras que poderão fazer habitar em nós o temor de que já falamos, e que é a contrição da alma.
Declaração necessária ao primeiro conhecimento. De como devemos começar. O primeiro conhecimento abre todos os demais para aquele que se engajar. Aquele a quem foi dado penetrar neste conhecimento deve fazer o seguinte: colocar-se a Oriente, como outrora Adão. Pensar que naquele tempo Adão habitava lá, e chorava em face das delícias do Paraíso. Ele batia com as mãos no próprio rosto dizendo: “Compassivo, tenha piedade de mim que caí[125]”. E também este outro verso: “Adão, vendo o anjo que o expulsava e lhe fechava o portão do jardim de Deus, gemeu profundamente, dizendo: Compassivo, tenha piedade de mim que caí”. Depois ele compreendeu o que lhe acontecera. Ele implorou, suspirou com toda sua alma e pendeu a cabeça. E na dor de seu coração ele disse:
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“Pecador, o que me aconteceu? O que era eu, e no que me tornei? O que perdi e o que encontrei? Em lugar do Paraíso, este mundo corruptível. Em lugar de Deus e da vida angélica, o diabo e os demônios impuros. Em lugar do repouso, o trabalho. Em lugar da felicidade e da alegria, a aflição do mundo e a tristeza. Em lugar da paz e da contínua felicidade, o temor e as lágrimas dolorosas. Em lugar da virtude e da justiça, a iniquidade e os pecados. Em lugar da bondade e da impassibilidade, a malícia e as paixões. Em lugar da sabedoria e da intimidade de Deus, a ignorância e o exílio. Em lugar da total ausência de cuidados e em lugar da liberdade, a vida inquieta e a pior servidão”. “Oh! Oh! Como fui eu criado rei? Como em minha loucura me tornei escravo das paixões? Infeliz de mim, o miserável. Como, pela transgressão, transformei a vida em morte? Ah! Ah! Infeliz, o que me aconteceu por causa de minha imprudência? Que fazer? Aqui lutas, ali confusões. Aqui enfermidades, ali tentações. Aqui perigos, ali naufrágios. Aqui medos, ali tristezas. Aqui as paixões, ali os pecados. Aqui as amarguras, ali as angústias. Infeliz de mim, o miserável. Que fazer? Para onde fugir? Estou oprimido por todos os lados[126], como disse Suzana. Eu não sei o que pedir. Se peço viver, temo as tentações da existência, suas mudanças, seus acidentes. Vejo Satanás, o Anjo que se ergue pela manhã como a estrela que traz a aurora[127], tornado naquele a quem chamamos de diabo. Vejo a primeira criatura exilada[128]: Caim, assassino de seu irmão; Canaã maldita; os Sodomitas queimados pelo fogo; Esaú decaído; os Israelitas submetidos à cólera; Giezi e o apóstolo Judas caídos, vítimas da avareza; o Rei, o grande Profeta, chorando seu duplo pecado; Salomão decaído[129], malgrado toda sua sabedoria; aqueles que tombaram dentre os sete diáconos e os quarenta mártires, como disse o grande Basílio. O príncipe do mal se regozija de capturar Judas o covarde dentre os doze; do coração do Éden, o homem; dentre os quarenta, aquele que recuou. É preciso chorar por ele, e dizer ainda: é vão e digno de piedade aquele que fracassou nas duas vidas. Pois ele foi destruído pelo fogo e partiu para o fogo que não se extingue. E quantos outros, incontáveis, tombaram, não apenas entre os descrentes, mas muitos dentre os Padres, que suaram tantos suores”. “Com efeito, que sou eu, eu que sou pior, mais insensível e mais fraco do que todos? Que dizer de mim mesmo? Pois Abrahão disse de si próprio ser ele terra e cinzas[130]. Davi disse de si mesmo que era um cachorro morto, o mais ínfimo de Israel[131]. Salomão disse de si que era como uma criança que não distinguia a direita da esquerda[132]. Os três adolescentes disseram ter se tornado vergonha e opróbrio[133]. O profeta Isaías disse: “Ó infeliz que sou eu[134]”. E o profeta Habacuque: “Eu sou uma criança[135]”. O Apóstolo disse de si ser o primeiro dos pecadores[136]. Todos os santos disseram ser nada. Que fazer? Onde me esconder de todos os meus males? Que me tornar, eu que nada sou, e que sou ainda pior que o que é menos que nada? Aquele que é ninguém não pecou, mas também não recebeu nenhum bem como eu recebi. Oh, como vou terminar o tempo que me resta a viver? Como farei para fugir das armadilhas do demônio? Os demônios não dormem, eles são imateriais, a morte se aproxima, eu sou fraco. Senhor, ajude-me! Não deixe que sua criatura se perca. Pois você vela sobre o miserável que sou eu. Faça com que eu conheça a via sobre a qual devo caminhar, pois a você elevo minha alma[137]. Não me abandone, Senhor meu Deus. Não se retire de mim, venha em meu auxílio, Senhor da minha salvação[138]”. A alma será partida por essas palavras, se ela puder senti-las. E se ela perseverar, se adquirir o temor divino, o intelecto começará a compreender e a meditar nas palavras da segunda contemplação.
Da segunda contemplação Oh, miserável, que fazer? No que me tornar? Eu pequei tanto! Eu recebi tantos bens. E sou tão fraco. As numerosas tentações e a negligência me oprimem. O esquecimento me entenebrece e não me permite ver a mim mesmo, nem ver a multidão dos meus males. A ignorância é má, a transgressão consciente é pior ainda, a virtude difícil, as paixões numerosas, os demônios ativos, o pecado fácil, a morte próxima, o
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julgamento amargo. Pobre de mim! Que fazer? Para onde fugir? Sou eu mesmo a causa de minha perdição. Eu recebi a honra da liberdade, e ninguém pode me constranger. Fui eu que pequei, que peco sempre e que passo negligentemente ao largo de toda boa obra. Ninguém está lá para me obrigar. A quem posso responsabilizar? Deus é bom e ama o homem. Ele não deseja mais do que o retorno para ele e o arrependimento. Os anjos me amam e guardam. Também os homens torcem pelo meu progresso. Os demónios não podem obrigar a quem não quer se perder, nem por negligência nem por desespero. Quem então é responsável, senão eu mesmo, miserável que sou? Eu vejo minha alma se perder e nada faço para me engajar numa vida de piedade. Porque, ó minha alma, você não vigia a si mesma? Porque, quando você peca, não se envergonha diante de Deus e de seus anjos, como se envergonharia diante dos homens? Ó infeliz, que não me envergonho diante de seu Criador e Mestre, mas me envergonho diante de um homem. Pois diante dos homens eu não posso pecar. Eu me empenho em mostrar que todos os meus atos são justos. Mas diante de Deus eu não me envergonho de dizer e pensar o que é mau. Ó loucura minha! Quando eu faço o mal, eu não temo a Deus que está me vendo. E, para me corrigir, eu não posso dizê-lo a um homem. Pobre de mim! Pobre de mim! Eu conheço o castigo, mas não quero me arrepender. Eu amo o Reino celeste, mas não adquiro a virtude. Eu creio em Deus, e desobedeço todos os dias aos seus mandamentos. Eu odeio o diabo, mas não deixo nunca de fazer o que lhe agrada. Se eu rezo, é com negligência, e permaneço insensível. Se jejuo me vanglorio, e me condeno a partir daí. Se velo, faço cara de ocupado, e isto não me serve para nada. Se leio, insensível, logo caio em um de dois males: ou leio para saber muitas coisas e por vã ambição, e afundo ainda mais nas trevas; ou entendo e não faço nada, e me condeno mais ainda. Se pela graça de Deus paro de pecar em ato, nem por isso deixo de pecar por palavras. E se a graça de Deus me cala, infeliz, eu ainda provoco a Deus em meus pensamentos. Oh, que fazer? Onde quer que eu vá, só encontro pecados. Os demônios estão por toda parte. O desespero é pior do que tudo. Eu provoquei a cólera de Deus, entristeci seus anjos, feri e escandalizei os homens. Eu quis com minhas lágrimas apagar o manuscrito das minhas faltas, Senhor, e passar a agradá-lo com meu arrependimento pelo resto de minha vida. Mas o inimigo me engana e combate minha alma. Senhor, antes que eu me perca inexoravelmente, salve-me. Pequei contra você, Senhor, como o filho pródigo[139]. Pai, receba-me, a mim que estou arrependido. Deus, tenha piedade de mim. Eu clamo por você, Cristo Salvador, como o publicano[140]. Deus, purifica-me como a ele, tenha piedade de mim[141]. Que será de mim ao final? Que advirá no fim? Oh, infeliz, quem derramará água sobre sua cabeça? Quem dará aos meus olhos a fonte das lágrimas[142]? Quem me tornará digno de chorar? Pois não consigo fazê-lo por mim mesmo. Venham, montanhas, cubram a este miserável. Oh, que poderei dizer? Quantos bens me fez Deus, que só ele conhece, e quantos males suscitou minha ingratidão! Por minhas obras, minhas palavras e meus pensamentos, eu constantemente irrito o Benfeitor. Quanto mais paciente ele é, mais presunçoso me mostro, miserável que sou, e me torno mais insensível do que as pedras sem alma. Entretanto eu não desespero, pois reconheço seu amor pelo homem. Eu não adquiri nem o arrependimento, nem as lágrimas. Eu lhe suplico então, Salvador, faça-me retornar antes do fim e dê-me o arrependimento, para que eu seja livre do castigo. Senhor meu Deus, não me abandone. Pois eu não sou nada diante de você. Eu sou inteiro pecador. Onde encontrarei os meios para sentir meus grandes males? Eu nada faço para isto. Aí está minha grande
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condenação. Para mim foram criados o céu e a terra, para mim os quatro elementos e tudo o que deles saiu, como disse Gregório o Teólogo[143]. E calarei sobre o demais. Pois não sou digno de falar a respeito, por causa da multidão de meus males. Quem poderá compreender, ainda que lhe fosse dada a inteligência angélica, as inumeráveis benesses que recebi? Mas eis que, recusando o arrependimento, infeliz, estou votado a fracassar em tudo. Meditando nestas coisas chegará um tempo em que você alcançará o terceiro conhecimento, se continuar a implorar.
Da terceira contemplação. Oh, que combate, quando a alma se separa do corpo! Que lágrimas! E ninguém pode ajudá-la ainda que se compadeça. Ela volta os olhos para os anjos, mas suplica em vão. Ela estende as mãos aos homens, mas ninguém pode socorrê-la[144]. Eu choro e sofro quando pensa na morte e vejo nos túmulos nossa beleza criada à imagem de Deus jazendo sem forma, sem glória e sem aparência. Ó milagre! Qual é o mistério que nos cerca? Como fomos atirados à corrupção? Como nos misturamos à morte? Em verdade, foi por ordem de Deus, como está escrito[145]. Oh infeliz, que farei à hora da morte, quando os demônios cercarem minha pobre alma, trazendo por escrito o mal que eu fiz conscientemente ou por ignorância, em palavras, atos e pensamentos, quando exigirem de mim que eu preste conta de todas as minhas faltas? Mas, fora de todo pecado, eu já fui condenado por não ter guardado os mandamentos. Ó minha pobre alma, diga-me agora: onde estão os compromissos do batismo? Onde a adesão a Cristo? Onde a rejeição a Satanás? Onde a guarda dos mandamentos de Deus? Onde a imitação de Cristo pelas virtudes do corpo e da alma? Onde estão as coisas pelas quais somos chamados de cristãos? Onde a profissão monástica? Eu poderia talvez alegar alguma enfermidade do corpo, mas onde está a fé que não se preocupa senão com Deus e que pode mover as montanhas, ainda que a tenhamos do tamanho de um grão de mostarda[146]? Onde o arrependimento total, que nos separa de toda obra e palavra más? Onde a alma quebrantada e o luto extremo? Onde a doçura, a compaixão, o coração puro de pensamentos de malícia, a temperança em todas as coisas, guardando imóveis – salvo necessidade – todos os membros do corpo, todo pensamento e toda vontade, para salvação da alma e da vida corporal? Onde a paciência que suporta todas as aflições pelo Reino dos céus? A ação de graças em todas as coisas? A prece incessante? O pensamento da morte, as lágrimas da tristeza, se eu sequer derramo aquelas do amor? A prudência conforme a Deus, que protege a alma das armadilhas do inimigos e dos que nos combatem? A castidade, que nos separa de tudo que não é fato ou pensamento de si mesmo em Deus? A coragem, que, pela esperança, nos faz suportar as infelicidades e enfrentar os inimigos? A justiça, que partilha entre todos a mesma coisa? A humildade, que nos faz reconhecer nossa própria fraqueza, nossa ignorância e o amor de Deus pelo homem, que deveria nos livrar de todas as intrigas do inimigo? Onde a impassibilidade e o amor perfeito, a paz que ultrapassa toda inteligência[147], pela qual eu deveria ser chamado de filho de Deus[148]? Pois tudo isso, e sem que seja preciso usar a força do corpo, aquele que o deseja pode obter por uma simples resolução. Mas o que tenho eu a dizer? Infeliz, que faço eu? Pois eu sequer receio a minha incerteza. Eu negligenciei totalmente o que deveria fazer quando me era possível, e agora irei para o inferno, como disse o grande Atanásio. Ó infelicidade minha! O que fiz por mim? Não apenas porque pequei, mas acima de tudo por que não quis me arrepender. Se eu tivesse me arrependido, como o filho pródigo[149], o Pai, com sua afeição, teria me recebido de volta. E se eu tivesse tido a nobreza do
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publicano[150], condenando a mim próprio e nunca a outrem, também poderia ter recebido de Deus a remissão dos pecados, sobretudo se, como ele, houvesse implorado com toda a minha alma. Mas agora ainda estou longe de me ver assim. E temo permanecer no inferno com os demônios, temo o Juízo que virá, lá onde correm os rios de fogo, onde estão os tronos, onde são abertos os livros[151], onde os anjos nos precedem, onde a natureza humana ficará inteiramente exposta. Tudo ficará nu e descoberto [152] diante do temível e justo Juiz. Oh, como suportarei a acusação, a indignação do temível Juiz incorruptível, a afluência dos inumeráveis anjos, a exigência e a terrível ameaça, a sentença sem retorno, o pranto incessante e as lágrimas inúteis, as trevas sem luz e o verme que não dorme, o fogo que não se extingue[153], os tormentos, a queda para fora do Reino, a separação dos santos, o distanciamento dos anjos, o exílio para longe de Deus, a angústia e a morte eternas, o medo, as penas, a tristeza, a vergonha, a tortura da consciência? Oh, pecador, que me esperará? Porque esta cruel perdição? Eu ainda tenho tempo de me arrepender. O Mestre me chama, recuarei? Até quando, minha alma, persistirá você em suas faltas? Até quando irá procrastinar o arrependimento? Pense no Juízo que virá. Chame por Cristo Deus: você que conhece os coração, eu pequei. Antes de me condenar, tenha piedade de mim. Que não ouçamos Cristo dizer na hora deste temível evento: “Eu não os conheço[154]”. Pois é em você, o Salvador, que colocamos toda nossa esperança, mesmo que em nossa negligência não façamos o q eu nos foi ordenado. Mas nós lhe rogamos: proteja nossas almas. Infeliz de mim, Senhor, por que o afligi sem sentir. Mas sua graça me fez sentir, ainda que pouco, e já não sei o que fazer, infeliz. Minha pobre alma treme. Mas viverei ainda o bastante para chorar amargamente e lavar minha carne e minha alma manchada? Ou ainda, se eu tomar o luto por um momento, conseguirei me deter, eu que sou sempre tão insensível? E se quiser fazer algo, obterei o esforço contínuo da alma? Jejuarei, vigiarei? Mas sem a humildade, isto não me servirá de nada. Cantarei apenas com a minha boca, lerei? Mas as paixões entenebreceram meu intelecto, e não compreendo o poder daquilo que é dito. Prosternar-me-ei diante d’Aquele que concede todos os bens? Mas não tenho coragem. Minha vida é desesperançada. Perdi minha alma! Senhor, venha em meu auxílio e receba-me como ao publicano. Pequei contra o céu e perante você[155], como o filho pródigo e a prostituta em lágrimas[156], da qual se disse: sua vida era desesperançada. Todos conheciam sua conduta. Mas ela veio diante de você, trazendo a mirra, e disse: “Você que nasceu da Virgem, não me rejeite por eu ser prostituta. Alegria dos anjos, não recuse minhas lágrimas, mas receba a mim que me arrependo. Em sua grande piedade, Senhor, não afaste de você aquela que pecou[157]”. Infeliz, também eu estou desesperançado por causa de meus numerosos pecados, mas me coloco diante de seu inefável amor pelo homem e no oceano infinito de suas compaixões no qual atirei o desespero de minha alma, e ouso reunir meu intelecto em sua santa memória. Se me dirijo a você é para pedir com grande temor e tremor que me seja concedido, apesar de minha indignidade, tornar-me seu servidor, de guardar por sua graça meu intelecto longe de toda imagem, de toda forma, de toda cor, de toda matéria, de me prosternar diante de você, o Deus único e Criador do universo, como antes Daniel diante do seu anjo, de joelhos e em suas mãos, e de apresentar diante de você minha ação de graças, e depois minha confissão. Assim, miserável, eu começo por implorar sua santíssima vontade, rendendo graças pelos bens que você me concedeu, a mim que sou terra, poeira e cinzas. Todo meu ser é terrestre, mas me foi dado dirigir-me a você apenas pelo intelecto. E diante do pensamento que eu sou visto por você, com toda a minha alma eu clamo e digo: Mestre cheio de amor, eu lhe dou graças, ei o glorifico, eu o celebro, eu o adoro. Eu sou indigno, e no entanto você me permitiu nesta hora agradecê-lo e estar inteiramente à escuta daquilo que você fez e faz todo o tempo conosco por sua graça, estas maravilhas e esta bondade presentes nas obras da alma e do corpo, inumeráveis e insondáveis, visíveis e invisíveis, que conhecemos e que ignoramos. Eu não escondo suas benesses. Eu evoco suas compaixões, eu o confesso, Senhor meu Deus, de todo meu
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coração. Eu glorifico seu nome por toda a eternidade. Pois sua piedade é grande para comigo [158]. E sua atenção e sua paciência são inefáveis diante da multidão das minhas iniquidades e dos meus pecados, das minhas impiedades e das minhas faltas, daquilo que eu fiz, que faço constantemente e que farei, conscientemente ou por ignorância, em palavras, atos e pensamentos, todas essas coisas das quais me libertou sua graça, aquilo que você sabe desde meu nascimento até o fim da minha vida, Senhor que conhece os corações; e apesar disto tudo, infeliz, eu não ouso confessá-lo. Eu pequei, eu fui iníquo e ímpio[159], fiz o mal diante de você[160], e não sou digno de contemplar e de ver as alturas celestes. Mas, confiando em seu inefável amor pelo homem, em sua bondade e sua misericórdia que ultrapassam a inteligência, eu me prosterno e imploro: tenha piedade de mim, Senhor, por que sou fraco[161]. Perdoe a multidão dos meus males. Não me deixe pecar mais nem me desviar do caminho reto, não me deixe mais ferir nem afligir ninguém. Refreie em minha toda malícia, todo mau hábito, todo impulso selvagem da alma e do corpo, do ardor e do desejo. Ensine-me a fazer a sua vontade. Tenha piedade dos meus irmãos e dos meus pais espirituais, de todos os monges e de todos os padres em todo lugar, dos meus pais, meus irmãos e minha família, daqueles que nos servem e daqueles a quem servimos, dos que oram por nós, dos que nos pediram que rezássemos por eles, dos que nos odeiam e dos que nos amam, dos que abençoei e dos que afligi, dos que me afligiram e dos que me afligirão, e de todos os que creem em você. Perdoe-me todo pecado, voluntário ou involuntário. Proteja nossa vida e nossa saída deste mundo dos espíritos impuros e de todas as tentações, de todo pecado e de toda malícia, do orgulho e do desespero, da descrença e da perdição, da presunção e da negligência, da ilusão e da desordem, das mentiras e das armadilhas do diabo. Conceda-nos o que é bom para nossas almas no século presente e no século futuro, conforme agradar ao seu amor pelo homem. Conceda o repouso aos nossos pais e irmãos que nos deixaram. Pelas orações de todos os que se compadecem de minha miséria tenha piedade de minha perdição, veja como tudo me oprima, corrija minha conduta, dirija minha vida e meu fim para a paz. Faça de mim o que quiser e como quiser, queira eu ou não. Mas que eu não deixe de estar à sua direita no dia do Juízo, Senhor Jesus Cristo, meu Deus, ainda que eu seja o último dos servidores resgatados. Dê paz a seu mundo, tenha piedade de todos. E torne-me digno de receber seu corpo puro e seu sangue precioso para a remissão dos pecados, pela comunhão do Espírito Santo, como garantia da vida eterna com você e com seus eleitos, pelas orações da Mãe puríssima, das santas Potências celestes e de todos os Santos. Pois você é bendito pelos séculos dos séculos. Amém. Santíssima e Soberana Mãe de Deus, todas as Potências celestes dos santos Anjos e Arcanjos e de todos os Santos, intercedam por mim, o pecador. Deus nosso Mestre, Pai que domina o universo, Senhor Filho único Jesus Cristo e Espírito Santo, etc. Logo, para cortar pela raiz os próprios pensamentos, dizemos três vezes: “Venham, adoremos e prostremo-nos diante de nosso Rei e Deus[162]”. Então, começamos os salmos, tomando como antífona o Trisságio e reunindo o intelecto em torno do que é dito. Ao final, quarenta Kyrie eleison a cada antífona, prosternando-se e dizendo esta prece: “Pequei, Senhor, perdoe-me”. Levantando, estendemos as mãos e dizemos: “Deus, purifique a mim, pecador[163]”. Em seguida repetimos a primeira oração: “Venham, adoremos...”, e rezamos outra antífona. Entrementes, a cada vez que a graça nos amansa o coração, devemos guardar o intelecto nas águas da compunção, mesmo que a boca continue a cantar e que o pensamento seja levado cativo, neste bom cativeiro de que fala santo Isaac[164]. Pois este é o tempo de colher, não o de plantar[165]. Devemos permanecer nestes pensamentos, a fim de que o coração se enterneça e dê seu fruto, as lágrimas de Deus. Você será colhido pela compunção, ainda que por uma única palavra, como disse João Clímaco: permaneça nela[166]. Pois todas as energias do corpo, ou seja, o jejum, a vigília, a salmodia, a leitura, a hesíquia e as demais, só existem para purificar o intelecto. Mas o intelecto não pode se purificar sem o
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luto. Então ele se une a Deus por intermédio da prece pura que o arrebata a todos os pensamentos e o torna sem imagem e sem forma. Pois tudo o que é bom devido a essas energias pode se tornar bom, mas pode também se tornar o seu contrário. Para ser bem feita, toda coisa necessita de discernimento. Sem o discernimento, não temos como conhecer a natureza das coisas. E talvez a maior parte de nós fique escandalizada por ver contradição entra as palavras e os atos dos santos Padres. Assim é que a Igreja recebeu o canto dos tropários com sua melodia, e numerosos hinos. Mas João Clímaco, ao louvar os que vivem no luto segundo Deus, diz que estes homens não têm que proclamar sua alegria cantando hinos[167]. E santo Isaac, quando fala dos que possuem a prece pura, diz que acontece muitas vezes reunirem seu intelecto na oração e caírem então de joelhos, como o profeta Daniel, com as mãos estendidas e os olhos contemplando a cruz de Cristo. Os pensamentos de tais homens se transformam e seus membros relaxam desde que um sentido novo entra por si só em seu intelecto[168]. Sobre estas coisas muitos dos santos Padres escrevem também que não apenas pelo arrebatamento do intelecto eles ultrapassaram os cantos e as salmodias, como ainda esqueceram, como disse são Nilo [169], o próprio intelecto. Por causa da fraqueza de nosso intelecto, a Igreja recebeu os cantos e os tropários como algo bom e que agrada a Deus, a fim de que, pela doçura da melodia, nós, que não temos o conhecimento, celebremos a Deus apesar disso. Mas os que possuem o conhecimento e compreendem o que dissemos, alcançam a compunção. Nós então nos elevamos como que sobre uma escada para atingir os pensamentos bemaventurados de que fala João Damasceno. E quanto mais progredirmos no costume desses pensamentos divinos, mais o desejo de Deus nos levará a compreender, mais atingiremos a adoração do Pai em espírito e em verdade[170], como disse o Senhor. É o mesmo que diz o Apóstolo: “Eu prefiro dizer cinco palavras com minha inteligência do que dez mil com a língua[171]”, etc. E também: “Quero que em toda parte os homens elevem aos céus mãos santas, sem cóleras nem disputas[172]”. Assim a salmodia é o remédio da fraqueza, e a prece pura a perfeição do intelecto. A questão fica assim resolvida. Tudo é bom a seu tempo[173]. Mas tudo parece intempestivo e contraditório aos que ignoram o tempo de cada coisa. Como disse Salomão: “Existe um tempo para tudo[174]”. Entretanto, quando alcançamos as meditações bem-aventuradas, devemos permanecer rigorosamente atentos em guardar em nós estas contemplações, para não sermos abandonados pela graça se cairmos na negligência e na presunção, como disse santo Isaac[175]. Pois se os pensamentos divinos crescem na alma do homem e o levam a uma maior compunção, a uma maior humildade, devemos sempre agradecer a Deus confessando-lhe a graça que ele nos concedeu para conhecermos estas coisas. Mas devemos sempre nos considerar indignos. E se estas coisas nos deixam, se outra vez a reflexão se obscurece e rejeita o temor e o luto, devemos profundamente nos afligir e nos humilhar em atos e palavras, vendo a graça nos abandonar, a fim de conhecermos nossa fraqueza, adquirir a humildade e nos aplicarmos em nossa correção, como disse o grande Basílio[176]. Pois se vigiássemos para guardar o luto diante de Deus, jamais ficaríamos privados de lágrimas no momento em que ele nos chama. Por isso devemos sempre reconhecer nossa fraqueza e a graça de Deus, e jamais desesperar, aconteça o que acontecer, mas também não devemos estar seguros de que sejamos alguma coisa. Antes devemos sempre esperar humildemente em Deus. É o que deve fazer em atos e palavras aquele que busca a abundância de lágrimas, pois a ele foi dada esta graça, e ele não aguardou a presciência de Deus, por causa da negligência e da presunção passada, presente ou futura a que nos referimos. A quem desleixa tais carismas – o luto, as lágrimas, os pensamentos luminosos – que lhe restará, senão “Oh! Pobre de mim!”? Pois ninguém no mundo é mais insensato do que ele. Foi-lhe concedido deixar o que é contra a natureza para esperar pela graça as coisas sobrenaturais, as lágrimas da consciência e do amor. E por causa de coisas insignificantes, por causa de pensamentos estranhos e por causa de suas
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próprias vontades ele se voltou para a ignorância dos animais, como o cachorro que volta ao seu próprio vômito[177]. E, no entanto, se ele quiser novamente, se ele se consagrar a Deus na leitura das divinas Escrituras com atenção e preocupação com a morte, se, na medida do possível ele proteger seu intelecto dos pensamentos vãos durante a prece, ele poderá reencontrar o que perdeu, sobretudo se ele não afligiu ninguém, se, mesmo tendo sofrido de alguém os maiores males ele não se deixou afligir, mas com toda sua força cuidou do seu agressor por palavras e obras. O intelecto, liberado da perturbação do ardor, encontrará certamente a maior alegria com isto. Este homem aprenderá pela experiência a jamais negligenciar sua alma, por medo de que ela novamente seja abandonada. O temor o protegerá da queda. Vertendo lágrimas de arrependimento e luto, ele não descansará sem derramar lágrimas de amor e de alegria, por meio das quais, pela graça de Cristo, ele encontrará a paz dos pensamentos. É isto que acontecerá. Mas nós, que ainda somos passionais e temos o coração pesado, devemos sempre nos ater às palavras do luto e nos examinarmos a cada antes da regra[178], durante e depois dela, nos aplicando, se ainda formos fracos, ao repouso conforme Deus e à detenção de todas as coisas, como disse santo Isaac. Ou, se nossos olhos não dormem, se nossa reflexão é sóbria e vigilante, permanecendo sem nada fazer, como disse João Clímaco. Vigie por encontrar aí seu progresso. É preciso que nossa alma se feche e comece a chorar, disse são Doroteu. Isto vale para tudo o que dissemos das três primeiras contemplações, a fim de que possamos chegar às demais e, em primeiro lugar, à quarta.
Da quarta contemplação. Devemos compreender aqui o que foi a descida de nosso dulcíssimo Salvador Jesus Cristo entre nós, o que foi sua vida no mundo, e depois, pouco a pouco, esquecer este mesmo alimento, como disse o grande Basílio. É isto que ouvimos também dizer o bem-aventurado Davi. Ele se esqueceu de comer seu pão, diz João Clímaco[179], quando sua reflexão foi arrebatada para as maravilhas de Deus num grande êxtase. E ele não sabia como deveria agradecer, disse Basílio o testemunho do céu[180]: “Como agradeceremos ao Senhor por tudo o que nos fez?[181]”. Deus veio aos homens por nós. Por causa de nossa natureza corrompida o Verbo se fez carne e habitou entre nós[182]. Para os ingratos, ele é o Benfeitor. Para os cativos, o Libertador. Para os que vagavam nas trevas[183], o Sol de justiça[184]. Sobre a cruz, ele é o Impassível. No inferno, a Luz. Na morte, a Vida. Para os que tombaram, ele é a Ressurreição. Cantemo-lo: “Nosso Deus, glória a ti!”. E João Damasceno: “O céu se maravilhou e os confins da terra foram agitados, admirando que Deus se revelasse num corpo dentre os homens, e que seu seio foi mais vasto do que os céus. Mãe de Deus, as ordens dos anjos e dos homens a exaltam”. E ainda: “Tudo o que é capaz de compreender treme diante da misteriosa descida de Deus entre nós. O Altíssimo quis descer até tomar um corpo. Ele se fez homem no seio virginal. Fiéis, nós exaltamos a puríssima Mãe de Deus. Venham, povos, tenham confiança. Subam na Montanha celeste. Habitemos fora da matéria na Cidade do Deus vivo. E contemplemos pelo intelecto a imaterial Divindade do Pai e do Espírito irradiando no Filho único. Você me arrebatou pelo desejo, ó Cristo. Você me transformou com seu amor divino. Agora consuma meus pecados no fogo imaterial e permita-me ser cumulado das delícias que estão em você, a fim de que, em minha alegria, ó bom Deus, eu exalte suas duas vindas. Salvador que é inteiro doçura, inteiro desejo e tensão inesgotável, você é inteiro beleza maravilhosa”. Aquele que, pelas virtudes do corpo e da alma, recebeu o conhecimento dessas coisas e os mistérios ocultos nas palavras dos santos homens e das divinas Escrituras, em especial dos santos Evangelhos, nem por isso se detém em desejar e verter lágrimas que dele brotam por si sós. Também nós, que não fazemos senão ouvir as Escrituras, devemos sempre nos aplicar e nos exercitarmos para que, com o tempo, o desejo
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de Deus fique gravado em nossos corações. É o que diz são Máximo e o que fizeram os Padres, antes de receber o conhecimento interior. Todo o desejo dos mártires estava voltado unicamente para o Mestre. Eles se uniam a ele por meio do amor e cantavam, como diz João Damasceno dos três adolescentes: “Os bem-aventurados Filhos da Babilônia se expuseram ao perigo por causa das leis paternas. Eles recusaram a ordem insensata do tirano. Eles foram atirados ao fogo, mas não foram consumidos. E eles cantaram o hino digno d’Aquele que os guardava”. Em tempo: quando alguém sente as maravilhas de Deus, sai inteiramente de si mesmo e esquece até desta vida passageira, pois compreende as divinas Escrituras, disse santo Isaac[185]. Porém, não como nós, que recebemos talvez das Escrituras um pouco desta compunção que nos alquebra, mas que a nossa negligência, esquecimento e ignorância nos conduzem às trevas, e nossa insensibilidade nos conduz às paixões. Mas quem foi purificado das paixões pelo luto sente os mistérios ocultos em todas as Escrituras. Todos estes mistérios o viram pelo avesso, em especial as obras e as palavras do santos Evangelho: como a sabedoria de Deus torna fáceis as coisas mais difíceis e paulatinamente transforma um homem em Deus. Ela o torna tão bom como alguém que é capaz de amar seus inimigos. Compassivo, como o Pai é compassivo[186]. Impassível, como Deus é impassível. Cheio de todas as virtudes e perfeito, como o Pai é perfeito[187]. Numa palavra, a própria santa Bíblia ensina ao homem aquilo que convém a Deus, para que, por adoção, o homem se torne Deus. Como não admirar a obra do santo Evangelho? Pela simples resolução ele concede o repouso e todas as honras tanto no século presente quanto no século futuro, como disse o Senhor: “Quem se rebaixar será elevado[188]”. Aqui Pedro é testemunha, abandonando as redes e ganhando as chaves do céu[189]. Também os demais apóstolos testemunharam ter cada qual abandonado o pouco que possuíam para receber em mãos o mundo inteiro no século presente e no futuro. Eles receberam o que o olho não pode ver, o que o ouvido não pode ouvir, o que não chega ao coração do homem[190]. E estas coisas não aconteceram apenas aos apóstolos, mas a todos os que as assumiram até hoje, como disse um dos Padres: “Se eles penaram no deserto, é certo que receberam também um imenso repouso”. Ele se referia à vida sem perturbações e sem inquietações. Que nos parece isto? Quem recebe mais descanso, aquele que se consagra a Deus e age de acordo, ou o que passa seu tempo no tumulto dos tribunais e nas preocupações desta vida? Aquele que está sempre voltado para Deus pelo estudo das divinas Escrituras, a prece constante e as lágrimas, ou o que se dedica ao mal e vela sobre as fraudes e as iniquidades em que fracassará quando não lhe restarem mais do que o sofrimento e a morte dupla? Deste modo sofremos a morte mais penosa e a desonra, sem nada ganharmos com isto. Por causa desta perdição alguns fizeram à própria alma um mal imenso. Penso nos ladrões, nos piratas, nos debochados, nos guerreiros, nos que não quiseram ser salvos, receber o repouso, a honra e o prêmio. Mas quanta cegueira! Sofremos a morte por nos termos perdido. E, para sermos salvos, sequer amamos a vida. Mas se preferimos a morte ao Reino dos céus, que fazemos de mais do que o ladrão, o profanador ou o guerreiro que, apenas pelo pão, tantas vezes sofreram a morte futura com a morte presente? Caso contrário, devemos ver em Cristo o objetivo primeiro pelo qual o Reino dos céus é dado aos que o assumem: a tudo rejeitar pelo intelecto, a tudo dominar, reinar no século presente não apenas sobre as coisas, mas sobre os corpos, desprezando-os, e sobre a morte pela audácia da fé, e reinar eternamente no século futuro com Cristo no corpo pela graça da ressurreição comum. A morte vem igualmente para o pecador e para o justo. Mas a diferença é grande. Os dois morrem como mortais, não há com que se espantar. Mas um não recebe recompensa e é sem dúvida condenado, enquanto que o outro é bemaventurado no século presente e no século futuro. Que vantagem existe em adquirir dinheiro? Aquele que acredita possuir será constrangido a abandoná-lo, não apenas na hora da morte, mas muitas vezes também antes da morte, e não sem muita confusão, fadiga
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e sofrimento. É também por causa do dinheiro que alguns sofreram a morte em meio às inumeráveis tentações da riqueza, vale dizer, o medo, a preocupação, a tristeza contínua, a perturbação, quisessem ou não. Mas o santo mandamento[191] liberta o homem de todas estas coisas. Ele concede a ausência de todas as preocupações, de todo medo, e também a alegria inefável dos que por si mesmos escolhem a despossessão. O que pode haver de mais feliz do que ser impassível, inteiramente desembaraçado do ardor e do desejo que as coisas deste mundo podem inspirar? O que pode haver de mais feliz do que considerar como nada aquilo que tanto cobiça a maioria, do que estar acima de tudo, do que viver como quem está no Paraíso, ou até no céu, acima de toda obrigação, na ausência de preocupações e na consagração a Deus? Pois se este homem suporta os acontecimentos com alegria, tudo o que lhe acontece o descansa. Se ele ama a todos os seres, ele é amado por todos. Se ele despreza tudo, ele está acima de tudo. Ele recusa possuir aquilo pelo quê os outros lutam, e fica triste se fraqueja e condena a si mesmo se obtém o que eles cobiçam. É pelos mandamentos que aquele que deseja algo se liberta de todos os males no século presente e no futuro. Pois recusar aquilo que não se possui é digno de todo descanso, e está além da riqueza. Mas cobiçar o que não se possui é o maior castigo que pode haver antes do castigo eterno. Este homem é escravo, ainda que aparentemente seja um rei muito rico. Qual é este peso de que falam os mandamentos do Senhor? Infeliz, é o de nada fazer gratuitamente e com fervor. Portanto, aquele que pode conhecer em parte a graça do santo Evangelho e aquilo que ele contém, vale dizer, os atos e os ensinamentos do Senhor, seus mandamentos e sua doutrina, as ameaças e as promessas, sabe quais tesouros inesgotáveis encontrou, mesmo que não possa falar adequadamente deles, uma vez que as coisas do céu são inefáveis. De fato, Cristo está oculto no Evangelho, e quem o quiser encontrar deve primeiro vender tudo o que possui[192] e adquirir o Evangelho, a fim de poder não apenas encontrar a Cristo pela leitura, mas também recebê-lo em si pela imitação de sua vida no mundo. Pois aquele que procura Cristo, diz são Máximo, não deve buscá-lo fora, mas em seu próprio coração[193]. De corpo e alma, ele deve ser como foi Cristo, sem pecado tanto quanto é possível a um homem, e guardar com toda sua força o testemunho de sua consciência[194], a fim de reinar sobre toda vontade própria, de dominá-la pelo desdém, ainda que para o mundo ele seja pobre e desonrado. Pois de que serve a um homem ser rei em aparência se ele for tiranizado neste século pelo ardor e pelo desejo e se ele encontrar no século futuro o castigo eterno, por não ter guardado os mandamentos divinos? Que loucura! Como podemos não querer os bens eternos em troca de pequenas coisas passageiras? E no entanto, nós rejeitamos estes bens, e buscamos o seu contrário. O que pode haver de mais simples do que beber um copo de água fresca ou um pedaço de pão, ou de nos abstermos de nossas vontades próprias e de nossos pequenos pensamentos? É por meio destes gestos que recebemos o Reino dos céus, pela graça d’Aquele que disse: “Eis que o Reino de Deus está dentro de vocês[195]”. Pois o Reino não está longe, nem fora, diz João Damasceno. Ele está dentro. Queira simplesmente dominar as paixões, e pronto, você vive como agrada a Deus, e tem o Reino em si. Mas se você não quiser nada, você não obterá nada. Pois o nome do Reino de Deus, dizem os Padres, é a vida que agrada a Deus, é a primeira descida do Senhor e também a segunda. A segunda vinda de Cristo é anunciada no Evangelho com palavras de luto. Mas quem, pela graça, recebe em si a primeira vinda, deve dizer, sentindo-o com toda sua alma e com grande maravilhamento: “Grande é o Senhor, e maravilhosas as suas obras[196]”. Nenhuma palavra será bastante para cantar suas maravilhas, Mestre dulcíssimo; diante de você estou seu, seu servidor sem voz, sem obras, imóvel diante de sua face. Eu espero a iluminação do conhecimento que vem de você, pois você disse: “Sem mim vocês nada podem [197]”. Ensine-me o que provém de você. É por isso que eu ouso me sentar aos seus puríssimos pés, como a irmã de Lázaro[198], seu amigo, para que também eu possa ouvir em meu intelecto alguma coisa de você, senão sobre sua incompreensível divindade, ao menos sobre sua vida corporal no mundo, e ainda para que eu possa sentir um pouco o que você disse no santo Evangelho de sua graça, como você viveu entre nós, doce e humilde de coração[199], aquilo que sua santa boca nos ordenou aprendêssemos, a pobreza em que você escolheu viver, você, tão rico em misericórdia[200] e que, conhecendo voluntariamente o sofrimento e a sede, deu à
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Samaritana a água da vida[201], conforme você disse, Senhor: “Quem tem sede venha a mim e beba[202]”. Pois você é a fonte dos remédios; quem poderá cantar a vida no mundo? Eu não passo de terra e cinzas, poeira, transgressor, assassino de mim mesmo. Já pequei tanto, e continuo pecando. No entanto, você me concedeu conhecer profundamente alguns de seus atos e de suas palavras, e ousar interrogá-lo a respeito deles. Você é invisível para toda a criação. Mas pela fé eu penso poder vê-lo, perdoe-me a audácia. Pois, Senhor que conhece os corações, você sabe que eu não o ignoro indiscretamente, mas que eu procuro aprender. Eu acredito que, se sou digno do conhecimento que vem de você, em seu amor pelos homens você também me dará, como aos que o desejam, a força para trabalhar em sua obra, tanto quanto me for possível, imitando sua vida na carne, pela qual eu recebi a graça de ser chamado cristão. Embora ninguém possa, como os discípulos, sofrer a morte pelos inimigos, nem reencontrar o que foram sua pobreza e sua virtude, e a pobreza e a virtude deles, cada um de nós o pode, ainda que em parte, por sua resolução. Ainda que morramos a cada dia por você, jamais poderemos pagarlhe o que lhe devemos. Pois, Senhor, você é Deus perfeito e Homem perfeito. Você levou uma vida sem pecado neste mundo e a tudo sofreu por nós. Nós, mesmo que soframos alguma coisa, é por nós mesmos e por nossos pecados que o fazemos. Quem não se admira ao compreender sua inefável descida entre nós? Você é o Deus incompreensível e todo-poderoso. Você mantém o universo, habita acima dos Querubins[203], dos quais se dizem que distribuem a sabedoria. Do alto dos céus você se humilhou por nós, que provocáramos sua cólera desde o início. Você aceitou nascer e crescer entre nós, ser perseguido, lapidado, ridicularizado, injuriado, espancado, esbofeteado. Nós nos divertimos com você, nós cuspimos em você. Depois você conheceu a cruz e os pregos, a esponja e os espinhos, o fel e o vinagre, e outras coisas que não sou digno de ouvir. Depois a lança perfurou seu flanco tão puro, donde verteu por nós a vida eterna: seu sangue precioso e a água. Eu celebro seu nascimento e aquele que o deu à luz, a quem você conservou Virgem tanto depois como antes do nascimento. Eu o adoro envolto em panos na caverna e na manjedoura. Eu o glorifico fugindo para o Egito com a Virgem puríssima, sua Mãe, depois indo morar em Nazaré submisso a seus pais na carne: seu pai presumido e sua verdadeira Mãe. Eu o canto, Senhor, batizado no Jordão pelo Precursor. Canto o Pai que deu testemunho de você e o Espírito Santo que o revelou. Canto seu batismo e o Batista, João o profeta, seu servidor. Eu o glorifico, jejuando por nós, voluntariamente tentado, vencedor do inimigo no corpo que você recebeu de nós, dando-nos a vitória sobre ele pela sabedoria inefável, e depois indo viver com seus discípulos, purificando os leprosos, endireitando os paralíticos, levando sua luz aos cegos, a palavra e a audição aos mudos e aos surdos, abençoando os pães, caminhando sobre o mar como se fosse terra firme, ensinando a os tolos como agir e contemplar, anunciando as coisas do Pai e do Espírito Santo, predizendo as ameaças e as promessas que nos esperam assim como tudo o que nos conduz à salvação, prevenindo-nos contra o inimigo e desenraizando as paixões com seu sábio ensinamento, instruindo os tolos e confundindo os hábeis com sua infinita sabedoria, ressuscitando os mortos com seu poder inefável e expulsando os demônios com seu poder, pelo Deus do universo. E não apenas você fez essas coisas por si próprio, como ainda concedeu aos seus servidores o poder de fazer ainda maiores[204], para que a partir daí estejamos sempre nos admirando por você, Senhor, como você o disse. Pois por você seus santos operaram maravilhas. Mestre, Senhor, Jesus Cristo, Filho e Verbo de Deus, dulcíssimo nome de nossa salvação, grande é a sua glória, grandes são as suas obras, maravilhosas as suas palavras, mais doces do que a cera[205]. A você a glória, Senhor, a você a glória. Quem poderá glorificar e cantar sua descida entre nós, sua bondade, seu poder, sua sabedoria, sua vida no mundo, seu ensinamento? O modo como seus santos mandamentos nos ensinam naturalmente a viver facilmente as virtudes? Como você mesmo disse, Senhor: “Perdoem e serão perdoados[206]”. E ainda: “Busquem e encontrarão. Batam e se abrirá para vocês[207]”. “O que vocês
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quiserem que os homens façam por vocês, façam-no por eles[208]”. Que, ao tomar consciência de tais mandamentos e de outras palavras, não seria tocado ao compreender sua infinita sabedoria? Você é a sabedoria de Deus, a vida do universo, a alegria dos anjos, a luz inefável, a ressurreição dos mortos, o bom Pastor que dá sua vida por suas ovelhas[209]. Eu canto sua transfiguração, sua crucificação, seu enterramento, sua ressurreição, sua ascensão, seu assento à direita de Deus Pai, a vinda do Espírito Santo, e sua segunda descida em poder e glória imensa e incompreensível. Eu me esvazio, meu Senhor, diante das suas maravilhas. E, na impotência em que me encontro, quero fugir para o silêncio. Mas não sei o que fazer. Se me calo, sou abatido. Se ouso dizer alguma coisa, fico cada vez mais fora de mim. Não sou digno de considerar os céus e a terra. Sou sim digno de todo castigo, não apenas por meus pecados, mas mais ainda pelas benesses que recebi, miserável, em minha ingratidão. Pois você cumulou minha alma de todos os bens, Senhor infinitamente bom. Eu aprendi uma parte de suas obras, e minha inteligência está fora de si[210]. Eu não valho nada, tudo o que faço é olhar o que é seu, Mestre. Não é meu o conhecimento, não é minha a obra, só existe a sua graça. É por isso que levo a mão à boca, como o fez Jó[211], e, na dificuldade em que me encontro, infeliz, eu me refugio aos pés dos seus santos. Boa Soberana do mundo, você sabe que nós, os pecadores, não temos nenhuma garantia diante do Deus a quem você deu nascimento. Mas somos seus servidores e nos confiamos a você, nos prosternamos diante do Mestre e lhe oferecemos sua mediação, pois você tem toda a liberdade diante dele, seu Filho e nosso Deus. Em você eu creio, e em minha indignidade a você me dirijo, Soberana, e peço que me seja dado sentir as graças que você e os demais santos conheceram, e pelas quais receberam tantas virtudes. Só o fato de que tenha você dado à luz o Filho de Deus atesta ser você mais elevada do que todos os seres. Aquele que conhece todas as coisas antes que aconteçam, o Criador do universo, em você encontrou um cálice digno de sua moradia. E ninguém pode interroga-la sobre seus mistérios que ultrapassam a natureza, o intelecto e a razão. Salvos pela sua intercessão, nos a confessamos Mãe de Deus, Virgem pura, e a exaltamos juntamente com o coro dos anjos. Pois é impossível aos homens ver a Deus, a quem sequer as ordens dos anjos ousam contemplar. Mas por seu intermédio, toda Pura, o Verbo encarnado se revelou aos mortais. Nós a exaltamos junto com as potências celestes e a chamamos bem-aventurada. Como poderemos chamá-la, ó cheia de graça? Céu, etc. Mãe de Deus, é você a vinha verdadeira que trouxe o fruto da vida. Nós lhe suplicamos, gloriosa Soberana, interceda juntamente com os apóstolos e todos os santos, para que ele tenha piedade de nossas almas que a confessam na ortodoxia Mãe de Deus e a chamam sempre bem-aventurada, Soberana, como você mesma profetizou[212]. Por todas as gerações a chamamos bem-aventurada, única Mãe de Deus, mais venerável que os Querubins e mais gloriosa que os Serafins. Eu sou incapaz de compreender os seus mistérios. Mas eu proclamarei também minha admiração diante dos outros santos. Como viveu você no deserto, Batista o Precursor do Senhor? Como o chamaremos? Profeta? Anjo, apóstolo ou mártir? Anjo, por que viveu como um incorpóreo. Apóstolo, pois apanhou as nações em sua rede. Mártir, por que por Cristo teve a cabeça cortada. Suplica-lhe que salve nossas almas. Pois disse Salomão: “A memória dos justos seja bendita[213]”. Mas a você, Precursor, basta o testemunho do Senhor. Santos apóstolos e discípulos do Salvador, que viram os mistérios, que pregaram Aquele que não se pode ver e que não teve começo. Vocês disseram: “No princípio era o Verbo[214]”. Vocês que não nasceram antes dos anjos nada tinham a aprender dos homens, mas da sabedoria do alto. Então a vocês pedimos, a vocês que têm esta liberdade, intercedam por nossas almas. É admirável seu amor por Deus, como dizem os antigos tropários: “Senhor, os apóstolos nada desejavam sobre a terra senão você. Para merecê-lo, e apenas a você[215], eles consideraram tudo o mais como inútil. Por você eles entregaram seus corpos à violência. Glorificados, eles intercedem por nossas almas. Como nós, vocês foram homens em sua carne de argila. Como é possível que tenham mostrado tantas virtudes, ao ponto de sofrer a morte nas mãos
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daqueles que o mataram? Como, sendo tão poucos, conquistaram o mundo inteiro? Como, sendo simples e iletrados[216], venceram os reis e os poderosos? Como, sem armas, nus e pobres, na fraqueza de sua carne, dominaram os demônios invisíveis: Que força era esta, ou que fé era esta, por meio da qual receberam o poder do Espírito Santo, vocês e os santos mártires que combateram o bom combate[217] e foram coroados? Intercedam junto ao Senhor, para que ele tenha piedade de nossas almas”, apóstolos, mártires, profetas, hierarcas, santos monges. Quem não se admira de ver, santos mártires, o bom combate que vocês conduziram? Como, estando em um corpo, venceram o inimigo incorpóreo? Vocês confessaram a fé em Cristo. A cruz foi a sua armadura, e vocês expulsaram os demônios e combateram os bárbaros. Orem sem cessar para que sejam salvas nossas almas. Como os três adolescentes que se foram antes de vocês, vocês tampouco sofreram o martírio na esperança de uma recompensa, mas por amor a Deus, conforme foi dito: “Mesmo que ele não nos liberte, não o renegaremos por não nos haver salvado[218]”. Três santos adolescentes, sua humildade extrema é admirável. Em meio às chamas, tudo o que diziam era não saber como dar graças: “Já não há neste tempo nem príncipe, nem profeta, nem guia[219]”. Suas almas estavam quebrantadas e seus espíritos humilhados. Eu admiro o poder de Deus que veio sobre vocês e sobre o profeta Elias, como disse João Damasceno: “Da chama você fez brotar o orvalho sobre seus santos[220], e inflamou na água o sacrifício do Justo[221]. Ó Cristo, que fez tudo isto por sua simples vontade”. Mas que devo eu agora considerar? A obra do santo Evangelho, ou os atos dos santos apóstolos? Os combates dos santos mártires, ou as lutas dos santos Padres? As ações dos antigos santos, homens e mulheres, ou as dos de agora? As vidas e as sentenças de todos, ou sua interpretação e seu discernimento? Eu não sei, a tal ponto tudo isto me ultrapassa. Mas eu lhe peço, Senhor que ama o homem, não permita que eu seja condenado por causa da maneira indigna e ingrata com que eu considero tantos mistérios que você revelou aos seus santos, e por intermédio deles a mim pecador, seu servidor indigno. Pois eis que seu servidor está diante de você, Mestre, em tudo estéril e sem voz, como um morto que não ousa dizer outra coisa nem refletir impudentemente. Mas como sempre eu me prosterno e chamo do fundo da minha alma: “Mestre, em seu grande amor[222]”, e rezo a oração. É preciso acrescentar as demais preces e salmos, vigiar por guardar a alma e o corpo nos seus devidos caminhos, a fim de acessar a experiência dos pensamentos divinos. Poderemos então perceber e sentir profundamente os mistérios e as coisas extraordinárias que estão nas divinas Escrituras, enfim, maravilhados pelos dons de Deus, chegar a amar apenas a ele e por ele sofrer com alegria, como todos os santos. Pois as divinas Escrituras são uma fonte de maravilhas e encantamento, disse o divino Salomão[223]. Dentre outras maravilhas eu admiro o poder de Deus relativo ao maná. Pois em sua forma o maná não podia ser guardado para o dia seguinte. Ele se dissolvia e se enchia de vermes [224], para que não cuidássemos do dia seguinte em nossa falta de fé, mas se conservava sempre intacto no interior do vaso que ficava dentro da tenda. E mais: cozido ao fogo ele não fervia, mas se dissolvia ao menor raio de sol, para que os insaciáveis não ajuntassem nada além do necessário. Que maravilha ver o modo como Deus opera em toda parte para a salvação dos homens, como disse o Senhor ao falar da Providência divina: “Meu Pai continua trabalhando até agora, e eu também trabalho[225]”. Aquele que se dedica a esta obra consagrando-se a Deus recebe então por meio dos sentidos o ensinamento das divinas Escrituras, e por meio do intelecto o ensinamento da providência de Deus. Ele então começa a ver as coisas em sua natureza, como disseram Gregório de Nazianze e João Damasceno. Ele não é mais absorvido pelo encanto exterior das coisas deste mundo, ou seja, pela beleza, a riqueza, a glória passageira, etc. Ele não é mais seduzido pelas sombras que elas projetam, como os que ainda são passionais.
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Do quinto conhecimento. O profeta chama de conselho[226] este quinto conhecimento que, como foi dito ao final das beatitudes, nos permite conhecer a natureza e as transformações das criaturas sensíveis. Elas provêm da terra e retornam à terra, como diz o Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade[227]”. João Damasceno diz a mesma coisa: “Tudo o que é humano, tudo o que cessa de existir depois da morte, é vaidade. A riqueza não permanece. A glória não nos acompanha. Todas essas coisas desaparecem quando chega a morte”. E também: “Tudo é verdadeiramente vaidade. É em vão que o homem nascido da terra[228] se agita sobre a terra, como diz a Escritura. Mesmo que ganhemos o mundo, não habitaremos senão a cova, onde são iguais reis e pobres”.
Do sexto conhecimento Ao alcançarmos a impassibilidade recebemos o sexto conhecimento, que se chama força[229]. Então começamos a olhar impassivelmente para a beleza das criaturas sensíveis. Todos os pensamentos têm três estados: o humano, o demoníaco e o angélico[230]. O estado é humano quando no coração surge o simples pensamento das criaturas. Pensamos num homem, no ouro ou em qualquer criatura sensível. O estado demoníaco é uma mistura de pensamento e paixão. Pensamos num homem, mas este pensamento se mistura com um amor irracional, e a relação com o amado não passa por Deus, mas pela prostituição. Ou ainda o pensamento vem misturado com uma raiva confusa, com rancor e reprovação. Da mesma forma, pensamos no ouro misturando a ele a avareza, o roubo, a cobiça, etc., ou a aversão e a blasfêmia em relação às obras de Deus. Em ambos os casos, trabalhamos na nossa perdição. Pois “se não amamos as coisas em sua relação com o divino, se as preferimos ao amor a Deus, em nada nos distinguimos dos idólatras”, disse são Máximo[231]. E também: “Se nós as odiamos, se não consideramos que elas sejam boas[232]”, nós provocamos a cólera de Deus. O estado angélico consiste na contemplação impassível das coisas. Este é o verdadeiro conhecimento, o verdadeiro caminho do meio entre dois abismos, que guarda o intelecto e permite separar o justo fim das sei armadilhas do diabo que o cercam, as armadilhas que estão acima e abaixo, à esquerda e à direita, no interior e no exterior do justo fim, que é o verdadeiro conhecimento situado como que no centro destas seis armadilhas. Os anjos terrestres o ensinam àqueles que morrem voluntariamente para o mundo para tornar impassível o intelecto e ver as coisas como convém, sem ultrapassá-las, nem acima do justo fim, por orgulho de imaginar compreender baseando-se no próprio discernimento; nem abaixo, pela ignorância que impede de alcançar a perfeição; nem à direita, pela rejeição e a aversão pelas coisas; nem à esquerda, pelo amor irracional, o desejo passional; nem no interior do justo fim, pela ignorância total e a preguiça; nem no exterior, pela atividade excessiva e a pressa irracional que provêm da indiferença ou da malícia. Mas é preciso receber o conhecimento na certeza da fé, com paciência, humildade e boa esperança, a fim de que o conhecimento parcial que temos de determinada coisa nos conduza ao eros divino. A ignorância que nossa pobreza nos impõe ao próprio conhecimento nos permite adquirir a humildade e atingir, pela esperança e a fé pacientes o fim daquilo que buscamos, a nada desprezando como se fosse mal e a nada amando sem razão. Mas é preciso compreender o homem admirando como o intelecto é a imagem ilimitada do Deus invisível, e também, embora ele esteja no momento limitado pelo corpo, como ele pode alcançar os confins de sua forma, conforme Deus previu para o mundo. Pois o intelecto é capaz de se transformar em qualquer coisa e de se colorir à imagem da coisa que concebeu. Mas quando lhe é dado penetrar em Deus que não tem forma nem figura, ele se torna também fora de toda forma ou figura[233].
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Devemos a seguir admirar como ele é capaz de guardar toda ideia, como os últimos pensamentos não modificam os primeiros, e também como os primeiros pensamentos não conseguem alterar os últimos. Mas a reflexão contém tudo, sem esquecimento, como um tesouro. Quando quer, o intelecto exprime pela língua não apenas os pensamentos recentes como também aqueles que guarda há muito tempo. Também devemos nos admirar como o intelecto não cessa de se expressar em palavras e mesma assim jamais se vê limitado. E ainda, considerando o corpo, como os olhos, as orelhas e a língua recebem do exterior sua utilidade tendo em vista a vontade da alma. Um recebe pela luz, os outros pelo ar, mas nenhum dos sentidos impede o outro, nem pode fazer nada contra a finalidade da alma. Devemos enfim nos admirar de como o corpo sem alma foi por ordem de Deus unido à alma dotada de intelecto e de razão, que o Espírito Santo criou quando lhe foi dado o sopro, como diz João Damasceno[234]. Isto é o que ignoram os que dizem que esta criação possui a natureza da Divindade mais alta que o ser, o que é impossível. Com efeito, diz João Crisóstomo: “Para que o intelecto humano não considere que ele próprio é Deus, Deus lhe impôs o esquecimento e a ignorância, para que ele obtenha a humildade”. E também: “A vontade do Criador colocou uma separação nesta mistura natural”. “A alma dotada de razão, diz João Clímaco, parte para o alto, para o céu, ou para baixo, para o inferno. E o corpo terrestre retorna à terra, de onde ele foi tirado[235]”. E mais: “Pela graça de nosso Salvador Jesus Cristo, o que estava separado foi reunido em sua segunda descida, a fim de que cada um de nós receba segundo suas obras”. Que milagre! Quem sente este mistério, por pouco que seja, e não se maravilha? Deus ressuscita o homem da terra, depois de todo o mal que este fez desprezado os mandamentos, e lhe concede a imortalidade que antes ele tinha, mesmo que ele não tenha guardado o mandamento que o protegia da morte e da corrupção, e que tenha atraído sobre si a morte por seu orgulho. O homem que foi ensinado em sua inteligência pelo movimento angélico fica pasmo de admiração diante dessas coisas e de muitas outras que lhe dizem respeito. Ele considera ainda a beleza do ouro e sua utilidade. Ele se admira de como este ouro nos vem da terra, a fim de que os fracos o prodigalizem compadecidos, e para que os que não querem se compadecer sejam ajudados a dividi-lo contra a sua vontade por meio das tentações, para que sejam salvos. Suportando a tudo com boa vontade, uns e outros serão salvos. Mas os que preferem a despossessão serão coroados, como os que vivem na virgindade, pois seu gesto é sobrenatural. Na medida em que uma coisa é corruptível e terrestre este homem não a preferirá ao mandamento de Deus. Mas na medida em que for uma criatura de Deus, ou que sirva para a vida do corpo e para a salvação, ele não a desprezará, mas usará de temperança e de amor. Considerando com simplicidade a beleza das coisas, e considerando impassivelmente sua utilidade, aquele que recebeu a luz deseja apenas o Criador. Ele discerne todo o sensível, as criaturas do alto e de baixo, ou seja, o céu, o sol, a lua, as estrelas, as nuvens, as tempestades, as chuvas, a neve, a geada e o modo como a água congela mesmo com calor, e o trovão, os raios, os ventos, o ar, suas variações, as estações, os anos, os dias, as noites, as horas, os minutos, a terra, o mar, os inumeráveis animais, os quadrúpedes, as feras e as serpentes, as numerosas espécies de pássaros, as fontes e os rios, a infinita variedade das plantas e das ervas cultivadas e selvagens. Em tudo ele vê a ordem, o estado, a grandeza, a beleza, o ritmo, a conexão, a harmonia, a utilidade, a concórdia, a diversidade, as delícias, a estabilidade, o movimento, as cores, as formas, as espécies, sua perpetuação, seu enfraquecimento e sua permanência. Esta simples consideração de todas as criaturas sensíveis o derruba. Ele se admira de que o Criador, pelo simples fato de haver ordenado, tenha suscitado do nada quatro elementos, e como, pela sabedoria de Deus os seres contrários não se destroem mutuamente, enfim, o modo pelo qual ele fez por nós o mundo inteiro, e como tudo isto é pouco perto da descida de Cristo entre nós, e também diante dos bens que estão por vir, segundo Gregório o Teólogo. Ele considera ademais a bondade e a sabedoria de Deus ocultas nas criaturas, o poder e a providência que se encontram nas artes, como ele próprio disse a Jó[236], e também a sabedoria que reside nas palavras e
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nas letras, e como, por meio desta tinta ínfima e sem alma nos foram revelados tantos e tão grandes mistérios através das Escrituras. De resto, é também admirável que tenha sido necessário tanto sofrimento e amor de Deus pelos santos profetas e pelos apóstolos para que alcançassem semelhantes bens diante de Deus, enquanto que nós aprendemos pela simples leitura. Pois as Escrituras inspiradas nos falam de coisas profundamente paradoxais. Quem as conhece acredita que não há nada demais nem de mal na criação em si, mas que Deus transforma maravilhosamente em bens o que é feito contra a vontade divina. Assim é que a queda do diabo não foi vontade de Deus, mas serviu aos que depois foram salvos. Pois Deus permitiu ao diabo tentar os eleitos conforme a força de cada um, a fim de que, como disse santo Isaac[237], ele fosse combatido pelos homens semelhantes a anjos e vencido com a ajuda de Deus não apenas pelos homens, como ainda por numerosas mulheres, por meio de sua paciência e de sua fé n’Aquele que os conduziu no combate e de quem eles receberam, em sua graça e amor pelo homem, as coroas da incorruptibilidade. Pois ele venceu e vence sempre a Serpente impudente que destrói o homem. Quem recebeu o carisma do conhecimento espiritual sabe que tudo é muito bom[238]. Quem se encontra apenas nos umbrais do conhecimento de Deus deve reconhecer humildemente que ignora isto, e como ordena João Crisóstomo, confessar em todas as coisas: eu não sei. Pois ele disse: “Se alguém afirmar que conhece a altura do céu, eu afirmarei – e certamente estarei dizendo a verdade – que eu não sei, e que ignoro inclusive se este homem se engana acreditando saber, ou se, como diz o Apóstolo, ele de fato não sabe[239]”. É por isso que, com uma fé segura e sempre interrogando os mais experientes, devemos receber a doutrina da Igreja e o discernimento dos mestres em relação a tudo o que diz respeito às divinas Escrituras e às criaturas sensíveis e inteligíveis, para que não tombemos rapidamente por seguir nossa própria inteligência, como disse são Doroteu[240]. Em tudo devemos descobrir nossa própria ignorância, a fim de que, buscando e desconfiando dos próprios pensamentos, tenhamos o desejo de conhecer, e, guardandonos de conhecer demasiado, aprendamos com a sabedoria infinita de Deus nossa própria ignorância. A inteligência, por ser de natureza intelectual, recebe certamente o sentido que lhe é próprio ao se purificar diante de Deus: é o que diz Gregório o Teólogo. Devemos apenas, diante deste conhecimento, temer ainda encontrar uma má doutrina escondida na alma, e capaz de fazê-la se perder independente de qualquer pecado, como diz são Basílio[241]. É por isso que não devemos, por negligência ou vã resolução, correr para esta contemplação antes do tempo. Devemos ao contrário, sem distração e em ordem, trabalhar nos mandamentos de Cristo e nas contemplações de que já falamos. Somente depois de ter lavado a alma pela paciência e pelas lágrimas do temor e do luto, depois de chegar a ver naturalmente e de ter a experiência destas primeiras visões que, conduzido em espírito pelos anjos, o intelecto chega por si mesmo a tais contemplações. Mas se alguém é bastante audacioso para pretender atingir as coisas segundas antes das primeiras, saiba que não apenas lhe será impossível atingir o objetivo que agrada a Deus, como também provocará em si numerosas guerras, em especial quando contemplar o homem, como aprendemos a propósito de Adão. Pois aos que ainda são passionais de nada adianta fazer as obras ou conceber os pensamentos dos impassíveis, assim como o alimento sólido não convém às criancinhas, embora seja útil aos adultos [242]. Ele deve desejar e recusar com discernimento, considerando-se indigno, sem jamais rejeitar a chegada da graça, por desespero ou preguiça, nem ter a presunção de buscar as coisas antes do tempo, a fim de evitar que, por buscá-las antes que venham a seu tempo, como diz João Clímaco, deixe de obtê-las mesmo quando cheguem[243]. Pois então é possível que se perca, e nenhum homem, nem a Escritura, poderá reencaminhá-lo. Com efeito, se alguém tem seu objetivo em Deus, com humildade e paciência diante das tentações que lhe advierem, ele poderá tanto buscar uma coisa por ignorância quanto nela se perder, que receberá o perdão de Deus da mesma maneira. Com grande confusão e alegria este homem retornará e encontrará o caminho dos Padres. Pois é aquilo que nos acontece por causa de Deus, não o que acontece
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por qualquer razão, diz João Clímaco, que devemos considerar como um bem proveniente da graça, mesmo que o que nos aconteça não seja em si muito bom[244]. Se não agirmos assim, se não tivermos paciência e humildade, sofreremos o que muitos sofreram. Sua loucura os pôs a perder. Eles confiaram em seus próprios pensamentos e acreditaram caminhar pela boa via sem guia e sem a experiência que só a paciência e a humildade fornecem. Com efeito, a experiência não conhece nem aflição, nem tentação, e talvez sequer o combate. Se o monge experiente deve ainda combater um pouco, esta tentação se torna para ele causa de uma grande alegria e de um grande benefício. Pois Deus permite isto para que ele aprofunde sua experiência e para que se arme de coragem contra os inimigos. Os sinais desta experiência são as lágrimas, a contrição da alma diante de Deus, a fuga para a hesíquia, o refúgio em Deus pela paciência, o estudo esforçado das Escrituras, o desejo de atingir o objetivo de Deus com toda a fé. Os sinais da desorientação de que falamos primeiro são o contrário: duvidar da ajuda de Deus, ter vergonha de perguntar humildemente, fugir da hesíquia e da leitura, amar a distração e as relações, acreditar que estas coisas tragam repouso – o que é impossível. Ao contrário, é nestes momentos que se enraízam ainda mais as paixões, que as tentações se tornam mais fortes, que de tanta ignorância crescem a mesquinharia, a ingratidão e a acídia. De fato, uma é a tentação dos filhos quando se instruem e aprendem o ensinamento que lhes é dado, e outra a tentação dos inimigos, que conduzem à perdição, sobretudo quando nos tornamos joguetes do orgulho. Pois Deus se opõe aos orgulhosos, mas concede sua graça aos humildes[245]. Toda aflição suportada com paciência é boa e útil. Mas sem a paciência, ela afasta de Deus e não serve para nada. Se não for curada pela humildade, nenhum outro remédio o fará. Quando é afligido, o humilde se culpa e acusa a si mesmo, nunca a outro. É desta maneira que ele pede a Deus para alcançar a libertação. Quando ele a encontra ele se alegra e persevera dando graças. Daí em diante ele passa a ter experiência dessas coisas e recebe o conhecimento. Conhecedor de sua própria enfermidade e de sua ignorância, ele se esforça por encontrar o médico e acaba por encontrar a cura que busca, como o próprio Cristo afirmou. Tendo recebido a cura, ele a deseja, e a deseja sempre mais. Purificando a si mesmo tanto quanto lhe é possível, ele se esforça por dar lugar em si Àquele a quem deseja. E Aquele, encontrando aí lugar, aí permanece, como diz o Gerontikon. Permanecendo nele, ele protege esta casa e começa a iluminá-la com a luz. Quem é assim iluminado passa a conhecer, e, conhecendo, é conhecido, como diz João Damasceno. Devemos guardar estas coisas e as que dissemos antes, bem como sua ordem. É preciso trabalhar naquilo que nos é possível compreender. E é preciso dar graças em silêncio pelas coisas que não compreendemos, como disse santo Isaac[246], e não crer impudentemente sermos capazes de penetrá-las. Com efeito, disse ele citando Provérbios: “Quando você encontra mel, coma com moderação, não exagere, para não vomitar[247]”. Como disse Gregório o Teólogo, uma contemplação sem freios arrisca provocar uma queda no abismo[248]. É o que acontece quando buscamos coisas que ultrapassam a medida, negando que Deus conhece estas coisas. E eu, que sou eu? É preciso também crer que Aquele que fez as montanhas e as baleias também perfurou o ferrão da abelha, como disse o grande Basílio[249]. Quem é forte o suficiente para alcançar a compreensão conhece o inteligível a partir do sensível, e o invisível e eterno a partir do visível e temporal. Ele compreende pela graça o mistério das Potências do alto, a saber, que o mundo inteiro não é digno de um único justo. “Considere, diz João Crisóstomo, que o justo é maior do que muitas nações e línguas, que o anjo é bem maior do que o homem, que a contemplação de um só basta para nosso maravilhamento, e também o que Daniel, semelhante aos anjos, soube quando viu o Anjo[250]”.
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Do sétimo conhecimento Aquele a quem foi dado o sétimo conhecimento admira a multidão das Potências incorpóreas, os Poderes, os Tronos, as Dominações, os Serafins e os Querubins, os nove Coros que encontramos em todas as Escrituras divinas, e cuja natureza, força e outros bens que neles podemos contemplar são conhecidos de Deus, seu Criador. Ele também admira como eles se desenvolvem segundo sua ordem. Mas as Potências do alto têm ainda outras qualidades, das quais fala João Crisóstomo: Senhor Sabaoth[251 se traduz por Senhor das Potências, as quais transmitem umas às outras a luz que recebem. Os Anjos, diz ele, iluminam os homens; eles próprios recebem a luz dos Arcanjos, que a recebem dos Principados. É assim que cada ordem recebe da outra a luz e o conhecimento. Ele diz ainda que a raça dos homens é um cordeiro que Deus não perdeu, mas que se perdeu sozinho, e que os Anjos são os noventa e nove outros[252]. Considerando a sabedoria e o poder do Criador, e as multitudes criadas por uma simples ordem sua, Gregório o Teólogo diz que pela multitudes devemos em primeiro lugar entender as Potências angélicas[253], etc. “Entrando pelo intelecto no interior do santuário, do outro lado do véu nos tornamos imateriais”, diz santo Isaac. O templo exterior é o signo do mundo; o véu, a porta do santuário, é o signo do firmamento do céu. O Santo dos Santos simboliza o que está para além do mundo, o lugar onde os anjos incorpóreos e imateriais não cessam de cantar a Deus e rogar a ele por nós, segundo o grande Atanásio. Entramos assim na paz dos pensamentos e nos tornamos folhos de Deus pela graça, conhecendo os mistérios escondidos nas divinas Escrituras, como diz João Damasceno: “O véu divino do Templo rasgou-se quando o Criador foi crucificado, revelando a verdade escondida na letra aos fiéis que dizem: Você é bendito, Deus de nossos Pais”. São Como o Melódio diz igualmente: “O primeiro dos mortais provou o fruto da Árvore e habitou na corrupção. Condenado a perder a vida na maior das desonras, em seu corpo perecível ele transmitiu a perdição a toda a raça como a chaga de sua doença. Mas nós que nascemos da terra encontramos a cruz que nos chama e dizemos: Seja Deus louvado acima de tudo”, etc.
Do oitavo conhecimento Este oitavo conhecimento eleva à contemplação de Deus por intermédio da prece segunda – a prece pura – que é própria do contemplativo. Assim o intelecto é transportado neste impulso da prece pelo desejo divino e já nada mais sabe deste mundo, como dizem Máximo[254] e João Damasceno. Não apenas o intelecto esquece tudo, como esquece até a si mesmo. Com efeito, diz são Nilo[255] que tem consciência daquilo que ele é, ele não está em Deus apenas, mas também em si mesmo. Mas quando Deus lhe aparece, diz são Máximo, ele se torna teológico, e lhe é dado receber o Espírito Santo[256. Quando aprendemos a conhecer a Deus, não acreditemos por ignorância que Deus é aquilo que vemos ao seu redor, a bondade, a doçura, a justiça, a santificação, a luz, o fogo, a essência, a natureza, o poder, a sabedoria e as demais qualidades de que fala o grande Denis[257], nem nada do que o intelecto possa abarcar. Pois o divino não pode ser definido nem descrito, e a teologia não fala daquilo que ele é em si mesmo, mas daquilo que está ao seu redor, como disse o grande Denis a são Timóteo, reportando o testemunho de são Hieroteu[258]. Seria mais justo dizer que Deus é o incompreensível, o inexplicável, o insondável, o que não é possível definir. Pois Deus está além da inteligência e do entendimento. Ele só é conhecido por si mesmo, único, em três hipóstases, sem começo, sem fim, acima de toda bondade e de todo louvor. O que é dito dele na divina Escritura exprime nossa impotência e foi dito para que saibamos que Deus é, mas não o que ele é. Pois ele é incompreensível a toda e qualquer natureza dotada de razão e de intelecto. Devemos portanto, e da mesma maneira, admirar a encarnação do Filho de Deus e sua união em sua própria hipóstase, como disse são Cirilo: de que modo, segundo o grande Basílio, a carne que ele recebeu
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de nós estava fundamentada em sua Divindade. Pois a união é como o ferro e o fogo, para que conheçamos o Cristo único em duas naturezas, como disse João Damasceno à Mãe de Deus: “Puríssima, você gerou a hipóstase única em duas naturezas, o Deus encarnado ao qual cantamos: Deus seja bendito”. E também: “Aquele a quem nada pode limitar não se alterou. Em você, Santíssima, ele se uniu à carne pela hipóstase, em sua misericórdia, seja bendito”.
Que as divinas Escrituras não se contradizem Quem já recebeu um pouco de luz, quando considera simplesmente toda leitura ou toda salmodia, encontra a contemplação e a teologia, e cada Escritura atestada por outra Escritura. Mas aquele cujo intelecto ainda não foi iluminado crê que as divinas Escrituras se contradizem. Nada há na Bíblia que não agrade a Deus. Pois dentre as divinas Escrituras, umas testemunham outras Escrituras, outras têm por causa o tempo ou a pessoa. Toda palavra escrita é isenta de erro. Tudo o que está fora destes modos é obra de nossa ignorância. Nada existe a acrescentar às Escrituras. Devemos nos esforçar para guardá-las como são. Não podemos considerá-las como cada um de nós quiser, como o fazem os gregos e os judeus, que não aceitam confessar que não sabem do que se trata, mas que, por presunção e autossuficiência começaram a reescrever as Escrituras e a interpretar a natureza das coisas como bem lhes aprouvesse, e não segundo a vontade de Deus. Assim eles se enganaram e se voltaram para a completa malícia. Pois quem quer que busque o fim da Escritura não deve lhe dar sua própria interpretação, nem boa nem má. Mas, como dizem o grande Basílio e João Crisóstomo, deve ter por mestre a própria divina Escritura e não os ensinamentos do mundo, a fim de recolher o que Deus colocou nos corações puros sem pensamentos, como também encontramos testemunhado nas divinas Escrituras, como disse o grande Antônio. Pois somente devem ser recebidos os significados que vêm por si próprios ao intelecto dos hesiquiastas, que, independentes de qualquer pensamento, repousam em Deus, como diz santo Isaac. Mas a pesquisa e o pensamento se tornam vontade própria e ciência corporal, sobretudo se forçamos a Escritura como um ladrão para extrair dela alguma alegoria, como disse João Crisóstomo. Neste caso, não estaremos entrando pela porta da humildade, mas por algum outro lugar[259]. Pois quem força o objetivo da Escritura ou que encontra aí onde reescrever para colocar seu próprio conhecimento, ou antes, sua ignorância, é o mais insensato que pode existir sobre a terra. Qual é esta ciência que nos permite definir ao bel prazer o sentido da Escritura e ousar alterar suas palavras? Sábio é quem considera que as palavras são imutáveis e que descobre pela sabedoria do Espírito os mistérios ocultos testemunhados nas divinas Escrituras. É exatamente o que fizeram estes três grandes luminares que são Basílio, João Crisóstomo e Gregório, que sempre extraíram seu testemunho de uma ou outra palavra da Escritura. E quem quer contradizer não tem nada a acrescentar. Pois os três não trazem um testemunho do exterior, para que se possa dizer existir aí um sentido que lhes é próprio, mas trazem o testemunho em cima do tema de que tratam, ou sobre alguma outra Escritura que trata do mesmo tema. E com toda justiça. Com efeito, é o Espírito Santo que lhes permite compreender e falar. E eles foram dignos disto. Toda coisa da qual não se pode atestar ser boa se torna duvidosa: não devemos nem fazê-la nem submetê-la ao pensamento. Que necessidade temos de abandonar uma coisa clara sabidamente boa e agradável a Deus, para fazer outra, que pode ou não ser boa? Isto certamente tem suas raízes na paixão. É exatamente assim.
Distribuição da prece por todos os conhecimentos Em relação aos oito conhecimentos, devemos saber que para os quatro primeiros devemos dizer o que está escrito em cada qual. Para os demais, basta orar “Senhor, tem piedade” em tudo e por tudo, como foi dito
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a respeito de são Filemon[260], e ter todo o tempo o intelecto livre de qualquer pensamento. Tal deve ser a conduta daquele que se aplicar a tal. Ele deve ter o intelecto voltado tanto para a contemplação do sensível quanto para o conhecimento do inteligível e o que é sem forma, e logo novamente para uma meditação da Escritura e para a prece pura. O próprio corpo deve estar tanto absorvido na leitura quanto na oração, logo nas lágrimas que vertemos por nós mesmos ou por alguém pela compaixão diante de Deus, e no trabalho, no auxílio prestado a um irmão enfermo em sua alma ou corpo, a fim de em tudo fazermos a obra dos santos anjos, sem nenhuma preocupação com as coisas deste mundo. Deus, que elegeu este homem e o colocou à parte para viver com ele e que lhe deu esta doutrina, esta ausência de preocupações, logo cuidará dele e o alimentará em sua alma e em seu corpo. Com efeito, foi dito: “Entregue ao Senhor suas preocupações e ele o alimentará[261]”. Quanto mais este homem colocar sua esperança em Deus para tudo o que se refere à sua alma e ao seu corpo, mais ele descobrirá o quanto Deus cuida dele. Ele receberá assim de Deus em sua alma e em seu corpo tanto mais dons visíveis e invisíveis quanto mais se considerar abaixo de todas as criaturas. Ele se sente tão devedor e fica tão confuso diante das benesses de Deus, que não consegue se prevalecer de ninguém. Quanto mais ele dá graças a Deus e violenta a si próprio, mais Deus o aproxima de suas graças e quer lhe conceder o repouso e fazê-lo preferir a hesíquia e a despossessão a todos os reinos da terra, no aguardo da recompensa no século futuro. Com efeito, os santos mártires sofreram sob os ultrajes dos inimigos, mas o desejo pelo Reino e o amor a Deus eram mais fortes do que os seus sofrimentos, e este poder que eles receberam para vencer os adversários era para eles um grande consolo e uma recompensa. Muitas vezes eles sequer sentiram a morte que lhes foi dada para sofrer por Cristo. Da mesma forma, os santos Padres violentaram a si mesmos desde o início por meio de todas as asceses e nos combates a que os levaram os espíritos de malícia. Mas o desejo e a esperança da impassibilidade superaram a tudo. Pois depois das penas, a impassibilidade não conhece mais cuidados: ela venceu as paixões. O passional pode até pensar que tudo vai bem, mas é por causa de sua cegueira. Somente quem se vangloria de combater conhece sempre o sofrimento e a guerra, pois ele quer vencer as paixões e não consegue. A este homem é concedido ser vencido pelos que o combatem, a fim de adquirir a humildade. É por isso que ele deve conhecer sua própria fraqueza e fugir daquilo que o prejudica mais, a fim de esquecer seu antigo costume. Pois se ele não foge primeiro da distração e não adquire primeiro o silêncio perfeito ele não poderá alcançar seja lá o que for impassivelmente e dizer sempre o que é bom. Assim é que em todas as coisas convém em primeiro lugar fugir inteiramente da distração a fim de não ser atraído pelo antigo costume. Entretanto, ninguém, em sua ignorância, apenas por ter ouvido falar em humildade, impassibilidade e outras virtudes análogas, devem pensar possuí-las. Mas deve buscar os seus sinais em todas as coisas, e as encontrar em si mesmo.
Da humildade Estes são os sinais da humildade: ter em si todas as virtudes do corpo e da alma e considerar ser indigno, considerar ser tão mais devedor quanto mais graças receber de Deus. Se uma tentação lhe vier dos demônios ou dos homens, o humilde pensa merecê-la, e merecer muitas outras mais, a fim de que, quitando ainda que um pouco sua dívida, ele possa encontrar no Juízo um alívio aos castigos que tanto teme. Não ter em si este sofrimento o aflige e atormenta. Ele tenta encontrar o que o levará a violentar a si próprio. Quando ele o alcança, ele recebe a coisa como um dom de Deus, e se humilha novamente. Pois ele jamais poderá devolver ao Benfeitor aquilo que lhe deve. Ele trabalha todo o tempo, e cada vez se considera mais devedor.
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Da impassibilidade Este é sem dúvida o sinal da impassibilidade: encarar tudo sem se perturbar e sem medo, por haver recebido pela graça de Deus “tudo poder”, segundo o Apóstolo[262], até não ter mais nenhum cuidado com o corpo. Na medida da violência que fizermos a nós mesmos, chegaremos ao repouso do estado impassível. Novamente damos graças e novamente nos violentamos, para nos mantermos sempre combatendo e vencendo com humildade. Tal é o progresso do homem. O que nos advém sem que tenhamos que nos violentar não é nossa obra, como diz santo Isaac, mas um dom. Se nos vem o repouso logo depois do primeiro sofrimento, este é o prêmio de uma derrota, e nada temos para nos glorificar. Pois não devemos louvar aqueles que recebem um salário, mas os que se violentam e trabalham sem nada receber. Que podemos dizer? Quanto mais agimos e damos graças ao Benfeitor, mais devedores somos, e cada vez mais. Pois a ele nada falta, de nada ele necessita, enquanto que sem ele nada somos e nada de bom podemos fazer[263]. Aquele a quem foi dado cantar a Deus tem um prêmio: ele recebeu um grande e admirável carisma. Quanto mais ele canta, mais devedor se torna. Com conhecimento de Deus, em ação de graças, com humildade, com amor, ele não encontra nem fim nem ruptura. Pois estas coisas não são deste século para terem um fim. Elas pertencem ao século infinito que não terminará jamais. Elas correspondem ao crescimento dos conhecimentos e dos carismas. Quem as recebeu pelas obras e pelas palavras se liberta de todas as paixões. Mas para chegar até aí ele deve permanecer em Deus, não ter nenhuma preocupação com este século, não ter medo de nenhuma tentação. É a partir daí que ele progredirá, que subirá sempre e mais até um grau mais elevado, não por meio de sonhos maus ou bons em aparência, nem por meio de pensamentos de malícia ou de bem, nem pela tristeza ou por uma alegria afetada, nem pela presunção ou pelo desespero, pela profundidade ou pela altura, pelo abandono ou pela assistência ou força externas, nem pela negligência ou pelo progresso, nem pelo desleixo ou por uma falsa resolução, uma impassibilidade aparente ou uma grande paixão. Devemos guardar nossa vida na hesíquia, fora de toda distração, com humildade, acreditando que ninguém pode nos prejudicar se não o quisermos. Por causa do orgulho que sempre nos impede de nos refugiar em Deus, devemos nos atirar diante dele, buscando em tudo que seja feita a sua vontade, e dizendo a todo pensamento que nos ocorra: eu não sei quem você é. Deus sabe se você é bom ou não. Eu mesmo me atirei e me atiro sempre em suas mãos. E ele cuida de mim<[264]. Pois assim como ele me criou do nada, também ele me salvará por sua graça, se assim o quiser: seja feita sua vontade, tanto neste século como no século futuro. Que tudo se faça como ele quiser e quando ele quiser: quanto a mim, não tenho vontade. Eu só sei de uma coisa: eu pequei tanto, eu recebi tantos benefícios, eu sou incapaz, mesmo fazendo tudo o que me é possível por palavras e obras, de dar graças por sua bondade. Ele pode e quer salvar todos os seres, e a mim junto com todos, segundo a sua vontade. Mas eu não passo de um homem. Como saber se ele me quer assim ou de outro modo? Por medo de pecar, fugi. Cheguei aqui. Por causa de meus pecados, de minhas numerosas fraquezas, permaneço inerte em minha célula, como os que estão enfermos na prisão, e aguardo a sentença do Mestre. Ainda que se veja inerte e perdido o monge não deve temer. Se ele não abandonar sua cela, ele alcançará a contrição da alma e as lágrimas dolorosas. E se novamente ele se decidir com grande resolução por uma grande obra espiritual e pelas lágrimas, mesmo assim não deve se regozijar, mas se entregar ao arrebatamento e se preparar para o combate. Ele deve simplesmente desprezar todas as coisas, sejam boas ou contrárias, a fim de permanecer sem se perturbar por nada, repousando e lutando na medida do seu possível, e fazendo tudo o que aprendeu, caso tenha tido um conselheiro. Se teve, agora ele tem a Cristo, a quem interrogar por meio da prece pura sobre toda ação e todo pensamento, do fundo do coração, com
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humildade, sem jamais pensar ter se tornado um monge experiente até reencontrar Cristo no século futuro, como disseram João Clímaco[265] e o abade Agatão. Se o seu objetivo é o de agradar a Deus, o próprio Deus lhe ensinará sua vontade. Em seu intelecto, por meio de um homem, por intermédio da Escritura, ele o cumulará de certeza. Se ele afastar de si toda vontade própria, Deus lhe permitirá atingir a perfeição numa alegria inefável. Ele pode não saber, mas ele vê, e se admira profundamente de como de todos os lados começa a brotar a felicidade e o conhecimento. E Deus reina nele. Pois ele já não tem vontade própria e se submete à sua santa vontade. Ele se torna como um rei. O que ele deseja lhe é concedido sem esforço e imediatamente por Deus que vela por ele. Esta é a fé da qual o Senhor falou: “Se vocês tiverem fé, etc.[266]”. Segundo o Apóstolo, é sobre esta fé que as demais virtudes são edificadas[267]. É por isso que o inimigo trabalha para separar o homem da hesíquia e para fazê-lo cair em tentação. Se por um acaso ele perde a fé de um modo ou de outro, contando com sua própria força ou com sua própria sabedoria, total ou parcialmente, o inimigo se aproveita disto para vencê-lo e capturá-lo, o infeliz. Quem conhece isto e abandonou as delícias e o conforto do mundo se esforça, sabendo-o, por alcançar a ausência de preocupações, seja por meio da submissão – pois uma vez que seu pai espiritual representa para ele o papel de Cristo, ele lhe entrega todos os seus pensamentos, palavras e atos, a fim de nada ter de si próprio – seja por meio da hesíquia assumida através de uma fé segura, fugindo de tudo: então Cristo toma para ele o lugar de tudo. Como dizem João Crisóstomo e João Damasceno, Cristo em pessoa se torna tudo para ele neste século e no século futuro, dando-lhe o alimento, as vestes, a alegria, a prece, a felicidade, o repouso, o ensinamento, a luz. Numa palavra, assim como velava por seus discípulos, Cristo velará por ele, mesmo que ele não tenha que sofrer como eles. Mas ele possui a fé firme, por meio da qual ele não se preocupa consigo mesmo como os demais homens. No temor dos espíritos, como os apóstolos que temiam os judeus[268], ele permanece em sua célula e aguarda seu Mestre, a fim de que, por meio da verdadeira contemplação – ou seja, pelo conhecimento de suas criaturas – este o levante em seu intelecto, longe das paixões, e lhe conceda a paz como aos apóstolos, com as portas fechadas[269], como diz são Máximo[270].
Sobre as sete ações do corpo. Excelente discernimento. Devemos sempre nos lembrar do que foi escrito no início deste estudo sobre as sete ações do corpo, e nada perder nem acrescentar. A juventude, ou o transbordamento da força, é o tempo do combate corporal. Temos então necessidade de uma ascese extrema. Quando ficamos doentes devemos fazer uma pequena pausa, mas não cessar a ascese. Pois uma parada total da ascese pode prejudicar até mesmo os impassíveis, como disse santo Isaac. A pausa deve ser conforme a necessidade, como um remédio para a doença. Quando fica sem meios, a alma tende a relaxar a tensão. Ora, se desejamos uma pausa com toda nossa alma, já não há mais ascese. Diz-se que a pausa é normalmente prejudicial aos jovens e aos que se portam bem. Os santos Padres Basílio e Máximo acrescentam que, para curar a fome e a sede, somente o pão e a água são úteis. Mas para a saúde e a força do corpo, Deus nos deu todo o resto, em seu amor pelo homem. Para que o fraco não sinta nenhuma aversão por ter que comer sempre o mesmo tipo de alimento, é bom comer um alimento diferente depois de outro, como já dissemos. Pois é a abstinência e a intemperança que influenciam os fracos. Mas a temperança e a mudança cotidiana de alimentação mantêm a saúde, a fim de que o corpo se mantenha sem dor e sem doença e contribua para a aquisição das virtudes. Isto vale para aqueles que combatem, como foi dito. Mas os impassíveis, em sua infância em Cristo, passam frequentemente muitos dias sem comer, esquecendo-se de seus corpos, como são Sisão que, depois de comer, pedia para comungar dos Santos Mistérios[271], pois ficava fora de si por amor a Deus e
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para o bem de muitos, como disse o Apóstolo: “Se ficamos fora de nós, é por Deus; se somos sábios, é por vocês[272]”. O grande Basílio e muitos outros disseram a mesma coisa de outros Padres. Quando eles comiam com os irmãos, eles não sentiam os alimentos que lhes eram dados, mas permaneciam como se não tivessem comido. Pois seu intelecto não estava em seu corpo. Eles já não sentiam nem a pausa nem a pena. Isto é muito evidente em muitos Padres e santos mártires, como este santo de que fala são Nilo. Ele conta que um velho monge que vivia no deserto estava mergulhado na prece do intelecto, quando um dia Deus permitiu, para seu bem e de muitos outros, que os demônios o tomassem pelas mãos e pelos pés e o projetassem no ar, recolhendo-o em seguida sobre uma rede, para não ferir seu corpo que caía do alto. Eles fizeram isto muitas vezes, para ver se seu intelecto descia dos céus, mas não tiveram sucesso[273]. Será que um homem assim sentiria a comida ou a bebida, ou qualquer outra coisa corporal? Mais este: santo Efrém, depois de ter, pela graça de Cristo, vencido todas as paixões da alma e do corpo, a fim de não se encontrar desocupado no combate contra o inimigo e não ser condenado por isto, conforme pensava em sua inefável humildade, pedia que dele fossem retiradas a graça e a impassibilidade. Este fato espantou João Clímaco, que escreveu que alguns, como este sírio, eram mais impassíveis que os impassíveis[274].
Do discernimento Em todas as coisas necessitamos do discernimento, para podermos julgar cada obra a seu tempo. Pois o discernimento é uma luz, que mostra a quem o tem o tempo, a ação, a execução, a força, o conhecimento, a idade, a potência, a fraqueza, a resolução, o ardor, a contrição, o estado, a ignorância, o vigor e o temperamento do corpo, a saúde e a fadiga, a maneira, o lugar, a conversão, a educação, a fé, a disposição, o objetivo, a conduta, a liberdade, a ciência, a sabedoria natural, o esforço, a vigilância, a lentidão, etc. Ele mostra ainda a natureza das coisas e sua utilidade, a quantidade, o gênero, o objetivo de Deus nas divinas Escrituras, a inteligência de cada palavra. Como nestas palavras do Evangelho segundo são João: quando os gregos pediram para ver o Senhor, este disse: “A hora é chegada[275]”, etc. É claro que as nações seriam chamadas daí por diante. O tempo da Paixão começara, e ele deixou ali o sinal. O discernimento explica não apenas todas essas coisas, mas também a finalidade da interpretação dos Padres. O que procuramos de fato, diz são Nilo, não são as coisas que acontecem, mas a via pela qual elas nos chegam. Se agirmos sem o conhecimento de tudo o que mencionamos sem dúvida nos esforçaremos muito sem chegar a nenhum resultado, como disseram o grande Antônio[276] e santo Isaac dos que lutam para adquirir as virtudes do corpo e negligenciam a obra do intelecto, que, entretanto, é a que deveria ser buscada. São Máximo diz: dê ao seu corpo tanto trabalho quanto puder, e dirija todo o combate para a inteligência. Pois quem trabalha apenas como o corpo, como dissemos, pode ser vencido pela gula, pelo excesso de sono, a distração, a falação, e seu intelecto fica obscurecido. Mas o jejum prolongado, a insônia, as fadigas excessivas também podem perturbar a reflexão. Ao contrário, aquele cujo intelecto é aplicado contempla, ora, se torna teólogo e pode alcançar todas as virtudes[277]. É por isso que o homem sábio se esforça judiciosamente para diminuir tanto quanto possível as necessidades do corpo, para ter poucas preocupações – melhor ainda, nenhuma – e para se consagrar à observação dos mandamentos. É o que disse o Senhor: “Não se preocupem, etc.[278]”. Quando temos muitas preocupações, não nos é possível nem nos enxergar. Como poderemos então enxergar as armadilhas que o inimigo tem preparadas há tanto tempo? Pois não é costume do inimigo guerrear abertamente contra nós, diz João Crisóstomo. Se ele nos atacasse de frente, muitos não cairiam facilmente em suas armadilhas, e o Senhor não teria dito: “Poucos serão salvos[279]”. Quando o diabo quer lançar
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alguém nas grandes faltas, ele começa por fazê-lo negligenciar as pequenas coisas que não aparecem: antes do adultério, o olhar enviesado e impudico; antes do assassinato, as pequenas cóleras; antes das trevas da reflexão, as pequenas distrações; e antes da cegueira, as aparentes necessidades do corpo. É por isso que o Senhor, que é a Sabedoria do Pai[280] e conhece tudo por antecipação, previu as artimanhas do diabo e ordenou aos homens que cortassem imediatamente as raízes do mal. Do contrário, imaginando ser fácil suportar as pequenas coisas, eles tombariam impiedosamente na desgraça dos grandes pecados. O Senhor afirma: “Foi dito aos antigos, aos que viviam sob a Lei, tal e tal. Mas eu lhes digo[281]”, etc. Assim, aquele que foi ensinado pelo santo Evangelho deve estar atento ao que lhe ensina o Senhor, trabalhar para se livrar das armadilhas do inimigo, colocar sua toda honra em seguir os mandamentos e considerar que eles lhe fazem um bem imenso, pois por meio deles ele pode adquirir uma grande sabedoria e salvar sua alma. Os mandamentos são justamente os dons de Deus. “Toda boa graça, todo dom perfeito vêm do alto[282]”, disse o irmão de Deus. Também João Damasceno diz: “Dê-nos a mediadora que ninguém pode confundir, aquela que o gerou, ó Cristo. Por suas orações, conceda-nos a compaixão do Espírito e nos dê a bondade que por seu intermédio provém do Pai”. Aquele que recebeu o carisma de estar atento às divinas Escrituras, como dizem os Padres, encontra todos os bens que nelas estão ocultos, conforme a palavra do Senhor: “Aquele que é instruído no Reino dos céus[283]”, etc. Vale dizer que este é instruído por sua consagração a Deus e pela leitura das divinas Escrituras. Pois um é o rosto que a Escritura revela ao resto dos homens, mesmo que eles acreditem conhece-la, e outro é o que ela revela ao homem que se consagrou à prece incessante, ou seja, que pensa em Deus todo o tempo, tanto quanto respira, ainda que ao mundo pareça inculto e sem o conhecimentos dos ensinamentos dos homens, como afirma o grande Basílio. Também João Clímaco afirma que Deus se revela à simplicidade e à humildade[284], mais do que aos sofrimentos e à sabedoria inerte. Deus rejeita esta última, se ela não for humilde, Segundo o Apóstolo, mais vale nada saber do que não conhecer[285], pois o conhecimento espiritual é um carisma. Mas a ciência da palavra é um ensinamento humano, como os outros ensinamentos deste mundo. Ela em nada contribui para a salvação da alma, como fica evidente entre os gregos. Nos que sabem por experiência tudo o que é dito, a leitura exercita a memória. Nos que não possuem a experiência, ela é um ensinamento. Mas quando o Senhor encontra o coração puro de todas as coisas e de todos os ensinamentos deste mundo, disse são Basílio, então ele inscreve suas próprias instruções nele como num livro no qual nada ainda tenha sido escrito[286]. Digo estas coisas para que não sejam lidas as coisas que não agradam a Deus. Caso alguém tenha tido um dia, por ignorância, uma leitura destas, que se esforce por apaga-la da memória pela leitura espiritual das divinas Escrituras, em especial das que contribuem para a salvação da alma, na medida do estado que tenha alcançado. Se ele ainda for ativo, que leia as vidas e as sentenças dos Padres. Se a graça já o conduziu até o conhecimento divino, que leia nas Escrituras, tanto quanto lhe for possível, aquilo que for capaz de derrubar, segundo o Apóstolo, as alturas levantadas contra o conhecimento de Deus[287] e de proteger de toda desobediência e de toda transgressão, por meio da observação estrita e do verdadeiro conhecimento dos divinos mandamentos e dos ensinamentos de Cristo. Fora disto, nada leia. Qual a necessidade de se receber um espírito impuro em lugar do Espírito Santo? Qualquer que seja o discurso estudado, buscamos encontrar o espírito deste discurso, ainda que isto não pareça difícil como ela é para os que não têm experiência.
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Da leitura divina A leitura divina impede o intelecto de andar às tontas. Este é o começo da salvação. O inimigo, diz Salomão, odeia o eco da certeza[288]. Quando a reflexão começa a rodar, diz santo Isaac, aí começa o pecado. Quem quer fugir perfeitamente deve permanecer o máximo possível em repouso em sua cela. Se for tomado pela acídia, deve trabalhar um pouco, coisa que também deve fazer o monge impassível e que possui o conhecimento, para prestar serviço aos outros e ajudar os fracos, coisa que fizeram também os maiores amigos dos Padres, inclinando-se para aqueles que estavam propensos às paixões e assimilandose a eles por pura humildade. Pois estes eram capazes de ter a Deus em si próprios e se consagrar à contemplação em Deus, mesmo trabalhando com suas mãos ou indo ao mercado. Quem atingiu a mais alta perfeição, disse o grande Basílio, podem permanecer sozinhos e com Deus, mesmo em meio à multidão. Quem ainda não atingiu este ponto mas quer se libertar da acídia deve rejeitar toda relação humana e todo sono excessivo, e deixar a acídia consumir seu corpo e sua alma até que ela se esgote por completo e o deixe, vendo sua perseverança na consagração contínua a Deus, na leitura e na prece pura. Aqueles que nos combatem, se percebem que podem obter o que querem, continuam a combater. Do contrário, eles se vão, seja momentaneamente, seja em definitivo. É por isso que quem pretende dominar seus adversários deve se manter paciente. Quem perseverar até o fim será salvo[289]. É justo, diz o Apóstolo, que os que nos acuam sejam afligidos, e que nós, que estamos aflitos, sejamos aliviados[290]. Nada do que se faz por Deus e com humildade é mau. Mas as coisas e as obras podem diferir. Tudo o que se faz contra o uso necessário, ou seja, tudo o que não contribui para a salvação da alma e para a vida do corpo, constitui um obstáculo para aquele que quer ser salvo. Não é o alimento que é prejudicial, é a gula. Não é o dinheiro, mas a paixão por ele. Não é a palavra, é o falatório. Não são as doçuras do mundo, mas a intemperança. Não é o amor pelos nossos, mas o obstáculo que este amor pode criar em relação ao amor a Deus. Não são as vestimentas que usamos para nos cobrir e nos proteger do frio e do calor, mas o supérfluo, os ornatos preciosos. Não são as casas que, também elas, servem para nos proteger das intempéries e para nos guardar dos animais e dos homens que podem ser nocivos a nós, mas as moradias de dois e três pavimentos, grandes e custosas. Não é o possuir seja lá o que for, mas o usar esta coisa incorretamente. Quando nos despojamos de tudo, não é possuir livros que é mau, mas é não os ter para a leitura divina. Não é ter amigos, mas é não os ter para o bem de nossa alma. Não é mulher que é má, mas a prostituição. Não é a riqueza, é a avareza. Nem o vinho, mas a embriaguez. Nem o ardor natural que nos foi dado para castigar o pecado, mas o ardor com que nos voltamos contra os homens, nossos semelhantes. Nem a autoridade, mas o amor ao poder. Nem a glória, mas a ambição, e pior ainda, a vaidade. Não é adquirir a virtude, mas presumir-se virtuoso. Nem o conhecimento, mas pretender-se sábio, e pior ainda, ignorar sua própria ignorância. Não é o verdadeiro conhecimento que é mau, mas o falso. Não é o mundo que é mau, são as paixões. Não é a natureza, mas o que é contra a natureza. Não é a concórdia, mas a unanimidade nas malfeitorias que impedem a salvação da alma. Não são os membros do corpo, mas seu mau uso. Pois a visão não nos foi dada para que desejemos o que não nos convém, mas para que, vendo as criaturas, nelas glorifiquemos o Criador e alcancemos o bem de nossa alma e de nosso corpo. Da mesma forma, o ouvido não nos foi dado para escutar bobagens e ultrajes, mas para escutar a palavra de Deus e todas as linguagens, a dos homens, dos pássaros e de todas as criaturas, e para nisto glorificar o Criador. O órgão do olfato não nos foi dado para que a alma amoleça sob os perfumes e relaxe sua tensão, disse o Teólogo, mas para respirar, receber o ar que nos foi dado por Deus, e para glorificar a Deus por esta coisa sem a qual ninguém, nem homem nem animal, poderia viver em um corpo.
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É admirável como o Benfeitor, em sua sabedoria, concedeu a todos encontrar com facilidade as coisas mais necessárias, ou seja, o ar, o fogo, a água e a terra. Ele não apenas nos deus estas coisas como ainda tornou mais fáceis as que podem salvar a alma e mais difíceis as que a levam para a perdição. É assim que a pobreza tende em primeiro lugar a salvar a alma, mas a riqueza é um obstáculo para a maioria. A primeira, qualquer homem a encontra; mas a segunda não está em nós. Cada um pode encontrar em si a desonra, a humildade, a paciência, a obediência, a submissão, a temperança, o jejum, a vigília, a rejeição à vontade própria, a fraqueza corporal, a ação de graças por todas as coisas, a tentação, os prejuízos, a privação do necessário, a ausência de doçuras, a nudez, a paciência, todas estas obras feitas por Deus e que não podemos impedir nem combater, mas que Deus permite aos que as assumem quando elas advêm, sejam voluntárias ou não. Mas aquilo que leva à perdição não é fácil de ser encontrado: assim é com a riqueza, a glória, o orgulho, a rejeição aos outros, o poder, a autoridade, a intemperança, a gulodice, o excesso de sono, fazer o que se tem vontade, a saúde e a força do corpo, a vida tranquila, as vantagens, ter tudo o que se deseja, a fruição das delícias, ter muitas roupas e ornamentos, preciosos, etc. É preciso lutar muito para se obter estas coisas, e o que se encontra é bem pouco, o ganho é passageiro. Elas trazem muitas penas e pouco regozijo, pois atormentam os que as possuem e os que não as têm desejam obtê-las. No entanto, nenhuma delas é má em si: o mal está no abuso delas, como já dissemos. Os pés e as mãos não nos foram dados para roubar, pilhar, espancar, mas para podermos trabalhar nas obras de Deus. Os que têm a alma mais fraca se compadecem dos pobres, para seu próprio aperfeiçoamento e para o socorro daqueles que precisam. Mas os que são mais fortes de corpo e de alma dedicam-se eles mesmos à pobreza, à imitação de Cristo e dos santos discípulos, para glorificar a Deus e admirar a sabedoria oculta em nossos membros: o modo como, pela providência de Deus, estas mãos e dedos, malgrado sua pequenez, estão dispostas para toda ciência e todo trabalho, para a escrita, para todas as obras de onde vêm o conhecimento das artes e das inúmeras Escrituras, da sabedoria e dos remédios, da diversidade das línguas e das letras. Simplesmente, tudo o que foi, que é e que será nos foi dado na maior bondade e nos é sempre concedido para que nossos corpos vivam e para que nossas almas sejam salvas, se nos portamos em relação a todos os seres tendo em vista o objetivo de Deus, e se através deles o glorificamos com todo nosso reconhecimento. Caso contrário, cairemos e nos perderemos: e não apenas os seres nos atormentarão no século presente, como já foi dito, como ainda nos levarão ao castigo eterno no século futuro.
Do discernimento verdadeiro. Aquele que, pela graça de Deus, recebeu o carisma do discernimento deve, com toda sua força e grande humildade, guardar este carisma. Ele não deve fazer nada imponderadamente, para não falhar por negligência. Com seu conhecimento, ele se condenaria daí por diante. Mas quem não recebeu este carisma não deve pensar nada, nem dizer, nem fazer sem interrogar, sem confiar tudo à fé constante e à prece pura, fora das quais não se pode alcançar o discernimento. Pois o discernimento nasce da humildade. Em quem o possui, ele engendra a clarividência, como disseram Moisés e João Clímaco[291]. Este homem prevê as armadilhas ocultas do inimigo e suprime suas causas antes de chegado o momento. É o que disse Davi: “Meus olhos viram dentro de meus inimigos[292]”. São os seguintes os sinais do discernimento: Conhecer sem se enganar o bem e seu contrário e saber qual a vontade divina em tudo o que se faz. E estes são os sinais da clarividência: conhecer suas próprias faltas antes que elas aconteçam, saber o que acontece quando os demônios nos capturam, conhecer os mistérios ocultos nas divinas Escrituras e nas criaturas sensíveis.
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A humildade, mãe do discernimento e da clarividência, também é marcada por um sinal, como já foi dito. Ela pode ser reconhecida assim: quando se é humilde, pode-se possuir todas as virtudes e ainda assim crer-se em verdade o maior devedor de todos, abaixo de toda a criação. Quando não estamos neste estado, é certo sermos piores do que o resto da criação, ainda que acreditemos levar uma vida angelical. Pois até o anjo que possuía tantas virtudes e sabedoria, por não ter humildade não pode agradar ao Criador. Que dirá então a fonte de todos os seres e bens futuros, de quem não é humilde e se quer anjo? É da humildade que provém o discernimento que ilumina os confins do mundo. Sem ela, tudo são trevas. Pois ela é a luz e se chama luz. É por isso que antes de qualquer palavra ou obra temos necessidade desta luz para nos maravilhar quando vemos o resto das coisas. Nós nos maravilhamos de ver que Deus, no primeiro dos dias, no dia soberano, criou primeiro a luz[293] para que as coisas que viessem depois dela não permanecessem invisíveis como se não existissem, disse João Damasceno[294]. O discernimento, como dissemos, é a luz, e a clarividência que ele engendra á o mais necessário de todos os carismas. De fato, o que existe de mais necessário do que ver as armadilhas do demônio e proteger a alma com a ajuda da graça? “A pureza da consciência e a mãos necessária de todas as obras”, diz santo Isaac. O mesmo acontece com a santificação do corpo: “Sem ela, disse o Apóstolo, ninguém verá o Senhor[295]”.
Que não se deve desesperar, mesmo tendo pecado muito. Mas não devemos nos desesperar por não sermos como deveríamos ser. Homem, seu pecado é um mal. Porque você ofende a Deus e, por sua ignorância, o impede de agir em você? Não pode salvar sua alma aquele que por você criou todo este mundo que você vê? Mas se você diz: “Aqui estava minha condenação, mas daqui por diante aqui estará a sua misericórdia”, arrependa-se e ele receberá seu arrependimento, como aceitou o do filho pródigo e da prostituta[296]. E se você não puder se arrepender, se por costume você cair em faltas indesejadas, tenha a humidade do publicano[297]. Ela basta para a salvação. Pois quem assim peca sem se arrepender mas não se desespera, coloca-se necessariamente abaixo de todas as criaturas. Ele não ousa condenar ou culpar ninguém. Ao contrário, ele admira o amor de Deus pelo homem, é reconhecido ao seu Benfeitor e pode receber muitas outras benesses. Se o diabo o submete ao pecado mas ele o desobedece não se desesperando, por temor a Deus, ele permanece com Deus. Ele tem em si o reconhecimento, a ação de graças, a paciência, o temor a Deus, todas essas virtudes profundamente necessárias, e ele não julga para não ser julgado[298]. Como diz João Crisóstomo, no limite o inferno nos ajuda a descobrir o Reino de Deus. Pois dentre os que entram no Reino, muitos passaram pelo inferno e pouco são os que vieram pelo Reino em si. É o amor de Deus pelo homem que nos faz entrar. Um obriga pelo temor, o outro abraça, mas os dois nos salvam pela graça de Cristo. Pois os que são combatidos por tantas paixões da alma e do corpo serão coroados se tiverem paciência, se não perderem sua liberdade por negligência, se não se desesperarem. Do mesmo modo, aquele que encontrou a impassibilidade e é por ela consolado pode cair rapidamente se não confessar sempre as graças recebidas e se condenar alguém. Se ele tiver a audácia de condenar os outros, significa que ele adquiriu a riqueza por seu próprio poder, diz são Máximo[299]. Quem ainda é passional e não tem conhecimento da luz corre um grande perigo se vier a comandar a outros, diz João Damasceno. O mesmo acontece com aquele que recebeu de Deus a impassibilidade e o conhecimento espiritual, caso não vá em auxílio das outras almas. De início, nada ajuda tanto o fraco como a fuga para a hesíquia. E daí por diante nada auxiliará mais o passional e o ignorante do que a submissão a esta hesíquia. Nada é melhor do que conhecer sua própria fraqueza e sua própria ignorância, e nada pior do que ignorá-las. Da mesma forma, nenhuma paixão é tão detestável quanto o orgulho, e nada mais risível do que o amor ao dinheiro, esta raiz de todos os males[300].
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O homem que com grande esforço extrai a prata das minas da terra a esconde outra vez na terra, e esta prata não lhe traz nada. É por isso que o Senhor disse: “Não ajuntem tesouros sobre a terra[301]”, etc. E também: “Onde estiver seu tesouro, aí estará seu coração[302]”. Pois ao longo do tempo o intelecto humano, em seu desejo, é atraído pelo hábito, seja para as coisas terrestres, seja para as paixões, seja para os bens eternos e celestiais. “Ao se inveterar, o hábito recebe a força de uma natureza”, diz o grande Basílio. É sobretudo quando somos fracos que devemos trazer atentamente o testemunho da consciência a fim de libertar a própria alma de toda condenação; senão, ao fim da vida, o arrependimento será vão e a lamentação eterna. Quem não é capaz de sofrer por Cristo a morte sensível como ele próprio sofreu, deve ao menos ter vontade de sofrer esta morte em seu intelecto. Ele se tornará mártir em sua consciência. Ele não se submeterá aos demônios ou às vontades que lhe dão combate, mas os vencerá. Será como os santos mártires e os santos Padres que sempre trouxeram seu testemunho, uns no corpo, outros em sua inteligência. Fazendo força, domina-se o inimigo; mas se nos tornamos negligentes, por pouco que seja, se nos mantemos nas trevas, estaremos perdidos.
Brevemente, como adquirir as virtudes e se abster das paixões. Nada, disse o grande Basílio[303], entenebrece tanto a reflexão quanto a malícia. E nada ilumina tanto o intelecto quanto a leitura na hesíquia. Nada reduz tanto as penas da alma quanto o pensamento da morte. Nada ajuda tanto a avançar secretamente a alma como a vergonha de si mesma e a rejeição das próprias vontades. Nada leva mais secretamente à nossa perda quanto a presunção e a autossuficiência. Nada afasta tanto de Deus e da instrução do homem quanto os murmúrios de revolta. Nada facilita tanto o pecado quanto a confusão e o falatório. Não existe caminho mais curto para adquirir a virtude do que a solidão e o recolhimento. Nada nos leva tanto ao reconhecimento e à ação de graças como a meditação dos dons de Deus e de nossos próprios males. Nada aumenta em nós as benesses como louvar a Deus por estes dons. Nada contribui para a salvação como as tentações, ainda que não as queiramos. Nenhuma via para Cristo, para a impassibilidade e a sabedoria do Espírito, é mais curta do que a via real que afasta do excesso e das faltas. Nenhuma virtude é capaz de compreender a vontade divina como a humildade, o abandono de todo pensamento e de toda vontade própria. Nada concorre tanto para todas as obras boas como a prece pura. Nada impede de adquirir as virtudes como a distração e o fastio da reflexão, por pequenos que sejam. Quanto mais pureza temos, mais nos arriscamos a falharmos em tudo o que vemos. E quanto mais caímos nas faltas, mas penetramos nas trevas, ainda que possamos parecer puros. Mais ainda: quanto mais conhecimento temos, mais percebemos nossa ignorância. E quanto mais alguém ignora sua própria ignorância, e o quão parcial é seu conhecimento espiritual, mais ele crê conhecer. Quanto mais tormentos suportar aquele que combate, mais ele será capaz de vencer o inimigo. Quanto mais alguém se esforça para fazer algo de bom a cada dia, mais ele se sentirá devedor todos os dias de sua vida, diz são Marcos[304]. Isto equivale a dizer que o poder e a intenção da obra lhe pertencem, mas que a graça vem de Deus. Somente se tiver recebido a graça este home poderá realizar a boa obra. De que poderá ele se glorificar, senão por presunção, pensando que ele pode realizar qualquer coisa de bom ao mesmo tempo em que condena injustamente os que não puderam fazer a mesma coisa? Pois quem exige alguma coisa de seu próximo deve antes, e com mais justiça, exigi-la de si mesmo. E assim como os pecadores devem temer por terem provocado a cólera de Deus, também aqueles que, por sua fraqueza e seu pendor ao desespero, foram cobertos por sua graça, devem tremer ainda mais, por serem extremamente devedores. Se este abismo – a ignorância das Escrituras – é grande, diz santo Epifânio[305],
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maior ainda é este mal – a transgressão consciente – e maior na alma o benefício advindo da palavra ou da oração. Quando um homem sofre por causa de seu próximo deve rezar por ele, a fim de que o que lhe causa mal não seja afligido, para que sua vontade descanse enquanto está perturbado, diz são Doroteu[306, para que tenha piedade de sua alma, para que carregue seu fardo, para que deseje a sua salvação e todas as coisas boas para seu corpo e sua alma. Nisto consiste a pura ignorância do mal, que purifica a alma e a eleva para Deus. Pois os cuidados para com aquele que lhe fez mal são melhores do que todas as obras e do que todas as virtudes. Nenhuma virtude é maior ou mais perfeita do que o amor ao próximo. O sinal deste amor é de não ter nenhuma necessidade em relação a outrem, mas de por ele sofrer até a morte com alegria. Este é o mandamento do Senhor[307]. Devemos considera-lo como um dever. Pois devemos não somente amar o próximo até a morte, como também amar o sangue precioso que por nós derramou Cristo, que nos ordenou tal amor. Não seja você mesmo o objeto do seu amor, disse são Máximo[308], e assim você amará a Deus. Não se compadeça de si mesmo, e assim você amará aos seus irmãos. Pois o amor provém da esperança. E a esperança é isto: crer firmemente, com todo seu intelecto, que tudo acontecerá como se espera. A esperança nasce da fé certeira: abandonamos todo cuidado com nossa própria vida e morte, e remetemos a Deus todo cuidado, como foi dito a respeito daquele que quer descobrir a impassibilidade dos sinais, cuja fé é o fundamento. Quem possui esta fé deve sempre considerar o seguinte: assim como Deus criou todas as coisas, e junto com elas do nada criou a nós em sua extrema bondade, da mesma forma ele dirigirá de todas as maneiras a alma e o corpo para a salvação.
Como adquirir a fé verdadeira. Mas aquele que deseja adquirir a fé (que é o fundamento de todos os bens, a porta dos mistérios de Deus, a infatigável vitória sobre os inimigos, a mais necessária de todas as virtudes, o auxílio da prece e a morada de Deus na alma) deve suportar todas as provas que os inimigos, o número e a diversidade dos pensamentos o farão sofrer. Ninguém pode compreender estes pensamentos, nem dizer deles o que quer que seja, nem descobri-los, senão o diabo, o inventor da malícia. Mas o homem deve ter coragem: se ele sobrepujar com grande força as tentações que lhe chegam, se evita que seu intelecto seja entregue aos pensamentos que chegam ao seu coração, ele vencerá todas as paixões de uma vez por todas. Pois o vencedor não terá sido ele, mas Cristo que nele está pela fé. É dele que o Senhor falou quando disse: “Se vocês tiverem a fé do tamanho de um grão de cevada[309]”, etc. Mas ainda que, em sua fraqueza, o pensamento se entregue ao inimigo, que ele não tema nem se desespere, que não grave na alma o que disser o príncipe do mal. Que ele se volte pacientemente, atentamente, tanto quanto lhe for possível, para a obra das virtudes e a guarda dos mandamentos, na hesíquia e na consagração a Deus, longe de tudo o que possa pensar por si mesmo, a fim de que o inimigo se retire desencorajado por haver tramado dia e noite com toda imaginação e mentiras e não ter conseguido ocupa-lo com os divertimentos, as formas e todos os pensamentos nos quais ele aparentemente se oculta, mas na realidade pratica a comédia da enganação. Aquele que trabalha nos mandamentos de Cristo experimenta assim a fraqueza do inimigo. Já nenhum dos seus truques o perturba. Ele faz com alegria e sem que nada o impeça tudo que quer, tudo o que deseja diante de Deus, fortificado pela fé e ajudado por Deus em quem ele crê, como o próprio Senhor disse: “Tudo é possível àquele que crê[310]”. Porque já não é ele quem combate o inimigo, mas Deus que por ele vela na fé. O profeta disse: “Faça do Altíssimo seu refúgio[311]”, etc. Este homem já não se preocupa com nada. Ele sabe que “o cavalo está pronto para o combate, mas que é junto a Deus que está sua
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salvação[312]”, como disse Salomão. Pela salvação ele ousa tudo, como disse santo Isaac: “Adquira a fé, a fim de vencer os inimigos[313]”. Pois este homem não leva a vida que quer, mas é conduzido pela vontade de Deus como um animal. Como diz o Profeta: “Eu era como um animal na sua presença, mas estou sempre com você[314]”. Se você quiser me dar o repouso por meio do conhecimento, eu não recusarei. Se mais uma vez, pela humildade, você permitir que eu sofra tentações, estarei com você da mesma maneira. Nada posso fazer por mim mesmo. Sem você eu não teria saído do nada, não poderia nem viver nem ser salvo. Assim, faça de sua criatura o que quiser. Eu creio que na sua bondade você me cumulou de benesses, mesmo que para meu benefício eu não as conheça. Mas eu não sou digno de conhecê-las, nem procuro aprendê-las a fim de estar em repouso. Talvez isto não me sirva de nada. Tampouco ouso pedir que cesse o combate, mesmo sendo fraco e sofrendo por tudo. Porque eu não sei o que é bom para mim, mas você, você sabe tudo[315]. Faça-se como você quiser. Apenas não perca eu o objetivo, se algo suceder. Mas, quer eu vigie quer não, salve-me, se for de sua vontade. Eu nada tenho de meu, estou diante de você como uma coisa sem alma. Entrego minha alma em suas mãos puras[316], no século presente e no século futuro. A você, que tudo pode, que conhece tudo, que por nós deseja toda a bondade, que quer sempre a nossa salvação. Isto é para nós evidente, por todas as benesses que você nos concedeu e que nos concede sempre pela graça, e por tudo o que vemos ou não vemos, por tudo o que sabemos ou não sabemos, e por causa desta compaixão por nós, que ultrapassa o intelecto, Filho e Verbo de Deus. Mas quem sou eu para ousar apelar a você que conhece nossos corações? Só falo para que eu mesmo aprenda que eu me refugio em você, porto da minha salvação, e para que o saibam meus inimigos. Porque o que sei, sei por sua graça, porque você é meu Deus[317], e não porque ouso falar-lhe. Mas eu queria ser em sua presença não mais do que um intelecto vazio, surdo e mudo. Não sou eu, mas sua graça que coloca tudo em movimento. Eu sei que em mim não existe nada de bom, que estou sempre cheio de vícios. Mas por causa deles, em minha condição servil, eu me prosterno diante de você. Pois você me permitiu arrepender-me. Eu sou seu servo, o filho da sua serva[318]. Mas, Senhor Jesus Cristo meu Deus, não permita que eu faça, diga ou pense aquilo que você não quer. Já bastam minhas inúmeras faltas passadas. Segundo a sua vontade, tenha piedade de mim porque eu pequei. Segundo seu conhecimento, tenha piedade de mim. Eu acredito que você ouve minha pobre voz. Ajudeme em minha descrença[319], você que me concedeu ser, e ser cristão. “É para mim uma grande coisa, disse João Carpatos, poder ser chamado de monge e de cristão”. Você mesmo, Senhor, disse a um dos seus servos: “Para você é uma grande coisa que em você seja invocado meu nome”. Isto é para mim melhor do que todos os reinos da terra e do céu. Que eu possa sempre invocar seu dulcíssimo nome: “Mestre cheio de misericórdia, eu lhe dou graças”, etc., como está escrito. Assim como ao homem ativo são necessárias outras ordens de leituras, outras palavras, outras palavras, outras orações, também esta fé é diferente da primeira, a que engendra a hesíquia. “Uma é a fé que procede daquilo que ouvimos, outra a que provém da contemplação”, disse santo Isaac; ora, existe uma certeza maior naquilo que vemos do que naquilo que ouvimos dizer[320]. Com efeito, é do conhecimento natural que nasce a fé primeira, a fé comum aos ortodoxos, de onde provém a consagração a Deus de que já falamos, bem como o jejum, a vigília, a leitura, a salmodia, a prece, as perguntas feitas aos que têm experiência. Destas coisas nascem as virtudes da alma, a guarda e a constância nos mandamentos e na conduta. E estas possibilitam a grande fé, a esperança e o amor perfeito que, como vimos, arrebata durante a oração o intelecto para Deus, quando nos unimos a ele por seu intermédio. É o que disse são Nilo. As palavras da prece foram escritas de uma vez por todas, a fim de que aquele que quiser manter seu intelecto imóvel diante da santa Trindade, a Origem da vida, possa sempre orar a mesma prece, com o pensamento de estar sendo visto, mesmo que, dentre as coisas inteligíveis e compreensíveis
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de toda a criação, seja impossível para ele ver o que não possui nem figura, nem forma, nem cor, nem confusão, nem distração, nem movimento, nem matéria. Mas numa paz profunda, numa calma perfeita, ele conversa com Deus, não conservando em si senão sua santa memória, até alcançar o arrebatamento do intelecto, quando lhe for concedido pronunciar como se deve a prece do Senhor Nosso Pai, como disseram são Filemon[321], santa Irene, os santos apóstolos, os santos mártires e os santos monges. Fora disto, tudo é derrisório e provém da presunção. Não podemos definir nem limitar o divino. O intelecto que entra em si mesmo deve ser assim. A graça permite que seja visitado pelo Espírito Santo. “Não é com a visão clara, mas na fé, que marchamos[322]”, disse o Apóstolo. É por isso que devemos perseverar na ascese, para que, com o tempo, o intelecto, em seu desejo, seja pelo hábito atraído pelas coisas divinas. Pois se o intelecto não encontrar com aquilo que é outro, com o que é maior do que as coisas sensíveis, ele não apontará para aí seu desejo e abandonará aquilo a que se habituou por tanto tempo. Os impassíveis que amam o homem são pouco perturbados pelas coisas da vida, pois sabem se conduzir. O mesmo acontece com os que receberam os grandes carismas, pois é a Deus que eles atribuem suas boas ações.
Que a hesíquia é útil sobretudo aos que são inclinados às paixões. A hesíquia, a fuga das coisas e dos homens, é útil a todos, mas sobretudo àqueles que são inclinados às paixões, e aos fracos. Pois apenas pela ação exterior o intelecto não consegue se tornar impassível. Ele deve ter numerosas contemplações espirituais. Ninguém pode evitar ser levado ao mal pela distração se não adquirir primeiro a fuga que leva à impassibilidade. O cuidado com a vida e a confusão são normalmente tão nocivas aos perfeitos quanto aos impassíveis. O trabalho do homem, disse João Crisóstomo, de nada serve para a impulsão que vem do alto. Mas o impulso do alto não vem sobre aquele que não pede. Nós sempre precisamos dos dois, do divino e do humano, da ação e do conhecimento, do temor e da esperança, do luto e da consolação, da apreensão e da humildade, do discernimento e do amor. Pois, diz ele, todas as coisas da vida são duplas: dia e noite, luz e trevas, saúde e doença, virtude e vício, tranquilidade e dificuldade, vida e morte. Se somos fracos, por meio de umas amamos a Deus e por meio de outras fugimos do pecado por temor às tentações. Mas se somos fortes, é por todas estas coisas que amamos a Deus nosso Pai, sabendo que tudo é bom [323] e que a tudo Deus dispõe para nosso bem. Podemos nos abster do que é agradável e buscar o que é difícil, sabendo que, por um lado, serão regenerados os corpos para glória do Criador e que, por outro, as almas serão ajudadas em sua salvação pela inefável compaixão de Deus. Com efeito, podemos classificar os homens em três estados: os escravos, os mercenários e os filhos. Os escravos não amam o bem, mas se abstêm do mal por temor dos castigos. O que eles fazem é um bem, diz são Doroteu[324], mas um bem que não agrada. Os mercenários amam o bem e odeiam o mal, mas na esperança de um salário. Os filhos, os perfeitos, não se abstêm do mal por temor dos castigos, mas porque o odeiam com todas as suas forças. Também não fazem o bem por um salário, mas porque o consideram um dever. Eles amam a impassibilidade por meio da qual eles imitam a Deus, fazem dela sua morada e se abstêm do mal, mesmo que não tenham diante de si nenhuma ameaça. Porque se alguém não se torna impassível, o Santo Deus não lhe enviará o Espírito Santo, de medo que o hábito não o atire novamente às paixões. Pois então ele estaria sob a influência do Espírito Santo que habitasse nele, e sua condenação seria bem maior. Mas quando, uma vez adquirida a virtude, ele cessa toda relação com os inimigos e já não é atraído pelo costume das paixões, então ele pode acolher a graça e já não será condenado ao receber o carisma. Diz João Clímaco que Deus não nos revela sua vontade para que não sejamos previamente condenados por desobedece-lo sabendo[325], mesmo que, como todas as crianças, ignoremos sua infinita
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misericórdia para conosco os ingratos. Pois, diz ele, quem quiser aprender a vontade divina deve morrer para o mundo todo e para suas próprias vontades também[326]. A partir daí não devemos fazer nada nem colocar nada como bom, se for ambíguo. Sem isto não se pode viver nem ser salvo. Devemos interrogar os que têm experiência. Por meio da fé constante e da oração podemos receber a total certeza que precede a impassibilidade perfeita que torna o intelecto invencível e lhe concede a vitória em toda boa obra. Assim, o combate pode ser intenso, mas o homem é salvo. Pois “meu poder se cumpre na fraqueza[327]”, diz o Senhor. E o Apóstolo: “Quando sou fraco, aí é que sou forte[328]”. Pois os demônios, disse João Clímaco, têm muitas maneiras de partir. Eles podem nos deixar para nos estender uma armadilha, nos entregar à presunção, à autossuficiência ou a algum outro mal. Basta-lhes, naquele que se gaba de si, ocupar o lugar de alguma das outras paixões[329]. Os primeiros Padres, diz o Gerontikon, guardaram os mandamentos. Depois deles, os outros os escreveram. Mas nós atiramos os escritos pela janela[330]. E, se ainda temos vontade de ler, não buscamos nem compreender, nem fazer o que está dito. Ou bem lemos de passagem, ou pensamos estar fazendo uma grande coisa e caímos no orgulho. Ignoramos que, se não trabalhamos, cavamos nossa própria condenação, como diz João Crisóstomo. Também o Senhor diz: “Aquele que conhece a vontade do seu Senhor[331]”, etc. Assim é que a leitura e o conhecimento são bons, mas apenas se levarem a uma maior humildade. Do mesmo modo o conselho, quando não perturba a vida daquele que ensina. Como disse Gregório o Teólogo: “Não procure justificar sua confiança naquele que lhe ensina ou que prega a você [332]”. É o que diz o Senhor: “Façam o que lhes ordenarem os sacerdotes[333”, etc. Nada temos a temer das obras daquele que nos ensina, se o interrogarmos. Mas elas não nos renderão serviço se não fizermos nada. Pois cada qual dará conta de si próprio. Quem ensina prestará conta de suas palavras; quem é ensinado prestará contas de sua docilidade em coloca-las em prática. Fora disto, tudo o mais é contra a natureza e digno de condenação. Como disse são Eustrates, Deus é bom e justo, e é por bondade que ele nos concede todo o bem, quando somos reconhecidos e lhe damos graças pelo caminho justo. Mas se não manifestarmos nenhum reconhecimento, cairemos da bondade no julgamento de Deus. Assim é que a bondade e a justiça de Deus são em nós naturalmente a fonte de todo bem. Mas se delas abusarmos, eles nos conduzirão ao castigo eterno.
Que o verdadeiro arrependimento é um grande bem. Entretanto, se quisermos, se nos arrependermos, sempre poderemos retomar o caminho. “Se você caiu, levante-se. Se você caiu de novo, levante-se de novo[334]”. Jamais desespere de sua salvação, aconteça o que acontecer. Jamais se entregue voluntariamente ao inimigo. Esta paciência e a vergonha de si próprio bastam para a salvação. “Nós próprios éramos antes insensatos e estávamos submetidos às nossas concupiscências[335]”, etc. Portanto, não desespere por ignorar o socorro de Deus, porque ele pode fazer o que quiser. Espere nele e, de um modo ou de outro, ele agirá. Seja por meio de tentações, ou por algum outro meio, ele irá preparar a sua correção. Talvez ele receba como obras suas sua paciência e sua humildade. Talvez, em seu amor pelo homem, através da esperança, ele abrirá um caminho que você desconhece, para salvar sua alma cativa. Apenas não negligencie Aquele que pode curá-lo. Pois ao se recusar a conhecer o objetivo oculto de Deus você sofrerá a dupla morte. Podemos dizer agora que da ação o mesmo que dissemos do conhecimento. Toda ação do corpo e da alma está cercado por seis armadilhas: à direita e à esquerda, o esgotamento depressivo e a preguiça; acima e
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abaixo, a autossuficiência e o desespero; no interior e no exterior, a inércia e a temeridade. É o que diz Gregório o Teólogo: mesmo que o nome seja semelhante, a coragem está longe do excesso de temeridade[336]. No meio das seis armadilhas, a obra comedida se faz na humildade e na paciência. É admirável o modo como o intelecto humano transforma em si mesmo todos os seres ao seu gosto, ainda que eles sejam imutáveis e permaneçam sendo o que são. É por isso que nem todos temos o mesmo objetivo diante dos seres. Ao contrário, cada qual se serve das coisas como quer, seja para o bem, seja para o mal, das coisas sensíveis por meio do trabalho, das coisas inteligíveis por intermédio da palavra e do raciocínio. Todos os homens, me parece, veem sua vida de quatro maneiras, que correspondem aos estados dos quais fala Gregório o Teólogo. Alguns estão tão bem aqui quanto no século futuro: são todos os santos, os que se tornaram impassíveis. Outros só estão bem aqui: estes não são dignos das benesses que recebem em suas almas e seus corpos, pois não são reconhecidos ao seu Benfeitor, como o rico[337] e outros assim. Outros ainda só são atormentados aqui: eles sofrem de uma longa enfermidade, como o paralítico, ou se deixam atormentar por seus próprios pensamentos. Outros, enfim, são atormentados aqui e o serão no futuro: estes são tentados por suas próprias vontades, como Judas e assemelhados. Diante das coisas sensíveis, existem também quatro objetivos. Uns odeiam as obras de Deus, como os demônios: sua vontade é má e eles fazem o mal. Outros amam o que é bom, mas permanecem inclinados às paixões, como animais irracionais: eles não cuidam da contemplação natural, nem da ação de graças. Outros, como os homens, se servem naturalmente de tudo com temperança no conhecimento espiritual e na ação de graças. Outros, enfim, como os anjos, contemplam tudo sobrenaturalmente com vistas à glória do Criador: eles não se servem de nada, senão, segundo o Apóstolo, daquilo que é necessário para viver[338].
Das benesses universais e particulares de Deus. É por estas razões que nós homens devemos todos sempre dar graças a Deus pelas benesses universais e particulares que ele desenvolve em nossas almas e em nossos corpos. As benesses universais são os quatro elementos, tudo o que provêm deles, todas as maravilhas de Deus, todas as coisas extraordinárias reportadas nas divinas Escrituras. As benesses particulares são aquelas que Deus concedeu a cada homem: a riqueza com vistas à compaixão; a pobreza com vistas à paciência reconhecida; o poder com vista ao julgamento e à formação da virtude; a submissão e a dependência com vistas à salvação efetiva da alma; a saúde com vistas ao socorro dos necessitados e ao trabalho diante de Deus; a enfermidade com vistas à coroa da paciência; o conhecimento e o poder com vistas à aquisição das virtudes; a fraqueza e a ignorância com vistas à submissão na hesíquia, na humildade e na fuga das coisas; a privação involuntária dedicada à salvação voluntária, ao socorro dos que não podem alcançar a despossessão perfeita ou mesmo a compaixão; a calma e a serenidade com vistas a assumir sobre si o combate de outras almas; a tentação e as dificuldades chamadas a salvar – muito contra a sua vontade – aqueles que não conseguem romper com suas vontades próprias, e também para levar à perfeição os que as podem suportar com alegria. Todas essas coisas, embora se oponham umas às outras, não deixam de ser boas desde que saibamos como nos servir delas. Entretanto, se as usarmos mal, elas deixarão de ser boas e se tornarão nocivas à alma e ao corpo. Mas a melhor de todas as coisas é a paciência nas aflições. Quem recebeu este grande carisma deve dar graças a Deus, pois seu benefício é imenso. Este imita a Cristo, imita os santos apóstolos, os mártires e os santos monges. Renunciando ao que é agradável voluntariamente, buscando antes o que é difícil ao
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recusar as vontades próprias e os pensamentos que não vêm de Deus, a fim de só pensar no que agrada a Deus, ele recebe uma grande força e um grande conhecimento. Aqueles a quem foi concedido buscar o bom uso das coisas deve agradecer humildemente a Deus por terem sido libertados por sua graça do mau uso e da transgressão dos mandamentos. Mas nós, que ainda estamos inclinados às paixões e abusamos destas coisas agindo contra a natureza devemos tremer, dar graças humildemente ao Benfeitor com todo o reconhecimento e admirar sua paciência inefável. Pois desobedecemos aos seus mandamentos, abusamos das coisas e nos desviamos dos seus dons, porque ele suporta nossa ingratidão. Ele não nos abandona, ele nos cumula de bens. Ele aguarda nosso retorno e nosso arrependimento até o último suspiro. Todos os homens devem lhe dar graças, conforme foi dito: “Deem graças em todo tempo e lugar[339]”. A esta palavra do Apóstolo está ligada outra, quando ele diz: “Orem sem cessar[340]”. Vale dizer: mantenham a memória de Deus em todo tempo, todo lugar, toda coisa. O que quer que façamos, devemos guardar a memória d’Aquele que criou tudo o que existe diante de nossos olhos. Ao ver a luz, não se esqueça d’Aquele que lha deu. Ao ver o céu e a terra, o mar e todos os seres: admire e glorifique o Criador. Quando você coloca suas vestes, reconheça de quem você as recebeu e cante Àquele que é a providência de sua vida. Numa palavra, que todo movimento o leve a glorificar a Deus: esta é a prece contínua. A partir daí, a alma estará sempre alegre, diz o Apóstolo[341]. Pois a lembrança de Deus a alegra, diz são Doroteu, citando o testemunho de Davi: “Eu me lembrei de Deus e exultei[342]”.
Que Deus tudo fez para o nosso bem. Pois Deus fez todos os seres para o nosso bem. Os anjos nos guardam e nos ensinam. Os demônios nos tentam para nos forçar à humildade, à fuga para Deus. Pois é por estas coisas que somos salvos: o temor das tentações nos liberta da autossuficiência e da irresponsabilidade. E mais: as coisas agradáveis deste mundo – a saúde, a prosperidade, a força, a alegria, a luz, o conhecimento, a riqueza, o sucesso em tudo, o estado aprazível, o conforto, a tranquilidade, a fruição das honrarias, o poder, a abundância, todas as coisas que nesta vida são consideradas como bens – nós por elas nos erguemos em ação de graças e de reconhecimento ao nosso Benfeitor, somos levados a amá-lo e a fazer tanto bem quanto pudermos, pois – pensamos – temos o dever natural de responder aos dons com boas obras, mesmo que não nos seja possível, pois nossa dívida é muito maior do que isto. Quanto àquilo que consideramos como coisas sofridas – a doença, as dificuldades, a fadiga, a fraqueza, a tristeza involuntária, as trevas, a ignorância, a miséria, as infelicidades em geral, o medo das privações, a desonra, o esgotamento, as necessidades e tudo o que é contrário às coisas agradáveis – é por meio delas que alcançamos a paciência, a humildade e a boa esperança que, no século futuro como no presente, nos trazem grandes consolações. Em sua inefável bondade, Deus nos providenciou maravilhosamente todos os bens. Quem os quiser conhecer e possuir deve se esforçar para adquirir as virtudes, a fim de receber em ação de graças tudo de que falamos, tanto as coisas boas como aquelas que nos parecem contrárias, e a fim de que nada o perturbe. Por outro lado, quando os demônios, tentando alçá-lo acima de si mesmo, metem-lhe na cabeça um pensamento orgulhoso, ele se lembra de que eles disseram as coisas mais infames, derruba este pensamento e se refugia na humildade. E quando eles lhe põem na cabeça uma coisa infamante, ele se lembra do pensamento orgulhoso e a derruba também. Assim ele derruba um pelo outro, o orgulho e a infâmia, por obra da graça através de sua memória, a fim de jamais cair no desespero por causa das coisas infames, nem no orgulho por causa da pretensão. Quando ele eleva seu intelecto ele foge para a
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humildade. E quando os inimigos o rebaixam diante de Deus, ele se ergue pela esperança, a fim de jamais cair cedendo à confusão, a fim de jamais desesperar de medo, até seu último suspiro. Esta é a grande obra do monge, como diz o Gerontikon. Quando os adversários atacam a humildade, ele apela para a esperança. Quando eles atacam a esperança, ele corre para a humildade. Pois ele sabe que nada é absolutamente imutável nesta vida. “Quem perseverar até o final será salvo [343]”. Mas quem quer que as coisas aconteçam conforme seus próprios desejos não sabe para onde vai. Como um cego sacudido por todos os ventos, tudo o que lhe acontece o balança inteiro. Como um escravo, ele teme as tormentas. Ele é arrastado cativo pela presunção. Numa alegria irracional, ele crê possuir o que jamais viu e acredita saber de onde é. Quando ele diz, quando ele afirma saber, sua cegueira só aumenta, porque esta advém do fato de que ele não se envergonha de si, de que ele não acusa a si próprio. A cegueira se chama autossuficiência e perdição oculta, como disse são Macário em seus capítulos[344] a propósito do monge que se perdeu depois de ter visto a Jerusalém celeste ao rezar com seus irmãos, no arrebatamento do intelecto. Pois ele só pensava no que havia lhe acontecido, e não que sua dívida era cada vez maior. Do mesmo modo como os homens profundamente passionais não veem, sob a bruma das paixões, o que é evidente para os demais, também os impassíveis conhecem o que a maioria ignora, graças à pureza de seu intelecto.
Que a palavra de Deus não é falatório. Pois a palavra de Deus, diz são Máximo, não é falatório[345]. Enquanto nós homens falamos tantas coisas, existe sempre uma palavra de Deus que nunca cumprimos. Deus disse: “Você amará seu Deus com toda a sua alma[346]”, etc. Quanta coisa não disseram os Padres, quantas não escreveram eles, quantas não dizem e escrevem ainda os homens, sem que se tenha cumprido esta única palavra! Com toda sua alma, diz são Basílio[347], significa que não se pode amar nada ao mesmo tempo em que se ama a Deus. Pois se alguém ama sua própria alma, já não ama a Deus com toda sua alma, mas apenas com a metade. Se amamos a nós mesmos, se amamos tantas e inumeráveis coisas, como poderemos amar a Deus, como ousaremos afirma-lo? O mesmo acontece com o amor ao próximo. Se não rejeitarmos a vida presente e mesmo a futura pelo próximo, como o fizeram Moisés e o Apóstolo, como podemos dizer que o amamos? Pois já foi dito a Deus, falando do povo: “Perdoe suas faltas se assim o quiser. Senão, apague a mim também do Livro da vida, que você escreveu[348]”. E o Apóstolo disse: “Eu queria ser anátema, separado de Cristo[349]”, etc. Ele pedia sua própria perdição para que outros fossem salvos, aqueles mesmos – os israelitas – que procuravam matá-lo. Assim são as almas dos santos: eles amam a seus inimigos mais do que a si próprios. Neste século como no século futuro, em tudo eles preferem o próximo, mesmo que suas intenções sejam más, mesmo que seja seu pior inimigo. Eles nada pedem aos que amam, e, como se eles próprio recebessem, eles se regozijam em dar a outros aquilo que possuem, a fim de agradar ao Benfeitor e de imitar na medida do possível seu amor pelo homem. Pois ele é bom inclusive para os ingratos e os pecadores[350]. Mas quanto mais tais carismas sejam concedidos a alguém, mais este alguém deve considerar ser devedor a Deus que o elevou da terra e tornou o pó digno de imitar em parte a seu Criador e seu Deus. Pois suportar com alegria as injustiças, não levar o mal em conta, fazer o bem aos inimigos, oferecer sua alma pelo próximo, estas atitudes são dons de Deus. Os que as assumem as recebem ele, por sua atenção em trabalhar e guardar[351], como foi dito a Adão, a fim de que os dons neles permaneçam, através de seu reconhecimento para com o Benfeitor, Pois não temos em nós nenhum bem que seja nosso: todos os bens nos são dados por Deus por meio da graça. Do nada eles chegam ao ser. O que você possui que não tenha recebido, diz o Apóstolo? Vale dizer: que possui você que não lhe tenha sido dado gratuitamente por
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Deus? E se você recebeu, por que você se glorifica como se não tivesse recebido[352], como se fizesse tudo por si próprio? Isto é impossível. O Senhor disse: “Sem mim, vocês nada podem[353]”.
Que sem humildade é impossível ser salvo. Eu não conheço, em toda a cegueira causada pelas paixões, maior loucura do que se considerar igual aos anjos ou até superior a eles. Ter tamanha presunção de si próprio, sem a humildade que faltou a Lúcifer, equivale a se cobrir de trevas, fora qualquer outro pecado. Quanto não deverá sofrer aquele que não tem humildade, o mortal e pó, para não dizer o pecador? Porque ele é cego, se pensar não ser pecador. Diz João Crisóstomo que é óbvio que o homem perfeito se tornará semelhante aos anjos, como afirma o Senhor, mas somente após a ressurreição dos mortos, e não no século presente. E mesmo nesta ocasião eles não serão anjos, mas semelhantes aos anjos[354]. Pois os homens não poderão deixar sua natureza própria, mas a graça pode torná-los imutáveis e livres de toda necessidade como os anjos. Eles se tornam livres em tudo o que fazem. Sua alegria, seu amor a Deus, “aquilo que o olho não vê[355]”, etc., se tornam infinitos. É impossível nos tornarmos perfeitos aqui, mas recebemos a perfeição como uma garantia dos bens prometidos. Pois mesmo os que são privados de carismas devem ser humildes como os pobres, assim como aqueles que os possuem devem ter a humildade de reconhecer que os receberam de Deus, a fim de não serem condenados por ingratidão. Assim como os ricos devem reconhecer que devem dar graças a Deus pelos seus dons, ainda mais devem aqueles que são ricos em virtudes. Enfim, assim como os pobres devem dar graças a Deus e amar profundamente aos que os auxiliam pelo bem que deles recebem, da mesma maneira, e muito mais, devem os ricos dar graças por poder, por meio da compaixão, serem salvos pela providência de Deus no século presente e no século futuro. Pois, fora da pobreza, não há salvação para sua alma e é impossível escapar às tentações da riqueza. Os discípulos devem amar a seus mestres, assim como estes devem amar a seus discípulos. Uns e outros devem dar graças a Deus que a todos dá o conhecimento e todos os outros bens. Todos, em especial os que podem reavivar em si o batismo divino pelo arrependimento sem o qual ninguém pode ser salvo, devemos todos agradecer sempre por seus dons. Pois o Senhor disse: “Porque me chamam ‘Senhor, Senhor” se não fazem o que digo[356]?”. Diante destas palavras seria insensato crer que podemos ser irrepreensíveis sem invocar o Senhor. Na verdade, estaremos condenados. Como diz o Senhor: “Se isto acontece com o lenho verde, quanto mais não acontecerá ao seco[357]?”. E, “se com tanta dificuldade se salva o justo, diz Salomão, que dizer do iníquo e do pecador[358]?”. Mas quando nos vemos encerrados de todos os lados pelos mandamentos divinos, também não devemos nos desesperar. Pois, se a condenação seria ainda pior do que a do assassino, devemos entretanto nos maravilhar de como as divinas Escrituras e os mandamentos conduzem o homem à perfeição, aqui e além, para impedi-lo de escapar ao bem, se conformando com o pior. Pois, ao se conformar com o pior e ver diante de si toda a infelicidade, ele se voltará para o bem. Deus fez esta coisa admirável em seu amor pelo homem. Desta maneira, todo homem descobre a perfeição, de certo modo e mesmo que não o queira, por ter este poder em si mesmo. Os que são gratos conduzem seu combate maravilhados com as benesses que recebem, como aqueles de quem fala são Efrém, que atravessaram o rio enquanto dormiam. É por isso, diz santo Isaac, que Deus multiplicou as tentações, para que, temendo-as, fujamos para ele[359]. Quem não compreendeu isto, mas que por amor ao prazer usa mal este dom, fere a si mesmo e está perdido. Recebeu armas para lutar contra os inimigos e delas se serviu para sua própria imolação. Pois, disse são Basílio, como Deus é bom e quer o bem de todos, o diabo, que é mau, deseja atrair a todos para a sua perversidade, ainda que não consiga. Assim como os pai que amam a seus filhos os ameaçam quando
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eles se perdem e os fazem voltar à força de afetos, também Deus concede as tentações como uma vara que livra da maledicência do diabo aqueles que são dignos. “Aquele que deixa de lado o bastão odeia seu filho; quem ama seu filho repreende-o[360]”. Mas para nós, que amamos o prazer e amamos a nós mesmos, o perigo vem de fora, embora Deus conduza à salvação aqueles a quem ama, por intermédio das tentações que concede a eles. Entre a queda nas tentações pelo orgulho e o afastamento de Deus como filhos castigados mas não condenados à morte devemos escolher a pena mais leve. Pois é melhor buscar o refúgio em Deus pela paciência nas tribulações do que aceitar a queda por medo dos perigos, do que cair nas mãos do diabo, do que ser atraído por ele para a queda eterna e para a danação. Um dos dois caminhos está sempre diante de nós: ou seguimos a primeira durante algum tempo, ou seguimos a segunda por toda a eternidade. Mas nenhum dos dois perigos ameaça os justos, pois eles amam com alegria aquilo que a nós parece difícil. Para eles as tentações são ocasiões de ganho. Eles as abraçam ao invés de tentar matá-las, pois quem recebe uma flechada e não é ferido por ela não morre. Mas quem tem uma ferida mortal está perdido. Em quê prejudicou a Jó sua ferida? Não foi ele coroado[361]? Alguma vez estas coisas perturbaram os apóstolos e os mártires? Como se diz, eles se regozijaram por lhes ter sido concedido ser desonrados em nome do Senhor[362]. Quanto mais combate o vitorioso, mais coroado ele se torna e maior é a alegria que recebe. Quando ouve o som da trombeta que chama para a imolação, este homem não teme: ao contrário, se alegra por que antevê que logo receberá a coroa. Nada traz com tanta facilidade a vitória como a audácia e a fé firme. E nada leva tanto à derrota quanto o amor próprio e a preguiça dada pela falta de fé. Nada traz tanta coragem como a atenção perseverante e a experiência das coisas. Nada dá tanta sutileza ao pensamento quanto a leitura na hesíquia. E nada engendra tanto o esquecimento como a ociosidade. Não há caminho mais curto para a remissão dos pecados do que resistir ao mal. Não há progresso mais rápido para a alma do que a rejeição das vontades e dos pensamentos próprios. Nada existe de maior do que se atirar aos pés de Deus noite e dia e pedir que em tudo seja feita sua vontade. Nada existe de pior do que amar o arbitrário, a flutuação da alma ou do corpo. Pois a nós que amamos o bem, mas que ainda estamos temerosos dos castigos e das tentações, importa não sermos livres para fazermos o que bem entendermos, mas sim nos protegermos, fugirmos das coisas, a fim de que, nos abstendo de tudo que nos possa prejudicar em nossa fraqueza, possamos combater os pensamentos. Os primeiros dentre os monges, os impassíveis, combatem os primeiros dentre os espíritos demoníacos, por que já venceram as paixões infames. Mas os monges submetidos a um Mestre combatem os espíritos demoníacos segundos. Pois como dizem são Macário e o abade Kronios, dentre os demônios os primeiros dirigem, os segundo seguem. Os demônios que dirigem são a vanglória, a presunção e tudo o que a elas se assemelha. Os demônios que seguem são a gula, a prostituição e os vícios desta ordem. Os que atingiram o amor perfeito[363] têm autoridade por que fazem o bem sem que sejam obrigados a isto. Eles se regozijam por fazer o bem e por jamais abandoná-lo por si mesmos. Quando lhes surge um obstáculo sem que o queiram, eles se sentem tiranizados. Atraídos pelo eros divino, eles logo fogem para a hesíquia e o trabalho, como para uma fruição e um costume que lhes são próprios. É destes homens que falam os Padres, quando dizem: consagre sucessivamente um pouco de tempo a tudo, à prece, à leitura, ao estudo, ao trabalho, à guarda do intelecto, e passe assim os dias. Os impassíveis dizem isto para dominar a si próprios e para que nenhuma vontade contrária os capture. Quando eles querem, eles controlam seu intelecto e dirigem seus corpos como servidores. Quanto a nós, devemos nos manter sob a lei e a regra, a fim de que, mesmo não querendo façamos o bem, como que forçados pelo dever malgrado nossa vontade. Pois ainda amamos as paixões e os prazeres, o conforto do corpo e as vontades próprias. E o inimigo leva nossa inteligência para onde quer. A partir daí, o corpo, atirado a seus impulsos desordenados, faz o que quer, sem razão. Isto não é senão natural. Onde falta a atenção do intelecto tudo é feito sem razão, contra a natureza, e não à maneira dos verdadeiros
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israelitas, aqueles de quem disse o Senhor, referindo-se a Simão Cananita, o zelote: “Eis aqui um verdadeiro israelita que não tem mácula[364]”. Ele falava da virtude do homem. Pois Natanael significa “o zelo por Deus”. Ele se chamava Simão, e este era seu nome; Cananita, por que era de Cana na Galileia; Natanael, devido à sua virtude; e israelita, por que era uma inteligência que via a Deus sem qualquer truque. “A divina Escritura, diz são Basílio, costuma dar ao homem o nome de sua virtude, mais do que o de seu nascimento”. Assim foi com os príncipes dos apóstolos, Pedro e Paulo. Um se chamava Simão, e o Senhor o chamou de Pedro, por causa da firmeza do homem. O outro se chamava Saulo – zalê, a tempestade – e seu nome foi com toda justiça mudado para Paulo, que quer dizer “repouso”, anapaula[365]. E com toda razão. Pois se antes ele perturbara tanto os fiéis, depois, na mesma medida, por suas palavras e obras, repousou as almas de todos, como disse dele João Crisóstomo. Veja a piedade do Apóstolo. Ele se lembrava de Deus, mas não ensinou enquanto não lhe rendeu as graças devidas, enquanto não o levou a isto a oração[366]. Com isto ele mostrou que seu conhecimento e sua força vinham dele. Esta é a ordem: o ensinamento chama a oração. Também o admirável Lucas deixou inacabados os Atos dos Apóstolos, não por negligência ou por qualquer outra necessidade, mas por que partiu para Deus. Nós, ao contrário, quando deixamos alguma coisa ou ação inacabada, é sempre por negligência ou incapacidade, pois não fazemos atentamente a obra de Deus, não a amamos como nossa obra fundamental, mas a desprezamos como algo secundário e insuportável. Com isto, não avançamos, ao contrário, recuamos na maior parte das vezes, como aqueles que tornaram atrás[367], e já não seguimos a Jesus. No entanto, disse João Crisóstomo, a palavra não era dura como eles pensavam. O que Jesus lhes dissera então dizia respeito à doutrina[368]. Mas onde não existe resolução nem fervor, as coisas mais fáceis parecem difíceis, e reciprocamente.
Da edificação da alma por meio das virtudes Assim como a terra necessita da chuva, diz o grande Basílio, todo homem tem, em primeiro lugar, necessidade de paciência[369], a fim de colocar sobre ela o fundamento de que fala o Apóstolo, vale dizer, a fé[370]. Então, como um construtor experiente, o discernimento edifica pouco a pouco a morada da alma. Ele adiciona continuamente a argamassa que obtém do barro da humildade, para unir as pedras umas às outras, ou seja, as virtudes umas às outras, até colocar o teto, que é o amor perfeito. Então o Mestre da casa pode entrar. E ele permanece na alma, desde que esta tenha colocado bons guardas às portas, sempre armados com pensamentos luminosos e obras divinas capazes de proteger o repouso do Rei. É desaconselhável que a guarda seja feita por uma mulher ocupada com seus trabalhos manuais, como disse são Nilo ao interpretar a antiga história[371]. É por isso, disse ele, que o patriarca Abrahão não entregou a guarda a nenhuma mulher, mas sim ao pensamento viril, duro e armado, dentre outros, com o glaivo do Espírito, que é a palavra de Deus[372], como entendeu o Apóstolo, a fim de destruir e derrubar os assaltantes. Pois o guarda não pode dormir. Ereto, ele destrói os pensamentos estrangeiros, opondo a eles a obra que os combate e a palavra que os contradiz. Ele derruba a todos os que vêm ao coração contra a palavra de Deus. Ele os despreza e rejeita, para que a contemplação de Deus e os pensamentos divinos jamais faltem ao intelecto que recebeu a luz. Esta é a obra da hesíquia, diz são Nilo. Em outra passagem, fazendo uma releitura da santa Escritura, ele explica que a distração é justamente a causa da cegueira do intelecto. Se o intelecto não se mantém unido como a água de um canal, a reflexão não pode se recolher sobre si mesma para se elevar até Deus. E se não nos elevamos em nosso intelecto, se não experimentamos as coisas do alto, como poderemos desdenhar sem maldade as coisas de baixo? É com fé que devemos correr, diz o Apóstolo[373], trabalhando pacientemente para agradar a Deus. Quando chegar o tempo, aqueles que correram bem[374] poderão em parte conhecer e derrubar o inimigo. Em seguida tudo lhes será dado no século futuro, quando os espelhos – esta vida corrompível – serão
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abolidos[375]. Então o desejo da alma já não se oporá ao da alma, nem o desejo da carne ao do Espírito [376]. Então a negligência não mais trará o esquecimento, nem o esquecimento a ignorância, coisas de que a maior parte de nós sofre atualmente, por que somos obrigados a escrever para não nos esquecermos. Com efeito, muitas vezes me vem um pensamento por si só: a Escritura o colocou na memória. Na hora do combate, quando a divina Escritura dá testemunho de si, eu recebo um auxílio deste pensamento, um alívio ou uma ação de graças. Mas se eu negligencio este auxílio que ela me traz, já não o encontrarei quando tiver necessidade, pois o imenso mal causado pelo esquecimento me privará do serviço que ele poderia me prestar então. É por isso que devemos aprender as virtudes colocando-as em prática, a fim de guardar a memória do bem pelo costume, e não apenas em palavras. Pois o Reino de Deus, disse o Apóstolo, não está apenas nas palavras, mas no poder[377]. Quem busca por meio de uma obra vê a perda e o ganho que lhe acontecem realmente, diz santo Isaac[378]. Ele pode aconselhar a outros, pois ele sofreu o bastante e aprendeu com a experiência. Existem coisas que parecem boas, diz ele, mas que trazem em si, oculto, um mal incomum. E existem outras que parecem más, mas que em seu interior carregam um bem imenso. É por isso, diz ele, que nenhum homem é confiável o bastante para aconselhar aqueles que buscam. Somente aquele que recebeu de Deus o carisma do discernimento e adquiriu depois de muitos anos de ascese um intelecto clarividente e uma grande humildade, diz são Máximo, pode aconselhar os demais, não todos, mas os que os buscam por si mesmos e o interrogam livremente. Ele então compreende as coisas na ordem. Por meio da humildade, pela demanda voluntária daquele que interroga, a palavra se grava na alma de quem a ouve. Pois este recebe o calor da fé, ele vê o bom conselheiro como este Conselheiro maravilhoso de que fala o profeta Isaías, Deus forte, Mestre[379], etc., vale dizer, nosso Senhor Jesus Cristo, que disse ao que o interrogava: “Quem me estabeleceu como seu juiz para decidir suas disputas?[380]”. Ora, ele disse isto apesar de que o Pai ao Filho todo o poder do julgamento[381]. Mas com isso ele nos mostra – como em tudo – que a via da salvação passa pela santa humildade. Ela nunca constrange. Ele disse: “Se alguém quiser vir depois de mim, que renuncie a tudo e me siga[382]”. Ou seja: que este não tenha nenhum cuidado com sua própria vida, mas que faça o mesmo que eu fiz sofrendo a morte voluntária por todos, que o faça seguindo a obra e a palavra, como os apóstolos e os mártires. Caso contrário, que ele sofra a morte que escolher. Ele diz ainda ao rico: “Se você quer ser perfeito, vai, vende tudo o que tem, etc. [383]”. E o grande Basílio diz deste rico[384] que ele havia mentido ao afirmar que seguia os mandamentos. Pois se os tivesse guardado não possuiria tantas coisas, como diz em primeiro lugar a Lei: “Amar ao Senhor seu Deus com toda a sua alma[385]”. Com toda a sua alma, isto significa que quem ama a Deus não pode amar coisa alguma além, a ponto de ficar triste se tiver que renunciar a ela. A lei diz a seguir: “Amar ao próximo como a si mesmo[386]”, ou seja, a todos os homens. Mas como poderia o rico guardar este mandamento, se ele possuía apaixonadamente tão numerosas coisas, quando tantos outros têm necessidade do alimento cotidiano? Se, como fizeram Abrahão, Jó e outros justos, ele tivesse possuído essas coisas como bens de Deus, ele não teria partido entristecido[387]. João Crisóstomo disse igualmente: ele acreditou que o Senhor lhe dissera a verdade, mas ele não tinha força para fazer este gesto [388]. Com efeito, existem muitos que acreditam nas palavras da Escritura, mas sua fraqueza os impede de fazer o que ali está escrito.
Que o amor e o conselho dados humildemente são um grande bem. O Senhor deu estes conselhos e muitos outros. Também os apóstolos os deram, quando escreveram: “Nós, lhes pedimos, bem amados[389]”, façam isto ou aquilo. Mas nós, nós não aceitamos suplicar por aqueles que nos pedem conselhos. Se eles nos encontrassem humildes e cheios de atenção por eles, eles nos obedeceriam com alegria, teriam a certeza de que pregamos a palavra da Santa Escritura com muito amor e humildade. Eles buscariam a honra e o amor que receberam de nós. Eles aceitariam as dificuldades, pois, pelo amor, elas lhes pareceriam fáceis.
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Assim é que o santo apóstolo Pedro se regozijava toda vez que ouvia falar de cruz e de morte [390]. A morte para ele não era nada. O amor que ele adquirira pelo Mestre o levara a isto. Do mesmo modo, ele não tinha nenhuma preocupação com milagres, ao contrário dos que não criam. Ele dizia: “Vocês têm as palavras da vida eterna[391]”, etc. O mesmo não aconteceu a Judas, que morreu duas vezes. Ele se enforcou[392] e não morreu. Ele viveu sem arrependimento. Enfim, doente, ele se abriu ao meio atrozmente[393], como disse o apóstolo Pedro nos Atos dos Apóstolos. Também o santo apóstolo Paulo escreveu aos irmãos: “Nós gostaríamos de todo nosso desejo entregar a vocês não só o Evangelho de Cristo, mas nossa própria vida[394]”. E também: “Nós somos seus servidores por Cristo[395”. Ele ainda pede a Timóteo que considere os velhos como seus pais e os jovens como seus irmãos[396]. Quem é capaz de compreender a humildade dos santos, e o ardente amor que eles sentiam por Deus e pelo próximo? Portanto, não devemos estar atentos apenas a eles, mas também àqueles a quem falamos ou para quem escrevemos. Pois quem quer advertir seu irmão, ou lhe dar um conselho, ou ainda recordar-lhe uma lembrança, como disse João Clímaco, deve primeiro se purificar de suas próprias paixões, a fim de conhecer sem erro o objetivo de Deus e o estado daquele que nos pede uma palavra[397]. Pois o mesmo remédio não convém igualmente a todos, ainda que a doença seja a mesma. O conselheiro deve também se informar a respeito daquele que lhe pede o conselho, a fim de ver se ele está dedicado à submissão de uma vez por todas em sua alma e seu corpo, ou se ele chega para pedir no calor da fé, pedindo-lhe uma palavra sem antes haver interrogado a seu próprio mestre, ou ainda se existe alguma outra necessidade que o constrange a fingir que ele deseja de fato ou vir uma palavra, caso em que os dois cairiam no falatório, no engano, na malícia e em muitas outras coisas. Um, forçado pelo que aparentemente lhe ensina a dizer o que não pensa realmente, mente impudentemente e finge querer fazer o bem. O outro, atraído pelo mal, agrada aquele a quem ensina, para aparentemente descobrir o que está oculto em seus pensamentos. Na realidade, ele não faz outra coisa do que suscitar nele as intrigas e a falação. E, como disse Salomão [398], do falatório não pode advir senão o pecado. Também o grande Basílio descreveu essas faltas[399]. Não falamos disto aqui para nos recusarmos a aconselhar aqueles que vivem na submissão e que chegam a nós com uma fé firme, sobretudo se formos impassíveis, mas para que, num movimento de vaidade e de presunção, não tentemos ensinar a quem, seja por suas obras, seja pelo calor de sua fé, não tem a intenção de ouvir, pois neste caso nos comportaríamos como passionais e não faríamos nada de autêntico. Mas, como disseram os Padres: não se deve adiantar nada que possa vir em auxílio sem que os irmãos interroguem, a fim de que o bem se faça com conhecimento de causa[400] e, como afirmam os apóstolos, não para dominar o rebanho, mas para se tornar seu modelo[401], etc. O Apóstolo diz o mesmo a são Timóteo: “É preciso que o trabalhador trabalhe antes de colher os frutos[402]”, ou seja, que ele se aplique às palavras que deve ensinar. E também: “Que ninguém despreze a sua juventude[403]”, ou seja: não faça nada como uma criança, mas seja perfeito em Cristo. O Gerontikon afirma a mesma coisa: os Padres não diziam nada para a salvação da alma sem que os irmãos os interrogassem. SE eles não agissem assim, com toda a justiça considerariam suas próprias palavras como falatório. Quando temos a pretensão de saber mais do que os outros, é de nós mesmos que extraímos o discurso. Mas quanto mais nos referimos a outros, mais nos sentimos livres. Da mesma forma os santos, dizia são Doroteu[404], quanto mais se aproximam de Deus, mais se consideram pecadores. Maravilhados pelo conhecimento que recebem de Deus, eles já não sabem mais nada. Da mesma forma os santos anjos, em sua alegria e maravilhamento infinitos, jamais se saciam de glorificar. Por que, uma vez que lhes foi dado celebrar tal Mestre eles já não cessam de cantar e admiram tudo o que vem dele, diz João Crisóstomo. E, como acrescenta Gregório o Teólogo, eles progridem mais e mais no conhecimento. O mesmo fazem todos os santos no século presente e no século futuro. Assim como as Potências espirituais transmitem a iluminação umas às outras, os seres racionais ensinam uns aos outros. Os que
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receberam a experiência das divinas Escrituras instruem aqueles que estão mais abaixo. Outros, que receberam o conhecimento intelectual do Espírito Santo, transmitiram por meio da Escritura os mistérios que lhes foram revelados. Temos, portanto, toda a necessidade em sermos humildes diante de Deus e de sermos humildes uns perante os outros. Pois é de Deus que recebemos o ser e todos os demais bens. É por meio dele que recebemos o conhecimento uns dos outros. Aquele que se mantém humilde recebe primeiro a luz. Quem não se humilha permanece nas trevas, como um que antes portava a luz e que se tornou depois o próprio diabo. Pois este um de início pertencia à ordem mais baixa das Potências intelectuais, a saber, a décima a partir da ordem superior que está ao redor o Trono inacessível, mas a primeira a partir da terra. Entretanto, juntamente com aqueles que o seguiram, por seu orgulho ele foi não somente conduzido abaixo das nove ordens de anjos e mesmo abaixo de nós, os terrestres, como ainda, por sua ingratidão, foi rejeitado abaixo do inferno, para o tártaro. É por isso que se diz que independentemente de qualquer outro pecado, basta a inconsciência para fazer com que se perca uma alma. Pois quem considera que suas faltas são pequenas se arrisca a cair nas grandes, dizia santo Isaac[405]. Uma vez que recebemos um dom de Deus e que não nos mostramos reconhecidos, dele nos privamos. Tornamo-nos indignos daquilo que Deus nos confiou, diz o grande Basílio. Pois a ação de graças intercede, desde que ela não seja jamais como a do Fariseu[406], que condenava os demais e justificava a si próprio. Pois a ação de graças é mais devedora do que todas as outras. Em sua pobreza ela agradece e se maravilha, ela compreende a inefável paciência, a inefável tolerância de Deus. Por outro lado, devemos nos admirar de como Deus, que é infinitamente celebrado e não tem necessidade de nada, recebe de nós a ação de graças, enquanto na verdade não cessamos de provocar a sua cólera e sua tristeza depois de termos sido cumulados de tantos e imensos bens universais e particulares, não apenas as benesses do corpo, como também as da alma. Gregório o Teólogo e muitos outros Padres falaram disto. Dentre suas inumeráveis modalidades devemos reter a seguinte: umas são evidentes e podem ser facilmente encontradas nas divinas Escrituras, enquanto outras são obscuras e difíceis de descobrir. Umas nos ajudam a superar nossa irresponsabilidade, nos conduzem à fé e à busca daquilo que nos falta, nos impedem de cair no desespero e na incredulidade diante daquilo que não podemos compreender. Outras nos impedem de sermos condenados por desdenharmos da palavra mal compreendida. Os que querem se dar ao trabalho põem mãos à obra para encontrar o que está oculto. E, diz João Crisóstomo, estes serão louvados.
Que as repetidas citações da divina Escritura não são falatório. A divina Escritura repete frequentemente as mesmas palavras, mas não se trata de simples falatório. Pela lembrança frequente, de maneira paradoxal e em seu amor pelo homem, ela conduz à recordação e à compreensão daquilo que nos diz àqueles dentre nós que são mais negligentes em entender. Desta forma a palavra não nos escapa mais. Pois as palavras são curtas e passam depressa, sobretudo quando estamos absorvidos pelas coisas desta vida, não conhecendo nada senão parcialmente, “uma parte que não é sequer uma parte inteira, diz João Crisóstomo, mas uma parte de uma parte[407]”. Ora, o que é parcial desaparecerá, não para ser destruído e voltar ao nada – pois neste caso não teríamos jamais o conhecimento, e sequer seríamos homens. O parcial será abolido pela visão face a face, como quando a criança se torna homem, disse o Apóstolo[408] explicando a palavra com esta comparação. Também João Crisóstomo afirma: “Por enquanto nós sabemos que existe um céu, mas não sabemos o que ele é[409]”. Quando o tempo é chegado, o menor é absorvido pelo maior, e saberemos o que é o céu, por que o conhecimento aumenta. Existem muitos mistérios ocultos nas divinas Escrituras, e não conhecemos
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o objetivo de Deus em tudo o que está dito. “Mas não impeça nosso reconhecimento, diz Gregório o Teólogo, quando confessamos nossa ignorância, você que condena as palavras”. “É irracional e grosseiro, diz o grande Denis, atentar, não ao poder do objetivo, mas às palavras[410]”. Nós as encontramos quando buscamos por meio do luto bem-aventurado. Esta é a obra do temor: ela nos revela o que está oculto. Assim é que o profeta Isaías disse: “Os mortos não verão mais esta vida [411]”. E em outro ponto: “Os mortos ressuscitarão[412]”. Não existe contradição nisto, como creem os que não conhecem o objetivo de que falamos, este objetivo que é revelado pela contemplação da divina Escritura, quando ela diz que não é por intermédio dos ídolos das nações que veremos a vida, por que eles não possuem alma. Quanto à ressureição de todos e à alegria dos justos, ela afirma que os mortos ressuscitarão. Ela profetiza que todos os que dormem na morte se levantarão com nosso Salvador Jesus Cristo. Da mesma forma, quando, no santo Evangelho, os evangelistas falam da transfiguração do Senhor, um diz que ela teve lugar seis dias[413], outro diz oito dias[414] depois de tê-los ensinado e anunciado o milagre. Mas um corta o primeiro e o último dia e só conta os dias intermediários, enquanto o outro engloba ambos e conta oito dias. Do mesmo modo ainda João o Teólogo afirma a mesma coisa de modo diferente em dois pontos do seu santo Evangelho. Num, ele diz que Jesus fez muitas outras coisas diante de seus discípulos, que não foram escritas[415], etc. Noutro, diz que Jesus fez muitas outras coisas[416], mas não menciona terem sido feitas diante dos discípulos. São Prócoro, lembrando estas duas passagens, escreve que numa o evangelista fala dos milagres e das coisas que o Senhor fez, e que ele próprio, João, não as escreveu para que elas fossem escritas pelos outros evangelistas. Por isso ele acrescentou: diante de seus discípulos. A outra passagem tem em vista a criação do mundo, quando o Verbo de Deus era incorpóreo e o Pai a tudo fez com ele, do nada[417], dizendo: “Que isto seja. E assim foi feito[418]”. João o Teólogo frisa: “Se estas coisas fossem escritas uma por uma[419]”, etc. Em resumo, toda Escritura, toda palavra de Deus, toda palavra de um santo, traz oculta em si o objetivo das criaturas sensíveis ou inteligíveis. Mas toda palavra humana as traz igualmente. É sempre a revelação que permite a intelecção das coisas da Escritura, como disse o Senhor a propósito do vento: “O Espírito sopra onde quer[420]”, etc. João Crisóstomo comenta assim: Cristo não disse “onde quer” pelo fato de que o vento tenha um poder. Mas o Senhor vinha em auxílio à fraqueza de Nicodemo: ele lhe deu a imagem do vento para que ele soubesse aquilo que ele queria lhe dizer[421]. Ele falava do vento para simbolizar o Espírito Santo, nesta palavra que ele lhe dirigia, como também aos outros: aquilo que eu lhes digo é Espírito, trata-se de coisas espirituais, e não daquilo que vocês pensam por si mesmos. Pois eu não falo das coisas do corpo para que vocês as conheçam nos seus seres corporais. Por isso, diz João Damasceno: Se aquele que diz uma palavra não dá a conhecer seu objetivo, não se pode sabe onde leva aquilo que ele diz. Como ousamos nós dizer que conhecemos, fora da revelação de seu Filho, o objetivo de Deus oculto nas divinas Escrituras? O próprio Cristo afirma: “Ninguém conhece, senão aquele a quem o Filho quiser revelar”. Isto equivale a dizer que é preciso se esforçar por receber dele, no intelecto, pela observação de seus mandamentos divinos sem os quais quem pretende conhecer, mente. Pois ele conjectura sem ter realmente aprendido de Deus, diz João Clímaco, mesmo que em sua presunção ele se glorifique daquilo cuja dimensão desconhece[422]. É deste que o Teólogo diz: ó grande filósofo, etc. ó escriba. Ele estigmatiza a suficiência de tais homens que em sua ignorância acreditam possuir alguma coisa. Aquilo que eles acreditam possuir lhes será tirado[423]. Pois eles se recusam a dizer, como os santos dizem, que nada sabem, para que tudo lhes seja concedido por meio da humildade, e que, como eles, recebam em abundância[424]. Pois eles, os santos, sabiam, mas diziam não saber. João Crisóstomo frisa que o Apóstolo não disse que os autossuficientes não sabiam nada ainda, mas que eles não sabiam como se deveria saber. Eles sabiam, mas não como se deve saber[425].
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Declaração sobre o falso conhecimento. Este é o falso conhecimento: acreditamos conhecer aquilo que jamais conhecemos. Ele é pior do que a ignorância generalizada, diz João Crisóstomo. Pois ele não aceita ser corrigido por nenhum mestre, e pensa que a pior ignorância é uma coisa boa. É por isso que os Padres dizem que devemos nos esforçar para buscar com humildade o que existe nas Escrituras, pedindo conselho daqueles que têm experiência e aprendendo antes pelas obras do que pelas palavras. Mas eles acrescentam que não devemos buscar aquilo sobre quê se calam as Escrituras. Com efeito, não há nenhuma razão para fazê-lo, como diz o grande Antônio sobre os que tentam conhecer o futuro ao invés de se recusar a tanto e aceitar serem indignos disto. E no entanto a divina Providência o pode, como um dia o fez a Nabucodonosor[426] e a Balaam[427], malgrado sua indignidade, mas para servir a todos. Tais revelações não vêm dos demônios, sobretudo quando passam por sonhos e por certas imaginações. Mas a Escritura não o diz. De fato, é pelas ações do corpo e pelas ações morais que devemos tentar conhecer, segundo a ordem do Senhor, para nelas descobrir a vida eterna[428]. Não temos nada a buscar aí pela palavra, nem devemos presunçosamente pensar termos compreendido qualquer coisa. Aquilo que está oculto nos ajuda antes de tudo a aumentar nossa humildade, e nos impede de sermos condenados pela transgressão consciente. É por isso que aquele a quem foi dado adquirir a inteligência do conhecimento e que não se consagra no mais absoluto repouso, com atenção, humildade e temor a Deus, ao estudo das divinas Escrituras e dos conhecimentos que lhe foram dados, cai sob o golpe da ameaça e perde a ciência, por que se torna indigno dos dons que Deus lhe concede, assim como Saul perdeu a realeza, diz são Máximo[429]. Mas quem se consagra ao conhecimento e por ele combate, completa ele, deve implorar sempre como Davi e dizer: “Deus, crie em mim um coração puro e restaure em meu corpo um espírito direito[430]”. Assim ele se torna digno da chegada do Espírito. Assim foi que os apóstolos receberam a graça na terceira hora, como está dito nos Atos. Era a terceira hora do dia[431], um domingo, diz o admirável Lucas. Pois o Pentecostes é o sétimo domingo depois do domingo em que se celebra aquilo que a língua hebraica chama de Páscoa, que em grego significa a passagem e a liberdade. Cinquenta dias mais tarde, o domingo se chamou Pentecostes, cumprindo-se, segundo a Lei, os cinquenta dias que o separam da Páscoa. João o Teólogo diz em seu Evangelho que este domingo é o último dia, o grande dia da festa[432], por que ele é a culminação da festa da Páscoa. “A terceira hora recebeu esta graça”, etc., diz João Damasceno. O acontecimento teve lugar na terceira hora, mas, diz ele, neste dia único, o dia do Senhor, para significar a veneração das três Pessoas na simplicidade do mesmo poder, ou seja, da única Divindade. O dia do Senhor é chamado na semana de dia um, e não primeiro dia, diz João Crisóstomo, pois a divina Escritura o põe à parte. O Antigo Testamento profetiza este dia. Ele não o nomeia em uma enumeração, como o segundo e os demais. Se ele não estivesse de parte, ele seria denominado o primeiro. Mas ele foi colocado à parte. E foi chamado de dia um depois do Sabbat, ou seja, depois da semana. Na ordem da nova graça, este dia foi chamado de dia do Senhor[433], dia santo, dia eleito[434]. Pois é nele que tiveram lugar os eventos fundamentais da vida do Mestre, a Anunciação, a Natividade, a Ressurreição. É também nele que acontecerá a ressurreição dos mortos. Foi nele que Deus criou a luz sensível, disse João Damasceno[435]. E é nele que acontecerá a segunda vinda do Senhor. Este dia um[436], o oitavo dia, permanece assim nos séculos infinitos, fora destes sete séculos em que transcorrem os dias e as noites. Foi-nos concedido aprender com os santos o objetivo de tais coisas. Aprendamos então, do início e desde o alto, aonde nos levam as buscas do presente discurso. Antes de tudo, de uma vez por todas, devemos guardar em nós os nomes dos livros e dos santos, para nos lembrarmos de suas palavras e para imitarmos suas vidas, disse o grande Basílio, e para dá-los a conhecer aos que os ignoram[437]. Quem os conhece se recorda. E que os desconhece trate de lê-los. Poderemos então nomear instantaneamente tal santo ou tal
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escrito, lembrando-os constantemente de memória. Por intermédio de certas palavras, nos recordaremos das obras e das palavras de cada um deles. Elas nos ajudarão a conhecer as consequências de cada palavra da divina Escritura, ou do discernimento e do bom conselho do mestre. Elas me ensinam que o que eu digo não vem de mim, mas das divinas Escrituras. Elas nos permitem ainda admirar e compreender o inefável amor de Deus pelo homem, permitem nos maravilharmos de que, por meio de papel e tinta, ele tenha sido capaz de colocar em movimento a salvação de nossas almas, e de nos conceder a graça de tantos escritos e de tantos mestres da fé ortodoxa. Eu, que não possuía nem cultura nem zelo, que não tinha de meu sequer um livro e que sempre vivi como estrangeiro, pobre, em repouso e sem cuidados, buscando o bem de meu próprio corpo, me admiro que me tenha sido dado percorrer tantos escritos. Por minha negligência, e para não sobrecarregar meu propósito, eu pude passar sob silêncio por alguns nomes. Mas a pesquisa e as soluções das coisas comuns nos conduzem à ciência. Elas nos fazem dar graças Àquele que deu aos seus santos, nossos Padres, o conhecimento e o discernimento, e por intermédio deles a nós, os indignos. Elas nos convidam também a nos condenarmos por nossa fraqueza e por nossa ignorância. A Escritura fala igualmente dos justos que foram salvos antigamente. Eles eram ricos, viviam no meio de pecadores e descrentes e eram homens da mesma natureza que eles, como somos nós também, que não queremos nos conformar com a medida da perfeição. Entretanto, a experiência e o conhecimento do bem que recebemos são maiores do que o foram para eles. Pois nós aprendemos com a sua experiência e nos foi concedida uma graça ainda maior: o conhecimento das Escrituras. Ademais, nós monges temos um modo de vida que nos permite saber que podemos ser salvos, desde que abandonemos nossas vontades próprias, e sabemos também que, se não agirmos assim não encontraremos repouso, não seremos capazes de conhecer nem de por à obra as vontades divinas. Pois nossa vontade é um muro que nos separa de Deus[438]. Se o muro não cai, não podemos aprender nem fazer o que é de Deus. Permanecemos fora dele. E os inimigos nos tiranizarão malgrado nosso desejo. Sabemos também que a hesíquia é maior do que tudo e que sem ela não podemos nos purificar, nem conhecer nossa fraqueza, nem as armadilhas dos demônios. Não é apenas cantando ou lendo as palavras divinas que seremos capazes de compreender o poder e a providência de Deus. Todos os homens temos necessidade de nos aplicarmos a esta hesíquia, parcial ou totalmente. Fora dela é impossível alcançar o conhecimento espiritual e a humildade, por meio da qual aquele que a ela se consagra compreende os mistérios ocultos nas divinas Escrituras e em todas as criaturas. Sabemos ainda que não se deve usar coisa alguma, nem dizer palavra alguma, nem fazer gesto algum, nem ter qualquer pensamento que vá contra o que é necessário à salvação, à vida da alma e do corpo, e que, fora do discernimento, mesmo aquilo que nos parece bom não é recebido por Deus. Fora do justo objetivo, mesmo a boa obra não nos serve de nada. Os tropários foram escritos para que os compreendamos, e para que por meio deles compreendamos as demais Escrituras. João Clímaco diz que eles são uma fonte de compunção para aqueles cujo intelecto ainda é fraco. A melodia chama para onde deseja dirigir a reflexão do homem, disse o grande Basílio: seja para o luto, seja para o desejo, seja para a tristeza, seja para a alegria. O Senhor o ordenou: devemos sondar as Escrituras para nelas descobrirmos a vida eterna[439], devemos estar atentos aos sentidos dos salmos e dos tropários para saber com todo o nosso conhecimento o quão ignorantes somos. Pois se alguém, disse o grande Basílio, não provar deste conhecimento, não saberá de fato aquilo tudo que lhe falta. Foi para que tivéssemos esta experiência e esta ciência que foi escrita a gênese das virtudes e das paixões. Pois devemos saber estas coisas e nos esforçarmos para alcançar suas causas, de modo a adquirir umas e
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nos desfazermos de outras, vencendo-as ao opor a elas a obra contrária. Em nosso trabalho devemos sempre perseverar nas ações do corpo, assim como cuidamos das plantas, mas também vigiar as virtudes da alma, estudar como adquirir cada virtude, aprender das divinas Escrituras e dos santos homens e, por meio de nossas obras, guardar estas coisas como um tesouro, trabalhando com toda nossa alma até conseguirmos a virtude que nos foi concedida. A seguir devemos abordar a próxima virtude com a maior atenção, como diz o grande Basílio[440]. Pois se nos prendermos a todas as virtudes de uma vez, sem dúvida acabaremos por relaxar. Comecemos pela paciência nas dificuldades, e assim passaremos resoluta e ardentemente para as demais virtudes, no objetivo de agradar a Deus. Todos devemos guardar os mandamentos como cristãos, pois não é de esforço corporal que precisamos para adquirir as virtudes da alma, mas apenas de resolução e fervor para receber os dons, como disseram o grande Basílio, Gregório o Teólogo e tantos outros. As ações do corpo são feitas com mais facilidade, em especial naqueles a quem a vida sem distrações e na ausência de cuidados de toda sorte conduziu à hesíquia. Pois ninguém pode ver sua conduta e corrigi-la se não estiver disponível e se não se consagrar a esta procura. É por isso que devemos primeiro adquirir a impassibilidade por meio da fuga das coisas e dos homens e somente então, chegado o tempo, livres de toda paixão, comandar os homens e dirigir as coisas sem nos arriscarmos a sermos condenados ou a fazermos o mal, pois teremos chegado à impassibilidade perfeita, sobretudo se tivermos recebido o chamado de Deus, diz João Damasceno, como Moisés, Samuel, os demais profetas e os santos apóstolos, para a salvação de muitos. Ele ainda acrescenta que devemos nos conter como fizeram Moisés, Habacuque, Gregório o Teólogo e muitos outros, e como são Prócoro diz a respeito de são João: ele não queria abandonar a hesíquia que ele amava, embora tivesse o dever de apóstolo de não permanecer na solidão, mas pregar. Não, não foi como um passional, longe disto, que o mais impassível dos homens fugiu para a hesíquia. Ele não queria se separar da contemplação de Deus, nem jamais ser privado da doçura da hesíquia. Outros ainda, por humildade, quando já eram impassíveis, fugiram para as profundezas dos desertos, temendo a confusão, como o grande Sisoés. Convidado por seu discípulo a descansar, ele não se dobrou, mas disse: “Onde não houver mais homens, é para aí que iremos[441]”. E, no entanto, ele havia conquistado tal impassibilidade que era como que cativo do amor a Deus, e não sentia nada além deste amor, ignorando até se havia comido ou não. Todos, no fundo, em total hesíquia, haviam rompido com suas vontades próprias. A partir daí, como se fossem discípulos, o Mestre os encarregou de ensinar a outros, receber a confissão dos pecados e comandar, pelo episcopado ou como superiores dos mosteiros. O Espírito Santo descia sobre eles, que receberam o selo, o sentido do intelecto, como os santos apóstolos e outros que vieram antes deles, como Aarão, Melquisedeque e outros ainda. João Damasceno diz: quem tenta chegar imprudentemente a este estado é condenado. Com efeito, se na ordem real aqueles que usurpam imprudentemente as dignidades são passíveis das maiores condenações, quanto mais o serão aqueles que ousam se apoderar das coisas de Deus sem ser chamados, sobretudo se, em sua ignorância e presunção acreditam que esta temível empresa não é condenável, se pensam que ela lhes trará honrarias e conforto e não atirá-los quando menos esperam num abismo de humilhação e morte pelas mãos de seus discípulos e de seus inimigos, como o fizeram os santos apóstolos, eles que eram imensamente impassíveis e sábios, quando ensinavam os demais. Se não temos consciência de que somos fracos e incapazes, que mais dizer? Pois a presunção e a ignorância tornam cegos aqueles que não querem ver na consagração a Deus sua própria fraqueza e sua própria obscuridade. Como diz o Gérontikon: a cela do monge é a fornalha da Babilônia[442], onde as três Crianças descobriram o Filho de Deus. Ele diz também: “Permaneça em sua cela, e ela lhe ensinará tudo[443]”. E disse o Senhor: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, estarei no meio deles[444”. E João Clímaco: “Não se desvie para a direita nem para a esquerda, disse Salomão, mas siga o caminho real. Viva na hesíquia com um ou dois irmãos. Não permaneça sozinho no deserto, nem esteja
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em grande companhia. Para a maioria, o mais justo é estar entre dois[445]”. E também: “O jejum humilha o corpo, a vigília ilumina o intelecto, a hesíquia traz consigo o luto, o luto batiza o homem, purifica a alma e livra-a do pecado[446]”. Ao final escreveremos os nomes da maior parte das virtudes e das paixões, para que saibamos quantas virtudes devemos adquirir e sobre quantos males devemos chorar. Pois não existe purificação fora do luto, e não existe luto em meios às distrações contínuas. Não existe certeza plena fora da purificação total da alma e, sem a plena certeza, a separação da alma e do corpo é perigosa. Pois, diz João Clímaco, neste caso é impossível crer no que está oculto aos olhos[447]. As oito contemplações de que falamos não são nossas obras, mas o salário da obra de nossas virtudes. Não as obteremos apenas pela leitura, ainda que nos dediquemos a ela com uma orgulhosa resolução, como disse João Clímaco a propósito das contemplações mais perfeitas, as quatro últimas, pois elas são celestes e o intelecto impuro não as pode receber. Devemos colocar todo nosso esforço sobre as virtudes do corpo e da alma: é assim quem nasce em nós o primeiro mandamento, o temor a Deus. E se perseverarmos neste temor, logo virá o luto. Cada vez que tivermos uma contemplação, a graça de Deus, mãe comum a todos nós, diz santo Isaac, nos concederá as coisas que estão além desta contemplação, até que adquiramos em nós mesmos os sete conhecimentos. Quanto ao oitavo, a obra do século futuro, será dado aos que estiverem atentos ao trabalho das virtudes no justo objetivo de agradar a Deus. Mas uma vez que o pensamento de Deus, seja o primeiro ou outro, nos vem por si só e inesperadamente, devemos imediatamente abandonar todo cuidado com esta vida, e muitas vezes a própria regra, e guardar como a menina dos olhos[448] o conhecimento espiritual e a compunção que nos foram dados, até que a providência os queira levar. A partir daí, mesmo tendo a regra, depois de recebermos estas coisas devemos meditar continuamente no que está escrito sobre o temor e o luto. Em cada momento de lazer, dia e noite, quer trabalhemos com as mãos por sermos fracos e facilmente sujeitos ao sono e ao descaso, quer estejamos de repouso se não nos for possível permanecer totalmente de luto, absorvidos pela leitura e pelas lágrimas que nos vêm. Pois mesmo que esses escritos nos tenham sido trazidos por aqueles que não têm a experiência dessas coisas, inclusive eu mesmo nestas palavras que escrevo, eles podem despertar o intelecto e fazê-lo sair da irresponsabilidade por meio do estudo e da atenção. Os que adquiriram a resolução e a experiência na obra das virtudes sabem e dizem, com efeito, muito mais do que expusemos, sobretudo no momento da compunção, quando esta vem por si só. Pois neste momento reside uma grande força, que ultrapassa nossa busca. Entretanto, que ninguém pense que tais carismas sejam obra sua, mas sim que são recebidos e que ultrapassam de longe o próprio valor de quem os recebe, e que é preciso dar graças e temer para que não sejam causa de condenação. Pois sem o esforço o que recebemos em nós é obra dos anjos. E é para fortificar o intelecto que o conhecimento e a força para guardar os mandamentos e trabalhar as virtudes nos são dados, a fim de que saibamos como e por que os edificamos em nós, e o que é preciso fazer, e o que é preciso evitar para que não sejamos condenados, para que sobre as asas do conhecimento nossa obra seja feliz, para que recebamos sempre e mais a ciência, a força do trabalho e o regozijo, e para que, a partir daí, sejamos dignos de dar graças Àquele que nos deu estas coisas, sabendo de onde provêm os bens que recebemos. Ora, quando damos graças, o Senhor nos concede ainda mais bens. Quando recebemos os dons, amamos mais, e pelo amor chegamos à sabedoria divina, cujo começo é o temor a Deus[449]. A obra do temor, diz santo Isaac[450], é o arrependimento, do qual vem a revelação do que está oculto. Devemos exercer o sentido do temor: depois do Ofício das Completas, devemos dizer o Credo e o Pai Nosso, além de muitos Kyrie eleison. Sentados voltados para o Oriente, como os que choram a morte, inclinando a cabeça com a alma dolorosa e o coração gemente. Dizemos as palavras de cada conhecimento[451], começando pelo primeiro até chegar à oração. Caímos de rosto ao chão, completamente
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soterrados diante de Deus, e oramos. Primeiro a ação de graças, depois a confissão e as demais palavras da oração, tudo de que nos lembrarmos. O grande Atanásio diz que devemos confessar as faltas que cometemos por ignorância e aquelas que ainda iremos cometer, lembrando de tudo aquilo de que a graça de Deus nos libertou, para que na hora da morte não tenhamos do que prestar contas. É preciso também orar uns pelos outros, conforme o mandamento do Senhor e do Apóstolo[452]. Este é o objetivo do que dizemos na oração: a ação de graças reconhece que por nós mesmos somos incapazes de dar graças na hora da morte, que no resto do tempo somos negligentes, e que esta hora é uma graça de Deus. A confissão proclama que aquilo que nos foi dado não tem tamanho: somos incapazes de compreender tudo e de conhecer tudo. Só sabemos por ouvir dizer. Não aprendemos por inteiro, mas só algumas coisas. Estamos sempre visível e secretamente cumulados de bens. É impossível descrever a paciência de Deus diante da multidão dos nossos pecados. Somos indignos até de erguer os olhos, como dizia o Publicano[453]. Não confiamos em nada, senão em seu amor pelo homem. Prosternamo-nos diante do Anjo divino, como Daniel[454], como o Apóstolo[455] e os outros Padres, com toda nossa alma, e não sem audácia, por que não somos dignos disto. Precisamos dizer ainda em poucas palavras todas as formas que adquirem as nossas faltas, para nos lembrarmos delas e chorar sobre elas. Devemos confessar nossa fraqueza, a fim de que sobre nós venha o poder de Cristo[456], segundo o Apóstolo, e que sejam perdoados a multidão dos nossos males. Por que em primeiro lugar não é apenas pelos outros que ousamos orar, mas pela multidão dos nossos males. Devemos primeiro refrear em nós todos os vícios, todos os maus hábitos, pois somos incapazes de resistirmos sozinhos. Oramos ao Todo-Poderoso para que detenha os impulsos das paixões, para que não pequemos contra ele nem contra nenhum homem, a fim de que possamos com isto descobrir a salvação por sua graça, e assim nos engajarmos com toda nossa memória nas penas da alma, na oração pelos demais – desta forma, cumprindo o mandamento, conforme o Apóstolo[457] – e no amor por todos, opondo-nos também a todas as formas de paixão que nos tiranizam, nos refugiamos no Mestre e na compunção, enfim, orando por todos aqueles a quem afligimos, que nos afligiram, recusando todo traço de ressentimento e temendo que nossa própria fraqueza, ao chegar nossa hora, não nos impeça de ignorar o mal e orar por eles[458], como ordenou o Senhor. “É por isso que, prevenindo o tempo, disse santo Isaac, devemos buscar o médico antes da enfermidade e orar antes da tentação[459]”. Orar por aqueles que partiram antes de nós, para que eles encontrem a salvação e para nos lembrarmos da morte, orar por todos por que precisamos das preces de todos, nos deixarmos conduzir por Deus e nos tornarmos aquilo que ele deseja de nós, nos unirmos aos outros para receber de suas orações a compaixão, considerando que eles são mais do que nós – este é o sinal próprio do amor. Agora, porém, não ousamos pedir o perdão por nossos pecados. Porém, diminuindo-nos, não devemos considerar os demais como indignos do perdão. Ignorantes, incapazes de tudo, fugimos. Temendo a justiça, por que somos pecadores, oramos para que seu amor pelo homem se cumpra como for de sua vontade. Dizemos: que eu possa me colocar à sua direita, ainda que eu seja o último dos que forem salvos. Pois não somos dignos de nenhum deles. Oramos pelo mundo inteiro, tal como o recebemos da Igreja, e para recebermos a comunhão divina de que tanto precisamos. Oramos para que possamos, quando comungarmos, encontrar pronto Aquele que nos socorre, para nos lembrarmos dos santos sofrimentos de nosso Salvador e para alcançarmos o amor de sua lembrança. Oramos para que a comunhão nos permita ter parte no Espírito Santo. Pois o próprio Consolador consola os que vivem no luto em Deus no século presente e no século futuro, e também os que oram com toda sua alma chorando e implorando: “Rei celestial”, etc., para que a comunhão dos puríssimos Mistérios seja uma garantia da vida eterna em Cristo, pela intercessão de sua Mãe e de todos os santos. A seguir nos prosternamos diante de todos os santos, pedindo a eles que supliquem por nós, por que eles podem levar nossos pedidos ao Mestre.
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Acrescentamos agira a prece habitual, maravilhosamente teológica, do grande Basílio: não buscarmos senão a vontade divina, e bendizer a Deus. Em seguida, para expulsar os próprios pensamentos, devemos dizer com toda intensidade e atenção: “Venham, adoremos”, etc., três vezes, conforme está escrito, a fim de que pela prece do coração e a meditação das divinas Escrituras o intelecto seja purificado e comece a ver os mistérios que elas abrigam. E que nossa alma permaneça longe de toda malícia, em especial do ressentimento, como disse o Senhor, no momento da prece[460]. É por isso que o grande Basílio, denunciando a disputa, por ser ela a mãe do ressentimento, disse ao abade prescrever até mil metanias a quem disputa. Mil ou uma, disse ele: ou o querelante deve fazer mil metanias diante de Deus, ou uma diante de seu superior, dizendo: “Perdoe-me, Padre”. Por esta única metania fundamental que corta nele a paixão pela disputa ele recebe a libertação de seus laços. Santo Isaac diz que a disputa é estranha à vida que os cristãos devem levar[461]. Nisto ele faz suas as palavras do Apóstolo: “Se alguém quer disputar, não é este o nosso costume”. E, a fim de que o querelante não tire alguma glória para si próprio e para que saibamos, quando disputamos, que nos colocamos fora das Igrejas de Deus, ele acrescentou: “nem das Igrejas de Deus [462]”. Temos necessidade apenas desta única e admirável metania. Mas se não a fizermos, se não sentimos arrependimento, tampouco as mil metanias servirão, Pois o arrependimento – a metanoia – é a rejeição do mal, disse João Crisóstomo[463]. Mas as metanias, sejam como forem, não passam jamais de prosternações. Elas mostram que aquele que se prosterna diante de Deus e dos homens humildemente, ao ser ofendido por qualquer coisa, toma a forma de um servidor, a fim de descobrir como se defender sem disputar nem tentar se justificar como o Fariseu[464]. Este se comporta mais como o Publicano[465], considerando a si próprio como pior do que todos e indigno de olhar para cima. Pois se ele aparenta se arrepender, mas tenta disputar com quem o julga a torto e a direito, ele já não é digno do perdão que a graça concede, por que ele busca um tribunal e justificativas, pensando que aquilo que ele faz é justo. Mas este caminho é estranho aos mandamentos do Senhor. É evidente: quem justifica a si mesmo procura o direito e não o amor pelo homem. Torna vã a graça que justifica o ímpio fora das obras da justiça[466], apenas pelo reconhecimento e a paciência, quando ele aceita as reprimendas, dá graças aos que o refutam e suporta sem ver mal naqueles que o acusam, a fim de que sua prece seja pura e seu arrependimento ativo. Quanto mais ele ora pelos que o caluniam e o acusam, mais Deus acusa seus adversários e lhe dá o repouso na prece pura e perseverante. Nós não fazemos estes pedidos meticulosos por queremos ensinar a Deus, que conhece os corações, mas a fim de que nós mesmos possamos chegar à compunção com tais preces. Desejando sempre e em primeiro lugar permanecer nele, nos dedicamos a multiplicar as palavras, agradecendo e confessando-o por suas grandes benesses, tanto quanto nos é possível, como disse João Crisóstomo a respeito do bem-aventurado Davi. Pois não é nem mero falatório nem mera diversão repetir as mesmas palavras ou palavras semelhantes. O profeta é levado pelo desejo. E a palavra da divina Escritura fica gravada no intelecto daquele que ora ou de quem lê. É claro que Deus de todas as coisas antes que aconteçam, e que ele não tem necessidade de ouvi-las pela palavra. Nós é que precisamos, para conhecer o que pedimos e pelo quê oramos, a fim de lhe testemunhar nosso reconhecimento e nos ligarmos a ele por meio de nossas orações. Temos necessidade disso também para não sermos vencidos pelos inimigos, quando os pensamentos nos atormentam e quando vivemos fora da lembrança de Deus. Enfim, temos necessidade disso, ajudados pela prece e pela meditação das Escrituras, para podermos adquirir as virtudes a respeito das quais os santos Padres, em suas respectivas obras, escreveram pela graça do Espírito Santo. É deles que eu aprendi tudo. Vou agora mencionar estas virtudes, senão todas – pois me falta o conhecimento – ao menos aquelas que eu puder.
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Enumeração das virtudes A prudência, a castidade, a coragem, a justiça, a fé, a esperança, o amor, o temor, a piedade, o conhecimento, a resolução, a força, a compreensão, a sabedoria, a contrição, o luto, a doçura, o estudo das divinas Escrituras, a esmola, a pureza do coração, a paz, a paciência, a temperança, a constância, a boa intenção, a decisão, o sentido das coisas, o cuidado, o socorro divino, o fervor, o despertar, o calor do Espírito, a meditação, o ardor, a sobriedade e a vigilância, a memória, a consciência, a devoção, o pudor, a continência, o arrependimento, a rejeição ao mal, a conversão, o retorno a Deus, a união com Cristo, a recusa ao diabo, a observância dos mandamentos, a guarda da alma, a pureza da consciência, a lembrança da morte, as penas da alma, a obra do bem, o esforço, o labor, a vida dura, o jejum, a vigília, a fome, a sede, a moderação, a medida, a boa ordem, a decência, a modéstia, a gravidade, o desprezo pelos bens, o desinteresse, a rejeição às coisas desta vida, a submissão, a obediência, a docilidade, a pobreza, a despossessão, a fuga do mundo, a negação das vontades próprias, a renúncia a si mesmo, o conselho, a grandeza de alma, a consagração a Deus, a hesíquia, a instrução, o sono sobre a terra nua, a abjeção, a firmeza, o combate, a atenção, o pão seco, a nudez, o esgotamento do corpo, a solidão, a serenidade, a calma, o bom humor, a coragem, a segurança, o zelo divino, a consumação, a progressão, a loucura em Cristo, a guarda do intelecto, as boas promessas, a perfeição monástica, a virgindade, a santificação, a pureza do corpo, a brancura da alma, a leitura em Cristo, o cuidado com Deus, o reconhecimento, a prontidão, a verdade, a discrição, a inocência, a remissão das dívidas, a precaução, a capacidade, a vivacidade de espírito, a clemência, o justo uso das coisas, a ciência, a bondade natural, a experiência, a salmodia, a prece, a ação de graças, a confissão, a súplica, a prosternação, a invocação, a imploração, o pedido, a intercessão, o canto, a glorificação, a confidência, a solicitude, a lamentação, a aflição, a dor, o tormento, a compaixão, o suspiro, o gemido, as lágrimas de sofrimento, a compunção, o silêncio, a busca de Deus, o grito de dor, a despreocupação em relação às coisas, a ignorância do mal, a indiferença em relação à vanglória, a ausência de ambição, a simplicidade da alma, a dó, a modéstia, a honestidade, as obras naturais, as obras sobrenaturais, o amor fraterno, a concórdia, a comunhão divina, as delícias, a vida espiritual, a cortesia, a retidão, a transparência, a bem-aventurança, a integridade, a simplicidade, o louvor, as palavras de bondade, as boas obras, a predileção pelo próximo, a afeição divina, o estado de virtude, a perseverança, a busca da qualidade, o reconhecimento, a humildade, a reserva, a magnanimidade, a tolerância, a longanimidade, o bem-fazer, a benevolência, o discernimento, a abertura, a afabilidade, a ausência de conflitos, a contemplação, o poder de guiar, a firmeza, a clarividência, a impassibilidade, a alegria espiritual, a segurança, as lágrimas da compreensão, o pranto da alma, o desejo divino, a piedade, a misericórdia, o amor pelos homens, a pureza da alma, a pureza do intelecto, a previsão, a prece pura, o pensamento desembaraçado, o vigor, a tensão da alma e do corpo, a iluminação, a restauração da alma, o desprezo por esta vida, o justo ensinamento, o bom desejo pela morte, a infância em Cristo, o enraizamento, a advertência e a exortação comedida e firme, a mudança louvável, o êxtase diante de Deus, a perfeição em Cristo, o esplendor verdadeiro, o eros divino, o arrebatamento do intelecto, a morada em Deus, o amor às coisas divinas, o amor à sabedoria interior, a teologia, a profissão de fé, o desprezo pela morte, a santidade, a obra reta, a perfeita saúde da alma, a virtude, o louvor a Deus, a graça, o Reino, a adoção. Num total de duzentas e trinta e oito virtudes. O homem se torna o que ele é por adoção, pela graça d’Aquele que nos dá a vitória sobre as paixões, cujos nomes, no meu entender, aí vão a seguir.
Enumeração das paixões A maldade, a hipocrisia, a malícia, a vilania, a irracionalidade, o deboche, a sedução, a incapacidade natural, a falta de conhecimento, a inércia, a frieza, a estupidez, a gabolice, a loucura, a demência, a perdição, o delírio, a grosseria, a impertinência, o desleixo, o torpor, a preguiça para o bem, a ofensa, a
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avidez, a retenção, a ignorância, a falta de inteligência, o falso conhecimento, o esquecimento, a confusão, a insensibilidade, a injustiça, a má intenção, a alma inconsciente, a irresponsabilidade, a bravata, a prevaricação, a falta, o pecado, a iniquidade, a ilegalidade, a paixão, a catividade, o mau assentimento, a união irracional, a sugestão demoníaca, a temporização, o excessivo controle do corpo, o vício, a queda, a enfermidade da alma, o relaxamento, a doença do intelecto, a negligência, a languidez, a inquietude censurável, o desdém por Deus, o erro, a transgressão, a descrença, a desconfiança, a má fé, a pouca fé, a heresia, a perversão, o politeísmo, a idolatria, a ignorância de Deus, a impiedade, a magia, a observação dos sinais, a adivinhação, a feitiçaria, a renegação, a paixão pelos ídolos, a intemperança, o desperdício, a discussão, o egoísmo, o ócio, a desatenção, a passividade, a ilusão, a fraude, a temeridade, o envenenamento, a sujeira, a alimentação impura, o conforto, o desregramento, a gula, a prostituição, a avareza, a cólera, a tristeza, a acídia, o amor à vanglória, o orgulho, a presunção, a autossuficiência, o autoelogio, o desespero, o ultraje, o desgosto, a indolência, a pesandez, o prazer, o desejo insaciável, a glutoneria, a necessidade contínua de comer, comer em segredo, a voracidade, comer só, a indiferença, a facilidade, a vontade própria, a irreflexão, o contentamento, o desejo de agradar aos homens, a inexperiência do bem, a falta de instrução, a incompetência, a fragilidade no pensar, a trivialidade, a vulgaridade, a disputa, a rivalidade, a maledicência, a gritaria, a perturbação, a luta, a cólera, o desejo irrazoável, a irascibilidade, o paroxismo, o escândalo, a inimizade, a indiscrição, a calúnia, a amargura, a difamação, a condenação, a aversão, a vergonha ao próximo, a acusação, a raiva, a injúria, a desonra, a falta de medida, a selvageria, o furor, o azedume, a agressividade, o perjúrio, a falsa jura, a crueldade, o ódio aos irmãos, a desigualdade, a ofensa ao pai, a ofensa à mãe, a licenciosidade, o deixar acontecer, a corrupção, o roubo, a pilhagem, a inveja, a discussão, o ciúme, a indecência, a gozação, a invectiva, a ridicularização, a derrisão, o complô, a opressão, o desprezo pelo próximo, a flagelação, a impostura, o enforcamento, o inchamento, a insensibilidade, a dureza, a libertinagem, a influência, o ressentimento, o descaramento, a impudência, a alienação, as trevas do pensamento, o ceticismo moral, a cegueira, a paixão pelas coisas passageiras, a afeição passional, a vaidade, a desobediência, o peso, a obnubilação da alma, o excesso de sono, a imaginação, o excesso de bebida, a embriaguez, permanecer desocupado, o inchaço, as delícias irracionais, o amor pelos prazeres, a licenciosidade, a linguagem grosseira, a vida efeminada, a orgia, o desejo inflamado, o langor, a imoralidade, o adultério, a homossexualidade, a bestialidade, a torpeza, a impudicícia, a decomposição da alma, o incesto, a impureza, o aviltamento, a imundície, a amizade particular, a hilaridade, o gracejo, a pantomina, as palmas, as canções grosseiras, as danças pagãs, a sedução, a liberdade de linguagem, a obsequiosidade, a insubordinação, a instabilidade, a falsa concórdia, a subversão, a guerra, o assassinato, a briga, o sacrilégio, a escroqueria, a usura, a mentira, o roubo dos túmulos, a dureza do coração, a difamação, o murmúrio, a blasfêmia, o reproche, a ingratidão, a maledicência, a indiferença, a pusilanimidade, a confusão, a enganação, a linguagem desabrida, os discursos vãos, a alegria sem razão, a suficiência, a amizade irracional, o vício, a palermice, a linguagem insensata, a verborragia, a estreiteza, a perversidade, a recusa ao acolhimento, a irritação, as numerosas posses, o rancor, o mau uso, o mau humor, a ligação com esta vida, a frivolidade, a arrogância, o amor ao poder, a duplicidade de caráter, a ironia, a dissimulação, a sinuosidade, a palhaçada, o desencorajamento, o amor satânico, a curiosidade, as ofensas, não temer a Deus, o desconhecimento, a desinteligência, o pensamento humano, a jactância, o pensamento altaneiro, a falta de medidas, o desdém pelo próximo, o coração impiedoso, a ferocidade, a desolação, a hostilidade, o ódio às coisas divinas, o desespero, o suicídio, e, sobretudo, a queda para longe de Deus e a completa perdição. Ao todo, duzentas e noventa e oito paixões. A todas elas eu encontrei nas divinas Escrituras, e as organizei assim como fiz com os livros no início deste discurso. Mas não pude colocá-las em ordem, nem tentei fazê-lo, pois isto está além de minha capacidade, pela razão levantada por João Clímaco: você buscará a inteligência junto aos vilões e não a encontrará[467]. Pois tudo o que pertence aos demônios é desordenado. Eles não têm senão um único objetivo, no qual se encontram os iníquos e os ímpios: por a perder as almas daqueles que acolhem seus maus conselhos.
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Mas os demônios estão também na origem das coroas que alguns homens recebem. Então eles são vencidos pela fé e a paciência dos que esperaram no Senhor, que se opõem a eles e os denunciam pelas obras do bem e a resistência aos pensamentos.
Da diferença entre os pensamentos e as sugestões. Os pensamentos diferem em tudo. Uns são puros de todo pecado, outros ainda não. Assim é com aquilo a que chamamos sugestão, ou seja, a lembrança do bem e do mal, que não traz em si nem recompensa nem condenação. O mesmo com o que chamamos associação, ou seja, o trabalho do pensamento, seja em vista do assentimento, seja em vista da rejeição. A associação merece ser louvada, sem mais, quando agrada a Deus. Pode também chamar a condenação, quando é para o mal. Depois vem aquilo a que chamamos luta, da qual o intelecto pode sair vitorioso ou derrotado. A luta traz, seja o coroamento, seja o castigo, quando se chega ao ato. Da mesma forma o assentimento, que é um movimento da alma seduzida diante daquilo que ela vê. Do assentimento vem o cativeiro que conduz o coração, forçadamente e contra sua vontade, a por em movimento a tentação. Enfim, quando o pensamento racional permanece por longo tempo na alma, acontece o que chamamos de paixão. Esta investe por si só contra a alma que a ela se habitua, e a faz passar naturalmente ao ato. Sem dúvida, a paixão tem como consequência, em todos, seja o arrependimento que se opõe a ela, seja o castigo inevitável, disse João Clímaco[468]. Pois somos castigados por não nos arrependermos, não por que lutamos. Se assim fosse, a maior parte de nós não poderia receber a absolvição fora da perfeita impassibilidade. O próprio João Clímaco disse: “Não é possível a todos se tornarem impassíveis, mas todos podem ser salvos e se reconciliar com Deus[469]”. O sábio, portanto, rejeita a má sugestão, a mãe do mal, a fim de romper de uma vez por todas com os perigos que vela advém. Mas ele está sempre pronto a realizar a boa sugestão, a fim de que a alma e o corpo possam adquirir a virtude e se livrar das paixões pela graça de Cristo. Pois não temos nada em nós que não tenhamos recebido dele[470]. E nada temos a oferecer senão nossa intenção. Mas se não a temos, não encontraremos nem o conhecimento nem a força para fazer o bem. Deus ama o homem e a obra de seu amor nos liberta da condenação no seio de nossa inércia. Pois a inércia é o começo de todos os vícios. Mesmo a obra do bem, diz o Gerontikon, tem necessidade do discernimento. A virgem que jejuava seis dias da semana e não cessava de meditar sobre o Antigo e o Novo Testamento, não considerava da mesma maneira as coisas difíceis e fáceis, embora devesse, depois de tanto penar, trazer em si os frutos da impassibilidade, o que não aconteceu. Pois o bem não é bem se não tem seu objetivo na vontade divina. Muitas vezes na divina Escritura Deus rejeita em certas circunstâncias um homem por uma obra que a todos parece boa, ou recebe a outro que parece fazer o mal. Testemunha disto é o profeta que pediu que lhe batessem: ao crer fazer o bem ele desobedecia e se tornou presa do monstro[471]. Pedro também achou que fazia o bem quando recusou que lhe fossem lavados os pés, mas acabou reprimido por isto [472]. Devemos como toda nossa força descobrir e fazer a vontade divina, mesmo quando nos pareça ser o bem. Por isso é que a obra do bem jamais é feita sem trabalho, a fim de que não alteremos, como nossa liberdade, o louvor que nosso esforço merece. Simplesmente, tudo o que Deus realiza é maravilhoso ultrapassa o intelecto e o entendimento. O intelecto deve admirar não apenas as celebrações da Igreja ortodoxa, mas também os símbolos destas celebrações. Devemos nos admirar de como pelo batismo divino nos tronamos filhos pela graça, sem que tenhamos feito algo para isto, nem antes nem depois, senão observar os mandamentos; e de como estas coisas temíveis, vale dizer, o santo batismo, a santa comunhão, não podem ser feitas sem o sacerdote, como disse o divino Crisóstomo[473]. É assim que aparece o poder dado a Pedro, o príncipe dos apóstolos. Pois se a
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celebração litúrgica não abrir as portas do Reino dos céus, ninguém entrará nele[474]. Como disse o Senhor: “Se não nascermos da água e do Espírito[475]”, etc. E também: “Se vocês não comerem a carne do Filho do homem nem beberem seu sangue, não terão a vida em vocês[476]”. Devemos nos admirar ainda o modo pelo qual o antigo Templo era feito exteriormente à imagem do mundo, sendo lá que os sacerdotes realizavam os sacrifícios[477]. Mas o interior era o Santo dos Santos[478], onde eram oferecidos os perfumes sob quatro formas – o incenso, a mirra, o óleo perfumado e a acácia – que representavam as quatro virtudes gerais. O que se fazia no exterior revelava então a misericórdia de Deus, a fim de que, por meio dos cantos e das delícias, os judeus – que ainda pensavam como crianças – não se voltassem para os ídolos. Mas a nova Igreja é o símbolo daquilo que virá. É por isso que as celebrações da Igreja são celestes e espirituais. Pois assim como existem nove ordens no céu, existem nove ordens na Igreja: os Patriarcas, os Metropolitas, os Bispos, os Padres, os Diáconos, os Subdiáconos, os Leitores, os Cantores e os Monges. Devemos nos admirar ainda do modo como os demônios e muitas enfermidades são postos em fuga pelo sinal da preciosa cruz vivificante, coisa que todos podem fazer sem despesas e sem esforço. Quem poderia contar os louvores do sinal da cruz? Os santos Padres nos transmitiram os símbolos, para que os possamos opor aos descrentes e aos hereges: os dois dedos mais o polegar significam Cristo crucificado, revelado em duas naturezas e uma única hipóstase. A mão direita representa sua potência infinita, e lembra que ele está sentado à direita do Pai. O sinal é feito primeiro de alto para baixo: trata-se da descida dos céus entre nós. Depois, da direita para a esquerda: expulsamos os inimigos simbolizando que por seu poder invencível o Senhor venceu o diabo, que está à esquerda, impotente e tenebroso. Devemos, finalmente, nos admirarmos de como, através de cores ínfimas, na tela em que nos são mostradas, foram perfeitamente colocadas pela divina Providência tantas maravilhas realizadas pelo Senhor e por todos os santos há tantos anos, a fim de que, vendo-os com nossos olhos, nós os queiramos acima de tudo, como disse são Pedro, o Príncipe dos apóstolos, conforme testemunhado por seu discípulo são Pancrácio. Tudo o que dissemos desde o início deste discurso de nada servirá sem a fé reta, e mesmo sequer teria existido, tanto quanto nossa obras, sem a fé. Muitos dos santos Padres escreveram sobre a fé e as obras. Para concluir, lembrarei que, cada um em sua ordem, devemos ter tanto as obras escritas quanto a fé ortodoxa que recebemos dos santos que as escreveram antes de nós, a fim de, por meio delas, alcançar os bens eternos, pela graça e o amor pelo homem de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem cabem toda honra e toda adoração, com seu Pai que não teve começo e seu Espírito Santíssimo, bom e vivificante, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém. Para terminar, eu digo: Cristo, a você toda honra e toda glória. Amém.
[1]Cod. Par. Gr. 1134 (XV e seg.) [2] Cf. Gênesis, 2: 8. [3] Cf. Gênesis 3: 17-19.
e Cod. Vat. Pal. 210 (XIII e seg.)
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Cf. Gênesis 4: 11-12. Cf. Gênesis 6: 5-6. Cf. Gênesis 9: 25-27. Cf. Gênesis 11: 1-7; 19: 4-5; Números 14: 22-23; I Reis 11: 9-11; Jonas 1: 2; II Reis 5: 20-21; Mateus 26: 24. [8] Cf. Salmo 21 (22): 15. [9] Cf. Gênesis 1: 26. [10] Cf. Mateus 25: 41. [11] Cf. Isaías 66: 16; Jeremias 20: 9. [12] Cf. Gregório de Nazianze, Discurso XXIX, 19 e XLV, 53. [13] Talvez as oito contemplações espirituais de que Pedro Damasceno falará adiante. Ver também Evagro o Pôntico, Sobre os Pensamentos. [14] Cf. João 14: 23; 15: 10. [15] Cf. I Timóteo 6: 10. [16] Cf. Gênesis 1: 26. [17] Cf. Gênesis 2: 18. [18] Cf. Gênesis 3: 5; Romanos 7: 8. [19] Cf. João 4: 24. [20] I Coríntios 14: 19. [21] Marcos 16: 16. [22] Lucas 17: 10. [23] Mateus 28: 20. [24] Cf. I Tessalonicenses 5: 9. [25] João 6: 38. [26] Cf. Romanos 8: 14. [27] Cf. Mateus 5: 9. [28] Cf. Salmo 2: 11. [29] Gregório de Nazianze, Discurso XLV, 7. [30] Cf. João 15: 5. [31] Máximo o Confessor, Sobre o amor, II, 39. [32] Cf. Mateus 7: 14. [33] Cf. Gênesis 12: 16; 13: 2. [34] Cf. Jó 1: 3. [35] Cf. II Samuel 7: 2; I Crônicas 12: 40. [36] Cf. Lucas 14: 6. [37] Cf. João Clímaco, A escada santa, I, 45. [38] Cf. I Coríntios 13: 13. [39] Sentenças dos Padres do Deserto, Arsênio I. [40] Cf. Mateus 13: 11-12. [41] Cf. II Timóteo 3: 16. [42] Cf. João 15: 5. [43] Cf. João 1: 12. [44] Cf. Lucas 21: 34. [45] Cf. I Pedro 5: 8. [46] Cf. Tito 3: 1. [47] Cf. I Coríntios 8: 2. [48] Cf. Salmo 50 (51): 19. [49] Salmo 110 (111): 10. [50] Isaías 11: 2-3. [51] Mateus 5: 3. [4] [5] [6] [7]
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[52] Mateus 5: 4. [53] Mateus 5: 5. [54] Cf. Salmo 38 (39): 7. [55] Cf. Gênesis 1: 31. [56] Cf. Salmo 24 (25): 9. [57] Cf. Mateus 6: 15. [58] Mateus 6: 14. [59] Mateus 5: 6. [60] Mateus 5: 7. [61] Mateus 5: 8. [62] Mateus 5: 9. [63] Cf. Gálatas 5: 17. [64] Cf. Mateus 5: 10-11. [65] Cf. Mateus 5: 12. [66] Cf. Mateus 5: 12. [67] Cf. I Timóteo 6: 15-16. [68] O olho que vê as coisas do mundo como elas são. [69] Cf. Gálatas 6: 14. [70] Cf. Romanos 1: 20-21. [71] Cf. Romanos 1: 20. [72] Cf. Gênesis 3: 23. [73] Cf. I Coríntios 2: 9. [74] Cf. IV Mac. 1: 16 (apócrifo) [75] Os quatro pares de paixões que cercam as quatro virtudes. [76] Cf. I Coríntios 15: 49. [77] Cf. Gênesis 1: 26. [78] Cf. I Coríntios 8: 2. [79] Máximo o Confessor, Sobre o Amor III, 81. [80] Cf. I Coríntios 8: 2. [81] Cf. I Reis 3: 12. [82] I João 3: 21. [83] A escada santa V, 44. [84] I Coríntios 4: 4. [85] I Tessalonicenses 5: 3. [86] Cf. Tiago 1: 25. [87] A escada santa VI, 10 e XXII, 29. [88] Carta ao Monge Nicolas. [89] Obras espirituais, pg. 107. [90] A escada santa XX, 11 e 14. [91] Provérbios 17: 28. [92] Discurso útil à alma. [93] Salmo 45 (46), 11. [94] Cf. Salmo 6: 7. [95] Jó 4: 5. [96] Cf. Lucas 10: 41. [97] Deuteronômio 15: 9. [98] Homilia sobre Attende tibi ipsi, “Guarda a ti mesmo”. [99] Cf. I Pedro 5: 8. [100] Mateus 24: 42; 26: 41. [101] João Clímaco, A escada santa I, 42.
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[102] Eclesiástico 9: 13. [103] Cf. Provérbios 6: 5. [104] Cf. II Samuel 11: 12. [105] Cf. I Reis 11: 9. [106] A escada santa II, 12 e XV, 650. [107] Sobre o abade Filemon. [108] Sentenças dos Padres do Deserto, anon. 1434. [109] Cf. Sentenças dos Padres do Deserto, Moisés 6. [110] Carta II, 2. [111] Eclesiastes 1: 13. [112] Hierarquia Eclesiástica VI, 1, 3 e III, 2. [113] A escada santa VI, 11-12. [114] Trata-se de João Clímaco, A escada santa XXVII, 28, citando Jó 4, 12. [115] Salmo 45 (46): 11. [116] A escada santa XXVII, 52. [117] Obras espirituais, pg. 230. [118] Mateus 6: 21. [119 Cf. Mateus 5: 3. [120] Evagro, Da oração 58, citando o Salmo 75 (76): 3. [121] As contemplações – também chamadas de “gnoses” ou conhecimentos –
são aqui colocadas como os
estágios da vida espiritual. [122] Obras espirituais, pgs. 377-378. [123] Instruções espirituais XIII, §148. [124] A escada santa XXV, 35 e 38. [125] O tema e as numerosas passagens desta “lamentação de Adão” são extraídas da liturgia bizantina (domingo da Queda de Adão, na tríade da Grande Quaresma) [126] Cf. Daniel 13: 22. [127] Cf. Isaías 14: 12. [128] Cf. Gênesis 3: 23. [129] Cf. Gênesis 3: 23; 4: 8; 9: 25; 19: 24-25; 25: 32-35; Números 14: 34; II Reis 5: 26-27; Mateus 26: 1524; II Samuel 11: 12 e Salmo 50 (51); I Reis 11: 9-10. [130] Cf. Gênesis 18: 27. [131] Cf. I Samuel 18: 23 e 24: 15. [132] Cf. I Reis 3: 7. [133] Cf. Daniel 3: 23. [134] Isaías 6: 5. [135] Trata-se na realidade de Jeremias 1: 6. [136] Cf. I Timóteo 1: 15. [137] Salmo 142 (143): 8. [138] Salmo 37 (38): 22-23. [139] Cf. Lucas 15: 11-32. [140] Cf. Lucas 18: 9-14. [141] Os últimos três versos foram extraídos da liturgia bizantina. [142] Cf. Jeremias 3: 19. [143] Discurso XIV 2, 3. [144] Texto da liturgia bizantina. [145] Cf. Gênesis 3: 19. [146] Cf. Mateus 17: 20. [147] Cf. Filipenses 4: 7. [148] Cf. Mateus 5: 9.
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TII, VI – PEDRO DAMASCENO – Livro primeiro.
[149] Cf. Lucas 15: 17-18. [150] Cf. Lucas 18: 13-14. [151] Cf. Daniel 7: 9-10 e Apocalipse 20: 11-12. [152] Cf. Hebreus 4: 13. [153] Cf. Marcos 9: 48. [154] Mateus 25: 12. [155] Cf. Lucas 15: 18-21. [156] Cf. Lucas 7: 37-38. [157] Texto da liturgia bizantina. [158] Cf. Salmo 85 (86): 13. [159] Cf. Daniel 9: 5. 15. [160] Cf. Salmo 50 (51): 6. [161] Salmo 6: 3. [162] Começo da oração das Horas. A longa prece
que precede é também inspirada diretamente ou extraída tal qual da liturgia bizantina. [163] Cf. Lucas 18: 13. [164] Obras espirituais, pg. 200. [165] Cf. Eclesiastes 3: 2. [166] A escada santa XXVIII, 11. [167] Ibidem VII, 75. [168] Obras espirituais, pgs. 202 e 108, citando Daniel 10: 9. [169] Evagro, Sobre a oração, 120. [170] Cf. João 4: 24. [171] I Coríntios 14: 19. [172] I Timóteo 2: 8. [173] Cf. Eclesiástico 39: 34. [174] Eclesiastes 3: 1. [175] Obras espirituais, pg. 277. [176] Cf. São Basílio, Pequenas Regras 16 e 80. [177] Cf. I Pedro 2: 22. [178] Conjunto de orações que era dado a cada monge em particular. [179] A escada santa VII, 4, citando o Salmo 101 (102): 5. [180] Em grego: ouranophantor, “aquele que faz aparecer o céu”. [181] São Basílio, Grande Regra 2, citando o Salmo 115: 3 (116: 12). [182] Cf. João 1: 14. [183] Cf. Isaías 42: 7. [184] Cf. Malaquias 3: 20. [185] Obras espirituais, pgs. 61 e 434. [186] Cf. Lucas 6: 36. [187] Cf. Mateus 5: 48. [188] Lucas 14: 11; 18: 14. [189] Cf. Mateus 16: 19. [190] Cf. I Coríntios 2: 9. [191] Cf. Romanos 7: 12. [192] Cf. Mateus 13: 44. [193] Sobre a Teologia II, 35. [194] Cf. II Coríntios 1: 12. [195] Lucas 17: 21. [196] Eclesiástico 11: 4. [197] João, 15: 5.
724
TII, VI – PEDRO DAMASCENO – Livro primeiro.
[198] Cf. Lucas 10: 39. [199] Cf. Mateus 11, 29. [200] Cf. Efésios 2: 4. [201] Cf. João 4: 10. [202] João 7: 37. [203] Cf. I Samuel 4: 4; Salmo 79 (80): 1. [204] Cf. João 14: 12. [205] Cf. Salmo 18 (19): 11. [206] Mateus 6: 14. [207] Mateus 7: 7. [208] Mateus 7: 12. [209] Cf. João 10: 11. [210] Cf. Habacuque 3: 2. [211] Cf. Jó 40: 4. [212] Cf. Lucas 1: 48. [213] Provérbios 10: 7. [214] João 1: 1. [215] Cf. Filipenses 3: 8. [216] Cf. Atos 4: 13. [217] Cf. II Timóteo 4: 7. [218] Daniel 3: 18. [219] Daniel 3: 38-39. [220] Daniel 3: 49 [221] Cf. I Reis 18: 38. [222] Prece final das Grandes Completas no Ofício Bizantino. [223] Eclesiástico 23,: 23-28. [224] Cf. Êxodo 16: 20. [225] João 5: 17. [226] Cf. Isaías 11: 2. [227] Eclesiastes 1: 2. [228] Cf. Salmo 38 (39), 6 e 12. [229] Cf. Isaías 11: 2. [230] Ver Evagro, Sobre o discernimento das paixões 7. [231] Sobre o amor I, 7. [232] Cf. Gênesis 1: 31. [233] Máximo o Confessor, Sobre o amor III, 97.
[234] A fé ortodoxa II, 12. [235] A escada santa XXVI, 91. [236] Cf. Jó 38-39. [237] Obras espirituais, pg. 289. [238] Cf. Gênesis 1: 31. [239] I Coríntios 8: 2. A respeito desta passagem, ver João Crisóstomo, Sobre a incompreensibilidade de Deus II. [240] Instruções espirituais V, 61. [241] Pequena regra 20. [242] Cf. Hebreus 5: 14. [243 A escada santa VII, 63. [244] Ibid. VI, 32 e XXVI, 114. [245] Cf. Provérbios 3: 34; Tiago 4: 6.
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TII, VI – PEDRO DAMASCENO – Livro primeiro.
Obras espirituais, pg. 157. Provérbios 25: 16. Discurso XXXIX, 8. Homilia sobre o Hexameron IX, onde na realidade se fala do escorpião. Sobre a incompreensibilidade de Deus III, citando Daniel 10: 5-6. Ibid. Cf. Isaías 6: 3. Cf. Mateus 18: 12-14. Discurso XLV, 5-6. Sobre o amor I, 10. Evagro, Sobre a oração 120. Sobre a Teologia I, 39. Nomes Divinos I, 6. Ibid. I, 2. Cf. João 10: 1. Sobre o abade Filemon. Salmo 54 (55): 23. “Tudo posso naquele que me fortalece” (Filipenses 4: 13). Cf. João 15: 5. Cf. I Pedro 5: 7. A escada santa IV, 95. Mateus 21: 21. Cf. Colossenses 1: 23; Hebreus 11. Cf. João 20: 19. Ibidem. Sobre a teologia II, 46. A referência é confusa, mas deve se tratar de Sentenças dos Padres, Sisão 4. II Coríntios 5: 13. Evagro, Sobre a oração 111. A escada santa XXIX, 7. João 12: 23. Sentenças dos Padres, Antônio 8. Sobre o amor IV, 63-64. Mateus 6: 25. Lucas 13: 23. Cf. I Coríntios 1: 24. Mateus 5: 21-22. Tiago 1: 17. Irmão de Deus é o nome dado no Oriente a são Tiago, primeiro bispo de Jerusalém, que o Novo Testamento chama de irmão (primo) do Senhor. [283] Mateus 13: 52. [284] A escada santa XXVI, 35. [285] Cf. II Coríntios 11: 6. [286] Carta II, 2. [287] Cf. II Coríntios 10: 5. [288] Provérbios 11: 15. [289] Mateus 10: 22. [290] Cf. II Tessalonicenses 1: 6-7. [291] A escada santa XXV, 68; XXVI, 173. [292] Salmo 53 (54): 9. [293] Cf. Gênesis 1: 3. [294] A fé ortodoxa II. [246] [247] [248] [249] [250] [251] [252] [253] [254] [255] [256] [257] [258] [259] [260] [261] [262] [263] [264] [265] [266] [267] [268] [269] [270] [271] [272] [273] [274] [275] [276] [277] [278] [279] [280] [281] [282]
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TII, VI – PEDRO DAMASCENO – Livro primeiro.
[295] Hebreus 12: 14. [296] Cf. Lucas 15: 17-18 e 7: 37-38. [297] Cf. Lucas 18: 13. [298] Cf. Mateus 7: 1. [299] Sobre o amor II, 38. [300] Cf. I Timóteo 6: 10. [301] Mateus 6: 19. [302] Mateus 6: 21. [303] Grande Regra 6. [304] Marcos o Asceta, Dos que pensam ser justificados, 43. [305] Sentenças dos Padres do deserto, Epifânio 9, 10 e 11. [306] Instruções espirituais IV, §56 e 60. [307] Cf. João 15: 13. [308] Sobre o amor IV, 37. [309] Lucas 17: 6. [310] Marcos 9: 23. [311] Salmo 90 (91): 9. [312] Provérbios 21: 31. [313] Obras espirituais, pg. 333. [314] Salmo 72 (73): 22-23. [315] Cf. João 21: 17. [316] Cf. Salmo 30 (31): 6. [317] Salmo 30 (31): 15. [318] Salmo 85 (86): 16. [319] Marcos 9: 24. [320] Obras espirituais, pg. 126. [321] Sobre o abade Filemon. [322] II Coríntios 5: 7. [323] Cf. Gênesis 1: 31. [324] Instruções espirituais IV, § 48. [325] A escada santa XXVI, 105. [326] Ibid. XXVI, 98. [327] II Coríntios 12: 9. [328] II Coríntios 12: 10. [329] A escada santa XXVI, 44-45. [330] Sentenças dos Padres do deserto, anônimo 1228. [331] Lucas 12: 47. [332] Discurso XIX, 10. [333] Mateus 23: 3. [334] Cf. Provérbios 24: 16; Miquéias 7: 8; Sentenças dos Padres do deserto, Sisoés 38. [335] Tito 3: 3. [336] Sermões V, 8. Jogo de palavras entre thrasos (temeridade) e tharsos (coragem). [337] Cf. Mateus 19: 22. [338] Cf. I Timóteo 6: 8. [339] I Tessalonicenses 5: 18. [340] I Tessalonicenses 5: 17. [341] Cf. I Tessalonicenses 5: 16. [342 Instruções espirituais XII, § 126, citando Salmo 76 (77): 4 (LXX). [343] Mateus 10: 22. [344] Cf. Macário o Egípcio, Paráfrase 82.
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TII, VI – PEDRO DAMASCENO – Livro primeiro.
[345] Sobre a teologia II, 20. [346] Deuteronômio 6: 5. [347] Grande Regra, 2. [348] Êxodo 32: 32. [349] Romanos 9: 3. [350] Cf. Lucas 6: 35. [351] Cf. Gênesis 2: 15. [352] I Coríntios 4: 7. [353] João 15: 5. [354] Cf. Lucas 20: 36. [355] I Coríntios 2: 9. [356] Lucas 6: 46. [357] Lucas 23: 31. [358] Provérbios 11: 31. [359] Obras espirituais, pgs. 274-275. [360] Provérbios 13: 24. [361] Cf. Jó, 42: 12. [362] Cf. Atos 5: 41. [363] Cf. I João 4: 18. [364] João 1: 48. O nome de “Israel” foi
dado a Jacó depois de sua luta com Deus, durante a qual ele viu Deus face a face (Gênesis 32: 31). Por esta razão, o nome de Israel designa o intelecto contemplativo que vê a Deus; ver Gregório o Sinaíta, Da Hesíquia e dos dois modos da Prece 1. [365] Cf. Mateus 16: 18; Marcos 3: 16; Atos 13: 9. A etimologia só faz sentido em função do comentário; ela não explica os nomes em si, que são de origem hebraica. [366] Cf. Atos 9: 11. [367] Cf. João 6: 66. [368] Homilias sobre são João XLVII. [369] Carta XLII. [370] Cf. II Pedro 1: 5-6. [371] II Samuel 4: 5-8. Nilo o Asceta, Discurso Ascético 16. [372] Cf. Efésios 6: 7. [373] Cf. II Coríntios 5: 7. [374] Cf. Gálatas 5: 7. [375] Cf. I Coríntios 13: 12. [376] Cf. Gálatas 5: 17. [377] I Coríntios 4: 20. [378] Obras espirituais, pg. 260. [379] Cf. Isaías 9: 5. [380] Lucas 12: 14. [381] Cf. João 5: 22. [382] Mateus 16: 24. [383] Mateus 19: 21. [384] Homilias sobre a riqueza. [385] Deuteronômio 6: 4-5. [386] Levítico 19: 18. [387] Cf. Mateus 19: 22. [388] Homilias sobre são Mateus LXIII. [389] I Tessalonicenses 4: 10. [390] Cf. João 21: 18-20. [391] João 6: 68.
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TII, VI – PEDRO DAMASCENO – Livro primeiro.
[392] Cf. Mateus 27: 5. [393] Cf. Atos 1: 18. [394] I Tessalonicenses 2: 8. [395] II Coríntios 4: 5. [396] I Timóteo 5: 1. [397] A escada santa XXVI, 117 [398] Provérbios 10: 9. [399] Pequenas Regras, 229 e 288. [400] Cf. Filemon, 14. [401] Cf. I Pedro 5: 3. [402] II Timóteo 2: 6. [403] I Timóteo 4: 12. [404] Instruções II, § 33. [405] Obras espirituais, pg. 77. [406] Cf. Lucas 18: 11. [407] Sobre a incompreensibilidade de Deus, I. [408] Cf. I Coríntios 13: 9-12. [409] Sobre a incompreensibilidade de Deus, I. [410] Nomes divinos IV, 11. [411] Isaías 26: 14. [412] Isaías 26: 19. [413] Cf. Mateus 17: 1; Marcos 9: 2. [414] Cf. Lucas 9: 28. [415] João 20: 30. [416] João 21: 25. [417] Gênesis 1: 3-6. [418] Gênesis 1: 3.6.14. [419] João 21: 25. [420] João 3: 8. [421] Homilias sobre são João XVIII. [422] A escada santa XXX, 24. [423] Cf. Mateus 13: 12. [424] Cf. Mateus 13: 12. [425] Sobre a incompreensibilidade de Deus II, citando I Coríntios [426] Daniel 2: 31-35. [427] Números 23: 8-10. [428] Cf. João 5: 39; 12: 50. [429] Sobre a teologia II, 53, citando I Reis 15: 28-35. [430] Salmo 50 (51): 12. [431] Atos 2: 15. [432] Cf. João 7: 37. [433] Cf. Apocalipse 1: 10. [434] Cf. Levítico 23: 35-36. [435] A fé ortodoxa II, 7. [436] Cf. Gênesis 1: 5. [437] Carta II, 3. [438] Cf. Sentenças dos Padres do Deserto, Poêmio 54. [439] Cf. João 5: 39. [440] Carta XLII, 2. [441] Sentenças dos Padres do Deserto, Sisoés 3.
8: 2.
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TII, VI – PEDRO DAMASCENO – Livro primeiro.
[442] Daniel 3: 23. Sentenças dos Padres do deserto, anônimo, 1205. [443] Sentenças dos Padres do deserto, Moisés 6. [444] Mateus 18: 20. [445] A escada santa I, 45; citando Provérbios 4: 27 e Números 20: 17. [446] Ibid. XXVI, 28; XIX, 8; XXVI, 45. [447] Ibid. XXVIII, 46. [448] Cf. Deuteronômio 32: 10. [449] Provérbios 1: 7; Salmo 110 (111): 10. [450] Obras espirituais, pgs. 365-366. [451] Ver acima, “Das oito contemplações espirituais”. [452] Cf. Mateus 18: 19 e Tiago 5: 16. [453] Cf. Lucas 18: 13. [454] Cf. Daniel 8: 17. [455] Cf. Apocalipse 1: 17. [456] Cf. II Coríntios 12: 9. [457] Cf. Tiago 5: 16. [458] Cf. Lucas 6: 28. [459] Obras espirituais, pg. 86. [460] Cf. Marcos 11: 25. [461] Obras espirituais, pg. 316. [462] I Coríntios 11: 16. [463] Sobre a penitência, Homilia VII, 3. [464] Cf. Lucas 18: 11-12. [465] Cf. Lucas 18: 13. [466] Cf. I Romanos 4: 5. [467] A escada santa XV, 77, citando Provérbios 14: 6. [468] Ibid. XV, 74. [469] Ibid. XXVI, 65. [470] Cf. I Coríntios 4: 7. [471] Cf. I Reis 21: 36. [472] Cf. João 13: 8. [473] Sobre o sacerdócio III, 3. [474] Cf. Mateus 16: 19. [475] João 3: 5. [476] João 6: 53. [477] Cf. Êxodo 26: 1-2; Hebreus 9: 1-6. [478] Cf. Êxodo 30: 10; Hebreus 9: 3; ver Evagro, Sobre a Oração 1.
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MACÁRIO, O EGÍPCIO Nosso Pai entre os Santos Macário o Egípcio, que foi chamado o Grande, viveu sob o reino de Teodósio por volta do ano 370. Por causa das penas extremas da ascese a que se submeteu, ele foi um modelo e um exemplo da vida solitária. Muito versado na sagrada Escritura, ele escreveu textos de grande valia sobre diversos temas, cheios da sabedoria do Espírito, num total de cinquenta. São estes textos que Simeão Metafraste, que viveu sob Basílio da Macedônia por volta do ano 870, admirando seu valor e sabedoria espiritual, traduziu, dividindo-os em cento e cinquenta capítulos para tornar mais fácil sua compreensão. Adornando-os com o encanto e a sedução desta bela língua e com a elegância graciosa da Ática, ele os tornou mais doces do que o mel para o entendimento dos leitores. Assim, do mesmo modo como eles superam muitos outros pela altura de seus significados e a ética dos seus ensinamentos, eles não ficam atrás de nenhum pela beleza das frases e a vivacidade das formulações; encantando pela musicalidade de sua composição os corações de todos os que sobre eles se debruçam, estes textos são lidos em toda ação de graças.
* Monge no deserto de Sceta no século IV, contemporâneo e discípulo de Antônio, vizinho e mestre de Evagro, Macário o Egípcio, muito depois de sua morte, marcou com seu exemplo e com seu nome (e talvez devido ao seu nome, que significa “bem-aventurado”) uma obra da qual não foi o autor. A crítica moderna pode, senão identificar, ao menos situar (no século V, dos lados da Mesopotâmia) o autor real dos “escritos macarianos”: quanto ao essencial da obra, uma centena de logoi ou de homilias, e a Grande Carta, cujo texto é paralelo ao da Instituição Cristã de Gregório de Nysse. Estes escritos representam assim menos um testemunho pessoal preciso do que a transmissão global de uma exigência, de uma experiência e de uma história que era comum a todos os que, desde há um século, haviam se engajado na anacorese ou nas comunidades monásticas. Os manuscritos nos chegaram sob a forma de “coleções” ou de “florilégios”, prefigurando assim a própria Filocalia. Foi um destes florilégios (extraído da Grande Carta e das homilias), intitulado Cinquenta logoi de são Macário, que foi parafraseado (fielmente, mas não sem refinamentos) no século X, nos 150 capítulos que a antologia filocálica inseriu entre os testemunhos de Pedro Damasceno e de Simeão o Novo Teólogo. O autor da paráfrase, Simeão Metafraste (Simeão o Tradutor), era um dignitário da corte imperial de Constatinopla: belo exemplo da osmose que podia existir em Bizâncio entre a vida monástica e a vida secular. 731
Assim, nem o autor no título, nem o autor da paráfrase são o autor real. Mas o paradoxo é apenas aparente. Pois um e outro simbolizam a fonte e o florescimento da corrente monástica: o Evangelho, levado ao deserto até o ponto de incandescência, depois entregue à comunidade cristã e à cidade dos homens, pela interiorização e a irradiação da vida eremítica. Mas a passagem pelo deserto não era isenta de riscos. O movimento monástico pedia e implicava renúncias tais que, na nebulosa ardente de suas origens, podia, com a contribuição do deserto, evaporar nos abismos. Sem jamais perder de vista a “ruptura” mística e profética, os textos macarianos souberam e puderam, esperando tudo do mistério da encarnação e da vinda do Espírito Santo no coração, fazer sair destes abismos o movimento monástico, a fim de mantê-lo e perpetuá-lo dentro da ortodo9xia bíblica e eclesial. Esta manutenção e esta transmissão foram assim, de uma ponta a outra, desde os primeiros Padres do deserto até os nossos dias, aquilo que a experiência dos monges sempre soube guardar, atestar e revelar de mais fiel na origem e na esperança evangélicas. Pois aqui tudo começa pelos fundamentos do Evangelho. O monge – o cristão, como o chama Macário – perde seu esforço e mesmo sua prece, se não edificar a vida interior e a vida comunitária sobre o amor e a humildade, a simplicidade, a bondade e enfim o trabalho. Macário sublinha isto constantemente: o mal absoluto é a presunção. Satisfazer-se com uma virtude ou um carisma ao invés de se descobrir ainda mais indigente e mais sedento depois de tê-los recebido, é se condenar a transformar a virtude em vício e o carisma em perdição. A vida cristã é acima de tudo uma passagem do visível ao Invisível. “O templo visível, diz ele, é uma imagem do templo do coração”. Tudo, portanto, conduz ao coração, o “lugar de Deus”. Mas o coração humano não é “lugar de Deus” a menos que esteja quebrantado. Só a partir daí ele poderá ser restaurado e cheio da consolação do Espírito Santo. Macário nos lembra aqui, no fio de prumo do Pentecostes, de que “é impossível adquirir o Espírito Santo senão nos tornando estranhos a todas as coisas deste século e renunciando a nós mesmos para buscar o amor de Cristo”. Mas se o cristão deve entregar tudo a este amor de Cristo, seu dom se verifica e se cumpre no amor ao próximo. Assim, o amor de Cristo se constitui menos numa fuga mística e mais num real encaminhamento: viver aqui e agora, no meio dos outros, com os outros, as primícias da deificação e da comunhão dos santos. Sobre a experiência das fronteiras onde se opera a osmose do possível com o impossível, sobre a passagem do místico ao real, sobre aunião do divino com o humano, sobre o estado de êxtase, sobre o fluxo e o refluxo da graça, sobre a luz, Macário escreve frases estonteantes de beleza e verdade. Sobretudo, e esta é sua contribuição capital – perfeitamente bíblica e ortodoxa – ele insiste no fato de que a glória – a luz que resplandece no rosto de Moisés ou nos olhos de Paulo a caminho de Damasco – é o próprio poder do Espírito, a própria energia de Deus, e que esta glória nos foi dada. “É por esta luz, dizia ele, que todo conhecimento é revelado”. Portanto, todo conhecimento que não se relaciona com esta luz é truncado, privado de sua fonte. Existe aí um discernimento que dá a medida e precisa o alcance da corrente macariana, tal como ela floresceu no testemunho crucial dos místicos bizantinos dos séculos X ao XV, para se revelar nos dias de hoje secretamente no coração dos dilemas de nosso tempo.
732
TII, VI – MACÁRIO, O EGÍPCIO – Da perfeição no espírito.
PARÁFRASE DE SIMEÃO METAFRASTE EM 150 CAPÍTULOS SOBRE OS DISCURSOS DE SÃO MACÁRIO O EGÍPCIO DA PERFEIÇÃO NO ESPÍRITO PRIMEIRO DISCURSO
1. É pela graça e o dom divino do Espírito que cada um de nós obtém a salvação; é pela fé e o amor, e pelo combate da livre resolução, que podemos atingir a medida perfeita da virtude, a fim de, tanto pela graça como pela justiça, herdarmos a vida eterna. Não é apenas pelo poder divino e a graça divina, e sem contribuir com nosso próprio suor, que seremos considerados dignos de progredir até a perfeição. Também não é apenas por nosso próprio esforço e só com a nossa força, sem que a mão divina participe desde o alto, que chegaremos à medida perfeita da liberdade e da pureza. Pois foi dito: “Se o Senhor não edifica a casa e guarda a cidade, aquele que guarda vela em vão, assim como em vão trabalha aquele que se esforça em construir[1]”. 2. Pergunta: Qual é a vontade de Deus, esta vontade que, suponho eu, o Apóstolo exorta e conclama a cada um que a cumpra[2]? Resposta: Consiste na perfeita purificação do pecado, na libertação das paixões desonrosas[3], na aquisição da virtude suprema, ou seja, na purificação e na santificação do coração, que se realiza de maneira perfeitamente real pela participação do Espírito perfeito e divino. Com efeito, foi dito: “Bem-aventurados os de coração puro, por que verão a Deus[4]”. E: “Tornem-se perfeitos, vocês também, assim como o Pai celeste é perfeito[5]”. E: “Que meu coração, disse Davi, seja irrepreensível graças aos seus julgamentos, a fim de que eu não seja confundido[6]”. E ainda: “Agora já não serei confundido diante dos seus mandamentos[7]”. E ainda, ao que perguntou: “Quem subirá no monte do Senhor, ou quem habitará em seu lugar santo?”, ele respondeu: “Aquele cujas mãos são inocentes e cujo coração é puro [8]”. Com estas palavras ele ensinou a eliminar perfeitamente o pecado cometido tanto em ação como em pensamento. 3. O Espírito Santo, sabendo o quanto é difícil a libertação das paixões invisíveis e ocultas enraizadas na alma, mostra com o exemplo de Davi como é possível a purificação. “Purifique-me de minhas faltas ocultas[9]”, disse ele. É isto que podemos fazer, por meio da sinergia do Espírito, se orarmos muito, se for grande a nossa fé e se nos voltarmos perfeitamente para Deus. Mas devemos também nos opor a essas faltas, e manter uma total vigilância no nosso coração[10]. 4. Também o bem-aventurado Moisés mostrou por imagens que a alma não deve seguir dois desejos, o do mal e o do bem, mas apenas o do bem, e que ela não deve produzir dois frutos, o bom e o ruim, mas apenas o bom. Ele disse o seguinte: “Quando você semear o trigo não coloque numa mesma junta animais de espécies diferentes, como o boi e o asno[11]”. Faça a semeadura utilizando animais da mesma espécie. Ou seja: não devemos colocar a trabalhar no terreno de nosso coração a virtude e o vício, mas apenas a virtude. “Você não tecerá linho em sua vestimenta de lã, nem lá na sua vestimenta de linho[12]”. “Você não cultivará frutas diferentes numa mesma parcela de terra[13]”. Você não unirá um animal de uma espécie a um animal de outra espécie, mas unirá animais da mesma espécie. Todas estas imagens têm o mesmo sentido místico: como foi dito, não devemos cultivar em nós o vício e a virtude, mas só devemos deixar nascer aquilo que for engendrado pela virtude. Também não devemos deixar que a alma comungue com dois espíritos, o Espírito de Deus e o espírito do mundo, mas somente com o Espírito de Deus. Apenas do Espírito de Deus ela deverá produzir frutos. É por isso que foi dito: “Eu me dirigi a todos os mandamentos e detestei todo caminho injusto[14]”.
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5. Não é apenas dos pecados visíveis, como a prostituição, o assassinato, o roubo, a gula, a maledicência, a mentira, o amor ao dinheiro, a cupidez e outros semelhantes, que deve se guardar a alma virgem que escolheu se unir a Deus, mas ainda mais dos pecados secretos de que já falamos: a concupiscência, a vanglória, o desejo de agradar aos homens, a hipocrisia, o amor ao poder, a intriga, o mau caráter, a falta de fé, a inveja, o egoísmo, o orgulho e outros vícios análogos. Pois Deus sabe que estes pecados da alma, como diz a Escritura, estão colocados sobre o mesmo plano dos pecados exteriores. “O Senhor, diz ela, dispersou os ossos daqueles que desejavam agradar aos homens[15]”. E: “O Senhor detesta o homem de sangue e intrigas[16]”, mostrando com isto que Deus sente a mesma aversão diante da intriga e do assassinato. E: “Aqueles que falam de paz ao seu próximo[17]”, etc. E mais: “É no coração que vocês cometem a injustiça sobre a terra[18]”. E: “Infelizes serão vocês quando os homens falarem bem de vocês[19]”, ou seja: quando vocês quiserem ouvir os homens falar bem de vocês, e quando se ligarem na glória e nos elogios que eles lhes fizerem. Com efeito, como é possível que permaneçam totalmente escondidos aqueles que fazem o bem? Ora, o próprio Senhor diz em outra parte: “Que a sua luz brilhe diante dos homens[20]”, no sentido de que é preciso se esforçar para fazer o bem pela glória de Deus e não para a própria glória, e sem nenhum desejo do elogio dos homens. Pois ele demonstrou que aqueles que pensam na própria glória não crêem, quando disse: “Como podem vocês crer, vocês que recebem a glória uns dos outros e que não buscam a glória que vem somente de Deus? [21]”. Considerem igualmente todo o rigor que o Apóstolo exige, até no comer e no beber: ele ordena que tudo seja feito para a glória de Deus. “Quer vocês comam, quer bebam, quer façam o que for, façam tudo pela glória de Deus[22]”. E o divino João, assimilando o ódio ao assassinato, diz: “Quem odeia o seu próximo é um assassino[23]”. 6. “A caridade contempla tudo, suporta tudo, a caridade não desfalece jamais[24]”. A expressão “não desfalece jamais” mostra o seguinte: aqueles que obtiveram os carismas do Espírito de que falamos, mas que não chegaram a se liberar completamente das paixões graças à caridade plena e ativa do Espírito, estes ainda não se encontram em lugar seguro. Seu estado ainda se encontra exposto ao perigo, ao combate e ao temor, por causa dos espíritos do mal[25]. O Apóstolo mostrou que o grau da caridade que não está mais submetido à queda e à paixão é tal que mesmo a língua dos anjos, a profecia, todo o conhecimento e até os carismas da cura nada são em comparação com ele[26]. 7. Eis por que ele mostrou o objetivo da perfeição: para que cada qual, discernindo o quão pobre é diante de tamanha riqueza, se apresse, tenso e com espírito ardente, na direção do fim último e dispute a corrida espiritual até conquistar o prêmio, conforme foi dito: “Corram, a fim de conquistar o prêmio[27]”. 8. “Renunciar a si mesmo” significa o seguinte: em tudo abandonar-se à Fraternidade, em nada seguir a própria vontade, nada possuir além da própria veste, a fim de, livre de tudo, se ligar com alegria ao que lhe for ordenado, considerando a todos os irmãos, em especial os que dirigem e receberam o encargo do mosteiro, como autoridades e mestres em nome de Cristo, e assim obedecer às palavras de Cristo: “Se alguém dentre vocês quiser ser o primeiro e o maior, antes seja o último e o escravo de todos [28]”, sem jamais receber dos irmãos nem glória, nem honra, nem louvor por seu serviço e sua conduta. Com efeito, foi dito: “Quando vocês servirem, seja com alegria, e não por serem supervisionados ou para agradar aos homens[29]”. Devemos sempre nos considerar devedores do serviço que prestamos aos irmãos com amor e simplicidade. 9. Quanto aos que dirigem a Fraternidade, e que estão encarregados de uma grande obra, devem combater por meio da humildade as intrigas do mal que se opõem a eles, a fim de não se prejudicar ao invés de receber maior ganho, por oprimirem com um orgulho condenável os irmãos que lhes estão submetidos. Ao contrário, como pais misericordiosos que se consagram por Deus ao serviço da Fraternidade de corpo e espírito, que cuidem dos irmãos e velem sempre por eles como filhos de Deus. Na ordem aparente, não recusem o papel de superiores: dar ordens ou aconselhar os que já receberam a confirmação, repreender ou
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acusar onde for preciso e exortar quando necessário – a fim de que, sob a cobertura da humildade e da mansidão, os mosteiros não sejam atirados à confusão por falta dos graus respectivos que convêm a superiores e subordinados. Mas na ordem invisível dos pensamentos, que os superiores se vejam como indignos servidores de todos os irmãos; e, como bons pedagogos a quem foram confiados os filhos de seu mestre, se esforcem com alegria e temor a Deus em atribuir boas obras a cada um dos irmãos, sem ignorar quão grande e inalienável será a recompensa que Deus lhes reserva por seus esforços. 10. Assim como os que receberam o encargo de serem pedagogos dos jovens, ainda que estes sejam seus patrões, não hesitam, em nome da educação e da ética, em lhes infligir castigos por pura benevolência, também os superiores não devem punir movidos pela cólera e o orgulho, nem para se vingar, os irmãos que necessitam de uma correção; antes, trabalhem eles por sua conversão com uma misericórdia cheia de bondade e com vistas ao benefício espiritual. 11. Todo homem que pretende se formar neste gênero de vida deve procurar antes de tudo o temor a Deus e o santo amor, que é o primeiro e o maior de todos os mandamentos[30]. Que ele peça constantemente ao Senhor para que o infunda em seu coração, e que assim adquira, fazendo-o crescer e progredir a cada dia por meio da graça na contínua e incessante lembrança de Deus. Pois é pelo esforço e a tensão, a sobriedade, a vigilância e o combate que nos tornamos capazes de adquirir o amor a Deus, este amor que a graça e o dom de Cristo geram em nós. Por meio deste fica fácil cumprir o segundo mandamento [31], ou seja, o do amor ao próximo. Aquilo que é primeiro deve, com efeito, ser preferido ao demais e suscitar um esforço maior: assim o que é segundo seguirá o primeiro. Mas se alguém negligenciar este primeiro e grande mandamento – refiro-me ao amor a Deus, que nasce de nossa disposição interior, de uma boa consciência e das ideias sãs a respeito do próprio Deus, a que virá se juntar o socorro divino – e se imaginar liberado exteriormente do cuidado para com o segundo – o serviço ao próximo- ser-lhe-á impossível praticar sã e puramente o primeiro. Pois a armadilha do mal, perturbando o intelecto privado da lembrança, do amor e da busca de Deus, ou bem fará com que as ordens divinas pareçam difíceis e penosas, acendendo na alma murmurações de tristeza e de descontentamento, bem as críticas suscitadas pelo serviço prestado aos irmãos, ou bem, depois de ter enganado o intelecto com a presunção de ser justo, inflará a alma de orgulho e a persuadirá de considerar a si mesma como sendo grande, digna de honra e cumpridora dos mandamentos. 12. Quando um homem tem a presunção de imaginar que ele cumpre os mandamentos por si próprio e com sucesso, está claro que ele se encontra em estado de pecado e que ele falta ao mandamento, por que ele julga a si mesmo sem esperar por Aquele que o julgará em verdade. Com efeito, é quando o Espírito de Deus testemunha com nosso espírito, segundo a palavra de Paulo[32], que nos tornamos verdadeiramente dignos de Cristo e filhos de Deus, e não quando nos auto-justificamos por nossa presunção. Pois foi dito: “Não é aquele que recomenda a si próprio que será aprovado, mas aquele recomendado pelo Senhor [33]”. De fato, quando o homem se despoja da lembrança e do temor a Deus, ele passa necessariamente a desejar a glória e a buscar os elogios daqueles a quem serve. Mas este homem será acusado pelo Senhor por sua falta de fé, como já mostramos. “Como podem vocês crer, disse ele, vocês que buscam a receber a glória uns dos outros e não procuram a glória que vem apenas de Deus?[34]”. 13. É por meio de um longo combate e pelo labor do intelecto, graças a pensamentos nobres e ao cuidado contínuo com todas as formas do bem, que nosso amor por Deus pode desabrochar, conforme foi dito. Pois o adversário entrava nosso intelecto e não lhe permite dedicar-se ao amor a Deus pela lembrança do bem, agradando os sentidos com as concupiscências terrestres. Com efeito, o maligno morre engasgado, por assim dizer, quando o intelecto se agarra efetivamente e sem distração ao amor e à lembrança de Deus. É assim, graças ao primeiro, único e essencial mandamento, o amor a Deus[35], que pode nascer o amor puro pelo irmão, e também por meio dele que a verdadeira simplicidade, a doçura, a humildade, a integridade, a bondade, a prece e toda a maravilhosa coroa das virtudes, recebem a sua perfeição. É assim
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necessário combater muito, trabalhar secreta e invisivelmente, sondar os pensamentos, exercitar no discernimento do bem e do mal os sentidos embotados de nossa alma, fortificar e reanimar seus membros cansados, sempre orientando atentamente o intelecto para Deus. Assim, nosso intelecto, continuamente ligado em Deus se tornará um só espirito com o Senhor, conforme as palavras de Paulo[36]. 14. Os que amam a virtude, disse o Apóstolo, devem conduzir este combate secreto sem cessar, trabalhar e se exercitar noite e dia com vistas a cumprir cada mandamento, seja orando, seja servindo, comendo ou bebendo, ou no que quer que façam[37], a fim de que qualquer bem que obtenham seja para glória de Deus e não para sua própria glória. Toda observância dos mandamentos nos é leve e fácil uma vez que o amor a Deus facilita tudo e dispersa tudo o que ela tem de penoso. Pois é aqui que o adversário coloca todo seu empenho no combate, como mostramos: conseguir distrair o intelecto da lembrança, do temor e do amor a Deus, desviando-o, por meio das transgressões e das seduções terrestres, do bem real para os bens imaginários. 15. É dito que o patriarca Abrahão, quando foi ao encontro do sacerdote de Deis Melquisedeque, ofereceulhe as primícias e dele recebeu a bênção[38]. Com isto o Espírito nos eleva a uma contemplação mais elevada: devemos primeiro oferecer a Deus em holocausto, como o sacrifício mais santo, as extremidades e a primeira gordura de todo nosso corpo composto, ou seja, o próprio intelecto, a consciência e a potência do amor da alma. Devemos dar a esta lembrança de Deus as primícias e o começo dos pensamentos direitos, e mantê-los sem descanso na caridade e no amor secreto que ultrapassa a natureza. Assim, a cada dia, ajudados pela graça divina, poderemos crescer e avançar. E o peso da justiça dos mandamentos nos parecerá leve[39], uma vez que os cumpramos pura e irrepreensivelmente, assistidos pelo próprio Senhor por meio da fé que a ele dedicamos. 16. Quanto à ascese visível, qual é a maior e a primeira dentre as boas obras? Saibam, bem-amados, que as virtudes estão ligadas umas às outras e se mantêm como uma corrente sagrada: uma virtude depende da outra. Assim é que a prece depende do amor; o amor, da alegria; a alegria, da mansidão; a mansidão, da humildade; a humildade, do serviço, o serviço, da esperança; a esperança, da fé; a fé, da obediência; a obediência, da simplicidade. Do mesmo modo, seus contrários estão ligados entre si. A aversão está ligada à cólera; a cólera, ao orgulho; o orgulho, à vanglória; a vanglória, à falta de fé; a falta de fé, à dureza do coração; a dureza do coração, à negligência; a negligência, ao descaso; o descaso, à indiferença; a indiferença, à acídia; a acídia, à impaciência; a impaciência, ao amor pelos prazeres. Da mesma forma, todas as demais formas de vício estão ligadas entre si. 17. O que quer que o homem faça de bom, o maligno sempre tentará atrapalhar e manchar misturando à obra as suas sementes: a vanglória ou a presunção, a murmuração ou qualquer outro vício semelhante, a fim de que o bem não seja feito por Deus apenas, nem pela simples decisão do homem. Está escrito que Abel ofereceu a Deus um sacrifício de gordura e dos primogênitos das ovelhas, e que também Caim fez uma oferenda de frutos da terra, mas não os primeiros frutos, e que, por causa disto, Deus se agradou do sacrifício de Abel e deixou de lado as oferendas de Caim[40]. Podemos aprender aqui que é possível não fazer bem um ato bom, quando agimos com negligência, ou com desdém, ou com qualquer outro objetivo que não seja Deus. Então, o bem que tivermos feito não será agradável a Deus.
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SOBRE A ORAÇÃO 18. A perseverança na oração é o fundamento de todo esforço bom e o ápice em que se cumprem as boas obras. É por meio dela, quando apelamos para que Deus nos estenda uma mão segura, que podemos adquirir as virtudes. Com efeito, é por meio da oração que se concede aos que dela são dignos de comunicar com a energia mística e reencontrar o estado de santidade que, pelo inefável amor do Senhor, volta para Deus o próprio intelecto. Foi dito: “Você trouxe alegria ao meu coração[41]”. E o próprio Senhor disse: “O Reino de Deus está dentro de vocês[42]”. O que pode significar que o Reino de Deus esteja dentro de nós, senão que a alegria celeste do Espírito grava claramente com sua marca as almas daqueles que são dignos dele? Pois as almas que, pela comunhão eficaz do Espírito, são dignas da graça, recebem as garantias e as primícias do regozijo, da alegria, da felicidade que este Espírito traz consigo, e das quais tomam parte os santos, na luz eterna no coração do Reino de Cristo. É isto, como sabemos, que o Apóstolo divino apontou. De fato, ele disse: “Ele nos consola em nossa aflição, a fim de que, pelo consolo que nós mesmos recebemos de Deus, possamos consolar aqueles que estão em depressão[43]”. Mas foi dito também: “Meu coração e minha carne bradam de alegria ao Deus vivo”. E: “Como de gordura e tutano, minha alma será saciada[44]”. Da mesma forma, outros versículos semelhantes querem dizer a mesma coisa, e fazem alusão à alegria e à consolação eficazes do Espírito. 19. Assim como a obra da prece é maior do que todas as outras, também aquele que está tomado de amor por ela deve se esforçar e cuidar muito mais para que ela não lhe seja inadvertidamente roubada pelo vício. Pois o maligno ataca com mais força os que visam o bem maior. Aquele que tiver este objetivo precisará de uma grande vigilância e uma grande sobriedade para carregar consigo daí em diante os frutos do amor e da humildade, da simplicidade e da bondade, e finalmente do discernimento, perseverando dia a pós dia na oração. Estes frutos lhe mostrarão seu próprio progresso e crescimento nas coisas de Deus, e convidarão outros a experimentar o mesmo fervor. 20. O próprio Apóstolo divino ensina que é preciso orar sem cessar[45] e perseverar na prece[46]. E o Senhor disse: “Quanto mais justiça não fará Deus aos que por ele clamam noite e dia! [47]”; e: “Vigiem e orem[48]”. É preciso, pois, “orar sempre, sem relaxar[49]”. Assim como aquele que persevera na oração escolheu a obra mais fundamental, também lhe será necessário conduzir um grande combate e sustentar um esforço contínuo, pois numerosos obstáculos do vício se opõem à perseverança na prece: o sono, a acídia, o peso no corpo, a confusão de ideias, a agitação do intelecto, o relaxamento e outras obras prejudiciais. Depois vêm as aflições, os sobressaltos causados pelos espíritos do mal, que nos combatem e nos resistem encarniçadamente, e que impedem que a alma que busca incansavelmente a verdade se aproxime de Deus. 21. Por meio de todos os esforços, por meio da sobriedade e da vigilância, da paciência e do combate da alma, por meio das penas do corpo, aquele que se dedica à oração deve agir como um homem corajoso, sem relaxar nem se abandonar ao devaneio dos pensamentos, sem dormir demais, sem se deixar dominar pela acídia, pela negligência, pela confusão e as palavras desordenadas e inconsideradas; que nada disto ele permita ocorrer durante sua reflexão, e que não se contente apenas com permanecer logo tempo em pé ou ajoelhado enquanto seu intelecto vagueia distante da realidade. Pois se ele não se preparar por meio de uma estrita sobriedade e vigilância, opondo-se à matéria dos pensamentos vãos, sondando e discernindo um por um e desejando sempre o Senhor, nada poderá impedir que ele seja de muitas maneiras e invisivelmente seduzido pelo vício, ou que venha a se orgulhar diante dos que não são ainda capazes de perseverar na oração. Vítima das armadilhas do vício, ele destruirá seu bom trabalho, oferecendo-o ao demônio ardiloso. 22. Se a humildade e o amor, a simplicidade e a bondade não regram o bom ordenamento de nossa oração, esta, que na verdade consiste apenas numa aparência de oração, fica praticamente incapacitada de nos
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ajudar. Não dizemos isto apenas da oração, mas de todo esforço, toda pena, como a virgindade, o jejum, a vigília, a salmodia, o serviço e de modo geral todo trabalho feito com atenção por amor à virtude. Se não procuramos ver em nós mesmos os frutos do amor, da paz, da alegria, da simplicidade, da humildade, da doçura, da candura, da fé[50] tal como esta deve ser, da paciência como da benevolência, os esforços que fazemos de nada nos servem. Pois é fato que aceitamos as penas para nos beneficiarmos de seus frutos. Mas se não encontrarmos em nós os frutos do amor, nosso trabalho terá sido feito em vão. Não diferiremos em nada das cinco virgens tolas[51], que não possuíam no coração o óleo espiritual, ou seja, a energia das virtudes de que falamos, esta energia que é dada pelo Espírito. É assim que elas foram chamadas de tolas e rejeitadas lamentavelmente do local das bodas reais, sem receber sua parte dos frutos das penas da virgindade. De fato, quando cultivamos uma vinha, de início prodigalizamos todos os cuidados e esforços para que ela dê seus frutos, mas se não os colhermos nosso trabalho terá sido aleatório. Da mesma forma, se não virmos em nós, graças à energia do Espírito, os frutos do amor, da paz, da alegria e das demais virtudes que forma enumeradas pelo Apóstolo[52], e se não reconhecermos esta graça com toda certeza e por nossa percepção espiritual, os esforços da virgindade, da prece, da salmodia, do jejum e da vigília terão sido manifestamente vãos. Pois estas penas e esforços da alma devem se cumprir, como dissemos, na esperança dos frutos espirituais. Trazer em si os frutos da virtude é um regozijo espiritual, acompanhado de um prazer incorruptível, que o Espírito suscita secretamente nos corações fiéis e humildes. Assim, as penas e os esforços podem ser considerados como aquilo que são – como penas e esforços – e os frutos, como frutos. Mas se alguém, por falta de conhecimento, julga que seu trabalho e seu esforço já são os frutos do Espírito, saiba que se consola e se ilude, e que neste seu estado se priva dos frutos realmente grandes, os frutos do Espírito. 23. Da mesma forma como alguém que se abandona inteiramente ao pecado se entrega com alegria e prazer, como se fossem naturais, às paixões contra a natureza, às paixões da desonra[53] – o despudor, a prostituição, a cupidez, o ódio, a mentira e outros caminhos do vício – também quem é verdadeiramente cristão e segue a perfeição busca com naturalidade, com grande alegria e prazer espiritual, sem penas e com toda facilidade, todas as virtudes e os frutos do Espírito que ultrapassam a natureza: o amor, a paz, a paciência, a fé[54], a humildade e toda espécie de ouro em que consiste a virtude. Este já não precisa combater as paixões do vício, pois dele foi libertado pelo Senhor e o Espirito de bondade cumulou seu coração com a paz e a alegria perfeitas de Cristo. Assim é o homem que se ligou ao Senhor e se tornou um só espírito com ele[55]. 24. Os que, por serem ainda crianças, não podem se dedicar até o fim na obra da oração, devem aceitar servir os irmãos com piedade, fé e temor a Deus. Pois eles estão a serviço de um mandamento de Deus e de uma obra espiritual. Mas que não esperem um salário dos homens, honrarias ou um agradecimento. Nem se permitam nenhum murmúrio, nem orgulho, ne negligência, nem relaxamento, a fim de não manchar nem corromper tão boa obra, mas se esforcem em torna-la agradável a Deus pela piedade, o temor e a fé. 25. O Senhor desceu entre nós homens – ó misericórdia divina diante de nós! – com tanto amor e bondade, buscando não deixar por fazer nenhuma obra boa sem receber salário, levando ao todos os seres desde as menores às maiores virtudes, para não privar a ninguém de recompensa, nem que fosse um copo de água fresca. Pois ele disse: “Quem quer que ofereça nem que seja um copo de água fresca a um desses pequeninos, por que são eles meus discípulos, em verdade eu lhes digo, este não perderá sua recompensa[56]”. E também: “Quem o fizer a um deles, a mim o fará[57]”. Mas devemos fazer estes gestos por amor a Deus, não pela glória humana, por que ele acrescentou: “por que ele é meu discípulo”, ou seja: por temor e amor a Cristo. Foi em condenação aos que perseguem o bem ostensivamente, dando às suas palavras a força de uma firme sentença, que o Senhor disse: “Em verdade eu lhes digo, estes já receberam sua recompensa”.
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26. Que a simplicidade diante dos demais, a candura, o amor mútuo, a alegria e a humildade sejam de algum modo colocados como um fundamento da Fraternidade, a fim de não tornarmos inútil nossos esforços por nos orgulharmos e murmurarmos uns contra os outros. Que aquele que persevera continuamente na oração não se levante contra o que não consegue o mesmo tanto. E que aquele que se dedica ao serviço dos demais não se revolte contra o que se consagra à oração. Se cada qual se dirigir ao seu irmão com tal simplicidade e estado de alma, o sobejo dos que permanecem em oração virá suprir a falta dos que servem, e o sobejo deste virá suprir a falta dos que consagram à oração. É assim que será preservada a igualdade[58], conforme foi dito: “Aquele que possuía mais não tinha nada de mais; e ao que tinha menos nada lhe faltava[59]”. 27. É deste modo que se cumpre a vontade de Deus na terra como nos Céus[60]: quando não nos levantamos uns contra os outros, como foi dito, quando estamos unidos uns aos outros não apenas sem invejas, mas com simplicidade, na partilha do amor, da paz e da alegria, considerando o progresso do próximo como se fosse nosso, e considerando que aquilo que a ele falta também a nós prejudica. 28.Quem ora com desleixo e se dedica displicentemente e com negligência ao serviços dos irmãos ou a qualquer outra obra consagrada a Deus é precisamente chamado de preguiçoso e condenado pelo Apóstolo como sendo indigno do pão que come. Pois Paulo disse: “Que o preguiçoso que não quer trabalhar não coma[61]”. E em outra ocasião: “Deus detesta a quem não trabalha”. E: “Quem não trabalha não pode ser fiel”. E a Sabedoria disse: “O ócio ensina muitos vícios[62]”. É conveniente, portanto, que toda obra consagrada a Deus, seja qual for, dê seus frutos e conduza com diligência nem que seja a uma só dentre suas benesses, a fim de que o homem não se veja totalmente estéril nem seja excluído por completo dos bens eternos. 29. Aos que afirmam ser impossível chegar à perfeição e se livrar das paixões de uma vez por todas, comungar com o Espírito bom e dele ser cumulado, é preciso opor o testemunho das Escrituras divinas, e mostrar a estes que eles conhecem pouco e que proferem perigosas mentiras. Pois o Senhor disse: “Se tornem perfeitos, como seu Pai celeste é perfeito[63]”, querendo dizer com estas palavras que a pureza pode ser alcançada. E: “Quero que onde estou estejam eles comigo, para que contemplem minha glória[64]”. É o que afirma Aquele que disse: “Passarão o céu e a terra, mas minhas palavras não passarão[65]”. E estas palavras do Apóstolo vão no mesmo sentido: “A fim de tornar todo homem perfeito em Cristo [66]”, e: “Até que todos alcancemos a unidade da fé e o conhecimento do Filho de Deus, no estado do homem perfeito, na medida da plenitude de Cristo[67]”. Assim é que duas coisas de uma beleza perfeita são concedidas àqueles que buscam a perfeição: sustentar o combate intensa e continuamente, perseguir a perfeição até o fim na esperança desta medida – falo da elevação – sem serem tomados pelo orgulho, sendo ao contrário modestos, considerando-se pequenos por não terem ainda atingido o que é perfeito. 30. Os que dizem que é impossível alcançar a perfeição prejudicam a alma de três maneiras. Primeiro por que parecem duvidar das Escrituras inspiradas por Deus. Depois por que, não tendo atingido o fim mais alto, o objetivo perfeito do Cristianismo, e sem fazer nenhum esforço para alcançá-lo, não podem trazer em si as penas e o fervor, a sede e a fome de justiça[68], mas, cheios das formas e dos comportamentos exteriores e por algumas raras ações direitas, estão privados da esperança bem-aventurada[69], da perfeição e da purificação total das paixões. Enfim, por que, acreditando haver chegado ao fim quando apenas alcançaram algumas virtudes, como dissemos, e já não buscando com ardor a perfeição, não apenas não conseguem trazer em si a humildade, a pobreza e a contrição do coração, como ainda, justificando a si próprios[70] como se já houvesse atingido o objetivo, deixam de conhecer dia após dia o progresso e o crescimento. 31. Os que acham impossível este restabelecimento que é concedido aos homens pelo Espírito e que consiste na nova criação do coração puro[71], o Apóstolo mostra que são semelhantes àqueles que, por
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incredulidade, não foram considerados dignos de entrar na Terra prometida, e é por isso que seus cadáveres tombaram pelo deserto[72]. Naquela ocasião, tratava-se da ordem visível da Terra prometida, mas agora o que é falado secretamente se refere à libertação das paixões. O Apóstolo demonstra à perfeição que este é o objetivo de todos os mandamentos[73]. É aqui que se encontra a verdadeira Terra prometida e é por ela que todas essas coisas nos foram transmitidas figuradamente. O maravilhoso Paulo, buscando afirmar a obra de seus discípulos para que nenhum deles fosse colhido por um sentimento de incredulidade, disse igualmente: “Vigiem, meus irmãos, para que nenhum de vocês tenha um coração enganoso e incrédulo, a ponto de se desviar do Deus vivo[74]”. Ele diz “se desviar” não no sentido de “negar”, mas no sentido de “não crer em suas promessas”. Falando alegoricamente dessas imagens dos Judeus e comparando-as com a verdade, ele acrescenta: “Quais foram os que provocaram a Deus depois de haverem ouvido, senão aqueles que saíram do Egito sob o comando de Moisés? De quem foram eles indignos por quarenta anos? Não são os que haviam pecado, e cujos cadáveres tombaram pelo deserto? A quem jurou Deus que não entrariam em repouso, senão aos que haviam desobedecido? É assim que vemos que eles não puderam entrar na Terra prometida devido à sua incredulidade[75]”. E ele continua: “Temamos pois, enquanto durar a promessa de entrar em seu repouso, e que nenhum de vocês pareça ter chegado tarde demais. Pois a boa nova nos foi anunciada, como foi a eles. Mas a palavra que ouviram não lhes serviu de nada, por que eles não permaneceram unidos pela fé àqueles que escutaram. Quanto a nós, que cremos, nós entraremos no repouso[76]”. E ele acrescenta pouco depois: “Esforcemo-nos para entrar no repouso, a fim de que ninguém tombe seguindo o mesmo exemplo de desobediência[77]”. Ora, que outro repouso é dado aos cristãos senão a libertação das paixões do pecado e a morada plena e ativa do Espírito bom no coração puro? É assim que o Apóstolo, levantando os cristãos para a fé, diz ainda: “Aproximemonos com um coração verdadeiro, na plenitude da fé, com os corações purificados que qualquer consciência má[78]”. E também: “Quanto mais não purificará o sangue de Jesus Cristo nossa consciência das obras mortas, para que sirvamos aos Deus vivo e verdadeiro?[79]”. Por causa da incomensurável bondade de Deus para com os homens, a bondade prometida nestas palavras, devemos confessar, como servos reconhecidos, e considerar como certo e verdadeiro o que nos foi prometido. Mesmo que, pela lentidão e a fraqueza de nossa resolução, não sejamos capazes de nos oferecer de uma vez por todas ao Criador e não tenhamos alcançado as grandes e perfeitas medidas da virtude, ao menos pela correção e a justeza do sentimento e pela fé sã possamos encontrar alguma compaixão. 32. Quando cumprida como se deve, a obra da prece e da palavra está acima de toda virtude e de todo conhecimento. O próprio Senhor o atesta. Ele havia entrado na casa de Marta e Maria. Enquanto Marta estava ocupada em servir, Maria estava sentada aos pés do Senhor, degustando como de um santo alimento as palavras daquela língua divina. Mas sua irmã a acusou de não cooperar com o trabalho, e foi falar com Cristo. Ora, este, colocando o principal antes do secundário, lhe disse: “Marta, Marta, você se inquieta e se agita por muitas coisas. Mas somente uma coisa é necessária. Maria escolheu a boa parte, que não poderá lhe ser tirada[80]”. Ele disse isto, como notamos, não por que desprezasse a obra do serviço, mas por que colocava o maior antes do menor. Pois como teria ele aceitado ser servido? Como ele mesmo manifestamente serviu, ao lavar os pés de seus discípulos[81]? Tanto ele não impedia que servissem, como ordenou que os discípulos o fizessem uns aos outros. No entanto, veremos que os apóstolos, depois de primeiro trabalhar no serviço da mesa, preferiram a obra maior, ou seja, a prece e a palavra. “Não é justo, diziam eles, que desleixemos a palavra de Deus para servir às mesas. Escolham homens cheios do Espírito Santo e nós os encarregaremos deste serviço. E nós perseveraremos no serviço da palavra e da oração [82]”. Vê-se que eles preferiram o principal ao secundário, embora não ignorassem que um e outro são brotos da mesma raiz.
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SOBRE A PACIÊNCIA E O DISCERNIMENTO 33. Os que querem obedecer a palavra de Deus e produzir bom fruto podem ser reconhecidos pelos seguintes sinais: os gemidos, o pranto, o retraimento, a hesíquia, a cabeça baixa, a prece, o silêncio, a paciência, o pesar doloroso, as penas a que o coração se entrega pela piedade. E estas são as obras: a vigília, o jejum, a temperança, a doçura, a longanimidade, a prece contínua, a meditação das divinas Escrituras, a fé, a humildade, o amor fraternal, a submissão, as penas, a vida dura, a caridade, a bondade, a afabilidade, e, em resumo, a luz, que é o Senhor[83]. Quanto aos que não trazem em si o fruto da vida, eis os sinais pelos quais podem ser reconhecidos: a acídia, a distração, a curiosidade do olhar, a desatenção, os murmúrios de revolta, a tolice. E suas obras: a gula, a cólera, a violência, a injúria, a vaidade, as palavras inoportunas, a infidelidade, a instabilidade, o esquecimento, a confusão, a cupidez, o amor ao dinheiro, a inveja, a briga, a arrogância, a falação, o riso intempestivo, a autossuficiência, numa palavra: as trevas. Ou seja, Satanás. 34. Devido a uma economia[84] divina mais elevada, o maligno não foi enviado imediatamente à Geena que lhe fora assinalada, mas deixado para ser o tormento e a prova do homem e – claro – de seu livre arbítrio, a fim de que, mesmo contra sua vontade, os tornasse mais santos, experientes e justos, tornandose para eles causa de maior glória, e também para preparar para si mesmo, por sua própria maldade e seus projetos dirigidos contra os santos, um castigo mais justo. Assim é que o pecado, como disse o Apóstolo divino, se tornou desmesuradamente pecador[85]. 35. Quando enganou a Adão[86] e assim o dominou, o inimigo despojou-o de seu poder e este inimigo passou a se chamar “príncipe deste século[87]”. Ora, é o homem que originalmente havia sido designado pelo Senhor como príncipe deste século e mestre do mundo visível[88]. Nem o fogo prevalecia contra ele, nem a água o afogava, nem as feras lhe faziam mal, nem os animais selvagens o tinham como presa. Mas desde que ele cedeu diante da mentira[89], ele cedeu ao mentiroso o seu poder. É por esta razão que em virtude de uma energia maléfica e com a permissão de Deus, os mágicos e feiticeiros se tornam capazes de fazer coisas extraordinárias. Eles dominam os animais venenosos e enfrentam o fogo e a água, como os que cercavam Janes e Jambres e se opunham a Moisés[90], ou como Simão que resistiu a Pedro o Corifeu[91]. 36. Penso que o inimigo foi gravemente ferido por ter visto a glória primitiva de Adão brilhar novamente no rosto de Moisés[92], como se reconhecesse por este sinal que seu próprio reino lhe estava sendo tirado. E nada impede que também esta palavra do Apóstolo seja interpretada assim: “A morte reinou de Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não haviam pecado[93]”. Parece-me com efeito que a face glorificada de Moisés conservava a marca e a assinatura do primeiro homem criado pelas mãos de Deus e que, ao vê-la, a morte (ou seja, o diabo, autor da morte) logo suspeitou que havia perdido ser reino; mas foi no momento da vinda do Senhor que ela teve certeza desta perda. É desta glória que a partir de então se revestiram os cristãos verdadeiros. Eles destruíram a morte internamente, ou seja, as paixões desonrosas[94], que então se tornam incapazes de agir por que a glória do Espírito brilha em suas almas com toda consciência e toda certeza. Mas é no momento da ressurreição que a morte será verdadeiramente destruída[95]. 37. Quando enganou a Adão por meio da mulher, por ser ela um ser semelhante a ele[96], o inimigo conseguiu roubar-lhe a glória com a qual se revestia. Assim é que Adão se viu nu e viu também sua própria vergonha[97], que antes não enxergava por que seu coração desfrutava das belezas do céu. Pois após a transgressão seus pensamentos se abaixaram até a terra e aí se aninharam. O sentimento simples e bom foi ligado ao carnal da malícia. Que o Paraíso tenha sido fechado, que tenha sido permitido à espada flamejante e ao Querubim interditar a entrada ao homem[98], tudo isto acreditamos ter se passado na ordem visível, como foi dito, mas estas coisas também se encontram em cada alma, secretamente. Pois é em torno do coração que se enrola o véu de trevas, vale dizer, o fogo do espírito do mundo, que não permite
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ao intelecto descobrir a Deus, nem à alma orar, ou crer, ou amar a Deus como gostaria. Tudo isto a experiência ensina àqueles que verdadeiramente confiaram-se ao Senhor pela perseverança na oração e pelo vigor no impulso que os atira contra o adversário. 38. O príncipe deste século é a vara que castiga e a chibata que fustiga os que ainda são espiritualmente crianças. Mas como foi dito anteriormente, por meio das aflições e tentações ele lhes traz grande glória e honra. Pois é através destas coisas que eles chegam a se tornar perfeitos. Mas ele próprio torna seu castigo cada vez maior e mais pesado. Numa palavra, uma imensa economia passa por ele, como já foi mencionado: o mal contribui para o bem apesar de sua intenção não ser boa. Com efeito, para as almas que são boas e cuja intenção é nobre, mesmo as aflições aparentes terminam em bem. É o que disse o Apóstolo: “Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus[99]”. 39. Estas varas do castigo foram permitidas por que, por meio delas, como num forno, os vasos passados no fogo se tornem mais sólidos e os defeituosos revelem sua fragilidade por não suportarem o calor do fogo. O príncipe deste século é também um servidor e uma criatura do Senhor: ele não tenta tanto quanto gostaria, nem provoca aflições como quer, mas só age na medida da ordem que lhe é dada pelo Mestre em autorização. Pois Deus, que conhece exatamente as possibilidades de cada um, permite que cada qual seja tentado dentro dos limites de suas forças. É o que pensa também o Apóstolo: “Deus é fiel e não permitirá que vocês sejam tentados além das suas forças. Mas com a tentação ele dará também o meio de escapar, para que vocês a possam suportar[100]”. 40. Aquele que procura e bate à porta, e que não cessa de pedir, conforme disse o Senhor, este acabará por ser atendido[101]. Apenas este homem deve ter a liberdade de pedir sem negligência alguma, com sua inteligência e sua língua, permanecendo sem descanso ligado a Deus adorando-o com seu corpo, sem se misturar com os negócios do mundo nem se comprazendo com as paixões da malícia. Pois não mentiu aquele que disse: “Tudo o que pedirem com fé pela oração, vocês receberão[102]”. Os que dizem: “Ainda que tenhamos feito tudo o que foi ordenado, se permanecermos neste século sem recebermos a graça, não teremos ganhado coisa alguma”, sabem pouco e falam em desacordo com as divinas Escrituras. Pois Deus não é injusto a ponto de negligenciar o que lhe é devido, uma vez que tenhamos cumprido tudo o que devemos fazer. Apenas esteja atento, quando sua alma deixar seu pobre corpo, para se encontrar então combatendo, se esforçando, aguardando a promessa, perseverante, crente, buscando com discernimento. Eu lhe digo, e você deve acreditar, você então partirá com alegria, terá a segurança e se mostrará digno do Reino. Pois com sua delicadeza, ou seja, por sua fé e sua resolução, tal homem já estará em comunhão com Deus. Com efeito, assim como alguém que vê uma mulher e a deseja já comete adultério com ela em seu coração[103] (ainda que não manche seu corpo) também aquele que rejeitou de seu corpo as coisas do mal e que se ligou ao Senhor[104] com todo o seu desejo e toda sua busca, vale dizer, com assiduidade e amor a Deus, já está em comunhão com Deus e já recebe dele este grande dom: a perseverança na prece, o bom fervor e a vida virtuosa. Pois se a dádiva de um copo de água fresca não fica sem recompensa[105], quanto mais não dará Deus o prometido àqueles que por ele suplicam dia e noite. 41. Aos que colocam a seguinte questão: “Por que em certos dias me ocorre ter raiva do meu irmão ou de ter consciência de outras coisas que me acontecem contra a minha vontade?”, é preciso dizer o seguinte: que o homem nunca cessa de lutar e de se esforçar para se contrapor ao maligno e aos maus pensamentos. Mas onde estão as trevas das paixões e da morte, e falo aqui dos cuidados com a carne, é impossível que, secreta ou visivelmente, não se produza o mal como seu fruto mais apropriado. Do mesmo modo como uma ferida no corpo, na medida em que não for completamente curada, não deixa de se putrefazer pelos humores do corpo, não deixa de umedecer e purgar, ou de inchar e entumecer, ainda que tenha sido cuidada e que não lhe tenhamos recusado nada do que fosse indicado pela tratá-la (e se continuar sendo negligenciada poderá corromper e até destruir o corpo inteiro), creiam-me, também as paixões da alma, ainda que tenham sido objeto de muitos cuidados, continuam a queimar por dentro. Mas pela atenção
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perseverante e com a graça e a sinergia de Cristo estas paixões podem vir a receber sua cura total. Pois existe uma mancha secreta e existem paixões estrangeiras – as trevas das paixões – que, contra a natureza pura do homem e por causa da transgressão de Adão penetraram toda a humanidade. E isto perturba e mancha o corpo e a alma. Mas assim como o ferro passado no fogo é batido e purificado, ou como o ouro misturado ao cobre e ao ferro só pode ser separado deles pelo fogo, também a alma, passada no fogo bom do Espírito e batida pelos santos sofrimentos do Salvador, é purificada de todas as paixões e de todos os pecados. 42. Assim como diferentes lamparinas iluminadas graças a um mesmo e único azeite e a uma mesma é única chama não projetam em igual medida a luz do fogo, também os carismas ligados às diferentes boas obras difundem de modo diverso a luz viva do Espírito bom. Também numa cidade onde moram juntas numerosas pessoas que comem do mesmo pão e bebem da mesma água, algumas são adultos, outras adolescentes, outras crianças, outras idosos, e entre eles existem grandes distâncias e diferenças; também o trigo semeado no mesmo campo dá espigas diferentes, mas que são reunidas num mesmo are e guardadas no mesmo paiol; também, creio eu, quando vier a ressurreição dos mortos diferente glória será atribuída aos que se levantaram e se revelará em função de suas boas obras, conforme a participação do Espírito divino que desde aqui de baixo terá habitado neles. É o que disse o Apóstolo: “Mesmo uma estrela difere em glória de outra estrela[106]”. 43. Mesmo que algumas estrelas sejam menores do que outras, todas brilham com uma luz que é exatamente a mesma. A imagem, assim, é bem clara. Devemos nos dedicar exclusivamente a isto: quando um homem nasce do Espírito Santo ele deve se lavar do pecado que habita nele. Pois este mesmo nascimento pelo Espírito Santo traz em si a imagem da perfeição sob um aspecto: na forma e nos membros, certamente não no poder, ou inteligência, ou coragem. Quem chega ao estado de homem perfeito e na medida da idade adulta[107] suprime em si naturalmente tudo o que pertencia à criança[108]. É o que diz o Apóstolo: “Desaparecerão das línguas e as profecias[109]”. Com efeito, do mesmo modo que o homem maduro não aceita nem os alimentos nem as palavras que convêm à criança, recebendo-as com indignação por que sua vida é outra, também o que cresce para a perfeição das obras evangélicas deixa o estado infantil para a perfeita maturidade. É o que diz o Apóstolo divino: “Tornado homem, eu suprimi o que era infantil[110]”. 44. Aquilo que nasce do Espírito é de certa maneira, como já dissemos, perfeito, da mesma forma como dizemos que uma criança é perfeita por que integra todas as partes da totalidade. Mas o Senhor não concede o Espírito e a graça para que tombemos nos pecados. Os próprios homens são responsáveis pelo mal que fazem por não se conformarem com a graça. Por isto se tornam presa do mal. Por causa de seus próprios pensamentos naturais o homem pode escorregar quando é negligente, desdenhoso ou presunçoso. Escute o que disse Paulo: “E para que eu não me orgulhasse ele me colocou um aguilhão na carne, um anjo de Satanás[111]”. Como se vê, mesmo os homens que alcançaram grandes alturas precisam estar em guarda. Se o homem não dá ocasião a Satanás, este não pode dominá-lo pela força. Então este homem considera que o q eu faz não pertence nem a Cristo nem ao adversário. Somente quando ele se confiar até o fim à graça do Espírito é que ele pertencerá a Cristo. Se ele não fizer isto, ainda que tenha nascido do Espírito, ainda que participe do Espírito Santo, ele seguirá a vontade de Satanás por seu próprio alvitre[112]. Com efeito, se o Senhor ou Satanás o houvessem tomado pela força, o homem não seria responsável por cair na Geena ou por obter o Reino. 45. Quem ama a virtude deve velar para adquirir o grande discernimento que lhe permita conhecer a diferença entre o bem e o mal e as diversas armadilhas do maligno, que costuma enganar a muito com aparições espetaculares. O discernimento também deve permitir-lhe provar e compreender o que existe de útil em cada coisa, quando lhe faltar a certeza. Com efeito, se, querendo testar a castidade de sua esposa, um homem se apresenta a ela à noite como sendo um estranho, mesmo que ela o repila, ele se alegrará por
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saber que ela é avessa a este tipo de abordagem, e saudará sua fidelidade. Da mesma forma, devemos nos colocar em guarda contra as intervenções dos seres dotados de inteligência. Você deve repelir mesmo os próprios seres celestes, e estes se alegrarão muitíssimo, e lhe permitirão ter uma parte ainda maior da graça. Eles o encherão de alegria espiritual reconhecendo seu puro amor pelo Senhor. Não se entregue depressa demais, pela leviandade do espírito, às intervenções dos seres espirituais que vêm ao seu encontro, ainda que sejam anjos, mas permaneça ponderado, submetendo estas coisas ao exame mais atento, unindo-se ao bem e expulsando o mal. É assim que você fará crescer em si os efeitos da graça, coisa que o pecado é incapaz de produzir, ainda que se disfarce com a aparência do bem. Pois Satanás, como disse o Apóstolo, sabe muito bem se transformar em anjo de luz para nos enganar[113]. Mas ainda que ele se cerque de aparições brilhantes ele não será capaz de suscitar a menor energia positiva, como já foi dito. É assim que sua marca se revela com precisão. Pois ele não pode fazer funcionar nem o amor a Deus, nem o amor ao próximo, nem a mansidão, nem a humildade, nem a alegria, nem a paz, nem a calma dos pensamentos, nem o desprezo pelo mundo, nem o repouso espiritual, nem o desejo dos bens celestes, nem a detenção das paixões e dos prazeres, coisas estas que são todas manifestamente efeitos da graça. Pois foi dito que o fruto do Espírito é o amor, e também a alegria, a paz [114], etc. O maligno coloca toda a sua habilidade e todo o seu poder em suscitar a vaidade e o orgulho. A luz do intelecto que brilhou em sua alma, terá ela vindo da energia de Deus ou da de Satanás? Mas se a ação do discernimento foi vigorosa, os sinais da diferença aparecerão claramente à própria alma, desde que a ela tenha sido dado o sentido espiritual. Com efeito, assim como o vinagre e o vinho parecem ser iguais para a visão, mas são distintos ao paladar, que julga o que é próprio de um e de outro, também a alma, por meio deste sentido espiritual e desta energia, pode julgar os carismas do Espírito e os fantasmas do estrangeiro. 46. A alma deve, com seus próprios olhos, examinar e observar o melhor que puder para ver se não caiu, ainda que só um pouco, sob o poder do adversário. Com efeito, quando um animal é pego numa armadilha por um de seus membros, é preciso abatê-lo inteiro para que ele possa cair nas mãos dos caçadores. É isto que os inimigos costumam fazer com a alma, e que o Profeta revelou claramente quando disse: “Eles colocaram armadilhas sob meus pés e abateram a minha alma[115]”. 47. Quem quiser entrar pela porta estreita do poderoso e levar seus bens[116] não deve se refestelar nos prazeres e no fastio do corpo, mas se fortalecer no Espírito bom lembrando-se d’Aquele que disse que a carne e o sangue não herdarão o Reino de Deus[117]. E como fazer para nos fortalecer no Espírito? É preciso estarmos atentos ao Apóstolo, quando ele diz que os homens consideram como loucura a sabedoria de Deus[118]. E o Profeta disse: “Eu vi o Filho do homem. Sua aparência era desprezível e decadente, mais do que todos os filhos dos homens[119]”. Assim, é preciso a quem quiser se tornar filho de Deus, que primeiro se humilhe da mesma maneira, que passe por louco e desonrado, que não proteja seu rosto das cusparadas[120], que não busque nem a glória nem a beleza deste século, nem nada de semelhante, que não tenha onde repousar a cabeça[121], que seja ultrajado, considerado como nada, visto por todos como algo a ser desprezado e pisoteado, combatido secreta e visivelmente e atacado em seus pensamentos. Só então o Filho de Deus – ele, que disse: “Eu habitarei e caminharei no meio de vocês[122]” – surgirá em seu coração, e então este homem receberá o poder e a força de amarrar o poderoso, de levar seus bens[123], de caminhar sobre a áspide e o basilisco[124], sobre os escorpiões e as serpentes[125]. 48. Não é pequeno o combate que nos é proposto: Destruir a morte. Pois foi dito: “O Reino de Deus está dentro de vocês[126]”. Mas de certa maneira aquele que nos combate e nos cativa está também dentro de nós. Que a alma não fraqueje em nada enquanto não levar à morte aquele que a mantém cativa! Então passará toda dor, toda tristeza e todo gemido[127], pois a água brotará na terra sedenta[128] e no deserto surgirá um transbordamento de água[129]. De fato, o Senhor prometeu encher de água viva o coração deserto, primeiro por intermédio do Profeta, que disse: “Darei água aos que têm sede e caminham na aridez[130]”; depois, em pessoa, quando disse: “Quem bebe da água que eu dou não voltará a ter sede[131]”.
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49. É claro que uma alma vítima da acídia é também uma vítima da falta de fé. É por isso que ela procrastina dia após dia, sem receber o Verbo. Muitas vezes ela alça voo em sonhos, sem compreender o combate interior, por que se deixa levar pela presunção. Ora, a presunção é uma cegueira da alma, pois não permite que ela veja sua própria enfermidade. 50. Assim como a criança recém-nascida conserva a imagem do homem perfeito, também a alma é uma imagem de Deus que a criou. Assim, enquanto a criança cresce, ela conhece parcialmente a seu pai. Mas quando a criança chega à idade madura, então o pai conhece o filho e o filho ao pai, e o tesouro do pai é revelado no filho. Do mesmo modo a alma antes da desobediência deveria progredir e chegar ao homem perfeito[132]. Mas por causa da transgressão ela foi engolida pelo oceano do esquecimento e caiu num abismo de erros, estacionando nas portas do inferno. Estando afastada a grande distância de Deus, a alma estava incapacidade de se aproximar e de conhecer seu Criador. Mas, primeiramente por intermédio dos Profetas, Deus a fez voltar-se, chamou-a, atraiu-a para o seu conhecimento. Finalmente ele próprio veio e arrancou-a do esquecimento e do erro. Depois de haver destruído as portas do inferno ele foi até a alma desgarrada e deu a si próprio como exemplo: e é desta maneira que se tornou possível à alma chegar à medida da idade madura e à perfeição do Espírito. O Verbo de Deus se deixou voluntariamente tentar pelo maligno, suportou as injúrias e os ultrajes, as violências e as bofetadas de suas mãos insolentes, e, por fim, a morte na cruz[133], mostrando, como dissemos, a disposição que devemos ter diante daqueles que nos insultam, que nos ultrajam ou que nos levam à morte, a fim de que o próprio homem se coloque também diante deles como um surdo e um mudo que não abre a boca[134] e que, vendo a ação e a sutileza da malícia, perfurado por pregos como na cruz, grite com voz forte para Aquele que pode livrá-lo da morte[135] e diga: “Purifique-me de minhas faltas ocultas[136]”, e: “Se eles não prevalecerem sobre mim ei serei irrepreensível”. Então, tornando-se absolutamente irrepreensível, que ele encontre Aquele que a ele tudo submeteu[137], que ele reine[138] e repouse com Cristo. Pois foi por causa da desobediência que a alma, afogada em pensamentos materiais e imundos, perdeu a razão. Assim, não será para ela um pequeno esforço emergir de tamanho caos, compreender as sutilezas da malícia e correr a se unir ao intelecto que é sem começo. 51. Se você pretende retornar a si mesmo, homem, e recuperar a glória primeira que você possuía e que a desobediência o fez perder, do mesmo modo pelo qual no começo você negligenciou os mandamentos de Deus e deu atenção às ordens e ao conselho do inimigo, agora se afaste daquilo que escutou e volte para o Senhor. Porém saiba que será com muito esforço e suor do seu rosto, como foi dito[139], que você recuperará sua riqueza. Não há vantagem para você em adquirir o bem sem penar. Pois o que você recebeu sem esforço e suor você sua herança entregou ao inimigo. Reconheçamos assim aquilo que perdemos e retomemos a lamentação do Profeta: “Nossa herança foi entregue aos adversários, e nossa casa aos estrangeiros[140]”, pois nós transgredimos o mandamento, cedemos às nossas próprias vontades, nos comprazemos em nossos pensamentos imundos e terrestres a ponto de termos afastado nossas almas a uma enorme distância de Deus e de nos termos tornado como órfãos sem pai. Portanto, quem quiser cuidar de sua alma deverá combater tanto quanto puder para destruir os maus pensamentos e derrubar toda altura que se tenha levantado contra o conhecimento de Deus[141]. Para o homem que se esforça sem descanso para guardar o templo de Deus[142] virá Cristo, ele que prometeu permanecer conosco e juntos caminharmos[143]. Então a alma recuperará sua herança e será julgada digna de se tornar templo de Deus. Pois ele próprio, depois de haver expulsado o maligno em semelhante combate, passará a reinar em nós. 52. As palavras que o Criador disse a Caim na ordem visível: “Você andará errante pela terra, gemendo e tremendo[144]”, constituíram, na ordem oculta, uma figura e uma imagem de todos os pecadores. Foi assim que a raça de Adão, depois de se ter separado do mandamento e se tornado culpada de seus pecados, se tornou sacudida por pensamentos instáveis e se encheu de medo, negligência e perturbação. O próprio inimigo assalta com todas as sortes de concupiscências e prazeres todas as almas não nascidas de Deus e as despeja como grãos numa peneira. Não obstante, o próprio Senhor, para mostrar o quanto perpetuam a
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imagem da malícia de Caim os que seguem as vontades do maligno, disse repreendendo-os: “Vocês querem satisfazer os desejos de seu pai, o assassino do homem. Pois ele feriu o homem desde o início e não permaneceu na Verdade[145]”. 53. É importante compreender o quanto a visão do rei terrestre é desejada e procurada pelos homens. Qualquer um que passe pela cidade em que reside o rei deseja ver pelo menos a magnificência e a distinção de suas vestes, a não ser que outros bens, espirituais, o façam desprezar e desdenhar destas coisas: este homem foi alvejado por uma outra beleza e deseja outra glória. Então, se os homens carnais se esforçam assim para ver o rei mortal, quanto mais não serão estimulados a ver o Rei imortal aqueles nos quais correu uma gota do Espírito bom e cujos corações foram tomados pelo amor divino? É por isso que eles se afastam de todo amor pelo mundo, a fim de poder levar continuamente em seu coração tanto desejo por Deus e não ter nada nem ninguém antes dele. São poucos, bem poucos os que desta maneira coroam um bom começo com um fim igual e que permanecem até o final sem cometer nenhuma falta. Por que muitos são penetrados pela compunção, muitos têm participação na graça celeste e são tocados pelo amor a Deus[146], mas por não suportarem as inevitáveis penas e as tentações do maligno que nos assalta com suas artimanhas diversas e multiformes, permanecem no mundo e são engolidos pelo abismo, por negligência e fraqueza de pensamento, ou por que são prisioneiros de um pendor passional pelas coisas terrestres. Com efeito, os que querem seguir até o fim com toda certeza não suportam que qualquer outro desejo ou amor venha se misturar ao seu amor celeste. 54. Assim como são grandes e indizíveis os bens prometidos por Deus, do mesmo modo eles não vêm a nós sem numerosas penas e muitos combates conduzidos com esperança e fé. Cristo disse claramente: “Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e venha[147]”. E também: “Se alguém não detesta seu pai, sua mãe, seus irmãos, sua esposa e filhos e até sua própria alma, não pode ser meu discípulo”. Mas a maior parte dos homens é de tal modo inconsciente que pretende obter o Reino, herdar a vida eterna e reinar continuamente com Cristo – este grande bem que ultrapassa o entendimento – vivendo segundo suas próprias vontades e seguindo-as, ou melhor, seguindo aquele que espalha estes pensamentos vãos e manifestamente nocivos. 55. Renunciar a si mesmo implica escapar da queda até o final, desprezando totalmente a si mesmos e a todas as concupiscências do mundo, suas distrações, seus prazeres e as ocupações que são aí suscitadas. Cada um é expulso do Reino por sua própria vontade, por não ter em verdade escolhido as penas nem renunciado a si mesmo, buscando, ao contrário do amor divino, a auto-complacência nas coisas deste século e não entregando a Deus todas as inclinações de sua própria vontade. Um único exemplo bastará para ajudar quem nos escuta a entender. Pois cada qual discerne com cuidado e sem dúvida não ignora se o que tentou fazer convinha ser feito. A incerteza se manifesta primeiro no coração. Os pratos da balança revelam antes de tudo no interior à consciência de cada um aquilo que pende para o amor a Deus ou para o amor ao mundo, e só então a coisa é declarada exteriormente. Como foi dito, cada qual discerne com cuidado, por exemplo, se lhe acontecer ter que disputar com seu irmão. Começa uma luta consigo mesmo, e a pessoa se interroga: “Falarei com ele? Não falarei? Responderei aos ultrajes que dele suportei? Será melhor calar-me?”. Ele segue o mandamento de Deus, sem entretanto se afastar de sua própria glória, e não escolhe a total renúncia a si mesmo. Se então a inclinação do amor pelo mundo fizer, ainda que por muito pouco, pender a balança do coração, logo as más palavras avançarão até seus lábios. Assim, o intelecto, tensionado interiormente como um arco, ferirá o próximo pela língua, e o mal progredirá: a coisa acabará em briga, talvez em feridas e até morte. Devemos assim considerar simultaneamente por onde começou e a que temível fim levou este breve movimento da alma. Creia-me, é isto que acontece com todo pecado e todo hábito: a malícia agrada e acaricia a vontade da alma por meio das concupiscências do mundo e dos prazeres da carne. É assim que acontece o adultério, o roubo, a cupidez, a vanglória e toda espécie de mal.
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56. Os próprios bons hábitos podem acabar na vanglória, o que é considerado por Deus na mesma gravidade do roubo, da injustiça e de outros grandes pecados. Pois foi dito: “Deus dispersou os ossos daqueles que tentaram agradar aos homens[148]”. É assim que, mesmo através do bem, o inimigo quer ser servido e honrado, a tal ponto é ele mentiroso, múltiplo, tortuoso e fértil em armadilhas. 57. Aquilo que um homem ama do mundo torna sua reflexão pesada, puxa-a para baixo atraindo-a e não a deixando emergir. A balança destas coisas, que faz pender a vontade para um ou outro prato, que a pesa, está como que suspensa no coração. É aí que é submetido ao exame e posto à prova todo o gênero humano, e seguramente os cristãos, quer vivam nas cidades ou nas montanhas, em mosteiros, nos campos ou nos desertos. Pois é claro que quem se deixa atrair por sua plena vontade para aquilo que ama, não dedicou a Deus todo o seu amor. Assim é que um ama os domínios que adquiriu, outro ama o ouro, outro ama encher o ventre, outro se comprazer nas concupiscências da carne, outro ama a sabedoria das palavras para adquirir uma glória efêmera. Um ama o poder, outro as honrarias que vêm dos homens, outro ama a cólera e o ressentimento; pois atirar-se totalmente à paixão demonstra o amor que se tem por ela. Alguém ama falar sem necessidade, outro ama simplesmente divagar, ou a se dedicar a discursos ociosos, ou a ser um mestre que ensina, tudo pela glória que provém dos homens. Um se deixa levar pelo relaxamento e a inconsequência, outro se compraz com enfeites e roupas, este no sono, aquele nos divertimentos. Outro se agarra a qualquer coisa do mundo, pequena ou grande, possuído por elas sem conseguir se levantar. Pois quem não combate nobremente uma paixão e não se opõe a ela, nela se comprazendo e sendo por ela possuído, é por ela atraído como num laço e coloca sua reflexão sob seu jugo, impedindo-se de se dirigir para Deus e de adorar a ele somente[149]. Pois a alma que verdadeiramente dirige para o Senhor seu impulso se volta para ele com todo seu dinamismo, renuncia a si própria e não mais segue as vontades de sua própria inteligência. 58. Vamos ensinar por meio de alguns exemplos o modo como o homem se perde por sua própria vontade. Pois é por amor a qualquer coisa do mundo que ele se atira no fogo, mergulha no mar ou se entrega ao cativeiro. Suponhamos que a casa de alguém comece a se incendiar. Quem quiser se salvar, uma vez que se dá conta do incêndio, foge nu se preciso, abandonando tudo o que possuía dentro da casa e só cuidando de preservar a própria vida. Mas alguém pode resolver salvar os móveis e se por a carregá-los. Atarefado com eles enquanto a casa pega fogo, acabará por ser queimado junto com as coisas que tentava salvar. Vemos assim que o amor a uma coisa passageira à qual ele amou mais do que a si mesmo o atirou ao fogo por sua própria vontade. Outro exemplo: durante um naufrágio, um homem se despoja de tudo e se atira ao mar para salvar sua vida, enquanto outro tenta conservar suas roupas e é engolido pelas águas; por causa de um pequeno ganho, este perde a si mesmo junto com o que tentava conservar. Ou ainda: supomos que seja anunciado um ataque inimigo. Um, assim que ouve a notícia, foge a toda pressa, sem se preocupar com nenhum de seus bens; outro, por não crer na notícia, ou por querer terminar algum negócio, demora-se e é capturado quando chegam os adversários. Vemos assim que é pela própria vontade, pela negligência e pela ligação a certos bens do mundo, que podemos perder o corpo e a alma. 59. São poucos os que realmente adquiriram o perfeito amor a Deus, considerando como nada os prazeres e as concupiscências do mundo e suportando pacientemente as tentações do maligno. Mas nem por isso se deve desesperar, nem negligenciar a boa esperança. Mesmo que muitos navios naufraguem, sempre haverá os que conseguem atravessar o mar e chegar ao porto. É por isso que precisamos de muita fé, muita paciência, muita atenção e muitos combates. Também precisamos ter fome e sede do bem, com inteligência e discernimento, e ao mesmo tempo sermos resolutos e insistirmos em obter aquilo que pedimos. Pois a maior parte dos homens, como dissemos, pretendem alcançar o Reino sem penas e sem suores. Eles chamam de bem-aventurados os santos e desejam suas honrarias e seus carismas, mas não querem tomar parte de suas aflições, de suas penas e de seus sofrimentos. É isto que todos os homens desejam, mesmo os prostituídos e os publicanos, mas é então que lhes chegam as tentações e as provas, a
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fim de que se distingam os que de fato amaram o Mestre e para que estes alcancem com toda a justiça o aquilo que 60. Considere que é nas aflições e nos sofrimentos, na paciência e na fé, que estão escondidas as promessas, a própria glória e a recuperação dos bens celestes. Pois eu afirmo, é preciso que o trigo lançado à terra ou que a planta enxertada encontre primeiro um estado de podridão e de aparente desonra, para que possam depois recuperar a nobreza de suas vestes e a multiplicação de seus frutos. Com efeito, se não lhes fosse dado passar por esta podridão e por aquilo que, por assim dizer, os desonra, eles não poderiam se revestir com a nobreza última e com a beleza da contemplação. É o que pensa igualmente o Apóstolo: Ele disse: “É por meio de muitas aflições que entraremos no Reino dos céus[150]”. E o Senhor: “É pela paciência que vocês salvarão suas almas[151]”. E ainda: “Vocês serão afligidos pelo mundo[152]”. 61. Na mesma medida com que cada um de nós for julgado por sua fé e esforço digno de participar do Espírito Santo, será neste dia glorificado seu corpo. Pois aquilo que hoje ele reservou dentro de si, por sua alma, será igualmente revelado fora, em seu corpo. O exemplo disto nos é dado pelas árvores: quando passa o inverno e o sol brilha mais claro e forte e sopram os ventos, elas crescem desde dentro e, como se se os ventos, elas crescem desde dentro e, como se se vestissem, se cobrem de folhas, flores e frutos. Da mesma forma, neste momento as flores da ervas saem do seio da terra que as cobria e a revestem com um véu de beleza. É a este respeito que falou o Verbo de Deus, quando disse: “Mesmo Salomão em toda glória jamais se vestiu como uma delas[153]”. Pois todas estas coisas são símbolos, exemplos e imagens daquilo que será dado aos que serão salvos na ressurreição. Pois para todas as almas que amam a Deus, ou seja, para os verdadeiros cristãos, o primeiro mês, o xântico[154] ou mês de Abril, é aquele em que se revela o poder da ressurreição. A divina Escritura diz: “Este mês será para vocês o primeiro dos meses do ano[155]”. É ele que recobrirá as árvores nuas revestindo-as com a sua glória original, escondida dentro de seu corpo. Também os cristãos serão glorificados por esta luz inefável que neles habita desde agora, vale dizer, pelo poder do Espírito, o qual será para eles vestimenta, alimento, bebida, regozijo, alegria, paz e, para resumir, vida eterna.
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SOBRE A ELEVAÇÃO DO INTELECTO 62. Pela glória de Deus que brilhava em sua face e que nenhum homem conseguia fitar[156], o bemaventurado Moisés ilustrou o modo como os corpos dos santos, na ressurreição dos justos, serão glorificados com esta glória que as almas fiéis dos santos são consideradas dignas de carregar desde hoje no homem interior. Pois até nós, como foi dito, mesmo com o rosto descoberto, mas no homem interior, refletimos a glória do Senhor, transfigurados na mesma imagem, de glória em glória[157]. Também está escrito que Moisés não procurou alimento nem bebida durante quarenta dias e quarenta noites [158]. Esta é uma obra impossível para a natureza humana, a menos que ela comungue com a natureza espiritual, a mesma que os santos já recebem do Espírito. 63. A glória com que se enriquecem aqui em baixo as almas dos santos, conforme foi dito, cobrirá e revestirá os corpos nus na ressurreição e os elevará aos céus. Então eles repousarão de forma ininterrupta, corpos e almas, no Reino de Deus. Com efeito, quando criou Adão, Deus não lhe deu asas corpóreas, como aos pássaros. Isto por que ele lhe enviaria as asas do Espírito no momento da ressurreição, a fim de que, graças a elas, ele se tornasse leve e fosse arrebatado até onde o levasse o Espírito. Mas aos santos foram dadas desde já asas inteligíveis que os elevam até a inteligência celeste. Pois outro é o mundo dos cristãos, outras suas vestes, outra sua mesa, outro seu regozijo. Pois sabemos que Cristo virá do céu, que ele ressuscitará aqueles que estão adormecidos desde o começo do mundo – como o atestam as divinas Escrituras – e que, dividindo-os em dois grupos[159], ele chamará aqueles que portam seu sinal, o selo do Espírito divino, e os colocará à sua direita. Com efeito, ele disse: “Minhas ovelhas ouvem minha voz e a conhecem[160]”. Então seus corpos serão revestidos de glória divina, as das boas obras e as do Espírito, que ele concedeu aos santos trazer em si desde aqui em baixo. Assim glorificados pela luz divina e levados ao céu ao encontro do Senhor, conforme está escrito[161], com ele permanecerão para sempre. 64. Aos que se preocupam em levar o melhor possível a vida cristã, convém antes de tudo vigiar com todo ardor a parte da alma que rege a reflexão, à que rege o julgamento e à que rege a conduta, a fim de, depois de alcançar o discernimento do bem e do mal e de haver separado da natureza pura as paixões introduzidas nela contra a natureza, possam viver sem ferir a ninguém, como vivem aqueles que possuem o olho do discernimento. Pois existe na alma uma vontade de conservar os membros puros dos danos dos sentidos, de se manter à distância das distrações do mundo, e de evitar que o coração estenda para o mundo os braços de seus pensamentos, guardando-os e preservando-os das preocupações e dos prazeres vulgares. Assim, quando o Senhor ver alguém levar deste modo sua vida, mantendo-se rigorosamente disposto a servi-lo com temor e tremor[162], ele aumentará o socorro que provém de sua graça. Com efeito, que pode Deus fazer por aquele que se entregou ao mundo voluntariamente e que só segue seus próprios prazeres? 65. As cinco virgens prudentes que receberam nos vasos de seus corações o azeite estranho à sua própria natureza – ou seja, a graça do Espírito – puderam entrar no local das núpcias com o Esposo. Mas as outras, as tolas, más, que permaneceram em sua própria natureza, não eram sóbrias e vigilantes, não se deram ao trabalho de abrir o coração a tal azeite de felicidade[163], uma vez que ainda estavam na carne. Mas elas estavam como que adormecidas pela negligência, o relaxamento e a presunção da justiça, e por isso o lugar das núpcias do Reino[164] foi fechado para elas. Pois está claro que elas foram retidas por um laço e uma ligação com o mundo, uma vez que não levaram ao Esposo celeste seu amor total e seu desejo ardente. De fato, as almas que buscam o que é estranho à natureza, esta santificação do Espírito, e que dedicam a Cristo todo o seu amor, aí elas caminham, aí oram, aí pensam, aí agem, depois de se haverem separado de todo o resto. Pois os cinco sentidos da alma, a compreensão, o conhecimento, o discernimento, a paciência e a piedade, ao receberem a graça do alto e a santificação do Espírito, tornamse verdadeiramente como as virgens sábias[165]. Mas se eles se abandonam à própria natureza, comportamse como as virgens tolas e se mostram como filhos do mundo e da ira[166].
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66. Assim como recebemos um mal que é estranho à nossa natureza, este mal que se introduziu em nós pela transgressão do primeiro homem[167] e que com o tempo se tornou para nós como que uma natureza, do mesmo modo, por meio desta graça também estranha à nossa natureza, vale dizer, pelo dom celeste do Espírito, o mal será expulso desta e seremos restabelecidos na pureza original. Mas se não chegarmos a este ponto através de muita oração, fé e atenção, desviando-nos das coisas do mundo, e se nossa natureza manchada pelo mal não for santificada por este amor que é o Senhor[168], se até o fim não nos guardarmos de toda falta assumindo para nós os mandamentos divinos, não poderemos alcançar o Reino celeste. 67. Quero expor, na medida do possível, uma questão delicada e profunda. O Senhor infinito e incorpóreo se fez corpo em sua infinita bondade. Ele, que é grande e maior do que o ser, se fez pequeno, se podemos dizê-lo, a fim de poder se aliar às suas criaturas intelectuais, ou seja, às almas dos santos e dos anjos, para que elas fossem capazes de participar da vida imortal de sua Divindade. Pois cada criatura – anjo, alma, demônio – é um corpo conforme à sua natureza própria. Com efeito, se estes seres são sutis, nem por isso eles deixam de ser substância, caráter e imagem, corpos sutis conforme a sutileza de sua natureza. Com efeito, assim como o corpo terrestre é denso por sua substância, também a alma – que é um corpo sutil – envolve e reveste os membros deste corpo terrestre. Ela envolve o olho, por intermédio do qual também ela vê. Ela envolve o ouvido, por meio do qual também ela escuta. Ela envolve a mão, o nariz, e, por assim dizer, todo o corpo e seus membros. Assim a alma permanece unida a todo o corpo, por meio do qual ela executa tudo o que faz ao longo da vida. Do mesmo modo, a inexprimível e incompreensível bondade de Cristo se fez pequena, tomou um corpo para si, uniu-se às almas fiéis que o amaram, as envolveu e se tornou um só Espírito com elas, segundo as palavras de Paulo[169], alma dentro de outra alma, como foi dito, hipóstase dentro de hipóstase, como se ela ordenasse a esta alma que viva na sua Divindade, que atinja a vida imortal, e que desfrute do prazer incorruptível e da glória inefável. 68. Para esta alma, o Senhor, quando quiser, pode se tornar um fogo que consome tudo o que nela é vil e supérfluo, como o disse o Profeta: “Nosso Deus é um fogo devorador[170]”, pode se mostrar como um inexprimível e indizível repouso[171], ou como uma alegria e uma paz[172] que aquecem e envolvem a alma. Basta que nos decidamos ardentemente a amá-lo e agradá-lo com nossas boas obras, e quem tocar os bens inefáveis verá por experiência própria e pela sensação mesma “aquilo que o olho não viu, o que o ouvido não ouviu, o que não subiu até o coração do homem[173]”, tudo o que se torna o Espírito do Senhor, seja pelo repouso, pelo regozijo, as delícias e a vida da alma que se mostra digna dele. Pois ele se fez corpo para se tornar tanto alimento como vestimenta e inexprimível beleza, e assim cumular a alma da felicidade do Espírito. De fato, ele disse: “Eu sou o pão da vida[174]” e “Aquele que beber da água que eu lhe der, esta água se tornará para ele uma fonte a jorrar a vida eterna[175]”. 69. É assim que Deus apareceu a cada um dos padres e dos santos, como ele queria e segundo o benefício que dele receberia aquele que o visse. Por exemplo, ele apareceu de um modo a Abrahão e de outro a Isaac, e diversamente também a Jacó, a Noé, a Daniel, a Moisés, a Davi e a cada um dos profetas [176], fazendo-se pequeno e tomando um corpo como foi dito, transfigurando-se e se revelando aos que o amavam, não como ele é, pois nada o pode conter, mas de acordo com o que eles eram capazes de captar, através do grande e incompreensível amor que tinha por eles. 70. A alma que foi considerada digna de que nela habite a Potência do alto e o fogo divino, e que traz misturado aos seus membros o amor celeste do Espírito bom, é totalmente desembaraçada do amor do mundo. Com efeito, assim como o ferro ou o chumbo, o ouro e a prata, fundem quando levados ao fogo, passando sua natureza do sólido ao maleável, tornando-se moles e fluidos ao calor da chama e perdendo sua dureza natural sob o poder do fogo, também a alma quando recebe este fogo celeste do amor do Espírito se desliga de todo pendor passional pelo espírito do mundo, se liberta dos laços da malícia e deixa a dureza natural do pecado, por que passa a considerar tudo como nada e de pouca valia. O que quero dizer é o seguinte: ainda que ame ao extremo alguns irmãos, se estes impedirem seu amor por Deus, a
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alma tomada deste amor se separará deles. Pois se o amor presente na conjunção carnal do casamento afasta o homem do pai, da mãe e dos irmãos, ainda que a estes ele ame, seu amor ainda é superficial: ele dirigiu todo o seu afeto e todo o seu desejo para aquela que permanece a seu lado. Se, portanto, o amor carnal afasta assim todo o demais amor do mundo, menos ainda aqueles que foram tocados pelo desejo impassível de Deus trarão em si um amor, qualquer que seja, pelas coisas do mundo. 71. Deus é bom e ama o homem, ele é paciente, espera longamente pelo arrependimento de cada pecador, e faz do retorno de cada arrependido uma festa celeste. Com efeito, ele próprio disse: “Existe alegria no céu por um único pecador que se arrepende[177]”. Mas, vendo esta bondade e esta paciência e considerando que o Senhor não castiga os contínuos pecados aguardando o arrependimento, como dissemos, as pessoas negligenciam inteiramente os mandamentos e, tomando a bondade divina como pretexto para deixá-los de lado, acrescentam um pecado ao outro, construindo ofensa sobre ofensa, juntando negligência a negligência e ultrapassando os limites do pecado. Daí diante se tornam presas desta falta, já não conseguem se restabelecer e, submetidas à última ruptura e definitivamente entregues ao maligno, se perdem. É o que aconteceu com Sodoma. Os habitantes da cidade haviam enchido as medidas e ultrapassado as fronteiras do pecado. Quando já não havia para eles a menor possibilidade de arrependimento, a justiça de Deus os transformou em presas do fogo[178]. É o que aconteceu nos tempos de Noé. Levados ao mal por seus impulsos desenfreados e sem manifestar nenhuma espécie de arrependimento, os homens de então acumularam tamanha massa de pecados que toda a terra foi devastada de um só golpe[179]. Do mesmo modo Deus foi bom para com os egípcios que cometeram muitas faltas e trataram com arrogância o povo de Deus. Ele não entregou os egípcios à ruína total, mas os conduziu ao arrependimento castigando-os com pragas progressivas. Mas apenas eles eram deixados por si e voltavam-se e acabando por perseguir o povo do Senhor que saía do Egito. Então a justiça de Deus os destruiu totalmente e os fez perecer[180]. Da mesma forma, quando Israel cometeu tantos pecados e matou os profetas de Deus, o Senhor deu provas de sua paciência habitual. Mas, como eles progrediram no mal até o ponto de não mais reverenciar a dignidade do Mestre, mas de colocar suas mãos assassinas sobre ele, mãos assassinas sobre ele[181], também foram rejeitados e derrubados. A profecia, o sacerdócio e o culto lhes foram tirados e confiados às nações que creram[182]. 72. Corramos ardentemente para Cristo que nos está chamando. Derramemos sobre ele nosso coração e não desesperemos de nossa salvação nos deixando abater. Pois este é o sofisma do maligno: levar-nos ao desespero pela lembrança de nossos antigos pecados. Mas é preciso compreender o seguinte: se Cristo veio a nós cuidando e curando os cegos, os paralíticos e os surdos, e ainda ressuscitando mortos já decompostos, quanto mais não curará ele o ceticismo dos pensamentos, a negligência da alma e a surdez do coração preguiçoso? Pois não foi nenhum outro, mas ele mesmo quem criou o corpo, e ele mesmo quem criou a alma. E se ele é tão benevolente e compassivo para com aquilo que se dissolve e morre, quanto mais não amará ele com todo seu amor pelo homem, quanto mais não curará ele a alma imortal que foi presa da doença da malícia e da ignorância, e que a ele se dirige em oração? Pois foi ele quem disse: “Não fará meu Pai celeste justiça aos que por ele chamam noite e dia? Sim, eu lhes digo, ele fará justiça rapidamente[183]”. E: “Peçam, e lhes será dado. Procurem, e acharão. Batam, e lhes será aberto[184]”. E ainda: “Mesmo que ele não lhe dê por ser seu amigo, ele se levantará por causa do incômodo e lhe dará aquilo de que tem necessidade[185]”, encorajando o pedido, ainda que importuno e perseverante. Pois ele veio também para os pecadores, a fim de fazê-los voltar a ele[186]. Basta que nós mesmos, nos afastando das predisposições más, na medida de nossa capacidade, consagremo-nos ao Senhor: e ele não desdenhará de nós, mas estará pronto a nos levar o socorro que dele provém. 73. Quando o corpo daqueles que são vítimas de uma enfermidade ou de uma angústia já não consegue tomar alimento e bebida, todos entram em desespero por ser isto um indício de morte e os amigos e parentes começam a se lamentar sobre o estado do enfermo. Também Deus e os anjos veem com muita tristeza e lamentações as almas que não são capazes de tomar o alimento celeste. Assim, se você se tornou
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trono de Deus, se ele em pessoa se assenta em você, se sua alma inteira se tornou olho espiritual, inteira luz, se você provou deste alimento do Espírito, se bebeu da água viva[187] e do vinho espiritual que alegra o coração, se você vestiu sua alma com as vestes da luz[188] inefável, se seu homem interior alcançou a experiência e a certeza de todas estas coisas, você vive a vida eterna e repousa com Cristo longe deste século presente. Mas se você ainda não recebeu estas coisas, se ainda não as adquiriu, chore lágrimas ardentes e se lamente por ainda não haver descoberto tamanha riqueza. Traga em si todo o cuidado com sua pobreza e ore por ela continuamente. Quanto àquele que já possui essas coisas, que se deixe penetrar pelo sentimento de sua própria indigência e que não fique se se preocupar com nada, como se estivesse saciado de riqueza divina. Pois foi dito que quem procura achará, e que àquele que bate ser-lhe-á aberto[189]. 74. Se este óleo composto[190] tinha tal potência que elevava à glória real aqueles a quem ungia, quanto mais elevados serão aqueles cujo intelecto e cujo homem interior são ungidos pelo azeite santificante da alegria[191] e que recebem as garantias do Espírito bom, até o grau da perfeição, vale dizer, até o Reino e à adoção filial de Cristo, tornados companheiros do próprio Rei, entrando e saindo da companhia do Pai como e quando lhes aprouver. Pois, embora não tenham ainda recebido a herança perfeita por estarem ainda cobertos pelo peso da carne, pelas garantias do Espírito[192] têm a certeza dos bens que aguardam e não duvidam por um instante de que reinarão com Cristo[193], e de que serão cumulados com a superabundância e o transbordamento do Espírito. Então, mesmo permanecendo ainda na carne, eles têm a experiência deste outro poder e deste outro prazer. Pois pela purificação do homem interior e do intelecto, a graça que vem retira totalmente o véu que Satanás colocara sobre os homens depois da desobediência, rejeitando da alma toda mancha e todo pensamento vil, tornando-a pura e fazendo com que ela, após reencontrar sua própria natureza, com os olhos claros e já não impedidos de ver, possa contemplar a glória da verdadeira luz[194]. A partir daí esses homens se revestirão do século futuro e verão as belezas e as maravilhas que lá se encontram. Pois, assim como o olho corporal são e sadio vê com toda confiança a irradiação do sol, também estes homens, com o intelecto luminoso e purificado, contemplam incessantemente a irradiação inacessível do Senhor. 75. Não é fácil para os homens atingir este degrau. Existem muitas penas, infinitos combates e suores. Existem numerosos seres nos quais a graça se encontra e age. Mas a malícia permanece oculta no interior, sem que tenha sido afastada. Os dois espíritos, o espírito da luz e o espírito das trevas, agem num só e mesmo coração. Mas você poderá me dizer: “O que existe em comum entre a luz e as trevas? Qual acordo pode haver entre o templo de Deus e os ídolos?[195]”. Eu lhe responderei: “O que existe em comum entre a luz e as trevas?”, ou melhor, onde está a luz divina entenebrecida, perturbada ou manchada, ela que é rigorosamente pura e límpida? Pois foi dito: “A luz brilhou em meio às trevas e as trevas não a receberam[196]”. Também não devemos compreender as coisas de forma parcial e unilateralmente. Alguns há que repousaram de tal modo na graça de Deus que são capazes de se dominar e não serem vencidos pelo pecado que neles habita. Mas existem outros que se habituaram a uma prece assídua e ao repouso, mas que são torturados por pensamentos vis e que são abusados pelo pecado, ainda que a graça permaneça neles. Aqueles, portanto, que são levianos e que ainda não adquiriram o rigor, ao sentirem que a graça age neles desta ou daquela maneira, pensam estar livres do pecado de uma vez por todas. Mas os que têm discernimento e inteligência não podem negar que, estivesse a graça de Deus neles, não seriam perturbados por pensamentos maus e fora de propósito. 76. Já vimos muitos irmãos desfrutarem de uma graça tão rica, que após cinco ou seis anos haviam subjugado e extinguido em si toda concupiscência. Depois, como pensassem haver alcançado o porto e atingido a serenidade, o mal, que permanecera emboscado, se manifestou atacando-os com tamanha malevolência e selvageria que os apavorou e os encheu de ansiedade. É por isso que os que possuem um olhar penetrante e sensato jamais têm a audácia de dizer: a graça está comigo, portanto daqui para diante estou também livre do pecado. Como foi dito, ambas as coisas – a graça e o pecado – operam num só e
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mesmo intelecto, mesmo que aqueles que se deixam levar pela facilidade e os ignorantes, ao sentirem um pequeno movimento espiritual, digam apressadamente: vencemos. Quanto a mim, vejo as coisas de outra maneira: enquanto o sol brilha em toda sua pureza, subitamente uma nuvem escura ou uma bruma invasiva cobre de trevas sua bela luz. Pela mesma razão, aqueles que receberam a graça de Deus mas que ainda não foram rigorosamente purificados, estão num estado quase idêntico. Nas suas profundezas eles ainda estão submetidos ao pecado. Eles precisam de muito discernimento para obter uma experiência real dessas coisas. 77. Da mesma forma como sem olhos, sem língua, sem orelhas e sem pés é impossível ver, falar, ouvir ou caminhar, também sem Deus e sem a energia que ele dispensa é impossível comungar os mistérios divinos, conhecer a sabedoria do Senhor ou receber a riqueza do Espírito. Pois os sábios gregos se exercitam com palavras e se dedicam encarnecidamente às discussões. Mas os servidores de Deus, mesmo sem dizer uma palavra, estão continuamente envoltos pelo conhecimento divino e pela graça de Deus. 78. Creio poder afirmar que mesmo os apóstolos, que estavam cheios da bondade do Consolador, nem por isso se viam inteiramente isentos de preocupações. Mas além do regozijo e da alegria inefável, um certo temor provinha da própria graça, sem ter origem no mal. Pois a própria graça os colocava em segurança. Quem caminhava bem não tinha como se desviar, por pouco que fosse. Assim como uma criança que atira uma pedra contra uma muralha nada consegue, ou uma flecha sem ponta não é capaz de ferir uma couraça, também quando um elemento do mal assaltava os apóstolos ele se revelava sem efeito e vão, pois eles estavam bem protegidos pelo poder de Cristo. Mas, por perfeitos que fossem eles e livres para fazer eu quisessem, não se deve crer, como o fazem inconsideradamente alguns, que após a graça chegasse o fim das preocupações e o repouso. Pois o Senhor ordena que entre os perfeitos a vontade da alma esteja a serviço do Espírito, de sorte que as duas coisas andem de par. Com efeito, o Apóstolo disse: “Não extingam o Espírito[197]”. 79. Confiar as coisas à simples palavra é fácil e natural. É fácil, por exemplo, dizer que o pão é feito de trigo; mas expor em detalhe como se prepara o pão não está ao alcance de todos, mas apenas a quem já fez pão e tem experiência. Da mesma forma, simplesmente falar de impassibilidade e perfeição é fácil. Mas expor a coisa por experiência e com verdade implica compreender em ato e verdade como se edifica a perfeição. 80. Aquele que profere palavras espirituais sem tê-las provado e sem ter a experiência, digo que este se assemelha a um homem que, em pleno verão e ao meio-dia, atravessa uma planície deserta e ressecada. Quando sua sede se torna grande e abrasadora, ele se representa em espírito uma fonte fresca e próxima, da qual corre uma água doce e límpida da qual ele bebe até a saciedade sem nenhum impedimento. Ou ele se assemelha ao homem que, sem jamais haver provado o mel tenta descrever sua doçura aos outros. Pois em verdade o mesmo acontece com aquele que, sem ter obtido por suas próprias obras e sua própria certeza a perfeição, a santificação e a impassibilidade, pretende explicá-las aos outros. Mas se Deus lhe permitisse sentir, ainda que pouco, aquilo de que fala, ele certamente consideraria que a verdade e as próprias coisas não correspondem à sua explicação, diferindo muito dela. O cristianismo assim arriscaria, me parece, se deixar levar pouco a pouco além das suas fronteiras e acabar por ter o mesmo sentido do ateísmo. O cristianismo é como um alimento e uma bebida: quando mais um homem come e bebe, mais ele queima de desejo. Seu intelecto se torna insaciável e nada pode retê-lo: é como se, ao oferecer uma bebida agradável a um homem sedento o tornássemos mais ávido de beber, não pela sede, mas pelo prazer. Como dissemos, não é por simples palavras que compreendemos as coisas. Elas devem ser cumpridas misteriosamente no intelecto por obra do Espírito Santo, e é assim que podemos falar delas. 81. O Evangelho ordena a todo homem fazer isto ou evitar aquilo, para se tornar amigo do Rei que ama os homens. De fato, ele diz: “Não se irrite[198]”, ou “Não cobice[199]”, ou “Se alguém lhe bater na face direita,
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ofereça-lhe também a esquerda[200]”. O Apóstolo, que veio pouco tempo depois que estas ordens foram dadas, ensinou como fazer pouco a pouco, com paciência e longanimidade, a obra da purificação. Primeiro ele nutria com leite, como se faz com as crianças[201], para depois conduzir ao crescimento[202] e finalmente à perfeição[203]. Assim, para ilustrar a coisa com um exemplo, o Evangelho diz que a túnica deve ser feita inteiramente de lã, e o Apóstolo explica como fiar a lã, tecê-la e confeccionar a túnica. 82. Alguns se afastam da prostituição pública, do roubo, da cupidez e de outros vícios semelhantes. Assim eles concordam com os santos. Mas ainda falta muito para que eles alcancem as realidades e a verdade. Pois muitas vezes a malícia vigia, chega e irrompe no seu intelecto: ela ainda não os deixou e desapareceu. O santo é aquele que que santificou e purificou totalmente seu homem interior. Havia um irmão que, num dia em que orava com os demais, foi transportado pelo poder divino e, em seu arrebatamento, viu a cidade de Jerusalém celeste, com suas moradias iluminadas e a luz infinita e misericordiosa. Ele ouviu uma voz que dizia ser aquele o lugar de repouso dos justos. Depois ele se inflou de orgulho e concebeu uma alta opinião sobre si mesmo; então ele caiu nas profundezas do pecado e depois em numerosos vícios. Então, se um homem como este chegou a tanto, como é possível ao novato dizer: “Desde que eu jejuo e vivo no exílio, que eu dou de comer aos outros o que eu tenho, que eu me guardo dos vícios e que nada me falta, eu também sou santo”. Pois a perfeição não é a abstenção dos vícios manifestos. É a purificação dos pensamentos que é perfeita. 83. Entre, você que captou estas coisas pela sobriedade e a vigilância dos seus pensamentos, debruce-se sobre seu intelecto prisioneiro e escravo do pecado e veja aquela que está ainda mais abaixo de si mesma e mais profunda do que seus pensamentos, a serpente agachada ali onde estão os chamados tesouros de sua alma e que o coloca em perigo por meio dos membros mais vulneráveis desta. Pois na verdade o coração é um abismo incompreensível. Portanto, se você destruiu esta serpente, se você se purificou de toda iniquidade que existe em você, se você rejeitou o pecado, glorifique-se da pureza à qual você chegou em Deus. Senão, humilhe-se, por que você ainda é indigente e pecador; avance orando a Cristo por todas as suas faltas escondidas. Pois tanto o Antigo como o Novo Testamentos falam manifestamente da pureza. Mesmo que nem todos possam chegar até aí, todo homem, grego ou judeu, é presa da pureza. Mas isto – a pureza do coração – não pode nos ser dado senão por Cristo. Pois ele próprio é a verdade anipostática, a verdade real. Sem esta verdade, é impossível conhecer a verdade ou alcançar a salvação.
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SOBRE O AMOR 84. Assim como na ordem visível você renunciou ao homem exterior dando aos outros e distribuindo seus bens, é também preciso renunciar aos seus maus hábitos. Se você aprendeu a sabedoria carnal, ou se adquiriu o conhecimento das coisas, rejeite tudo. Se você se confiou aos julgamentos da carne, afaste-se deles, faça-se humilde e pequeno. É assim que você poderá se deixar instruir pela loucura da predicação[204]. É nesta, e não em discursos bem torneados, mas no poder da cruz, que você encontrará a verdadeira sabedoria, a que age realmente naqueles considerados dignos de adquiri-la. “Pois a cruz, disse Paulo, é um escândalo para os judeus e uma loucura para os gregos. Mas para nós que fomos salvos ela é o poder e a sabedoria de Deus[205]”. 85. Se você provou daquilo que vem do céu, se você tomou parte desta sabedoria, se conheceu o repouso em sua alma, não se orgulhe, não fique seguro de si como se já tivesse alcançado e compreendido toda a verdade, para que não ouça: “Vocês já estão ricos e satisfeitos e se sentem reis sem nós! Tomara mesmo que se tivessem tornado reis; assim nós também poderíamos reinar com vocês![206]”. Mas quando você provar, considere que você ainda não atingiu o cristianismo. E que esta convicção não seja superficial em você, mas esteja implantada continuamente e decidida em seus pensamentos. 86. Da mesma forma como um homem que ama a riqueza, ainda que tenha juntado uma enorme fortuna, nunca está saciado e tudo o que ele acrescenta a cada dia a seus bens faz crescer ainda mais nele o desejo de possuir mais e mais, ou como um homem privado de uma bebida agradável antes que se tenha saciado aumenta ainda mais sua sede, também o gosto por Deus não conhece saciedade nem fim, mas ao contrário, quanto mais um homem é cumulado com esta riqueza, mais ele se considera indigente. Os cristãos não atribuem preço algum às suas próprias vidas[207], mas se colocam diante de Deus como seres rigorosamente desprezíveis e se consideram como escravos dos outros homens. Deus se regozija com estas almas e nelas repousa por causa de tanta humildade. Portanto, se um homem possui algum bem ou se enriqueceu, que não pretenda, por causa disto, ser qualquer coisa ou ter qualquer coisa. Pois a pretensão é uma abominação diante do Senhor. Foi ela quem, no início, expulsou do Paraíso o homem que dera ouvidos a estas palavras: “Vocês serão como deuses[208]”, e que assim confiou-se a esta vã esperança. Aprendam como seu Deus e seu Rei, que é também o Filho de Deus, se despojou de si próprio tomando a forma de um escravo[209], como ele se fez pobre[210], como foi contado entre os humildes[211], como sofreu. Assim aconteceu com Deus. E quanto a você, homem, feito de carne e sangue, terra e cinzas [212], que parte alguma tem com o bem, que é todo impurezas, você se orgulha e se vangloria? Mas, se você tiver alguma inteligência, em especial a que recebeu de Deus, diga: “O que eu possuo não é meu, mas recebi de outro. E se a ele isto pareceu bom, aquilo que me foi dado me elevou totalmente”. Assim sendo, atribua todo bem ao Senhor, e impute o mal à sua própria fraqueza. 87. O Apóstolo diz que transportamos em vasos de barro[213] este tesouro: o poder santificante do Espírito, que ele próprio foi digno de receber quando ainda estava revestido de carne. Ele diz também: “Ora, é por iniciativa de Deus que vocês existem em Jesus Cristo, o qual se tornou para nós sabedoria que vem de Deus, justiça, santificação e redenção[214]”. Portanto, quem encontrou e traz em si este tesouro celeste do Espírito pode atingir não somente com pureza e sem mácula, mas independente de qualquer pena ou fadiga, toda a justiça dos mandamentos, toda a prática dos mandamentos, enquanto que antes era preciso muito para poder fazê-lo sem esforço. Mesmo querendo, ninguém pode colher o fruto do Espírito antes de haver recebido o Espírito bom. Que cada qual se esforce em todas as ocasiões para correr[215] com paciência e fé, e que ore com fervor a Cristo a fim de obter este tesouro celeste. E assim poderá cumprir com toda justiça, como foi dito, nele e por ele, pura e perfeitamente, sem pena e, repito-o, sem fadiga. 88. Os que trazem em si a divina riqueza do Espírito, quando comunicam aos outros propósitos espirituais, o fazem como quem retira de seu próprio tesouro[216] para dar àqueles a quem falam. Mas os que não
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recolheram esta riqueza no fundo de seu coração de onde brota a bondade dos pensamentos de Deus, de seus mistérios e de suas palavras transbordantes, com dificuldade conseguiram colher uma flor em uma ou outra das duas Escrituras e a colocam na ponta da língua; ou então ouviram coisas de homens espirituais e se vangloriam em palavras, as expõem como se fossem suas e se apropriam de frutos que não são seus. Estes homens oferecem sem esforço aos demais o ornamento de suas palavras; mas, após haver discursado, permanecem como se fossem pobres, pois cada palavra proferida retorna para o lugar de onde foi tirada. Eles próprios não possuem um tesouro seu de pudessem extrair e do qual lhes fosse possível servir aos outros, transmitindo-lhes. É por isso que é preciso em primeiro lugar pedir a Deus que coloque em nós esta verdadeira riqueza. Então se tornará fácil para nós ajudar aos demais e lhes transmitir palavras espirituais e mistérios divinos. É assim que a bondade de Deus habita em todo homem que crê. Com efeito, ele disse: “Quem me ama será amado por meu pai, e eu o amarei e me revelarei a ele [217]”. E também: “Eu e meu Pai viremos e nele faremos nossa morada[218]”. 89. Os que foram considerados dignos de se tornar filhos de Deus e que têm em si a irradiação de Cristo se consagram aos modos vários e diferenciados do Espírito e são aquecidos pela graça no secreto do coração. O melhor aqui é expor algumas das alegrias que podemos ter no mundo, para compará-las com os caminhos divinos pelos quais a graça conduz a alma. Às vezes estes homens se regozijam e exultam com uma alegria indizível e inexprimível, como num festim real. Às vezes eles experimentam o prazer do Espírito, como a esposa com o esposo. Às vezes sentem-se como anjos incorpóreos, tão leves, tão livres que pensam não mais estar revestidos de um corpo. Às vezes, animados como que por uma bebida, ficam ébrios da inefável embriaguez dos mistérios do Espírito. Às vezes a lamentação e a dor os fazem implorar pela salvação dos homens. Inflamados pelo amor divino do Espírito por todos os homens, eles tomam sobre si inteiramente o luto de Adão. Às vezes eles se deixam consumir pelo Espírito com um prazer que não pode ser descrito pela palavra, e com tanto amor, que, se fora possível, eles recolheriam todos os homens em suas próprias entranhas[219], sem fazer a menor distinção entre o ruim e o bom. Às vezes eles desprezam a si próprios de tal maneira que pensam não existir ninguém abaixo deles, considerando a si mesmos como os últimos dentre todos. Acontece também deles serem engolidos por uma alegria inefável do Espírito. Ou, como guerreiro revestido da armadura real e que derrubou seus adversários no combate, eles, da mesma forma protegidos pelas armas do Espírito, atacam os inimigos invisíveis e os colocam debaixo de seus pés. Ora uma grande serenidade os envolve, a hesíquia e a paz os aquecem, e eles se veem sob o império de um prazer maravilhoso, ora recebem a inteligência e a sabedoria divinas e o insondável conhecimento do Espírito. Numa palavra, a graça de Cristo lhes confere tamanha sabedoria que língua alguma é capaz de expressar. Também pode acontecer que às vezes eles apareçam como um homem entre os homens. Assim a graça divina, se transformando e se diversificando neles de muitas maneiras, instrui e exercita a alma, a fim de apresentá-la perfeita ao Pai celeste, sem mácula e toda pura. 90. Estes efeitos do Espírito de que falamos se situam em altos níveis, nos degraus mais próximos da perfeição. Pois as diversas consolações da graça age nestes homens diferentemente, embora continuamente, a partir do Espírito, sendo que as energias do Espírito sucedem umas às outras. Quando alguém chega à perfeição do Espírito, a partir do momento em que se purificou rigorosamente de todas as paixões, a partir do momento em que se uniu e mesclou ao Espírito Consolador pela completa e inefável comunhão, a partir do momento em que a própria alma é considerada digna de se tornar espírito por se unir ao Espírito, neste instante o homem se torna inteiro luz, inteiro espírito, inteiro alegria, inteiro repouso, inteiro regozijo, inteiro amor, inteiro compaixão, inteiro bondade e doçura. Ele foi por assim dizer engolido pelas virtudes do poder do Espírito bom, como uma pedra envolvida de todos os lados pela água nos abismos do mar. Desta maneira estes homens, unidos de todas as maneiras ao Espírito de Deus, se tornam semelhantes a Cristo. Eles trazem em si mesmos as virtudes imutáveis do Espírito, e mostram seus frutos a todos. Com efeito, por terem sido interiormente tornados irrepreensíveis e puros de coração[220] pelo Espírito, se torna impossível para eles produzirem externamente frutos de malícia. Ao contrário, sempre, continuamente, os frutos do Espírito brilham neles. É assim que se progride para a
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perfeição espiritual, para a plenitude de Cristo, para a qual nos exorta correr o Apóstolo quando diz: “A fim de que vocês sejam cumulados até trazer em si a plenitude de Cristo[221]”. E também: “Até que cheguemos todos ao homem perfeito, à altura da plenitude de Cristo[222]”. 91. Pode acontecer a um homem de entrar e se ajoelhar, com o coração cheio de energia divina, e que sua alma se regozije no Senhor, assim como já mostramos, como a esposa se regozija diante do esposo. É o que disse o grande Isaías: “Assim como a esposa faz a alegria do esposo, assim você fará a alegria do Senhor[223]”. Talvez ainda este homem esteja ocupado durante todo o dia e depois se volte para a oração durante uma hora; seu homem interior será arrebatado enquanto ora, e ele se sente tomado pela profundidade infinita do século futuro. Um prazer secreto e incomensurável o toma, a ponto de tornar seu intelecto maravilhado, suspenso e arrebatado, enquanto seu coração esquece neste momento todo conhecimento terrestre ao mesmo tempo em que seus pensamentos recebem todos os bens, como foi dito, e são levados cativos para as coisas infinitas e incompreensíveis. Assim é que, nesta hora, graças à oração, o homem vê sua alma partir junto com sua prece. 92. A quem pergunta se é de fato possível ao homem permanecer neste estado, devemos responder o seguinte: a graça está sempre presente e enraizada, ela é como algo de físico, que faz corpo com o homem no qual está presente. Ela é uma, mas ela ordena tudo de diferentes maneiras, como bem lhe apraz, para benefício do homem. O fogo se acende neste, mais ou menos forte. Pode também ocorrer de a luz brilhar primeiro, depois se retrair e ensombrecer segundo uma economia inteiramente divina, embora a chama arda sem jamais se extinguir. Mas quando a luz começa por brilhar o homem é tomado de uma embriaguez maior, a do amor por Deus. Às vezes também esta luz que brilha continuamente no coração abre para uma luz mais interior e mais profunda. Neste caso, o homem inteiramente absorto nesta doçura e nesta contemplação já não é ele mesmo. Para o mundo, ele aparece como um louco ou um bárbaro, a tal ponto em sua alma transbordam e se desdobram o amor, o prazer e as profundidades dos mistérios com os quais lhe foi dado comunicar. Acontece muitas vezes de que nestes momentos ele alcance as medidas perfeitas e se torne irrepreensível livre de todo pecado. Depois disto, a graça se retrai de certo modo, e o véu da potência contrária o recobre. 93. Imagine a ação da graça da seguinte maneira. Suponha que a perfeição se eleva até o décimo-segundo degrau. Portanto, é possível atingir esta medida. Mas a graça se retira novamente e, descendo um degrau, para no décimo-primeiro, por assim dizer. Assim são as maravilhas que foram mostradas a este homem e que ele experimentou. Se ele as trouxesse consigo em igual nível, não lhe seria possível assegurar o ministério e o encargo da palavra, nem ouvir ou dizer o que fosse, nem se preocupar com nada, ainda que por um instante: ele apenas permaneceria imóvel, retirado num canto, suspenso e embriagado. É por isso que a medida perfeita não lhe foi dada, a fim de que ele tenha tempo para se consagrar também ao cuidado com os irmãos e ao serviço da palavra. 94. Quando escutamos a palavra do Reino e somos levados a chorar, não nos detenhamos nas lágrimas que vertemos, nem nos nossos ouvidos por havermos escutado, nem nos nossos olhos por termos visto: não consideremos que isto nos basta. Pois existem outros ouvidos, outros olhos, outras lágrimas, assim como existe outra reflexão e outra alma, que é o Espírito divino, o próprio Espírito celeste, que escuta e chora, que ora, que conhece, que faz em verdade a vontade de Deus. O Senhor, ao prometer aos apóstolos o imenso dom do Espírito, disse: “Eu me vou. Mas o Consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome lhes ensinará tudo[224]”. E também: “Eu ainda teria muitas coisas a lhes dizer, mas vocês ainda não as podem receber. Quando ele vier, o Espírito da verdade, ele os conduzirá por toda a verdade [225]”. Será, portanto, ele a orar e ele a chorar. “Pois não sabemos orar como se deve, disse o Apóstolo divino. Mas o próprio Espírito intercederá por nós com suspiros inefáveis[226]”. A vontade de Deus só se manifesta ao Espírito. Pois ele disse: “Ninguém conhece as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus[227]”. Quando, segundo a promessa, o Consolador veio no dia de Pentecostes[228] e o poder do Espírito bom fez sua
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morada nas almas dos apóstolos, estes foram libertos do véu da malícia, as paixões desapareceram e os olhos dos seus corações se abriram. Então, cheios de sabedoria e tornados perfeitos pelo Espírito, por meio dele eles aprenderam a fazer a vontade de Deus daí por diante, e por meio dele foram conduzidos por toda a verdade. Ele dominou e reinou sobre suas almas. Assim, quando nos acontecer chorar ao ouvirmos a palavra de Deus, oremos a Cristo esperando com uma fé sem falhas que virá a nós o Espírito que escuta e ora verdadeiramente, segundo a vontade e o desígnio de Deus. 95. Considere como acontecem as coisas. Uma espécie de potência tenebrosa vem cobrir levemente o intelecto, como uma atmosfera sutil. Embora a lâmpada permaneça sempre acesa e brilhando, conforme foi dito, esta luz agora está recoberta por um véu. Um homem neste estado não nega ser imperfeito e sabe que não está totalmente liberto do pecado. Ele é por assim dizer livre e não livre. Isto certamente não acontece sem o socorro de Deus, mas acontece por uma certa economia divina. Tanto o muro da separação[229] se desconjunta e desaba, tanto ele permanece inamovível. O ritmo da prece tampouco é regular, mas às vezes a graça inflama, consola e repousa, às vezes ela se torna sombria e se retira, na medida em que ela dirige o homem para seu benefício. No entanto, já me aconteceu em alguns momentos encontrar a medida perfeita, e assim provar e conhecer a experiência do século futuro. Mas eu ainda não vi nenhum cristão perfeito ou livre de uma vez por todas. Se alguém pode repousar na graça, ser considerado digno de mistérios e revelações, tomar parte delas e entrar na imensa doçura da graça, nem por isto o pecado deixa de estar oculto em algum lugar dentro dele. Homens assim, devido à superabundância da graça e da luz que neles brilha, às vezes acreditam, por falta de experiência, serem perfeitos e livres. Quanto a mim, como disse, nunca encontrei quem fosse absolutamente livre. Pois já me aconteceu alcançar em parte, algumas vezes, esta medida de que falei, e eu sei, por haver aprendido, o que é um homem perfeito. 96. Quando você ouvir falar da união do esposo e da esposa[230], dos coros, dos cantos e das festas, considere que nada existe aí de material nem de terrestre. Com efeito, estas coisas são tomadas apenas como exemplos para nos ajudar a captar as realidades invisíveis. Pois estas são inefáveis e espirituais: os olhos da carne não as podem tocar, mas elas são dadas a entender às almas santas e fiéis. Esta comunhão do Espírito Santo, os tesouros celestes, os coros e as festas dos santos anjos, não se manifestam senão a quem já recebeu a experiência. Não é possível concebê-las sem ter sido iniciado. Assim, escute com piedade se lhe falarem destas coisas, até que a você também aconteça, por sua fé, ser considerado digno de descobri-las. Então você verá, pela própria experiência dos olhos de sua alma, com quais bens e mistérios as almas dos cristãos podem comungar ainda aqui em baixo. Pois na ressurreição mesmo o corpo de tais homens se tornará digno de descobrir, de ver e como que segurar estas coisas, quando o próprio corpo se tornar espírito. 97. As belezas próprias de nossa alma e os bons frutos que são a prece, o amor, a fé, a vigília, o jejum e outras práticas de virtudes, quando se misturam e tomam parte da comunhão com o Espírito, exalam um rico perfume, como o de um incenso atirado ao fogo. Então, até a nós se torna fácil viver segundo a vontade de Deus. Ao contrário, sem o Espírito Santo, como já dissemos, ninguém é capaz de compreender a vontade de Deus. Assim como a mulher que se une a um home pelo casamento, antes de se unir a ele segue seu próprio pensamento e faz suas próprias vontades, mas ao entrar em união passa a viver totalmente sob a autoridade de seu marido e até deixa de prestar atenção a si mesma, também a alma possui uma vontade própria, leis e obras próprias, mas quando se torna digna de se unir ao homem celeste, a Cristo, passa a se submeter à lei deste homem[231]: ela já não segue sua vontade, mas a de seu esposo, Cristo. 98. Considere que a vestimenta das bodas, da qual Cristo fornece uma explicação divina[232], é a graça do Espírito Santo. Quem não se torna digno de se cobrir com ela não tomará parte das bodas celestes, nem deste festim espiritual.
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99. Esforcemo-nos por beber o vinho espiritual de Deus e por nos tornarmos ébrios desta vertigem. Do mesmo modo como aqueles que estão saciados de vinho se tornam mais loquazes, também nós, cheios deste vinho espiritual, falaremos dos mistérios de Deus. “Pois sua taça que me embriaga, disse o divino Davi, como é boa![233]”. 100. Esta é a alma pobre de espírito[234]. Ela reconhece suas feridas. Ela reconhece também as trevas das paixões que a cercam. Ela busca continuamente a redenção que vem do Senhor. Ou ela traz em si as penas, e não se regozija com os bens que existem sobre a terra. Ela busca o único bom médico e não se entrega senão aos seus cuidados. Como poderá esta alma ferida ser bela, graciosa e apta a viver com Cristo? Como, senão reencontrando sua antiga criação e reconhecendo claramente suas próprias feridas e sua pobreza? Pois se a alma não se compraz com suas feridas e as agressões das paixões, se ela não encobre suas faltas, o Senhor não lhe imputa a causa do mal, mas vem para tratar dela, curá-la e restabelecer nela uma beleza impassível e incorruptível. É preciso apenas que ela não escolha permanecer ligada ao que ela faz, como foi dito: que não se compraza nas paixões que foram suscitadas nela, mas que chame pelo Senhor com toda força, a fim de que ele, por intermédio de seu Espírito bom, lhe conceda libertar-se de todas as paixões. Desta maneira esta alma se tornará feliz. Mas infeliz daquela que não percebe suas feridas e que, levada por um grande vício e por um endurecimento sem medida, não acredite que exista um mal dentro dela. A esta alma o bom médico não visita nem cura. Pois ela não o busca, nem se preocupa com suas feridas, considerando estar bem e sã. Pois foi dito: “Não são os de boa saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes[235]”. 101. São verdadeiramente bem-aventurados e ferventes adeptos da vida e do regozijo sobrenatural aqueles que, votando-se ao ardor da fé e à conduta virtuosa, receberam por experiência e pela percepção o conhecimento dos mistérios celestes do Espírito e que possuem assim sua cidadania nos céus. Estes são os melhores dentre todos os homens. A prova é evidente: a quais, dentre os homens poderosos, sábios ou prudentes foi concedido subir aos céus enquanto ainda permaneciam sobre a terra? A quais dentre eles foi dado desde o alto fazer a obra espiritual e contemplar as belezas do Espírito? Pois um homem pobre em aparência, pobre ao extremo, desconhecido por seus vizinhos, prosternando-se com o rosto ao chão diante do Senhor, sobe aos céus conduzido pelo Espírito e na plenitude de sua alma desfruta em seu pensamento das maravilhas do alto, segundo o dito do Apóstolo: “Nossa cidade fica nos céus[236]”. E também: “O que o olho não viu, que o ouvido não escutou, o que não subiu ao coração do homem, o que Deus preparou para os que o amam”. E ele acrescenta: “Ele nos revelou por seu Espírito[237]”. Estes são dos sábios e poderosos verdadeiramente, estes os homens nobres e prudentes[238]. 102. Mas se, fora destes dons celestes, você julgar os santos a partir das coisas presentes, também não hesitará em dizer que eles estão acima de todos. Senão, julgue o seguinte: Nabucodonosor, soberano da Babilônia, havia reunido todas as nações para que se prosternassem diante da estátua que havia erguido[239]. Mas Deus, em toda sua sabedoria, conduziu as coisas de tal maneira que a virtude das Crianças fosse conhecida de todos e que todos aprendessem que somente um é o verdadeiro Deus que está nos céus. Três Crianças, prisioneiras e privadas de sua liberdade enfrentaram abertamente o rei. Enquanto todos se prosternavam medrosamente e não ousavam desobedecer, tanto estavam quase sem voz e conduzidos pelo nariz como animais, as três Crianças estavam tão longe de sentir o que aceitavam os outros que, em sua piedade, não quiseram ser ignoradas e não suportaram permanecer escondidas, mas disseram para que todos ouvissem: “Ó Rei, não adoraremos seu Deus e não nos prosternaremos diante da imagem de ouro que você ergueu”. E a fornalha terrível que os recebeu não funcionou como fornalha: ela não fez seu trabalho. Como se também ela os respeitasse, ela protegeu as Crianças de sofrerem o menor mal. Todos, inclusive o próprio rei, reconheceram, graças a elas, o verdadeiro Deus[240]. Não apenas os habitantes da terra, mas mesmos os coros que estão nos céus as admiraram. Quanto às ações corajosas dos santos, o Apóstolo divino mostra que elas não são desconhecidas daqueles que habitam os céus, mas que
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também eles as veem. De fato, ele diz: “Nós nos tornamos um espetáculo para os anjos e os homens [241]”. Você pode ver coisas semelhantes na história de Elias. Enquanto ele era um só, ainda assim prevalecia sobre muitos fazendo descer o fogo celeste[242]. Também Moisés venceu todo o Egito e mais o tirano faraó[243]. Também na história de Lot[244], na de Noé[245] e nas de muitos outros que, embora sendo comuns na aparência, dominaram inúmeros poderosos e príncipes. 103. Se uma natureza de fora não viesse em socorro de cada uma das coisas visíveis, estas, deixadas à própria sorte, não teriam como ser cultivadas e enfeitadas. Com efeito, a inefável sabedoria divina revela através das coisas visíveis mistérios e imagens, significando com isto que a natureza humana não é capaz por si só de carregar em si a perfeita vestimenta das virtudes e a beleza espiritual da santidade, se não as receber também das mãos de Deus. O mesmo acontece com a terra: se ela permanece tal como é, se não é cuidada pelos cultivadores e se não recebe logo o auxílio das chuvas e do sol, ela é incapaz de dar frutos e não é autossuficiente. Toda casa precisa da luz do sol, que não é da mesma natureza que ela, para não se encher de trevas. Você verá que o mesmo acontece com muitas outras coisas. Da mesma maneira a natureza humana, incapaz de por si só dar os frutos perfeitos da virtude, precisa do Cultivador espiritual de nossas almas, ou seja, do Espírito de Cristo, que por sua vez é absolutamente estranho à nossa natureza: pois nós somos criados, mas ele é incriado. Assim, cultivando com sua própria arte, se assim posso dizer, os corações dos fiéis que se entregaram de boa vontade ao Cultivador espiritual, ele os prepara para dar os frutos perfeitos do Espírito e faz brilhar sua própria luz na morada de nossa alma entenebrecida pelas paixões.
104. Dupla é a guerra que fazem os cristãos, e duplo o combate que conduzem. Primeiro eles devem enfrentar as coisas visíveis aos olhos do corpo. Estas excitam e provocam a alma, convidando-a a se afeiçoar e a se comprazer nelas. Depois, eles têm que lutar contra os poderes e as potências do maligno que mantém o mundo[246]. 105. A glória que Moisés exibia em seu rosto[247] era a imagem da verdadeira glória do Santíssimo Espírito. Pois assim como então ninguém conseguia fixar nele o olhar, também agora as trevas das paixões não suportam esta glória que brilha nas almas dos cristãos, mas são banidas e expulsas por tamanha luz. 106. O cristão que ama a verdade e ama a Deus, que provou da doçura celeste, que mesclou sua alma à graça, que se confiou totalmente às vontades da graça, sente aversão por tudo o que é deste século. Pois daí em diante ele é mais forte do que todas as coisas do mundo. Que se lhe apresentem ouro, prata, honra e glória, elogios e homenagens: nada disto o poderá prender. Com efeito, ele possui a experiência de outra riqueza, de outra honra, de outra glória, e nutre sua alma com o prazer incorruptível cuja sensação possui e com a plena certeza que lhe concede a comunhão com o Espírito. 107. Da mesma forma como o pastor, que é dotado de razão, se distingue dos animais irracionais, também o cristão é diferente dos homens pela compreensão, o conhecimento e o discernimento. Pois ele participa de outro Espírito, de outro intelecto, de outra compreensão e outra sabedoria, que não são as deste mundo. “É uma sabedoria, diz o Apóstolo, que anunciamos entre os perfeitos, uma sabedoria que não é deste século nem dos príncipes deste século que vão todos desaparecer; nós anunciamos a sabedoria de Deus no mistério[248]”. É por isso que o cristão difere totalmente de todos os homens que possuem o espírito do mundo, doutos e sábios, como foi dito. Ele julga a todos os homens, conforme está escrito, ele sabe do que fala, onde se encontra e em que estado está. Mas nenhum dos que têm o espírito do mundo tem o poder de reconhecê-lo ou de julgá-lo. Somente pode fazê-lo aquele a quem foi dado o Espírito da Divindade, que lhe é semelhante, segundo o Apóstolo divino: “É aos espirituais que explicamos as coisas espirituais. O homem psíquico não recebe as coisas do Espírito de Deus: elas lhe parecem loucura. Mas o homem espiritual julga a tudo e não é julgado por ninguém[249]”.
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108. É impossível receber o Santíssimo Espírito senão se fazendo estrangeiro a todas as coisas deste século e renunciando a si mesmo para buscar apenas o amor de Cristo, a fim de que o intelecto, desembaraçado de todas as preocupações materiais, não mais se consagre senão a este único objetivo e seja assim considerado digno de se tornar com Cristo um só Espírito, como disse o Apóstolo: “Aquele que se liga ao Senhor será com ele um só Espírito[250]”. Mas a alma que está ligada a qualquer coisa deste século, como a riqueza, a glória ou a amizade mundana, e se vê levada por elas, será incapaz de fugir e atravessar as trevas das potências negativas. 109. As almas que amam a verdade, as almas que amam a Deus não suportam o menor relaxamento do amor que dedicam ao Senhor. Inteiramente ligadas à cruz, elas sentem e reconhecem o progresso espiritual que se constrói nelas. Feridas por tal desejo, e por assim dizer com fome da justiça[251] das virtudes e da iluminação do Espírito bom, mesmo sendo dignas dos mistérios divinos, mesmo participando da alegria celeste e da graça, elas não confiam em si mesmas[252] e não se consideram grande coisa. Mas quanto mais são cumuladas dos carismas do Espírito, mais se esforçam por buscar insaciavelmente os bens celestes. Quanto mais sentem em si o progresso espiritual, mais desejam participar de suas benesses. Cumuladas das riquezas do Espírito, consideram a si próprias como indigentes. É o que diz a divina Escritura: “Os que comem terão ainda mais fome, e os que bebem ainda mais sede[253]”. 110. Estas almas são consideradas dignas de ser libertadas das paixões. Elas trazem em si plenamente a iluminação do Espírito divino e a total comunicação com a graça. Mas existem almas que se deixam levar pela preguiça e não fazem qualquer esforço, que não buscam com paciência e longanimidade receber a santificação do coração aqui em baixo, quando ainda se encontram na carne, e isto não em parte, mas totalmente: elas não esperam comungar com o Espírito Consolador, senti-lo com plena certeza e ser libertadas por ele das paixões do mal. Embora lhes tenha sido dada a graça divina, estas almas levadas pelo mal deixaram de velar por si mesmas. Depois de haver recebido a graça, elas obtêm a consolação que provém dela, e desfrutam da doçura espiritual. Por isto elas estão prontas para se tornarem orgulhosas, por que não têm o coração quebrantado, não se humilham em espírito, não estão sedentas nem voltadas para a medida perfeita da impassibilidade. Ao contrário, elas permanecem nesta pequena consolação da graça, e progridem mais em presunção do que em humildade; assim acontece de serem despojadas até do carisma que haviam recebido. Com efeito, como mostramos, a alma que verdadeiramente ama a Deus, ainda que tenha realizado milhares de atos justos, ainda que tenha utilizado o corpo para jejuns e vigílias extremas, ainda que lhe tenha sido dado receber diferentes carismas do Espírito, revelações e mistérios, esta alma é tão modesta que considera sequer ter começado a se conduzir segundo Deus, sequer ter adquirido ainda qualquer bem espiritual: ela tende sempre e com todo seu desejo, insaciavelmente, para o amor divino de Cristo. 111. A ninguém é possível alcançar estas medidas de um só golpe e com facilidade. É preciso passar por muitas penas e combates, é preciso haver consagrado tempo e esforço, haver conhecido as provas e toda espécie de tentações para alcançar enfim a medida perfeita, a medida da impassibilidade. Depois de havermos sido provados em todas as penas e toda fadiga, depois de suportarmos corajosamente todas as tentações suscitadas pelo mal, somente então seremos considerados também dignos das grandes honrarias, dos grandes carismas do Espírito e da riqueza divina, para então recebermos a herança do Reino celeste. 112. Se uma alma não tem em si esta exatidão rigorosa da vida cristã, se não sentiu a santificação que se opera no coração, que implore e peça ardentemente ao Senhor para obter este bem e a energia do Espírito que é concedida ao intelecto pelas contemplações inefáveis. Da mesma forma como, segundo a lei da Igreja, aqueles que são presa dos pecados do corpo são num primeiro momento descartados pelo sacerdote para que, depois de manifestar seu arrependimento, serem considerados dignos da comunhão, enquanto que os que se mantêm sem faltas e em toda pureza avançam para o sacerdote e, da parte externa passam ao
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interior, até próximo do altar, a fim de celebrar a liturgia junto ao Senhor, da mesma forma consideremos a comunhão mística com o Espírito, da qual o Apóstolo falou quando disse: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo[254]”: você verá que ela obedece à mesma lógica. A divina Trindade, com efeito, habita na alma que leva a vida pura, quando a bondade de Deus a assume. E ela aí permanece, não tal como é – pois nem toda a criação poderia contê-la – mas na medida em que o homem é capaz de concebê-la. Ora, quando o intelecto se afasta em qualquer ponto da conduta prescrita por Deus e entristece o Espírito divino[255], ele é rejeitado e afastado da alegria espiritual. Então a graça divina, o amor e toda a boa energia do Espírito se retraem, e o próprio intelecto é entregue às aflições, às tentações e aos espíritos do mal, até que a alma volte a caminhar retamente de modo a agradar ao Espírito. Pois quando ela prova seu arrependimento por meio de uma confissão e de uma humildade perfeitas, ela volta a ser considerada digna de ser visitada pela graça e recebe a alegria celeste ainda mais abundante do que antes. E, se ela já não entristece o Espírito, mas vive para agradá-lo, opondose a todos os pensamentos maus e agarrando-se continuamente ao Senhor[256], então esta alma progredirá com justiça e responsabilidade, será honrada com dons inefáveis, será transportada de glória em glória[257] e de repouso em repouso cada vez mais perfeito. Depois, chegando à medida perfeita do cristianismo, ela será reunida àqueles que trabalharam com perfeição por Cristo e que celebraram irrepreensivelmente sua liturgia, em seu Reino eterno. 113. Considere que estas coisas aparentes são as imagens e as sombras das coisas ocultas, que o templo visível é a imagem do templo do coração, que o sacerdote é a imagem do verdadeiro sacerdote da graça de Cristo, e assim por diante. Da mesma forma como na Igreja visível, sem as prévias leituras, salmodias e tudo o que constitui o ofício da instituição eclesial, não é normal que o padre celebre o mistério divino em si, o mistério do corpo e do sangue de Cristo, e, reciprocamente, mesmo que o cânon eclesial tenha sido dito, se a eucaristia mística oferecida pelo sacerdote e a comunhão do corpo de Cristo não acontecerem, a instituição da Igreja não foi cumprida e a celebração do mistério se torna deficiente, considere da mesma forma que o mesmo acontece com o cristão. Se ele bem conduziu o jejum, a vigília, a salmodia, o conjunto da ascese e todas as virtudes, mas se a energia mística do Espírito não foi posta a operar pela graça sobre o altar de seu coração, se ela não foi totalmente sentida como um repouso espiritual, toda esta ordem da ascese permanece inacabada e quase estéril, pois ela não traz em si a alegria do Espírito, esta alegria que age misticamente dentro do coração. 114. O jejum é uma coisa boa, a vigília é uma coisa boa, assim como a ascese e o exílio são coisas boas. Mas estas coisas não passam jamais do começo e das primícias da vida amada por Deus. Confiar-se pura e simplesmente a estas coisas é completamente irrazoável. Pode acontecer que tenhamos alguma parte na graça, e então, o mal que está oculto em nós, como já foi dito, matreiro, se retira voluntariamente e deixa de fazer as coisas de costume. Mas ele leva o homem a imaginar que seu intelecto foi purificado, logo o conduz a se pretender perfeito, para depois atacá-lo como o faria um salteador e manda-lo para mais baixo do que a terra. Com efeito, se homens, sobretudo homens de vinte anos, saltadores ou mercenários, colocam armadilhas para seus adversários, montam emboscadas e outros truques, tomam os inimigos de surpresa, derrubam-nos sem deixar esperança e os matam, quanto mais o mal, que tem milhares de anos e que se dedica como obra principal a fazer com que as almas se percam, saberá iludir no secreto do coração, ficar quieto quando convém, e não fazer nenhum movimento a fim de levar a alma a se imaginar perfeita. O fundamento do cristianismo, ainda que se tenham cumprido todas as formas de justiça, consiste em não repousar sobre ela, não confiar nela, não considerar que se tenha feito o que quer que seja de grande. E, ainda que tenhamos parte na graça, não consideremos ter ganhado seja lá o que for, nem nos mostremos saciados, mas tenhamos sempre mais fome e mais sede, tomemos o luto e choremos, com o coração totalmente quebrantado. 115. Considera que o estado espiritual é tal como segue. Suponha uma mansão real: ela é feita de diferentes pátios, portões, habitações, alguns mais exteriores, outros mais e mais interiores, nos quais se
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guarda a púrpura e os tesouros; depois vem a habitação que fica no coração do palácio e que é reservada à vida do rei. Do mesmo modo como alguém, por ter chegado aos pátios e às habitações exteriores, se engana se crer haver atingido o coração do palácio, também na ordem espiritual, aqueles que combatem o ventre e o sono devem se aplicar continuamente aos salmos e às orações sem imaginar que tenham chegado ao fim e ao repouso. Pois sua vida se passa ainda nos portões e nos pátios, não onde estão guardadas as púrpuras e os tesouros reais. E ainda que eles sejam considerados dignos de receber alguma graça espiritual, que isto não os engana como se já houvessem atingido o objetivo final. Convém verificar se tal tesouro foi encontrado neste vaso de barro[258], se fomos revestido da púrpura do Espírito, se vimos o Rei, se entramos no repouso. Creia-me ainda: a alma possui profundidade e diferentes membros; ora, o pecado, insinuando-se, investe sobre todos os membros e todos os pensamentos do coração, e depois, quando o homem busca a graça do Espírito, esta lhe vem e pode acontecer que envolva duas partes da alma. Aquele que não tem experiência, ao se ver consolado por tal graça, tem a impressão de que ela penetrou em todos os membros da alma e que o pecado foi totalmente desenraizado. Mas este homem não sabe que o pecado ainda mantém sob seu jugo a maior parte da alma. Pois é possível, como já mostramos outras vezes, que a alma aja continuamente tal como o olho age em relação ao corpo, e que o mal que rouba os pensamentos se encontre igualmente aí. Aquele que não sabe discernir, ao receber um grande carisma, adquire uma alta opinião a seu próprio respeito e se infla de orgulho como se tivesse recebido a última purificação; mas ainda falta muito para que a verdade lhe dê razão. Como já mostramos, existe aí mais uma das armadilhas de Satanás, que em certos momentos se retira de propósito e não age coo de costume, certamente com o objetivo de inspirar nos ascetas a presunção de se terem tornado perfeitos. Mas quem planta uma vinha colhe imediatamente seus frutos? Quem lança as sementes na terra já pode fazer a colheita? E então? O recém-nascido se torna adulto instantaneamente? Veja como foi com Jesus. Cristo era Filho de Deus e Deus. Veja de que glória ele veio e a que sofrimentos desceu, para a desonra, a cruz, a morte, para só depois, ser por sua humildade elevado acima de tudo, indo sentar-se à direita do Pai[259]. A serpente maligna, ao contrário, depois de haver semeado em Adão o desejo de divindade [260], a quanta desonra não o fez descer por causa desta presunção? Considere, portanto, estas coisas, guarde-se tanto quanto puder e se esforce para ter sempre o coração humilde e quebrantado[261].
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SOBRE A LIBERDADE DO INTELECTO 116. Quando você ouve que Cristo desceu aos infernos e libertou as almas que lá se encontravam detidas, não pense que estas coisas estão longe daquilo que acontece hoje em dia. Considere, com efeito, que o coração é um sepulcro no qual, retidos por pesadas trevas, foram enfurnados os pensamentos e o intelecto. O Senhor vem às almas que o chamam desde o inferno, ou seja, das profundezas de seu coração, e lá, comandando a morte, ele lhe diz: “Envie-me as almas presas que me procuram, a mim que as posso libertar”. Depois, erguendo a pesada pedra que recobre a alma, ele abre o túmulo, ressuscita aquele que estava verdadeiramente morto e liberta da prisão escura a alma que ali estava encerrada. 117. Acontece muitas vezes que Satanás venha deliberadamente falar ao seu coração e dizer: “Entenda o mal que você fez. Sua alma está cheia de iniquidades. Você está pesado de tantos e graves pecados”. No entanto, não o ignore: ele age assim para empurrá-lo ao desespero sob pretexto de humildade. Por que, depois que o mal entrou em nós pela transgressão ele abriu uma passagem para falar à alma todos os dias, como um homem fala a outro homem de certa maneira para lhe sugerir ações inconvenientes. Respondalhe, portanto: “Eu tenho as garantias escritas de Deus, que disse: Eu não quero a morte do pecador, mas que ele retorne por meio do arrependimento, e que viva[262]”. Senão, por que teria ele descido, a não ser para salvar os pecadores, iluminar os que estavam nas trevas e dar a vida aos que estavam mortos? 118. Com a graça divina acontece a mesma coisa que a potência contrária: ela manifestamente incita, mas não constrange. Desta maneira permanecem salvaguardados nosso poder de decisão e nossa liberdade. Quando o homem desorientado por Satanás faz o mal, não é Satanás, mas o próprio homem que recebe o castigo. Pois ele não foi forçado ao mal, mas se deixou levar ao vício por sua própria vontade. Coisa semelhante acontece com relação ao bem. A graça não imputa a si mesma o bem que faz, mas ao homem. Por isto ela o reveste de glória, pois ele se colocou na própria origem do bem. Tampouco é, como dissemos, por um poder de constrangimento que a graça, amarrando a vontade do homem, a torna indefectível. Embora presente, ela deixa espaço para a liberdade, a fim de que fique bem claro que é a vontade do homem que o dirige para a virtude ou o vício. Com efeito, a lei não é aplicada à natureza, mas à livre resolução, que pode se voltar para o bem ou para o mal. 119. É preciso guardar a alma e preservá-la de relação com pensamentos profanos e maus. Com efeito, assim como um corpo que se une a outro se mancha com a impureza, também a alma se corrompe quando se junta a pensamentos sujos e maus, por concordar e por se entregar a eles, não apenas aos que trazem a malícia e a prostituição, mas também os ligados a quaisquer outros vícios, como a infidelidade, a mentira, a vanglória, a cólera, a inveja e a disputa. É preciso purificar-se de toda mancha da carne e do espírito[263]. Considere por exemplo que exista uma corrupção e uma prostituição que agem no secreto da alma por pensamentos inconvenientes. Da mesma forma como, segundo o grande Apóstolo, “Deus destruirá aquele que destrói o templo de Deus[264]”, ou seja, o corpo, também será passível de castigo aquele que corrompe a alma e o intelecto concordando e consentindo em pensamentos inconvenientes. Portanto, assim como convém guardar o corpo do pecado visível, é preciso guardar a alma dos pensamentos errados, pois ela é a esposa de Cristo. “Pois, disse ele, eu os entreguei a um só esposo, para apresentá-los a Cristo como uma virgem pura[265]”. Escute a Escritura quando esta diz: “Guarde seu coração com toda a vigilância, pois é de lá que partem as fontes da vida[266]”. E aprenda o que ensina a divina Escritura: “Os pensamentos tortuosos separam de Deus[267]”. 120. Que cada qual, examinando e aprovando sua própria alma, exija dela que lhe diga ao quê ela está ligada. E, se por um acaso seu coração não estiver de acordo com as leis de Deus, que se dedique com todas as forças, assim como guarda seu corpo, em guardar o intelecto de se corromper e de consentir com os maus pensamentos, caso queira que, segundo a promessa, o Puríssimo venha a habitar nele. Pois ele prometeu habitar e caminhar[268] nas almas puras que amam a beleza.
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121. Da mesma forma como alguém que cultiva cuidadosamente sua própria terra começa por revirá-la e arrancar os espinheiros, para só então espalhar as sementes, também aquele que espera receber de Deus as sementes da graça deve primeiro purificar a terra de seu próprio coração para que, ao cair nele, a semente do Espírito possa dar frutos maduros e superabundantes. Se não começar por aí, se não houver a purificação completa das machas da carne e do espírito[269], permanecemos ainda como carne e sangue, distantes da vida[270]. 122. Precisamos examinar com grande penetração e de todos os lados as fraudes do inimigo, suas mentiras e trapaças. Com efeito, assim como o Espírito Santo disse por intermédio de Paulo que ele se faz tudo em todos para ganhar a todos os homens[271], também o mal se esforça em se disfarçar de todas as maneiras para enviá-los à perdição. Com os que oram, o inimigo faz cara de reza, com o objetivo de enganá-los levando-os à presunção sob pretexto de oração. Com os que jejuam ele faz cara de jejum, para enganá-los levando-os a se vangloriar do jejum. Ele age da mesma forma com os que têm conhecimento das Escrituras, para fazê-los se perder sob a máscara do conhecimento. Perante os que foram considerados dignos de uma revelação da luz ele finge possuir algo semelhante. De fato, foi dito que Satanás se trasveste de anjo de luz[272] a fim de atrair os homens para si depois de enganá-los com a aparência da luz correspondente. Numa palavra, ele toma toda espécie de formas, se assemelha a tudo, a fim de submeter os homens com imitações e fazê-los perder-se com pretextos falaciosos. Está escrito: “Derrubaremos os raciocínios e toda altura que se ergue contra o conhecimento de Deus[273]”. Veja até que ponto estende sua audácia aquele que se vangloria, quando pretende derrubar até a quem, por seu conhecimento da verdade, traz em si o divino. Assim, cada qual deve, com toda atenção, guardar seu próprio coração, pedir a Deus muita penetração, a fim de que seja possível perceber as intrigas do mal. Mas convém igualmente modelarmos continuamente o intelecto e os pensamentos, exercitá-los em compreender, e também nos colocarmos sob a vontade de Deus. Pois não existe obra maior nem mais preciosa do que esta. Com efeito, foi dito: “Sua obra é ação de graça e esplendor[274]”. 123. Mesmo praticando ao máximo todas as virtudes, a alma que ama a Deus costuma não imputar nada a si mesma, mas relacionar tudo a Deus. Por sua vez, Deus, atento à saúde e à retidão do intelecto e do conhecimento desta alma, lhe atribui tudo. Como é ela que se esforça e faz todo o trabalho, ele lhe concede em troca as recompensas, mesmo que no homem não se encontre nada de verdadeiramente justo quando ele vier a nós em sua glória no dia do Juízo. Por que tudo o que o homem possui, todos estes bens aparentes por meio dos quais ele pode fazer o bem, a terra e tudo o que nela existe, o corpo e a própria alma, tudo isto pertence a Deus. Até a existência o homem a recebe por uma graça. O que resta a ele de seu, de que ele possa razoavelmente se vangloriar ou se justificar? E, no entanto, Deus recebe dos homens esta graça imensa, que lhe agrada mais do que tudo o que possamos lhe oferecer: que a alma que conhece bem como funcionam os seres reporte apenas a Deus tudo o que ela possa fazer de bom, todo o esforço feito por ele, tudo o que ela compreende, tudo o que ela conhece, atribuindo tudo somente a ele. 124. Quando uma mulher desposa um homem para viver em comunhão com ele, tudo o que pertence aos dois se torna comum. Eles passam a ter uma mesma casa, os mesmos bens, os mesmos meios de existência. A mulher pode dispor não apenas dos bens do marido, mas também de seu corpo. Pois o esposo, como diz o Apóstolo divino, não tem autoridade sobre seu próprio corpo, que pertence à sua esposa[275]. O mesmo acontece com a verdadeira e misteriosa união da alma com Cristo: a alma se torna com ele um só Espírito[276]. E por que se torna sua esposa, segue-se que se torna também senhora de seus tesouros inefáveis. Uma vez que Deus se deu a ela, é claro que tudo o que é dele é dela, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, ou os anjos, as dominações, o passado e o futuro[277]. 125. Enquanto Israel buscou agradar ao Mestre, embora nunca o tenha feito como devido, mas em todo caso enquanto pareceu dedicar-lhe uma fé quase sã, uma coluna de fogo se colocou à sua frente[278], o mar se retirou diante de si[279], e ele desfrutou de maravilhas sem conta. Mas quando se afastou da boa
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disposição para com Deus, foi entregue aos inimigos e submetido à escravidão mais amarga. Eu lhe suplico, considere que o mesmo acontece com sua alma. Por meio da graça ela conheceu a Deus, logo foi purificada de muitas manchas e depois foi considerada digna de receber os dons. Mas se ela não guardou a benevolência que deveria ter até o final pelo Esposo celeste, ela decairá da vida da qual tomou parte. Com efeito, é possível ao adversário sequestrar por meio do orgulho até os que alcançaram tais medidas. Por isso é preciso combater com todas as forças e tomar cuidado com a própria vida com temor e tremor [280], sobretudo aqueles a quem foi concedido participar do Espírito de Cristo: que nada façam com negligência, de pequeno ou grande, para não afligir com isto o Espírito do Senhor[281]. Com efeito, assim como existe alegria no céu, como diz a Verdade, por um só pecador que se arrepende[282], existe tristeza por uma única alma que decai da vida eterna. 126. Quando uma alma é considerada digna da graça, Deus lhe concede aquilo que lhe será mais útil: o conhecimento, a inteligência e o discernimento. Tudo isto Deus concede se ela lhe pedir, para servi-lo e para agradá-lo, o Espírito que ela foi considerada digna de receber, sem se deixar perder pelo vício, sem se deixar enganar pela ignorância, sem se deixar desviar pela negligência e por uma vida estranha ao temor a Deus, e sem fazer nada que seja contra a vontade do Mestre. 127. Assim como a energia das paixões, ou seja, o espírito do mundo, o espírito do erro, das trevas, do pecado, vem habitar no homem que está imbuído do sentimento da carne, também a energia e o poder do Espírito luminoso vem habitar no homem santificado, segundo aquele que disse: “Se vocês buscarem uma prova de que Cristo fala em mim[283]”, e também: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim[284]”, e ainda: “Vocês que foram batizados em Cristo, de Cristo se revestiram[285]”. E o Senhor: “Nós viremos, eu e meu Pai, e nele faremos nossa morada[286]”. Não é nem em segredo, nem sem revelar sua energia, mas em potência e verdade, que estas palavras são cumpridas nos que são considerados dignos. Com efeito, primeiro a lei converteu os homens por uma palavra sem realidade, impondo a eles um jugo pesado e difícil de carregar, sem lhes prestar nenhum socorro: é por que esta lei não era capaz de liberar o poder do Espírito. Está escrito: “Aquilo que era impossível à lei, por que a carne lhe retirava toda a força[287]”, etc. Mas depois da vinda de Cristo, a porta se abriu para os que creram em verdade, e o poder de Deus e a energia do Espírito lhes foram concedidos. 128. Desde quando Cristo enviou aos discípulos divinos o dom da bondade primeira e natural, o dom do Espírito Santo[288], a partir daí o poder de Deus, recobrindo com sua sombra todos os que creram e habitando assim em suas almas, curou as paixões do pecado e libertou os homens das trevas e da morte. Até então a alma estava morta, havia sido aprisionada e retida pela escuridão do pecado. Ainda agora, a alma que ainda não foi considerada digna de habitar com o Senhor e com o poder do Espírito bom que vem com suas energias morar com ela em toda sua força e toda sua plenitude, está ainda no seio das trevas. Mas naqueles a quem a graça do divino Espírito visitou para permanecer no mais profundo de seu intelecto, o Senhor se encontra daí em diante como se fosse sua própria alma. “Quem se une ao Senhor, disse o Apóstolo divino, fará com ele um só Espírito[289]”. E o próprio Senhor disse: “Como eu e você somos um, que todos também sejam um[290]”. Oh, quanto benevolência e bondade pode experimentar a natureza humana tão humilhada pelo mal! Pois a alma presa ao fardo das paixões, que era como que uma só coisa com este, embora tendo vontade própria, não podia fazer o que lhe aprouvesse. É o que disse Paulo: “O que eu quero não é o que eu faço[291]”. Com mais razão, quando o poder de Deus se une à alma santificada e que se tornou digna dele, a alma se torna uma com a vontade divina. Tal como a própria alma do Senhor em verdade, ela deixará espontaneamente que reine em si o poder do Espírito bom, e deixará de caminhar segundo sua própria vontade. Pois “quem nos separará do amor de Cristo[292]”, ou seja, da alma unida ao Espírito Santo? 129. Portanto, aos que querem imitar a Cristo para serem também chamados de filhos de Deus, nascidos do Espírito, convém antes de tudo suportar corajosa e pacientemente as aflições que podem acontecer, as
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enfermidades do corpo ou as injúrias e os ultrajes dos homens, bem como os assaltos dos inimigos invisíveis. É por uma economia de Deus que as provas das diferentes aflições são concedidas às almas, a fim de que dentre elas sejam iluminadas as que verdadeiramente amam o Senhor. É o que em todos os tempos provaram os Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos e os Mártires: eles não fizeram outra coisa do que passar pelo caminho estreito das tentações e das aflições, assim agradando a Deus. “Meu filho, diz a Escritura, se você pretende servir ao Senhor, prepare sua alma para a prova, torne reto seu coração e seja paciente[293]”. E em outra parte ela afirma que se deve receber como um bem tudo o que nos acontece, sabendo que nada se faz sem Deus. A alma que pretende agradar a Deus deve se ligar antes de tudo à paciência e à esperança. Pois o mal só possui um único recurso: fazer penetrar em nós a acídia nos tempos de aflição, a fim de nos cortar a esperança no Senhor. Jamais permitiu Deus que a alma que nele espera[294] tenha sido oprimida pelas tentações a ponto de se desconsertar por completo. “Deus é fiel, disse o Apóstolo, ele não permitirá que vocês sejam tentados além de suas forças. Com as tentações, ele também fornecerá um meio de saída, para que vocês as possam suportar[295]”. O maligno não aflige a alma tanto quanto quer, mas na medida em que Deus o permite. Com efeito, se os homens sabem o peso que uma mula, um asno ou um camelo são capazes de carregar, eles colocarão em cada uma a carga que o animal pode suportar. Também o oleiro sabe muito bem quanto tempo deve deixar no fogo os vasos para que estes não se quebrem por aí permanecer demasiado, nem para que fiquem inutilizados por terem sido retirados antes que o cozimento tenha terminado. Se esta é a ciência do homem, quanto mais, e infinitamente, não saberá a ciência de Deus quanta tentação deverá suportar cada alma para se tornar provada e ser capaz de alcançar o Reino dos céus? 130. Se a matéria do cânhamo não for quebrada longamente, não pode ser utilizada no trabalho das tramas mais delicadas. Quanto mais quebrada e cardada ela for, mais se torna pura e mais facilmente pode ser utilizada. Da mesma forma, o vaso moldado mas ainda não exposto ao fogo não pode ser utilizado pelo homem. O mesmo acontece com a criança: ela ainda não tem experiência das obras do mundo, é incapaz de construir, plantar, semear ou concluir com sucesso qualquer das tarefas do mundo. O mesmo acontece com as almas. Embora participem da graça divina e estejam cheias da doçura e do repouso do Espírito pela benevolência do Senhor devido ao seu estado de infância, ainda lhes falta a experiência, ainda não foram testadas pelos diferentes tormentos que os espíritos do mal infligem, ainda estão como que na infância e por assim dizer não são capazes de alcançar o Reino dos céus. Pois “se fossem forem isentos da correção da qual todos participam, disse o Apóstolo divino, vocês serão bastardos e não filhos [296]”. Assim é que o homem recebe para seu benefício as tentações e aflições, que tornam sua alma mais experiente e sólida. E, se perseverarmos até o fim esperando no Senhor, será impossível que tal esperança fique de lado na promessa do Espírito e na libertação das paixões do mal. 131. Os mártires enfrentaram inúmeros tormentos e perseveraram até a morte, e foram dignos das coroas e da glória. Quanto mais duros e numerosos seus sofrimentos, maiores eram sua glória e sua certeza diante de Deus. Do mesmo modo, quando as almas são atiradas a diferentes aflições, sejam estas provocadas pelos homens na ordem visível, ou que venham de pensamentos deslocados na ordem do intelecto, ou que nasçam de enfermidades do corpo, elas receberão as mesmas coroas e a mesma garantia dos mártires, caso mantenham a paciência até o fim. Pois o martírio que aqueles sofreram por causa dos homens, os ascetas sofrem por causa dos espíritos do mal que agem por intermédio destes mesmos homens. E quanto mais numerosos forem os sofrimentos que lhes inflija o inimigo, maior será a glória que receberão de Deus, não apenas no século futuro, mas desde já, aqui em baixo, onde serão considerados dignos da consolação do Espírito bom. 132. É sabido que o caminho que conduz à vida do alto é muito estreito e fechado, e é por isso que são pouco numerosos os que o seguem. Ora, em vista da esperança que se fundamenta nos céus é preciso suportar firmemente todas as provações do maligno. De fato, quaisquer que sejam as aflições que tenhamos que sofrer, que poderemos oferecer que corresponda à promessa do século futuro, ou à
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consolação com que aqui em baixo o Espírito bom cumula nossas almas, ou à libertação das trevas das paixões do mal, ou à multidão de dívidas nas quais incorremos por nossos pecados? Com efeito, foi dito: “Os sofrimentos do tempo presente não são comparáveis à glória que deverá se manifestar em nós[297]”. Devemos então, como se diz, a tudo suportar pelo Senhor, como nobres combatentes prestes a morrer por nosso Rei. Por que, com efeito, quando estávamos ligados ao mundo e às coisas desta vida, caímos nós em tantas penas, e agora, depois que viemos servir a Deus, ainda temos que suportar tantas tentações? Mas você não percebe que é por Cristo que somos afligidos? Pois o adversário inveja a recompensa dos bens que esperamos, ele quer colocar a preguiça e o desleixo em nossas almas para que não sejamos considerados dignos destes bens que merecemos por termos vencido como agrada a Deus. Então o maligno se arma contra nós na mesma medida em que resistimos corajosamente aos seus ataques. Mas todas as armadilhas que ele nos coloca são desarmadas com a ajuda de Cristo. Pois temos em Jesus nosso protetor e defensor. Lembremo-nos de que foi assim mesma que ele próprio atravessou este século: ultrajado, perseguido, ridicularizado e finalmente assassinado por uma morte desonrosa sobre a cruz[298]. 133. Se quisermos suportar facilmente toda a aflição e as provas, queiramos morrer por Cristo, tenhamos continuamente esta morte diante de nossos olhos. Com efeito, recebemos esta ordem de segui-lo tomando nossa cruz[299], ou seja, estando prontos e resolvidos a morrer. Se estivermos assim dispostos, como se diz, suportaremos com facilidade toda aflição, secreta ou visível. De fato, para quem deseja morrer por Cristo[300], que mal haverá em suportar algumas penas e aflições? Ao contrário, para quem não deseja morrer por Cristo, para os que não ligam continuamente seus pensamentos a Cristo, as aflições são sempre pesadas. Mas quem deseja ser herdeiro de Cristo, que deseje igualmente imitar seus sofrimentos. Desta forma, os que dizem amar ao Senhor serão reconhecidos assim: pela esperança que depositam nele, carregam todas as aflições não apenas com coragem, mas ardentemente. 134. Quem avança na direção de Cristo deve antes violentar-se para atingir o bem, mesmo que seu coração não o queira. Pois “o Reino de Deus é tomado pela força, disse o Senhor que não mente, são os violentos que se apoderam dele[301]”. Ele disse também: “Esforcem-se para entrar pela porta estreita[302]”. É preciso, como já foi dito, que, contra nossa própria vontade, forcemos um caminho para a virtude, que os que não possuem a caridade se esforcem por alcançá-la, que aqueles a quem falta mansidão se esforcem por adquiri-la, que os que ainda não chegaram a este estado se esforcem por ter um coração compassivo e cheio de amor pelo homem, por suportar a desonra e a indiferença, por se manter firme sob a pecha do desprezo, enfim, que os que ainda não trazem em si a oração do Espírito se esforcem por recebê-la. Se Deus nos faz lutar assim e nos obriga a violentar-nos para alcançar o bem, ainda que nosso coração se oponha, ele nos concede a oração verdadeira, um coração compassivo, a paciência, a longanimidade, numa palavra, ele nos cumula de todos os frutos do Espírito[303]. E se um homem a quem faltam também as demais virtudes se violenta para atingir, por exemplo, apenas a oração a ponto de receber não só o carisma da oração, mas ainda o da mansidão, da humildade, do amor, e mais toda a nobre raça das virtudes e até a certeza da fé e a confiança em Cristo, fora de toda negligência e de todo desleixo, este homem poderá receber também o Espírito bom, segundo seu pedido, e parcialmente, na alegria e no repouso, a prece fecundada pela graça. Mas ele permanecerá privado dos demais bens, por que não se violentou para adquiri-los também, como foi dito, e por que não os pediu a Cristo. Pois, ainda que ele não queira, precisará não somente forçar um caminho para os bens de que falamos, pedindo a Deus que lhe seja concedido recebê-los, mas ainda considerar indignas de serem pronunciadas palavras inúteis e ociosas. Ele deverá ter sempre na boca e no coração as palavras de Deus e renunciar, por outro lado, a se encolerizar e gritar. De fato, foi dito: “Que todo azedume, toda cólera e toda gritaria seja banida de entre vocês[304]”. Ele deverá se esforçar para não medir ninguém, não julgar, não se orgulhar[305], a fim de que o Senhor, vendo assim este homem prender a si mesmo e se violentar, lhe permita cumprir sem esforço e facilmente aquilo que antes, mesmo como todo seu esforço, não lhe era possível obter, por causa da malícia que nele habitava. Toda esta prática da virtude se tornará para ele como que uma natureza. Pois daí em diante,
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conforme a promessa, o Senhor virá e habitará nele[306], e ele no Senhor, que nele fará cumprir os mandamentos com a maior facilidade. 135. Aquele que se violenta apenas para alcançar a oração, como foi mostrado no capítulo anterior, mas que não se dedica nem se força para alcançar a humildade, o amor, a mansidão e as demais virtudes, fica reduzido a este extremo: às vezes a graça divina o visita enquanto ora. Pois Deus, em sua bondade, ama tanto o homem que ele concede aos que oram aquilo que pedem. Mas se este homem não está nem acostumado nem exercitado mas virtudes de que falamos, ou bem ele decai da graça recebida, se orgulha e tomba, ou se detém sem progredir nem crescer nesta graça. Pois a moradia e o repouso do Espírito bom são, ao que parece, a humildade, o amor, a mansidão e os demais santos mandamentos de Cristo. Portanto, quem quiser, por meio destes mandamentos, progredir em crescimento e perfeição, deve trazer em si antes de tudo o primeiro de todos, e que se esforce por amar, como foi dito, e que se dedique a tornar compassivo e dócil a Deus seu coração propenso à discussão e à disputa. Pois naquele que começou a se violentar, que de certa forma aprisionou toda resistência da alma, que, por um bom hábito, se fez obediente a Deus, que implora e pede em tal estado de alma, cresce e floresce o carisma da oração dada pelo Espírito, carisma que repousa na moderação dos sentimentos: aquilo que o homem buscava, além do amor e da afetuosa mansidão. Então o Espírito lhe concede também estas coisas e lhe ensina a verdadeira humildade, o amor verdadeiro e a doçura: é o que ele buscava ao se violentar. Assim crescendo até a perfeição exigida pelo Senhor, ele se mostra digno do Reino. Pois o humilde não tomba jamais. Onde cairá ele, que está abaixo de todos, ao menos na medida em que isto depende dele? Assim é que o orgulho é um grande rebaixamento, e, ao contrário, a humildade é uma grande elevação e uma honra certa. 136. Aqueles que amaram a Deus verdadeiramente não se decidiram a servi-lo com vistas ao Reino, como se procurassem fazer disto um mercado ou um benefício próprio, nem para escapar do castigo reservado aos pecadores. Eles o amaram como o único Deus e como seu próprio Criador. Consequentemente, eles reconheceram que o servidor deve agradar ao Mestre que o criou. E deram prova de grande discernimento diante do que lhes aconteceu. Pois o desejo de agradar a Deus logo encontra muitos obstáculos, que não se resumem à indigência e ao descrédito, mas incluem ainda a riqueza e as horarias que constituem tentações para a alma. Num certo sentido, mesmo a consolação e o reconforto que a alma recebe da graça podem facilmente se transformar em prova e impedimento, se a alma que foi considerada digna não os percebe ou os utiliza sem medida e discernimento. Pois o mal, sob o disfarce desta graça, se empenha em relaxar a tensão dentro desta alma, e a fazê-la cair na preguiça e na negligência. É por isso que a própria graça precisa, para se comunicar, de uma alma piedosa e perspicaz que saiba honrá-la e trazer em si frutos dignos dela. Portanto, não são apenas as aflições, mas também o reconforto, que pode se transformar em provação para a alma. Pois por intermédio de uns e de outros as almas são testadas pelo Criador, a fim de que dentre elas se manifestem claramente aquelas que não o amam apenas para obter um benefício, mas que o consideram como o único digno de afeto e honra verdadeiramente grandes. Assim é que, para quem é negligente, para quem não tem fé, que pensa ainda como uma criança, as circunstâncias tristes e penosas, como a doença, a indigência, o descrédito, ou, ao contrário, a riqueza, a glória, o elogio dos homens, tudo isto constitui um obstáculo à vida eterna, além da guerra oculta que o maligno faz contra nós. Inversamente, você verá que estas mesmas circunstâncias auxiliam o homem fiel, perspicaz e nobre, a alcançar o Reino de Deus. “Para os que amam a Deus, segundo o Apóstolo divino, tudo concorre para o bem[307]”. Prova-se assim que o homem que verdadeiramente ama a Deus, que rompeu, venceu e superou tudo o que é considerado obstáculo no mundo, se liga unicamente ao amor divino. “As armadilhas dos pecadores me cercaram, disse o Profeta, mas eu não esqueci a sua lei[308]”. 137. O divino apóstolo Paulo mostrou com precisão e clareza a todas as almas crentes que o mistério perfeito do cristianismo consiste em alcançar a experiência da energia divina, ou seja, a irradiação da luz celeste na revelação e no poder do Espírito. Assim não corremos o risco de, por ignorância ou negligência, deixar de lado o mistério perfeito da graça, considerando que tal iluminação do Espírito não provém senão
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de um conhecimento dos pensamentos. É por isso que Paulo também reportou o exemplo da glória do Espírito envolvendo o rosto de Moisés, a fim de expor o conhecimento em acordo com o mistério. Assim, disse ele: “Se o ministério da morte, gravado em letras sobre tábuas de pedra, foi glorioso a ponto de os filhos de Israel não poderem mirar o rosto de Moisés por causa da glória – passageira, é verdade – de sua face, quão maior não será a glória do ministério do Espírito? E se o ministério da condenação foi uma glória, quanto mais não abundará em glória o ministério da justiça? Assim, o que antes foi glória já não o é mais, por causa desta nova glória muito superior. Pois, se o que passa foi glória, quanto mais será aquilo que permanece[309]”. Ele disse “o que passa”, por que a glória da luz envolvia o corpo mortal de Moisés. Mas ele acrescenta: “Tendo assim tal esperança, dispomos de uma grande liberdade[310]”, e mais adiante ele demonstra que esta glória indissolúvel, incorruptível, reveladora do Espírito, brilha agora para aqueles que dela são dignos, eterna e indefectivelmente, no ser imortal do homem interior. É por isso que ele diz: “Todos nós – ou seja, nós que, por uma fé perfeita, nascemos do Espírito – que, com o rosto sem véu, refletimos a glória do Senhor, somos transfigurados na mesma imagem, de glória em glória, como pelo Senhor, o Espírito[311]”. O rosto sem véu é evidentemente o rosto da alma. E: “Quando nos voltamos para o Senhor, o véu é retirado. Ora, o Senhor é o Espírito[312]”. Com isto ele mostra claramente que um véu de trevas foi jogado sobre a alma. É o véu que, depois da transgressão de Adão, recebeu o poder de penetrar na humanidade. Mas agora, depois que resplandeceu o Espírito, acreditamos que este véu foi retirado das almas fiéis e verdadeiramente dignas. É por esta razão que aconteceu a vinda de Cristo. Quis Deus que aqueles que creem em verdade alcancem tais medidas de santidade. 138. Este flamejamento do Espírito não é somente uma revelação dos pensamentos e uma iluminação da graça, como foi dito, mas uma irradiação certa e contínua da luz hipostática nas almas. “Pois aquele que disse: a luz brilhará do seio das trevas, [a mesma luz] brilhou em nossos corações para iluminá-los com o conhecimento e a glória de Cristo[313]”. E: “Ilumine meus olhos, para que eu não adormeça no sono da morte[314]”, ou seja, para que a alma não seja entenebrecida pelo véu da morte da malícia, quando se dissolver a carne. Igualmente: “Abre ainda meus olhos, e eu contemplarei as maravilhas de sua lei [315]”. E: “Envie a luz e sua verdade. Elas me conduzirão e me levarão até a montanha santa e às suas moradas [316]”. E também: “A luz de sua face se imprimiu em nós, Senhor[317]”. Estes versos, e muitos outros, conduzem todos ao mesmo fim. 139. A luz que brilhou sobre o caminho diante do bem-aventurado Paulo[318], esta luz por meio da qual ele foi elevado ao terceiro céu e esteve diante de mistérios inefáveis[319], não era uma iluminação dos pensamentos e do conhecimento, mas uma resplendência dentro da alma do poder pessoal do Espírito bom[320]. Os olhos da carne, incapazes de suportar a superabundância de tamanho esplendor, ficaram cegos[321]. É por meio desta luz que todo conhecimento é revelado, e que Deus se dá a conhecer em verdade à alma que é digna e bem-amada. 140. Toda alma que, por seu próprio esforço e sua fé, foi considerada digna de se revestir perfeitamente de Cristo desde aqui de baixo na potência e na plenitude da graça e que se uniu à luz celeste da imagem incorruptível, está desde já pessoalmente iniciada[322] no conhecimento de todos os mistérios do céu. E no dia da ressurreição, seu corpo glorificado com esta imagem celeste da glória[323], elevado aos céus pelo Espírito, conforme está escrito[324], e tornado digno de ser conforme o corpo de sua glória[325], terá também o Reino eterno que durará para sempre e que será o quinhão de Cristo. 141. Na mesma medida em que um homem, por seu próprio esforço e pela fé, comungar da glória celeste e do Espírito Santo e tiver adornado sua alma de boas obras, nesta medida naquele dia seu corpo também será digno de ser glorificado. Por que aquilo que até então foi guardado no interior, como um tesouro, sairá para o exterior. Acontece aqui o mesmo que sucede aos frutos das árvores: penetrando no interior durante o inverno, ele saem para fora na primavera. Entre os santos, a imagem do Espírito, esta imagem semelhante a Deus, que desde agora está como que impressa no seu interior, tornará igualmente
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semelhante a Deus e celeste o corpo exterior. Mas entre os impuros e os pecadores, o véu opaco do espírito do mundo envolverá a alma, tornando tenebroso e disforme o intelecto pelo peso das paixões: também o corpo se revelará então, exteriormente, tenebroso e coberto de vergonha. 142. Quando, depois da transgressão de Adão, a bondade de Deus se decidiu por sua morte[326], a coisa aconteceu primeiro na alma, nos sentidos imortais, estes sentidos penetrados pelo intelecto, que se extinguiram nele pela privação da alegria celeste e espiritual e se tornaram como mortos; depois veio a morte do corpo, após novecentos e trinta anos[327]. Também agora, depois de se haver reconciliado com a humanidade pela cruz e a morte do Salvador, Deus restabeleceu na alegria das luzes e dos mistérios do céu a alma que acreditou em verdade, mesmo estando ela ainda na carne, e, pela luz divina da graça ele tornou novamente clarividentes os sentidos penetrados pelo intelecto; e a seguir ele revestirá também de glória imortal e incorruptível o próprio corpo. 143. Os que se afastaram deste mundo e levam uma vida nobre no amor pela virtude, mas que ainda estão sob o véu das paixões, ao qual fomos todos condenados pela transgressão do primeiro homem, vale dizer, o cuidado da carne – chamado pelo Apóstolo de “morte”, quando ele disse: “O cuidado com a carne é a morte[328]” – estes homens são como alguém que caminha à noite à luz das estrelas, que são os santos mandamentos de Deus. Eles ainda não estão totalmente desembaraçados das trevas. É impossível a eles discernir todas as coisas. Convém, portanto, que, dedicando-se à virtude, se esforçando e com muita fé, chamem por Cristo, o Sol de justiça, para que este brilhe em seus corações, a fim de que possam ver tudo com precisão: a agressão das feras inteligíveis contra nós, que varia e toma todas as formas, e as belezas do mundo incorruptível, cujo aspecto é impossível descrever e cuja alegria impossível expressar. Tudo isto então se tornará para eles visível e manifesto, como aos que atingirão o cume das virtudes, e como àqueles cuja luz intelectual, com toda sua energia, iluminou o coração. Pois o alimento sólido, como disse o bem-aventurado Paulo, é para os perfeitos que, por hábito, possuem os sentidos exercitados no discernimento do bem e do mal[329]. E o divino Pedro disse: “Também vocês dispõem da palavra profética à qual fazem bem em prestar atenção como a uma lâmpada que brilha num lugar escuro, até que o dia comece a nascer e a estrela da manhã se levante em seus corações[330]”. Ora, a maior parte não difere em nada dos que caminham na noite sem o auxílio de uma luz e sem dispor da menor claridade (ou seja, da palavra divina que pode brilhar em nossas almas). Estes homens não estão longe de se assemelhar a cegos: eles estão inteiramente presos na trama dos afazeres materiais e nos laços desta vida. Eles não se mantém no temor a Deus nem seguem nenhuma das boas obras. Mas aqueles que, dentre os homens do mundo, como foi dito, se iluminam com a luz dos santos mandamentos, como com a luz das estrelas, atentos à fé e ao temor Deus, estes não estão totalmente mergulhados nas trevas, e ainda podem ter uma esperança de salvação. 144. Eu afirmo, os homens adquirem a riqueza no mundo por diferentes meios e diferentes práticas. Um é rico por que possui o cargo de governador; outro, por que faz comércio; outro, por que trabalha com suas mãos e cultiva a terra; e outros, por outras vias. Considere, eu lhe peço, que a mesma ordem vale para os bens espirituais. Uns os adquirem por diversos carismas, como mostra a frase do Apóstolo: “Nós possuímos carismas diferentes, segundo nos conferiu a graça de Deus[331]”. Outros, por diferentes asceses, diferentes ações justas e diferentes virtudes praticadas por amor ao Deus único, recolhem em si a riqueza do céu. Por isso lhes é proibido julgar o próximo, desprezá-lo ou condená-lo. E não são menos reconhecíveis os que buscam ouro na terra, vale dizer, os que correm com longanimidade e paciência e se enriquecem em parte, com grande regozijo, pela boa esperança. Igualmente reconhecíveis são os que, como mercenários, tolos e embrutecidos, devoram logo tudo o que recebem, não permitindo crescer com paciência aquilo que têm em mãos. Os vemos sempre nus e indigentes. Com efeito, estão sempre prontos e ardentes para receber a graça, mas são negligentes e desleixados quando é necessário agir para adquiri-la. Eles são inconstantes e se cansam quando postos a trabalhar, e a graça que receberam logo lhes é tirada. Pois a vontade negligente, preguiçosa, fraca e desleixada, que não se conforma à graça e é desprovida de
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boas obras, que é sempre reprovada por Deus e desacreditada, é reconhecível desde já, e ficará a descoberto no século futuro. 145. Quando o homem transgrediu o mandamento de Deus e decaiu da vida que levava no Paraíso, logo foi preso a duas cadeias. Uma é a dos afazeres desta vida e dos prazeres da carne: a riqueza, a glória, a amizade, a mulher, as crianças, os parentes, a pátria, as posses, numa palavra, estas coisas visíveis das quais a palavra de Deus mandou que nos separássemos por nossa própria resolução. A outra é invisível e oculta. Com efeito, a alma foi amarrada pelos próprios espíritos do mal aos laços das trevas. Desta forma não lhe é possível amar a Deus, nem crer, nem orar como gostaria. Pois, nas coisas visíveis como nas ocultas, tudo se opõe a nós e nos persegue desde a transgressão do primeiro homem. Assim, quando alguém, dando ouvidos dóceis à palavra de Deus, se separa das coisas desta vida, se separará também de todos os prazeres da carne. Então, consagrando-se ao Deus e vivendo com ele, ele receberá a força para aprender que no secreto do coração está escondido um outro combate, outra guerra: a dos pensamentos. Assim perseverando e orando ao Cristo compassivo, desde que este lhe envie uma grande fé unida à paciência, e que o ligue ao socorro de Deus, ele poderá se libertar destes laços e destes entraves interiores e das trevas dos espíritos do mal, que são as energias das paixões secretas. Nós somos capazes de deter esta guerra pela graça e o poder de Cristo. Mas sem o socorro de Deus, por nós mesmos, é impossível nos libertarmos e nos livrarmos da luta contra os pensamentos. Somente nos é possível nos opor ao mal e não nos comprazermos nele. 146. Se alguém se vê retido pelos afazeres deste mundo e pelos lações de todo tipo, se se deixa desviar pelas paixões do mal, é muito necessário, como já dissemos, que ele saiba que existe outro combate e outra guerra que se passam em segredo. Pois é bom que, desembaraçando-nos de todo o visível e nos afastando dos prazeres da carne para começar a nos consagrarmos a Deus, possamos conhecer o combate interior das paixões e discernir a guerra secreta que existe em nós. Se não agirmos assim com toda nossa alma, se não colocarmos todo nosso amor em nos consagrarmos a Deus, não saberemos reconhecer estas paixões secretas do mal e as ligações interiores. Enquanto somos feridos e permitimos que em nós queimem as paixões secretas, nos arriscamos a acreditar que estamos com boa saúde e não doentes. Ao contrário, a quem despreza a concupiscência e a vanglória, torna-se logo possível reconhecer estas paixões e combatê-las, desde que chame por Cristo com fé, que receba do céu as armas espirituais, a couraça da justiça, o capacete da salvação, o escudo da fé e a espada do Espírito[332]. 147. O adversário, que se empenha em nos cortar de nossa esperança e de nosso amor em Cristo, inventa milhares de armadilhas. Por meio dos espíritos do mal ele traz à alma grandes aflições. Desenterrando a lembrança de antigos pecados, ele suscita na alma pensamentos sujos e desregrados. Pois ele quer fazê-la cair no desleixo mandando-lhe pensamentos de desespero, persuadindo-a de que é impossível alcançar a salvação. E quando é a própria alma que engendra estes pensamentos, e não um espírito estrangeiro que nelas os semeia maldosamente ao mesmo tempo em que permanece oculto, ou bem o adversário a leva ao desespero, ou bem suscita as penas do corpo, ou ainda projeta os ultrajes e as aflições que vêm dos homens. Mas, quanto mais o maligno atira sobre nós suas flechas envenenadas[333], mais devemos nos agarrar à esperança que temos em Deus, sabendo exatamente que esta é a sua vontade: colocar à prova as almas presas de amor por ele, para que se revele se estas o amam verdadeiramente. 148. Mil anos deste mundo, comparados com a eternidade do mundo incorruptível, são como um grão de areia no mar. Eu lhe peço que considere o seguinte: suponha que você possa se tornar o único rei sobre a terra, que você seja o único mestre de todos os tesouros do mundo inteiro. Digamos que o começo da vinda dos homens ao ser seja para você o começo do seu reinado, e que o limite deste seja a transformação e a renovação de todas as coisas visíveis e do mundo inteiro. E então? Se lhe for dada escolha, você trocaria por este o Reino verdadeiro e certo que não tem em si absolutamente nada que passe e se dissolva? Não, posso afirmar, se seu juízo for são e se você for prudente em tudo o que lhe diz respeito.
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“Qual é o ganho para o homem, está escrito, se para ganhar o mundo inteiro ele perder sua alma? [334]”, esta alma que aprendemos que não pode ser trocada por nada? Pois somente esta alma – sem falar do Reino dos céus – é por si só mais preciosa do que o mundo inteiro e mais o reinado sobre este mundo. A alma, como dissemos, é mais preciosa por que: a nenhum dos outros seres criados Deus quis conceder a união e a comunhão com sua própria natureza, a do Espírito, nem ao céu, nem ao sol, nem à lua, nem às estrelas, nem ao mar, nem à terra, nem a qualquer outra criatura do mundo visível, mas unicamente ao homem, a quem ele ama mais do que tudo. Assim, se estas grandes coisas do mundo, a riqueza e o reinado sobre toda a terra, na retidão de nosso julgamento não as trocarmos pelo Reino eterno, qual a loucura da maior parte dos homens que o estimam comparável às coisas vis e comuns, como uma mera concupiscência, uma bajulação, um proveito medíocre e coisas do gênero? É que na verdade aquilo que o homem ama neste século, aquilo a que está ligado, é isto que ele troca pelo Reino dos céus. E o pior é que ele considera que isto é Deus. Como já foi dito: “Cada qual é escravo daquilo que triunfou sobre ele[335]”. É preciso pois lançar-se inteiramente para Deus, agarrar-se a ele e crucificar a si mesmo de alma e corpo, caminhando sobre a via de seus santos mandamentos. 149. Pois bem, parece-lhe justo que esta glória corruptível, este reino efêmero e tantas outras coisas perecíveis do gênero, pertençam aos que buscam obtê-las com enormes esforços e suores, enquanto que reinar indefinidamente com Cristo e descobrir seus bens inexprimíveis seja um prêmio pequeno e fácil, que qualquer um que o queira possa alcançar sem esforço e sem fadiga? 150. Qual é a economia da vinda de Cristo? O retorno de nossa natureza a si mesma e sua restauração. Pois Cristo devolveu à natureza humana a dignidade de Adão, o primeiro homem. E além disto, ó graça verdadeiramente divina e grande, ele deu também a herança celeste do Espírito bom, fazendo-a sair da prisão das trevas. Ele mostrou o caminho e a porta da vida: a quem passou por esta porta, a quem bateu nesta porta, se tornou possível entrar no Reino. Foi dito, com efeito: “Peçam e lhes será dado; batam, e serão atendidos[336]”. Por esta porta pode entrar qualquer um que deseje encontrar a liberdade de sua alma e que queira que esta recupere seus próprios pensamentos, se enriqueça no habitar com Cristo e o tenha por esposo na comunhão do Espírito bom. Você vê aqui o amor inefável do Mestre pelo homem que foi por ele criado à sua imagem[337]!
[1] Salmo 126 (127): 1. [2] Cf. Romanos 12: 2; I Tessalonicenses 4: 3. [3] Cf. Romanos 1: 26. [4] Mateus 5: 8. [5] Mateus 5: 48. [6] Salmo 118 (119): 80. [7] Salmo 118 (119): 6. [8] Salmo 23 (24): 4. [9] Salmo 18 (19): 13. [10] Cf. Provérbios 4: 23. [11] Deuteronômio 22: 10.
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[12] Deuteronômio 22: 11. [13] Deuteronômio 22: 9. [14] Salmo 118 (119): 128. [15] Salmo 52 (53): 6. [16] Salmo 5: 7. [17] Salmo 27 (28): 3. “...mas guardam o mal em seu coração”. [18] Salmo 57 (58): 3. [19] Lucas 6: 26. [20] Mateus 5: 16. [21] João 5: 44. [22] I Coríntios 10: 31. [23] I João 3: 15. [24] I Coríntios 13: 7-8. [25] Cf. Efésios 6: 12. [26] Cf. I Coríntios 13: 1 e ss. [27] I Coríntios 10: 24. [28] Mateus 16: 24. [29] Efésios 6: 6. [30] Cf. Mateus 22: 38. [31] Cf. Mateus 22: 39. [32] Cf. Romanos 8: 16. [33] II Coríntios 10: 18. [34] João 5: 44. [35] Cf. Mateus 22: 38. [36] Cf. I Coríntios 6: 17. [37] Cf. I Coríntios 10: 31. [38] Cf. Gênesis 14: 19. [39] Cf. Mateus 11: 30. [40] Gênesis 4: 4. [41] Salmo 4: 8. [42] Lucas 17: 21. [43] II Coríntios 1: 4. [44] Salmo 83 (84): 3. [45] Cf. I Tessalonicenses 5: 17. [46] Cf. Romanos 12: 12. [47] Lucas 18: 7. [48] Mateus 26: 41. [49] Lucas 18: 1. [50] Cf. Gálatas 5: 22. [51] Cf. Mateus 25: 1-3. [52] Cf. Gálatas 5: 22. [53] Cf. Romanos 1: 26. [54] Cf. Gálatas 5: 22. [55] Cf. I Coríntios 6: 17. [56] Mateus 10: 42. [57] Mateus 25: 40. [58] Cf. II Coríntios 8: 14. [59] Êxodo 16: 18. [60] Cf. Mateus 6: 10. [61] II Tessalonicenses 3: 10.
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TII, VI – MACÁRIO, O EGÍPCIO – Sobre a liberdade do Intelecto.
[62] Eclesiastes 33: 28. [63] Mateus 5: 48. [64] João 17: 24. [65] Mateus 24: 35. [66] Colossenses 1: 24. [67] Efésios 4: 13. [68] Cf. Mateus 5: 6. [69] Cf. Tito 2: 13. [70] Cf. Lucas 16: 15 [71] Cf. II Coríntios 5: 17 e Salmo 50 (51): 12. [72] Cf. Hebreus 3: 17. [73] Cf. I Timóteo 1: 5. [74] Hebreus 3: 12. [75] Hebreus 3: 16-19. [76] Hebreus 4: 1-3. [77] Hebreus 4: 11. [78] Hebreus 10: 22. [79] Hebreus 9: 14. [80] Lucas 10: 42. [81] Cf. João 13: 5. [82] Atos 6: 2-4. [83] Cf. João 8: 12. [84] Designa a ordem e a lei do projeto divino. [85] Cf. Romanos 7: 13: “...a fim de que o pecado, por meio do mandamento, aparecesse em toda sua gravidade”. [86] Cf. Gênesis 3: 13. [87] Cf. João 12: 31. [88] Cf. Gênesis 1: 26. [89] Cf. Gênesis 3: 1-6. [90] Cf. Êxodo 7: 11-12; II Timóteo 3: 8. [91] Cf. Atos 8: 9-10. [92] Cf. Êxodo 34: 30-31. [93] Romanos 5: 14. [94] Cf. Romanos 1: 26. [95] Cf. I Coríntios 15: 26. 54. [96] Cf. Gênesis 3: 12-13. [97] Cf. Gênesis 3: 10. [98] Cf. Gênesis 3: 24. [99] Romanos 8: 28. [100] I Coríntios 10: 13. [101] Cf. Mateus 7: 7-8. [102] Cf. Mateus 21: 22. [103] Cf. Mateus 5: 28. [104] Cf. I Coríntios 6: 17. [105] Cf. Mateus 10: 42. [106] I Coríntios 15: 41. [107] Cf. Efésios 4: 13. [108] Cf. I Coríntios 13: 11. [109] I Coríntios 13: 8. [110] I Coríntios 13: 11.
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TII, VI – MACÁRIO, O EGÍPCIO – Sobre a liberdade do Intelecto.
[111] II Coríntios 12: 7. [112] Cf. I Timóteo 5: 15. [113] Cf. II Coríntios 11: 14. [114] Cf. Gálatas 5: 22. [115] Salmo 56 (57): 7. [116] Cf. Mateus 12: 29. [117] Cf. I Coríntios 15: 50. [118] Cf. I Coríntios 1: 21-24. [119] Isaías 53: 3. [120] Cf. Isaías 50: 6. [121] Cf. Mateus 8: 20. [122] Levítico 26: 12. [123] Cf. Mateus 12: 29. [124] Cf. Salmo 90 (91): 13. [125] Cf. Lucas 10: 19. [126] Lucas 17: 21. [127] Cf. Isaías 35: 10. [128] Cf. Isaías 43: 20. [129] Cf. Isaías 41: 18. [130] Isaías 44: 3. [131] João 4: 14. [132] Cf. Efésios 4: 13. [133] Cf. Hebreus 12: 22. [134] Cf. Salmo 37 (38): 14. [135] Cf. Hebreus 5: 7. [136] Salmo 18 (19): 13. [137] Cf. Salmo 8: 7. [138] Cf. II Timóteo 2: 12. [139] Cf. Gênesis 3: 19. [140] Lamentações 5: 2. [141] Cf. II Coríntios 10: 15. [142] Cf. Tiago 1: 2. [143] Cf. Levítico 26: 12. [144] Gênesis 4: 12. [145] João 8: 44. [146] Cf. Cântico dos Cânticos 2: 5. [147] Mateus 16: 24. [148] Salmo 52 (53): 4. [149] Cf. Deuteronômio 6: 13. [150] Atos 14: 22. [151] Lucas 21: 19. [152] João 16: 33. [153] Mateus 6: 29. [154] Xanthos, louro, designa o mês de Abril. [155] Êxodo 12: 2. [156] Cf. Êxodo 34: 30-31. [157] Cf. II Coríntios 3: 18. [158] Cf. Êxodo 34: 28. [159] Cf. Mateus 25: 31-33. [160] João 10: 14.
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TII, VI – MACÁRIO, O EGÍPCIO – Sobre a liberdade do Intelecto.
[161] Cf. I Tessalonicenses 4: 17. [162] Cf. Salmo 2: 11. [163] Cf. Salmo 44 (45): 8. [164] Cf. Mateus 25: 10. [165] Cf. Mateus 25: 2. [166] Cf. Efésios 2: 3. [167] Cf. Gênesis 3: 6. [168] Cf. I João 4: 8.16. [169] Cf. I Coríntios 6: 17. [170] Deuteronômio 4: 24. [171] Cf. Mateus 11: 28. [172] Cf. Gálatas 5: 22. [173] I Coríntios 2: 9. [174] João 6: 35. [175] João 4: 14. [176] Cf. Gênesis 18: 1-2; 26:2 4; 28: 13; 9: 12-13; Daniel 7: 13; Êxodo 3: 4; 33: 22-23; II Samuel 24: 1617; I Reis 19: 12-13. [177] Lucas 15: 7.10. [178] Cf. Gênesis 19: 28. [179] Cf. Gênesis 6: 7. [180] Cf. Êxodo 14: 27-28. [181] Cf. Marcos 14: 26. [182] Cf. Mateus 21: 43. [183] Lucas 18: 8. [184] Mateus 7: 7. [185] Lucas 11: 8. [186] Cf. Mateus 9: 13. [187] Cf. João 4: 10. [188] Cf. Salmo 103 (104): 15 e 2. [189] Cf. Mateus 7: 8. [190] Cf. Êxodo 32: 23-25. [191] Cf. Salmo 44 (45): 8. [192] Cf. II Coríntios 1: 22. [193] Cf. II Timóteo 2: 12. [194] Cf. II Coríntios 3: 18. [195] II Coríntios 6: 16. [196] João 1: 5. [197] I Tessalonicenses 5: 19. [198] Mateus 5: 22. [199] Mateus 5: 28. [200] Mateus 5: 39. [201] Cf. I Coríntios 3: 12. [202] Cf. Efésios 4: 4-16. [203] Cf. Hebreus 5: 14; 6: 1. [204] Cf. I Coríntios 1: 21. [205] I Coríntios 1: 23-24. [206] I Coríntios 4: 8. [207] Cf. Atos 20: 24. [208] Gênesis 3: 5. [209] Cf. Filipenses 2: 7.
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TII, VI – MACÁRIO, O EGÍPCIO – Sobre a liberdade do Intelecto.
[210] Cg. II Coríntios 8: 9. [211] Cf. Isaías 53: 12. [212] Cf. Gênesis 18: 27. [213] Cf. II Coríntios 4: 7. [214] I Coríntios 1: 30. [215] Cf. Hebreus 12: 1. [216] Cf. Mateus 12: 35. [217] João 14: 21. [218] João 14: 23. [219] Cf. Filipenses 1: 8. [220] Cf. Mateus 5: 8. [221] Efésios 3: 19. [222] Efésios 4: 13. [223] Isaías 62: 5. [224] João 14: 26. [225] João 16: 12-13. [226] Romanos 8: 26. [227] [228] [229] CF. Efésios 2: 14. [230] Cf. Isaías 62: 5. [231] Cf. Romanos 7: 2. [232] Cf. Mateus 22: 11. [233] Salmo 22 (23): 5. [234] Cf. Mateus 5: 3. [235] Mateus 9: 12. [236] Filipenses 3: 20. [237] I Coríntios 2: 9-10. [238] Cf. I Coríntios 1: 26. [239] Cf. Daniel 3. [240] Daniel 3: 28. [241] I Coríntios 4: 9. [242] Cf. II Reis 18: 38. [243] Cf. Êxodo 7-12. [244] Cf. Gênesis 19. [245] Cf. Gênesis 6-7. [246] Cf. Efésios 6: 12. [247] Cf. Êxodo 34: 29-30. [248] I Coríntios 2: 6-7. [249] I Coríntios 2: 13-15. [250] I Coríntios 6: 17. [251] Cf. Mateus 5: 6. [252] Cf. II Coríntios 1: 9 [253] Eclesiastes 24: 21. [254] II Coríntios 13: 13. [255] Cf. Efésios 4: 30. [256] Cf. I Coríntios 6: 17. [257] Cf. II Coríntios 3: 18. [258] Cf. II Coríntios 4: 7. [259] Cf. Efésios 1: 20.
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TII, VI – MACÁRIO, O EGÍPCIO – Sobre a liberdade do Intelecto.
[260] Cf. Gênesis 3: 5. [261] Cf. Salmo 50 (51): 19. [262] Cf. Ezequiel 33: 11. [263] Cf. II Coríntios 7: 1. [264] I Coríntios 3: 17. [265] II Coríntios 11: 2. [266] Provérbios 4: 23. [267] Sabedoria 1: 3. [268] Cf. II Coríntios 6: 16. [269] Cf. II Coríntios 7: 1. [270] Cf. I Coríntios 15: 50. [271] Cf. I Coríntios 9: 19. [272] Cf. II Coríntios 11: 14. [273] II Coríntios 10: 5. [274] Salmo 110 (111): 3. [275] Cf. I Coríntios 7: 4. [276] Cf. I Coríntios 6: 17. [277] Cf. Romanos 8: 38. [278] Cf. Êxodo 13: 21. [279] Cf. Êxodo 14: 21. [280] Cf. Filipenses 2: 12. [281] Cf. Efésios 4: 30. [282] Cf. Lucas 15: 7. [283] II Coríntios 13: 3. [284] Gálatas 2: 20. [285] Gálatas 3: 27. [286] João 14: 23. [287] Romanos 8: 3. [288] Cf. Atos 2: 3. [289] I Coríntios 6: 17. [290] João 17: 22. [291] Romanos 7: 15. [292] Romanos 8: 35. [293] Eclesiastes 2: 1-2. [294] Cf. II Coríntios 4: 8. [295] I Coríntios 10: 13. [296] Hebreus 12: 8. [297] Romanos 8: 18. [298] Cf. Hebreus 2: 10. [299] Cf. Mateus 16: 24. [300] Cf. Filipenses 1: 23. [301] Mateus 11: 12. [302] Lucas 13: 24. [303] Cf. Gálatas 5: 22. [304] Efésios 4: 31. [305] Cf. I Coríntios 4: 6. [306] Cf. João 15: 5. [307] Romanos 8: 28. [308] Salmo 118 (119): 61. [309] II Coríntios 3: 8-11.
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TII, VI – MACÁRIO, O EGÍPCIO – Sobre a liberdade do Intelecto.
[310] II Coríntios 3: 12. [311] II Coríntios 3: 18. [312] II Coríntios 3: 16-17. [313] II Coríntios 4: 6. [314] Salmo 12 (13): 4. [315] Salmo 118 (119): 18. [316] Salmo 42 (43): 3. [317] Salmo 4: 7. [318] Cf. Atos 9: 3. [319] Cf. II Coríntios 12: 14. [320] Ou: “uma resplendência do poder do Espírito bom na substância da alma”, conforme o sentido dado ao termo hipóstase e segundo a atribuição deste termo ao Espírito Santo ou à alma humana. [321] Cf. Atos 9: 8. [322] Ou: “iniciada em seu ser profundo”. [323] Cf. Romanos 8: 17. [324] Cf. Tessalonicenses 4: 17. [325] Cf. Filipenses 3: 21. [326] Cf. Gênesis 3: 19. [327] Cf. Gênesis 5: 5. [328] Romanos 8: 6. [329] Cf. Hebreus 5: 14. [330] II Pedro 1: 19. [331] Romanos 12: 6. [332] Cf. Efésios 6: 14-17. [333] Cf. Efésios 6: 16. [334] Mateus 16: 26. [335] II Pedro 2: 19. [336] Mateus 7: 7. [337] Cf. Gênesis 1: 27.
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TOMO II, VOLUME II
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SIMEÃO, O NOVO TEÓLOGO Nosso santo Padre Simeão, pela graça da Teologia que lhe foi dada por Deus, foi chamado de Novo Teólogo. Ele viveu sob o reinado de Constantino Porfirogeneta, ao redor do ano mil. Ele foi discípulo de Simeão dito o Piedoso. Levado por ele aos combates da ascese, ele alcançou tamanha altura de virtude e de impassibilidade, tornando-se assim digno de uma tal graça divina, que é quase impossível transmitir aquilo que nos confiou por intermédio da Escritura e que sua biografia relata amplamente, como nenhuma outra desdobrada sobre inúmeras frentes. Pois ele recebeu, por assim dizer, todo o poder do Consolador. Tornado vaso de seu esplendor, ele foi uma fonte de teologia, um lugar de iluminação divina, uma moradia deliciosa dos mistérios indizíveis onde habitam, numa palavra, a sabedoria espiritual e o conhecimento de Deus. Iluminado por este conhecimento, ele compôs escritos de todos os tipos, fortemente confiáveis, em verso e prosa, dentre os quais escolhemos e inserimos neste livro os textos a seguir e alguns que foram traduzidos em linguagem mais simples no final desta obra, que virão em auxílio de muitos. Pois eles poderão fazer um bem imenso aos leitores.
* Um milênio depois de são João o Teólogo, com a secreta e espantosa convicção do testemunho visual e místico, são Simeão o Novo Teólogo afirma que, no coração crucificado do criado, Deus é um corpo de luz inacessível e perceptível, e que este corpo de Cristo, por pura graça, é também o nosso. Mensagem crucial, que, depois da “implosão” hesiquiasta dos séculos XIII e XIV, secretamente irrigou até os nossos dias o coração do abismo histórico no qual afundou profeticamente a civilização bizantina. Mas em primeiro lugar, mensagem de toda uma vida dedicada ao amor da beleza última. Nascido em 949 na Ásia Menor, Simeão foi enviado com a idade de onze anos a Constantinopla, para fazer aí seus estudos e servir no ambiente da Corte imperial. Durante toda a sua juventude e até a idade de vinte e sete anos ele foi um homem “do mundo”. Mas ele havia conhecido no mosteiro de Stoudios, em Constantinopla, um velho monge, Simeão o Piedoso, que se tornou seu pai espiritual, e ele acabou por viver invisivelmente ligado a este monge e fecundado por seu exemplo. Foi durante este período, e em plena Constantinopla, que ele teve a dupla experiência – fundamental – das beatitudes da teofania luminosa e das angústias da solidão moral em Deus. Tornando-se monge, primeiro no mosteiro de Stoudios onde encontrara Simeão o Piedoso, depois no mosteiro de São Mamas, do qual foi higoumeno de 980 a 1009 e enfim no mosteiro de Santa Marina em Palukiton, às margens do Bósforo, onde permaneceu até sua morte em 1022, ele viveu sempre o amor louco por Deus e pregou suas consequências evangélicas.
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Pois este penitente, este asceta, este místico, este poeta, era também um apóstolo, um construtor, um reformador dedicado a transmitir aos demais e a permitir aos outros, tanto dentro dos limites da vida monástica como além destes limites, alcançar as graças que ele mesmo recebera, mas que não queria nem poderia impor. Seu apostolado, ou sua catequese, não fazia senão preparar o caminho, dar sentido à ascese, abrir para a obediência, deplorar o pecado, pedir a libertação do mal. Ao final, só importava o selo do Espírito Santo: o amor à beleza, a imagem de Deus encarnada no pai espiritual. A lição é precisa e imensa: estamos no coração da mensagem filocálica A Filocalia grega nos fornece sob o nome de Simeão o Novo Teólogo uma coletânea composta, bastante limitada mas significativa: 153 capítulos (número “triangular” que lembra os 153 peixes da pesca milagrosa após a ressurreição de Cristo). Recentemente foram realizadas pesquisas sobre estes “capítulos”. Em especial, o hieromonge russo Hilarion (Alfeev), ao preparar uma tese de doutorado em Oxford sobre a obra espiritual de Simeão o Piedoso, tende a demonstrar que os capítulos 121 a 152 (e não apenas os capítulos 127 a 152 como pensava Hausherr) pertencem a este e entram no escopo de seu Discurso Ascético; dele seriam também os capítulos 119 e 120, que não fazem parte do Discurso. Quanto ao capítulo 153, ele foi tirado da Vida de são Simeão o Novo Teólogo, composta por seu discípulo Nicetas Stethatos. Os últimos capítulos são como um manual de moral prática para uso por monges cenobitas, e testemunham desta sabedoria que permite viver com toda humildade e com toda paz na fronteira entre a solidão e a vida comunitária. Assim, a mensagem de Simeão o Novo Teólogo – esta abertura profética, escancarada sobre o advento do Outro – pode se enraizar e se provar na estrita e justa necessidade das relações humanas. A coletânea termina no capítulo 153 com a lembrança e o apelo desta abertura. Mas desde antes os 118 capítulos “práticos e teológicos” de próprio punho de Simeão, já deram o tom: somente um amor louco pode ao mesmo tempo separar e unir na vida eterna o século presente e o século futuro. Quem ama o outro a ponto de renunciar a si mesmo, à sua própria vontade, à sua própria alma, morre para o mundo inteiro: diante de si, ao seu redor e em si próprio ele não tem senão o Deus vivo. Tal amor aqui se assemelha à luz que criou o mundo, e ele conduz para além do mundo. Pois daí em diante, o olho do intelecto, diz Simeão, não vê em tudo senão a luz. E o próprio homem, conforme ele afirma no fio tenso dos anacoretas, se torna como luz. Mas paradoxalmente – e este paradoxo é sua profecia e sua modernidade – Simeão retoma o testemunho mais estreito dos anacoretas para fazê-lo seu no coração da vida comunitária, onde as falsificações e as alterações do amor perfuram os olhos, se podemos nos exprimir assim. Daí vem, nestes capítulos, a denúncia constante de toda vaidade e de toda mentira, e esta exigência total da mais estrita ascese. Mas o Reino de Deus é como um casamento prometido. A ascese não tem aqui outro sentido que o de ser uma garantia de amor: ela significa a fidelidade absoluta do homem. Ela é inteiramente absorvida pelo amor louco por Deus, que é em si sua própria via e sua própria porta. Só uma coisa é necessária, e esta é a mensagem de Simeão: manter a chama.
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TII, VII – SIMEÃO, O NOVO TEÓLOGO – Capítulos práticos e teológicos.
CAPÍTULOS PRÁTICOS E TEOLÓGICOS 1. A fé consiste em morrer por Cristo e por seus mandamentos; é acreditar que esta morte é uma fonte de vida; é considerar a pobreza como uma riqueza, a baixeza e a humilhação como uma verdadeira glória e uma honraria real; é acreditar que se tem tudo quando não se possui nada[1]; e acima de tudo, é possuir a insondável riqueza do conhecimento de Cristo[2] e ver todas as coisas visíveis como fumaça ou lama. 2. A fé em Cristo consiste não apenas em desprezar os prazeres desta vida, mas, na medida em que o queira Deus e até que ele nos visite, também aguentar e suportar pacientemente toda provação que nos aconteça e nos mergulha na tristeza, na aflição e na infelicidade. Pois foi dito: “Eu tive paciência, esperei pelo Senhor e ele se voltou para mim[3]”. 3. Aqueles que de alguma forma preferem seus pais aos mandamentos de Deus não têm fé em Cristo[4]. Em todo caso, ele serão julgados por sua própria consciência, caso tenham uma consciência viva de sua infidelidade. Pois esta é a marca dos fiéis: jamais transgredir em nada os mandamentos de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo[5]. 4. A fé em Cristo, verdadeiro Deus, engendra o desejo pelo bem e o temor do castigo. O desejo pelo melhor e o temor do castigo fazem com que sejam observados os mandamentos, e esta guarda ensina aos homens sua própria fraqueza. O conhecimento de nossa fraqueza engendra a lembrança da morte. E quem chega a viver com esta lembrança se esforçará por tentar saber o que lhe acontecerá quando deixar e partir desta vida. Ora, quem se dedica sem cessar a conhecer as coisas do século futuro deve antes de tudo se liberar das coisas do século presente. Pois quem permanece passionalmente ligado a estas não conseguirá obter o perfeito conhecimento daquelas. Mas se a economia de Deus lhe permite experimentar as primeiras e se ele não abandona rapidamente aquilo pelo quê e a quê ele se encontra ligado passionalmente, se ele não se aplica por inteiro a este conhecimento, aceitando não pensar em nada senão nele, mesmo a ciência que ele imagina ter lhe será tirada[6]. 5. A renúncia ao mundo e a anacorese total, que objetivam nos tornar estrangeiros a todas as coisas desta vida, aos costumes, às opiniões e às pessoas, e que nos levam a negar o corpo e a vontade, se tornam em pouco tempo, para quem fez esta renúncia com ardor, a fonte de um grande benefício. 6. Você que foge do mundo, acima de tudo guarde-se de dar à sua alma a consolação de fazer nele sua morada, ainda que todos os seus pais, parentes e amigos tentem constrangê-lo ao contrário. Isto é o que o demônio lhes sugere para extinguir o fervor do seu coração. Pois mesmo que eles não entravem completamente a resolução, em todo caso eles a tornarão mais débil e fraca. 7. Quando, diante de todos os encantos desta vida você se mantém firma e não se deixa prender, então os demônios, sugerindo aos seus próximos uma suposta compaixão, os fazem chorar e se lamentar diante dos seus olhos, por sua causa. Você saberá o quanto isto é verdade quando, perseverando sem se dobrar a estes ataques, verá de repente os outros se inflamarem com furor e ódio contra você, afastando-se de você como se fosse um inimigo e se recusando a voltar a vê-lo. 8. Quando você vir seus pais, irmãos e amigos aflitos por sua causa, ria-se do demônio que, com suas mentiras, suscita estas coisas contra você. Afaste-se com temor e pressa e ore com fervor a Deus, a fim de alcançar o mais breve possível o porto de um bom pai espiritual, que conceda o repouso à sua alma fatigada e exausta[7]. Pois o oceano desta vida está repleto de causas de perigo e de extrema perdição.
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TII, VII – SIMEÃO, O NOVO TEÓLOGO – Capítulos práticos e teológicos.
9. Quem quer odiar o mundo deve amar a Deus do fundo da alma e se lembrar sempre dele. Nada como este amor e esta lembrança para nos fazer abandonar todas as coisas com alegria e nos desviarmos delas como se fossem lixo[8]. 10. Não vá, por boas ou más intenções [ou: por boas razões que seriam na verdade maus pretextos] se ligar ao mundo, por pouco que seja. Quando for chamado, obedeça prontamente. Nada agrada mais a Deus do que esta prontidão. Pois mais vale uma obediência rápida feita com pobreza, do que uma lentidão feita na abundância de bens. 11. Se o mundo passa e passa tudo o que existe no mundo[9], e se Deus [único eterno] é incorruptível e imortal, alegrem-se, vocês que por ele deixaram as coisas corruptíveis. Não apenas as riquezas e os bens são corruptíveis, mas ainda todo prazer e fruição ligados ao pecado são também corrupção. Somente os mandamentos de Deus são luz e vida, e são assim chamados por todos. 12. Se você recebeu a chama, irmão, se por causa disto correu para um mosteiro ou para junto de um pai espiritual, ainda que este ou os irmãos que lá estarão se exercitando com você lhe aconselharem a tomar banho, a se alimentar bem ou tomar outros cuidados corporais para seu alívio, não aceite, mas prepare-se sempre para o jejum, a vida dura, a temperança mais extrema. Entretanto, obedeça se seu pai no Senhor lhe ordenar tomar algo para seu conforto, obedeça-o mesmo não fazendo nisto sua própria vontade. Na falta disto, suporte com alegria aquilo que você mesmo se determinou fazer pelo bem de sua alma. Observando esta regra, você será sempre como um homem temperante, que jejua e que renunciou em tudo à própria vontade. Mais ainda: você manterá inextinguível a chama que existe em seu coração e que o obriga a desprezar todas as coisas. 13. Quando os demônios ativaram todos os recursos que estavam em seu poder e não conseguiram reverter o objetivo assinalado por Deus para nós, nem nos impedir de alcançá-lo, eles penetram naqueles que mascaram a piedade e por meio deles se esforçam por criar obstáculos aos ascetas. Primeiro, como se fossem movidos pelo amor ou pela compaixão, eles os exortam a dar repouso a seus corpos para que estes não se enfraqueçam e para que, segundo eles, o asceta não caia na acídia. Depois convidam para conversas inúteis que tomam e desperdiçam todo o dia. Se alguém vendo os monges ferventes, tenta imitá-los, eles se afastam e riem de sua perdição. Se um não se submeter aos seus discursos, mas permanecer estranho a todos, recolhido e reservado, eles farão tudo, usarão de todos os recursos até conseguirem expulsá-lo do mosteiro. Pois a vanglória desprezada não suporta ver diante de si a humildade honrada. 14. O vaidoso engasga ao ver o humilde verter lágrimas e delas receber um duplo benefício: pelas lágrimas, o humilde atrai sobre si a piedade de Deus e, mesmo sem querer, leva os homens a louvá-lo. 15. Uma vez que você se entregou inteiramente ao seu pai espiritual, saiba que você se tornou um estranho a tudo o que você possuía exteriormente, vale dizer, aos afazeres e às riquezas dos homens. Sem seu pai espiritual não tente fazer nada, não se ocupe de nada entre os homens. Não peça a ele que lhe deixe seja lá o que for, pequeno ou grande, se ele espontaneamente não lhe ordenar tomá-la, ou se ele próprio não lha entregar de suas mãos. 16. Sem seu pai espiritual, não faça esmolas dos bens que você trouxe consigo. Também não aceite que sem ele alguém receba destes bens por um intermediário. É melhor ser pobre e estrangeiro e ter esta reputação do que distribuir riquezas e dar aos pobres, quando se pretende entrar para um mosteiro. É próprio de uma fé pura remeter tudo à vontade do pai espiritual, como se fossem as próprias mãos de Deus.
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17. Não peça para beber água, ainda que a sede queime, enquanto seu pai espiritual não o convidar. Reprima-se e violente-se em todas as coisas, dissuadindo seu desejo dizendo-lhe: “Se Deus quiser!”. Se você for digno de beber, Deus o revelará a seu pai de um modo ou de outro, e este lhe dirá: “Beba!”. Então você beberá com a consciência pura, mesmo que a hora de beber chegue extemporaneamente. 18. Alguém que adquiriu a experiência e o benefício espiritual e possuía uma fé a toda prova disse, tomando a Deus por testemunho da verdade: “Eu pus em mim o pensamento de jamais pedir a meu pai para comer ou beber, ou de tomar qualquer coisa na sua ausência, enquanto Deus não o inspirasse a me ordenar estas coisas”. E ele acrescentava: “Agindo assim, jamais faltei ao meu objetivo”. 19. Quem adquiriu uma clara confiança em seu pai em Deus, quando este quer alguma coisa é como se o próprio Cristo a quisesse. Quando está com ele ou o segue, crê firmemente estar com Cristo e seguir a Cristo. Este homem jamais desejará conversar com outra pessoa, e não trocará nada por sua lembrança e seu amor. Pois o que pode existir de maior ou de mais vantajoso, nesta vida como na vida futura, do que estar com Cristo? O que pode haver de mais belo e mais doce do que a sua visão? E se somos dignos de estarmos e conversarmos com ele, neste entretenimento estaremos a caminho da vida eterna. 20. Aquele que por sua virtude ama aos que o ultrajam, ou o detestam, que o prejudicam ou o despojam, e que ora por eles[10], logo faz grande progressos. Pois esta atitude, assumida com um coração consciente mergulha o pensamento no abismo da humildade e na fonte das lágrimas, onde ele banha as três partes da alma. Ele eleva o intelecto até o céu da impassibilidade e o torna capaz de contemplar. Pela doçura que este homem experimenta lá em cima, ele o faz considerar como lixo todas as coisas da vida presente[11]. E já não será com o mesmo prazer, nem com a mesma frequência, que ele se aproximará de comidas e bebidas. 21. Não devemos simplesmente nos abster de más ações. O asceta deve também de dedicar a se liberar dos pensamentos e das reflexões contrárias, e sempre se ligar a considerações espirituais que ajudam as almas, a fim de permanecer sem nenhuma preocupação a respeito das coisas desta vida. 22. Do mesmo modo como alguém que desnudou todo o corpo mas mantém os olhos cobertos por um véu que não pode erguer ou retirar não poderá ver a luz apenas por estar nu no resto do corpo, também aquele que desprezou todas as coisas e todas as riquezas, e que se despojou até das paixões, se não livrar os olhos da alma das lembranças desta vida e dos maus pensamentos, jamais conseguirá ver a luz inteligível, Jesus Cristo, nosso Senhor e Deus. 23. Os pensamentos terrestres e os cuidados com esta vida são para a reflexão e o intelecto como um véu colocado sobre os olhos, no caso, os olhos da alma. Enquanto permanecer aí, não seremos capazes de ver. Somente quando a lembrança da morte o retirar é que veremos claramente a verdadeira luz, que ilumina todos os homens e que provém do mundo[12] do alto. 24. O cego de nascença não poderá conceber nem acreditar naquilo que aqui está escrito. Mas quem algum dia viu testemunhará que o que foi dito é verdadeiro. 25. Quem enxerga com os olhos sensíveis sabe quando é noite e quando é dia. Mas o cego ignora uma e outra coisa. Da mesma forma, quem recebeu a visão espiritual, que vê através dos olhos do intelecto, que contempla a verdadeira luz, se por negligência retornar à antiga cegueira e ficar privado desta luz, terá consciência desta privação e saberá de onde ela lhe vem. Mas quem é cego de nascença não sabe nada dessas coisas, nem efetivamente, nem por experiência, salvo se tiver ouvido falar sobre aquilo que nunca viu e, com isto, aprender. Ele contará aos outros o que escutou, mas nem ele, nem os que o escutarem, saberão de que coisas estão falando.
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26. É impossível encher a carne de alimentos até a saciedade e ao mesmo tempo desfrutar da divina doçura do intelecto. Pois quanto mais cuidarmos do ventre, mais privaremos o corpo de tal doçura. Mas na medida em que tratarmos duramente o corpo[13] nos encheremos do alimento e da consolação espirituais. 27. Deixemos tudo o que existe sobre a terra. Não apenas a riqueza, o ouro e outros bens desta vida, mas expulsemos de nossas almas o próprio desejo por estas coisas. Detestemos não apenas os prazeres do corpo, mas também seus movimentos irracionais. Esforcemo-nos por mortificar o corpo com penas, pois é por meio dele que agem e acontecem as coisas relativas à concupiscência. Enquanto o corpo estiver vivo, nossa alma estará morta: dificilmente ela seguirá os mandamentos de Deus, se é que os seguirá seja do modo que for. 28. Assim como a chama do fogo se eleva sempre para cima, e tanto mais na medida em que você colocar mais lenha para queimar, também o coração vaidoso será incapaz de se tornar humilde. Pois quanto mais você lhe disser coisas para ajudá-lo, mais ele se elevará. Se repreendido ou chamado à atenção, ele se oporá com violência; mas louvado ou encorajado, ele se inchará desmesuradamente. 29. O homem habituado à contradição é para si mesmo uma espada de dois gumes. Sem o saber, ele destrói sua alma e a torna estranha à vida eterna. 30. O homem que contradiz é semelhante a alguém que se atira voluntariamente aos inimigos opostos ao rei. Pois a contradição é uma armadilha, que tem como isca a justificação por meio da qual, iludidos, nos atiramos ao anzol do pecado. A pobre alma fica presa pela língua e pela garganta aos espíritos do mal. Ela é erguida até as alturas do orgulho ou mergulhada no caos do abismo do pecado, e se vê condenada junto com aqueles que foram precipitados do céu. 31. Quem foi desprezado ou ultrajado e que experimenta em seu coração um duro sofrimento, saiba por este indício que ainda traz em seu seio a antiga serpente. Se ele permanecer em silêncio ou se responder com humildade, ele enfraquecerá e esgotará a serpente. Mas se replicar com azedume ou se falar com arrogância, dará à serpente força para despejar seu veneno no coração e ferir cruelmente o que existe dentro dele. A partir daí, fortalecendo-se dia após dia, a serpente devoradora o impedirá de se reerguer para o bem e engolirá o vigor de sua pobre alma. Deste momento em diante, o homem viverá para o pecado, e estará totalmente morto para a justiça[14]. 32. Se você quiser renunciar ao mundo e aprender a viver segundo o Evangelho, não se confie a um mestre sem experiência ou passional. Senão, em lugar da vida evangélica, você será instruído na vida diabólica. Pois os ensinamentos dos bonés mestres são bons. E os dos maus, são maus. E quando as sementes são más, maus serão também os frutos. 33. Em orações e lágrimas suplique a Deus para que lhe envie um guia impassível e santo. Mas examine você mesmo as divinas Escrituras[15] e em especial os escritos práticos dos santos Padres, a fim de que, comparando-o com o que lhe ensina e com o que faz seu mestre e seu superior, você possa ver e aprender suas lições como em um espelho, recolher e reter em seus pensamentos o que concorda com as divinas Escrituras, ao mesmo tempo em que distingue e rejeita o que é bastardo e alterado, para nunca se perder[16]. Saiba que hoje em dia existem muitos enganadores e falsos mestres[17]. 34. Qualquer um que, se enxergar, se arvora em conduzir os outros, é um enganador. Ele conduz ao abismo da perdição os que o seguem, conforme as palavras do Senhor: “Se um cego conduz a outro, ambos cairão na vala[18]”.
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35. Aquele que é cego diante do Um estará também inteiramente cego diante de tudo. Mas quem vê o Um está em estado de contemplar o todo. Ele se abstém de contemplar o todo, mas entra na contemplação do todo. Mas ele está fora daquilo que contempla. Assim sendo, quando ele está no Um, ele vê o todo, e quando ele está no todo, ele não vê nada dele. Quem olha o Um vê a si próprio e vê tudo e todos através do Um. Oculto no Um, ele já não vê nada de tudo o que está no mundo. 36. Não passa de sangue e carne, aquele que, no homem dotado de razão e inteligência, não se revestiu, sentindo-a e conhecendo-a, da imagem do celeste, da imagem de nosso Senhor Jesus Cristo, homem e Deus. Será impossível para ele receber pelas palavras a sensação da glória espiritual, tanto quanto não podem conhecer a luz do sol pelas palavras aqueles que são cegos de nascença. 37. Quem ouve, quem vê, quem sente assim compreende o que eu digo. Pois este já traz em si a imagem do celeste[19] e alcançou o estado de homem perfeito na plenitude de Cristo[20]. A partir daí ele pé capaz de conduzir com sucesso o rebanho de Cristo pelo caminho dos mandamentos de Deus[21]. Mas é evidente que quem não compreendeu isto e não chegou a este ponto tampouco terá clareza e sanidade nos sentidos de sua alma[22]. Para este, será sempre melhor ser conduzido do que conduzir, expondo-se ao perigo. 38. Quem vê a seu mestre e guia como o próprio Deus não pode contradizê-lo. Mas se ele pensa e diz que pode fazer ambas as coisas, saiba que está perdido. Pois ele ignora como se comportam diante de Deus os homens de Deus. 39. Quem acredita que sua vida e sua morte estão nas mãos do seu pastor, não pode jamais contradizer. É a ignorância destas coisas que engendra a contradição, a qual provoca a morte inteligível, a morte eterna. 40. Antes de receber a sentença, o culpado tem a possibilidade, para sua defesa, de dizer ao tribunal aquilo que fez. Mas depois da exposição dos fatos e da sentença do juiz ele já não poderá replicar ao carrasco, seja longamente, seja com brevidade. 41. Antes de se apresentar diante deste tribunal e de revelar o fundo de seu coração, talvez ainda seja permitido ao monge contradizer, seja por ignorância, seja por imaginar que é capaz de ocultar aquilo que traz em si. Mas depois da revelação de seus pensamentos e de sua confissão sincera, já não mais lhe será permitido, até a morte, contradizer aquele que, diante de Deus, é seu juiz e seu mestre. Pois desde que ele entrou neste tribunal e pôs a nu os segredos de seu coração[23], o monge é imediatamente persuadido de que é digno de mil mortes, por pouco conhecimento que tenha. Mas ele crê que por sua obediência e sua humildade ele saberá como viver este mistério, e se libertará de toda pena e de todo castigo. 42. Instruído, chamado às falas ou repreendido, aquele que reflete sobre as coisas e as guarda sem apagálas não terá jamais a revolta em seu coração. Pois quem cai nestes males, ou seja, na contradição e no desafio contra seu pai espiritual e mestre, será piedosamente precipitado desta vida para a trampa[24] e a garganta do inferno. Ali ele se tornará a moradia de Satanás e de todos os poderes impuros, como um filho indócil, infiel, um filho da perdição. 43. Eu o exorto, filho da obediência, a refletir continuamente sobre estas coisas, a lutar ardentemente para não cair nos males do inferno que mencionei acima, e a orar com fervor a Deus a cada dia, dizendo-lhe: “Deus e Senhor do universo, que tem poder sobre todo sopro e toda alma, único que pode me curar, escute a prece do infeliz que sou eu. Pela vinda do seu Espírito Santo faça com que morra e desapareça o dragão que se esconde em mim. Torne-me digno, a mim que sou pobre e desprovido de qualquer virtude, de cair em lágrimas aos pés de meu santo pai. E conduza sua santa alma à compaixão, para que ele tenha piedade de mim. Senhor, dê ao meu coração a humildade e os pensamentos que convêm ao pecador que promete se arrepender em sua presença, e não abandone jamais a alma que de uma vez por todas se votou e
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confessou a você, que o escolheu e preferiu ao mundo inteiro. Senhor, você sabe o quanto eu quero ser salvo, ainda que meus maus hábitos sejam obstáculos para mim. Pois a você, Mestre, tudo é possível dentre o que é impossível ao homem[25]”. 44. Aqueles que, com temor e tremor, colocaram o belo fundamento da fé e da esperança na moradia da piedade, que, sobre a pedra da obediência aos pais espirituais, firmaram seus pés, que escutam como se viesse da boca de Deus as ordens que lhes transmitem seus pais, e que, sem hesitar, constroem assim, na humildade de suas almas e sobre o fundamento da obediência, estes conduzem com sucesso a obra do bem. Eles levam a bom termo esta grande e primeira obra: renunciar a si mesmos. Pois cumprir a vontade de outro e não a sua obriga não apenas a renunciar à própria alma, mas sobretudo morrer para o mundo inteiro. 45. Quem contradiz a seu mestre faz a alegria dos demônios. Mas os anjos admiram aquele que se humilha até a morte. Pois este homem faz a obra de Deus[26] tornando-se semelhante ao Filho de Deus, que levou a obediência até a morte, e morte de cruz[27]. 46. Quando são frequentes e intempestivas, as aflições que ferem o coração entenebrecem a reflexão do intelecto. Elas apagam da alma a prece pura, a humildade e a compunção. Elas afadigam o coração e o fazem se tornar duro e insensível como nunca. É assim que os demônios se empenham em desencorajar os espirituais. 47. Quando estas coisas acontecem, monge, e no entanto você descobrir em sua alma um tal ardor e um tal desejo de perfeição que o façam querer cumprir todos os mandamentos de Deus, e não cair nem pecar – ainda que por uma palavra vã[28] –, bem como não estar em dívida com os antigos santos na ordem da ação, do conhecimento e da contemplação, mas se achar entravado por aquele que semeia a erva daninha[29] do desencorajamento e não lhe permite alcançar tal altura de santidade, insuflando em você pensamentos de desespero dizendo-lhe: “É impossível, no meio deste mundo, ser salvo e guardar sem falta todos os mandamentos de Deus”, então, só e sentado a um canto, recolha-se, concentre seu pensamento e dê um bom conselho à sua alma, dizendo-lhe: “Por que está tão triste, alma minha? E por que me perturba assim? Espere em Deus, por que eu o louvarei[30]. A salvação de minha face não está em minhas obras, mas em meu Deus. Que, de fato, será justificado pelas obras da Lei[31]? Nenhum ser vivo será justificado diante de Deus[32]. Pela fé em meu Deus, espero que sua inefável misericórdia me salve gratuitamente. Retire-se de mim, Satanás! Eu adoro ao Senhor meu Deus[33] e o sirvo desde minha juventude, a ele que pode me salvar apenas com sua piedade. Afaste-se de mim. Deus, que me fez à sua imagem e semelhança[34], abolirá seu poder”. 48. Deus não nos pede nada, a nós homens, senão que não pequemos, só isto e nada mais. Isto não é obra da Lei, mas da guarda constante da imagem e da dignidade do alto. Por nossa natureza em pé nesta imagem e nesta dignidade e vestindo a túnica branca do Espírito, permaneceremos em Deus e ele em nós[35], chamados de filhos de Deus por adoção, marcados pelo sinal da luz do conhecimento de Deus[36]. 49. A acídia e a pesandez do corpo que, através da preguiça e da negligência, atingem a alma, afastam-na da regra habitual, entenebrecem e desencorajam a reflexão. A partir daí, os pensamentos de desleixo e de blasfêmia submergem o coração. Quem é tentado pelo demônio da acídia já não consegue sequer se dirigir ao lugar habitual da oração, mas apenas se deixa levar, e permite que lhe cheguem pensamentos tolos contra o Criador do universo. Assim, se você perceber a causa e souber de onde vêm estas coisas, entre sem tardança no lugar de oração e, prosternado diante de Deus que ama os homens, ore com gemidos do coração, com dor e lágrimas, peça para ser aliviado do peso da acídia e dos maus pensamentos; à custa de bater e perseverar, lhe será concedido libertar-se rapidamente.
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50. Quem alcançou a pureza do coração venceu a covardia. Quem ainda está se purificando, ora derruba a covardia, ora é derrubado por ela. Mas quem absolutamente não combate, ou se tornou por completo insensível, até por ser amigo das paixões e dos demônios, além de estar doente de vaidade está enfermo de presunção, pois crê ser grande coisa quando na realidade nada é[37]; ou é escravo da covardia, submisso a ela, tremendo como uma criança com medo diante daquilo que não é razão para medo[38], e nem razão para covardia para os que temem ao Senhor. 51. Quem teme o Senhor não teme as agressões dos demônios, nem seus ataques impotentes e menos ainda as ameaças dos homens sem valor. Como se fosse uma chama ou um fogo ardente, percorrendo noite e dia lugares inacessíveis e sem luz, ele expulsa os demônios que fogem dele para não serem queimados pelo raio flamejante, o raio do fogo divino que se desprende dele. 52. Quem caminha no temor de Deus não teme viver entre homens sem valor, por que traz em si este temor a Deus e veste a armadura invencível da fé, que lhe dá força para poder fazer tudo, mesmo as coisas que parecem impossíveis à maioria. Ele caminha como um gigante entre macacos ou como um leão bravio no meio de cães e raposas: ele se confia ao Senhor. Pela firmeza de sua resolução ele enche de terror os vagabundos e aterroriza seus corações, pois traz como uma barra de ferro[39] a palavra que dá a sabedoria. 53. Não apenas o hesiquiasta, ou aquele que está submetido a um pai, mas também o higoumeno, o que está à frente de numerosos irmãos, e o encarregado de algum ofício, devem permanecer sem preocupações, ou seja, devem ser livres e incontestavelmente desembaraçados de todos os negócios desta vida. Pois se nos preocupamos transgredimos a ordem de Deus, que disse: “Não se preocupem com relação àquilo que irão comer ou beber, ou com que se vestirão. Tudo isto são preocupações dos pagãos[40]”. E também: “Guardem seus corações, e não se tornem pesados com o deboche, a embriaguez e os cuidados com esta vida[41]”. 54. Aquele cujo pensamento se preocupa com os afazeres desta vida não é livre. Pois ele é retido e sujeitado por tal preocupação, quer se inquiete por si, quer por outros. Mas quem é livre, desembaraçado dos negócios desta vida, não se preocupará com estas coisas mundanas, nem por si, nem pelos demais, ainda que seja um bispo, um diácono ou um higoumeno. Entretanto, jamais ele negligenciará ou menosprezará nenhum homem, por simples e pequeno que seja[42]. Fazendo tudo e trabalhando todo o tempo para agradar a Deus, ele permanecerá em todas as coisas e em toda sua vida desembaraçado de preocupações. 55. Não destrua sua casa querendo edificar a do próximo. Avalie o quanto a obra é penosa e difícil, para evitar que, depois de havê-la começado, você não destrua a sua casa e ainda seja incapaz de edificar a do próximo. 56. Se você não adquiriu uma perfeita indiferença em relação aos negócios e aos bens desta vida, não tome afazeres para si a fim de não acabar preso a eles. Ao invés de receber a recompensa por seu serviço, você será condenado como ladrão e sacrílego. Mas se a ordem do seu superior o obrigar a tanto, aja como quem maneja um fogo ardente. Refreando por meio da confissão e do arrependimento o ímpeto de seu pensamento, você se manterá são e salvo graças às orações de seu superior. 57. Quem ainda não se tornou impassível sequer imagina que exista uma impassibilidade. Ele não consegue crer que sobre a terra possa haver semelhante coisa. De fato, como alguém que, para começar, não renunciou a si mesmo[43] nem se ofereceu para derramar seu sangue por esta vida verdadeiramente bem-aventurada, poderá imaginar que alguém outro tenha feito tais coisas a fim de adquirir a impassibilidade? Da mesma forma, quem acha que possui o Espírito Santo quando na realidade não possui nada, jamais acredita quando ouve que as energias do Espírito Santo se revelam naqueles que o possuem
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verdadeiramente. Ele não crê que possa existir alguém desta geração que, como os apóstolos de Cristo e os santos de antigamente, receba a energia e o movimento do Espírito divino, ou sua visão, de maneira consciente e sensível. Com efeito, cada qual, seja na ordem das virtudes, seja na dos vícios, julga as coisas do próximo de acordo com seu próprio estado. 58. Uma coisa é a impassibilidade da alma, outra a impassibilidade do corpo. A primeira santifica também o corpo por seu próprio flamejamento e pela efusão da luz do Espírito. A segunda, sozinha, não pode por si só ajudar em nada aquele que a possui. 59. Do mesmo modo como alguém que foi elevado pelo rei de um estado de extrema pobreza à riqueza, que dele recebeu uma dignidade gloriosa e que foi por ele vestido com ricas vestimentas, que foi convidado a permanecer em pé diante dele, olha para este rei com enorme afeição e o ama acima de tudo como seu benfeitor, considera com atenção as vestes com as quais foi trajado, reconhece sua dignidade e a riqueza que lhe foi concedida, também o monge que verdadeiramente se retirou do mundo e das coisas que estão no mundo e se dirigiu para Cristo, que se sentiu chamado e que, pela prática dos mandamentos se elevou às alturas da contemplação espiritual, vê sem erro possível o próprio Deus e considera com toda atenção a transformação que se deu em si. Pois ele não cessa de ver a graça do Espírito envolvendo-o com sua luz, esta graça que é chamada de vestimenta e púrpura real, e que na verdade é o próprio Cristo, o Senhor, tão verdadeiro quanto dele se revestem aqueles que nele creem[44]. 60. Muitos leem as divinas Escrituras. Outros ouvem a leitura. Mas são pouco numerosos os que conseguem saber corretamente o sentido e a ideia daquilo que leem. Pois aquilo que as divinas Escrituras dizem, às vezes parece impossível ao leitor, às vezes parece pouco digno de fé. Às vezes os que leem as alegorizam de qualquer jeito: atribuem ao tempo futuro o que é dito das coisas do tempo presente, e entendem as coisas futuras como fatos passados ou como eventos cotidianos. Desta forma, não há neles julgamento correto, nem verdadeiro discernimento das coisas divinas e humanas. 61. Nós, os fiéis, devemos ver a todos os fiéis como se fossem um único homem, considerando que cada um é Cristo, e, por amor a ele, devemos nos colocar num estado tal que estejamos prontos a dar por ele nossa própria vida[45]. Pois jamais devemos dizer ou pensar que quem quer que seja é mau, mas devemos ver todos os homens como bons, como já dissemos. Ainda que você veja alguém atormentado por paixões, não deteste seu irmão, mas as paixões que lhe fazem guerra. Ainda que ele esteja tiranizado por concupiscências e alucinações, seja ainda mais compassivo, para que não seja você também provado[46], exposto como está às mudanças da matéria que se modifica com tanta facilidade. 62. Se alguém se encontra alterado pela hipocrisia, ou se é culpado por suas obras, ou se foi ferido rapidamente por uma simples paixão, ou se se tornou deficiente por negligência, não será contado entre os perfeitos. Será rejeitado como um homem inútil que não foi testado, a fim de que nos momentos de tensão ele não leve à ruptura do elo da corrente e não provoque a divisão naquilo que não é para ser dividido nem leve aflição de um lado e de outro. Os que vão à frente sofrerão por se verem separados daqueles que os seguem, e estes sofrerão por serem separados dos que os precedem. 63. Assim como extinguimos a chama de uma fornalha ardente se atirarmos pó e poeira sobre a flama, também os cuidados desta vida e toda ligação às coisas inferiores, por pequenas que sejam, destroem o fervor que acaba de ser aceso no coração. 64. Quem traz em si o temor da morte não sente gosto por nenhum alimento, nenhuma bebida, nenhum enfeite. Não sente prazer em comer pão nem em beber água. Este homem não dará ao corpo senão o estritamente necessário, o que basta para viver. Ele renunciará a toda vontade própria, e será o servidos de todos discernindo aquilo que lhe é ordenado.
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65. Quem se entregou como um servidor a seus pai em Deus por temor ao castigo, mesmo que isto lhe tenha sido ordenado, não escolherá nada que alivie suas penas ou desfaça o nó do temor. Ele não escutará aos que, por amizade, por diversão ou imperativamente o empurram a isto. Ele preferirá tudo o que aumenta o temor, quererá o que estreita o nó, amará aquilo que fortifica a quem o atormenta. Ele permanecerá diante de tudo isto como alguém que não espera ser libertado jamais. Pois a esperança da libertação torna a pena mais leve, mas não traz nenhum benefício para quem se arrepende com fervor. 66. O temor do castigo e os esforço que ele engendra são úteis a todo homem que começa a viver segundo Deus. Quem imagina poder começar sem este esforço e sem esta ligação não apenas coloca sobre a areia o fundamento[47] de suas ações, como ainda pretende construir uma morada nos ares, sem fundação alguma, o que é impossível. De fato, é este esforço que produz logo toda alegria. É esta ligação que destrói os entraves de todos os pecados e de todas as paixões. Agora, aquele que atormenta dá não mais a morte, mas a vida eterna. 67. Aquele que não quiser se evadir nem fugir do esforço suscitado pelo temor do castigo eterno, mas que o siga de todo seu coração e ainda aperte ainda mais os elos deste temor, avançará cada vez mais depressa e isto o levará a comparecer diante da face do Rei dos reis. Uma vez que ele perceba, ainda que obscuramente, a glória do Rei, então cairão os liames, o temor que o atormenta fugirá para longe, toda pena que havia em seu coração[48] se transformará em alegria e começará a jorrar a fonte que derramará de maneira sensível lágrimas como um rio transbordante, enquanto em seu intelecto surgirá a serenidade, a doçura, uma suavidade inefável e também a coragem e a liberdade para correr sem entraves para a mais completa obediência aos mandamentos de Deus[49]. Tal coisa ainda é impossível aos noviços: ela é própria dos que se elevaram em seu progresso até o meio do caminho. Quanto aos que chegaram à perfeição, esta fonte se torna luz, quando seu coração é subitamente mudado e transformado. 68. Quem possui dentro de si a luz do Santíssimo Espírito, é como se não conseguisse suportar vê-la; ele cai com o rosto por terra, chama e chora, no paroxismo do temor, a tal ponto transtornado por ver e sentir uma coisa que ultrapassa a natureza, a razão e o entendimento. Ele se torna como alguém cujas entranhas foram incendiadas por um fogo abrasador. Incapaz de suportar a queimação da chama[50] ele fica fora de si e não consegue se dominar e é inundado por lágrimas transbordantes que o refrescam. Ele atiça cada vez mais o fogo de seu desejo e cada vez mais lágrimas correm. Banhado nesta torrente ele próprio brilha com uma luz mais vívida. Depois de inteiramente inflamado ele se torna como que uma luz e então se cumpre o que foi dito: “Deus unido aos deuses e dos deuses conhecido”, ao menos na medida em que ele Deus já se encontra unido àqueles que foram abrasados e se revelou aos que o conheceram. 69. Antes da tristeza e das lágrimas, que ninguém nos engane com palavras vãs[51], e não nos percamos por nós mesmos. Não existe em nós arrependimento, nem autorreprovação verdadeira, nem temor a Deus em nossos corações, nem acusamos a nós mesmos, nem nossa alma tomou consciência do Julgamento futuro e dos tormentos eternos. Pois, se tivéssemos acusado a nós próprios, se houvéssemos adquirido estas virtudes e se vivêssemos nelas, teríamos logo vertido lágrimas em abundância. Sem elas é impossível que nosso coração endurecido amoleça, e que nossa alma possa adquirir a humildade espiritual. Nós mesmos somos incapazes de nos tornarmos humildes. Quem não chegou a esse ponto, não poderá se unir ao Espírito Santo. E quem não se encontrar unido a ele por intermédio da purificação também não poderá alcançar a contemplação e o conhecimento de Deus, nem será digno de ser secretamente instruído nas virtudes da humildade. 70. Aqueles que imitam a virtude e se apresentam com a tonsura[52] do hábito monástico, embora não tenham alcançado o homem interior[53], mas estejam ainda cheios de toda iniquidade, inveja[54], ciúmes, prazeres infectos, são, entretanto, honrados como se fossem impassíveis e como santos pela maioria dos
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que não possuem o olho da alma suficientemente purificado e que não conseguem reconhece-los por seus frutos[55]. Quanto aos que levam suas vidas na piedade e na virtude, na simplicidade de seus corações[56], e que são realmente santos, muitas vezes são erroneamente considerados como todos os homens, são deixados de lado, não recebem outra coisa que o desprezo e não considerados menos do que nada. 71. Aqueles costumam considerar como mestre espiritual algum falador cheio de ostentação. Mas quem se cala e toma cuidado com palavras vãs[57] em sua opinião não passa de um homem inculto, incapaz de se expressar. 72. Os vaidosos, doentes do orgulho do diabo, evitam como se fosse vaidoso e orgulhoso aquele que fala no Espírito Santo. Pois suas palavras os agridem, mais do que lhes causam compunção. Mas eles colocam nas nuvens e acolhem de bom grado quem, falando por si ou graças a lições humanas, sabem ornar as frases e os enganam sobre sua salvação. Assim é que nenhum de tais homens será capaz de discernir ou perceber a realidade na qual se encontra. 73. “Bem-aventurados, disse Deus, os de coração puro, por que estes verão a Deus[58]”. Ora, o coração puro não consiste numa virtude, nem em duas, nem em dez que podem ser cumpridas, mas no conjunto de todas as virtudes, por assim dizer reunidas como se fossem uma só e cumpridas até o fim. Mesmo assim, elas são incapazes por si sós de tornar o coração puro sem a ação e a presença do Espírito Santo. Assim como o ferreiro exerce seu ofício graças aos seus utensílios, mas não pode realizar nenhum trabalho sem a ação do fogo, também o homem realiza sua obra servindo-se das virtudes como ferramentas, mas sem a presença do fogo espiritual estas ferramentas nada podem e permanecem inúteis, incapazes de purificar as manchas e a purulência da alma. 74. Através do batismo divino recebemos a remissão das faltas, somos libertos na antiga maldição[59] e nos tornamos santificados pela vinda do Espírito Santo. Mas a graça perfeita, segundo a promessa: “Eu habitarei e caminharei com eles[60]” – esta não é recebida neste momento. Pois ela é concedida aos que creem firmemente e que o demonstram por meio de suas obras. Depois do batismo, se nos deixarmos levar por ações más e infames, perderemos completamente a santificação. Mas por meio do arrependimento, da confissão, das lágrimas, recebemos em proporção primeiro a remissão das faltas e depois a santificação da graça do alto. 75. É por meio do arrependimento que são lavadas as manchas das ações infames. Depois poderemos participar do Espírito Santo, não simplesmente, mas segundo a fé, a disposição, a humildade dos que se arrependerem de toda sua alma, e também depois de havermos recebido do pai que responde por nós a completa absolvição das faltas. É por isso que é bom nos arrependermos diariamente, por causa do mandamento que nos foi dado: “Arrependam-se, por que o Reino dos céus está próximo[61]”. Isto significa que nossa tarefa é sem limite. 76. A graça do Santíssimo Espírito é dada como garantia[62] às almas que desposam a Cristo. Assim como, sem uma garantia, a mulher não terá nenhuma certeza de que se unirá a seu esposo, também a alma não tem certeza alguma de estar por toda a eternidade com seu Mestre e seu Deus, nem de se unir a ele mística e inefavelmente, nem de desfrutar de sua beleza inacessível, se não receber a garantia de sua graça e não a trouxer consigo de maneira consciente. 77. E do mesmo modo como a garantia não é certa a menos que o contrato escrito traga a assinatura de testemunhas dignas de fé, também a iluminação da graça não será certa enquanto não forem cumpridos os mandamentos ou adquiridas as virtudes. Aquilo que as testemunhas representam num contrato a prática dos mandamentos e as virtudes representam em relação à garantia espiritual. Com efeito, é por intermédio destas coisas que aqueles que deverão ser salvos recebem a total posse da garantia.
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78. Por assim dizer, o contrato é primeiramente escrito pela prática dos mandamentos, depois selado e assinado pelas virtudes. Então Cristo, o esposo, dá à alma, a esposa, o anel, ou seja, a garantia do Espírito[63]. 79. Assim como a noiva, antes das bodas, não recebe senão a garantia do noivo, e deve aguardar até o casamento para receber o dote combinado e os dons prometidos, também a Igreja dos fiéis e a alma de cada um de nós – a esposa – não recebe inicialmente de Cristo – o esposo – mais do que a garantia do Espírito[64]. Ela espera até a partida deste mundo para receber os bens eternos e o Reino dos céus, plenamente assegurado pela garantia que estes bens lhe mostram como que num espelho [65], confirmandolhe o que foi combinado com seu Mestre e Deus. 80. Se o noivo é retido numa viagem[66] ou fica preso por outros negócios ele posterga a celebração das bodas, e se a noiva irritada duvida de seu amor e rasga ou apaga o contrato que os une, ela perde imediatamente as esperanças que depositara no noivo. O mesmo acontece com a alma. Com efeito, quando um asceta diz: “Até quando deverei sofrer?”, quando ele desleixa dos esforços, negligencia os mandamentos e abandona o arrependimento contínuo, é como se rasgasse ou apagasse o contrato. Logo ele perde a própria garantia e a esperança em Deus. 81. Se a noiva dedica a outro o amor devido ao noivo a quem está prometida, e se se deita com este outro aberta ou secretamente, não apenas não receberá nada do que lhe foi prometido pelo noivo como ainda incorre merecidamente no castigo e na condenação da lei. O mesmo acontece conosco. Se alguém, aberta ou secretamente, deseja e dedica a outro ser o amor devido a Cristo, seu noivo, e se seu coração se deixa prender por este ser, ele se tornará abominável e odioso aos olhos do noivo e indigno de se unir a ele. Pois está dito: “Eu amo aos que me amam[67]”. 82. Existem sinais como os descritos para cada um compreender se recebeu de Cristo, do esposo e mestre, a garantia do Espírito[68]. Se a recebeu, que se dedique em conservá-la. Se ainda não foi considerado digno de recebê-la, que se esforce por obtê-la logo por meio de obras e ações boas e pelo mais fervoroso arrependimento, e que guarde e pratique os mandamentos e adquira as virtudes. 83. Assim como o teto de uma casa repousa sobre fundações como o restante do edifício, e que as fundações são escavadas para suportar o teto – esta é sua necessidade e sua utilidade –, assim como o teto não pode se sustentar sem fundações nem estas produzem benefício algum à vida nem prestam o menor serviço sem ele, também a graça do Espírito é mantida pela prática dos mandamentos e as obras dos mandamentos são colocadas como fundação graças ao dom de Deus. Nem a graça do Espírito permanece em nós sem a prática dos mandamentos, nem a obra dos mandamentos é útil e proveitosa sem a graça de Deus. 84. Assim como uma casa sem teto, assim deixada pela negligência do construtor, não somente é inútil como ainda expõe ao ridículo aquele que a construiu, também quem que coloca as fundações da prática dos mandamentos e ergue as paredes das mais altas virtudes é imperfeito e despertará a piedade dos perfeitos se não receber na contemplação e no conhecimento da alma a graça do Espírito Santo. Esta graça lhe faltará por um destes dois motivos: ou ele negligenciou o arrependimento, ou, recuando diante da colheita das virtudes como se diante de uma matéria infinita, ele relaxou alguma das que parecem menores, mas que são necessárias para completar a morada das virtudes, pois, sem estas, ela não poderá ser coberta pela graça do Espírito. 85. Se o Filho de Deus e Deus desceu sobre a terra para nos reconciliar por meio de si com seu próprio Pai, a nós que éramos seus inimigos[69], e para nos unir a si mesmo de modo consciente por intermédio de
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seu Espírito Santo e consubstancial, que outra graça poderá obter aquele que perde esta graça? Certamente, o Filho não se reconciliará com ele nem se unirá a ele pela comunhão do Espírito. 86. Quem participa do Espírito Santo está livre dos desejos e dos prazeres passionais, mas não das necessidades corporais da natureza. Liberto dos laços da concupiscência passional e unido à glória e à doçura imortais, ele se esforça sem cessar por estar nas alturas e por conduzir sua vida a Deus, sem se subtrair, ainda que por um instante, a esta contemplação e às suas delícias inesgotáveis. Mas, entravado pelo corpo e pela corrupção ele é por isso atraído para baixo, amarrado e levado às coisas da terra. Penso que ele experimenta então tanta dor quanto a alma do pecador quando se separa do corpo. 87. Do mesmo modo que para alguém que ama o corpo e a vida, que ama o prazer e o mundo, separar-se disto é a morte, para quem ama a pureza e ama a Deus, que ama a imaterialidade e a virtude, a morte consiste em separar-se disto, ainda que por um instante em pensamento. Se quem vê a luz sensível fecha os olhos ou os tem cobertos por alguém logo se sente oprimido e aflito e não consegue suportar sentir-se cegado – e mais ainda se estivesse na expectativa de contemplar coisas necessárias e maravilhosas –, quanto mais quem é iluminado pelo Espírito Santo, que vê em realidade e em espírito, dormindo ou acordado, os bens que o olho não viu, que o ouvido não escutou e que não subiram ao coração do homem[70], estes bens para o qual voltam os olhares e desejam os próprios anjos[71], se sentirá oprimido e aflito se for arrancado por alguém desta contemplação. Parecer-lhe-á morrer e sentir-se-á rejeitado da vida eterna. 88. Muitos chamam de bem-aventurada a vida eremítica, outros a vida comum ou cenobita. Outros louvam o fato de dirigir o povo, exortar, ensinar e fundar Igrejas. Diversos homens nutrem seus corpos e suas almas destas obras. Quanto a mim, não saberia apontar uma preferência por qualquer destas coisas, nem declarar que tal ou qual gênero de vida é digno de louvor ou de censura. Quaisquer que sejam as obras e as ações, a vida por Deus e segundo Deus é a mais bem-aventurada. 89. A vida humana é feita da diversidade das ciências e das artes, e cada qual trabalha em sua própria obra e traz sua contribuição. É assim que os homens vivem, comunicando uns com os outros e atendendo às necessidades naturais do corpo. Podemos ver o mesmo nas coisas espirituais. Um busca uma virtude, outro outra. Este segue a vida por um caminho, aquele por outro. Mas para todos estes caminhos convergem para um mesmo objetivo. 90. O objetivo de todos os que levam sua vida segundo Deus é de agradar a Cristo nosso Deus, obter a reconciliação com o Pai pela comunhão do Espírito e assim alcançar a própria salvação. Pois esta é a salvação de toda alma e de todos os homens. Se este objetivo não é atingido todo esforço foi vão, todo trabalho, todo caminho vida afora que não conduziu à finalidade última aquele que o percorreu. 91. Quem deixou o mundo inteiro e partiu para a montanha da hesíquia, e que de lá escreveu ostensivamente àqueles que ficaram no mundo, abençoando a uns, elogiando e louvando a outros, lembra o homem que se separou de uma mulher prostituída, mal vestida, desonesta, e se foi para um país distante para esquecê-la, apenas para adiante, esquecendo-se de por que se retirara, escrever para os que gravitavam por assim dizer ao redor da prostituta sujando-se com ela, abençoando-os. Mesmo que não seja em seu corpo, no mínimo em seu coração e em seu intelecto ele partilha das intenções passionais destes homens, pois ele aprova que se unam à prostituta. 92. Na mesma medida em que aqueles que vivem no mundo e que mantêm seus corações puros de todo desejo mau são bem-aventurados e dignos de louvor, merecem a censura e a reprovação os que habitam nas montanhas e nas cavernas[72] mas procuram os louvores e os elogios dos homens. Diante de Deus, que sonda nossos corações[73], eles serão como adúlteros. Pois quem deseja que sua vida, seu nome e sua
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conduta sejam louvados pelo mundo, se prostitui longe de Deus[74], como outrora o fez o povo judeu, como disse Davi[75]. 93. Aquele que, pela firmeza de sua fé em Deus, renunciou ao mundo e ao que existe no mundo, acredita que o Senhor é compassivo e misericordioso[76] e que recebe aos que a ele vão por meio do arrependimento. Sabendo que é pela desonra que Deus honra aos seus servidores, que ele os enriquece com a pobreza, os glorifica com os ultrajes e as humilhações e que pela morte ele os estabelece na comunhão e na herança da vida eterna, este homem percorre o caminho como o cervo sedento corre para a fonte imortal[77], e ganha as alturas como se subisse pela escada sobre a qual sobem e descem os anjos em socorro daqueles que se elevam. Deus está no cume[78], aguardando nossa boa vontade e os esforços que fazemos na medida do nosso possível, não por gostar de nos ver penar, mas por que, em seu amor pelo homem, ele quer nos dar as recompensas como coisas a nós devidas. 94. Deus não permite sucumbir àqueles que se dirigem resolutamente a ele. Se os vê em dificuldades, os assiste e auxilia. Ele estende desde o alto sua mão poderosa e os faz subir até si. Ele os assiste de modo visível e invisível, consciente e inconsciente, até que, depois de ter galgado todos os degraus da escada, eles se aproximem, inteiramente unidos a ele, esquecidos de todas as coisas terrestres, vivendo com ele nas alturas, se no corpo e fora do corpo não sei[79], mas partilhando sua existência e usufruindo dos bens inefáveis. 95. É justo que acima de tudo coloquemos nosso pescoço sob o jugo dos mandamentos de Cristo, sem resistir nem recuar, que andemos reta e ardentemente por esta via até a morte e que façamos de nós mesmos o Paraíso de Deus verdadeiramente renovado, até que, com o Pai, o Filho, por intermédio do Espírito Santo, entre e habite em nós. Então, quando o tivermos por inteiro em nós, como nosso anfitrião e mestre, aqueles dentre nós a quem ele der uma ordem ou confiar um ofício, qualquer que seja, o assumirá e cumprirá de todo coração, como ele próprio desejou. Mas não é permitido buscar tal ofício antes do tempo, nem aceitar recebê-lo das mãos dos homens. Devemos perseverar nos mandamentos de nosso Mestre e nosso Deus, e aguardar suas ordens. 96. Se, depois de haver assumido um ofício nos haveres de Deus e nele nos distinguirmos, recebermos do Espírito ordem de passar a outro serviço, a outra tarefa, a outra obra, não recusemos. Pois Deus não quer, nem que permaneçamos sem fazer nada, nem que fiquemos até o fim na mesma tarefa com a qual começamos, mas que façamos progresso e estejamos sempre em movimento a fim de alcançarmos o melhor, ou seja, que sigamos a vontade de Deus e não a nossa. 97. Quem se aplica em fazer morrer a própria vontade deve cumprir a vontade de Deus, fazer penetrar em si mesmo esta vontade de Deus em lugar da sua, plantá-la e enxertá-la em seu coração, e ainda observar se o que foi plantado criou raízes em profundidade, se o que foi enxertado cicatrizou, uniu-se à árvore e se tornou uno com ela, e se tudo cresce, floresce e dá frutos bons e doces. Assim este homem já não reconhecerá em si nem a terra que recebeu a semente, nem a raiz na qual foi enxertada esta planta incompreensível e inefável que traz em si a vida. 98. A quem recusa sua própria vontade por temor a Deus, de uma maneira por assim dizer inconsciente e sem que se saiba como Deus concede sua própria vontade e a mantém indelével em seu coração, abrindo os olhos de sua reflexão para que ele a reconheça, e lhe concedendo a força para cumpri-la. É a graça do Espírito Santo que age aqui, e nada se pode fazer sem ela[80]. 99. Se você recebeu o perdão de todos os pecados, seja pela confissão, seja revestindo-se do santo hábito angélico[81], quanto amor, quanta ação de graças, quanta humildade não engendrará em você tal perdão? Você merecia mil castigos; e agora, não apenas você se livrou deles, como ainda foi considerado digno da
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filiação, da glória do Reino dos céus. Considerando estas coisas em sua reflexão e nelas pensando todo o tempo, esteja pronto, prepare-se desde já para não ultrajar aquele que o criou, que o honrou, que perdoou seus milhares de faltas. Em todas as suas obras glorifique-o e honre-o, a fim de que em troca ele próprio o glorifique, a você a quem ele glorificou mais do que a toda a criação visível, e para que ele o chame de verdadeiro amigo. 100. Na mesma medida em que a alma é mais preciosa do que o corpo, o homem dotado de razão é mais elevado do que o resto do mundo inteiro. Considerando a imensidade das criaturas que estão no mundo, homem, não pense que por causa disto elas sejam mais preciosas do que você. Contemplando a graça que lhe foi concedida e reconhecendo a dignidade de sua alma dotada de intelecto e de razão, celebre a Deus que o honrou mais do que todo o universo visível. 101. Examinemos o modo como glorificamos a Deus. Ele não pode ser glorificado por nós diferentemente do que o foi pelo Filho. Pois as vias pelas quais o Filho glorificou a seu Pai[82] são as mesmas pelas quais o Pai glorificou o Filho. Sigamo-las portanto, com fervor, a fim de glorificarmos por meio delas aquele que aceitou ser chamado nosso Pai nos céus[83], para que sejamos glorificados por ele com a glória que o Filho possuía diante dela antes que o mundo existisse[84]. Estas vias são a cruz, ou seja, a morte para o mundo inteiro, as aflições, as tentações e os demais sofrimentos de Cristo. Se suportarmos estas coisas com paciência imitaremos os sofrimentos de Cristo. E por meio delas glorificaremos nosso Pai e nosso Deus, como seus filhos pela graça e como co-herdeiros de Cristo[85]. 102. A alma que ainda não se liberou perfeita e conscientemente da ligação com as coisas visíveis e do pendor que sente por elas não pode suportar sem dor as aflições que lhe chegam e os ultrajes que vêm dos demônios e dos homens. Ela permanece ligada por causa de seu pendor pelas coisas humanas. Perder dinheiro a fere como uma mordida, sentir-se privada dos bens a atormenta e as feridas em seu corpo a fazem sofrer em demasia. 103. Se alguém arrancou sua alma dos laços e do desejo das coisas sensíveis e a uniu a Deus, não apenas desprezará o dinheiro e os bens que o cercam e, como se estas coisas pertencessem a outros e a estranhos, não sofrerá com sua falta, como também suportará as aflições do corpo com alegria e ação de graças como convém. Pois ele verá continuamente, segundo o Apóstolo divino, o homem exterior fenecer e o homem interior se renovar dia após dia[86]. De nenhum outro modo é possível suportar com alegria os sofrimentos que aguentamos por Deus. Pois é preciso ter um conhecimento perfeito e uma sabedoria espiritual para tanto. Quem está privado destas coisas não cessa de caminhar nas trevas[87] do desespero e da ignorância, incapaz de ver a luz da paciência e da consolação[88]. 104. Todo homem que parece erudito por se dedicar à ciência matemática jamais será digno de se debruçar[89] sobre os mistérios de Deus e enxerga-los, enquanto não aceitar ser humilhado, enquanto não se tornar louco[90], rejeitando tanto a presunção quanto o conhecimento que possui. Quem age desta maneira e com a fé firme acompanha os verdadeiros sábios nas coisas divinas, é por eles guiado e com eles penetra na cidade do Deus vivo[91]. Conduzido e iluminado pelo Espírito divino[92], ele vê e aprende o que nenhum homem jamais pode ver ou aprender[93]. Por que então ele é ensinado por Deus[94]. 105. Os discípulos dos homens eruditos deste século tomam por loucos aqueles que são ensinados por Deus[95]. Na verdade são eles os loucos, reduzidos à impotência pela sabedoria profana que se tornou patética, esta sabedoria que Deus converteu em loucura[96], segundo o Apóstolo divino, esta sabedoria voz teológica sabia ser terrestre, material, demoníaca[97], cheia de disputa e de invejas. Pois estes homens que estão fora da luz divina, que são incapazes de ver as maravilhas que ela ilumina, consideram como perdidos os que permanecem na luz e que enxergam e ensinam o que nela existe, sendo que os perdidos são eles próprios, que jamais provaram dos bens inefáveis de Deus.
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106. Existem ainda, e mesmo agora, vivendo no meio de nós, homens impassíveis e santos, seres repletos da luz de Deus. Eles fizeram a tal ponto morrer seus membros a toda impureza e toda concupiscência sobre a terra[98], que, não apenas jamais pensarão nem farão mal algum por si mesmos, como ainda, se arrastados a isto por alguém, não sofrerão a menor modificação em sua impassibilidade. Eles sabem, com efeito, que são estes homens – ainda que tivessem eles a ciência das palavras divinas que leem e cantam todo dia – que lhes aconselham relaxar e não acreditam nos mestres que ensinam as coisas de Deus na sabedoria do Espírito. Ora, estes, se tivessem adquirido um conhecimento perfeito da divina Escritura, acreditariam nos bens que Deus disse que nos concederá. Mas, por presunção e negligência, eles acabam por não participar de nenhum destes bens. E, por não acreditarem nos que receberam o ensinamento de tais bens, eles os caluniam. 107. Aqueles que estão repletos da graça de Deus e que alcançaram a perfeição pelo conhecimento e pela sabedoria do alto não tentam se aproximar nem ver os homens do mundo senão para beneficiá-los com a lembrança dos mandamentos de Deus e pela benevolência, se a estes for possível ouvir, compreender e se deixar convencer. Pois os que não são conduzidos pelo Espírito de Deus[99] caminham nas trevas e não sabem aonde vão[100], nem em quais mandamentos devem progredir, nem contra quais obstáculos avançam. Talvez algum dia, regressando da presunção em que estão mergulhados, possam receber o verdadeiro ensinamento do Espírito Santo, e, ouvindo sem falsificação nem alteração a vontade de Deus, se arrependam e cumpram finalmente com esta vontade, podendo assim participar de alguns dons espirituais. E, se os perfeitos não conseguem levar a tais homens este benefício, chorando pelo endurecimento de seus corações eles regressam às suas celas e oram noite e dia por sua salvação. Esta é a única aflição que sofrem aqueles que estão todo o tempo com Deus e que transbordam de todos os seus bens. 108. Qual é o objetivo da encarnação de Deus o Verbo, proclamado em toda a divina Escritura, que nos foi dado conhecer pela leitura, mas que não reconhecemos, senão certamente nos dar a comungar o que pertence a ele depois que ele tenha partilhado o que é nosso? Pois o Filho de Deus se tornou Filho do homem para fazer de nós, os homens, filhos de Deus, elevando por meio da graça a nossa raça até aquilo que ele próprio é por natureza, enfim, engendrando-nos a partir do alto[101] no Espírito Santo e nos permitindo entrar rapidamente no Reino dos céus[102], ou melhor, permitindo-nos tê-lo em nós[103]. Assim sendo, não é em esperança que entramos no Reino, mas desfrutamos dele e proclamamos: “Nossa vida é oculta com Cristo em Deus[104]”. 109. O batismo não suprime nosso livre arbítrio nem nossa livre escolha. Mas ele nos concede a liberdade para que não mais sejamos submetidos, ainda que contra nossa vontade, à tirania do diabo. Depois do batismo, está em nosso poder ou bem deliberadamente perseverar nos mandamentos de Cristo nosso Mestre e nosso Deus, em quem fomos batizados[105], e caminharmos sobre a via de seus preceitos, ou nos desviarmos deste caminho reto e retornarmos ao diabo por nossas más ações, nosso adversário e nosso inimigo. 110. Aqueles que, depois do santo batismo, cedem às vontades do maligno e fazem o que ele aconselha, se separam da santa matriz do batismo, como disse Davi[106]. Pois nenhum de nós pode se tornar outra coisa do que é ou sair da natureza segundo a qual foi criado. Mas, criado bom por Deus (pois Deus nada fez de ruim), o homem, imutável em sua natureza tal como esta foi criada e imutável em sua essência, faz de si mesmo o que escolher e quiser, para o bem e para o mal. Sirva ao bem ou ao mal, a espada não muda sua natureza, e permanece de ferro. O mesmo acontece com o homem. Como foi dito, ele faz acontecer e faz o que bem entender, mas sem jamais sair de sua natureza.
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111. Sentir piedade de um único ser não salva, mas desprezar um só ser envia para a fornalha[107]. “Tive fome e tive sede[108]”, evidentemente não foi dito uma única vez. Estas palavras não significam “tal dia”, mas se estendem a toda a vida. Alimentar a Cristo, dar-lhe de beber, vesti-lo e tudo o que se segue, nosso Senhor e nosso Deus não declarou receber de seus servidores estas coisas uma vez, mas para sempre e em todos. 112. Aquele que deu esmola a cem, mas que, ainda podendo dar a outros e oferecer-lhes o que comer e beber, despacha a quem lhe pede e implora, será julgado por Cristo por não tê-lo alimentado. Pois o próprio Cristo está em todos eles, ele que é por nós alimentado em cada um destes pequenos. 113. Aquele que hoje dá a todos tudo de que necessita o corpo, mas que amanhã, podendo fazê-lo, negligencia de seus irmãos e os deixa para morrer de fome, sede ou frio, este homem não viu que era Cristo quem morria e desprezou aquele que disse: “Na medida em que fizerem isto a um destes pequeninos, a mim o terão feito[109]”. 114. Se Cristo aceitou tomar o rosto de cada pobre e se fez semelhante a todo pobre, foi para que nenhum dos que nele creem se eleve acima de seu irmão, mas que cada qual, vendo a seu irmão e a seu próximo como seu Deus, considere a si mesmo como o menor de todos, a si e não ao seu irmão, que é como se fosse seu Criador, e que o acolha e honre como se Deus fosse, e se despoje de tudo o que possui para servi-lo, como Cristo nosso Deus verteu todo seu sangue por nossa salvação. 115. Quem recebeu a ordem de considerar o próximo como a si mesmo[110] deve considerá-lo assim não por um dia ou dois, mas por toda a existência. A quem foi prescrito dar a quem pedir[111] deve agir assim durante toda sua vida. E quem quiser que os demais lhe façam o bem que deseja[112] deve exigir de si fazer este mesmo bem a eles. 116. Portanto, aquele que considera o próximo como a si mesmo[113] não suporta possuir mais do que ele. Se tiver e se não partilhar com abundância até se tornar pobre também e parecido com os que lhe são próximos, não terá cumprido o mandamento do Mestre. Como também não o cumpre aquele que dá a todos que lhe pedem, mas recusa a um apenas, enquanto possui ainda um óbolo ou um pedaço de pão; ou aquele que não faz ao próximo o que gostaria que este lhe fizesse[114]. Assim, aquele que alimentou, deu de beber e vestiu a todos os pobres, mesmo os mais pequeninos, e que tudo fez por eles, mas que desprezou a um apenas e o negligenciou, considere a si mesmo como o homem que desprezou a Cristo Deus faminto e sedento[115]. 117. Talvez essas coisas pareçam difíceis para estas pessoas. Parecer-lhes-á razoável dizer: “Quem poderá fazer tudo isso, cuidar e alimentar todos os homens sem negligenciar absolutamente nenhum dentre eles?”. Que então escutem a Paulo, que disse textualmente: “Pois o amor de Cristo nos pressiona quando pensamos nisto: se um só morreu por nós, então estamos todos mortos[116]”. 118. Assim como os mandamentos gerais contêm em si todos os mandamentos particulares, também as virtudes gerais englobam em si as virtudes particulares. Aquele que vendeu tudo o que tinha[117] e distribuiu aos pobres e que de um só golpe se tornou indigente, cumpriu de uma vez tudo o que exigem os mandamentos particulares. Ele já não precisa dar a quem pede, nem se afastar de quem vem lhe pedir emprestado[118]. Também aquele que ora todo o tempo[119] encerrou a tudo nesta prece. Ele já não tem necessidade de louvar o Senhor sete vezes por dia[120], no por do sol, pela manhã e ao meio-dia[121], por que já cumpriu tudo o que a regra nos manda orar e cantar nos momentos e nas horas determinadas. Também alguém que tenha recebido em si conscientemente de Deus, que dá o conhecimento aos homens[122], este percorreu toda a Sagrada Escritura e colheu todos os frutos da leitura: ele já não terá necessidade da leitura de livros. Como poderia precisar, ele que desfruta continuamente da companhia e
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da conversa com Deus, que inspirou os homens que escreveram as divinas Escrituras, ele que foi pelo próprio Deus iniciado nos arcanos dos mistérios ocultos? Este será para os outros como que um livro inspirado por Deus, que traz em si, escrito pelo próprio dedo de Deus[123], os novos e os antigos mistérios[124]. Pois ele cumpriu tudo, e na perfeição original, em Deus, e repousa de todas as suas obras. 119. O corrimento seminal durante o sono tem habitualmente muitas razões. Ele pode advir da gulodice, da vanglória, da inveja dos demônios. Mas também pode nascer de um excesso de vigília, quando, por temor de experimentar tal coisa, o corpo relaxa durante o sono. Ou ainda, aquele que, por causa da divina Liturgia, se é padre, ou por causa da comunhão, se liga a estes pensamentos, por tanto temer a coisa em seu leito – e a experimenta assim que adormece. Também isto provém da inveja dos demônios. Outra coisa que acontece: alguém viu um belo rosto durante o dia, depois o imagina em espírito e vai dormir com pensamentos prostituídos; incapaz de expulsá-los em seu relaxamento, ele tomba durante o sono, e às vezes acordado em seu leito. Outra: alguns negligentes da minha espécie estão sentados conversando sobre coisas que excitam as paixões, quer o façam com paixão ou não; depois, deitados, eles trazem estas coisas de volta ao intelecto, e adormecem unindo-se a elas durante o sono. É provável que no decurso desta conversa, cada qual tenha recebido do outro algo prejudicial. É por isso que devemos sempre vigiar e meditar sobre o que disse o Profeta: “Eu tive constantemente o Senhor diante de meus olhos, e por isso ele permanece à minha direita para que eu não caia[125]”. E devemos fechar os ouvidos a tudo o q eu diz respeito à paixão. Muitos, recém-saídos da oração, foram empurrados aos movimentos da carne. É isto que mostramos no capítulo sobre a oração. 120. Irmão, quando você debutar na vida monástica, vigie para plantar em si as mais belas virtudes, a fim de ser útil à comunidade e para que ao final você seja magnificado pelo Senhor. Não tome nenhuma liberdade com o higoumeno, como já dissemos. Não procure honrarias junto a ele. Não faça amizade com os que estão à sua frente. Não circule ao redor de suas celas, sabendo que, com isto, não apenas a vanglória começará a tomar raízes em você, como também o superior se desagradará de você. Como? Compreenda, é assim. Sente-se em sua cela, onde quer que seja, e em paz. Não fuja de quem vier conversar com você, por causa da piedade. Se você o encontrar com a permissão de seu pai espiritual, ele não o prejudicará, mesmo se for pouco piedoso. E se você achar que isto não é bom para você, siga o caminho que lhe fizer bem. 121. Você precisa manter continuamente em si o temor a Deus e examinar a si mesmo todos os dias para saber o que você faz de bem ou de mal. Depois você deve esquecer o que fez de bom, para não cair na paixão da vanglória. Confessando suas faltas e orando ardentemente, chore pelo que fez de mal. Examine a si próprio assim. Ao cair do dia, diga a si mesmo: como, com a graça de Deus, eu passe este dia? Terei eu condenado, injuriado, escandalizado alguém? Terei eu contemplado um rosto com paixão? Em meu ofício, terei desobedecido a que me dirige? Será que negligenciei meu ofício? Ou fiquei irritado com alguém? Será que, durante a assembleia litúrgica, deixei meu intelecto passear por pensamentos inúteis? Ou, sob o peso da irresponsabilidade, terei abandonado a igreja e o serviço divino? Se, em todas estas coisas, você não teve nenhuma culpa (o que é impossível, pois ninguém está puro e sem mácula, mesmo que por um só dia na vida[126], e ninguém pode se glorificar por possuir um coração casto[127]), então clame a Deus vertendo muitas lágrimas: “Senhor, perdoe os pecados que cometi em atos e palavras, com conhecimento e por ignorância”. Pois cometemos muitas faltas[128] sem sabê-lo. 122. Devemos a cada dia confiar todos os nossos pensamentos ao pai espiritual; aquilo que ele disser deve ser recebido com plena segurança, como se fosse da boca de Deus. Não se deve falar dessas coisas a outros, declarando, por exemplo: “Eu perguntei a meu pai tal ou tal coisa, e ele me respondeu assim e assim. Terá sido uma boa resposta? Que devo fazer para me cuidar?”. Estas palavras estão cheias de desconfiança em relação ao pai e prejudicam a alma. Normalmente, este tipo de coisa acontece aos noviços.
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123. É preciso que cada um de nós veja como santos a todos os que vivem na comunidade, e que nos consideremos cada qual como o único pecador e o último. Pois todos serão salvos, e só nós seremos castigados neste dia. Quem pensa nisto durante a assembleia litúrgica não deixe de verter lágrimas abrasadoras na compunção de seu coração, sem levar em conta outros que, vendo-o, possam se escandalizar ou rir-se. Mas se você perceber que, ao se expor assim, você se deixa levar pela vanglória, saia da igreja e vá chorar em segredo, retornando o mais depressa possível à sua cela. Sobretudo aos noviços esta atitude é boa, em especial durante o hexassalmo, as leituras do katisma, as leituras litúrgicas da Bíblia e a divina Liturgia. Vigie para nunca condenar ninguém. Diga para si mesmo: os que me veem gemendo assim, compreendendo que sou um grande pecador, rezam pela minha salvação. Em todo caso, se você pensar sempre nisso e se o fizer sem descanso, extrairá daí um grande benefício, atrairá a graça de Deus e participará da beatitude divina. 124. Não entre na cela de ninguém, salvo na do higoumeno, e, mesmo nesta, raramente. Se você quiser interrogá-lo a respeito de algum pensamento, faça-o na igreja. Depois da assembleia litúrgica retire-se rapidamente para a sua cela, depois vá fazer seu ofício. Depois das orações das horas faça uma metania diante do trono do higoumeno, peça sua benção e logo, baixando a cabeça e em silêncio, retire-se para sua cela. Mais vale um trisságio dito com atenção ao se deitar do que velar por quatro horas em conversas inúteis. Numa palavra: onde estiver a compunção e a tristeza espiritual, ali estará a iluminação divina. E quando esta vem habitar em nós afastam-se a acídia e as enfermidades. 125. Não sinta afeição especial por nada nem ninguém, sobretudo por um noviço, mesmo que lhe pareça que ele leva uma vida excelente, e mais ainda se ele lhe desperta alguma suspeita. Sem este cuidado você poderá ser levado da afeição espiritual à paixão, e cair em inúteis aflições. Isto acontece principalmente aos ascetas. Mas a humildade e a oração contínua o ensinarão. Não é agora o momento de detalhar estas coisas. Basta compreender que elas existem. 126. Você deve considerar como estranhos a todos os irmãos da comunidade, e mais ainda as pessoas que você conheceu no mundo. Você deve amar a todos os homens de maneira igual, e ver como santos os que conduzem o bom combate da piedade. Quanto aos negligentes, como eu, você deve rezar por eles continuamente. Entretanto, como dissemos acima, considere a todos os outros como santos e apresse-se a se purificar das paixões pela tristeza, a fim de que, recebendo da graça a luz que lhe permitirá ver a todos os homens de maneira igual, você alcance igualmente a beatitude dos corações puros[129]. 127. Considere, irmão, que aquilo que se chama de perfeita anacorese fora do mundo consiste em morrer completamente para as próprias vontades, depois cessar de ser atraído pelos pais, próximos e amigos até renunciar completamente a eles. 128. Depois você deve se despojar de todos os seus bens e distribuí-los aos indigentes, segundo Aquele que disse: “Venda tudo o que tem e dê o dinheiro aos pobres[130]”. E esqueça todos os rostos amados de modo particular, tanto corporal como espiritualmente. 129. Tudo o que está oculto em seu coração, desde a infância até agora, confesse-o ao seu pai espiritual ou ao higoumeno, como se fosse ao próprio Deus que sonda os corações e os rins[131], pois você sabe que João batizava com um batismo de arrependimento[132] e que todos iam a ele confessar seus pecados[133]. A alma recebe disto uma grande alegria e a consciência se sente aliviada, segundo as palavras do Profeta: “Diga primeiro seus pecados, a fim de ser justificado[134]”. 130. Você deve ter esta certeza no espírito: depois de sua entrada na comunidade monástica, todos os seus parentes e amigos estarão mortos. Você deve considerar que seus únicos Pai e Mãe são Deus e seu
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superior, e jamais pedir aos seus que satisfaçam as necessidades do seu corpo. Se eles, de moto próprio, lhe enviarem qualquer coisa, receba-a, ore por sua solicitude e entregue-a à hotelaria ou à enfermaria, com toda humildade. Pois você não se deve considerar entre os perfeitos, mas entre os menores. 131. Você deve fazer com humildade tudo o que for bom, dirigindo-se em espírito Àquele que disse: “Quando vocês tiverem feito tudo, digam: somos servidores inúteis, pois fizemos o que deveríamos ter feito[135]”. 132. Se você está em conflito com alguém, ainda que pela sugestão de um pensamento, evite tomar a comunhão até se reconciliar com ele pelo arrependimento. Também isto você terá que aprender por meio da oração. 133. É preciso estar pronto a cada dia para acolher toda aflição, compreender que as aflições resgatam numerosas dívidas, e dar graças ao Santo Deus. É por meio destas coisas que se adquire uma certeza que ninguém pode confundir, conforme o grande Apóstolo: “Pois a aflição engendra a paciência; a paciência engendra a experiência; a experiência engendra a esperança; e a esperança nunca decepciona[136]”. Com efeito, “aquilo que o olho não viu, que o ouvido não escutou, o que não subiu ao coração do homem [137]”, estas coisas, segundo a promessa infalível, serão dadas aos que, com a ajuda da graça, mostraram paciência em meio às aflições. Pois sem a graça, nada pode ser conduzido com sucesso. 134. Não mantenha afazeres na sua cela, nem mesmo uma agulha. Nada senão um lençol, uma coberta, uma manta e suas roupas. Se possível, nenhum calçado. Tudo isto já foi dito. Compreenda quem puder. 135. De resto, você não deve pedir coisa alguma ao higoumeno, ainda que lhe pareça útil, fora das que lhe foram prescritas. Mesmo estas, não as pegue enquanto ele próprio não as der, depois de havê-lo chamado. E nunca obedeça ao pensamento que lhe sugere trocar alguma das coisas que lhe foram fornecidas. Receba-as tais como vierem às suas mãos, com gratidão, como se viessem de Deus, e trabalhe com elas. Não saia à procura de outras. Quando suas roupas estiverem sujas, lave-as, duas vezes ao ano. Como um pobre e um estrangeiro, com toda humildade, peça uma roupa emprestada a um irmão enquanto espera a sua, lavada, secar ao sol. Depois devolva a roupa emprestada, agradecendo. Faça o mesmo com o manto, ou com qualquer outra peça. 136. Na medida de suas forças, não tente diminuir sua pena quando cumpre um ofício. Você deve perseverar na prece com compunção e atenção, chorando sempre. E não ponha ideias na sua cabeça: “Hoje estou indisposto devido à fadiga do corpo, então reduzirei alguma coisa das orações”. Pois eu lhe digo que se alguém se esforça para cumprir seu ofício mas se priva da oração está sofrendo uma grande perda. Esta é a verdade. 137. Você deve chegar antes de todos às assembleias eclesiais e sair por último, salvo em caso de grande necessidade. Sobretudo nas matinas e na Liturgia. 138. Você deve se submeter totalmente ao seu higoumeno, de quem recebeu a tonsura, e fazer sem refletir, até a morte, o que ele ordenar, mesmo que isto lhe pareça impossível. Pois nisto você estará imitando Aquele que obedeceu até a morte, e morte de cruz[138]. Você não deve desobedecer, não apenas ao higoumeno, mas a toda a fraternidade e ao responsável pelos ofícios. Se aquilo que lhe for ordenado ultrapassar suas forças, faça uma metania e peça para ser dispensado. E se isto lhe for recusado, faça uma violência consigo mesmo, lembrando que o Reino dos céus pertence aos que se fazem violência, e que são estes que o conquistam[139].
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139. É preciso rolar aos pés de toda a fraternidade, com o coração quebrantado, como um homem sem aparência, desconhecido, que é menos do que nada. Quem se conduz assim nesta vida, ouso dizê-lo, receberá o dom da visão profética e predirá muitas coisas com a ajuda da graça. Este homem também chorará pelas faltas dos outros. Ele estará separado das paixões materiais, pois o amor espiritual a Deus o impedirá de cair nelas. De resto, predizer não tem nada de espantoso: muitas vezes isto provém dos demônios. Mas existem aqueles que podem. Porém, se alguém começa a receber confissões, talvez acabe se privando destas coisas, ocupado que está em examinar os pensamentos de outros. Se, com muita humildade, ele deixar de fazer isto – ou seja, de falar e ouvir – ele se restabelecerá em seu primeiro estado. Mas somente Deus tem o conhecimento destas coisas. Quanto a mim, sinto-me impedido pelo temor e não ouso dizer nada. 140. É preciso ter o intelecto constantemente voltado para Deus, dormindo ou acordado, comendo ou falando, trabalhando com as mãos ou fazendo qualquer outra coisa. É o que mandam as palavras proféticas: “Eu tive sempre o Senhor diante dos meus olhos[140]”. Considere que você é mais pecador do que qualquer homem. Se você conservar isto por tempo suficiente na sua memória, uma luz que não vem de parte alguma começará a brilhar em seu pensamento. Quanto mais você a buscar, com grande atenção e sem se deixar distrair, esforçando-se muito e com muitas lágrimas, mais ela lhe parecerá viva. Ora, se ela lhe aparecer, você a amará; se você a amar, ela o purificará; e se ela o purificar, irá torná-lo semelhante a Deus, iluminando-o e ensinando-o a discernir o bem e o mal. Mas é preciso muito esforço, meu irmão, para que, com a ajuda de Deus, esta luz venha enfim a habitar totalmente em sua alma, para que ela o ilumine como a lua que ilumina as trevas da noite. É preciso também que você esteja atento ao que lhe sugerem seus pensamentos, a vanglória e a presunção, e não condenar a quem você vê fazendo algo errado. Pois, vendo a alma liberta das paixões e das tentações pela graça que habita nela e por este estado de paz, os demônios colocam estas coisas no seu caminho. Mas o socorro vem de Deus. Mas que você se mantenha constantemente de luto, sem jamais se saciar de lágrimas. Vigie para não ser afetado nem pelo excesso de alegria nem pelo excesso de compunção. Cuide também para não considerar que estas coisas provêm de seu próprio esforço e não da graça de Deus. Cuidado para que elas não lhe sejam tiradas, por que então você as buscará exaustivamente pela oração e não as encontrará, e saberá quantos dons perdeu. Senhor, que jamais sejam privados de sua graça. Porém, irmão, se isto lhe acontecer, atire diante de Deus sua fraqueza, depois se levante, estenda as mãos e ore assim: “Senhor, tenha piedade de mim que sou pecador, fraco e infeliz, envie-me sua graça, não permita que eu seja tentado além das minhas forças[141]. Veja, Senhor, a que ponto de desencorajamento e a que pensamentos me conduziram meus numerosos pecados. Senhor, ainda que eu quisesse considerar que fui privado de seu consolo por causa dos demônios e da presunção, não consigo. Eu sei que aqueles que cumpriram ardentemente sua vontade se opõem a eles. Mas eu, que a cada dia faço as vontades do demônio, como poderia ser tentado por eles? Na verdade, sou tentado por meus próprios pecados. Agora, meu Senhor, Senhor, se esta é sua vontade e se isto é bom para mim, que venha novamente sobre seu servidor sua graça, para que, vendo-a, eu me regozije, cheio de compunção e gemidos, iluminado por este esplendor sempre luminoso, protegido da imundície dos pensamentos impuros, de toda coisa má, de tudo o que eu possa fazer de falso a cada dia, consciente ou inconscientemente, e depois receba a plenitude da confiança em meu Deus, Senhor, quando a cada dia os demônios e os homens oprimem com aflições seu servidor e quando minha própria vontade se quebra, enfim, que eu considere ainda, Senhor, os bens que aguardam aqueles que o amam[142]. Pois você disse, Senhor: ‘Quem pedir, receberá, quem buscar, encontrará, e a quem bater, ser-lhe-á aberto’[143]”. Enfim, irmão, persevere pedindo ainda tudo o que Deus lhe inspirar, sem se deixar levar pela acídia. E o bom Deus não o abandonará[144]. 141. Permaneça até o fim na cela que você recebeu do superior no início. Mas, se você se sentir perturbado pensando na decrepitude ou na sua precariedade, faça uma metania diante do superior e digalhe com toda humildade. Se ele o escutar, regozije-se; senão dê graças da mesma maneira, lembrando-se de seu Mestre, que não tinha onde repousar a cabeça[145]. Pois se você importunar seu superior duas, três,
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quatro vezes, nascerá daí a impertinência, daí a desconfiança e por fim o desprezo. Se você quiser levar uma vida calma e reclusa, jamais reclame coisa alguma ao higoumeno para confortar seu corpo. Pois não é isto que você prometeu a princípio, mas sim ser desprezado e desdenhado por todos, segundo o mandamento do Senhor, e a tudo suportar corajosamente. Assim, se você quiser preservar sua confiança e seu amor para com o higoumeno e considera-lo como um santo, lembre-se destas três coisas: nada reclamar para seu conforto, não tomar nenhuma liberdade em relação a ele e não ficar muito tempo junto a ele, como fazem alguns que, pensam eles, recebem seus cuidados; este comportamento, embora humano, carece de firmeza. Mas não é condenável contar-lhe todos os pensamentos que lhe ocorram. Se você observar estas coisas, você atravessará sem tempestades o mar desta vida, e considerará como santo seu pai espiritual, seja ele quem for. Se, tendo ido à igreja consultar seu pai a propósito de algum pensamento você encontrar junto a ele outro monge que chegou antes para tratar do mesmo assunto ou de outro, e se, por causa deste monge, o pai o ignorar por um momento, não fique contrariado nem tenha nenhum pensamento hostil. Mantenha-se de parte, as mãos postas, até que ele termine a conversa e o chame. Esta é uma atitude que os pais têm para conosco, às vezes inadvertidamente, para nos testar e nos afastar dos pecados. 142. É preciso jejuar durante as três Quaresmas, duplamente durante a grande, salvo nas grandes festas e fora sábados e domingos. Durante as duas outras Quaresmas deve-se jejuar simplesmente. Nos outros dias do ano deve-se comer uma vez por dia, salvo nos sábados, domingos e nos dias de festas, mas nunca até a saciedade. 143. Esforce-se para ser um modelo útil a toda a fraternidade com toda virtude, com humildade e doçura, compaixão e obediência até nas menores coisas, ausente de cólera e de paixão, na pobreza e na compunção, na inocência e na discrição, na simplicidade do comportamento e na reserva para com todos os homens, na visita aos doentes e no consolo aos aflitos. Não se desvie de nenhum dos que precisam de sua ajuda sob pretexto de estar com Deus: pois o amor vale mais do que a prece. Esforce-se por ser compassivo para com todos, livre de vanglória e discreto. Tente jamais ser peremptório, jamais reclamar ao superior nem a ninguém que tenha um cargo, honre a todos os padres, esteja atento durante as suas orações, rejeite a afetação, ame a todos e não procure, por vaidade, perscrutar e sondar as Escrituras. É a oração dita em meio às lágrimas e a iluminação que lhe virá da graça que lhe ensinarão estas coisas. Se você for interrogado a respeito de alguma coisa do que devemos fazer, ensine as ações divinas – aquilo que a graça lhe disser que diga – com muita humildade, a partir de sua vida, como se se tratasse da vida de outro, sem nenhuma vaidade, quem quer que seja que pediu sua ajuda. E não dê as costas a quem lhe pedir que o assista a respeito de um pensamento, mas tome sobre si suas faltas, quaisquer que sejam, chorando e orando por ele. Este é um sinal de amor e de total compaixão. Não afaste que vem a você, não pense que lhe será prejudicial ouvir tais coisas. Porém, para não prejudicar aos demais, estas conversas devem se dar num lugar longe dos olhares, mesmo que você, não sendo mais do que um homem, venha a ser assaltado por algum pensamento. Por que se a graça lhe conceder, você não se deixará prender por este pensamento. De fato, nos é prescrito buscar não o nosso bem, mas o bem dos outros, para que eles sejam salvos[146]. Como dissemos, você deve manter uma vida pacífica e pobre. Então você considerará a si mesmo como submetido à ação da graça, quando se vir como o mais pecador dos homens. Não posso lhe dizer como isto acontecerá, mas Deus sabe. 144. Durante as vigílias noturnas você deve ler por duas horas e orar por duas horas, com compunção e lágrimas, dizer o cânon que escolher e, se você quiser, os doze salmos, o Amômos[147] e a oração de santo Eustrate[148]. Isto nas noites longas. Nas noites curtas faça um ofício mais curto, conforme a força que Deus lhe der. Sem ele, com efeito, é impossível alcançar qualquer bem, como disse o Profeta: “Os passos do homem são dirigidos pelo Senhor[149]”. E o próprio Senhor disse: “Sem mim vocês nada podem[150]”. Jamais comungue sem derramar lágrimas.
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145. Você deve comer de tudo o que lhe for proposto e beber vinho moderadamente, sem murmurar. Mas se estiver enfermo e vivendo à parte, coma alguns legumes crus com azeite. Se um dos irmãos lhe enviar qualquer coisa para comer, receba-a com gratidão e humildade, como um estrangeiro. Seja como for, receba-a. O que restar envie a outro irmão pobre e piedoso. Se um padre o chamar para uma consolação[151], tome tudo o que lhe for oferecido, mas sempre pouco, segundo o mandamento que manda manter a temperança. Quando se levantar, depois de fazer uma metania como faria um estrangeiro ou um pobre, exprima sua gratidão e diga: “Padre santo, que Deus o recompense”. E guarde-se de contar aos outros, mesmo que isto posse vir a ser útil. 146. Se vier a você um irmão que foi repreendido pelo superior, pelo ecônomo ou por qualquer outro, console-o assim: “Irmão, acredite que isto lhe aconteceu para prová-lo. Também eu conheci essa humilhação em outras circunstâncias e, em minha fraqueza, fiquei triste. Mas depois que tive certeza de que essas coisas só aconteceram para me testar, passei a suportá-las com gratidão. Faça o mesmo, e você se regozijará com tais aflições”. Se ele próprio começar a fazer reprimendas ferinas, não se afaste, mas console-o como a graça lhe permitir. Numerosos são os discernimentos. E na medida em que você compreender o estado de seu irmão e seus pensamentos, reencontre-o e não o deixe partir sem tê-lo confortado. 147. Se você demorar a visitar um irmão enfermo, avise-o: “Creia-me, santo pai, soube hoje de sua doença e peço seu perdão”. Depois, quando for vê-lo, faça uma metania diante dele, espere que ele lhe dê a sua bênção e diga: “Como Deus o socorreu, santo pai?”. Sentado, com as mãos postas, permaneça calado. Mas, se houver outros que vieram visitar o doente, cuide para não conversar, nem sobre as Santas Escrituras, nem sobre as ciências da natureza, não coloque nenhuma questão a fim de não se tornar presa da aflição. Pois é isto que, na maior parte das vezes, acontece aos irmãos mais simples. 148. Se lhe ocorrer de tomar refeição com irmãos piedosos, aceite os alimentos que lhe forem apresentados, sejam quais forem, sem fazer diferença. Se você recebeu do pai espiritual ordem para não comer peixe ou outro alimento e estas coisas lhe forem oferecidas e se quem lhe deu a ordem não estiver longe, procure-o para obter sua licença para comer estes alimentos. Se ele não estiver próximo ou se você souber que ele não lhe dará aprovação, e se você não quiser escandalizar seus irmãos, depois da refeição conte a ele o que aconteceu e peça seu perdão. Mas se você quiser evitar tanto uma como outra coisa, o melhor é não comer com os irmãos. Pois então seu benefício será duplo: você escapará do demônio da vanglória e evitará para os irmãos o escândalo e a aflição. Enfim, se lhe oferecerem alimentos mais ricos, mantenha a regra. Diante de tais alimentos, o melhor é tomar um pouco de tudo. Faça o mesmo se alguém o convidar, conforme recomendou o Apóstolo: “É preciso comer de tudo o que for oferecido, sem colocar questão alguma por motivo de consciência[152]”. 149. Se no momento em que você faz suas orações em sua cela alguém bater à porta, abra. Sente-se, fale com humildade. Talvez você possa concorrer para o bem de quem o procurou. Se ele se acha oprimido por uma aflição, tente confortá-lo por palavras ou ações. Quando ele partir, feche a porta, retome e termine sua oração. Pois cuidar dos que vêm é uma obra semelhante à reconciliação. Porém, se vier um homem do mundo você não deve agir assim, mas falar-lhe apenas depois de terminada sua oração. 150. Se ao orar você sentir certo medo, seja por que ouviu um ruído, seja por que brilhou algo semelhante a uma luz, seja por que aconteceu algo do gênero, não se perturbe. Antes persevere com mais ardor ainda na prece. Pois às vezes acontece, vindo dos demônios, uma agitação, um arrepio, uma vertigem, para que você relaxe e negligencie a oração, e para que, caindo em seu poder, você se torne daí por diante cativo deles. Mas se ao terminar a prece brilhar sobre você outra luz da qual lhe é impossível expressar em palavras, se sua alma se enche de alegria, se você deseja o melhor, se derrama lágrimas compungidas, saiba que se trata de uma visita de Deus e de um auxílio[153]. Se você permanecer longo tempo neste
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estado, por não lhe acontecer mais nada, embora suas lágrimas o oprimam, mantenha cativo seu intelecto em qualquer trabalho manual para se sentir humilhado. Tome cuidado para não desleixar a oração por causa do medo que lhe causam os inimigos. Assim como uma criança atemorizada por espantalhos deixa de temer quando se refugia nos braços da mãe ou do pai, também você, se correr para Deus por meio da oração, escapará ao temor que lhe infligem os seus inimigos. 151. Se quando você se encontra sentado em sua cela um irmão vem interroga-lo a respeito de um combate de sua carne, não o despache. Cheio de compunção ajude-o com aquilo que a graça de Deus e sua própria experiência lhe permitirem dizer e só então despeça-o. Quando ele sair, faça uma metania diante dele e diga: “Creia-me, irmão, eu espero que o amor de Deus afastará de você este combate, desde que você não ceda nem relaxe”. Depois de sua partida, de pé, recorde seu combate e, elevando as mãos para Deus, chorando e gemendo, peça por seu irmão dizendo: “Senhor Deus, que não deseja a morte do pecador[154], faça como só você sabe, e do modo que for melhor para este irmão”. E Deus, que sabe a confiança que o irmão depositou em você, que conhece sua compaixão por amor e a oração sincera por ele, aliviará seu combate. 152. Todas estas coisas, irmão, convêm à compunção. É preciso conduzi-las com o coração quebrantado[155], paciência e ação de graças. Elas são verdadeiras fontes de lágrimas que purificam das paixões e abrem o Reino dos céus. Pois o Reino dos céus é dos que se fazem violência, e são os que se violentam que o ganham[156]. Se você chegar até aí você estará completamente desembaraçado do modo como vivia antigamente, e talvez até das sugestões do pensamento. As trevas se retiram naturalmente diante da luz, e a sombra diante do sol. Pois se alguém negligencia estas coisas no início, relaxando o pensamento, se ocupando com o que é supérfluo, ficará privado da graça. Então, caindo sob as paixões do mal, conhecerá sua própria fraqueza, cheio de terror. Mas, por outro lado, é preciso que quem chegou a realizar tais coisas não considere tê-las feito por seu próprio esforço, mas pela graça de Deus. É preciso começar pela autopurificação, conforme aquele que disse: “Você deve primeiro se purificar, para depois se encontrar com o Puro”. De fato, quando o intelecto foi purificado por meio de muitas lágrimas e acolhe o esplendor da luz divina, esta luz que nem todo o mundo é capaz de atenuar, quando ele a recebe, ele permanece em espírito com prazer nos bens do século futuro. 153. Um dia perguntaram a este santo e bem-aventurado Simeão que tipo de homem deveria ser um sacerdote. Ele respondeu: “Eu não sou digno de ser sacerdote. Mas quem é aquele que irá celebrar o culto divino, isto eu sei com certeza. Primeiro ele deve ser casto, não apenas no corpo, mas também na alma. Por outro lado, ele deve estar desembaraçado de todo pecado. Em segundo lugar ele deve ser humilde, tanto em seu comportamento exterior como nas atitudes interiores de sua alma. Depois, quando ele estiver diante do santo altar, ele deverá enxergar sem a menor dúvida por meio dos olhos do intelecto a Divindade, e pelos olhos sensíveis os santos dons expostos. Mais ainda, ele deve ter em si conscientemente, habitando em seu próprio coração, Aquele que está invisivelmente presente nos dons, a fim de poder oferecer as demandas com segurança e, falando como um amigo a outro[157], dizer: Pai nosso que está no céu, santificado seja o seu nome[158], e esta oração significará que ele possui em si, junto com o Pai e o Espírito Santo, Aquele que por natureza é em verdade o Filho de Deus. Eu já vi sacerdotes assim. Perdoem-me, pais e irmãos”. Como se falasse de outra pessoa, escondendo-se e fugindo da glória dos homens, mas forçado por seu amor aos homens, ele se desvelou e disse: “De um monge e sacerdote que se confiou a mim como a um amigo, eu ouvi o seguinte: ‘Eu jamais celebrei a Liturgia sem ver o Espírito Santo, como o vi chegar sobre mim quando o metropolita me consagrou dizendo a oração de ordenação sacerdotal com o eucológio [159] sobre minha pobre cabeça’. Quando eu lhe perguntei como ele vira o Espírito Santo, e sob que forma, ele me disse: ‘Simples e sem forma. Mas ele era como que uma luz. No começo, eu me espantei de ver o que jamais contemplara e me perguntei o que poderia ser aquilo. Mas então ouvi uma voz que me dizia
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secretamente: É assim que eu visito todos os profetas e os apóstolos, os eleitos e os santos de Deus até hoje. Pois eu sou o Santo Espírito de Deus’.” A ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.
[1] Cf. II Coríntios 6: 10. [2] Cf. Efésios 3: 8. [3] Salmo 39 (40): 2. [4] Cf. Mateus 10: 37. [5] Cf. Tito 2: 13. [6] Cf. Lucas 19: 26. [7] Cf. Mateus 11: 28. [8] Cf. Filipenses 3: 8. [9] Cf. I Coríntios 7: 31. [10] Cf. Mateus 5: 44. [11] Cf. Filipenses 3: 8. [12] Cf. João 1: 9. [13] Cf. I Coríntios 9: 27. [14] Cf. Romanos 6: 11. [15] Cf. João 5: 39. [16] Cf. Tiago 1: 23. [17] Cf. Mateus 24: 5-24. [18] Mateus 15: 14. [19] Cf. I Coríntios 15: 49. [20] Cf. Efésios 4: 13. [21] Cf. Salmo 118 (119): 32. [22] Cf. Hebreus 5: 14. [23] Cf. I Coríntios 14: 25. [24] Cf. Provérbios 9: 18. [25] Cf. Lucas 18: 27. [26] Cf. João 6: 28. [27] Cf. Filipenses 2: 8. [28] Cf. Mateus 12: 36. [29] Cf. Mateus 13: 25. [30] Salmo 41 (42): 6. [31] Cf. Romanos 3: 20 e Gálatas 2: 16. [32] Salmo 142 (143): 2. [33] Cf. Mateus 4: 10. [34] Cf. Gênesis 1: 26-27. [35] Cf. I João 4: 13. [36] Cf. Salmo 4: 7. [37] Cf. Gálatas 6: 3. [38] Cf. Salmo 13 (14): 5. [39] Cf. Salmo 2: 9 [40] Mateus 6: 25.31.32.
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[41] Lucas 21: 34. [42] Cf. Mateus 18: 10. [43] Cf. Mateus 16: 24. [44] Cf. Gálatas 3: 27. [45] Cf. João 15: 13-14. [46] Cf. Gálatas 6: 1. [47] Cf. Mateus 7: 26. [48] Cf. João 16: 20. [49] Cf. Salmo 118 (119): 32. [50] Cf. Jeremias 20: 9. [51] Cf. Efésios 5: 6. [52] Cf. Mateus 7: 15. [53] Cf. Romanos 7: 22. [54] Cf. Romanos 1: 29. [55] Cf. Mateus 7: 20 [56] Cf. Atos 2: 46. [57] Cf. Mateus 12: 36. [58] Mateus 5: 8. [59] Cf. Gálatas 3: 13. [60] II Coríntios 6: 16. [61] Mateus 3: 2. [62] Cf. II Coríntios 1: 22; Efésios 1: 14. [63] Cf. II Coríntios 1: 22. [64] Id. [65] Cf. I Coríntios 13: 12. [66] Cf. Mateus 25: 5. [67] Provérbios 8: 17. [68] Cf. II Coríntios 1: 22. [69] Cf. Romanos 5: 10. [70] Cf. I Coríntios 2: 9. [71] Cf. I Pedro 1: 12. [72] Cf. Hebreus 11: 38. [73] Cf. Romanos 8: 27. [74] Cf. Oséias 4: 12. [75] Cf. Salmo 105 (106): 39. [76] Cf. Salmo 102 (103): 8. [77] Cf. Salmo 41 (42): 2. [78] Cf. Gênesis 28: 12-13. [79] Cf. II Coríntios 12: 2-3. [80] Cf. João 1: 3 e 15: 5. [81] O hábito monástico. [82] Cf. João 17: 4. [83] Cf. Mateus 6: 9. [84] Cf. João 17: 5. [85] Cf. Romanos 8: 17. [86] Cf. II Coríntios 4: 16. [87] Cf. João 12: 35. [88] Cf. Romanos 15: 5. [89] Cf. I Pedro 1: 12. [90] Cf. I Coríntios 3: 18.
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[91] Cf. Hebreus 12: 22. [92] Cf. João 16: 3. [93] Cf. I Timóteo 6: 16. [94] Cf. João 6: 45. [95] Id. [96] Cf. I Coríntios 1: 20. [97] Cf. Tiago 3: 15. [98] Cf. Colossenses 3: 5. [99] Cf. Romanos 8: 14. [100] Cf. João 12: 35. [101] Cf. João 3: 3-7. [102] Cf. João 3: 5. [103] Cf. Lucas 17: 21. [104] Colossenses 3: 3. [105] Cf. Gálatas 3: 27. [106] Cf. Salmo 57 (58): 4. [107] Cf. Mateus 18: 10. [108] Mateus 25: 35. [109] Mateus 25: 40. [110] Cf. Levítico 19: 18. [111] Cf. Mateus 5: 42. [112] Cf. Mateus 7: 12. [113] Cf. Levítico 19: 18. [114] Cf. Mateus 7: 12. [115] Cf. Mateus 25: 45. [116] II Coríntios 5: 14. [117] Cf. Mateus 19: 21. [118] Cf. Mateus 5: 42. [119] Cf. I Tessalonicenses 5: 17. [120] Cf. Salmo 118 (119): 164. [121] Cf. Salmo 54 (55): 18. [122] Cf. Salmo 93 (94): 10. [123] Cf. Êxodo 31: 18. [124] Cf. Mateus 13: 52. [125] Salmo 15 (16): 8. [126] Cf. Jó 14: 4. [127] Cf. Provérbios 20: 9. [128] Cf. Tiago 3: 2. [129] Cf. Mateus 5: 8. [130] Mateus 19: 21. [131] Cf. Salmo 7: 9. [132] Cf. Atos 19: 4. [133] Cf. Mateus 3: 6. [134] Isaías 43: 26. [135] Lucas 17: 10. [136] Romanos 5: 3-5. [137] I Coríntios 2: 9. [138] Cf. Filipenses 2: 8. [139] Cf. Mateus 11: 12. [140] Salmo 15 (16): 8.
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[141] Cf. I Coríntios 10: 13. [142] Cf. I Coríntios 2: 9. [143] Mateus 7: 8. [144] Cf. Gênesis 28: 15. [145] Cf. Mateus 8: 20. [146] Cf. I Coríntios 10: 24. 33. [147] O homem íntegro; designa o Salmo 118 (119). [148] Esta oração se encontra no ofício bizantino da meia-noite de sábado. [149] Salmo 36 (37): 23. [150] João 15: 5. [151] Um antepasto. [152] I Coríntios 10: 25. [153] Cf. Salmo 21 (22): 19; 88 (89): 18. [154] Cf. Ezequiel 18: 23. [155] Cf. Salmo 50 (51): 19. [156] Cf. Mateus 11: 12. [157] Cf. Êxodo 33: 11. [158] Mateus 6: 9. [159] Livro que contém as orações ditas durante as liturgias dos sacramentos.
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NICETAS STETHATOS Nosso bem-aventurado padre Nicetas, do mosteiro de Studion, viveu ao redor do ano 1030. Ele foi um fiel discípulo de Simeão o Novo Teólogo. Iniciado por este nos numerosos ensinamentos da filosofia espiritual, ele remodelou em si mesmo de tal maneira as virtudes de seu mestre que parece ser uma segunda imagem daquele, com a alma radiante dos reflexos luminosos de seus carismas e de seus ensinamentos. Sem jamais deixar de trabalhar por si mesmo na meditação das Sagradas Escrituras ele colocou por escrito e reuniu um grande número de belos pensamentos. Por meio das Escrituras, não apenas lhe foi concedido tudo aprender, como ainda experimentar todas as coisas, por experiência ou por bem-aventurada paixão. Graças a elas, ele levou seu próprio intelecto a engendrar os frutos sobrenaturais da inteligência divina, em obras de altura e sabedoria imensas. Quem quiser pode julgar sua obra a partir das três centúrias que apresentamos aqui. Se dissermos que elas são uma regra exata da ascese, um guia seguro para o conhecimento, um cumprimento de vida semelhante a Deus, numa palavra, o mais rico tesouro da visão ética e alegórica, teremos dito toda a verdade. Os pensamentos são de tal modo elevados, o fraseado tão sublime e belo, que nos perguntamos de qual das duas, se da inteligência inerente à obra ou se da elegância das palavras, provém tamanha graça nas almas dos leitores. * Nos primeiros anos do século XI, Nicetas – apelidado Stethatos, o corajoso – entrou para o mosteiro de Studion em Constantinopla com a idade de quatorze anos. Ali ele passou toda a sua vida, e foi sem dúvida higoumeno na velhice, por volta de 1080, tendo morrido cerca de 1090. Ele pertence assim a estas gerações de monges que, tendo vivido em grandes comunidades organizadas, e misturando-se aos eventos da história (ele próprio chegou a participar da controvérsia que precedeu os anátemas de 1054) foram, durante séculos a consciência e a profecia da civilização bizantina em Constantinopla. Aqui estamos longe dos Padres do deserto. E, no entanto... A apologia da vida comunitária, em Nicetas, jamais será outra coisa do que uma apologia da interioridade. O deserto consiste finalmente na renúncia à própria vontade. Só uma coisa importa: encontrar o pai espiritual e fazer por ele a vontade do Pai das luzes. O evento crucial da vida de Stethatos foi assim seu breve encontro com Simeão o Novo Teólogo, de quem ele se tornou um jovem discípulo até a morte do santo (em 1022), antes de se tornar mais tarde seu biógrafo e testemunho. Prolongando, ampliando e refinando os ensinamentos da escola do Sinai, a doutrina de Studion assumiu daí por diante a “gestão” desta herança. Mas doutrina “inspirada”, traduzindo sempre e com mais e mais
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precisão onde se encontrava a única necessária, ela conduziu a tradição monástica pelas profundezas – e os cumes – onde seria preparado o novo hesiquiasmo dos séculos XIII e XIV, antes do final da história do mundo bizantino. As lentas elaborações dos Padres do primeiro milênio, que irrigaram a obra de Nicetas, desembocavam na certeza (confirmada por Simeão) de que no coração de toda consagração somente conta a vida do Espírito Santo em nós: não vivemos em Deus senão por intermédio dos dons do Espírito Santo. Simeão e Nicetas são aqui como que as duas faces de um mesmo “signo”. Se é verdade que à inspiração de Simeão Nicetas faz suceder uma síntese intelectual, o Padre Stanisloae está bem fundamentado ao afirmar que mestre e discípulos são indissociáveis. Um e outro são testemunhos de uma experiência pessoal fundamental (a luz do Tabor, para Simeão, e o encontro do Transfigurado, para Nicetas). E ambos são levados pela mesma necessidade de ensinar e partilhar. Nicetas chega mesmo a colocar em paralelo esta necessidade e a hierarquia celeste de Denis o Areopagita. Assim como as ordens angélicas que se aproximam de Deus recebem e transmitem a luz, também Nicetas transmite o testemunho de Simeão. Entre o Sinai do século VII e o Athos do século XIV, suas obras conjugadas significam um mesmo progresso da tradição filocálica. As três Centúrias prática, física e teológica são exemplares sob este aspecto. Nicetas as modelou dentro da antiga trilogia evagriana, que apresenta os três graus da vida espiritual: a ascese do corpo (a ação ou prática), a ascese do intelecto (a contemplação natural ou física) e o arrebatamento da inteligência (o conhecimento místico de Deus, ou teologia). Mas a obra não é linear, e a novidade aflora. Os temas dos capítulos estão repartidos livremente pelas três Centúrias. Entre a ascese e o arrebatamento, o movimento é circular. A alma não descobre no alto a luz, não descobre a beleza, senão para mergulhar no mais fundo da ascese, que lhe permite sentir sempre mais alto uma prévia da luz, uma prévia da beleza. Existe aí uma pequena suma daquilo que é a vida monástica, que consiste sempre num duplo retorno: o retorno do arrependimento por meio da ascese e o retorno da transfiguração pelo arrebatamento. Ao longo de trezentos capítulos Nicetas se dedica a mostrar que os estados não são fechados e que a osmose é contínua. Qualquer que seja o grau de avanço espiritual, as provas e as tentações permanecem sendo a sorte comum. Os graus não existem para definir ou amarrar o ser, mas simbolizam o modo como reagimos às provações. Nada é feito em virtude de uma ordem imanente. Não nos elevamos senão na medida em que nos abaixamos: é o Evangelho. A humildade é fundamental. Os carismas do Espírito Santo não podem ser em nós bens de que possamos nos prevalecer. Nicetas denuncia fortemente todas as dissimulações: as marcas da verdade não estão “nos rostos, nas formas, nas palavras” ou em qualquer coisa que possa ser mascarada, falsificada, mas “nos corações quebrantados, nos espíritos humilhados, nas almas iluminadas”. Paradoxalmente, as lições de vida comunitária conduzem sempre Nicetas à espiritualidade dos Padres do deserto, e esta o reenvia à experiência de Simeão, à sua própria experiência. Não que a hesíquia seja deslocada: ela permanece sendo a pedra angular. Mas ela abre para três estados tangíveis, partilhados e transmissíveis da edificação: a dilatação do fervor, a katanyxis – a compunção ou a ternura dolorosa – e, enfim, a presença do Consolador, a luz incriada. A deificação se transmite assim de homem para homem desde Cristo, “até que todos, unidos no Um, recolhidos juntos na unidade do amor, se unam infinitamente ao único Deus”. Um milênio de transmissão evangélica encontra aqui a afirmação inicial e última do sentido da vida: “ver ao próprio Deus na glória”. Mas um testemunho tão extremo – que relembra o Tabor e anuncia Gregório Palamas – nem sempre foi recebido, Nicetas deplora a incredulidade, a inveja, as calúnias. Pois a luz de Deus, o esplendor do Reino dos céus, não são palavras, mas realidades, tão tangíveis quanto o sol. Alguns a viram, outros não. Os que a viram ficaram deslumbrados, mas transmitiram seu testemunho. Os que não a viram e ouviram falar são
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chamados a crer, a comungar na humildade e no amor. É o que fez Nicetas e o que ele nos convida a fazer. Não é preciso insistir sobre a atualidade de seu ensinamento.
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TII, VII – NICETAS STETHATOS –Primeira centúria (Capítulos práticos).
PRIMEIRA CENTÚRIA CAPÍTULOS PRÁTICOS 1. Existem, penso eu, na tríade perfeita das virtudes[1], quatro causas que levam a quem já ultrapassou a metade do noviciado e que chegou à tríade da teologia mística, a escrever o que é bom. A primeira é a liberdade, ou seja, a impassibilidade da alma que, pelas penas da ação conduz à contemplação natural da criação e daí penetra nas trevas da teologia. A segunda, que provém das lágrimas e da oração, é a pureza do intelecto, da qual nasce a palavra da graça e brotam as ondas dos pensamentos. A terceira é a habitação da Santa Trindade em nós. A partir dela, as efusões luminosas do Espírito se espalham para seu bem em cada um dos purificados, manifestando os mistérios do Reino dos céus e revelando os tesouros de Deus escondidos na alma. A quarta, em todo homem que recebeu o t alento da palavra do conhecimento, é a opressiva necessidade criada pela ameaça de Deus, quando disse: “Servidor mau e preguiçoso, você devia entregar meu dinheiro aos investidores, e no meu retorno eu teria retomado o que é meu com lucro [2]”. É esta necessidade que fez com que Davi dissesse, cheio de temor: “Eu não fecharei meus lábios, Senhor, você bem o sabe. Eu não escondi sua justiça em meu coração. Eu disse a verdade sobre a sua salvação. Eu não escondi seu amor e sua verdade diante da grande assembleia[3]”. 2. O começo da vida conforme a Deus consiste em fugir completamente do mundo. Esta fuga é a renúncia da alma às vontades e a superação dos cuidados terrestres, por meio da qual, apressando-nos em retornar aos cuidados de Deus, de carnais que somos nos tornamos espirituais. Assim morremos para a carne e para o mundo. Mas nossa alma é conduzida à vida, em Cristo e no Espírito. 3. A verdadeira crença da alma em relação a Deus, a fé interior aliada ao desprezo pelas coisas visíveis, a prática da virtude desembaraçada de todo egoísmo, são os três fios da corda de que fala Salomão [4]. Para rompê-la, os espíritos de malícia precisam de muito tempo. 4. Pela fé esperamos receber as recompensas por nossos esforços. É por isso que suportamos com facilidade as penas das virtudes. Cheios de certezas do Espírito divino, sobre as asas do amor nos elevamos para Deus. 5. Não é a partir do momento em que somos perturbados pelos espíritos impuros que fazemos parte daqueles que fazem o mal. É quando a alma relaxa sua tensão, quando, devido a uma vida irresponsável e desordenada o intelecto se enche de imaginações vis e sombrias, quando, por causa da negligência no estudo e na oração falham os esforços pela virtude, é então, mesmo que não o façamos por mal, que nos fixamos no país daqueles que se espojam nos prazeres. 6. Quando são rompidos os freios dos sentidos mais aptos a nos conduzir, logo as paixões se sublevam e a energia dos sentidos mais servis se põe em movimento. Quando a sua irracionalidade rompe os laços da temperança esta energia costuma se lançar sobre as causas das paixões, pastar de certo modo nestas ervas de morte, e tanto mais quanto mais se prolongar o desleixo. Pois, uma vez que ela não tiver mais freios, não mais suportará ser privada das coisas pelas quais sente um desejo natural. 7. Dentre os sentidos, dois – a vista e a audição – são dotados de razão, e mais aptos do que os demais a nos levar à sabedoria e a nos conduzir. Os outros – o paladar, o olfato e o tato – instintivos e selvagens, estão a serviço dos primeiros. De fato, começamos por ver e ouvir. Depois, levados pela razão, tocamos o que está diante de nós, cheiramos e provamos. Os três últimos estão assim mais próximos do animal do que os primeiros: eles são mais grosseiros e servis. São eles que manifestam em primeiro lugar os mais vorazes e impetuosos animais domésticos e feras. Com efeito, noite e dia, ou jamais estão saciados, ou estão à busca de saciar-se.
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TII, VII – NICETAS STETHATOS –Primeira centúria (Capítulos práticos).
8. Quem volta para os sentidos internos a energia dos sentidos externos, que torna a visão para o intelecto contemplando a luz da vida, que vira o ouvido para a compreensão da alma, o paladar para o discernimento da razão, o olfato para a reflexão do intelecto, o tato para a sobriedade e a vigilância do coração, leva uma vida angélica sobre a terra. Este é um homem visível entre os homens, e um anjo inteligível entre os anjos. 9. Através do intelecto que enxerga a luz da vida divina, recebemos o conhecimento dos mistérios ocultos de Deus. Por meio da compreensão da alma, colocamos com todo conhecimento no coração os graus dos raciocínios[5], discernindo o melhor e o pior. Por meio do discernimento da razão, saboreamos as formas dos pensamentos. Alguns nascem de uma raiz amarga: ou nós os transformamos em doce alimento para a alma, ou os rejeitamos totalmente. Outros provêm de uma planta sã e fresca: nós os tomamos, levando todo pensamento cativo à obediência de Cristo[6]. Por meio da reflexão do intelecto sentimos o perfume espiritual da graça do Espírito, enchemos nossos corações de alegria e bem-aventurança. Por meio do coração sóbrio e vigilante nós percebemos com facilidade o Espírito cobrindo de orvalho do alto a chama de nosso desejo de bens, ou aquecendo nossas forças transidas pelo frio das paixões. 10. Assim como o corpo tem cinco sentidos – a visão, a audição, o paladar, o olfato, o tato – também a alma possui o mesmo número: a inteligência, a razão, o sentido intelectual, o conhecimento e a ciência, os quais se ligam na alma a três energias: ao intelecto, à razão e aos sentidos. Por meio do intelecto, recebemos as ideias; por meio da razão, as explicações; e por meio dos sentidos, as visões da ciência e do conhecimento de Deus. 11. Aquele cujo intelecto discerne bem o sentido dos pensamentos e acolhe com toda pureza os desígnios de Deus; aquele cuja razão explica os movimentos naturais de toda a criação visível, ou seja, que ilumina as razões dos seres; aquele cujo sentido intelectual recebe a ciência da sabedoria e do conhecimento celestes; este, ultrapassando toda sensação do flamejamento do Sol de justiça[7], alcança o que está acima dos sentidos e usufrui das delícias do invisível. 12. O intelecto possui quatro potências fundamentais: a percepção, a perspicácia, a compreensão e a diligência. Quem une a estas quatro potências as virtudes fundamentais da alma, unindo a castidade da alma à percepção do intelecto, a reflexão à perspicácia, a justiça à compreensão e a coragem à diligência, constrói para si um carro de fogo de dupla atrelagem que atravessa o céu para combater os três princípios fundamentais que comandam o exército das paixões: o amor pelo dinheiro, o amor pelos prazeres e o amor à vanglória. 13. Quem se afasta do amor ao dinheiro pela compreensão da justiça que a lei ordena, ou seja, pela compaixão misericordiosa para com o semelhante; quem represa o amor aos prazeres pela castidade lúcida, ou seja, pela temperança total; quem combate o amor à vanglória e descobre a fraqueza subjacente a ela pela perspicácia e a reflexão, ou seja, pelo discernimento transparente das coisas divinas e humanas; quem considera que esta glória está ligada à terra, que ela nada vale, e assim a pisoteia com desenvoltura; este homem venceu os cuidados terrestres da carne, a ponto de transformá-la em lei do Espírito da vida. Que trabalhe então para se libertar da lei da carne tirânica, e que diga: “Graças sejam dadas a Deus. A lei do Espírito da vida me libertou da lei e da escravidão da morte[8]”. 14. Quem se arroga a glória dos homens como se ela fosse grande coisa, enquanto ela nada é; quem, por um desejo insaciável da alma, abraça o amor aos prazeres; quem, por avidez, se atira no amor ao dinheiro; este homem se torna demoníaco por presunção e orgulho, ou se torna semelhante aos animais por causa dos prazeres do ventre e do baixo ventre, ou se torna feroz para com seus semelhantes em seu amor ávido e desumano pelo dinheiro. Recebendo a glória dos homens, como diz a Escritura[9], ele perde a fé em Deus. Queimando de desejo insaciável no baixo ventre e cedendo à desordem dos impulsos ele se afasta
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da castidade e da pureza. Não pensando senão em si próprio e nada dando aos seus próximos que são necessitados, ele se exclui da caridade. Assim é que semelhante monstro cujas múltiplas formas se opõem entre si, ele se proíbe de qualquer reconciliação com Deus, com os homens e com os animais. 15. Se o ardor, o desejo e a razão do intelecto se mantêm e se movem por si sós segundo a natureza, eles tornam todo o homem divino e semelhante a Deus, caminhando saudavelmente e nunca se desviando de sua caminhada natural. Mas se, indo contra a natureza, eles se afastam daquilo que deve ser o homem, eles se distanciam de sua própria natureza e fazem dele, como dissemos, um ser multiforme, composto de numerosos elementos opostos entre si. 16. O ardor é intermediário entre o desejo e a razão da alma. É uma espécie de arma que cada qual utiliza em seus movimentos, contra ou a favor da natureza. Quando o desejo e a razão se movem segundo a natureza em direção ao divino, o ardor é para cada um uma arma de justiça[10] contra a serpente única que lhes assopra e lhes propõe tomarem parte dos prazeres da carne e de usufruir da glória dos homens. Mas quando eles se desviam de seu movimento natural, quando desnaturalizam sua potência, quando se afastam do estudo das coisas divinas e se dirigem às coisas humanas, o ardor se torna uma arma de injustiça que serve ao pecado. Por meio dele o desejo e a razão combatem e atacam a quem tenta deter seus impulsos e suas concupiscências. Assim, ou bem o homem se mostra no centro da Igreja dos fiéis como ativo, contemplativo e teólogo eminente – se age de acordo com a natureza – ou se transforma num animal feroz e demoníaco, se se desnaturaliza. 17. Para começar, é preciso, por meio das penas do arrependimento e da tensão da ascese, modificar as potências da alma e torná-las tais como Deus no-las concedeu no princípio, quando criou Adão e nele insuflou o sopro da vida[11]. Caso contrário será impossível que conheçamos a nós mesmos e que adquiramos este pensamento que por si só domina as paixões, modesto, sem curiosidade nem malícia, simples, humilde, isento de inveja e de maledicência, e que conduz toda reflexão cativa à obediência de Cristo[12]. Nem poderemos descobrir nossa própria alma abrasada e inflamada pelo amor a Deus, jamais ultrapassando as fronteiras da temperança, contentando-se com o que lhe é dado e buscando o repouso dos santos. Sem adquirir estas coisas tampouco poderemos possuir um coração doce, manso, calmo, afável, descansado, cheio de compaixão e de alegria. A alma se rebelará contra si mesma e, na confusão de suas potências não guardará em si os raios do Espírito. 18. Quem não se reveste da beleza da antiga nobreza e não retoca continuamente os traços da imagem d’Aquele que o criou do alto à sua semelhança[13], como poderá se unir Àquele de quem se separou por causa da dissemelhança dos traços? Como poderá se unir Àquele que é Luz? Ao extinguir a luz, o homem atrai o contrário sobre si. Ora, se ele não está unido Àquele de quem recebeu o princípio da hipóstase, por meio da qual proveio do não-ser, por meio da qual dominava os demais seres, não será ele rejeitado, dividido que se encontra por não ser semelhante ao Criador? Para os que são capazes de ver isto é claro, ainda que eu me cale. 19. Enquanto trouxermos conosco a matéria das paixões, enquanto cultivarmos em nós suas causas, enquanto não estivermos resolvidos a derrubá-las, sua força nos dominará, e será de nós mesmos que a receberão. Mas quando as rejeitamos de nós, quando purificamos o coração por meio das lágrimas do arrependimento, quando desprezamos a ilusão das coisas visíveis, então participamos da descida do Consolador, vemos a Deus na luz eterna e somos vistos por ele. 20. Aqueles que romperam os laços da sensação de todas as coisas do mundo estão livres da escravidão dos sentidos. Vivendo só para o Espírito, dialogando exclusivamente com ele, dirigidos por ele, graças a ele desenvolvem o costume de se unir apenas ao Pai e ao Verbo consubstanciais, para se tornar um só
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espírito segundo as palavras de Paulo[14]. Não apenas eles já não se submetem aos demônios, como ainda são temidos por eles. Pois ele comungam do fogo divino e se tornam realmente fogo. 21. O tato não é algo parcial no corpo, tendo sua energia num único local como os demais sentidos. Ele é total e se estende a todo o corpo. Assim, quando tocamos algo sem que seja necessário, apreciando sua maciez, levamos o intelecto a sofrer com a perturbação dos pensamentos passionais. Mas quando renunciamos a toda e qualquer suavidade nas coisas da natureza e ultrapassamos a sensação, perdemos o costume de acariciar os sentidos da alma. 22. Quando o intelecto alcança as coisas sobrenaturais, os sentidos se mantêm conforme a natureza. Eles se abrem para as causas fora de qualquer paixão, e não buscam senão suas razões e suas naturezas, discernindo sem erro suas energias e suas qualidades. Eles não são afetados por elas, nem são levados por elas contra a natureza. 23. Os combates e as penas espirituais engendram a alegria na alma. A paz se sobrepõe às paixões. Tudo o que é difícil aos que estão sob o império das paixões se torna fácil e doce quando a alma pena, quando ela adquire o desejo por Deus a partir de seus santos suores, quando ela é ferida pelo amor do conhecimento divino. Pois para quem está ligado ao conforto do corpo e à fruição dos prazeres, as penas e os combates das virtudes são penosos e parecem muito duros. Eles jamais tentaram dissolver a salmoura dos prazeres com o jorro das lágrimas. Mas as penas e os combates são desejados e abraçados pela alma quando esta rejeitou os prazeres que provocam a dor e quando derrubou toda fruição e todo amor ao corpo por si mesmo. A partir daí somente uma coisa entristece a alma: o relaxamento das penas e a ausência de combates. Aquilo que nos demais homens leva à alegria do corpo se torna causa de tristeza para a alma que aponta seu desejo para o divino. E aquilo que para ela é a fonte da alegria espiritual suscita neles gemidos de dor. 24. A todos os que se engajam nos suores e nos combates espirituais, os esforços parecem em princípio engendrar a dor. Mas aos que se dedicam a progredir na virtude e que alcançaram o meio de sua ascese, os mesmos esforços parecem provocar um certo prazer e uma paradoxal facilidade. E quando os cuidados mortais da carne são engolidos pela vida eterna[15], que traz consigo a chegada do Espírito naqueles que mais e mais tendem verdadeiramente para as virtudes finais através das penas, estes últimos ficam cheios de alegria e de regozijo inefáveis. Neles se abre a fonte pura das lágrimas e cai do alto como chuva a doce água da compunção. 25. Se você pretende avançar até as fronteiras da virtude e encontrar aquele que infalivelmente abre para Deus, não conceda sono aos seus olhos, nem alívio às suas pálpebras, nem repouso às têmporas[16], até que você encontre, depois de muitas penas e lágrimas, um lugar de impassibilidade para sua alma esgotada, até que você penetre no santuário do conhecimento de Deus, até que por sua sabedoria anipostática você veja com toda consciência o fim profundo das coisas humanas, e até que, rejeitando as coisas de baixo, você se lance como os cervos, com grande sede, para as altas montanhas[17] da contemplação. 26. Uma maneira rápida de início para adquirir a virtude consiste em manter o silêncio dos lábios, fechar os olhos e tornar surdos os ouvidos. Uma vez que o intelecto encontra este repouso dos sentidos, interditando a entrada a tudo o que vem de fora, ele começa a perceber a si mesmo e a compreender seus próprios movimentos. Logo ele procura conhecer quais reflexões nada no mar inteligível dos pensamentos e quais ideias caem no cadinho de sua meditação, aqueles que provêm do anjo de luz, puras de toda semente amarga, ou as que são enviadas pelos inimigos, misturadas de joio e palha. Ele se instala assim como um rei soberano em meio aos pensamentos, discernindo e separando o melhor e o pior. Aos primeiros, que constituem experiência e cujo movimento os faz entrar, ele os recebe nos celeiros inteligíveis, passados pelo fogo do Espírito e cheios de águas divinas: deles ele se nutre e fica cheio de
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força e de luz. Aos outros, rejeitando seu amargor, ele os envia para as profundezas do esquecimento. Esta é em espírito a obra de quem descobriu o caminho que leva infalivelmente aos céus e a Deus, de quem se despiu da túnica do luto: a vestimenta das paixões tenebrosas. 27. Logo que a alma se desfizer da malícia e da presunção da maldita arrogância, ela rejeita totalmente o egoísmo, uma vez que ela enriquecer o coração simples e inocente com a presença única do Consolador, logo ela estará com Deus e consigo mesma, persuadida de que aquilo que ela vê e entende é fiel e verdadeiro. Pois ela terá superado os terríveis abismos da descrença e terá sido conduzida para além do inferno da inveja. 28. A fé interior precede todas as virtudes. Quando a alma assume a certeza, ela rejeita totalmente o egoísmo. Pois, pelo seu conhecimento, nada entrava tanto a quem acaba de se despojar para os combates da obra dos mandamentos como este mal imenso que é o egoísmo. É ele que impede o progresso daqueles que buscam a virtude. É ele que lhes inflige as enfermidades e os sofrimentos do corpo tão difíceis de curar. Por meio deles o egoísmo esfria o ardor da alma e a convence a abandonar no meio do caminho sua dura ascese, a fim de reencontrar a vida fácil. O egoísmo é o amor insensato do corpo [18]. Ele leva o monge a amar a si mesmo, a amar sua alma, a amar seu corpo. Ele o afasta de Deus e de seu Reino, conforme diz a palavra: “Quem ama sua alma a perderá[19]”. 29. Quem começa a se esforçar para trabalhar nos mandamentos de Deus e, por amor ardente, coloca seu pescoço sob o jugo leve da ascese[20], não economiza a saúde do corpo, não vacila diante do amargor das obras da virtude, não recua diante das penas, não olha a displicência ou a negligência dos demais nos combates. No fervor de seu desejo ele se esforça por traçar a sulco das virtudes e não olha senão para si próprio e para os mandamentos de Deus. A cada dia, entre lágrimas, ele lança as sementes [21] no campo dos vivos[22] até que brote a erva da impassibilidade, que se erga o caule do conhecimento divino, que nasça a espiga carregada de grãos da palavra e que assim surjam os frutos de sua justiça. 30. Nada, penso eu, faz a alma avançar tão depressa e em tão pouco tempo como a simples fé. Não esta fé que temos em Deus e em seu Filho único, mas a fé interior por meio da qual cremos que são verdadeiras as promessas de Cristo (aquilo que ele anunciou e preparou para os que o amam[23]) e as ameaças e castigos do inferno preparadas pelo diabo e seus operários[24]. Esta fé concede à alma dedicada ao combate a certeza da esperança: obter a condição dos santos, sua bem-aventurada impassibilidade, elevar-se até as alturas de sua santidade, com eles herdar o Reino de Deus. Assim coberta de certeza, sem jamais duvidar, a alma se torna cada vez mais ardente em cumprir os mandamentos, ela imita as penas dos santos e, por meio dos mesmos combates, procura alcançar a sua perfeição. 31. O estado exterior do rosto se modifica normalmente conforme o estado interior da alma. O aspecto do rosto revela aos que o contemplam a maneira pela qual o movimento intelectual se faz na alma. Tudo o que o pensamento suscita o modela e modifica. Quando o coração se regozija com as boas inspirações que sobem a ele provenientes da meditação em Deus, o rosto aparece alegre; quando a loucura dos pensamentos o cobre de amargura ele se torna morno e sombrio. Não é possível que a fonte deste movimento permaneça oculta aos que assumem os sentidos experimentados da alma. Pois, ou a mudança provém da direita do Altíssimo[25], e isto lhes é evidente por que eles o conhecem e o amam e por ele o Espírito os fez renascer do alto e os tornou luz e sal para seus próximos; ou a mudança provém da revolta das potências e da perturbação dos pensamentos, e eles percebem isto claramente, pois rejeitam estas coisas e trazem sobre si mesmos a marca da imagem do Filho de Deus na mais alta luz dos carismas divinos. 32. A obra interior ou bem coroa a alma ou bem lhe traz penas e tormentos. Se ela se dedica às coisas divinas e trabalha nos campos da humildade, ela recebe do alto uma chuva de lágrimas e cultiva o amor a
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Deus, a fé no Criador e a compaixão para com o próximo. A partir daí a alma reencontra a beleza da imagem de Cristo. Ela se torna luz para os homens. Pela irradiação das virtudes ela atrai para si seus olhares e conduz todos a glorificar a Deus. Mas se ela agita as coisas inferiores, a decadência, se ela remói o pecado, ela recebe de baixo o mau odor e a obscuridade, cultiva o ódio e a aversão ao bem. Retornando assim à imagem terrestre e informe do homem velho, ela se torna também treva para os que se aproximam. Fazendo e dizendo o mal, ela corrompe as almas simples e frágeis e as leva a blasfemar a Deus. A partir de então ela é presa da morte e encontrará o que tem a receber. 33. Quem cultiva maus pensamentos adquire um rosto triste e sombrio. Sua língua é incapaz de dizer os hinos divinos e ele tem dificuldade em responder aos que o abordam. Mas em quem cultiva as plantas do coração, boas e imortais, a alegria ilumina o rosto. Sua língua canta as orações e ele está cheio de doçura quando fala. Logo fica evidente que um é escravo de paixões impuras e dedicado aos cuidados terrestres sob a necessidade da lei, enquanto que o outro, sob a lei do Espírito, é liberto de tal servidão, como disse Salomão em sua sabedoria: “Quando o coração se regozija o semblante é sereno. Quando coração se entristece, o semblante se torna sombrio[26]”. 34. As paixões que afetam as ações são curadas pela ação. Da mesma forma como a intemperança, o prazer, a gula, a vida negligente e dissipada criam na alma o estado passional e a conduzem a ações tolas e inconsequentes, a pobreza, a temperança, as penas e os combates do intelecto suscitam nela a impassibilidade, e a conduzem do estado passional ao estado impassível. 35. Quando, depois de uma ascese intensa e contínua, alguém recebe grandes dons de Deus por causa de sua humildade, mas depois, atraído para baixo, atirou-se às paixões e aos castigos dos demônios, saiba ele que elevou a si próprio, presunçoso de si, e que assim se revoltou contra os demais. Este homem não encontrará a cura e a libertação das paixões e dos demônios que seguram sua vida senão retornando, pelo arrependimento, ao seu primeiro estado e se ligando a um bom mediador, à humildade e ao conhecimento de suas próprias limitações, por meio das quais todo homem bem estabelecido sobre o fundamento das virtudes se coloca acima de toda a criação. 36. Diante de Deus e dos homens que vivem em Cristo, consiste no mesmo mal ser passional das ações por causa da desordem dos pensamentos ou ser inflado nas virtudes pelo espírito de presunção. Assim como é vergonhoso dizer o que o primeiro faz em segredo[27], também o orgulho do coração do segundo é uma abominação diante de Deus[28]. Assim como um se afasta de Deus por desfrutar da carne que o constitui[29], com forme a Escritura, também o outro está impuro aos olhos do Senhor por ser orgulhoso[30]. 37. A paixão não é em si mesma o pecado ativo. Uma coisa é a paixão, outra o pecado. A paixão é aquilo que é elaborado na alma. A ação pecadora se traduz no corpo. Assim, o amor pelos prazeres, pelo dinheiro, pela vanglória são paixões más da alma. Já a prostituição, a cupidez, a injustiça são ações pecadoras do corpo. A concupiscência, a cólera, o orgulho são paixões da alma, suscitadas pelas potências que vão contra a natureza. O adultério, o assassinato, o roubo, a embriaguez e tudo o que se pode fazer com o corpo, constituem ações pecadoras da carne. 38. Três paixões fundamentais engendram todas as demais, e três ordens se engajam contra elas, combatendo-as e derrubando-as. O noviço, o médio e o perfeito enfrentam assim o dragão de três cabeças: o amor pelos prazeres, pelo dinheiro e pela vanglória. 39. Não é um só e mesmo combate que as três ordens sustentam contra os três poderes e as potências do espírito dominador. Cada qual conduz um combate diferente. Pois cada poder faz guerra a quem se dispõe a lutar contra ele e que se arma naturalmente com o justo valor.
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40. Quem se despoja para sustentar os combates da piedade, aquele que assesta suas primeiras armas contra as paixões, coloca todo o peso de sua luta contra o espírito do amor pelos prazeres. Fortalecido por todas as penas que encara, é contra este espírito que ele se engaja no combate. Ele esgota a carne por meio do jejum, o sono sobre a terra, as vigílias, as preces noturnas. Ele parte sua alma com a lembrança dos sofrimentos do inferno e a meditação da morte. E, com as lágrimas do arrependimento ele purifica o coração das manchas das uniões e dos consentimentos culpáveis. 41. Quem conduziu sua ação até a metade do caminho dos noviços e enxugou com a esponja da primeira impassibilidade os suores de seu combate contra o espírito do amor aos prazeres, acaba de abrir os olhos. Este começa a ver a natureza dos seres. Ele recebe as lágrimas da fé para combater o espírito do pérfido amor ao dinheiro. Ele eleva seu intelecto pela meditação das coisas divinas. Ele afina sua razão sob as razões da criação. Ele expõe à luz a natureza dos seres. Por meio da fé ele conduz sua alma do visível até as alturas do invisível. Ele está convencido de que o Deus que trouxe tudo do nada para a vida supervisiona suas obras, e coloca assim na vida futura todas as suas esperanças. 42. Aquele que por meio da contemplação e da impassibilidade completou mais da metade do caminho e dominou a ilusão da sensação do mundo inteiro, acaba de penetrar nas trevas da teologia, com a razão do conhecimento e a sabedoria[31] anipostática de Deus. Por meio do poder da humildade ele recebe as armas para combater o espírito do amor à vanglória. Nas santas revelações ele penetra a alma de compunção e versa lágrimas fora de toda dor. Ele rebaixa seu pensamento pela lembrança da fraqueza humana e o eleva com as meditações do conhecimento divino. 43. Por meio dos jejuns, das vigílias e das orações, pelo dormir sobre a terra, as penas do corpo e o recolhimento das vontades, na humildade da alma, impedimos a ação do espírito do amor aos prazeres. Submetamo-lo com as lágrimas do arrependimento, levemo-lo à prisão da temperança, imobilizando-o e impedindo-o de agir. Então estaremos no nível dos que se esforçam e combatem. 44. Por meio das lágrimas da fé e do glaivo do Espírito, que é a palavra de Deus[32], cacemos e imolemos o espírito do amor ao dinheiro. Por meio da sabedoria, lancemo-nos imediatamente à contemplação dos seres. Por meio do conhecimento superemos a baixeza das coisas visíveis e, com os tesouros bemaventurados da esperança em Deus, busquemos o repouso nos domínios da caridade. 45. Sobre as asas da impassibilidade e da humildade vogamos pelo espaço da teologia mística. Com o Espírito divino penetramos nos abismos do alto, o abismo do conhecimento dos mistérios de Deus. Com os raios da doutrina e dos pensamentos divinos, consumimos o espírito do amor pela vanglória. Por meio de chuvas de lágrimas e dos rios da compunção contemplamos o fim das coisas humanas, engolimos os três demônios que nos combatem por meio da presunção, da vanglória e do orgulho. 46. Quem detesta de todo coração a concupiscência da carne e a concupiscência dos olhos, o orgulho da vida[33], este mundo de injustiça[34] que amá-lo nos torna inimigos de Deus[35], quem se desligou dessas coisas crucificou o mundo em si e a si mesmo crucificou para o mundo[36]. Ele rompeu na própria carne a inimizade entre Deus e a alma, fazendo a paz entre eles[37]. Morto para as paixões e despojado de todo cuidado para com a carne, ele está de fato conciliado com Deus. Morrendo para os prazeres através de sua vida crucificada para o mundo, ele destrói o ódio do mundo e abraça o amor de Jesus. Este homem já não é inimigo de Deus por amar o mundo, mas ama a Deus por se ter crucificado para o mundo, e assim ele pode dizer: “O mundo está crucificado em mim, e eu para o mundo[38]”. 47. Nos que combatem, todo abandono da parte de Deus procede normalmente da vanglória, da condenação do próximo e da autossuficiência nas virtudes. Se uma destas coisas se aproxima de suas
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almas, provoca logo o abandono da parte de Deus. Estes não escaparão ao justo julgamento de sua falta, a menos que, rejeitando a causa que precedeu ao abandono, se refugiem nas alturas da humildade. 48. A impureza do coração e a sujeira da alma não procedem apenas do fato de não nos termos mantido puros de todo pensamento passional. Elas provêm ainda da autossuficiência à qual nos conduzem tanto as ações direitas, como o orgulho que extraímos das virtudes, a presunção a que somos levados pela sabedoria e o conhecimento de Deus, as reprimendas que fazemos aos irmãos que são negligentes ou irresponsáveis. É o que diz claramente a parábola do Fariseu e do Publicano. 49. Não imagine que você pode se libertar das paixões e escapar da sujeira dos pensamentos passionais que se lhes seguem, se você ainda trouxer em si a arrogância e o ufanismo por causa das virtudes. Pois você não verá a moradia da paz na bondade dos pensamentos nem entrará com alegria no templo do amor com toda simplicidade e serenidade de coração, enquanto confiar em si mesmo e nas suas próprias obras. 50. Se sua alma está afetada até a paixão pelas belas cores dos corpos, se está atormentada por pensamentos passionais que parecem provir daí, não creia que estas belezas sejam a causa da perturbação e do movimento passional que surgiu em você. Pense que a causa está oculta no interior de sua alma, como um ímã que atrai para si, como o ferro, pelo poder do estado passional e pelo mau hábito, aquilo que o leva a se perder quando você contempla os rostos. Pois todas as criaturas de Deus são belas [39] em si mesmas. Não há nelas nada que acuse a criação de Deus. 51. Assim como pessoas que viajam por mar e se encontram doentes não sofrem por causa do mar, mas são afetadas pela natureza da causa que reside nelas – seus humores decompostos – também não é por causa dos rostos, mas do estado do mal onde ele ainda se encontra, que a alma traz em si o tumulto e a perturbação das paixões. 52. A própria natureza das coisas se altera conforme a disposição interior da alma. Quando os sentidos intelectuais estão de acordo com a natureza, quando o intelecto caminha sem erro nas razões das coisas criadas com sua própria razão iluminando suas naturezas e seus movimentos, então as coisas, os rostos, todos os corpos materiais se revelam à alma conformes à natureza, isentos de toda causa oculta de condenação ou de mal. Mas quando estas mesmas potências vão contra a natureza e se revoltam contra si próprias, todas as coisas aparecem à alma como desnaturadas. Elas já não a elevam por sua beleza natural para a compreensão do Criador, mas a fazem descer por seu estado passional até o abismo da perdição. 53. Se você está caído, abandonado, na queda de sua carne, de sua língua e de seu pensamento, se você leva uma existência dolorosa e rude, nada disto deve lhe parecer estranho ou paradoxal. Pois esta queda é sua, e a causa dela está em você. Se você não tivesse primeiro sido presunçoso buscando novidades e cheio de si, se com o coração arrogante você não tivesse se levantado contra um outro, se não o tivesse julgado em sua fraqueza da natureza humana, você não teria sido abandonado ao justo julgamento de Deus por conhecer sua própria fraqueza. Conheça-a agora, para aprender a não mais julgar[40], a não raciocinar mais do que deve[41], a não se levantar contra ninguém[42]. 54. Se você caiu no abismo dos vícios, não se desespere por sua conversão, mesmo que você tenha descido até o último grau do inferno do mal. Pois se anteriormente, por meio das virtudes ativas, você edificou com fervor em si mesmo o fundamento da piedade, ainda que a moradia que esta construiu em você com as diferentes pedras da virtude tenha desabado sob o choque até cair sobre a terra passional dos vícios, Deus não esquecerá suas penas e seus suores de antes, desde que na sua queda seu coração se tenha quebrantado[43], que ele se lembre dos dias de então[44] e que, gemendo, ele evoque sua falta diante do Criador. Seu olhar logo se voltará para você que treme às suas palavras[45], ele tocará invisivelmente os olhos do seu coração doloroso, restabelecerá o fundamento da virtude tão penosamente esmagada em você
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e, no calor do Espírito de fogo, ele lhe concederá um poder mais forte e mais eficaz do que o primeiro, para reconstruir com paciência as obras da virtude derrubadas pela inveja do maligno e refazer com um espírito de humildade sua moradia ainda mais bela do que antes, com vistas ao seu repouso eterno, conforme está escrito. 55. Tudo que nos chega vindo dos homens ou dos demônios e que nos desonra, só nos vem por causa de um justo julgamento de Deus, segundo sua economia, para humilhar o vão ufanismo de nossas almas. Pois para Deus, que dirige nossas vidas, o objetivo é que sejamos sempre humildes, que não raciocinemos além da conta e que tenhamos pensamentos modestos[46]: não sermos presunçosos a nosso respeito, mas voltarmos os olhos para ele e, tanto quanto possível, imitarmos a sua humildade. Pois ele era manso e humilde de coração[47]. É isto que deseja para nós Aquele que por nós sofreu uma morte injusta e infamante. Pois nada é tão caro a ele, nada nos une tanto a ele em virtude, nada nos resgata da névoa das paixões como a mansidão, a humildade e o amor ao próximo. Se não tivermos em nós estas coisas quando trabalhamos pelas virtudes, toda nossa obra será em vão. Todas as penas da ascese serão inúteis, e Deus não nos receberá. 56. Naqueles que dão seus primeiros passos na vida virtuosa o temor do castigo ajuda a cumprir os mandamentos e a fugir dos vícios. Mas naqueles a quem a virtude conduziu à contemplação da glória de Deus, este temor é seguido de outro, ligado ao seu progresso e tanto mais forte na medida em que este provém do amor: este é o temor puro[48]. Este os ajuda a perseverar no amor a Deus evitando as perturbações, tão temerosos ficam de ser rejeitados por ele. Os que se desviam do objetivo que tinham em mãos, mas logo se arrependem e se corrigem, encontram a boa esperança no primeiro temor. Aqueles a quem a inveja do adversário empurrou ao pecado e quem caem das alturas da contemplação de Deus não reencontram logo o segundo temor. Com o primeiro temor, o dos castigos, neles se sucedem brumas e trevas espessas, cheias de desencorajamento, dores e amarguras. Se o Senhor dos Exércitos não lhes abreviasse esses dias de sofrimento insuportável, nenhum dos caídos se salvaria[49]. 57. Quando a alma se liberta do tormento espiritual dos pensamentos passionais, quando se extingue a chama tirânica da carne, saiba que neste momento o Espírito Santo virá a nós anunciando o perdão das faltas passadas e nos concedendo a impassibilidade. Mas enquanto sentimos ainda o odor daquelas faltas vindo do tormento contínuo, enquanto o baixo ventre ainda abrasa a carne, saiba que o perdão do Espírito ainda se acha longe, retido pelos laços das paixões e dos sentidos que somo incapazes de desmanchar. 58. Vi sob o sol, disse o sábio, um homem que pensava tudo saber por si só[50]. Eu o vi durante sua vida mortal confiar em suas próprias obras e se orgulhar da sabedoria humana, terrestre e material [51]. Não apenas, por causa desta sabedoria, ele se insurgia contra os anjos, mas ainda ria e debochava dos eleitos divinos que espalhavam o ensinamento de Cristo, devido ao modo especial como estes se exprimem. Ele os reprovava por não utilizar as firulas do conhecimento profano e por não se aplicarem às cadências rítmicas na composição das palavras na composição de suas obras escritas. Ele ignorava que não é o rebuscamento das palavras nem a harmonia dos sons que Deus prefere e se agrada, mas a clareza das ideias. Eu me lembrei do provérbio: “Mais vale cachorro vivo do que leão morto[52]”. E: “Mais vale uma criança pobre e sábio da que um rei velho e insensato que já não consegue estar atento[53]”. 59. A paixão da blasfêmia é perigosa e difícil de combater. Ela tem suas raízes no pensamento orgulhoso de Satanás. Ela perturba os que vivem em Deus pela virtude, e em primeiro lugar os que progridem na oração e na contemplação das coisas divinas. É por causa dela que devemos vigiar os sentidos com toda sobriedade e vigilância, reverenciar todos os mistérios terríveis de Deus, todas as imagens e palavras sagradas, evitando a irrupção desse espírito. Ele nos espicaça quando oramos e cantamos e, se não estivermos atentos, vomita sobre nós maldições por nossos lábios e sobre Deus Altíssimo blasfêmias infames que Satanás introduz nos versos dos salmos e nas palavras da prece. Quando ele leva tais coisas
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aos nossos lábios, quando as semeia em nossos corações, devemos voltar contra ele as palavras de Cristo, dizendo: “Afaste-se de mim, Satanás[54], cheio de mau odor e passível do fogo eterno. Que sua blasfêmia recaia sobre sua cabeça”. No cativeiro em que nos encontramos, apliquemos logo nosso intelecto a outra coisa qualquer, divina ou humana, que naquele instante esteja diante de nós, elevando-a entre lágrimas aos céus e a Deus. Assim, com a ajuda de Deus, poderemos nos livrar do fardo da blasfêmia. 60. A tristeza da alma e do corpo é uma paixão que corrompe. Ela penetra até a medula. A tristeza do mundo, a tristeza que vem das coisas passageiras, afunda os homens chegando mesmo a leva-los à morte. Mas a tristeza segundo Deus é salutar e de grande auxílio[55]. Ela suscita a paciência nas penas e nas tentações. A quem combate, a quem tem sede da justiça de Deus[56], ela abre a fonte da compunção. Ela nutre o coração com lágrimas. Nela se cumpre a palavra de Davi: “Você nos deu de comer um pão de lágrimas, e em lágrimas plenas nos deu de beber o vinho da compunção[57]”. 61. As partes da alma decaídas pela ação dos vícios são restauradas por meio da tristeza segundo Deus, que as chama de volta à ordem natural. Com efeito, através das lágrimas ela dissipa de tal modo o inverno das paixões e as nuvens do pecado, a tal ponto os afasta do espaço inteligível da alma, que ela logo se torna como um céu claro nos pensamentos de nossa inteligência, como uma calmaria no oceano de nossas reflexões, como uma alegria em nossos corações, como uma mudança na aparência de nosso rosto. Os que percebem esta mudança e fazem repousar sobre si de certo modo sua aparência e seu estado interior, podem repetir o que disse Davi: “Esta é a mudança operada pela destra do Altíssimo[58]”. 62. Não receba aqueles cujas insinuações semeiam pensamentos contra o próximo em você: estes são mentirosos que enganam e arruínam, saiba-o. É assim que o demônio tenta empurrar para o abismo da perdição as almas daqueles que já avançaram nas virtudes. Pois eles não conseguem mandar para o abismo da danação e do pecado ativo nenhum dos que combatem, senão lhes fazendo suspeitar maldosamente da conduta exterior e do estado da alma do próximo. Assim, eles os expõem ao julgamento e à queda pelo pecado e os tornam condenados com o mundo, conforme as palavras: “Se não julgarmos, não seremos julgados. Mas, se formos julgados, seremos castigados pelo Senhor, a fim de não sermos condenados com o mundo[59]”. 63. Quando, por negligência, damos espaço para os demônios para que murmurem em nosso ouvido suspeitas contra os irmãos, por que manifestamente não vigiamos os movimentos dos nossos olhos, podemos acabar condenando aqueles que são perfeitos em virtudes. De fato, se a alegria de um rosto sorridente e a afabilidade lhe parecem concessões aos prazeres e às paixões, da mesma forma todo rosto sombrio o morno deve significar para você que transpira cólera e que está cheio de orgulho. Mas não devemos prestar atenção aos traços humanos: é perigoso para qualquer um julgar estas coisas. Na verdade, existem nos homens numerosas diferenças de naturezas, de estados, de situações corporais, que só podem ser observadas e julgadas corretamente por aqueles cujo olhar espiritual da alma foi purificado por muita compunção e que trazem em si a luz infinita da vida divina. Somente a este é dado conhecer os mistérios do Reino de Deus[60]. 64. Se nos tornamos como aqueles que cumprem as más obras da carne, servimos ao desejo contra a natureza e o ardor da alma. De um lado, sujamos a carne[61] sob os influxos impuros do pecado e, de outro, cobrimos a alma de trevas sob a amargura do ardor e nos tornamos estranhos ao Filho de Deus. Será preciso então, por meio de um fluxo de lágrimas vindo de todo nosso ser, purificar as manchas do fluxo do ser que sai do corpo. Pelo escoamento natural, o prazer manchou o corpo; pelo escoamento natural das lágrimas, o sofrimento da tristeza deve purifica-lo novamente. Por meio da luz da compunção e da doçura do amor conforme a Deus devemos expulsar as trevas debaixo das quais a amargura do ardor cobrira a alma, e nos unirmos outra vez Àquele de quem havíamos sido separados.
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65. Assim como a sujeira que provém do prazer precede o amor satânico no cumprimento do vício, também a purificação que provém da tristeza dolorosa aquece o coração para que o luto e as lágrimas o preencham. Tal é a economia da bondade de Deus para conosco. Rejeitando e purificando as penas do prazer pelas penas da dor e o fluxo vergonhoso da carne pelo fluxo das lágrimas, apagamos do intelecto as imagens dos vícios e da alma as imagens informes. Assim tornamos a alma mais luminosa em sua beleza natural. 66. Assim como aquele que prostitui seu corpo sob a ação do espírito maligno que colhe o prazer da carne – e assim seus vícios culminam na imundície – também aquele que é animado desde o alto pelo Espírito Santo colhe a alegria da alma, e sua beleza culmina na purificação das lágrimas, num novo nascimento, na união que conduz a Deus. 67. Os dois fluxos naturais presentes em nós – a semente e as lágrimas – provêm do mesmo ser. Mas com o primeiro sujamos a túnica da alma, com o segundo a purificamos. Devemos lavar a sujeira de nosso ser com as lágrimas, que escorrem deste mesmo ser. É impossível de outro modo obter a purificação do lamaçal da natureza. 68. Toda disposição da alma faltosa, assim que esta é levada pelo vício, destrói seu esforço por um breve prazer. Mas toda alma que se purifica do mau hábito e de sua disposição para o mal acrescenta aos seus esforços um longo prazer de alegria. Este é o milagre. O prazer que impede o prazer torna doce a dor que engendra o prazer. 69. O fluxo das lágrimas se traduz no sentido intelectual do coração, tanto pela amargura e a pena como pela alegria e o regozijo. Quando nos purificamos pelo arrependimento do veneno e da imundície do pecado, as lágrimas abrasadoras como fogo divino nos vêm naturalmente sob o calor do fogo. Nosso pensamento é como que golpeado por rudes marteladas. Nos gemidos que sobem do fundo do coração sentimos em espírito e realmente a amargura e as penas. Mas quando, suficientemente purificados pelas lágrimas, chegamos a nos liberar das paixões, então o Espírito divino nos consola, nosso coração se torna sereno e puro, somos cumulados de prazer e de doçura inefável pelas lágrimas de alegria, as lágrimas da compunção. 70. Umas são as lágrimas do arrependimento, outras as da divina compunção. As primeiras são como um rio que transborda e arrebenta os diques do pecado. As segundas estão na alma como a chuva sobre a erva dos campos, como uma tempestade sobre as plantas[62]: elas nutrem a espiga do conhecimento, fecundamna e a fazem frutificar. 71. As lágrimas e a compunção não são a mesma coisa: entre elas existe uma grande distância. As lágrimas provêm da conversão dos hábitos e da lembrança das antigas faltas da alma: elas são como o fogo e a água fervente que purificam o coração. A compunção vem do alto, do orvalho divino do Espírito: ela consola e alivia a alma que acaba de entrar com fervor no abismo da humildade, que recebeu a contemplação da luz inacessível, e que, como Davi, diz a Deus em sua alegria: “Nós passamos pelo fogo e pela água, e você nos tirou de lá para nos aliviar[63]”. 72. Ouvi alguns dizer que não é possível alcançar o estado de virtude sem partir para longe, sem fugir para o deserto. Fiquei espantado de que o ilimitado pareça ter que se limitar a um lugar. Pois se o estado de virtude consiste na restauração das potências da alma em sua nobreza primitiva e na conjunção das virtudes fundamentais reunidas na energia conforme a natureza, isto não vem a nós do exterior como uma coisa estrangeira, mas nos é dado pela criação, segundo um sentido divino e espiritual. Levados por estas potências e com elas é que entramos no Reino dos céus. Ora, este Reino está em nós [64], disse o Senhor. Portanto, o deserto é supérfluo, uma vez que sem ele entramos no Reino por meio do arrependimento e
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observando totalmente os mandamentos de Deus. O Reino pode estar em qualquer lugar aonde reine o Senhor. É o que disse o divino Davi: “Bendiga minha alma ao Senhor, em todos os lugares de sua soberania[65]”. 73. Se alguém em pleno campo real é protegido e cercado por generais e capitães, mas na batalha não consegue manifestar sua fúria e seu ardor diante dos adversários, nem colocar nenhum deles em fuga, como combaterá sozinho em meio a tantos inimigos, como conduzirá o combate, ele que é tão ignorante a respeito da guerra? Ora, o que é impossível nas coisas humanas é muito mais impossível nas coisas divinas. Quem, fugindo para o deserto, conhecerá as incursões dos demônios, os ataques secretos ou declarados das paixões? Quem lá irá combatê-los, sem ter antes se exercitado em destruir em si as vontades próprias no meio da assembleia dos irmãos, sob a condução de um padre experiente nessa guerra invisível e espiritual? Se não for assim, é totalmente impossível a tal homem combater por outros ou ensinar aos outros como vencer os inimigos invisíveis. 74. Despoje-se da vergonha da negligência e do reproche dos mandamentos de Deus. Rejeite o egoísmo. Afronte a carne sem dó. Procure as ordens de Deus[66] e os seus testemunhos. Despreze tanto a glória como a desonra. Deteste a concupiscência e os prazeres do corpo. Fuja da saciedade, que inflama o baixo ventre. Abrace a pobreza e a vida rude. Erga-se contra as paixões. Volte seus sentidos para o interior da alma. Incline seu coração para que faça a obra mais alta. Mantenha-se surdo para as coisas humanas. Esgote toda sua força no cumprimento dos mandamentos. Chore, durma sobre o chão duro, jejue, se esforce ao máximo, viva na hesíquia, enfim, ignore o que no rodeia, mas conheça a si mesmo. Eleve-se acima da baixeza das coisas visíveis. Abra para a contemplação de Deus os olhos de seu intelecto. Veja na beleza das criaturas as delícias do Senhor[67]. Depois desça de lá, para contar aos seus irmãos as coisas da vida eterna, os mistérios do Reino de Deus. Esta é a obra da fuga em relação aos homens, por meio de uma ascese extrema, e o cumprimento da vida no deserto. 75. Se você quiser ver os bens que Deus preparou para aqueles que o amam[68], dirija-se ao deserto da renúncia à sua própria vontade e fuja do mundo. De qual mundo? Da concupiscência dos olhos, da carne[69], da presunção dos pensamentos, da ilusão do visível. Se você fugir deste mundo, logo a luz se levantará sobre você, logo você verá a vida divina, e os remédios de sua alma – as lágrimas – brotarão rapidamente[70]. Você será transformado pela mudança da direita do Altíssimo[71], e a inundação das paixões já não se aproximará de sua tenda[72]. Passando sua vida em pleno mundo e no meio das pessoas, você estará como no deserto e não mais verá os homens. Mas se você não fugir assim deste mundo, a simples fuga do mundo visível não lhe trará nada que o possa levar à perfeição das virtudes e à união com Deus. 76. Tornar-se monge não implica viver fora dos homens e do mundo, mas sim colocar-se fora das vontades da carne e partir para o deserto das paixões. É neste sentido que foi dito a um grande monge: “Fuja dos homens e será salvo[73]”. E depois de sua fuga ele permaneceu no meio dos homens e vivia em lugares habitados com seus discípulos. Em sua fuga sensível ele buscara ardentemente a fuga inteligível, e a companhia dos homens não lhe fazia mal algum. Outro grande monge disse a mesma coisa ao sair da assembleia: “Fujam, irmãos”. Mas quando lhe perguntaram do que falava, ele apontou a boca[74]. 77. Viver junto em comunidades é mais seguro do que a solidão. A vida comunitária é necessária. A santa palavra de Jesus nosso Deus testemunha isto: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles[75]”. Quanto ao perigo da solidão, disse Salomão: “Infeliz do homem só. Quando ele cai não há ninguém para levantá-lo[76]”. Davi chama de bem-aventurados os que celebram no amor e na concórdia, quando diz: “Bem-aventurado o povo que conhece a aclamação[77]”. Ele também louva a vida em comum: “Eis que é bom e doce para os irmãos viver juntos[78]”. Também os discípulos do Senhor eram
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uma só alma e um só coração[79]. E a descida de Deus não se fez no deserto, mas numa cidade, no meio de homens pecadores. A concórdia da vida em comum é necessária. A solidão é precária e perigosa. 78. “É preciso que haja escândalo, mas ai daquele por cujas mãos vier o escândalo[80]”. Aquele que perdeu a piedade e vive no meio da assembleia dos irmãos sem amar nem temer a Deus é um escândalo para muitos dentre os mais simples, seja por seus atos, sua atitude, sua conduta perversa, seja por suas palavras, sua conversação depravada. Ele corrompe as almas, as disposições boas e virtuosas[81]. 79. Quem mantém os mandamentos de Deus jamais se torna pedra de escândalo [82] para os homens, pois não é através dele que vem o escândalo. “Grande é a paz daqueles que amam a lei, neles não existe escândalo[83]”. Estes são luz, sal e vida, como disse o Senhor: “Vocês são a luz do mundo e o sal da terra[84]”. Eles são luz, pois suas vidas são virtuosas, suas palavras claras e sábia sua inteligência. São sal, pois grande é seu conhecimento divino e poderosa neles é a sabedoria de Deus. São vida, pois através de suas palavras eles reanimam os que estavam mortos nas paixões e os levantam do inferno do desespero. Pela luz das obras de sua justiça, aqueles que guardam os mandamentos brilham diante dos homens e os iluminam. Pela doçura e a precisão de suas palavras, eles os afirmam longe da vaidade e os afastam da podridão das paixões. Tudo o que dizem é tão vivo que eles trazem para a vida as almas mortas sob o pecado. 80. A paixão da vanglória é um tridente – a vanglória, a presunção e o orgulho – passada ao fogo e forjada pelos demônios. Mas os que permanecem sob a proteção do Deus do céu a reconhecem com facilidade e quebram suas pontas. Eles voam acima dela com sua humildade, e repousam sobre a Árvore da vida. 81. Quando este demônio impuro e hábil se atirar sobre você logo que você começar a progredir na virtude, quando ele predisser a altura dos tronos, quando, através de suas insinuações, ele refrescar sua memória e gabar suas obras acima das obras de outros, quando ele o fizer ouvir que você é capaz de conduzir as almas, detenha-o em espírito e não o deixe fugir, se você recebeu do alto o poder de fazê-lo. Conduza-o consigo em imaginação até o pecado que você cometeu outrora, coloque-o a nu diante de si e diga-lhe: “Aqueles que fizeram tais coisas são dignos de se elevar à altura dos primeiros lugares? Parecem-lhe capazes de conduzir as almas e leva-las a salvo até Cristo? Diga o que tem a dizer. Eu me calo”. E o demônio não poderá responder-lhe, e se esvairá de vergonha como fumaça. Ele já não terá força para perturbá-lo. E mesmo que você jamais tenha feito ou dito coisa que descaracterize sua vida sobrenatural, compare-se com os mandamentos e os sofrimentos do Senhor. Você descobrirá que está tão distante da perfeição quanto uma bacia d’água está do mar. Pois a justiça dos homens está tão longe da justiça de Deus quanto está do céu a grandeza da terra, ou o mosquito do leão. 82. Naquele que já foi ferido em profundidade pelo amor de Deus, as forças do corpo estão aquém do desejo. Pois seu desejo não se satisfaz com as penas e os suores da ascese. Ele é como quem tem muita sede: o fogo do desejo é insaciável. Dia e noite ele tem sede de penar, mas quanto às forças do corpo ele é vencido. É assim, penso eu, que os mártires de Cristo, investido desta paixão sobrenatural, não sentiam os tormentos nem tinham preguiça de a tudo enfrentar. Eles dominavam a si próprios sob o amor abrasador que sentiam por Deus, e se consideravam sempre aquém do desejo ardente que sentiam por sofrer. 83.Quem, de um modo ou de outro, se compara aos irmãos que praticam a ascese e que com ele vivem, se ilude sem sabê-lo[85]. Ele caminha por um caminho que não é de Deus. Pois ou bem este homem não conhece a si mesmo, ou se desviou do caminho que conduz aos céus, esta via que é seguida por aqueles que, recusando o orgulho, buscam de todo coração, e por meio da qual, superando as armadilhas do inimigo, conquistam o espaço inteligível sobre as asas da impassibilidade, e, vestidos de modéstia, passam sua vida numa primavera nos lugares luminosos.
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84. Quem possui um coração inflado e enganado pela presunção não obterá jamais a graça da humildade à luz da compunção, que concede aos corações quebrantados a luz do conhecimento de Deus, conforme está escrito: “Na sua luz vemos a luz[86]”. Mas a noite das paixões o encobrirá, ali onde rondam os animais da floresta[87] da natureza humana, onde os leõezinhos, os filhos da presunção – falo do demônio da vanglória e da prostituição – procuram rugindo ao quê devorar e engolir em seu ventre de desespero. 85. Quando alguém vive segundo os homens, quando é levado pelo espírito da presunção, sua conduta e sua vida presente se tornam um oceano de males, submergindo sob as ondas salgadas dos prazeres a reflexão de sua alma, e batendo com as vagas selvagens das paixões, desencadeadas pelos espíritos de malícia, suas três potências. Seu navio e o leme da alma são destruídos pelos prazeres da carne, e o intelecto que os conduz desaparece no abismo do pecado e da morte espiritual. A dura ansiedade de um imenso desencorajamento se estende sobre ele, até que este oceano de males acalme suas ondas e se torne nele um abismo de humildade, uma calmaria, e que a maré salgada dos prazeres transforme suas águas em chuvas de lágrimas e o conduza ao prazer da compunção luminosa. 86. Aquele que se sujeitou até a saciedade aos prazeres e às obras do corpo, que se atire agora até a saciedade às penas da ascese e aos supres da vida dura. Esta saciedade reverterá em você a outra saciedade, a dor reverterá o prazer, as fadigas do corpo reverterão o conforto. Você encontrará o repouso na saciedade da alegria e do regozijo. Assim você desfrutará do bom odor da castidade e da pureza, provará do inefável prazer dos frutos imortais do Espírito. Pois devemos lavar na medida de sua sujeira as vestes que queremos purificar, quando a sujeira se torna tão espessa que elas se ficam inutilizadas. 87. As enfermidades são úteis àqueles que dão seus primeiros passos na vida virtuosa. Elas os ajudam a esgotar e humilhar a carne ardente. Elas diminuem o vigor da carne e depuram o sentido terrestre da alma. Eles tornam sua energia mais intensa e mais forte, segundo as palavras do Apóstolo divino: “Quando eu sou fraco, é aí que sou forte[88]”. Mas na mesma medida em que são úteis aos noviços, elas são nocivas aos que já avançaram nas penas e nas virtude, aos que já superaram os sentidos e se elevaram até as contemplações celestes. De fato, elas os impedem de se dedicar às coisas de Deus, elas dobram sob as dores e as aflições as reflexões de sua alma, elas a perturbam sob nuvens de desencorajamento, elas esgotam a compunção sob a aridez das penas. Paulo sabia disto, tanto a lei do discernimento o tornara atento a si mesmo, e dizia: “Eu tratei duramente meu corpo e o sujeitei, por medo de que, depois de haver pregado aos outros, eu mesmo seja rejeitado[89]”. 88. A maior parte cai doente devido a uma alimentação irregular e desigual, ou então pelo jejum extremo e as penas das virtudes que tentam sem medida nem discernimento aqueles que buscam a Deus. Às vezes o inimigo natural – a gula e a saciedade – os arrastam. Assim, a temperança é necessária aos que se engajam no caminho da virtude, tanto quanto aos que já ultrapassaram o meio da ascese e levam os combates até os mais altos graus da contemplação. Pois a temperança é a mãe da saúde, a amiga da castidade, a boa esposa da humildade. 89. Saiba que a impassibilidade é dupla e que ela vem sobretudo de duas maneiras para os que buscam a Deus. A primeira impassibilidade lhes é concedida quando neles se completa a filosofia ativa. Num combate regular[90], esta progride por meio de numerosos caminhos de penas. Ela começa por destruir as paixões e deter os impulsos da carne. Ela dá às potências da alma seu movimento natural. Ela restabelece o intelecto no estudo consciente das coisas divinas. É então, a partir das primícias da contemplação natural, que a segunda impassibilidade, mais perfeita, se segue com naturalidade. Elevada da hesíquia intelectual dos pensamentos ao estado apaziguado do intelecto, ela a transporta ao mais alto discernimento, à mais alta vidência profética: ao mais alto discernimento das coisas divinas, nas visões do melhor, nas revelações dos mistérios de Deus; à mais alta vidência profética, nas coisas humanas que vêm
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de longe e que devem acontecer. Em tudo, um só e mesmo Espírito age[91], dominando e retendo na primeira impassibilidade, mas libertando na segunda a liberdade da vida eterna, como disse Paulo[92]. 90. Quem se aproxima das fronteiras da impassibilidade, que possui uma visão correta de Deus e da natureza dos seres, que, da beleza das criaturas se eleva na medida de sua pureza até o Criador, este recebe as efusões luminosas do Espírito. Ele possui uma boa opinião a respeito de todos, ele pensa sempre no bem de todos, em todos ele vê a santidade e a pureza, e seu juízo é sempre correto a respeito das coisas, tanto divinas como humanas. Ele não deseja nada do que buscam os homens na matéria do mundo. Com o intelecto despojado da sensação do mundo inteiro, ele se eleva para os céus e para Deus, puro de toda mancha, livre de toda servidão. Ele está inteiramente votado para os bens espirituais de Deus no único Espírito, ele contempla a beleza divina, ama permanecer nos lugares divinos da glória bem-aventurada de Deus, no silêncio e na alegria inefáveis. Com todos os sentidos transfigurados, como um anjo num corpo de terra, ele conduz os homens a uma vida desembaraçada da matéria. 91. A razão sabe que a ascese possui também cinco sentidos: a vigília, o estudo, a prece, a temperança e a hesíquia. Quem os une a seus próprios sentidos – unindo a vista à vigília, o ouvido ao estudo, o olfato à prece, o paladar à temperança e o tato à hesíquia – purifica rapidamente a inteligência de sua alma, e refinando-a por meio deles, alcança a impassibilidade e o discernimento. 92. O intelecto impassível é aquele que dominou suas paixões e que está acima da tristeza e da alegria. Ele não é mais ensombrecido pelas tristezas advindas das infelicidades, nem relaxa quando o coração está feliz. Ele conduz a alma a se regozijar nas aflições e a ser temperante no regozijo, jamais ultrapassando as medidas. 93. Grande é o furor dos demônios contra os que progridem na contemplação. Noite e dia eles lhe deitam armadilhas. Por meio daqueles que os cercam, eles lhes suscitam duras tentações. Eles os cobrem de ruídos para assustá-los e os atacam durante o sono, por que invejam seu repouso. Eles os afligem de todas as maneiras, embora sejam incapazes de prejudicar aqueles que se consagraram a Deus. Se o Anjo do Senhor que domina o universo não estivesse lá para guarda-los, eles não escapariam aos seus embustes e às armadilhas da morte. 94. Quando você combate para possuir em si a filosofia ativa da virtude, tome muito cuidado com os embustes fatais dos demônios. Quanto mais você se elevar nas altas virtudes, mais crescerá em você durante a oração a luz divina, mais você descobrirá as revelações e as visões inefáveis que o Espírito concede, e mais os demônios, vendo-o subir aos céus, rilharão os dentes e se apressarão a estucar no espaço inteligível as redes retorcidas de sua malícia. Não apenas soprarão sobre você os demônios selvagens do desejo e do ardor que amam a carne, mas também, em sua inveja amarga, se levantarão contra você os demônios da blasfêmia. Depois, manifestos ou ocultos, os demônios que, em seu voo, circulam pelo espaço, as potestades e os poderes, se dirigirão à sua imaginação despojada, assumindo formas estranhas, terríveis, para confundi-lo tanto quanto puderem, Mas, aplicado à obra intelectual da prece sob o olhar vigilante do intelecto, e, exercitando-se nos pensamentos da contemplação natural das criaturas de Deus, você não temerá suas flechas que voam de dia. Pois eles não poderão se aproximar de sua tenda[93], expulsos como as trevas pela luz que existe em você, e consumidos pelo fogo divino. 95. A graça do Espírito divino amedronta os espírito de malícia, sobretudo quando nos é dada em abundância ou quando somos purificados pela meditação e a prece pura. Não ousando se aproximar da moradia dos que são assim iluminados, os espíritos de malícia tentam assustá-los e perturbá-los com imaginações, ruídos terrificantes, vozes confusas, para roubá-los à obra da vigília e da prece. E quando os monges dormem sobre o chão duro, eles não poupam nenhum artifício. Invejando o monge que repousa de
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suas penas, eles lhe deitam armadilhas, o agitam, roubam o sono de suas pálpebras. Por meio de tais manobras eles tornam sua vida mais difícil e cheia de dor. 96. Os espíritos das trevas se encarnam, ao que parece, de maneira muito sutil, como a experiência permite à razão supor. Ou bem eles criam esta ilusão quando a sensação dissimula, ou foram condenados a isto por causa da queda original. Eles assaltam a alma que combate, quando o corpo que lhe está sujeito se volta para o sono. Disto, penso eu, a alma possui alguma experiência, caso tenha dominado a baixeza do corpo. Seu ardor e sua coragem se revelam pela maneira como ela se opõe àqueles que, em sua cólera e grande furor, a ameaçam com coisas terríveis. A alma, ferida pelo amor de Deus, e armada com as virtudes fundamentais, não apenas opõe a eles uma justa cólera, como ainda os fustiga, se é que neles existe, ao que parece, alguma sensação, a partir do momento em que tornaram inexoravelmente terrestres, decaídos da luz primeira, a luz divina. 97. Antes de agredir e vencer, os demônios perturbam os sentidos da alma e roubam o sono das pálpebras. Mas a alma a quem o Espírito Santo encheu de resolução e coragem considera como nada seus ataques e sua fúria amarga, e, apenas com o sinal da cruz vivificante e a invocação de Jesus Deus, dissipa seus fantasmas e os coloca em fuga. 98. Se você deixar a filosofia ativa para recolher os despojos dos espíritos contrários, olhe ao redor de si e vigie para trazer consigo as armas do Espírito. Pois você conhece aqueles cujas armas se dispõe a buscar. Trata-se de inimigos, mas inteligíveis e incorpóreos, enquanto você permanece sempre num corpo para combater por Deus, pelo Rei dos espíritos. Saiba que são eles que o atacarão primeiro e mais fortemente, e serão numerosos a lhe deitar suas armadilhas. Se você se descuidar ao buscar seus despojos eles se servirão deles para prendê-lo e encherão sua alma de amargura. Ou então o submeterão a vícios e tentações dolorosas que representarão o espinho e o mal em sua carne[94]. 99. Uma boa fonte não pode jorrar águas turvas e nauseabundas exalando a matéria do mundo. E um coração fora do Reino dos céus não poderá jamais fazer brotar de si as ondas da vida divina exalando o bom odor da mirra inteligível. Como foi dito, pode uma fonte fazer jorrar da mesma abertura o doce e o amargo? Uma moita de espinhos pode dar azeitonas, e uma oliveira pode dar figos[95]? Assim é que a mesma fonte do coração não pode produzir ao mesmo tempo um mau pensamento e um bom pensamento. Mas o homem bom extrai do bom tesouro de seu coração aquilo que é bom. O homem falso extrai do mau tesouro de seu coração o que é mau[96], disse o Senhor. 100. Assim como sem azeite nem fogo a lâmpada não se acende nem ilumina os que estão na casa[97], sem o Espírito e o fogo divino é impossível à alma exprimir claramente as coisas de Deus e iluminar os homens. Pois todo dom perfeito vem do alto, do Pai das luzes, derramando-se sobre toda alma que ama a Deus. Nele, diz a Escritura, não existe nenhuma mudança, nenhuma sombra de variação[98].
[1] As virtudes teologais: fé, esperança e caridade. [2] Mateus 25: 27. [3] Salmo 39 (40): 10-11. [4] Cf. Eclesiastes 4: 12. [5] Cf. Salmo 83 (84): 6. [6] Cf. II Coríntios 10: 5. [7] Cf. Mateus 3: 20. [8] Romanos 8: 2.
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[9] Cf. João 5: 44. [10] Cf. Romanos 6: 13; II Coríntios 6: 7. [11] Cf. Gênesis 2: 7. [12] Cf. II Coríntios 10: 5. [13] Cf. Gênesis 1: 26. [14] Cf. I Coríntios 6: 17. [15] Cf. II Coríntios 5: 4. [16] Cf. Salmo 131 (132): 4. [17] Cf. Salmo 103 (104): 18. [18] Cf. Máximo o Confessor, Centúria sobre o Amor, II, 8. [19] João 12: 25. [20] Cf. Mateus 11: 30. [21] Cf. Salmo 125 (126): 5. [22] Cf. Salmos 26 (27): 3; 141 (142): 6. [23] Cf. I Coríntios 2: 9. [24] Cf. Mateus 25: 41. [25] Cf. Salmo 76 )77): 11. [26] Provérbios 15: 13. [27] Cf. Efésios 5: 12. [28] Cf. Provérbios 16: 5. [29] Cf. Gênesis 6: 3. [30] Cf. Provérbios 16: 5. [31] Cf. I Coríntios 12: 8. [32] Efésios 6: 17. [33] Cf. I João 2: 16. [34] Cf. Tiago 3: 6. [35] Cf. Tiago 4: 4. [36] Cf. Gálatas 6: 14. [37] Cf. Efésios 2: 15-16. [38] Gálatas 6: 14. [39] Cf. Gênesis 1: 31. [40] Cf. Mateus 7: 1. [41] Cf. Romanos 12: 3. [42] Cf. I Coríntios 4: 6. [43] Cf. Salmo 50 (51): 19. [44] Cf. Salmo 142 (143): 5. [45] Cf. Isaías 66: 2. [46] Cf. Romanos 12: 3. [47] Cf. Mateus 11: 29. [48] Cf. Salmo 18 (19): 10. [49] Cf. Mateus 24: 22. [50] Provérbios 26: 12. [51] Cf. Tiago 3: 15. [52] Eclesiastes 9: 4. [53] Eclesiastes 4: 13. [54] Lucas 4: 8. [55] Cf. II Coríntios 7: 10. [56] Cf. Mateus 5: 6. [57] Salmo 79 (80): 6. [58] Cf. Salmo 76 (77): 11.
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[59] II Coríntios 11: 31-32. [60] Cf. Mateus 13: 11. [61] Cf. Judas, 8. [62] Cf. Deuteronômio 32: 2. [63] Salmo 65 (66): 12. [64] Cf. Lucas 17: 21. [65] Salmo 102 (103): 22. [66] Cf. Salmo 118 (119): 56. [67] Cf. Salmo 26 (27): 4. [68] Cf. I Coríntios 2: 9. [69] Cf. I João 2: 16. [70] Cf. Isaías 58: 8. [71] Cf. Salmo 76 (77): 11. [72] Cf. Salmo 90 (91): 10. [73] Sentenças dos Padres do deserto. Arsênio 1. [74] Idem, Macário 16. [75] Mateus 18: 20. [76] Eclesiastes 4: 10. [77] Salmo 88 (89): 16. [78] Salmo 132 (133): 1. [79] Cf. Atos 4: 32. [80] Mateus 18: 7. [81] Cf. I Coríntios 15: 13. [82] Cf. I Romanos 9: 33. [83] Salmo 118 (119): 165. [84] Mateus 5: 13-14. [85] Cf. Gálatas 6: 3. [86] Salmo 35 (36): 10. [87] Cf. Salmo 103 (104): 20. [88] II Coríntios 12: 10. [89] I Coríntios 9: 27. [90] Cf. II Timóteo 2: 5. [91] Cf. I Coríntios 12: 11. [92] Cf. Romanos 8: 21. [93] Cf. Salmo 90 (91): 5. [94] Cf. II Coríntios 12: 7. [95] Cf. Tiago 3: 11-12. [96] Lucas 6: 45. [97] Cf. Mateus 5: 15. [98] Cf. Tiago 1: 17.
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SEGUNDA CENTÚRIA CAPÍTULOS FÍSICOS Da purificação do intelecto 1. O começo do amor a Deus consiste no desprezo pelas coisas visíveis e humanas. O meio consiste na purificação do coração e do intelecto. De onde vêm o desvelamento intelectual dos olhos deste intelecto e o conhecimento do Reino dos céus oculto em nós[1]. O fim é a irresistível tensão amorosa que nos leva aos dons de Deus acima da natureza, e o desejo natural da união com Deus para o repouso nele. 2. Onde se encontram o amor a Deus, a obra das coisas inteligíveis e a comunhão com a luz inacessível, lá estão também a paz das potências da alma, a purificação o intelecto e a habitação da Santa Trindade em nós. “Quem me ama, foi dito, guardará minhas palavras e meu Pai o amará e nós viremos até ele, e nele faremos nossa morada[2]”. 3. A razão conhece três estado de existência: carnal, psíquico espiritual. A cada um destes estados corresponde um modo de vida que lhe é próprio, que se distingue por si mesmo e difere dos demais. 4. O estado carnal da existência está inteiramente voltado para os prazeres e o desfrute da vida presente. Nele nada há que pertença ao estado psíquico ou ao estado espiritual, e nenhuma vontade de adquirir seja o que for destes estados. O estado psíquico, que é uma fronteira entre o vício e a virtude, cuida do corpo, cuida para torná-lo forte, considera o louvor dos homens. Ele recusa as penas da virtude e também foge das ações da carne. Ele não se liga ao vício, mas, por razões opostas, também não se liga à virtude. À virtude, por causa daquilo que nela existe de rude e penoso. Ao vício, para não perder o louvor dos homens. O estado espiritual da existência escolhe nada saber dos dois primeiros estados para não cair nos seus males. Ele é totalmente livre diante deles. Conduzido pelas asas de prata do amor e da impassibilidade ele voa acima dos outros estados e nada faz do que é proibido, fugindo da inércia dos vícios. 5. Os que vivem para a carne e trazem em si os cuidados com a carne não passam de carne. Não há como agradarem a Deus[3]. Seus pensamentos são tenebrosos. Eles não recebem os raios da luz divina: as nuvens das paixões escondem dele esta luz. Eles têm ao redor de si como que altos muros que detêm a claridade do Espírito. Assim, permanecem na obscuridade. Os sentidos de sua alma estão enfermos. Eles não conseguem erguer os olhos para as belezas inteligíveis de Deus, nem ver a luz da verdadeira vida, nem superar a baixeza das coisas visíveis. Como que transformados em animais e não possuindo senão a sensação do mundo, eles entravam a dignidade da razão com as coisas sensíveis e humanas. Estes homens combatem e lutam entre si apenas para obtê-las, e por nada além delas, pelas quais chegam a perder suas almas, agarrados que estão ao dinheiro, à glória, aos prazeres da carne, pensando que a mera falta destas coisas lhes trará um grande mal. Justamente por sua causa foram ditas por Deus estas palavras proféticas: “Meu Espírito não permanecerá nestes homens, por que eles são carne[4]”. 6. Os que vivem psiquicamente – e por isso são chamados psíquicos – são muitas vezes meio loucos. Seus membros estão como que paralisados. Eles jamais se decidem a penar por uma virtude ou por um mandamento de Deus. Por causa da glória dos homens eles evitam as ações vergonhosas. Dominados pelo egoísmo, este mal que nutre as paixões funestas, colocam todo empenho na saúde e no desfrute da carne: recusam toda aflição, toda pena, todo esforço duro para conquistar a virtude. Eles confortam além da medida o corpo que nos combate. Tal vida, tal conduta, fazem com que seu intelecto pesado de paixões se torne terrestre. Eles estão completamente fechados para as coisas do intelecto, para as coisas de Deus por meio das quais a alma é retirada da matéria e elevada em direção aos céus inteligíveis. Embora tomados
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pelo espírito da matéria eles amam suas próprias almas e escolhem fazer suas vontades. Vazios do Espírito Santo, eles se privam também dos seus carismas. A partir daí, é impossível ver-se neles algum fruto divino, nem o amor a Deus e ao próximo, nem a alegria na pobreza e nas aflições, nem a paz da alma, a fé interior, a temperança total, e menos ainda a compunção, as lágrimas, a humildade, a compaixão. Todo seu ser está cheio de orgulho e vaidade. Eles não têm a capacidade de cavar as profundezas do Espírito. Não há neles luz que os guie, que lhes abra a inteligência e os leve a compreender as Escrituras [5]. Mas tampouco eles suportam que estas coisas lhes sejam ditas. O Apóstolo os denunciou com justeza: “O homem psíquico não recebe as coisas do Espírito. Ele as considera como loucura. Ele não sabe que a lei é espiritual e que somos julgados pelo Espírito[6]”. 7. Os que caminham segundo o Espírito[7] e assumem totalmente a vida espiritual agradam a Deus. Eles se consagram a Deus como os nazireus[8]. Por meio de suas penas, sempre e sempre, eles purificam suas almas, guardam os mandamentos do Senhor, se esvaziam do próprio sangue por amor a ele. Por meio dos jejuns e das vigílias eles purificam a carne. Com suas lágrimas, afinam a espessura do coração. Mortificam seus membros na vida dura. Por meio da prece e do estudo, eles cumulam o intelecto de luz e o tornam claro. Pela renúncia às vontades, separam suas almas das paixões do corpo, e passam a depender inteiramente apenas do Espírito. Por isso eles não apenas são reconhecidos como espirituais, mas são também assim chamados. Alcançando a impassibilidade e o amor, eles se elevam como que com asas até a contemplação do criado. A partir daí, eles recebem o conhecimento dos seres através da sabedoria oculta em Deus[9], que é dada somente aos que superaram a baixeza do corpo. Como igualmente ele ultrapassaram toda sensação do mundo e foram introduzidos naquilo que está além da sensação por meio do intelecto iluminado, eles iluminam a razão. No centro da Igreja de Deus e na assembleia dos fieis [10] eles proferem palavras benfazejas com o coração puro. Eles se tornam para os homens sal e luz, como disse o Senhor: “Vocês são a luz do mundo e o sal da terra[11]”. 8. “Parem e conheçam que eu sou Deus[12]”. Aqueles que quiserem sabe o que significa aqui a palavra divina. A quem rejeitou de uma vez por todas as desordens da terrível vacuidade da existência para se tornar daí em diante profundamente atento a si mesmo e viver na hesíquia, o mais importante será considerar cuidadosamente as coisas interiores e buscar conhecer a Deus em si. Pois o Reino de Deus está em nós[13]. Se fizermos isto todo o tempo, poderemos apagar da alma as marcas da malícia e sermos salvos por aquele que restabelece integralmente a beleza original. 9. A malícia nos enche de veneno. O fogo que nos purifica pelas lágrimas tem forte necessidade do arrependimento e das penas voluntárias da ascese. Pois somos purificados das manchas do pecado, seja pelas penas voluntárias, seja por aquelas que nos chegam malgrado nossa vontade. Se nos adiantamos e assumimos as penas voluntárias, não sofreremos as seguintes. Mas se as primeiras não purificam o interior da taça e do prato[14], serão as outras quem com mais e maior violência, nos restabelecerão no estado original. Assim ordenou o Criador. 10. Brincam com a piedade e são manipulados pelas coisas, aqueles que não levaram até o fim a própria renúncia conforme à razão, que não quiseram buscar mestre nem guia desde o início e preferiram seguir sua própria consciência, acreditando-se sábios aos próprios olhos[15]. 11. Ninguém sabe exatamente as causas das doenças que nosso corpo sofre, nem os remédios necessários, se não possuir uma grande experiência médica. E ninguém conhece as causas das enfermidades da alma se se dedicar a uma longa ascese. Se, com efeito, o conhecimento das doenças do corpo, objeto da ciência médica, parece incerta e não se aprende senão pouco a pouco, o conhecimento das enfermidades da alma é ainda mais incerto. Na mesma medida em que a alma é maior do que o corpo são também suas paixões maiores e mais difíceis de conhecer do que as doenças do corpo, que são visíveis aos olhos de todos.
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12. As virtudes fundamentais que comandam o resto foram colocadas no homem por natureza. É a partir delas, como que de quatro fontes, que os rios[16] de todas as outras virtudes se enchem de água e irrigam a cidade de Deus[17], que é o coração purificado, consolado pelas lágrimas. Aquele que as guardou firme contra o ataque dos espíritos do mal, ou que as levantou com seus esforços quando elas foram derrubadas, construiu para si uma morada real e um palácio, onde o Rei do universo fará para si uma morada [18] e partilhará, concedendo em abundância, seus mais elevados dons àqueles que para isto tanto se prepararam. 13. Breve é a existência, longo o século futuro, curto o tempo da vida presente. O homem é este vivente grande e ínfimo, tão fraco, pois o tempo presente lhe foi concedido para durar bem pouco. Assim, o tempo é curto e o homem é fraco. Mas grande é o combate proposto para adquirir a recompensa, através de milhares de espinhos e dos riscos de uma vida extremamente breve. 14. Deus não quer que o trabalho dos que o buscam se dê sem esforço, mas que eles passem por grandes provas. Por isso ele envia o fogo das tentações. Há momentos em que ele reduz a graça que lhes envia desde o alto e permite que a serenidade dos pensamentos seja perturbada de tempos em tempos pelos espíritos de malícia, para ver até onde os pode levar o impulso da alma, se na direção de seu criador e benfeitor ou se para a percepção do mundo e a facilidade do prazer. Assim, ou bem ele duplica a graça sobre ele, se progredirem em seu amor, ou os golpeará com tentações e aflições se se ligarem às coisas, até que sintam aversão pela ronda errante das coisas visíveis e apaguem com suas lágrimas a amargura dos prazeres daqui de baixo. 15. Uma vez que a paz dos pensamentos foi perturbada pelos espíritos de malícia, logo os demônios que amam a carne e que nos perseguem começam a lançar as flechas incendiárias[19] da concupiscência contra o intelecto que corre para as alturas. O intelecto, atingido em sua elevação, cai em movimentos impróprios e confusos, a carne começa a se sublevar contra o espírito, derrubando o intelecto a poder de excitação e febres e procurando enterrá-lo sob um abismo de prazer. Se o Senhor dos Exércitos não abreviasse estes dias e não concedesse aos seus servidores a força da paciência, nenhuma carne se salvaria[20]. 16. O demônio fraudador e enganador da prostituição é para alguns queda e poço de lama, para outros chicote e vergasta de justiça, para outros ainda provação e tormento da alma. Queda e poço para os noviços que carregam mole e negligentemente o jugo da ascese. Chicote e vergasta para os que já percorreram a metade do caminho progredindo na virtude, mas que relaxam seu esforço. Provação e tormento para aqueles a quem as asas do intelecto já conduziu até a contemplação e que se lançam daí para a impassibilidade mais perfeita. Em outras palavras, tudo está organizado desde o alto para o bem de cada um. 17. O demônio da prostituição leva à queda e ao poço de lama os que passam a vida solitária e indiferente. Ele queima seus membros na chama da prostituição e da concupiscência. Ele lhes fornece meios perversos para satisfazer a vontade da carne sem se unir a outra carne, coisa que não se pode descrever nem conceber sem vergonha[21]. Estes homens mancham sua carne[22], conforme foi dito, eles comem os frutos de um prazer amargo, enchem seus olhos de trevas e, por sua falta, se afastam do melhor. Mas os que quiserem encontrarão remédio no fervor do arrependimento e na compunção das lágrimas, que suscita a fuga para longe do mal, purifica a alma da sujeira e lhe concede a herança da compaixão de Deus. O sábio Salomão dá isto a entender quando diz que o remédio acalma os grandes pecados[23]. 18. Este espírito é justamente chicote a vergasta para aqueles que, por meio da filosofia ativa, atingiram a primeira impassibilidade e que daí por diante progridem para as coisas avançadas e mais perfeitas. Com efeito, quando, por negligência, eles relaxam a tensão de sua ascese, quando se deixam levar, por pouco que seja, a buscar sem reservas a sensação do mundo, assim desejando as coisas humanas, então a extrema bondade de Deus por eles permite que aquele que os agride se lance contra eles e comece a feri-los por
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meio de pensamentos da concupiscência da carne do homem que pensa no mundo. Se eles não o suportam, se retornam rápida e diligentemente para a cidadela de seu esforço me de sua atenção por meio de uma conduta voltada às penas, eles assumirão com ainda mais resolução as obras de salvação. Pois Deus ama o bem. Ele não deseja que a alma que chegou até aí se volte inteiramente para a sensação do mundo, mas que ela prossiga adiante e se ligue ardentemente às obras mais perfeitas a fim de que o chicote do mal não se aproxime de sua tenda[24]. 19. Este mesmo espírito, dentro da economia divina, constitui uma provação, um cardo, um tormento para aqueles a quem a primeira impassibilidade conduziu à segunda, a fim de que, perturbados pela prova, eles se lembrem da sua fraqueza natural e não se orgulhem da eminência das revelações que lhes foram dadas contemplar, conforme foi dito[25]. Vendo aquele que combate a lei de seu intelecto[26], eles derrubarão a simples lembrança do pecado, por medo de receber dele a sensação de sujeira que ele engendra, e de relaxar a visão das alturas que seu intelecto contempla. 20. Os únicos capazes de guardar o intelecto da perturbação causada pela simples lembrança do pecado são aqueles que foram considerados dignos de receber do alto, por intermédio do Espírito, a morte vivificante do Senhor[27] em seus membros e seus pensamentos. Eles obrigam a carne a morrer para o pecado, mas enriquecem de vida o espírito pela justiça[28] que está em Cristo Jesus. A inteligência de Cristo é concedida por uma palavra de sabedoria[29] àqueles em que se encontra imperturbável a morte vivificante, no conhecimento de Deus. 21. O espírito de concupiscência e de ardor costuma atacar as almas que acabam de se purificar. De que maneira? Fazendo cair os frutos do Espírito Santo com os quais estão carregadas. Pois a alegria da liberdade suscita uma efusão nestas almas. E a sabedoria que ordena tudo para seu bem e que quer sempre por intermédio de seus carismas atrais para si seus pensamentos e guardá-los inquebráveis na humildade para que eles não se elevem acima dos outros por causa de sua grande liberdade ou pela riqueza de seus carismas, ou ainda para que não tenham a presunção de possuir este grande palácio de paz por seu próprio poder e conhecimento, esta sabedoria permite àqueles espíritos assaltá-los, restringindo sua paz. A partir daí, atirados ao medo da quedam eles vigiam por guardar a bem-aventurada humildade. Tendo aprendido que estão ligados à carne e ao sangue, eles agira buscam naturalmente a fortaleza interior na qual possam se guardar sem prejuízo pelo poder do Espírito. 22. Conforme nos domina a doença das paixões, conforme a podridão do pecado se instala em nós, nos assaltam as tentações. Então a mistura que nos derrama a taça de absinto dos juízos de Deus nos parecerá mais amarga ou mais doce. Pois se a matéria do pecado que está em nós – vale dizer, os pensamentos que nos levam ao amor pelo prazer ou ao amor por esta vida – é curável e sara com facilidade, o médico de nossas almas derramará também a compaixão no copo de tentações que nos oferece, pois são doenças humanas que experimentamos, e são coisas humanas que sofremos. Mas se a matéria do pecado é incurável, se está enraizada, se os pensamentos de presunção e de extremo orgulho secretam a podridão que conduz à morte, o copo nos é dado sem mistura, no amargor da cólera, para que a doença, consumida pelo fogo de sucessivas tentações, reduzida pela humilhação, se retire de nossas almas, para que assim apaguemos com lágrimas a amargura dos pensamentos e estejamos puros à luz da humildade na visão do médico de nossas almas. 23. Aqueles que combatem não conseguem escapar das tentações sucessivas senão reconhecendo sua própria fraqueza e considerando a si próprios como afastados de toda justiça, indignos de toda consolação, de toda honra, de todo repouso. O objetivo de Deus, do médico de nossas almas, é que nos tornemos sempre humildes e aflitos, estranhos a todos os homens, e que imitemos seus sofrimentos. Pois ele era manso e humilde de coração[30], e é nesta mansidão e humildade de coração que ele deseja que percorramos o caminho de seus mandamentos.
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24. Não são as macerações, o cabelo sujo, as vestes descuidadas, grosseiras e rasgadas, estas coisas nas quais muitos encerram toda a virtude, que conduzem à humildade, mas o coração quebrantado e o espírito de rebaixamento, como disse Davi: “A um coração quebrantado e humilhado, Deus não desprezará[31]”. 25. Uma coisa é a humildade da linguagem, outra a humildade exterior e outra ainda a humildade do coração. Por todos os sofrimentos que aguentam e pelas penas exteriores que a virtude tem que suportar, os que combatem alcançam a humildade da linguagem e a humildade exterior, que juntas reúnem a obra e a ascese do corpo. Mas muitas vezes sua alma carece de firmeza e quando encontra a tentação fica perturbada. Mas a humildade do coração, que é coisa divina e altíssima, não vem senão àqueles que ultrapassaram a metade da ascese e que receberam em si o Consolador. Vale dizer que estes já percorreram, através de toda a humildade exterior, o duríssimo caminho da virtude. 26. A humildade do coração penetra até as profundezas da alma, caindo sobre ela como uma pesada pedra. Ela a esmaga e pressiona tanto mais quanto mais ela esgota sua força no fluxo irresistível das lágrimas, na medida em que ela purifica o intelecto de toda a sujeira dos pensamentos, na medida em que a alma alcança, como Isaías, a visão de Deus, e exclama: “Infeliz que sou, estou perdido! Pois sou um homem de lábios impuros e vi com meus olhos o Rei, o Senhor dos Exércitos[32]!”. 27. Quando a humildade da linguagem se enraíza em você, então se afastará o falatório orgulhoso. Quando se enraizar a humildade exterior nas profundezas do seu coração, a humildade da linguagem, seja ela superficial ou profunda, será afastada de você. E quando você receber do alto a riqueza da humildade do coração, tanto esta humildade exterior quanto a da linguagem serão apagadas. É o que disse Paulo: “Quando o perfeito chega, o parcial desaparece[33]”. 28. Tanto está distante o oriente do ocidente[34] quanto está a verdadeira humildade da linguagem da verdadeira humildade exterior. E tanto maior é o céu do que a terra e a alma do que o corpo, também a humildade de coração concedida aos perfeitos pelo Espírito Santo é maior e mais perfeita do que a humildade exterior. 29. Não creia que é fácil a alguém que fala humildemente e que se reveste das formas da humildade exterior ser humilde de coração, nem que alguém que fala dando-se ares e orgulhosamente, cheio de presunção e vaidade escapará aos tormentos trazidos por estes vícios. Você os reconhecerá por seus frutos[35]. 30. Os frutos do Espírito Santo são o amor, a alegria, a paz, a bondade, a paciência, a bem-aventurança, a fé, a mansidão, a temperança[36]. Os frutos do espírito contrário são o ódio, a inquietude do mundo, a inconstância da alma, a perturbação do coração, a malícia, a curiosidade, a negligência, a cólera, a incredulidade, a inveja, a gula, a embriaguez, o ultraje, a condenação, a concupiscência dos olhos [37], a vaidade e a presunção da alma. É por tais frutos que você conhecerá a árvore[38]. E é assim que você poderá saber a qual espírito pertence quem se aproxima de você. A palavra do Senhor lhe fornece os mesmos sinais, e com maior clareza ainda: “O homem bom extrai do bom tesouro de seu coração aquilo que é bom. O homem mau extrai do mau tesouro do seu coração aquilo que é mau[39]”. Pois o fruto depende da árvore. 31. Assim é que a morada de Deus está naqueles em que vivem e se revelam os dons do Espírito Santo. Estes homens têm em si a fonte pura da palavra cheia de sabedoria e conhecimento, quer os ouçamos falar as coisas mais humildes ou as mais elevadas. E naqueles em que não se revelam os frutos do Espírito Santo, mas os frutos do espírito contrário, nestes estão as trevas da ignorância de Deus, o enxame das paixões, a morada dos adversários, quer falem humildemente e vistam roupas simples, quer digam coisas elevadas e se vistam elegantemente e com todas as aparências da nobreza.
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32. Não é nos rostos, nas formas ou nas palavras que reconhecemos as marcas da verdade. Não é aí que Deus repousa. Ele está nos corações quebrantados[40], nos espíritos humilhados[41], nas almas iluminadas pelo conhecimento divino. Às vezes, alguém a quem vemos se rebaixar quando fala, em tudo dizer as coisas mais humildes e em tudo buscando o louvor dos homens, por dentro está cheio de presunção, mentiras, inveja e rancor contra o próximo. E outro a quem vemos combater pela justiça com palavras grandiloquentes, erguer-se contra a mentira e a transgressão das coisas divinas e não considerar senão a pura verdade, por dentro é todo comedido, humilde, cheio de amor ao próximo. Às vezes vemos até alguém que se glorifica no Senhor, como Paulo se glorificava no Senhor quando dizia: “Eu me glorifico nas minhas fraquezas[42]”. 33. Deus não olha a aparência do que dizemos ou fazemos, mas considera apenas a disposição de nossas almas, o objetivo pelo qual cumprimos um ato visível ou expressamos um pensamento. Também aqueles que se distinguem dos demais por sua consciência consideram acima de tudo o poder das palavras e a finalidade das obras, e desta maneira asseguram seus julgamentos. “O homem observa o rosto. Mas Deus vê o coração[43]”. 34. Deus considerou que, geração após geração, seus profetas e seus amigos jamais deixariam de ser preparados pelo Espírito para a edificação de sua Igreja[44]. Pois se o velho dragão nunca deixou de vomitar nos ouvidos dos homens o veneno do pecado que atira a alma para a morte, como aquele que criou cada um de nossos corações[45] não poderia ressuscitar o indigente da terá da humildade ou não resgataria o pobre do braseiro[46] das paixões, trazendo a espada do Espírito[47] que é a palavra de Deus para socorrer a sua herança? Os que começam pela humildade, os que renunciam a si mesmos são aqueles que se elevam às alturas do conhecimento. Do alto a palavra da sabedoria lhes é dada pelo poder de Deus. Pois eles anunciam à sua Igreja a boa nova da salvação[48]. 35. Conheça a si mesmo. Tal é a verdadeira humildade, a que ensina a ser humilde internamente, a que quebranta o coração: aquela sobre a qual devemos trabalhar, e que devemos guardar[49]. Se você ainda não se conhece, você tampouco sabe o que é a humildade, você ainda não alcançou o verdadeiro trabalho, a verdadeira guarda. Pois conhecer a si próprio é o fim da obra das virtudes. 36. Aquele que, através da pureza, alcançou o conhecimento dos seres, conhece a si próprio, conforme foi dito: conheça a si mesmo. Mas quem ainda não atingiu o conhecimento das próprias razões da criação, das coisas divinas e humanas, conhece apenas o que está ao seu redor, o que está fora de si, mas não conhece absolutamente a si mesmo. 37. O que eu sou não é o que está em mim; o que está em mim não é o que está ao redor de mim; e o que está ao redor de mim não é o que está fora de mim. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Eu mesmo sou a imagem de Deus, pois fui concebido como uma alma intelectual, imortal, dotada de razão, pois eu possuo a inteligência que engendra a razão e que é indivisível, consubstancial com a alma. O que está em mim, que reina e comanda, é a razão e a liberdade. O que está ao redor de mim é o que eu escolhi ser: lavrador, comerciante, professor ou filósofo. O que está fora de mim diz respeito às ambições da existência e à nobreza terrestre, a riqueza, a glória, a honra, a prosperidade, a dignidade, ou seus contrários, a pobreza, a rejeição, a desonra, a infelicidade. 38. Quem conhece a si mesmo repousa de todos os trabalhos que fez em Deus. Este penetrou no santuário de Deus, na liturgia intelectual do Espírito. Ele alcançou o porto divino da impassibilidade e da humildade. Mas quem ainda não se conhece pela humildade do coração e a ciência, avança sempre através das penas e dos suores desta vida. É o que Davi quis dizer com: “Existe uma pena diante de mim, até que eu penetre no santuário de Deus[50]”.
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39. Para conhecer a si mesmo é necessário se proteger do exterior, abstrair as coisas do mundo e perscrutar a consciência. Logo uma divina humildade vira subitamente fazer sua morada na alma, mais elevada do que a razão, quebrantando o coração e provocando as lágrimas de uma fervorosa compunção. Que, é arrastado por ela passa a se considerar como terra e cinzas[51], verme e não homem[52], sequer digno da vida animal, tão sublime é este dom de Deus. E se lhe for concedido permanecer nela, ele será cumulado de uma outra embriaguez inefável, a embriaguez da compunção. Ele penetrará nas profundezas da humildade do coração e, fora de si, considerará como nada os alimentos exteriores, mesmo que não ultrapasse a necessidade de beber e cobrir o corpo. Pois ele terá sido transformado pela boa transformação da direita do Altíssimo[53]. 40. A humildade é a maior de todas as virtudes de que necessitamos. Naqueles em quem ela se implanta por meio de um arrependimento límpido, tomando por companheiras a oração e a temperança, ela logo liberta da escravidão das paixões, traz paz às suas forças, purifica seu coração com lágrimas e os enche de felicidade na medida em que o Espírito neles faz sua morada. Quando eles alcançam este estado, veem claramente a razão do conhecimento de Deus, chegam à contemplação dos mistérios do Reino dos céus [54] e das próprias razões da criação. Quanto mais eles mergulham nas profundezas do Espírito, mais afundam no abismo da humildade do coração. A partir daí cresce neles a consciência de suas próprias medidas. Eles conhecem a fraqueza da natureza humana e transbordam de amor por Deus e pelo próximo, mas também consideram como uma santificação ser retirados desta única ligação e da presença daqueles dentre os quais vivem. 41. Nada concede tantas asas à alma em seu amor a Deus e sua caridade para como os homens como a humildade do coração, a compunção e a prece pura. A primeira quebranta o espírito, o faz encher-se de lágrimas, permite que veja a brevidade da vida humana e ensina a conhecer a fraqueza de nossas medidas. A segunda purifica o intelecto de toda matéria, ilumina o olho do coração e torna a alma inteira luminosa. Enfim, a terceira une todo o homem a Deus, o faz partilhar do alimento dos anjos, lhe dá a provar a doçura dos bens eternos de Deus, lhe concede os tesouros dos grandes mistérios e, queimando de amor, o convence a ousar dar sua própria vida por aqueles a quem ama[55], uma vez que ele tenha ultrapassado os limites da humildade exterior do corpo. 42. Proteja o bom depósito[56] da enriquecedora humildade. Nele se encontram os tesouros ocultos do amor[57] e aí estão também conservadas as pérolas da compunção. Na humildade, o Rei, Cristo Deus repousa como num trono coberto de ouro, partilhando os dons de seu Espírito Santo com aqueles a quem nutre, concedendo-lhes grandes honrarias: a palavra do conhecimento, a sabedoria inefável, a visão das coisas divinas, a visão profética das coisas humanas, a morte vivificante através da impassibilidade, enfim, a união consigo e o reinar consigo no Reino de Deus Pai, como ele próprio pediu por nós quando disse: “Pai, aqueles que você me deu, eu quero que eles estejam aonde eu estou[58]”. 43. Quando um homem se esforça para colocar em movimento os mandamentos e subitamente se sente levado a uma alegria inexprimível, inefável, a ponto de ser transportado pela graça de uma transformação estranha que ultrapassa a razão, de ser liberto do peso do corpo, e esquecer alimento, sono e outras necessidades da naturezas, saiba ele que nisto está a chegada de Deus, que concede a morte vivificante aos que combatem e lhes dá mesmo aqui em baixo a condição de anjos. A humildade é quem introduz nesta vida bem-aventurada; a santa compunção é sua ama-de-leite; a contemplação da luz divina, amiga e irmã; a impassibilidade é seu trono; e ao final, a Santa Trindade, que é Deus. 44. Quem conquistou esta acrópole já não pode ser entravado pelos laços das coisas sensíveis. Ele não considera mais nada das delícias desta vida, nem distingue mais o sagrado do profano. Assim como Deus dá a chuva e o sol da mesma forma a justos e injustos, maus e bons [59], também ele faz erguerem-se os raios do amor e os distribui sobre todos; seu coração não é estreito, em seu seio o amor existe para todos.
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Ele sofre e se atormenta apenas por não poder fazer todo o bem que gostaria. Dele parte, como no Éden[60], uma fonte de compunção, que se divide também em quatro correntes: a humildade, a pureza, a impassibilidade, as alturas da prece ininterrupta. E ela irriga a superfície de toda a criação intelectual de Deus. 45. Aqueles que não provaram da doçura das lágrimas da compunção, que não sabem qual é sua graça e qual a sua energia, pensa que elas não diferem em nada das lágrimas que vertemos pelos mortos. Eles imaginam toda espécie de outras razões vãs e de pensamentos cheios de dúvida; isto é natural. Mas quando o orgulho do intelecto se inclina para a humildade, quando a própria alma fecha seus olhos para a ilusão do visível e a volta exclusivamente para a contemplação da luz primigênia imaterial, quando ela derruba toda sensação do mundo e recebe do alto a consolação do Espírito, logo as lágrimas correm como provindas de uma fonte de água, cobrindo de doçura seus sentidos e cumulando seus pensamentos de alegria e luz divina. Enfim elas quebrantam o coração e conduzem o humilde intelecto à visão do melhor. Isto é impossível àqueles que se lamentam e se atormentam de outras maneiras. 46. É impossível abrir a fonte das lágrimas sem uma profunda humildade do coração, ou ser humilde sem a compunção que provém do Espírito quando este vem habitar em nós. Pois a humildade engendra a compunção e esta engendra a humildade pelo Espírito Santo. Unidas uma à outra numa mesma e única graça, elas possuem entre si, como uma cadeia, o laço do Espírito que nada pode romper. 47. A luz que o Espírito divino acende na alma normalmente se retira diante da irresponsabilidade, da negligência, do excesso de palavras e de alimentos. O excesso de comida, a moleza da vida, a intemperança da língua, a imprudência dos olhos são, com efeito, de natureza a expulsar da alma a luz e nos tornar tenebrosos. Uma vez que nos tornamos tenebrosos, os animais dos campos[61] do nosso coração e os leõezinhos, os pensamentos passionais, vêm para rugir neles, desejando os alimentos das paixões e procurando como nos roubar[62] o tesouro do Espírito que foi depositado em nós. Mas a temperança verdadeiramente bem-amada e a oração que nos tornam semelhantes aos anjos não apenas impedem que eles consigam cercar a alma como ainda mantêm ao redor do intelecto a luz inextinguível do Espírito, tornando o coração sereno; elas são a fonte pura da compunção divina e abrem a alma ao amor de Deus e, através da alegria e da virgindade elas se unem por completo a Cristo por inteiro. 48. Nada está tão próximo do Verbo como a pureza e a castidade da alma. A mãe delas é a temperança bem-amada que as abraça por inteiro. O pai da temperança é o temor. O temor voltado para o desejo e unido ao apelo das coisas divinas liberta a alma de todo medo, a enche de amor a Deus e a engravida do Verbo divino. 49. Primeiramente o temor unido à alma concebe nela por meio do arrependimento a razão do julgamento. Logo as dores dos tormentos do inferno a cercam[63], o coração se fecha, os gemidos e as penas esgotam a retribuição dos vícios que o futuro reserva. Depois, através de muitas lágrimas e esforços, a alma leva a cabo no seio do intelecto o espírito de salvação que concebera e o engendra sobre a terra de seu coração. Ela está liberta das dores do inferno e das lamentações do julgamento. Em seu lugar ela recebe o desejo e a alegria dos bens futuros, a pureza bem-amada vem ao seu encontro junto com a castidade e por intermédio do amor a une a Deus. Assim unida, a alma sente em si um prazer inefável. Daí por diante ela verte as lágrimas da compunção com prazer e doçura. Ela está fora de qualquer sensação do mundo. Como se estivesse fora de si, ela segue o Esposo e chama inefavelmente: “Eu sigo o odor do seu perfume. Digame, você a quem meu coração ama, aonde leva a apascentar seu rebanho? Onde você repousa? No meiodia da contemplação pura? Que eu jamais seja como aquele que foi expulso do rebanho dos justos! Que junto a você eu descubra a luz dos grandes mistérios[64]”. O Esposo fará esta alma penetrar no secreto dos mistérios ocultos e a fará contemplar na sabedoria as razões da criação.
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50. Não diga em seu coração: já caí de tantas maneiras na corrupção e na demência do corpo que me será impossível adquirir daqui por diante a pureza virginal. Por que onde são conduzidas as penas do arrependimento na vida rude e no fervor da alma, onde correm os rios de lágrimas da compunção, onde são fustigadas as fortalezas do mal, onde se estingue o incêndio das paixões, onde acontece o novo nascimento que vem do alto com a chegada do Consolador, aí a alma se torna novamente um palácio de pureza e de virgindade. Nela, numa luz e alegria perfeitas, Deus além de toda natureza desce. Ele se coloca no ponto mais alto do seu intelecto como sobre um trono de glória e concede a paz às potências que o cercam, dizendo: “Eu lhes dou a paz que supera as paixões adversas. Eu lhes dou a minha paz, para que vocês ajam segundo a natureza. Eu lhes deixo a minha paz[65] para que vocês alcancem a perfeição acima da natureza”. Quando, por meio deste triplo dom da paz, ele curou as três partes da alma, elevando-a à perfeição trinitária e unindo-a a si, ele a funda novamente e a torna inteiramente virgem daí por diante, bela e madura com o bom odor dos perfumes da pureza. E ele lhe diz: “Levante-se, minha linda pomba, venha para junto de mim pela filosofia ativa. Aqui termina o inverno das paixões. A chuva dos pensamentos que se agradam do prazer cessou, foi-se embora sozinha. As flores das virtudes nasceram na terra do seu coração com o perfume dos pensamentos. Levante-se, venha para junto de mim no conhecimento da contemplação natural. Por ela, minha pomba, venha sob a cobertura e nas trevas da teologia mística, sobre o firme rochedo da fé em mim, Deus[66]”. 51. Bem-aventurado é aos meus olhos, na beleza da transformação e da elevação, aquele que, pela filosofia ativa, franqueou os muros do estado passional e, daí, sobre as asas da impassibilidade cobertas da prata[67] do conhecimento, se elevou no espaço inteligível da contemplação dos seres, depois penetrou nas trevas da teologia e repousou de todas as suas obras em Deus, pela beatitude. Pois, tendo alcançado o estado de anjo terrestre e homem celeste, ele glorificou a Deus em si mesmo e Deus o glorificará[68]. 52. Uma grande paz cumula aqueles que amam a lei de Deus. Para estes não existe escândalo[69], pois o que agrada aos homens não é o que agrada a Deus: aquilo que não parece bom a eles é naturalmente bom[70] para aquele que conhece as razões dos seres e dos eventos. 53. É bom morrer para o mundo e viver em Cristo. Não existe outro caminho para nascer do alto conforme pede o Senhor. E se não nascemos do alto, não podemos entrar no Reino dos céus [71]. Este nascimento provém naturalmente da submissão aos Pais espirituais. Se não trazemos em nós primeiramente a semente da palavra que nos traz os ensinamentos dos Padres, se não nos tornamos filhos de Deus através deles, não poderemos nascer do alto. Assim nasceram os Doze unicamente de Cristo, e os setenta nasceram dos Doze. Eles se tornaram filhos de Deus Pai, como o Senhor havia dito: “Vocês são filhos de meu Pai que está nos céus[72]”. Também Paulo nos diz: “Ainda que vocês tenham milhares de mestres, não têm muitos pais. Fui eu que os engendrei[73]. Sejam meus imitadores[74]”. 54. Não se submeter a um Pai espiritual à imitação do Filho que se submeteu ao Pai até a morte e à cruz [75] equivale a não nascer do alto. Quem não se torna o filho amado de um Pai bom, que não nasce do alto de palavra e espírito, como será ele próprio Pai de bons filhos, como será ele um bom Pai, como engendrará filhos bons conforme a bondade de seu Pai? Se não for assim, o fruto será necessariamente à imagem da árvore[76]. 55. A descrença é um mal, a pior prole da avareza e da inveja. E, se ela é um mal, qual pior não será quem a engendra? E quão pior não será, na medida em que incita os filhos dos homens a preferir o amor pelo ouro ao amor de Cristo, em que coloca o Criador da matéria abaixo da própria matéria, em que persuade aos que servem à criação em lugar de Deus e transformam em mentira a verdade de Deus[77] a adorar a matéria mais do que a Deus. E, se esta doença é tão má que chegou a receber o título de segunda idolatria[78], de quais vícios não transbordará a alma que dela assim se torna enferma?
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56. Se você ama ser amigo de Cristo, então você desprezará o ouro e sua concupiscência. Pois ele capta para si o pensamento de quem o ama e o rouba ao dulcíssimo amor de Jesus, amor que, em minha opinião, não se encontra nas palavras, mas no trabalhar seus mandamentos[79]. Se você deseja o ouro, você o ganhará enterrando aquilo que você possui hoje, se é que este amor que você prefere ao de Cristo representa um ganho[80], e não o pior dos prejuízos. Saiba que você então será privado do amor de Cristo, e que este prejuízo o levará a perder a Deus, que é seu fundamento. Sem ele, a vida de salvação é impossível aos homens. 57. Se você ama o ouro você não ama a Cristo. E se você não ama a Cristo, mas o ouro, veja com quê este tirano o irá assemelhar: àquele que foi o discípulo mais infiel, o amigo mais hostil, que ultrajou o mestre de todos, que perdeu miseravelmente a fé e o amor por ele, e por fim tombou no abismo do desespero. Tema seu exemplo, fuja do ouro e do amor pelo ouro, creia-me, a fim de ganhar a Cristo amando a si mesmo. Do contrário, você já sabe onde irá cair. 58. Mesmo que você ache que pode ajudar as almas, jamais se apresse, seja pelo ouro, seja pela reunião das pessoas, seja por que lhe pedem, jamais se apresse em tomar a frente das coisas sem o chamado do alto. Pois você terá diante de si três coisas, e uma delas fatalmente lhe acontecerá. Ou bem, através de todo tipo de agressões e infortúnios, você terá sobre si a indignação e a cólera de Deus e receberá o combate não só dos homens como de toda a criação, transformando sua vida numa grande pena; ou os que são mais fortes do que você o destronarão, e sua vergonha será grande; ou então, retirado da vida presente, você morrerá antes do tempo. 59. Ninguém é capaz de desprezar a glória e a desonra, nem superar tanto a dor como o prazer, se não lhe for dado conhecer o fim das coisas. Com efeito, quando vemos reduzidos a nada – pela morte que os sucede e destrói – todo o prazer, toda a glória, todas as delícias, toda riqueza e todo conforto, percebemos com toda evidência a vaidade das coisas humanas e voltamos nossos sentidos para a finalidade das coisas divinas. Então nos ligamos àquilo que é e que nada é capaz de corromper; uma vez que o temos conosco, superamos a dor e o prazer. A dor, combatendo o amor da alma pelo prazer, a glória e o dinheiro; o prazer, rejeitando a sensação do mundo. Assim, seja na honra, seja na desonra, permanecemos sempre inalterados. Na dor como no conforto do corpo, em tudo damos graças a Deus e não rompemos o pensamento. 60. O homem que se dedica à virtude deve também descobrir em seus sonhos os movimentos e as disposições da alma e velar por seu estado. Pois os movimentos do corpo e as imaginações do intelecto correspondem à disposição do homem interior e suas necessidades. Se mantivermos na alma o amor pela matéria e o prazer, buscaremos pela imaginação a posse das coisas, o conforto que o dinheiro traz, as formas das mulheres, os abrasamentos passionais, e assim manchamos a túnica[81] e sujamos a carne[82]. Se temos a alma ávida e avara, vemos o ouro em toda parte, exigimo-lo, abusamos do lucro, recolhemo-lo ao tesouro, mas falhamos em nossa compaixão e somos condenados. Se temos a alma colérica e invejosa, somos perseguidos por feras e serpentes venenosas e nos tornamos presas de medo e terror. Se nossa alma é inflada pela vanglória, nos vemos aclamados, cercados de povo, e imaginamos tronos de poder e autoridade. Sempre imaginamos que possuímos aquilo que não temos ainda, ou ao menos que o teremos, e permanecemos sempre acordados vigiando. Se temos a alma orgulhosa e cheia de presunção, nos vemos transportados nas mais vistosas carruagens; podemos mesmo chegar a possuir asas e voar pelo espaço, e todos tremem diante da grandeza de tal poder. Assim, o homem justo e que ama a Deus, que se dedica à obra da virtude nos combates da piedade, que guarda sua alma pura de toda matéria, vê em seus sonhos o cumprimento das coisas futuras e as revelações de visões terríveis. Ao despertar, ele se vê orando como nunca na compunção e num estado aprazível da alma e do corpo, as lágrimas a lhe correr pelo rosto e nos lábios as palavras que ele diz a Deus.
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61. Dentre as coisas que imaginamos durante o sono, algumas são sonhos, outras visões e outras revelações. Os sonhos, na faculdade imaginativa do intelecto, são aquilo que muda. Eles tornam a imaginação confusa, versátil, passando de uma forma a outra. Mas nenhuma destas formas representa um auxílio. Estas imaginações desaparecem com o despertar, e quem se dedica à virtude deve desdenhá-las. Já as visões não mudam: elas não se transformam umas nas outras, mas permanecem gravadas no intelecto ao longo dos anos e não são esquecidas. Elas mostram o cumprimento das coisas futuras. Por meio da compunção e do espetáculo do terrível elas ajudam a alma. Pela constante e temível contemplação das coisas que elas permitem ver, elas conduzem a quem vê para a meditação e o temor. Os que se dedicam à virtude devem sempre levar em grande conta estas visões. Quanto às revelações, elas escapam aos sentidos e constituem as contemplações da alma iluminada em sua pureza mais intensa. Elas trazem consigo o poder das coisas e dos pensamentos divinos estrangeiros, a iniciação nos mistérios ocultos de Deus, o cumprimento de nossas maiores resoluções e a comum transformação das coisas cósmicas e humanas. 62. Destas coisas que imaginamos durante o sono, algumas são típicas dos homens materiais que amam a carne. Seu Deus é o ventre[83], a saciedade desmedida. Seu intelecto é tenebroso e usado pelas paixões numa vida negligente. Os demônios o cobrem de imaginações e brincam com ele. Outras são próprias dos homens que se dedicam às virtudes purificando os sentidos da alma: através daquilo que veem, eles recebem as benesses que os levam a compreender as coisas divinas e a progredir na elevação. Outras enfim são próprias dos homens perfeitos animados pela energia do Espírito divino e cuja alma teológica está unida a Deus. 63. As visões que temos durante o sono não são verdadeiras para todos, não ficam gravadas em todos na razão que dirige o intelecto, mas apenas naqueles que purificaram o intelecto, que clarificaram os sentidos da alma e que se voltaram vividamente à contemplação natural. Estes não têm nenhuma preocupação com as coisas da existência nem se inquietam com a vida presente. Os longos jejuns os levaram à temperança, os suores e as penas de sua vida consagrada encontraram no santuário de Deus[84], em seu conhecimento dos seres, um repouso na maior sabedoria. Sua conduta é angélica. Sua vida está agora oculta em Deus[85]. A santa hesíquia lhes permitiu progredir e se elevar sobre o fundamento dos profetas[86] da Igreja de Deus. É deles que Deus falou através de Moisés: “Se um de vocês se tornar profeta, eu me revelarei a ele durante o sono e lhe falarei através de uma visão[87]”. E em Joel: “Então eu espalharei meu Espírito sobre toda carne e seus filhos e filhas profetizarão, seus anciãos terão sonhos e seus jovens visões[88]”. 64. A hesíquia é o estado imperturbável do intelecto, a calma da liberdade e da alma alegre, o tranquilo e firme fundamento do coração em Deus, a contemplação da luz, o conhecimento dos mistérios de Deus, a palavra de sabedoria que provém da reflexão pura, o abismo dos pensamentos de Deus, o arrebatamento da inteligência, a intimidade divina, o olho vigilante, a prece intelectual, o repouso aprazível no meio de grandes penas, enfim, a união que reúne a alma a Deus. 65. Enquanto a alma se revoltar contra si mesma no movimento desordenado de suas potências, enquanto ele não recolher em si os raios de Deus, enquanto não lhe for dado se libertar da escravidão das preocupações da carne, enquanto ela não desfrutar da paz, enquanto não cessar nela a guerra das paixões desenfreadas, ela terá necessidade de um grande silêncio dos lábios para poder dizer com Davi: “Eu sou como um surdo que não escuta, como um mudo que não abre a boca[89]”. É preciso se manter sempre grave e seguir, dolorosamente, o caminho dos mandamentos de Cristo, pois a alma é afligida pelo inimigo e aguarda a chegada do Consolador. Somente quando ela é penetrada pela compunção e lavada pelas lágrimas, estas lhe comunicam a verdadeira liberdade. 66. Quando aquele que seguiu a hesíquia secreta o mel das virtudes, supera a baixeza da carne por meio dos combates da filosofia, quando, tendo derrubado a arrogância, as potências de sua alma atingem o
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estado conforme a natureza, quando, com o coração purificado pelas lágrimas, ele recolhe em si os raios do Espírito, quando se reveste da incorruptibilidade da morte vivificante em Cristo[90], quando recebe ele também na câmara do andar de cima a hesíquia do Consolador com a língua de fogo [91], então ele traz em seu seio a lei do Espírito[92] e ele deve falar com toda liberdade das maravilhas de Deus[93], anunciar na Igreja a boa nova de sua justiça[94], a fim de não ser atirado ao fogo eterno como o mau servidor que escondeu o dinheiro de seu mestre[95]. É assim que Davi lavou seu pecado por meio do arrependimento e recebeu outra vez o carisma da profecia. Como ele não podia esconder esta benesse, ele disse a Deus: “Eis que já não fecharei meus lábios, Senhor, você o sabe. Não escondo a justiça em meu coração e falo da sua verdade e sua salvação. Não mais escondo sua compaixão e sua verdade diante da grande assembleia[96]”. 67. O intelecto purificado de toda lama se torna um céu estrelado na alma pelo esplendor e a mais alta luz dos pensamentos. Nele o sol de justiça brilha e envia para o mundo a claridade dos raios da teologia. A razão extraída do abismo da sabedoria é para ele pura e do fundo desta sabedoria lhe traz, simples e sem misturas, as ideias das coisas e as claras revelações dos mistérios ocultos que lhe permitem ver quais são a profundidade, a altura e a amplitude do conhecimento de Deus[97]. O intelecto recolhe tudo isso em seu seio. Ele revela por meio da razão as profundezas do Espírito a todos os que possuem o Espírito divino dentro de si, ele expões as armadilhas dos demônios e relata os mistérios do Reino dos céus. 68. A temperança, os jejuns, os combates espirituais detêm as concupiscências do corpo e os levantes da carne. A leitura das divinas Escrituras cobre de frescor as inflamações da alma e as feridas do coração, a prece perpétua as atenua e, como o azeite, a compunção as banha em alegria. 69. Nada religa tanto o homem a Deus como a prece pura e imaterial. Ela consegue unir ao Verbo aquele que não cessa de orar com o Espírito, quando sua alma é lavada pelas lágrimas, adoçada pelo sabor da compunção, iluminada pela luz do Espírito. 70. O grande número de preces salmodiadas é uma coisa excelente, quando em primeiro lugar vêm a constância e a atenção. Mas é a qualidade que fecunda a alma, é ela que permite o fruto. A qualidade da salmodia e da prece consiste em orar com o espírito e o intelecto[98]. A pessoa ora com o intelecto quando, orando e salmodiando, considera a inteligência contida na divina Escritura, e por meio de pensamentos divinos recebe em seu coração os graus[99] dos sentidos bíblicos. Arrebatada em espírito por tais pensamentos, a alma flameja em um espaço de luz. Purificada mais e mais, ela se eleva inteira aos céus e contempla a beleza dos bens reservados aos santos. O desejo por estes bens a queima. Então ela exprime pelos olhos os frutos da oração. Sob a influência da energia do Espírito, esta fonte de luz, as lágrimas correm, e seu gosto é tão doce que às vezes os que as recebem se esquecem até do alimento do corpo. Tal é o fruto da oração, que provém da qualidade da salmodia, nas almas dos que oram. 71. Onde vemos o fruto do Espírito, ali está também a qualidade da oração. E onde se encontra a qualidade, um grande número de preces salmodiadas é coisa excelente. Mas se o fruto não vem, é por que falta qualidade à semente. E se a qualidade seca, o grande número de orações é supérfluo. Pode ser um exercício para o corpo, mas a maior parte dos que o praticam não encontram aí nenhum benefício. 72. Cuidado com as armadilhas quando ora e canta os salmos do Senhor. Pois, apropriando-se dos sentidos da alma, os demônios nos enganam e nos fazem dizer uma coisa pela outra. Eles transformam em blasfêmias os versos dos salmos e nos fazem recitá-los como não se deve. Ou então, ao começarmos um salmo, eles nos fazem saltar para o final e desviam nosso intelecto do meio. Ou nos fazem repetir indefinidamente o mesmo verso e nos mergulham no esquecimento, impedindo-nos de encontrar a sequência das palavras. Ou quando chegamos ao meio do salmo, eles subtraem subitamente do intelecto toda memória do encadeamento dos versos e perdemos a lembrança, a salmodia nos foge à boca e já não encontramos os versos nem conseguimos repeti-los com a língua. Eles também nos lembram de que a hora
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é tardia para nos lançar na negligência e na acídia e destruir os frutos de nossa prece. Oponha-se a tudo isso fortemente, leia o salmo com mais lentidão, a fim de colher nos salmos, por meio da contemplação, a colheita da prece e enriquecer-se com a iluminação do Espírito Santo, que nasce na alma dos que oram. 73. Se isto lhe acontecer enquanto você salmodia com o intelecto não se deixe, por negligência, cair na acídia. Tampouco prefira o conforto do corpo ao bem da alma, considerando que a hora é tardia. Quando notar que a inteligência está para ser capturada, levante-se. Se lhe acontecer ao final da salmo, volte ao começo com todo o coração. Retome o salmo a partir daí, mesmo que durante uma hora a distração volte a atormentá-lo. Se você fizer isto, os demônios, não suportando mais a paciência de sua perseverança e a tensão de sua resolução, irão para longe de você, cheios de vergonha. 74. Saiba com toda certeza que a prece perpétua é aquela que, dia e noite, jamais abandona a alma. Nem a elevação das mãos, nem a atitude do corpo, nem os sons da língua a denunciam aos olhares circundantes. Mas os que compreendem sabem que, por meio da compunção perseverante, ela está na meditação intelectual da obra do intelecto e da lembrança de Deus. 75. Podemos nos ligar continuamente à prece a partir do momento em que recolhemos os próprios pensamentos sob a condução do intelecto, na paz e com grande piedade, cavando as profundezas de Deus para tentar saborear aí a onda dulcíssima da contemplação. Porém, na falta desta paz, tudo é impossível. É preciso que as potências da alma estejam consagradas pelo conhecimento para que se possa alcançar a prece contínua. 76. Se você estiver entoando sua oração a Deus e um irmão vier bater à porta da sua cela, não prefira a obra da prece à obra do amor, e não negligencie o irmão que bate. Isto não é amar a Deus. Pois ele deseja a compaixão do amor, e não o sacrifício[100] da prece. Então, deixe o dom da oração, acolha o irmão com todo amor, cuide dele. Depois retorne para oferecer ao Pai dos espíritos o dom de sua prece [101], entre lágrimas e com o coração quebrantado[102], e o espírito de direito será renovado em você[103]. 77. O mistério da oração não se realiza dentro dos limites de um tempo e um lugar precisos. Se você assinalar aos assuntos da oração horas, momentos e lugares, o tempo que ficar de fora da oração estará votado a outros assuntos, as coisas da vaidade. A prece se define como o movimento perpétuo do intelecto ao redor de Deus; sua obra consiste em voltar a alma para as coisas divinas; sua finalidade é de unir o pensamento a Deus, torna-lo um só espírito com ele, conforme a definição e a palavra do Apóstolo[104]. 78. Mesmo que você faça morrer em si os membros da carne, mesmo q eu o Espírito dê vida à sua alma, mesmo que Deus lhe conceda os carismas sobrenaturais, nunca relaxe a razão de sua alma. Habitue-a a se voltar constantemente para a lembrança de suas faltas passadas e das penas do inferno, e considere em espírito que você está condenado. Se você tensionar desta forma o intelecto e assim considerar a si mesmo, você manterá seu espírito quebrantado[105] e trará em si a fonte da compunção que derrama as águas da graça divina: Deus, que o vê e que concede o Espírito para confortar seu coração. 79. O jejum comedido, que tem por companheiras a vigília, a prece e a meditação, conduz rapidamente para além das fronteiras da impassibilidade a quem trabalha nisso, desde que, por meio de um transbordamento de humildade, sua alma se derrame em lágrimas e que ele seja consumido pelo amor a Deus. Então jejum o leva na paz do Espírito, que ultrapassa toda inteligência[106] livre, e, por intermédio do amor, o une a Deus. 80. Nem um rei tem uma ideia tão elevada sobre sua glória e a de seu reino, nem se felicita tanto de seu poder com maior alegria do que o monge sente pela impassibilidade da alma e as lágrimas da compunção. Por que o primeiro vê seu orgulho consumir-se com seu reino, enquanto que o segundo sente a bem-
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aventurada impassibilidade partir consigo daqui de baixo e permanecer em felicidade pelos séculos infinitos Como uma roda, ele gira em meio dos homens durante sua vida presente, na qual, pela necessidade da natureza, ele convive na terra e com aqueles que a habitam. Mas, levado como numa espiral pelo espaço inteligível, ele relaciona ao fim o começo que se desenrola nele, e traz gravadas na coroa da humildade as formas dos carismas. Sua mesa abundante é a contemplação dos seres; sua bebida, o cálice da sabedoria; e seu repouso, Deus. 81. Quem de moto próprio se lança às penas da virtude e vai com grande fervor até o fim do caminho da ascese, recebe grandes dons de Deus. A partir daí, e progredindo pela mesma via, ele chegará às revelações e às visões divinas, e se tornará tanto mais luminoso e sábio quanto mais duros forem os combates. Quanto mais ele se elevar às alturas das contemplações, mais suscitará contra si a inveja dos demônios que desejam sua perda. Pois eles não suportam assistir um homem se transformar em natureza de anjo. É por isso que eles aguçam contra ele secretamente a flecha encerada da presunção. Se, percebendo a armadilha, ele se refugia na fortaleza da humildade e condena a si próprio, ele escapa à perdição do orgulho e alcança o porto da salvação. Senão, abandonado desde o alto, ele é entregue aos espíritos justiçadores do castigo que não desejou, porque não foi capaz de corrigir a si mesmo. Estes espíritos, malignos e violentos, são o amor pelos prazeres e o amor pela carne. Eles o humilham duramente com suas agressões, até que ele reconheça sua própria fraqueza, se lamente e se descarregue do tormento, dizendo com Davi: “É para mim um bem ser rebaixado por você, meu Deus, para que aprenda seus julgamentos[107]”. 82. Deus não quer nos ver constantemente rebaixados pelas paixões e caçados como coelhos, nem nos dar outro rochedo para nos refugiarmos[108] que não ele próprio. Senão ele não teria dito: “Eu disse que vocês são deuses, que vocês são todos filhos do Deus Altíssimo[109]”. Ele quer nos ver correr como cervos sobre as altas montanhas[110] de seus mandamentos, sedentos das águas vivificantes do Espírito. Da mesma forma como estes animais comem as serpentes e, ao calor de suas longas marchas, transformam em almíscar – diz-se – a natureza venenosa destas sem sofrer o menor mal, também nós, transportemos para o ventre da reflexão todo pensamento passional e, sob o ardor do caminho dos mandamentos de Deus e o poder do Espírito Santo, agarremo-lo e transformemo-lo em na ação olorosa e salutar da virtude, capturando assim todo pensamento por meio da ação, para obedecer a Cristo[111]. Pois o mundo do alto não deve ser completado por homens terrestres e imperfeitos, mas por homens espirituais e perfeitos elevandose no homem perfeito ao talhe de Cristo[112]. 83. Quem está sempre voltado para a mesma coisa e não consegue ir mais longe se parece com a mula que faz girar sempre a mesma roda. Aquele que combate sempre a carne e não faz senão velar por conduzir duramente seu corpo esqueceu-se, com efeito, da coisa mais importante e acaba por fazer mal a si mesmo. Este não entendeu o objetivo da vontade divina. Os exercícios corporais, disse Paulo, não servem para grande coisa[113] enquanto o cuidado terrestre com a carne não for engolido pelas ondas do arrependimento, enquanto o Espírito não concedeu ao corpo a morte vivificante, enquanto a lei do Espírito não reinar em nossa carne mortal[114]. Ao contrário, a piedade da alma, na qual, por meio do conhecimento dos seres e das plantas imortais – vale dizer, dos pensamentos divinos – podemos ver a Árvore da vida nascer na obra espiritual, essa serve em qualquer parte e para todas as coisas. Pois ela suscita a pureza do coração cujas energias apazigua, bem como a iluminação do intelecto, a castidade do corpo, a modéstia, a esperança em tudo, a humildade, a compunção, o amor, a santificação, o conhecimento celeste, a sabedoria da palavra e a contemplação de Deus. Aquele que, por meio de muitos exercícios, atingiu tal perfeição de humildade, ultrapassou o Mar vermelho das paixões, entrou na terra prometida onde correm o leite e o mel[115] do conhecimento de Deus, o inesgotável alimento dos santos. 84. Aquele que ainda não se resolveu a deixar o que é parcial e de pouca serventia, a fim de se elevar para seu bem até aquilo que é total, continua a comer o pão com o suor do seu rosto[116], como decidiu Deus
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desde a origem. Sua alma não sente nenhum desejo pelo maná espiritual, nem pelo mel que escorreu da pedra quebrada[117] para alimentar Israel. Mas aquele que ouviu: “Levantem-se, partamos daqui[118]”, quem, ao comendo do Mestre, deixou suas penas e se levantou, quem deixou de comer o pão da dor, que rejeitou a sensação e bebeu do cálice da sabedoria de Deus, este sabe que Cristo é o Senhor. Ele cumpriu a lei dos mandamentos servindo o Verbo, subiu à câmara do segundo andar e aguarda a vinda do Consolador[119]. 85. Devemos fazer tudo para prosseguir adiante segundo as ordens e os graus da vida votada ao amor à sabedoria, e nos elevar com todo ardor àquilo que nos ultrapassa, como seres em constante movimento em direção a Deus, sem jamais nos detendo em nosso progresso no bem. Devemos assim subir da ascese ativa para a contemplação natural da criação; depois, desta até a teologia mística do Verbo, para aí repousarmos de todas as obras da atividade corporal, pois daí em diante estaremos acima da baixeza do corpo, tendo recebido o conhecimento límpido do verdadeiro discernimento. Mas se ainda não recebemos o conhecimento deste discernimento, e, portanto, não sabemos nem seguir adiante nem tender para o mais perfeito, estamos em pior situação até do que os que vivem no mundo e que não conhecem a condição de progresso que traz sua recompensa, nem o estado de elevação, na medida em que não são levados para aquilo que ultrapassa as outras honrarias nem repousaram aí do impulso que nos conduz. 86. A alma intensamente purificada no calor a que a levaram as penas da ascese é iluminada pela luz divina e começa a ver pouco a pouco naturalmente a beleza que Deus lhe concedeu desde a origem, e a se dilatar no amor daquele que a criou. Quanto mais a iluminam, purificando-a, os raios do sol de justiça, lhe desvelando e revelando a beleza natural, mais ela multiplica as penas da ascese para se purificar ainda mais, a fim de conhecer com toda a pureza a glória do dom recebido, de assumir a antiga nobreza e de se recobrir da imagem do Criador pura de toda matéria e sem mistura. Assim ela continua a acrescentar penas às suas penas, até que seja purificada de toda mácula e de toda mancha e se torne digna de contemplar a Deus e se entreter com ele. 87. “Abra meus olhos e eu compreenderei as maravilhas de sua lei[120]”, grita a Deus aquele que ainda se encontra encoberto pelas brumas dos cuidados terrestres. Pois a ignorância da inteligência terrestre é como uma neblina e uma profunda opacidade que recobre as visões da alma. Ela encerra em trevas e obscuridade a sua compreensão das coisas divinas e humanas. Ela impede de contemplar os esplendores da luz de Deus, ou de usufruir dos bens que o olho não viu, que o ouvido não escutou e que não subiram ao coração do homem[121]. Mas quando a alma recebe desta luz a revelação pelos olhos do arrependimento, ela vê com toda pureza, ouve com todo conhecimento, compreende com a inteligência. Enfim, ela coloca degraus em seu[122] coração para tais pensamentos. A partir daí, saboreando sua doçura, ela os ilumina com o conhecimento. Pela palavra da sabedoria divina ela conta a todos os bens maravilhosos que Deus preparou para aqueles que o amam[123]. Ela os exorta a vir, em meio a numerosos combates e lágrimas, e comungar destes bens. 88. Existem sete carismas do Espírito. A palavra de Deus os enumera começando pelo alto – a sabedoria – e os faz descer até o último: o temor divino do Espírito. São eles: o espírito de sabedoria, o espírito de inteligência, o espírito do conselho, o espírito da força, o espírito do conhecimento, o espírito da piedade, o espírito do temor a Deus[124]. Nós devemos principiar pelo temor que purifica, o temor dos castigos, a fim de que, começando com sucesso a obter a abstenção de todo mal e purificando-nos das manchas do pecado por meio do arrependimento, alcancemos este outro temor do Espírito, e nos encaminhemos para ele, fazendo nele repousar todas as obras da virtude. 89. Quem começou pelo temor do Juízo e progrediu na pureza do coração através das lágrimas do arrependimento logo se enche de sabedoria, conforme está escrito: “O temor é o início da sabedoria [125]”. Depois ele recebe simultaneamente o espírito de conselho e o de inteligência, por meio dos quais é
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conduzido a desejar por si mesmo o que é bom. Sempre progredindo pela prática dos mandamentos, ele chega ao conhecimento dos seres e recebe a mais precisa ciência das coisas divinas e humanas. A partir daí, tendo se tornado inteiro uma morada para a piedade, ele atinge a perfeição alcançando a acrópole do amor, onde imediatamente é tomado pelo temor puro do Espírito[126], que guarda o tesouro do Reino dos céus nele depositado. Este temor é muito salutar. Ele torna atento e leva ao combate aquele que se eleva ao cimo do amor. Ele o protege de tombar desta altura do amor de Deus e de ser novamente rejeitado ao horror da danação. 90. Uma coisa é a leitura das Escrituras para os que acabam de entrar na vida de piedade, outra para os que progridem a meio caminho e outra ainda para aqueles que tendem à perfeição. Para os primeiros, ela é com efeito o pão da mesa de Deus, que conforta seu coração[127] nos sagrados combates da virtude, que lhes dá força para enfrentar os espíritos que animam as paixões e os enche de coragem para combater os demônios, e para que eles digam: “Você preparou para mim uma mesa diante do rosto daqueles que atormentam[128]”. Para os segundos, ela é o vinho do cálice de Deus, que alegra seus corações, os fazem sair de si mesmos pelo poder dos pensamentos, rapta seu intelecto da letra que mata[129], os conduz ao fim de sua busca nas profundezas do Espírito e lhes permite de engendrar inteiramente e descobrir o sentido das palavras, a fim de que eles possam dizer de bom direito: “Delicioso é seu cálice, que me embriaga[130]”. Enfim, para os últimos, ela é o azeite do Espírito divino, que unge sua alma, a torna doce e humilde sob a efusão dos flamejamento de Deus e a eleva inteira acima da baixeza do corpo, numa glória na qual ela também pode dizer: “Você ungiu de azeite minha cabeça” e: “Seu amor me seguirá por todos os dias de minha vida[131]”. 91. Na medida em que, através da filosofia ativa, nas penas e suores do rosto, nos dirigimos a Deus reduzindo as paixões da carne, o Senhor come conosco na mesa de seus carismas o pão do futuro [132], preparado com o trabalho das virtudes e que restaura o coração dos homens. E quando, pela impassibilidade, seu nome é santificado em nós, quando ele próprio reina em todas as potências de nossa alma, submetendo e pacificando aquilo que estava dividido, ou seja, submetendo os piores pensamentos aos melhores, quando se faz sua vontade em nós como no céu[133], então ele bebe conosco em seu Reino em nós instaurado a bebida nova[134] da sabedoria do Verbo, esta bebida que ultrapassa a razão, misturada com a compunção e o conhecimento dos grandes mistérios. E a partir do momento em que comungamos com o Espírito Santo, em que somos transformados pela boa transformação na renovação de nosso intelecto[135], ele, que é Deus, estará conosco como com deuses, tornando imortal aquilo que ele assumiu. 92. Quando a maré irresistível dos pensamentos passionais do intelecto é detido com a chegada do Espírito Santo, quando o abismo salitrado das ideias e das lembranças infames é represado pela temperança e a meditação da morte, então sopra o espírito divino do arrependimento e se espalham as águas da compunção que Deus o Mestre verte na bacia do arrependimento. Ele lava nossos pés inteligíveis e os torna dignos de caminhar nos domínios de seu Reino. 93. O Verbo de Deus tornado carne[136] tomou para si nossa natureza. Tendo se portado como homem perfeito, sem pecado[137], ele, como Deus perfeito, reformou a natureza humana e a deificou. Ele é o Verbo de Deus, o Verbo da Primeira Inteligência. Ele se uniu à razão de nossa natureza e a fez voar nas alturas para que ela pense e considere as coisas de Deus. Mas ele é também fogo. Pelo fogo essencial, pelo fogo divino, ele trancou o ardor da alma às paixões e aos demônios contrários. Enfim, ele é a tensão de toda natureza do razão e o repouso do desejo. Ele dilatou no amor interior o desejo da alma concedendo-lhe que comungue de seus bens da vida eterna. Assim é que ele renovou em si a totalidade do homem. Ele fez do homem velho um novo homem que, recriado, já não tem em si mais nenhuma razão para acusar o Verbo criador.
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94. Celebrando em si próprio nossa nova criação, o Verbo sacrificou a si mesmo por nós pela cruz e pela morte e nos entregou para sempre seu corpo puro em sacrifício. A cada dia ele nos convida para o festim que alimenta a alma. Quando o comemos, quando bebemos de seu sangue precioso, por meio desta comunhão nos tornamos, na sensação da alma, melhores do que somos realmente. Comungando de um e outro, transformados pela passagem do mais baixo ao mais alto, somos duplamente unificados pela dupla razão, pelo corpo e a alma espiritual, como que pelo Deus encarnado consubstancial a nós na carne. A partir daí já não pertencemos a nós mesmos, mas àquele que nos uniu a si pela refeição imortal. Pertencemos àquele que nos tornou por adoção aquilo que ele próprio é por natureza. 95. Se então, provados nas penas das virtudes, purificados pelas lágrimas, nos encaminhamos para comer deste pão e beber deste cálice, o Verbo de duas naturezas se une com doçura às nossas duas potências naturais. Ele nos transforma inteiramente em si mesmo, encarnado e consubstancial a nós pela natureza humana, deificando-nos totalmente pela palavra do conhecimento e por si próprio, a partir do momento em que, sendo Deus consubstancial ao Pai, ele nos empresta sua forma e nos torna seus irmãos. Mas se nos manchamos com a matéria das paixões e nos sujamos com a lama do pecado, ele aproxima de nós o fogo natural que consome a malícia, nos abrasa e queima, e corta as coisas de nossa vida, obrigado não por um desejo de sua vontade, mas pelo desprezo de nossa insensibilidade. 96. O Senhor se aproxima secretamente de todos os que, pela filosofia ativa, se colocam no caminho dos mandamentos de Cristo, e caminha com eles, cujo coração é ainda imperfeito e cuja alma hesita diante da razão da virtude. Os olhos de suas almas não podem neste momento reconhecer seu próprio progresso, enquanto o Senhor caminha com eles[138], os ajuda a se libertar das paixões e lhes estende uma mão segura para que alcancem toda a virtude. Mas, se eles avançam nos combates da piedade, se, por sua humildade, eles atingem o estado impassível, o Verbo já não os quer ver adormecidos nas penas das virtudes, mas quer que eles avancem mais longe e se elevem na contemplação. É por isso que, depois de nutri-los com medida e por muito tempo com o pão das lágrimas[139], ele os abençoa com a luz da compunção e abre sua inteligência para que ela compreenda a profundidade das divinas Escrituras[140] e para que depois reconheça as naturezas e as razões dos seres, e em seguida ele se retira para que eles se elevem por si próprios e aprendam a buscar com mais atenção qual o conhecimento dos seres e qual a elevação que provém dele. Os que buscam de todo coração chegam assim ao mais alto serviço do Verbo e pregam a nós sua Ressurreição na ação e na contemplação. 97. O Verbo censura a lentidão daqueles que se atrasam nas penas da ascese ativa e que não querem retornar para, a partir daí, subir para o degrau mais alto da contemplação. Ele lhes diz: “Ó corações sem inteligência, lentos para crer[141] naquele que pode revelar a razão da contemplação natural aos homens que andam pelo caminho espiritual das profundezas do Espírito!”. Não querer passar dos combates iniciais aos últimos combates, e do corpo textual da divina Escritura alcançar a inteligência e a compreensão da palavra, é, com efeito, a marca de uma alma negligente que não saboreia se bem espiritual e recusa perigosamente seu próprio progresso. Esta alma carrega uma lâmpada apagada. Não apenas lhe será dito: “Vá buscar azeite no mercado”, mas ainda, quando o lugar das bodas já se achar fechado: “Vá embora; não sei quem você é[142]”. 98. Quando o Verbo de Deus penetra na alma decaída como o fez na cidade de Betânia [143], para ressuscitar sua inteligência morta sob o pecado e enterrada debaixo da podridão das paixões, então a consciência e a justiça que estavam mergulhadas na tristeza da morte do intelecto vêm banhadas em pranto ao seu encontro e dizem: “Se tivéssemos velado por você, se o tivéssemos guardado junto a nós, nosso irmão o espírito da inteligência não estaria morto sob o pecado[144]”. A partir daí, com muita atenção, por meio do trabalho das virtudes, a justiça se esforça para alimentar o Verbo e empenha toda sua honra em lhe oferecer uma mesa variada e mais todo o esforço que fizer. Quanto à consciência, deixando de lado todas as demais preocupações e penas, escolhe sentar-se diante dos trabalhos e do movimento
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intelectual do Verbo e se põe a escutar os pensamentos de sua contemplação. O Verbo recebe então uma que conduz o bom combate, que o alimenta generosamente à mesa da filosofia múltipla e ativa, mas reprova-lhe o tanto de preocupações a que se entrega, sempre se ocupando com o que não serve para grande coisa[145]. Não se deve buscar senão uma coisa para as necessidades e o serviço do Verbo: submeter o inferior ao pensamento mais alto e transformar os cuidados terrestres em atenção espiritual sob os suores da virtude. É a esta última que ele louva e une naturalmente a si, por que ela escolheu a melhor parte[146] do conhecimento do Espírito, por meio da qual, pairando acima das coisas humanas, ela penetra nas profundezas de Deus, adquire da melhor maneira esta pérola[147] do Verbo, contempla os tesouros ocultos do Espírito e alcança esta alegria inefável que não lhe será tirada[148]. 99. O intelecto morto sob as paixões e devolvido à vida com a chegada do Verbo de Deus, liberto da pedra do endurecimento, rompe os laços do pecado e dos pensamentos corruptores com o auxílio dos servidores do Verbo, vale dizer, do temor da danação e as penas das virtudes, e, desfrutando da luz da vida futura, se torna livre pela impassibilidade. A partir daí ele se assenta sobre o trono dos sentidos, celebra com toda pureza o mistério da contemplação e vive com o Verbo. Ele parte com o Verbo da terra em direção aos céus e, com todos os seus desejos atendidos, reina com Cristo no Reino de Deus Pai. 100. O restabelecimento de todas as coisas no além, depois da dissolução do corpo, é claro e se torna evidente pela certeza da energia do Espírito em todos os que se dedicam à virtude, que lutam o justo combate[149], que progridem em direção ao meio e se tornam perfeitos na medida da plenitude de Cristo[150]. A alegria e a beatitude de tal destino habitam para sempre na luz eterna. Uma alegria infinita toma os corações daqueles que lutam o justo combate e o regozijo do Espírito Santo os abraça, regozijo este que, segundo a palavra, não lhes será tirado[151]. Assim, aquele que foi considerado digno de que em si habite o Consolador, que usufrui de seus frutos por haver cultivado as virtudes, que é rico de seus carismas divinos, que foi cumulado de alegria e de todo amor, que se libertou de todo medo, este, em sua felicidade, está livre dos laços do corpo e nesta felicidade ele se desprende das coisas visíveis, das quais se livra colocando esta alegria acima da sensação. Ele irá repousar na inefável alegria da luz onde habitam todos os que se regozijam, mesmo que, neste ato de libertação e de ruptura da união, o corpo possa experimentar a dor, como acontece nos partos difíceis.
[1] Cf. Lucas 17: 21. [2] João 14: 23. [3] Cf. Romanos 8: 8. [4] Gênesis 6: 3. [5] Cf. Lucas 34: 25. [6] I Coríntios 2: 14. [7] Cf. I Gálatas 5: 25. [8] Cf. Números 6: 2-8; Juízes 13: 3. [9] Cf. I Coríntios 2: 7. [10] Cf. Salmo 39 (40): 10-11. [11] Mateus 5: 13-14. [12] Salmo 45 (46): 11. [13] Cf. Lucas 17: 21. [14] Cf. Mateus 23: 25. [15] Cf. Isaías 5: 21. [16] Cf. Gênesis 2: 10. [17] Cf. Salmo 45 (46): 5.
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[18] Cf. João 14: 23. [19] Cf. Efésios 6: 16. [20] Cf. Mateus 24: 22. [21] Cf. Efésios 5: 12. [22] Cf. Judas 8. [23] Eclesiastes 10: 4. [24] Cf. Salmo 90 (91): 10. [25] Cf. II Coríntios 12: 8. [26] Cf. Romanos 7: 23. [27] Cf. II Coríntios 4: 10. [28] Cf. Romanos 8: 10. [29] Cf. I Coríntios 12: 8. [30] Cf. Mateus 11: 29. [31] Salmo 50 (51): 19. [32] Isaías 6: 5. [33] I Coríntios 13: 10. [34] Cf. Salmo 102 (103): 12. [35] Cf. Mateus 7: 16. [36] Gálatas 5: 23. [37] Cf. I João 2: 16. [38] Cf. Mateus 12: 33. [39] Mateus 12: 35. [40] Cf. Salmo 50 (51): 19. [41] Cf. Daniel 3: 39. [42] II Coríntios 12: 9. [43] I Samuel 16: 7. [44] Cf. Efésios 4: 11-12. [45] Cf. Salmo 32 (33): 15. [46] Cf. Salmo 112 (113): 7. [47] Cf. Efésios 6: 17. [48] Cf. Salmo 67 (68): 12. [49] Cf. Gênesis 2: 15. [50] Salmo 72 (73): 17. [51] Cf. Gênesis 18: 27. [52] Cf. Salmo 21 (22): 7. [53] Cf. Salmo 76 (77): 11. [54] Cf. Mateus 13: 11. [55] Cf. João 15: 13. [56] Cf. I Timóteo 6: 20. [57] Cf. Colossenses 2: 3. [58] João 17: 24. [59] Cf. Mateus 5: 45. [60] Cf. Gênesis 2: 10. [61] Cf. Salmo 103 (104): 11. [62] Cf. Salmo 103 (104): 21. [63] Cf. Salmo 17 (18): 6. [64] Cântico dos Cânticos 1: 7. [65] Cf. João 17: 24. [66] Cf. Cântico dos Cânticos 2: 10-14. 10 “O meu amado fala, e me diz: Levante-se, minha amada, formosa minha, venha a mim! 11 Veja: o inverno já passou! Olhe: a chuva já se foi! 12 As flores florescem na terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola já se ouve em nosso campo. 13 Despontam figos na figueira e a vinha florida exala perfume. Levante-se, minha
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amada, formosa minha, venha a mim! 14 Pomba minha, que se aninha nos vãos do rochedo, na fenda dos barrancos... Deixe-me ver a sua face, deixe-me ouvir a sua voz, pois a sua face é tão formosa e tão doce a sua voz!”.
[67] Cf. Salmo 67 (68): 14. [68] Cf. João 13: 31-32. [69] Cf. Salmo 118 (119): 165. [70] Cf. Gênesis 1: 31. [71] Cf. João 3: 3. [72] Mateus 5: 45. [73] I Coríntios 4: 15. [74] I Coríntios 11: 1. [75] Cf. Filipenses 2: 8. [76] Cf. Mateus 12: 33. [77] Cf. Romanos 1: 25. [78] Cf. I Timóteo 6: 10. [79] Cf. João 14: 15. [80] Cf. Filipenses 3: 8. [81] Cf. Judas 23. [82] Cf. Judas 8. [83] Cf. Filipenses 3: 19. [84] Cf. Salmo 72 (73): 17. [85] Cf. Colossenses 3: 3. [86] Cf. Efésios 2: 20. [87] Números 12: 6. [88] Joel 3: 1. [89] Salmo 37 (38): 14. [90] Cf. II Coríntios 4: 10. [91] Cf. Atos 2: 2-3. [92] Cf. João 7: 38-39. [93] Cf. Atos 2: 11. [94] Cf. Salmo 39 (40): 10. [95] Cf. Mateus 25: 30. [96] Cf. Salmo 39 (40): 11. [97] Cf. Efésios 3: 18. [98] Cf. I Coríntios 14:15. [99] Cf. Salmo 83 (84): 6. [100] Cf. Oséias 6: 6, citado em Mateus 9: 13; 12: 7. [101] Cf. Mateus 5: 23-24. [102] Cf. Salmo 50 (51): 19. [103] Cf. Salmo 50 (51): 12. [104] Cf. I Coríntios 6: 17. [105] Cf. Salmo 50 (51): 19. [106] Cf. Filipenses 4: 7. [107] Salmo 118 (119): 71. [108] Cf. Salmo 103 (104): 18. [109] Cf. Salmo 81 (82): 6. [110] Cf. Salmo 103 (104): 18. [111] Cf. II Coríntios 10: 5. [112] Cf. II Efésios 4: 13. [113] Cf. I Timóteo 4: 8. [114] Cf. II Coríntios 4: 11. 851
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[115] CF. Êxodo 3: 8. [116] Cf. Gênesis 3: 19. [117] Cf. Deuteronômio 32: 13; Salmo 80 (81): 17. [118] João 14: 31. [119] Cf. Atos 1: 13. [120] Salmo 118 (119): 18. [121] Cf. I Corintios 2: 9. [122] Cf. Salmo 83 (84): 6. [123] Cf. I Coríntios 2: 10. [124] Cf. Isaías 11: 2-3. [125] Provérbios 1: 7. [126] Cf. Salmo 18 (19): 10. [127] Cf. Salmo 103 (104): 15. [128] Salmo 22 (23): 5. [129] Cf. II Coríntios 3: 6. [130] Salmo 22 (23): 5. [131] Ibid. 5-6. [132] O pão ousios do Pai Nosso. [133] Cf. Mateus 6: 10-11. [134] Cf. Marcos 14: 25. [135] Cf. Salmo 76 (77): 11; Romanos 12: 2. [136] Cf. João 1: 14. [137] Cf. Hebreus 4: 14. [138] Cf. Lucas 24: 16. [139] Cf. Salmo 79 (80): 6. [140] Cf. Lucas 24: 25. [141] Lucas 24: 25. [142] Mateus 25: 9 e 12. [143] Cf. João 11: 17. [144] Cf. João 11: 33. [145] Cf. Timóteo 4: 8. [146] Cf. Lucas 10: 42. [147] Cf. Mateus 13: 46. [148] Cf. Lucas 10: 42. [149] Cf. II Timóteo 2: 5. [150] Cf. Efésios 4: 13. [151] Cf. Lucas 10: 42.
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TII, VII – NICETAS STETHATOS – Terceira centúria (Capítulos gnósticos).
TERCEIRA CENTÚRIA CAPÍTULOS GNÓSTICOS Do amor e da perfeição da vida 1. Deus é o intelecto impassível além de toda inteligência e de toda impassibilidade. Ele é Luz, e fonte da boa luz[1]. Ele é Sabedoria, Razão e Conhecimento, e dispensador da sabedoria, da razão e do conhecimento. Aqueles aos quais, por sua pureza, foram concedidas estas coisas, em quem as podemos ver em abundância, estes guardam em si a imagem de Deus, com a qual se recobriram, pois a partir daí se tornaram filhos de Deus conduzidos pelo Espírito, conforme foi dito: “Aqueles a quem o Espírito de Deus conduz, estes são de Deus[2]”. 2. Todos aqueles que, por meio das penas da ascese, se purificaram das manchas da carne e do espírito [3], se tornaram cálices da natureza imortal pelos carismas do Espírito. Tendo chegado até aí, eles se veem cheios da boa luz. Desde então estão em paz, o coração repleto de calma, e proferem as boas palavras [4], a sabedoria de Deus escorre de seus lábios no conhecimento das coisas divinas e humanas. Nada pode turbar o que dizem quando expõem as profundezas do Espírito. Para estes homens já não existe lei [5]. Eles estão definitivamente unidos a Deus, e a boa transformação os transformou[6]. 3. Aquele que, com seu fervor, tende para o divino sem evitar sua pena, se torna pelas virtudes da alma e do corpo a marca de sua imagem. Por osmose, ele próprio repousa em Deus e Deus repousa nele, de tal modo que, na superabundância dos carismas do Espírito, ele se torna e se mostra agora como a imagem da beatitude divina e Deus por adoção, e Deus é o iniciador de sua perfeição. 4. O homem não foi feito à imagem de Deus pela estrutura orgânica do corpo, como se pode pensar levado pela ignorância. Ele o é pela natureza intelectual da inteligência, que não é limitada pelo corpo que pesa para baixo. Com efeito, assim como a natureza divina não é limitada – pois ela está fora de toda criação, de toda densidade, sendo infinita e incorpórea, além de toda essência e de toda razão, incriada, intangível, fora de qualquer quantidade, invisível, imortal, incompreensível, inteiramente inconcebível por nós – também a natureza intelectual que Deus nos deu não tem limites e está fora de qualquer densidade, sendo incorpórea, invisível, intangível, incompreensível, imagem de sua glória eterna e imortal. 5. Deus é a primeira Inteligência. De fato, ele é o Rei do universo. Ele contém em si o Verbo consubstancial e eterno com o Espírito. Ele jamais esteve fora do Verbo e do Espírito, pois sua natureza é indivisível. E ele não se confunde com eles, pois a distinção das hipóstases nele não permite a confusão. A partir daí ele engendra naturalmente o Verbo a partir de sua essência sem se separar dele, porque continua indivisível. O Verbo eterno com ele tem a mesma natureza sem começo do Espírito, o qual procede do Pai[7] antes de todos os séculos. Também ele não se separa daquele que o engendrou. Pois a natureza de um e de outro é uma e indivisível, ainda que se apresente dividida em pessoas pela distinção das hipóstases. Ela é glorificada na Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E jamais estas Pessoas, que são uma só natureza e um só Deus, podem ser separadas da essência e da natureza em sua única eternidade. Contemple assim o ícone desta natureza única em três Pessoas. Contemple-a no homem que ela formou. Contemple-a no espiritual, mas não no visível, no imortal que é sempre o mesmo, mas não no mortal que se dissolve. 6. Da mesma forma como Deus, que é Inteligência muito além das criaturas por ele formadas na sabedoria, engendra independente de qualquer escoamento ou fluxo o Verbo em sua permanência e envia com seu poder, conforme está escrito[8], o Espírito Santo que está fora e além de tudo, também o homem, que participa de sua natureza divina, que, dentro de sua alma intelectual, incorpórea e imortal, é uma
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imagem sua em espírito, e cujo intelecto engendra naturalmente e por sua essência a razão por meio da qual todas as potências do corpo estão guardadas, está fora e no interior da matéria e dessas coisas visíveis. E do mesmo modo como aqueles são inseparáveis de suas hipóstases – vale dizer, do Verbo e do Espírito – também ele, em sua alma, não pode ser cortado do intelecto e da razão, da natureza única e da essência que não é limitada pelo corpo. 7. O divino é adorado em três hipóstases no Pai, no Filho e no Espírito Santo. E devemos considerar que a imagem que ele formou – o homem – também está dividida em três partes. Pela alma, o intelecto e a razão o homem adora a Deus que criou tudo a partir do nada. Aquilo que por natureza é eterno com Deus e consubstancial a ele é, assim, da mesma natureza e da mesma substância que sua imagem. É desta forma que a imagem se torna visível em nós. E é assim que eu sou imagem de Deus, mesmo tendo sido feito de uma mistura de argila e imagem. 8. Uma coisa é a imagem de Deus, e outra aquilo que vemos nesta imagem. A imagem de Deus é a alma intelectual, o intelecto e a razão: a natureza única e indivisível. Aquilo que vemos na imagem é a soberania, a realeza, a liberdade. Assim, uma coisa é a glória do intelecto e outra sua dignidade. Uma é a criação “à imagem” e outra a criação “à semelhança”[9]. A glória do intelecto é a elevação, o movimento contínuo para o alto, a sutileza, a pureza, a consciência, a sabedoria, a imortalidade. Sua dignidade é a razão, a realeza, a soberania, a liberdade. A criação à imagem de Deus significa o caráter pessoal, consubstancial, indivisível e inseparável da alma, do intelecto e da razão. O intelecto e a razão estão ligados à alma incorporal, imortal, divina e intelectual. Estas são coisas consubstanciais na mesma eternidade, que não podem ser jamais separadas nem divididas. A semelhança é a justiça, a verdade, a misericórdia, a compaixão, o amor pelos homens. Naqueles que cumprem e guardam estas coisas, a imagem e a semelhança se revelam claramente: elas são evidentemente animadas pela natureza, mas estão acima das outras pela dignidade. 9. A alma dotada de razão se divide em três partes. Mas também podemos distinguir nela duas partes: uma parte racional e outra passional. A parte racional, à imagem daquele que a criou, não é relativa a nada, não pode ser vista nem definida pelos sentidos, estando simultaneamente dentro e fora destes. Por meio da razão, a alma se comunica com as divinas potências intelectuais. Por meio do santo conhecimento dos seres, ela se eleva naturalmente para Deus como para seu modelo e desfruta de sua natureza divina. Mas a parte passional é dividida, submetida aos sentidos, às paixões, ao relaxamento. Por meio da paixão, a alma se comunica com a natureza sensível ligada ao alimento e ao crescimento, e se liga ao ar, ao frio e ao calor, aos alimentos, para assegurar a subsistência, a vida, o crescimento e a saúde. Alterada por estas coisas, a parte passional tanto deseja sem razão, levada pelo movimento natural, quanto se exacerba, levada por um ardor irrefletido, e suscita a fome, a sede, a tristeza, a pena e finalmente a dissolução. Ela se regozija com aquilo que a contenta e é deprimida pelas aflições. É com justiça que a denominamos passional, pois ela é absorvida pelas paixões. Quando esta parte mortal é absorvida pela vida do Verbo[10], quando vence o mais forte, então a vida de Jesus aparece também na nossa carne mortal[11], trazendo para nós a morte vivificante da impassibilidade, e nos concede a herança incorruptível da imortalidade no desejo do Espírito. 10. Assim como o Criador do universo, antes de fazer tudo a partir do nada, continha em si o conhecimento, as naturezas e as razões de todos os seres, sendo ele o rei dos séculos e sabedor de tudo por antecipação, também ele concedeu ao homem formado à sua imagem, para que se tornasse o rei da criação, possuir em si as razões, as naturezas e o conhecimento de todos os seres. Por sua criação o homem possui em si da terra a secura e a frialdade dos tecidos do corpo; do ar e do fogo, o calor e a umidade do sangue; da água, a umidade e o frio dos humores; das plantas, o crescimento; dos seres vivos, o modo de se alimentar; dos animais selvagens, seu estado de paixão; dos anjos, a vida dotada de
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inteligência e de razão; de Deus, o sopro imaterial, a alma incorpórea e imortal que vemos no intelecto, na razão e no poder do Espírito Santo, que o faz ser e viver. 11. É pela virtude e o conhecimento que nos assemelhamos a Deus que nos formou à sua imagem e semelhança[12]. Pois sua virtude cobre os céus, e a terra está plena de seu conhecimento [13]. A virtude de Deus consiste na justiça, na santidade e na verdade. É o que disse Davi: “Você é justo, Senhor, e sua verdade me envolve[14]”. E também: “O Senhor é justo e santo[15]”. Também nos assemelhamos a Deus pela retidão e a bondade. “Pois o Senhor é bom e direito[16]”. Assemelhamo-nos a ele pela palavra de sabedoria e a palavra de conhecimento. Pois todas estas coisas estão nele, e ele é chamado de Sabedoria e Verbo. Assemelhamo-nos a ele pela santidade e a perfeição, conforme ele próprio disse: “Sejam perfeitos, como seu Pai celeste é perfeito[17]. Sejam santos, como eu sou santo[18]”. E nos assemelhamos a ele pela humildade e a doçura, pois ele disse: “Aprendam comigo que sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão a paz em suas almas[19]”. 12. Sendo nosso intelecto à imagem de Deus, naturalmente ele possui em si esta imagem, na medida em que ele permanece naquilo que lhe é próprio e não se afasta de sua dignidade e de sua natureza. É por isso que de alguma maneira ele deseja permanecer nas coisas de Deus, que ele busca se unir a ele, de quem ele extrai sua origem, devido a quem ele se move, para quem ele tende por todas as suas qualidades naturais, e por isso também ele deseja imitá-lo em seu amor ao homem e sua simplicidade. Pois ele próprio engendra o Verbo, e recria como se fossem outros céu as almas de seus companheiros. Ele os afirma pela paciência das virtudes ativas. Ele os traz à vida pelo sopro de sua boca[20]. Ele lhes dá a força para combater as paixões destruidoras. Imitando com justiça a seu Deus, ele próprio aparece como autor da criação espiritual e de todo o resto. E ele escuta claramente, vindo do alto: “Aquele que separa o digno do indigno será como minha boca[21]”. 13 Quem persevera nos movimentos naturais do intelecto e na dignidade da razão se guarda puro de matéria, se adorna de doçura, de humildade, de amor, de compaixão, e se cobre de luz sob o flamejamento do Espírito Santo. Voltado para as mais altas contemplações, ele penetra no conhecimento dos mistérios ocultos de Deus e se coloca, em seu amor pelo bem, a serviço daqueles que, por sua sabedoria, podem escutar essas coisas. Ele não multiplica o talento[22] apenas para si, mas ele transmite seu usufruto para aqueles que estão próximos de si. 14. Quem se eleva acima da dualidade, que liberta desta dualidade a nobreza do um, encontrou dentre os espíritos imateriais a vida fora da matéria e se tornou um espírito dotado de intelecto, mesmo que o vejamos viver num corpo no meio dos outros homens. 15. Aquele que, pela dignidade e a natureza do um submeteu a dualidade à servidão, submeteu a Deus toda a criação, reuniu no um o que estava separado e pacificou todas as coisas[23]. 16. Enquanto a natureza das potências que se encontram em nós não for ordenada, enquanto ela estiver dividida em múltiplos desacordos, não teremos ainda parte nos dons sobrenaturais de Deus. Ora, se não tivermos parte nestes, estaremos ainda longe da hierurgia[24] do altar celeste, que é cumprida pela obra intelectual da inteligência. Mas quando, pelo longo esforço dos combates sagrados, nos purificamos da malícia ligada à matéria, quando, pelo poder do Espírito reunimos no um tudo o que nos divide, então teremos parte nos bens secretos de Deus, seremos dignos de oferecer a Deus o Verbo os mistérios divinos da hierurgia mística do intelecto no altar mais que celeste e espiritual de Deus, pois seremos os iniciados e os sacerdotes de seus mistérios imortais. 17. A carne deseja contra o espírito, e o espírito contra a carne[25]. Existe entre os dois uma guerra implacável. Um deve vencer o outro e dominá-lo. Esta divisão presente em nós se denomina sublevação,
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impulso, jugo, duelo selvagem. Ele divide a alma, no mesmo ponto em que o intelecto dá seu impulso a um ato de paixão humana. 18. Enquanto formos divididos pela inconstância dos pensamentos e a lei da carne nos dominar e perdurar em nós, estaremos dispersos em numerosos pedaços de nós mesmos e seremos rejeitados para longe da unidade divina, pois não nos enriquecemos desta unidade. Mas quando nosso ser mortal é engolido[26] pelo poder unificante e pela ausência sobrenatural de preocupações, quando o intelecto, dominando a si mesmo, se ilumina com os esplendores e os pensamentos que o enchem de sabedoria, a alma, toda enovelada na unidade como Deus, encontra o um ao invés das múltiplas divisões. Recolhida na unidade divina, ela se vê unificada na simplicidade, à imitação de Deus. Tal é o restabelecimento da alma em seu estado ancestral. E esta é a renovação que nos leva ao melhor. 19. A ignorância é uma calamidade e mais do que uma calamidade. Ela é verdadeiramente uma treva palpável[27]. Ela obscurece as almas nas quais se encontra. Ela divide profundamente o pensamento e impede a alma de se unir a Deus. Tudo o que se junta a ela é desordem e ausência de razão. Pois ela torna o homem inteiro irracional e insensível. Mas, do mesmo modo como a ignorância, ao se espalhar e se tornar mais espessa, se torna para a alma que lhe está submetida um abismo infernal onde se encontram todos os tormentos, todas as dores, as tristezas, os gemidos, também o conhecimento de Deus, do qual podemos dizer que é uma fonte radiante e infinita de luz, torna divinamente luminosas as almas nas quais se encontra pela pureza. Ela as enche de paz, de calma, de alegria, de sabedoria inefável e de amor perfeito. 20. A presença da luz divina é simples e una. Ela recolhe em si as almas que a recebem e depois retorna a si mesma. Ela as une à sua unidade. Ela as torna perfeitas com sua perfeição. Ela conduz pelas profundezas de Deus a visão de sua inteligência. Ela lhes permite contemplar os grandes mistérios. Ela as inicia e as torna aptas a iniciar. Assim sendo, procure se purificar a fundo por suas penas, e você verá em si claramente a energia destas palavras, a energia amada por Deus. 21. Os flamejamentos da luz primordial que penetram pelo conhecimento nas almas purificadas não apenas as tornam boas e luminosas, como as conduzem pela contemplação natural aos céus espirituais. Assim os efeitos da energia não permanecem aí dentro das almas, mas se exercem até que, pela sabedoria e o conhecimento dos mistérios inefáveis as almas se unem ao um, e, de múltiplas que eram, se tornam uma com ele. 22. É preciso em primeiro lugar nos desembaraçarmos das misturas e confusões por meio da ordem purificadora, longe do mal que liga à matéria os inteligíveis, para depois termos os olhos do intelecto cheios de luz e sempre claros graças à outra ordem, a ordem iluminadora que se realiza através da sabedoria mística oculta em Deus; e se elevar assim em direção à ciência dos conhecimentos sagrados que, pela palavra divina, concede o novo e o antigo[28] àqueles que têm ouvidos; enfim, transmitir os sentidos místicos e ocultos desta ciência, comunicando-os aos entendimentos que ninguém profana, afastando-o dos imperfeitos, a fim de não entregar aos cães o que é santo e de não atirar a pérola do Verbo às almas que são como porcos[29] e que a mancharão. 23. Quando alguém percebe que o fervor de sua alma se dilata na fé interior e no amor a Deus, saiba que ele traz em si a Cristo que eleva sua alma da terra e das coisas visíveis e prepara nos céus sua morada. Quando ele vê seu coração se encher de alegria e desejar com compunção dos bens secretos de Deus, saiba que então o Espírito divino age nele. Enfim, quando ele sentir seu intelecto cheio de luz inefável e da mais profunda sabedoria dos pensamentos, saiba que o Consolador está em sua alma e que ele vem visita-lo para lhe revelar os tesouros do Reino dos céus nele ocultos. Então, que ele se guarde cuidadosamente, como um palácio de Deus e uma morada do Espírito.
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24. A guarda dos tesouros ocultos do Espírito detém as coisas humanas, o que consiste propriamente naquilo a que chamamos de hesíquia. Esta, pela pureza do coração e a compunção longe de qualquer prazer, ilumina cada vez mais o desejo do amor de Deus, liberta a alma dos laços dos sentidos e a convence a se libertar dos modos habituais de viver. Quando ela traz de volta assim as potências da alma, ela as devolve ao que elas são por natureza, restabelecendo-as em seu estado original para que nenhum mal, proveniente da alteração da imagem e de seu movimento para o pior, venha a se opor ao criador dos bens. 25. É por esta perfeição sagrada, por esta perfeição divina que traz numa luz benfazeja a hesíquia bendita e sacra, que praticamos e buscamos como se deve. Mas se este grau de elevação e de perfeição ainda não foi alcançado, aquele que parece viver em estado de hesíquia ainda não repousa na perfeita hesíquia do intelecto. Na medida em que ele ainda não alcançou esta altura, ele não repousa na hesíquia, longe da tempestade interior das paixões indomáveis. Ele não terá mais que seu corpo rodeado de muros, buracos e cavernas, esgotado por um intelecto desordenado e errante. 26. As almas que alcançaram um grau extremo de pureza e que chegaram a uma grande altura de sabedoria e de conhecimento assemelham-se aos querubins por se aproximarem de maneira, por assim dizer, imediata, por sua ciência, da fonte dos bens. Então elas recebem com toda pureza a revelação da visão direta, da qual apenas as potências dos querubins, diante de tal Tearquia[30], são profunda e imediatamente iluminadas, como foi dito, na mais alta intensidade das contemplações divinas[31]. 27. Da mesma forma como as primeiras potências do alto são, umas, as mais ardentes e vívidas envolvendo as coisas de Deus, com seu movimento contínuo que não tem fim, e outras, as mais dotadas de visão, de conhecimento e de sabedoria, cujo estado divino as coloca sempre em movimento ao redor das coisas de Deus, também tais almas são mais ardentes e vívidas em envolver o divino, dotadas de sabedoria, de conhecimento e da maior tensão nas contemplações místicas. Um mesmo poder e um mesmo estado divino as conduzem. Desta forma, seu movimento em torno das coisas de Deus é contínuo, seu fundamento e sua morada são firmes. Por outro lado, elas recebem as iluminações, neste estado em que participam do Ser e transmitem às outras almas, abundantemente, pela palavra, as efusões de sua luz e de suas graças. 28. Deus é Inteligência, e causa do movimento contínuo do universo. Todas as inteligências têm nele, a primeira Inteligência, seu ponto fixo e seu movimento infinito. É isto que experimentam todos os que, pelos santos suores, têm neles o movimento, não material e misturado, mas sem mescla e sem confusão. Eles o experimentam no ardor de seu amor divino, comunicando entre si e consigo mesmos os flamejamentos irradiados pela Tearquia que concede o bem e a sabedoria dos mistérios do Deus oculto a eles, transmitindo-os amorosamente aos demais e neles celebrando o amor a Deus que não tem fim. 29. As almas que tornaram em si leve a razão desembaraçada da matéria são móveis e giram ao redor de Deus. Da dualidade que combate a si própria em todas as coisas elas fizeram a dócil rédea que conduz aos céus. Elas gravitam sem fim ao redor de Deus, como que tensionadas para o centro e a causa do movimento circular. E elas são imóveis, estáveis e firmes, mirando o centro sem poder se desligar dos laços que as unem para voltar às sensações a ao erro das coisas humanas lá em baixo. Esta é a finalidade perfeita da hesíquia, para onde são levados os que a vivem verdadeiramente. Arrebatados pelo movimento, eles permanecem imóveis. Estáveis e imóveis, eles giram ao redor do divino. Enquanto não chegarmos a este ponto, apenas parecemos viver na hesíquia, mas é impossível que nosso intelecto saia da matéria e da errância. 30. Quando, com toda atenção e fervor, retornamos à beleza original da razão, quando, com a chegada do Espírito, tomamos parte na sabedoria e no conhecimento que nos são concedidos desde o alto, então se
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revela a nós, que podemos vê-la claramente, sábia e bela, a fonte primordial, a causa primeira da criação de todos os seres. Ela não traz a nós nada que a acuse, nada proveniente da malícia que nos destrói, quando, contra nossa vontade, nos desvia para o pior. Quando aquilo que é separado transborda, quando escapa da beleza original, quando decai da deificação, a fonte, caída em semelhante divisão, engendra sua forma desprovida de toda razão. 31. O único e primeiro fundamento dos que tendem para o progresso é o conhecimento dos seres que adquirem por meio da filosofia ativa. O segundo é o conhecimento dos mistérios ocultos de Deus no qual são iniciados pela contemplação natural. O terceiro é a aproximação da luz original e a união com ela, onde se encontra o repouso de todo progresso filosófico e de toda contemplação. 32. Todas as inteligências evoluem por si próprias, para si mesmas e para o Ser em si. Elas são conduzidas numa mesma e única forma através destes três modos. Elas iluminam seus próximos, os iniciam nos mistérios de Deus e os conduzem à perfeição por meio da sabedoria do céu, como espíritos purificados, unindo-os a elas e à Unidade. 33. A deificação em vida é a verdadeira hierurgia espiritual e divina por meio da qual é celebrado o Verbo da sabedoria misteriosa e pela qual ele é transmitido àqueles que para tanto se prepararam na medida do possível. Por toda sua bondade Deus a concedeu do alto à natureza racional na unidade da fé. Assim alguns, graças à sua pureza, receberam esta recompensa pelo conhecimento do divino e se tornaram semelhantes a Deus, em conformidade com a imagem de seu Filho[32], por seus altos movimentos intelectuais em redor das coisas divinas, e se tornarão por adoção como deuses em relação aos demais homens sobre a terra. Outros, pela purificação, através de sua razão divina e da santa união, perfazem a si mesmos na virtude. Na medida de seu próprio progresso e de sua própria purificação, eles participam da deificação dos primeiros e comungam com eles na união divina, até que todos, unidos no Um, recolhidos todos na unidade do amor, sem fim se unem ao único Deus. E Deus estará no meio de deuses[33], criador das boas obras, Deus por natureza ao meio de deuses por adoção, nada trazendo da criação que o possa acusar. 34.O homem que se devota à virtude não pode se tornar semelhante a Deus – na medida em isto nos é permitido – se não começar por se desfazer, pelo calor das lágrimas, do peso do lodaçal dos vícios que roubam a luz e se não se agarrar à hierurgia dos santos mandamentos de Cristo. Pois de outra forma é impossível participar dos bens secretos de Deus. Aquele que deseja provar em espírito da doçura divina e do prazer das coisas espirituais deve se afastar de toda sensação do mundo e, por seu impulso em direção aos bens reservados aos santos, engajar continuamente sai alma na contemplação dos seres. 35. Manter em si imutável a semelhança divina que nos é dada pela extrema purificação e um grande amor a Deus só é possível numa elevação contínua em direção a Deus e numa tensão do intelecto mais contemplativo, tensão que nasce naturalmente na alma a partir da perseverante hesíquia das virtudes, da prece contínua, imaterial e calma, da temperança em tudo e da leitura assídua das Escrituras. 36. É preciso se esforçar não apenas para atingir a paz das potências que existem em nós, mas para alcançar o desejo do repouso intelectual. Este é capaz de, na calma, fazer repousar sobre o bem todo o impulso dos pensamentos e, por meio do orvalho divino que vem do céu, curar e refrescar o coração ferido no fogo enviado do alto e atiçado pelo Espírito. 37. A alma ferida profundamente pelo ardente amor a Deus, depois de haver provado a doçura de seus dons inteligíveis, já não pode se deter inteiramente sobre si mesma, nem permanecer no lugar sem tender para diante rumo aos degraus que sobem aos céus. Pois quanto mais ela avança pelo Espírito em suas elevações e mais penetra nas profundezas de Deus, mais ela é inflamada pelo fogo do impulso,
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descobrindo a imensidão de seus mistérios sempre mais profundos, e apressando-se em se aproximar do fogo benfazejo, no qual se detém todo desenvolvimento do intelecto, a fim de conhecer na felicidade do coração o fim de suas próprias carreiras. 38. Quando alguém entra em comunhão com o Espírito Santo, quando descobre em si, por uma energia e um perfume inefáveis, que o Espírito o visitou, este homem já não se resigna daí por diante em permanecer dentro dos limites da natureza. Transformado pela boa transformação da direita do Altíssimo[34], ele esquece alimento e sono, ele despreza as coisas do corpo, já não pensa no descanso corporal e, mesmo que passe o dia em penas e suores ascéticos, não sente nenhuma fadiga, nenhuma necessidade natural, nem fome, nem sede, sem sono, nem qualquer outra necessidade da natureza. Pois o amor de Deus se espalhou invisivelmente com uma alegria inefável em seu coração[35]. Perseverando toda a noite à luz do fogo, ele trabalha na obra do intelecto exercitando seu corpo e desfruta das delícias do festim da eternidade e da imortalidade das plantas do Paraíso inteligível. Foi quando se viu elevado a este Paraíso que Paulo escutou as palavras inefáveis[36] que o homem afetado pela sensação do visível não consegue ouvir. 39. Uma vez inflamado pelo fogo da ascese e batizado na água das lágrimas o corpo já não se cansa quando pena, mas repousa no suor, pois ele evidentemente está acima dos esforços da ação. Recebendo do interior da alma a calma e o silêncio da paz, ele antes se enche de outro poder, de outra tensão, de outra força do Espírito. Depois de haver assim enriquecido o corpo que mora consigo, e erguido o estado deste acima do exercício corporal, a alma transfere os movimentos naturais para os combates do intelecto e trabalha resolutamente nesta obra. Ela guarda para si própria os frutos das plantas imortais no Paraíso inteligível, donde escorre em rios a fonte dos pensamentos divinos, e onde habita a Árvore do conhecimento de Deus carregada com os frutos da sabedoria, da alegria, da paz, da doçura, da bondade, da paciência e do amor inefável[37]. Trabalhando e guardando[38] com tal fervor, ela emigra do corpo e penetra na treva da teologia. Ela se coloca fora do universo. Nada do que é visível a retém. Unida a Deus, ela repousa de seus suores e de seu desejo. 40. A razão nos diz, a nós que nos devotamos à virtude: de tudo o que está em nós, o que é mais alto, o visível ou o inteligível? Se for o visível, não preferiremos nem amaremos nada tanto quanto as coisas que passam e nossa alma não será mais forte do que nosso corpo. Mas se for o inteligível, Deus é Espírito, e os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade[39]. Assim o exercício corporal é supérfluo[40] quando a obra intelectual da alma é suficientemente forte, tornando leve o que a puxa para baixo e tornando tudo espiritual, unindo tudo ao melhor. 41. Existem três ordens entre aqueles que avançam nos degraus que sobem rumo à perfeição: a ordem da purificação, a ordem da iluminação e a ordem da união mística que leva à perfeição. A primeira é a dos noviços. A segunda, a dos médios. A terceira, a dos perfeitos. Pois, subindo pela ordem estes três degraus, quem se devota à virtude cresce até alcançar o talhe de Cristo, até se tornar um homem perfeito na medida da plenitude de Cristo[41]. 42. A ordem da purificação é a dos noviços que se engajam nos combates sagrados. Sua natureza própria consiste na rejeição da forma do homem terrestre, na libertação de toda malícia material: ela nos faz revestirmo-nos do homem novo, renovado pelo Espírito Santo[42]. Sua obra é o desprezo da matéria, o esgotamento da carne, a fuga para longe de tudo o que incita à paixão a nossa porção racional e o arrependimento das faltas passadas. Por outro lado ela nos permite lavar em lágrimas o amargor do pecado, regrar nossa conduta sobre a bondade do Espírito, purificar pela compunção o interior da taça [43], ou seja, do intelecto, de toda sujeira da carne e do espírito[44], para em seguida verter nela o vinho da razão que alegra o coração do homem[45] purificado, e levá-la ao Rei dos espíritos para que ele a experimente, enfim, ela nos permite consumir efetivamente no fogo da ascese e nas penas dos combates, rejeitar todo
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veneno do pecado, embeber-se adequadamente, mergulhar nas águas da compunção e forjar um glaivo afiado capaz de lutar contra as paixões e os demônios. Quem chega a este estado por meio da ascese de numerosos combates extinguiu o poder do fogo natural e fechou a boca dos leões, as paixões selvagens. Ele foi confortado e erguido de sua fraqueza pelo Espírito. Ele se tornou forte como um novo Jó [46], vestiu o troféu da paciência e venceu o tentador. 43. A ordem da iluminação é a ordem dos que progrediram e que a partir dos combates sagrados alcançaram a primeira impassibilidade. Sua natureza própria é conhecimento dos seres, a contemplação das razões da criação e a comunicação do Espírito Santo. Sua obra consiste na purificação do intelecto operada pelo fogo divino, no desvelamento espiritual dos olhos do coração, no nascimento do Verbo nas mais altas meditações do conhecimento; seu fim é a palavra de sabedoria que expõe claramente a natureza dos seres, o conhecimento das coisas divinas e humanas e a revelação dos mistérios do Reino dos céus [47]. Quem alcançou este grau pela obra do intelectual da inteligência é transportado sobre o carro de fogo puxado pela quadriga das virtudes, como um novo Elias[48]. Ele é arrebatado em plena vida ao espaço inteligível e percorre as coisas dos céus, muito acima da baixeza do corpo. 44. A ordem mística, que conduz à perfeição, é a ordem dos que já percorreram tudo e que alcançaram a medida do talhe de Cristo[49]. Sua natureza própria é a de fender o espaço, de dominar o universo, de envolver as ordens dos mais altos céus, de aproximar da luz primigênia e de descobrir as profundezas de Deus pelo Espírito. Sua obra consiste em cumular o intelecto que contempla todas essas razões relativas à providência, à justiça e à verdade, consiste na resolução dos enigmas, das palavras e das parábolas obscuras[50] da divina Escritura, consiste enfim em iniciar aquele que assim realiza em si os mistérios ocultos de Deus para que ele se encha da sabedoria inefável pela comunhão com o Espírito e se revele no meio da grande Igreja de Deus como um sábio teólogo que, com as palavras do conhecimento divino, ilumina os homens. Aquele que, por meio das profundezas da humildade e da compunção, atinge este grau, penetrou no terceiro céu da teologia, como um novo Paulo. Ele escutou as palavras inefáveis[51] que nenhum homem sob o domínio das sensações é capaz de ouvir. Ele experimentou os bens secretos que o olho não viu, que o ouvido não escutou[52]. Ele se tornou ministro dos mistérios divinos[53], a boca de Deus, que serve aos mistérios revelando-os aos homens pela palavra; nisto ele encontra o repouso benfazejo, ele se tornou perfeito no Deus perfeito. Ele está unido com os teólogos às mais altas potências dos Querubins e dos Serafins, que possuem a palavra de sabedoria e de conhecimento. 45. A vida dos homens se divide em duas partes, e o fim desta vida se relaciona a três ordens. Uma parte da vida é comum e transcorre dentro do mundo. A outra não é comum e conduz para além do mundo. O que é comum se divide entre castidade e desejo insaciável. O que não é comum se divide em filosofia, ciência natural e energia sobrenatural. A primeira parte, ou bem vem naturalmente e se liga ao que é justo, ou bem perde o movimento natural, se liga ao que é injusto e conduz à injustiça. A segunda, se for dirigida pela regra, se buscar pelo sentido do fim[54], termina na natureza infinita e atinge a perfeição que está acima da natureza. Mas sem exercida por uma vã ambição, se afastar de sua finalidade, terminará numa inteligência inepta[55], imperfeita e com toda justiça rejeitada pela perfeição. 46. O Espírito é luz, vida e paz. Quem é iluminado pelo Espírito divino leva assim uma vida serena em paz. O conhecimento dos seres e a sabedoria do Verbo correm nele daí por diante, e a inteligência de Cristo lhe é concedida. Este homem conhece os mistérios do Reino[56], penetra nas profundezas de Deus e, dia após dia, com o coração calmo e luminoso, fala aos homens boas palavras de vida[57]. Pois ele é bom, uma vez que traz em si o Deus bom que anuncia o novo e o antigo[58]. 47. Deus é sabedoria. Deificando por meio do conhecimento dos seres aqueles que caminham na razão e na sabedoria, ele os une a si pela luz e os torna deuses por adoção. Do mesmo modo como criou tudo do nada pela sabedoria, que pela sabedoria ele conduz e governa todas as coisas do mundo, que na sabedoria
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ele realiza sempre a salvação de todos os que se aproximam em retorno a ele, também aquele que, por sua pureza, recebeu partilhar da sabedoria do alto cumpre sempre com toda sabedoria, como uma imagem de Deus, as obras da vontade divina. Ele se recolhe longe das coisas exteriores, tão divididas, e, a cada dia, pelo conhecimento dos segredos, eleva e aponta sua razão para as vidas verdadeiramente angélicas. Unificando sua vida tanto quanto lhe for possível, ele une a si mesmo às potências do alto que giram ao redor de Deus na unidade; ele as segue como a bons guias e por meio delas sobe até a origem primeira e a causa primeira. 48. Aquele que, pela mais alta sabedoria, se uniu às potências do alto, que unido Deus (por que se tornou à semelhança de Deus) pela razão e a comunhão vive com todos no amor à sabedoria, este afasta das coisas exteriores e divididas as faculdades dos que desejam isto, com a ajuda do poder divino. Imitando a Deus, ele os recolhe como a si próprio numa vida unitiva e os eleva por meio da sabedoria, o conhecimento e a iluminação dos segredos, para a contemplação da glória da única e primigênia luz. Unindo-os aos seres e às ordens que gravitam ao redor de Deus, ele os conduz, luminoso e flamejante de Espírito, para a unidade de Deus. 49. Oito virtudes naturais e fundamentais acompanham as quatro virtudes. Cada uma delas, de parte e de outra de si mesmas, suscita duas outras e se torna uma tríade. Assim, da meditação se levantam o conhecimento e a sábia contemplação; da justiça, o discernimento e a compaixão; da coragem, a paciência e a constância; da castidade, a pureza e a virgindade. Deus, que configurou de três em três estas doze virtudes e que nos inicia em seus mistérios, assenta-se acima de tudo na sua sabedoria sobre o trono do intelecto, e envia o Verbo para que este as crie em nós. O Verbo, recebendo dos princípios fundamentais a matéria de cada uma dessas virtudes, cria na alma o mundo inteligível da piedade. Na alma ele desdobra a meditação como se fosse um véu constelado de estrelas que iluminam a vida, e faz brilhar e irradiar sobre ela o conhecimento divino e a contemplação natural, como dois grandes luminares. Como se fosse a terra, ele funda na alma a justiça, como um festim inesgotável. Ele estende a castidade sobre ela como o ar, para cobri-la com o frescor do orvalho da vida sem mistura. Como o mar, ele delimita a coragem na fraqueza da natureza, para derrubar as fortalezas e as torres[59] do adversário. O Verbo, construindo desta maneira o mundo, coloca na alma o Espírito, o poder do movimento perpétuo do intelecto e do recolhimento constante que não se dispersa, como disse Davi: “Sobre a palavra do Senhor os céus foram fundados, e pelo sopro de sua boca todo o seu poder[60]”. 50. Através das passagens que realizam de uma idade espiritual a outra, nosso Senhor Jesus Cristo cresce naqueles que se dedicam à virtude. Quando ainda são crianças e precisam de leite[61], se diz que bebem o leite das virtudes elementares do exercício do corpo, cuja utilidade diminui[62] na medida em que crescem em virtude e se afastam da infância. Quando chegam à adolescência e comem o alimento sólido da contemplação dos seres, porque se exercitaram nos sentidos da alma[63], diz-se que avançaram em idade e em graça[64], que já se assentam entre os anciãos[65] e que descobrem neles as profundidades ocultas nas trevas[66]. Quando enfim chegam à idade do homem perfeito, na medida da plenitude de Cristo[67], diz-se que pregam a todos a palavra do arrependimento, que ensinam aos povos as coisas do Reino dos céus, e que vão ao encontro dos sofrimentos[68]. Pois este é o fim de todo homem que se aperfeiçoa nas virtudes: depois de haver atravessado todas as idades de Cristo, chegar ao sofrimento das tentações carregando sua cruz. 51. Na medida em que estamos submetidos aos elementos da ascese, evitando tomar alimentos, tocar as coisas, contemplar a beleza, escutar os cantos, sentir perfumes, enquanto estamos sob a orientação de tutores e ecônomos[69], somos ainda crianças, mesmo que sejamos herdeiros e mestres de todas as coisas do Pai. Mas quando o tempo da ascese chega ao seu termo e se realizou na impassibilidade, então da pureza da reflexão nasce em nós o Verbo e sobre nós vem a lei do Espírito, a fim de nos resgatar, a nós que estávamos sob a lei dos cuidados da carne, e de nos conceder a adoção. Isto feito, então o Espírito
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clama em nossos corações: “Abba, Pai”, nos mostrando e nos revelando a filiação e a liberdade diante de Deus Pai. Por intermédio de Cristo ele permanece em nós e nos fala como se fôssemos filhos e herdeiros de Deus[70]. A partir daí, estamos libertos da escravidão dos sentidos. 52. Para aqueles que, juntamente com Pedro, progrediram na fé, que, com Tiago, se elevaram na esperança, que com João se tornaram perfeitos no amor, o Senhor se transfigura depois de haver subido a alta montanha da teologia[71]. Pela manifestação e a marca da ele brilha diante deles como o sol. Pelos pensamentos da sabedoria misteriosa ele flameja como luz. O Verbo se revela neles, no meio da Lei e da Profecia, legislando e ensinando as coisas da Lei, e descobrindo os tesouros profundos e escondidos da sabedoria das coisas da Profecia: então ele prevê e prediz. O Espírito os cobre com sua sombra como uma nuvem luminosa, e desta nuvem a voz da teologia mística desce sobre eles, iniciando-os no mistério da Trindade em três Hipóstases, dizendo-lhes: “Eis aqui meu Bem-Amado, o termo da palavra de perfeição, em quem eu me comprazo[72]: tornem-se para mim filhos perfeitos no Espírito perfeito”. 53. A alma que despreza todas as coisas terrestres e que está totalmente ferida pelo amor a Deus vive num êxtase estranho e divino. Pois, depois de haver visto claramente as naturezas e as razões dos seres, depois de ter compreendido o fim das coisas humanas, ela já não suporta permanecer encerrada no universo nem limitada por aquilo que a cerca. Rompendo seus limites e os laços de seus sentidos, ultrapassando a natureza de todas as coisas, ela penetra nas trevas da teologia, no silêncio inefável, compreende a beleza do Ser na luz da inexprimível sabedoria das meditações, na medida da graça recebida. Mergulhando divinamente em sua contemplação naquilo sobre quê medita, ela se delicia com os frutos das plantas imortais e com o temor amoroso, vale dizer, com as meditações dos pensamentos divinos. Ela exprime perfeitamente a grandeza e a glória, porque nunca está crispada sobre si mesma. Estranhamente levada pelo Espírito, ela conhece o sofrimento louvável numa alegria e um silêncio indizíveis. Mas como ela age, ou o que a empurra, ou o que lhe faz ver e misticamente lhe comunica os segredos, estas coisas lhe é impossível explicar. 54. Quem semeia em si próprio com justiça as lágrimas da compunção recolhe o fruto da vida: uma alegria inexprimível. Quem busca e espera o Senhor até que ele venha e produza sua justiça colherá em abundância as espigas do conhecimento de Deus. A luz da sabedoria o iluminará e ele se tornará um candelabro de luz eterna para iluminar todos os homens. Ele não se negará aos que lhe estão próximos, cobrindo-a com o jarro do ciúme, esta luz de sabedoria que lhe foi dada[73]. Ele dirá as boas palavras na Igreja dos fiéis para o benefício de muitos[74]. Ele dirá coisas que permaneceram ocultas desde a origem, tudo aquilo que ele ouviu do alto, deixando ressoar em si o Espírito divino, e se aplicando a tudo o que sabe por meio da contemplação dos seres e daquilo que seus Pais lhe ensinaram[75]. 55. As montanhas da obra dos mandamentos de Deus serão abertas a todo homem consagrado no dia em que ele atingir a perfeição na virtude. Elas lhe destilarão a doçura da alegria quando ele reinar sobre Sião pela perfeição pura. E as colinas, as palavras de virtude, se derramarão em leite. Elas lhe trarão o alimento quando ele repousar sobre o berço da impassibilidade. Todas as fontes de Judá, vale dizer, sua fé e seu conhecimento, farão correr suas águas: os dogmas, as parábolas e os enigmas das coisas de Deus. E a fonte da sabedoria oculta jorrará de seu coração, como da mansão do Senhor, e irrigará a ravina de juncos[76], ou seja, os homens consumidos pela secura e o calor das paixões. Então ele conhecerá em si o verdadeiro cumprimento das palavras do Senhor, que disse: “Aquele que crê em mim, de seu seio correrão rios de água viva[77]”. 56. O sol de justiça, disse Deus, se eleva sobre aqueles que reverenciam, e sua cura está em seus atos. Eles deixarão a prisão das paixões e correrão livremente como bezerros soltos dos laços do pecado. Eles pisotearão os homens iníquos e os demônios como se estes fossem cinzas no dia em que eu os
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restabelecer, disse o Senhor que domina o universo[78], quando eles se levantarão através de todas as virtudes e se tornarão perfeitos pela sabedoria e o conhecimento na comunhão do Espírito. 57. Se, sobre a montanha que domina a planície[79] deste mundo e a Igreja de Cristo, você erguer o estandarte do novo conhecimento do alto, se você levanta em si a voz da sabedoria de Deus que lhe foi concedida- conforme foi dito – exortando e ensinando pela palavra a seus irmãos, abrindo a eles a inteligência da divina Escritura[80] para que compreendam os dons maravilhosos de Deus, e se você se antecipa a eles na obra de seus mandamentos, não tenha medo dos que invejam o poder de suas palavras e que alteram toda a divina Escritura, homens vazios que varreram a si próprios mas que estão prestes a se tornarem morada do diabo[81]. Pois Deus escreveu no Livro dos vivos[82] as palavras de seus lábios, e estes homens não poderão prejudicá-lo, como não o pode Simão a Pedro. Antes dirá você, juntamente com o profeta, neste dia em que os vir estendendo armadilhas para fazê-lo cair no caminho: “Eis que o Senhor é meu Deus e meu Salvador. Eu me confiei a ele. Ele me salvará e a nada temerei. Pois o Senhor é minha glória e meu louvor, e ele me salvou. Eu não cessarei de anunciar as obras de sua glória sobre a terra[83]”. 58. Se você perceber em si que o impulso da energia das paixões está inerte e que brota de seus olhos a compunção que provém da humildade, saiba que o Reino de Deus desceu sobre você e que em você concebeu o Espírito Santo. E se você sentir a ação do Espírito, sacudindo-o e falando em seu interior, e levando-o a proclamar na grande Igreja a salvação e a verdade de Deus, não cerre seus lábios[84] por causa da inveja dos judaizantes. Apenas sente-se e, como disse Isaías[85], escreva num bloco de notas[86] aquilo que lhe diz o Espírito: “Estas coisas acontecerão nos dias do tempo e até a eternidade, como lhe foi dito: os que sentem inveja são um povo indócil, filhos mentirosos que não têm fé”. São estes os que não querem acreditar que o Evangelho age ainda e que ele criou os filhos de Deus e os profetas, mas que dizem aos profetas e aos doutores da Igreja: “Não nos anunciem a sabedoria de Deus”, e àqueles que enxergam as visões da contemplação natural: “Não nos falem disto, mas reportem-nos e anunciem-nos uma nova ilusão que ame o mundo, retirem de nós a palavra de Israel[87]”. Não dê atenção à sua inveja e às suas palavras. Porque até os surdos, no final, escutarão aquilo que do alto ressoa em você para o benefício de muitos outros. E os que estão nas trevas desta vida e com os olhos cegados nas brumas do pecado verão [88] a luz em suas palavras. E os pobres de espírito se regozijarão[89] com elas, os homens desesperados se encherão de alegria[90] e os perdidos em espírito conhecerão a sabedoria de suas palavras. Os que murmuram contra você aprenderão a obedecer às palavras do Espírito. E as línguas que balbuciam aprenderão a dizer a paz[91]. 59. Feliz daquele que tem em Sião, na Igreja de Deus, a semente do ensinamento de suas palavras, disse Isaías[92], e que tem seus próprios filhos, os filhos do Espírito, na cidade dos primogênitos, na Jerusalém celeste. Pois este homem, diz-se, esconderá suas palavras por algum tempo e ele mesmo será oculto pelas águas que o levam. No final ele aparecerá em Sião, na Igreja dos fiéis, levado como que por um rio glorioso sobre a terra sedenta das ondas de sua sabedoria. Os que se confiaram a ele já não serão derrubados pelos invejosos, mas seus ouvidos escutarão as suas palavras. O coração dos que sofrem na alma escutará com atenção. E que os servidores da inveja não digam mais: “Silêncio”, porque um homem piedoso os aconselhou com inteligência e não lhes disse bobagens como estes tolos que são os sábios do mundo. Seu coração nada pensou de vão, nada existe nele que seja iníquo, nada de falso ele disse diante de Deus, para dispersar as almas que tinham fome e tornar vazias as almas que tinham sede[93]. Por isso suas palavras continuam a ser um auxílio para muitos, mesmo que não pareçam sê-lo àqueles que o denigrem. 60. Para quem habita sobre uma rocha dura numa caverna elevada, o pão do conhecimento é dado à saciedade, e o cálice da sabedoria até a embriaguez. Assim sua transparência será fiel. Ele verá o Rei na glória e seus olhos verão de longe a terra[94]. Sua alma meditará a sabedoria e anunciará a todos o lugar eterno, fora de onde nada existe.
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61. Assim, se a instrução do Senhor abre os ouvidos de todo homem que o reverencia, lhe acrescenta mais um ouvido para escutar e lhe dá uma língua de discípulo para que ele saiba quando dizer[95] uma palavra, quem mais faria recuar os prudentes e os sábios deste mundo desnudando a loucura de sua sabedoria[96]? Quem mais confirmaria as palavras de seus servidores? Quem mais, senão ele mesmo que realiza coisas novas e maravilhosas para sua glória, que traça no coração deserto e seco um caminho de humildade e doçura, que faz jorrar, na reflexão árida e sem água, rios de sabedoria inefável, para irrigar sua raça eleita, o povo que ele guarda a fim de contar suas virtudes[97]. Pois ele caminha diante dos que o amam e reverenciam, ele aplaina as montanhas das paixões, destrói as portas de bronze da ignorância, abre as portas de seu conhecimento e lhes revela nas trevas os tesouros ocultos e invisíveis, para que eles saibam que é ele mesmo o Senhor Deus que os chama por seu nome: Israel[98]. 62. Quem é aquele que vence o oceano de paixões e detém suas vagas? É o Senhor dos Exércitos. Ele liberta aos que o amam do perigo do pecado. Ele transforma em calma a tempestade dos pensamentos, coloca suas próprias palavras em suas bocas[99] e lhes cobre com a sombra de suas mãos, sob a qual ele estendeu o céu e fundou o mar. Ele próprio concede aos que o reverenciam uma língua de discípulo e um ouvido inteligente[100] para ouvir sua voz do alto e para anunciar seis mandamentos na casa de Jacó, à Igreja dos fiéis. Mas nos que não têm olhos para ver os raios do Sol de justiça, nem ouvidos para ouvir as maravilhas da glória de Deus, o fim da ignorância é a obscuridade, e a esperança é vã como as palavras. Nenhum destes diz o que é justo. Neles não existe julgamento de verdade. Eles se confiam a coisas vãs e o que eles dizem é vazio. Eles concebem a invejam e dão a luz à difamação. Seus ouvidos são incircuncisos, eles não conseguem escutar. Por isso a palavra de conhecimento de Deus é para eles uma reprovação e eles não a querem ouvir. 63. Que sabedoria pode haver entre aqueles que invejam seu próximo? “Como, diz Jeremias [101], os maledicentes podem dizer: Nós somos sábios, e: A lei do Senhor está do nosso lado, se eles se consomem de inveja diante daqueles que receberam a graça do Espírito pela sabedoria e o conhecimento de Deus? O falso conhecimento dos escribas e dos sábios deste mundo é vã. Eles perderam o caminho da verdadeira ciência”. É por isso que os sábios decaídos da sabedoria do Consolador foram confundidos ao vê-lo crescer entre os filhos dos pecadores, e então temeram o poder de suas palavras. Eles foram capturados nas redes de seus pensamentos, uma vez que rejeitaram a verdadeira sabedoria e o conhecimento do Senhor. 64. Por que terão sido estes homens consumidos pela inveja contra aqueles a quem a graça do Espírito tornou ricos, contra os que receberam uma língua de fogo como a pena de um escriba alerta [102], quando foram eles próprios que abandonaram a fonte da sabedoria de Deus? Pois se eles tivessem seguido o caminho de Deus eles teriam permanecido para sempre na paz da impassibilidade. Eles teriam aprendido onde está a razão, onde a força, onde a inteligência, onde o conhecimento dos seres, onde a longevidade, e a vida, a luz dos olhos, a sabedoria e a paz[103]. Eles teriam aprendido quem encontra o lugar da sabedoria e quem penetra em seus tesouros. Eles teriam aprendido de que forma Deus, por meio de seu profeta, dá suas ordens aos iniciados em sua palavra, quando diz: “Que o profeta que recebeu num sonho uma revelação conte aquilo que viu em sonho. E quem ouviu minha palavra proclame minha palavra com toda a verdade[104]”. E ainda: “Escreva para mim em um livro todas as palavras que eu lhe disse[105]”. A partir daí, jamais eles teriam sido consumidos pela inveja diante de tais homens. 65. Se um Etíope pudesse mudar sua pele e uma pantera suas manchas[106], também os maledicentes poderiam dizer e projetar o bem, mesmo pensando o mal. Eles enganam o próximo com suas mentiras porque avançam com truques e se riem de seus amigos. Eles não dizem a verdade, pois sua língua já não sabe falar senão uma linguagem vã e falsa[107]. Compreenda, portanto, você, que pelo conhecimento e a palavra de Deus que estão consigo, é invejado e desdenhado por eles. Ore assiduamente e diga com Jeremias: “Senhor, lembre-se de mim, visite-me, guarde-me destes homens maus que me perseguem. Em
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sua paciência, depois de me testar por tanto tempo, não me rejeite. Saiba que eu sou o opróbrio dos que rejeitam seu o conhecimento. Consuma-os na sua inveja, e a palavra de seu conhecimento fará o regozijo e a alegria de meu coração. Pois eu jamais me sentei na assembleia dos que se riem de seu conhecimento. Eu me confiei às suas mãos. Sentei-me na solidão, pois sua inveja me enchia de amargura. Você me ouvirá, bem o sei, porque você faz com que os perdidos retornem de seus descaminhos (...) Eu o restabelecerei entre meus amigos. Você estará diante da minha face. Se, daquilo que é indigno você extrai o que é nobre, você será como a minha boca. Eu o livrarei das mãos dos malfeitores que o ultrajam, disse o Senhor Deus de Israel[108]”. 66. Que os sábios maledicentes escutem todo o fim do discurso[109]. Por meio de suas penas, os Nazireus[110] de Deus se tornaram mais puros do que a neve. Em suas vidas eles estão mais brancos do que o leite. O brilho de sua sabedoria supera o da safira[111], e a forma de sua palavra a da pérola pura. Os que comeram das delícias do conhecimento deste mundo desapareceram. O Espírito os deixou. Os que se alimentaram do grão de sabedoria dos Gregos foram recobertos pelo fumo da ignorância[112]. Eles lançaram cordas sobre si mesmos e ficaram presos a si próprios. Pois sua língua está colada à sua garganta e eles se tornaram mudos. Eles rejeitaram receber, a custa de penas, a verdadeira sabedoria e o verdadeiro conhecimento do Espírito divino. 67. Deus, que derruba a árvore que se ergue e levanta a que cai, que seca a árvore verde e faz reflorir a árvore seca[113], ele próprio abre a boca dos seus servidores[114] no meio da assembleia numerosa e concede a palavra a todos os que anunciam poderosamente a boa nova[115]. Pois a ele pertencem a sabedoria, a inteligência e a força. E assim como ele muda os tempos e os anos, ele faz reinar sobre as paixões as almas que o buscam e o desejam. Ele os faz passar da vida para a Vida, concedendo por meio do Espírito a sabedoria aos sábios e a inteligência aos que são capazes de compreender. Ele próprio revela aos que sondam as profundezas de Deus as coisas enterradas e ocultas. Ele lhes dá a conhecer aquilo que está envolto nas trevas dos enigmas. Pois a luz da sabedoria e do conhecimento está com ele[116], e ele a concede a quem ele quiser. 68. Para aquele que cumpre com perseverança os mandamentos relativos ao homem exterior e ao homem interior, para quem não vê senão a glória de Deus, são concedidas a honra do conhecimento do céu, a paz da alma e a incorruptibilidade. Pois este não se contenta apenas com ouvir, ele realiza a obra da lei da graça[117]. Seu conhecimento é atestado pelas obras, e Deus não o despreza, mas, juntamente com ele, glorifica este conhecimento pelas palavras que vêm através dele e que manifestam a luz que sua sabedoria faz brilhar na Igreja dos fiéis. Pois Deus não faz acepção de pessoas[118]. Mas a quem se entrega às brigas, a quem desobedece às palavras dos que trazem o Espírito[119], que se deixa persuadir por seu próprio intelecto e pelas palavras enganadoras daqueles que só se cercam de piedade na aparência[120] e que são levados por um espírito de ambição e de amor ao prazer, a este é dada a aflição e a angústia, a inveja, a concupiscência e a cólera. A partir daí este pagará por seu erro e ao final denunciará os pensamentos que se acusarão mutuamente ou que o justificarão, no dia em que Deus julgar os segredos dos homens e retribuir a cada qual segundo suas obras[121]. 69. Não é judeu aquele que apenas parece, como se diz, nem é circuncisão aquela que é visível na carne, mas é judeu aquele que o é secretamente, e é circuncisão aquela feita no coração, que provém do espírito e não da letra[122]. Da mesma forma o homem perfeito no conhecimento e na sabedoria não é aquele que o é apenas por sua eloquência e sua bela linguagem, como não é um asceta realizado aquele que estaciona no exercício corporal e visível das penas, mas aquele que se consagra à obra espiritual secreta. Quem fala com um coração puro e bom é um sábio perfeito em conhecimento pelo Espírito de Deus, e não pela letra. Seu louvor não vem dos homens, mas de Deus[123]. Os homens o ignoram e invejam. Somente Deus e aqueles que são animados pelo mesmo Espírito o amam e conhecem.
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70. Se nenhuma carne é justificada perante Deus pelas obras da lei[124], como foi dito, que, apenas pelos combates e as penas da ascese, atingirá a perfeição diante de Deus? Com efeito, pela ação nós nos encaminhamos ao estado de virtude e reprimimos a energia das paixões. Mas não é apenas pela ação que nos tornamos homens perfeitos na plenitude de Cristo. Então, o que nos leva à perfeição? A fé interior em Deus: ela é o fundamento daqueles que esperam[125]. Por causa dela Abel ofereceu a Deus um sacrifício maior do que Caim e foi confirmado como justo[126]. Por ela Abrahão, ao ser chamado, aceitou partir e foi habitar na terra prometida[127]. É ela que conduz os que são verdadeiramente fervorosos e os eleva até as grandes esperanças dos mais altos dons de Deus, e de lá até o conhecimento dos seres. É ela que coloca em seu coração os tesouros inesgotáveis do Espírito, para que estes lhe exprimam os mistérios novos e antigos de Deus[128], e para que ele os dê aos que disto necessitam. O homem que recebeu a graça desta fé se eleva pelo amor até a perfeição do conhecimento de Deus e entra em seu repouso[129]. Ele mesmo repousa das obras realizadas, como Deus repousou das suas próprias[130]. 71. Deus fez desde o começo a promessa: os que não forem fiéis não entrarão no repouso. Assim sendo, é pela sua falta de fé que eles não podem entrar[131]. Isto posto, como poderiam alguns, apenas pelo exercício corporal, sem fé, entrar no repouso da impassibilidade e na perfeição do conhecimento, quando vemos tantos homens incapazes de aí entrar e repousar de todas as suas penas? Portanto, cada qual deve investigar se não tem em si um coração pervertido pela incredulidade[132]. Pois é por causa desta última que falta a eles o repouso e a perfeição, embora se entreguem a tantas penas. Por isso eles se afadigam todo o tempo nas obras ativas e comem o pão da dor[133]. Se eles não conhecem a graça do sétimo dia[134], que se esforcem para entrar pela fé no repouso da impassibilidade e na perfeição do conhecimento, a fim de não caírem na expressão original da desobediência[135] e não serem submetidos às mesmas coisas que aqueles que um dia foram infiéis. 72. Dotados de sentidos, mas também de palavra e intelecto, devemos oferecer de nós mesmos um dízimo a Deus. Dotados de sentidos, devemos perceber atentamente as coisas sensíveis e por meio de sua beleza nos elevarmos até o Criador, atribuindo a ele o conhecimento irrepreensível dessas coisas. Dotados de palavra, devemos falar o bem das coisas divinas e humanas. Dotados de intelecto, devemos pensar sem erros em Deus, na vida eterna, no Reino dos céus, nos mistérios do Espírito nele ocultos. Tudo isto para provar que sentimos, falamos e compreendemos sã e irrepreensivelmente segundo Deus. Esta é a verdadeira medida e a santa oferenda a Deus. 73. O dízimo que em primeiro lugar devemos a Deus é a Páscoa da alma, ou seja, a superação de todo estado passional e de toda sensação desprovida de razão. Durante esta Páscoa, o Verbo é oferecido em sacrifício por meio da contemplação dos seres. Ele é comido no pão do conhecimento e seu sangue precioso é bebido no cálice da sabedoria misteriosa. Aquele que comeu e celebrou a Páscoa sacrificou em si mesmo o Cordeiro que tira o pecado do mundo[136], e já não mais morrerá, conforme a palavra do Senhor, mas viverá por toda a eternidade[137]. 74. Aquele que se levantou de suas obras mortas ressuscita com Cristo. E se ressuscita com Cristo por meio do conhecimento, Cristo já não morre mais nele, a morte da ignorância já não mais o domina. Pois aquilo que um dia morreu devido ao pecado, levado por seu movimento natural, morreu de uma vez por todas. O que agora vive, vive por Deus[138], pela liberdade do Espírito Santo, que o levantou de entre as obras mortas do pecado. Ele próprio já não vive mais para a carne e para o mundo, porque morreu para os membros de seu corpo e para as coisas da existência. Mas Cristo vive nele[139] a partir do momento em que ele está sob a graça do Espírito Santo, que ele não está mais submetido à lei da carne, e que ele oferece a Deus Pai seus membros como armas de justiça[140]. 75. Aquele que libertou seus membros da escravidão das paixões e os colocou a serviço da justiça[141] entra na santificação do Espírito Santo, tendo superado a lei da carne. O pecado não mais o dominará. Ele
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se confiou à liberdade e à lei do Espírito. Pois o fim do serviço da justiça não é como o fim da escravidão das paixões. Esta termina na ruína inteligível da alma. Mas aquela conduz à vida eterna oculta em Jesus Cristo[142] nosso Senhor. 76. Enquanto o homem viver carnalmente, a lei da carne o dominará. Mas se ele perece, se se faz de morto para o mundo, ele se livra desta lei[143]. Não existe outro caminho para se morrer para o mundo senão fazendo morrer os membros do corpo. Nós os levamos à morte quando comungamos do Espírito Santo. E sabemos que comungamos do Espírito Santo quando oferecemos a Deus frutos dignos do Espírito: o amor a Deus com toda nossa alma, o amor ao próximo com todas as nossas forças, a alegria do coração que vem de uma consciência pura, a paz na alma que provém da impassibilidade e do auto rebaixamento, a bondade dos pensamentos do intelecto, a paciência nas aflições e nas tentações, a simplicidade de uma vida modesta, a fé interior em Deus e que não duvida de nada, a doçura na humildade, a compunção e a temperança dos sentidos que abarca tudo. Quando levamos estes frutos a Deus, passamos ao largo da lei da carne. Não existe mais lei que nos castigue por causa dos frutos que nos dera a morte quando ainda vivíamos conforme a carne. Pois fomos libertos desta lei[144] desde que fomos levantados de nossas obras mortas, com Cristo, pela liberdade do Espírito. 77. Os que receberam as primícias do Espírito pelo banho do novo nascimento e que as guardaram com todo vigor, pressionados pela pesandez da carne, gemem por si e, com a chegada do Consolador em sua plenitude, aguardam a filiação[145], a fim de ver seu próprio corpo liberto da escravidão da corrupção. Pois o Espírito vem em socorro de sua fraqueza natural e intercede por eles com gemidos inefáveis [146]. Seus corações estão em Deus e suas esperanças esperam ver em sua carne mortal a revelação do Filho de Deus, a morte vivificante de Jesus[147], a fim de se tornarem também filhos de Deus conduzidos pelo Espírito Santo, a fim de receberem a libertação da escravidão da carne e alcançar a liberdade da glória dos filhos de Deus, por quem tudo concorre para o bem, pois eles amam a Deus[148]. 78. A divina Escritura deve ser interpretada espiritualmente, e é aos espirituais que são revelados pelo Espírito Santo os tesouros que estão contidos nela. O homem psíquico não pode receber tal revelação [149]. Este segue seus próprios pensamentos e recusa ouvir ou compreender o que dizem os outros, porque não traz em si o Espírito de Deus que sonda as profundezas de Deus e que conhece as coisas de Deus [150]. Ele tem em si o espírito material do mundo, cheio de ciúme e inveja, transbordando de querelas e divisões [151]. Por isso buscar o sentido e descobrir a inteligência das palavras lhes parece uma loucura. Pois, ignorando que tudo o que está nas divinas Escrituras, relativamente às coisas divinas e humanas, só pode ser considerado espiritualmente, eles se riem daqueles que as veem assim. Na medida em que, como Demas[152], seu pensamento distorce e inverte os pensamentos divinos e as palavras de tais homens, eles afirmam que estes não são espirituais, que não são conduzidos pelo Espírito de Deus, que não têm método. Mas o espiritual não é assim. A tudo ele julga inspirado pelo Espírito divino. Ele próprio não pode ser julgado por ninguém: porque ele tem em si a inteligência de Cristo, a qual ninguém jamais poderá instruir[153]. 79. No fogo da revelação do último dia, que então provará a obra de cada um[154], diz Paulo, caso esta obra seja de essência incorruptível e lhe tenha sido dada para edificação, ela permanecerá intacta no meio do fogo. Não apenas ela não queimará, mas resplandecerá em luz, inteiramente purificada, mesmo da menor mácula. Ao contrário, se a obra de alguém foi dedicada à matéria perecível e se ligou a ela para torná-la ainda mais pesada, ela será consumida[155] e o abandonará vazio no meio do fogo. A obra incorruptível, a que permanece, são as lágrimas do arrependimento, a misericórdia, a compaixão, a prece, a humildade, a fé, a esperança, o amor, e tudo o mais que é feito em vista da piedade: aquilo que, enquanto vive o homem, o edifica como um santo homem de Deus[156] e que, quando ele morre, parte consigo e permanece incorruptível por toda a eternidade. A obra que perece no fogo – é evidente para qualquer um – consiste no amor pelos prazeres, pela vanglória e pelo dinheiro, no ódio, na inveja, no roubo, na embriaguez, no
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ultraje, na condenação e toda falsidade que se realiza no corpo por concupiscência ou cólera. Estas coisas perecem junto com o homem que as traz em si, quando este é queimado pelo fogo da concupiscência e arrancado de seu corpo. E, ao desaparecer, elas abandonam no meio do fogo o operário eternamente atormentado pelos séculos dos séculos. 80. O conhecimento de Deus significa que é conhecido por Deus aquele que nele se edifica humildemente e com a oração, e que ele recebe de Deus a riqueza do verdadeiro conhecimento de seus mistérios sobrenaturais. Mas se a pessoa fica inchada por isto, ela já não está sendo edificada no conhecimento pela humildade e a prece, mas é levada pelo espírito material deste mundo. Por isso tal homem crê saber essas coisas, mas não conhece as coisas divinas como elas devem ser conhecidas[157]. Ao contrário, aquele que ama a Deus, que considera que nada é preferível ao seu amor e ao amor pelo próximo, este conhece tanto as profundezas de Deus como os mistérios de seu Reino, do modo como deve conhecê-los alguém que é guiado pelo Espírito divino[158]. E, realizando pelo amor a vontade de Deus como um verdadeiro operário do Paraíso de sua Igreja, ele se torna conhecido de Deus[159]. Pois ele faz com que as almas regressem, torna dignos os indignos[160] pela palavra que lhe é dada pelo Espírito Santo e mantém sua obra intacta pela humildade e a compunção. 81. Todos fomos batizados em Cristo pela água e o Espírito Santo. Todos comemos do mesmo alimento espiritual e bebemos da mesma bebida espiritual. Isto é Cristo. No entanto Deus não se compraz na maior parte de nós[161]. De fato, muitos fiéis e monges oprimiram e esgotaram seus corpos sob o peso de inúmeras penas de ascese e exercícios corporais, mas não tiveram a compunção que provém de um coração quebrantado ligado ao bem, nem a compunção inspirada pelo amor ao próximo e a si mesmo. Por isso eles ficaram vazios, perderam a plenitude do Espírito Santo e se afastaram do conhecimento de Deus. A matriz de seu pensamento permaneceu estéril, e suas palavras não contém sal nem luz. 82. O que o Verbo pede aos Nazireus[162] não consiste apenas em subir pela ação a montanha do Sinai, nem em se purificar antes de subir, nem em lavar suas vestes, nem em se abster de mulher[163], mas em ver a Deus, não por trás[164], mas ele próprio em sua glória, comprazendo-se neles, dando-lhes as tábuas do conhecimento e enviando-os para edificar seu povo[165]. 83. Depois de haver revelado seus mistérios ocultos, seus maiores mistérios, o Verbo não tomou consigo todos os seus servidores e discípulos, mas apenas a alguns deles, a quem ele concedeu um ouvido, aos quais abriu os olhos e deu ainda uma língua nova[166]. Tomando-os em separado dos demais, que também eram seus discípulos, ele subiu o monte Tabor da contemplação e se transfigurou diante deles [167]. Ele não os iniciou ainda no Reino dos céus, mas mostrou-lhes a glória e o esplendor da Divindade. Ele concedeu Às suas vidas e às suas palavras que brilhassem por si próprias como o sol no meio da Igreja dos fiéis. Ele transformou seus pensamentos em brancura, em pureza de luz radiante. Neles ele colocou seu intelecto e os enviou a proclamar com suas bocas o novo e o antigo[168], para que edificassem sua Igreja. 84. Muitos colocaram todo seu cuidado em cultivar seus campos, lançando neles uma semente pura, depois de haver cortado as ervas daninhas e queimado os cardos sob o fogo do arrependimento, mas, como Deus não espalhou sobre seus campos a chuva do Espírito Santo que é suscitada pela compunção, estes campos nada produziram e se consumiram na secura. Eles não produziram por si sós as espigas fecundas do conhecimento de Deus. É por isso que, mesmo não tendo passado fome nem sido privados da palavra de Deus, eles não receberam seu conhecimento e permaneceram de mãos vazias, tiveram pouco o que levar para se alimentarem no festim e morreram na alma. 85. Todo homem que pronuncia com sua boca palavras confiáveis para a edificação do próximo as extrai do bom tesouro do seu coração, por ser bom, como disse o Senhor[169]. Ninguém pode se dedicar à teologia e dizer coisas relativas a Deus, se não for no Espírito Santo[170]. E ninguém, se falar pelo Espírito
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de Deus, pode dizer coisas contrárias à fé em Cristo. Mas afirmando aquilo que edifica, que conduz a Deus e a seu Reino, ele restabelece a nobreza primordial e une a Deus muitos que se salvam. E, se a revelação do Espírito é dada a cada um para seu benefício[171], aquele que recebeu em abundância a palavra da sabedoria de Deus e que escutou a palavra do conhecimento é conduzido pelo Espírito divino. Ele se torna a morada dos tesouros inesgotáveis de Deus. 86. Todo homem batizado em Cristo e que acreditou jamais será deixado sem a graça do Espírito, desde que não se entregue às energias do espírito contrário, se não manchar a fé com suas obras e se não viver na irresponsabilidade e na negligência. Pois ele terá guardado vivas as primícias do Espírito Santo recebidas por meio do santo batismo. Ou então as terá reacendido com obras de justiça, caso estas se tenham extinguido. É impossível que ele não receba do alto o cumprimento desta justiça. Pois, ou bem ele conduziu o bom combate da palavra da sabedoria de Deus e, pela plenitude do Espírito, se tornou digno de ensinar na Igreja; ou ele recebeu a palavra do conhecimento dos mistérios de Deus e o mesmo Espírito o tornou digno de ver os mistérios do Reino dos céus; ou ele recebeu a fé interior, no mesmo Espírito, e lhe foi concedido crer nas promessas de Deus, como Abrahão; ou ele recebeu o carisma da cura no mesmo Espírito, para curar os enfermos; ou ele recebeu a energia das potências para expulsar os demônios e fazer milagres; ou recebeu o dom das profecias para prever e predizer as coisas por vir; ou o discernimento dos espíritos, para distinguir quem fala e quem não fala no Espírito de Deus; ou a interpretação das diferentes línguas[172], ou a proteção dos aflitos, ou a condução dos rebanhos de Deus[173] e do povo, ou o amor por todos e seus carismas, a paciência, a bondade e tantos outros[174]. Mas se alguém não possui nenhum destes dons, já não posso afirmar que ele seja fiel, nem posso contá-lo dentre os que se revestiram de Cristo pelo batismo divino[175]. 87. Aquele que tem amor não é capaz de invejar por ciúme. Ele não fanfarroneia por orgulho e presunção, nem se infla contra ninguém, nem faz o que possa ser inconveniente ao próximo. Ele não busca seus próprios interesses, mas os do próximo. Ele não se irrita prontamente contra aqueles que o afligem, nem investiga se aquilo que lhe acontece é mau. Ele não se regozija com as faltas de seus amigos, mas, juntamente com eles, com a verdade e a justiça. Ele aceita todas as aflições que lhe advêm. Em tudo ele crê, com simplicidade e inocência. Ele espera receber de Deus o fruto de tudo o que ele nos prometeu. Ele suporta tudo o que lhe advém na forma de tentações e não devolve o mal com o mal. O operário do amor jamais abandona o amor ao próximo[176]. 88. Dentre aqueles a quem foi concedido receber do alto a graça do Espírito Santo em seus diferentes carismas, alguns ainda são crianças e não atingiram a perfeição à qual os carismas divinos conduzem, enquanto outros são adultos e perfeitos na plenitude destes carismas. Os primeiros, compenetrados no cumprimento dos mandamentos divinos, crescem por meio destes e, cumulados com os maiores dons do Espírito, abandonam os carismas próprios da infância. Os outros, indo além e até o final no amor e no conhecimento de Deus, fazem cessar em si os carismas parciais, quer sejam estes a profecia, como foi dito, ou o discernimento, a inteligência das coisas ou o governo dos homens[177], etc. Pois aquele que penetrou no templo do amor já não conhece apenas parcialmente ao Deus Amor, mas, encontrando-o face a face, conhece-o como ele próprio é conhecido por Deus[178]. 89. Aquele que, em sua fervorosa busca pelos carismas espirituais, persegue e descobre o amor, já não suporta, pela prece e a leitura, falar apenas para sua própria edificação. Pois quem, por meio da prece e da salmodia, só fala a Deus com sua língua, edifica a si mesmo, como disse Paulo, mas deve também se apressar em profetizar para edificar a Igreja de Deus[179], ou seja, em ensinar aos que lhe são próximos a obra dos mandamentos de Deus e o modo como devem se esforçar para agradar a Deus. Em que poderia servir aos demais aquele que diariamente não fala senão a si próprio e a Deus por meio da prece e da salmodia, se não falar também aos que dependem dele, seja por uma revelação do Espírito Santo, seja pelo conhecimento dos mistérios de Deus, seja pelo carisma da previsão e da profecia, seja pelo ensino [180] da
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palavra da sabedoria de Deus? Quem dentre seus discípulos irá se preparar para combater[181] as paixões e os demônios se ele não lhes dispensar um ensinamento claro, por escrito ou de viva voz? Na verdade, se o pastor não busca edificar seu rebanho para que este receba em abundância a palavra do ensino e do conhecimento do Espírito, sua busca pelos carismas de Deus carece de fervor. Pois, não fazendo mais do que cantar e orar apenas com sua língua em espírito, ou seja, orando com sua alma, ele edifica a si próprio, mas seu intelecto permanece estéril[182]: ele não profetiza, nada ensina nem edifica a Igreja de Deus. Se Paulo, que, mais do que todos os homens, se uniu a Deus, preferia dizer na Igreja cinco palavras com sua inteligência fecunda para ensinar aos outros, mais do que dizer dez mil palavras de salmodia com a língua[183], isto significa que os que dirigem os homens se desviarão para longe do caminho se abandonarem seu encargo de pastores para se dedicarem apenas à leitura e à salmodia. 90. Aquele que, a partir d matéria e da essência intelectual, nos concedeu o ser, aquele que paradoxalmente uniu e constituiu em um só todos os elementos da natureza que por si só são contrários, também nos deu a arte de bem viver pela palavra de sua sabedoria e a palavra do conhecimento, para que, de um lado, por meio do conhecimento do Espírito vejamos os tesouros do Reino dos céus ocultos junto a ele e que ele nos concedeu e, de outro lado, por meio da sabedoria de sua palavra, possamos dar aos que nos estão próximos a riqueza de sua bondade e os bens da vida eterna, que ele preparou para a delícia daqueles que o amam[184]. 91. Quem ultrapassou as ameaças e as promessas das três leis penetrou na vida que já não está sujeita à lei. Este se tornou a própria lei da Igreja e já não está sob o poder da lei. A vida que não está sujeita à lei é livre e está acima de toda necessidade natural e de toda desorientação. Quem nela penetra está livre, como se vivesse fora da carne. Ele se torna como o fogo na comunhão do Espírito, totalmente unido a Cristo, acima de toda natureza. Nele foi abolido tudo o que é parcial[185]. 92. Quem chegou ao conhecimento do Intelecto primigênio, que é o começo e o fim do universo, já não tem em si nenhum limite e se encontra simultaneamente dentro e fora de todos os seres; este é capaz de permanecer só e de viver só em meio aos solitários. Ele não perde nada de sua perfeição por estar só, nem perde sua solidão por estar junto de muitos outros. Ele é sempre o mesmo em qualquer parte, e é só em tudo. Ele tem como começo o movimento que o leva à solidão no meio dos demais, e como fim a mais alta perfeição da virtude. 93. A união sem confusão, a conjunção da alma e do corpo, quando de acordo consigo mesma, constitui uma só e mesma obra, seja da matéria, seja da natureza. E se ela não esta em acordo, um combate interior desperta o desejo de vitória. Mas a razão vem e toma o poder, dissipando logo toda inveja e colocando a concórdia à frente. Assim ela entrega a totalidade das obras à natureza e ao Espírito. 94. Dos três seres que nos constituem, um comanda e não é comandado; outro comanda e é comandado; e o terceiro não comanda e é comandado. Assim, quando aquele que comanda se vê dominado pelos que são comandados, aquele que é livre por natureza se vê submetido aos que normalmente são sujeitados. Ele é deslocado de sua própria hegemonia e de sua natureza própria. Assim se estabelece um grave conflito entre eles e, se este conflito existe, não se pode dizer que tudo está submetido à razão [186]. Mas quando o que comanda consegue dominar os outros e conduzi-los sob seu poder e sua soberania, então tudo o que estava separado é reunido no Um e entra em acordo, e o que conduz a Deus traz consigo a paz. Estando tudo sujeito ao Verbo, o Reino é entregue por ele a Deus Pai[187]. 95. Quando os cinco sentidos submetidos aos quatro princípios das virtudes fundamentais guardam em si a docilidade, eles dispõem a natureza do corpo, formada por quatro elementos[188] a seguir sem perturbações a roda da vida. Neste movimento da natureza, as potências não se revoltam contra sio mesmas. A parte passional do desejo e do ardor se une à razão. O intelecto, assumindo seu poder natural, faz dos quatro
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princípios seu carro, dos cinco sentidos submissos seu trono e, combatendo a carne tirânica, arrebatado aos céus, é conduzido pela quadriga[189]. Ele se apresenta ao Rei do universo, recebe a coroa da vitória e repousa nele da longa carreira. 96. Para os que se tornaram perfeitos no tempo da contemplação e que estão fundamentados sobre as colunas do Espírito, o cálice está preparado e o pão já foi trazido para a mesa real. Eles repousam sobre o trono, ricos em prata. Um tesouro de pérolas e pedras preciosas está às suas portas e uma riqueza incontável é colocada em suas mãos. A ação logo faz deles homens clarividentes em suas obras. Ela os prepara a que se dirijam ao Rei e não para os homens preguiçosos. 97. O Reino dos céus é concedido já aqui em baixo a todos os que se consagram a Deus, ou apenas após a dissolução do corpo? Se ele é concedido desde agora, a vitória é invencível, a alegria inefável e nossa elevação ao Paraíso é livre. Pois este se encontra diretamente no oriente divino[190]. Mas se devemos espera-lo após a morte e a dissolução, e se o abandono do mundo é feito sem temor, aprendamos no que consiste o Reino dos céus, o Reino de Deus e o Paraíso, e no que um difere do outro, e qual é o tempo de cada um, e como, quando e depois de quanto tempo nos será dado penetrar num ou noutro. Pois quem viveu no interior do primeiro, ao mesmo tempo em que existia aqui em baixo revestido de sua carne, também não deixou de estar nos outros. 98. O mundo do alto, que ainda não está acabado, aguarda para se realizar recebendo os primogênitos de Israel, que querem a Deus, para seu restabelecimento. Pois o mundo do alto se realiza e termina por meio daqueles que alcançam o conhecimento de Deus. Uma vez acabado, ele põe fim ao mundo de baixo, o mundo dos fiéis e dos infiéis e abre a todos uma passagem para si, dispensando a cada um o mesmo grau e separando de uns e de outros aquilo que não estava em si unido a ele. Ele conduz para si, provindo de si mesmo, a origem e o fim dos seres. Ele lhes assinala os limites, como uma fronteira sem margens. Mas ele próprio não é conduzido por nenhuma outra origem. Nada o transporte e nada o limita. Pois ele é em si o movimento perpétuo, não confinado em si mesmo, mas que ao mesmo tempo não ultrapassa seus próprios limites. Mas ele realiza o sábado dos outros, e é o repouso de toda origem e de todo começo. 99. A unidade das Potências do alto, que canta os louvores, dirige os hinos e conduz o coro, tem uma composição trinitária. Ela está diante da Trindade de modo trinitário, celebrando a Liturgia e oferecendo o louvor temerosamente. Uns se estendem sob a origem e a causa de tudo. Eles procedem desta origem, são os mais próximos e dirigem os hinos: seus nomes são os Tronos, os Querubins e os Serafins. Eles têm como característica a sabedoria inflamada, o conhecimento do celeste, e sua finalidade é o hino divino de El[191], em língua hebraica. Os que estão entre os três primeiros e os três seguintes na ordem, rodeiam a Deus. São os Poderes, as Dominações e as Potências. Eles têm como característica a direção das grandes coisas, a energia dos milagres e os prodígios dos sinais. Sua finalidade é o hino três vezes santo: Santo, Santo, Santo[192]. Os últimos, os mais próximos de nós, estão acima de nós mas abaixo daqueles que cercam a Deus. São os Principados, os Arcanjos e os Anjos. Deles é propriamente o serviço litúrgico e sua finalidade é o hino sagrado do Aleluia[193]. A natureza racional que está nos homens, que leva à perfeição toda virtude e que eleva toda sabedoria e todo conhecimento do Espírito e do fogo divino, se une a essas potências pelos carismas de Deus, atraída que é por todos através da pureza. Ela se une a uns pelo serviço e a liturgia dos mandamentos de Deus; ela se une a outros pela compaixão, pela proteção dos irmãos de raça e ainda pela economia das grandes coisas de Deus e pelas energias do Espírito; enfim, ela comunga dos terceiros pela sabedoria inflamada da palavra e pelo conhecimento das coisas divinas e humanas. Assim completa, e oferecendo, para transmutá-los, os dons da natureza, por meio deles ela se une a Deus pela década[194], oferecendo de si a ele as primícias do dízimo. 100. Deus é Unidade e Trindade. Ele tem sua origem na Unidade e seu fim em si mesmo como num círculo, tal como a década. Ele tem em si a origem e o fim de tudo. Mas ele também está além de tudo,
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porque está acima do universo. Quem entra em Deus penetra nas razões e no conhecimento dos seres: fora de tudo, permanece no entanto no interior de tudo. Ele conhece a origem e o fim das coisas, pois ele está, em seu Intelecto, unido ao Pai pelo Verbo e perfeito no Espírito. A esta perfeitíssima e indivisível Trindade consubstancial, adorada no Pai, no Filho e no Espírito Santo, glorificada na Natureza única, no único Reino, na Potência única da Divindade, seja dada a honra, o poder e a glória pelos séculos dos séculos. Amém.
[1] A Luz original. [2] Romanos 8: 14. [3] Cf. II Coríntios 7: 1. [4] Cf. Salmo 44 (45): 1. [5] Cf. Gálatas 5: 23. [6] Cf. Salmo 76 (77): 11. [7] Cf. João 15: 26. [8] Cf. João 14: 26. [9] Cf. Gênesis 1: 26. [10] Cf. II Coríntios 5: 4. [11] Cf. II Coríntios 4: 11. [12] Cf. Gênesis 1: 26. [13] CF. Habacuque 3: 3. [14] Salmo 88 (89): 9. [15] Salmo 144 (145): 17. [16] Salmo 24 (25): 8. [17] Mateus 5: 48. [18] Levítico 20: 26. [19] Mateus 11: 29. [20] Cf. Salmo 32 (33): 6. [21] Jeremias 15: 19. [22] Cf. Mateus 25: 20. [23] Cf. Colossenses 1: 20. [24] Ação sagrada: celebração dos mistérios de Deus. [25] Cf. Gálatas 5: 17. [26] Cf. II Coríntios 5: 4. [27] Cf. Êxodo 10: 21. [28] Cf. Mateus 13: 52. [29] Cf. Mateus 7: 6. [30] Designa o poder do Reino de Deus. [31] Cf. Denis o Areopagita, Hierarquia celeste VII, 1. [32] Cf. Romanos 8: 29. [33] Cf. Salmo 81 (82): 1. [34] Cf. Salmo 76 (77): 11.
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[35] Cf. Romanos 5: 5. [36] Cf. II Coríntios 12: 4. [37] Gálatas 5: 22. [38] Cf. Gênesis 2: 15. [39] Cf. João 4: 24. [40] Cf. I Timóteo 4: 8. [41] Cf. Efésios 4: 13. [42] Cf. Colossenses 3: 10. [43] Cf. Mateus 23: 26. [44] Cf. II Coríntios 7: 1. [45] Cf. Salmo 103 (104): 15. [46] Cf. Hebreus 11: 33-34. [47] Cf. Lucas 8: 10. [48] Cf. II Reis 2: 11. A quadriga das virtudes consiste nas quatro virtudes fundamentais que conduzem do corpo carnal ao corpo glorioso. [49] Cf. Efésios 4: 13. [50] Cf. Provérbios 1: 6. [51] Cf. II Coríntios 12: 4. [52] Cf. I Coríntios 2: 9. [53] Cf. I Coríntios 4: 2. [54] Cf. Filipenses 3: 14. [55] Cf. Romanos 1: 28. [56] Cf. Lucas 8: 10. [57] Cf. Salmos 18 (19) 3; 44 (45): 2. [58] Cf. Mateus 13: 52. [59] Cf. II Coríntios 10: 4. [60] Salmo 32 (33): 6. [61] Cf. Hebreus 5: 12. [62] Cf. I Timóteo 4: 8. [63] Cf. Hebreus 5: 14. [64] Cf. Lucas 2: 52. [65] Cf. Lucas 2: 46. [66] Cf. Jó 12: 22. [67] Cf. Efésios 4: 13. [68] Cf. Lucas 12: 50. [69] Cf. Gálatas 4: 2. [70] Cf. Gálatas 4: 6-7. [71] Cf. Mateus 17: 1. [72] Cf. Mateus 17: 5. [73] Cf. Mateus 5: 15. [74] Cf. Salmo 18 (19): 5. [75] Cf. Salmo 77 (78): 2-3. [76] Cf. Joel 4: 18. [77] João 7: 38. [78] Cf. Malaquias 4: 2-3. [79] Cf. Lucas 6: 71. [80] Cf. Lucas 24: 32. [81] Cf. Mateus 12: 44. [82] Cf. Apocalipse 3: 5. [83] Salmo 12: 2-4.
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[84] Cf. Salmo 39 (40): 10. [85] Cf. Isaías 30: 8-10. [86] Literalmente: “numa tabuinha”. [87] Cf. Isaías 30: 10. [88] Cf. Isaías 29: 18. [89] Cf. Mateus 5: 3. [90] Cf. Isaías 29: 19. [91] Cf. Isaías 29: 24. [92] Cf. Isaías 31: 9. [93] Cf. Isaías 32: 6. 8. [94] Cf. Deuteronômio 34: 4. [95] Cf. Isaías 50: 4-5. [96] Cf. Isaías 44: 25, citado em I Coríntios 1: 20. [97] Cf. I Pedro 2: 9. [98] Cf. Isaías 45: 1-3. [99] Jeremias 8: 8-9. [100] Cf. Isaías 50: 4. [101] Jeremias 8: 8-9. [102] Cf. Salmo 44 (45): 2. [103] Cf. Baruc 3: 14. [104] Jeremias 23: 28. [105] Jeremias 36: 2. [106] Cf. Jeremias 13: 23. [107] Cf. Jeremias 9: 4-5. [108] Jeremias 15: 15-21. [109] Cf. Eclesiástico 12: 15. [110] Trata-se aqui dos monges, homens que se consagraram a Deus. [111] Cf. Lamentações 4: 7-8. [112] Cf. Lamentações 4: 5. [113] Cf. Ezequiel 17: 24. [114] Cf. Ezequiel 29: 21. [115] Cf. Salmo 67 (68): 12. [116] Cf. Daniel 2: 21-22. [117] Cf. Tiago 1: 25. [118] Cf. Romanos 2: 11. [119] Cf. Romanos 8: 14. [120] Cf. II Timóteo 3: 3. [121] Cf. Romanos 2: 6. [122] Cf. Romanos 2: 28-29. [123] Cf. Romanos 2: 29. [124] Cf. Gálatas 2: 16. [125] Cf. Hebreus 11: 1. [126] Cf. Hebreus 11: 4. [127] Cf. Hebreus 11: 8. [128] Cf. Mateus 13: 52. [129] Cf. Hebreus 4: 3. [130] Cf. Hebreus 4: 10. [131] Cf. Hebreus 4: 18-19. [132] Cf. Hebreus 3: 12. [133] Cf. Salmo 126 (127): 2.
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TII, VII – NICETAS STETHATOS – Terceira centúria (Capítulos gnósticos).
[134] Cf. Hebreus 4: 9. [135] Cf. Hebreus 4: 11. [136] Cf. João 1: 29. [137] Cf. João 6: 58. [138] Cf. Romanos 6: 10-11. [139] Cf. Gálatas 2: 20. [140] Cf. Romanos 6: 13. [141] Cf. Romanos 6: 19. [142] Cf. Colossenses 3: 3. [143] Cf. Romanos 7: 2. [144] Cf. Romanos 7: 4-6. [145] Cf. Tito 3: 5. [146] Cf. Romanos 8: 23. [147] Cf. Romanos 8: 26. [148] Cf. II Coríntios 4: 10. [149] Cf. I Coríntios 2: 14. [150] Cf. I Coríntios 2: 10. [151] Cf. Romanos 1: 29. [152] Cf. II Timóteo 4: 10. [153] Cf. I Coríntios 2: 15-16. [154] Cf. I Coríntios 3: 13. [155] Cf. I Coríntios 3: 14. [156] Cf. Efésios 2: 21-22. [157] Cf. I Coríntios 8: 2. [158] Cf. Gálatas 5: 18. [159] Cf. I Coríntios 8: 3. [160] Cf. Jeremias 15: 19. [161] Cf. I Coríntios 10: 4-5. [162] Cf. Nota 518 : Trata-se aqui dos monges, homens que se consagraram a Deus. [163] Cf. Êxodo 19: 15. [164] Cf. Êxodo 33: 23. [165] Cf. Êxodo 19: 23. [166] Cf. Isaías 35: 6. [167] Cf. Mateus 17: 2. [168] Cf. Mateus 13: 52. [169] Cf. Lucas 6: 45. [170] Cf. I Coríntios 12: 3. [171] Cf. I Coríntios 12: 7. [172] Cf. I Coríntios 12: 9-11. [173] Cf. I Coríntios 12: 28-29. [174] Cf. I Coríntios 13: 4-7. [175] Cf. Gálatas 3: 27. [176] Cf. I Coríntios 13: 4-8. [177] Cf. I Coríntios 12: 28-29. [178] Cf. I Coríntios 13: 9 e 12. [179] Cf. I Coríntios 14: 2-4. [180] Cf. I Coríntios 14: 6. [181] Cf. I Coríntios 14: 8. [182] Cf. I Coríntios 14: 4. [183] Cf. I Coríntios 14: 19.
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TII, VII – NICETAS STETHATOS – Terceira centúria (Capítulos gnósticos).
[184] Cf. Romanos 2, 4 e 9. [185] Cf. I Coríntios 13:9-10. [186] Cf. Hebreus 2: 8. [187] Cf. I Coríntios 15: 24. [188] Água, terra, fogo e ar. [189] Cf. II Reis 2: 11. A quadriga das virtudes consiste nas quatro virtudes fundamentais que conduzem do corpo carnal ao corpo glorioso. [190] Cf. Gênesis 2: 8. [191] Um dos nomes de Deus em hebraico. Cf. Denis o Areopagita, Hierarquia celeste XV, 9. [192] Cf. Isaías 6: 3. [193] Cf. Apocalipse 19: 1. Cf. Denis o Areopagita, Hierarquia celeste IV, 1. [194] O cumprimento da liturgia da nove ordens angélicas: Deus em si.
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TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA
Teolepto, que foi bispo de Filadélfia, viveu no reinado de Andronico II Paleólogo, por volta de 1325. De início ele levou uma vida ascética e anacorética sobre a santa Montanha de Athos. Depois, tendo recebido como encargo a Sé de Filadélfia, ele iniciou na grande beleza de seus ensinamentos a Gregório de Tessalônica. Ele lhe ensinou a santa nepsis bem como a noera proseuké – a prece intelectual – enquanto este ainda era leigo, conforme relatado nos escritos do Patriarca Filoteu sobre a vida do mesmo Gregório. O presente tratado, composto por ele, é um excelente testemunho e uma regra exata da meditação oculta em Cristo, como capítulos coesos, muito bem escritos, que unem o pensamento divino à pureza do fraseado. Eles foram inseridos aqui por serem mais confiáveis do que quaisquer outros e dignos de serem estudados por aqueles que se esforçam por recolher na concisão os sábios ensinamentos da filosofia espiritual. * A renovação hesiquiasta dos séculos XIII e XIV, no norte da Grécia, oferece muitos aspectos. Acima de tudo ela prolongou, assumiu e realizou um milênio de tradição monástica. Mas também foi um movimento de resistência à vontade declarada de alguns imperadores bizantinos, notadamente Miguel VIII Paleólogo, de contratar a qualquer preço uma aliança política com o Ocidente cristão para tentar conjurar a ameaça turca. Enfim, quando esta aliança foi denunciada, a renovação se tornou naturalmente uma causa comum com texturas hierárquicas, doutrinais, litúrgicas e sacramentais da Igreja ortodoxa que, desde o século IV, pela consagração e a resistência, os Padres fundadores do hesiquiasmo haviam amplamente contribuído para formar. A vida e a obra de Teolepto de Filadélfia (nascido em Nicéia em 1250, morto por volta de 1320) participa destes três aspectos. Por ter sido um dos que resistiram à estratégia do imperador, Teolepto foi enviado em exílio para uma ilha do mar Egeu juntamente com diversos monges do Monte Athos, inclusive Nicéforo o Solitário, que o iniciaram no hesiquiasmo. Libertado ele foi recebido em Athos e depois se tornou metropolita de Filadélfia após a morte de Miguel VIII, onde procurou concentrar e unificar a Igreja do Oriente sobre o fundamento das origens e da tradição monástica. Ele próprio manteve mosteiros em Constantinopla e foi um dos iniciadores de Gregório Palamas. Sua mediação exemplar foi certamente decisiva.
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A Filocalia apresenta dois textos distintos de Teolepto. O primeiro reproduz a essência de uma carta endereçada à princesa Irene, viúva do imperador João Paleólogo, que se tornara monja. Mas o destinatário desta carta – sobre a profissão monástica – é, nesta versão filocálica, um monge anônimo. O segundo texto, mais curto, explicita e precisa em nove capítulos as modalidades da iniciação.
A profissão monástica é incialmente comparada a uma árvore na qual tudo está, das raízes aos frutos, onde tudo contribui para a chegada da vida eterna, desde a renúncia às ligações com o mundo até a aquisição do amor deificante, permitindo ao cristão verificar e confirmar seu batismo, para finalmente se revestir de Cristo. “Esforce-se para transformar o chamado em ação”, diz Teolepto. Assim, a vocação monástica, devotada à imolação e à glória, não é para a Igreja senão a abertura infinita de toda a fé cristã: não mais viver para o mundo senão pelos “sentidos do Espírito”. A exortação é tradicional, toda cerzida de imagens e palavras bíblicas, mas ao mesmo tempo direta, viva, calorosa. Ela não percorre todo o campo de aplicação da vocação senão para atestar aos egressos o exercício permanente do hesiquiasmo: a passagem da inteligência simples para a prece pura, e da prece pura ao amor luminoso consagrado à “beleza de Cristo”, esta passagem que instaura a ordem filocálica no coração crucificado para o mundo.
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA –Discurso que explica o trabalho oculto que implica a vida em Cristo e que mostra o labor imposto pela profissão monástica.
DISCURSO QUE EXPLICA O TRABALHO OCULTO QUE IMPLICA A VIDA EM CRISTO E QUE MOSTRA O LABOR IMPOSTO PELA PROFISSÃO MONÁSTICA. A profissão monástica é como uma grande árvore coberta de folhas e de numerosos frutos. Sua raiz é a superação de todas as coisas do corpo. Seus galhos são a ausência de paixões na alma e a ruptura para com as coisas do mundo das quais fugiu. Seu fruto é o amor deificante, a aquisição das virtudes e o regozijo ininterrupto que deles advém. Com efeito, foi dito que o fruto do Espírito é o amor, a alegria, a paz [1] e assim por diante. A fuga para longe do mundo permite refugiar-se em Cristo. Chamo de “mundo” o amor pelas coisas sensíveis e pela carne. Aquele que por meio do conhecimento da verdade ultrapassa as coisas do mundo se une a Cristo. Ele adquire seu amor, este amor pelo qual ele rejeitou tudo o que vem do mundo, e resgatou a pérola preciosa[2], Cristo. Assim, pelo batismo salutar, você se revestiu de Cristo[3], por intermédio do banho divino você se limpou de toda sujeira, e você reencontrou o esplendor da graça espiritual e a nobreza da criação. Ora, o que aconteceu? Ou antes, o que sofreu o homem em sua irresolução? Por seu amor ao mundo, ele transformou os signos divinos com os quais fora marcado. Com seu pendor pela carne, ele corrompeu a imagem. A bruma dos pensamentos passionais empanou o espelho da alma, este espelho no qual aparece Cristo, o Sol espiritual. Você fechou a alma ao temor de Deus e conheceu as trevas da deserção do mundo. Você experimentou o quanto o ruído dispersa a inteligência e viu aonde as vãs distrações e a vida agitada levam os homens. E assim você foi ferido pela flecha do amor à hesíquia e buscou a paz dos pensamentos[4]. De fato, você aprendeu: “Busque a paz e a possua[5]”. Você desejou o repouso que está além, porque ouviu: “Volte, alma minha, ao seu repouso[6]”. Considere então a nobreza que, pela graça, você recebeu no batismo, e recuse em pensamento ser chamado para o mundo das paixões. Com seu bom senso você se pôs a trabalhar, dirigiu-se ao local sagrado da meditação, revestiu-se do hábito precioso do arrependimento, e com toda sua alma prometeu permanecer no mosteiro até a morte. Daqui por diante você fez uma segunda aliança com Deus. A primeira você fez ao entrar na sua vida presente. E a segunda, você fez quando se apressou em se encaminhar para o fim desta vida. Então você se ligou a Cristo pela piedade e agora, por meio do arrependimento, você se prometeu a ele. Aí você encontrará a graça. Aqui você calculou sua dívida. Até então você era uma criança e não havia sentido a dignidade que lhe fora dada, e mesmo que mais tarde, ao crescer, você tivesse conhecido o dom, ainda trazia o freio na boca. Agora você atingiu a perfeição e reconheceu o poder daquilo que lhe fora prescrito. Mas cuide para não transgredir sua promessa. Então, como um vaso inteiramente partido, você será rejeitado para as trevas exteriores onde estão o choro e o ranger de dentes[7]. Pois fora do caminho do arrependimento não existe outra via que conduza à salvação. Escute o que disse Davi: “Você fez do Altíssimo seu refúgio[8]”. Se você escolheu seguir a Cristo sobre o caminho estreito da vida[9], o mal que os hábitos do mundo lhe deram em partilha não virá a você[10]. Se você escolheu se arrepender, o amor pelo dinheiro, as delícias e as honras do mundo, as vestes luxuosas, a intemperança dos sentidos não mais o queimarão, os iníquos não se colocarão diante de você[11], o inchaço da reflexão, a alienação do intelecto, a presunção dos sucessivos pensamentos, toda outra alteração, toda outra confusão voluntária, a ligação aos pais, irmãos e próximos, amigos e familiares, nada o alcançará. Com eles você já não terá conversação nem relação intempestiva e inútil.
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA –Discurso que explica o trabalho oculto que implica a vida em Cristo e que mostra o labor imposto pela profissão monástica.
Se de corpo e alma você ama assim renunciar ao mundo, o chicote da dor não mais tocará sua alma [12], a flecha da tristeza não ferirá seu coração, seu rosto jamais voltará a ser sombrio. Os que se afastam dos hábitos do prazer, os que cessam de pender para tudo de que falamos, amaciam, de fato, as penas da tristeza. Pois Cristo aparece à alma que luta e a cumula de alegria inefável. E nada dentre as delícias ou as infelicidades do mundo pode jamais retirar dela esta alegria espiritual[13]. Com efeito, as boas práticas, as lembranças salutares, os pensamentos divinos, as palavras de sabedoria assistem ao que combate, o protegem por todas as veredas[14] de suas obras dedicadas a Deus. Assim ele caminha sobre todo desejo desprovido de razão e todo ardor fogoso, como sobre a víbora e o basilisco, ele pisoteia a cólera como o leão e o prazer como o dragão[15]. E a causa é a seguinte: separado dos homens e das coisas às quais nos referimos, ele colocou em Deus toda sua esperança, tornou-se rico do conhecimento de Deus a quem em espírito ele chama sempre em seu auxílio. Pois foi dito: “Ele esperou em mim e eu o libertei, e o protegerei porque ele conheceu meu nome. Ele me chamou e eu o escutei. E não apenas eu o libertarei dos que o atormentam, mas o glorificarei[16]”. Vê você os combates daqueles que consagram sua vida a Deus, e a recompensa que recebem? Então, esforce-se por transformar o chamado em ação. Assim como você dedicou seu corpo à solidão e como, rejeitando os pensamentos sobre as coisas, mudou seus hábitos, faça-se estrangeiro, afaste-se das palavras, mesmo daquelas que convêm à sua condição. Pois se você não puser fim em si mesmo ou redemoinho das coisas de fora, você poderá se levantar contra aqueles que, no seu interior, estendem armadilhas. Se você não vencer os que o combatem por meio das coisas visíveis você não poderá derrubar os adversários invisíveis. Mas quando você abolir as distrações de fora, quando apagar os pensamentos interiores, então o intelecto despertará pata as obras e as palavras do Espírito. Em lugar do hábito das coisas que lhe são naturais e familiares, você trabalhará as virtudes. Em lugar das palavras vãs suscitadas pelo comércio com o mundo, o estudo e a explicação das palavras divinas meditadas pelo intelecto esclarecerão e instruirão a alma. Quando são acorrentados os sentidos, a alma descobre a liberdade. O por do sol traz a noite. Então Cristo se retira da alma e as trevas das paixões se apoderam dela, as feras espirituais a atacam. Mas quando se ergue o sol sensível, as feras se reúnem nos seus antros. Cristo se eleva no firmamento do intelecto que ora, e todo costume do mundo se afasta. O amor pela carne passa. Até o entardecer o intelecto parte para realizar seu trabalho[17], que é o estudo das coisas de Deus. Ele não limita no tempo a obra da lei espiritual, nem a mede, mas trabalha nela num êxodo da alma fora do corpo, até atingir o fim da presente vida. É o que quis dizer o profeta quando falou: “Eu amo sua obra, Senhor, e a estudo todo o dia[18]”. O que ele chama de dia representa, para cada um, o decurso da vida presente. Cesse então todo comércio com as coisas de fora e combata os pensamentos interiores até encontrar o lugar da prece pura e a morada onde habita Cristo, que o iluminará e o cumulará de doçura com seu conhecimento e sua vinda, e o colocará num estado em que você considerará como uma alegria as aflições que você sofre por ele, e no qual você já não se submeterá aos prazeres do mundo que são como o absinto. Os ventos levantam as ondas do mar e, se a tempestade não cessar, nem as ondas se acalmam, nem o mar se tranquiliza. E os espíritos de malícia levantam na alma do monge negligente a lembrança dos pais, dos irmãos, dos próximos, dos familiares, dos festins, das festas, dos espetáculos e de todas as outras imagens do prazer. Eles dão a entender que a felicidade está no uso dos olhos, da língua e do corpo. A hora presente então se consume na vacuidade. E a hora seguinte, quando você permanece só na cela, passa com a lembrança daquilo que você viu e que lhe disseram. A vida do monge escoa, inútil, nas obras deste mundo, que gravam no intelecto suas lembranças, como os pés de um homem que deixa na neve suas próprias pegadas. Se alimentamos as feras, quando as iremos matar? Se multiplicamos em nossas obras e pensamentos as ligações e os hábitos irracionais, quando faremos morrer o cuidado com a carne? Quando viveremos a vida em Cristo que prometemos viver?
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA –Discurso que explica o trabalho oculto que implica a vida em Cristo e que mostra o labor imposto pela profissão monástica.
As pegadas dos pés sobre a neve ou derretem sob o sol que brilha ou desmancham sob a chuva que cai. Assim como as lembranças que o amor e a prática dos prazeres cavam no intelecto desaparecem sob Cristo, quando ele se levanta no coração pela prece, e sob a carícia dolorosa da chuva de lágrimas. Então, se o monge não trabalha a razão, quando apagará ele as presunções que encobrem seu intelecto? A obra das virtudes se realizará no corpo se você deixar para trás os hábitos do mundo. As boas lembranças se imprimirão em você e as palavras divinas adorarão permanecer em sua alma se a memória das ações primitivas for sendo apagada por meio de preces contínuas que doce e dolorosamente você realizar em seu intelecto. Pois a luz com a qual a fé em Deus cumula sua memória, aliadas à contrição do coração cortam como uma navalha as más recordações. Imite a sabedoria das abelhas. Com efeito, quando estas percebem um enxame de vespas voando ao redor, se aquartelam dentro da colmei e assim escapam aos danos das agressões. As vespas aqui representam os eventos do mundo. Fuja deles o mais depressa possível. Permaneça no santuário do templo e, daí, esforcese para entrar novamente na cidadela interior da alma, que é a morada de Cristo, na qual se revelam a paz, a alegria, a serenidade do Sol espiritual, enquanto Cristo envia seus dons, como raios, e os concede como uma recompensa à alma que o recebe na fé e no amor pela beleza. Assim, sentado em sua cela, lembre-se de Deus, eleve seu intelecto acima de tudo, volte-se para Deus sem nada dizer, desdobre diante dele o estado de seu coração e se prenda a ele com todo seu amor. Pois a lembrança de Deus é a própria contemplação de Deus, que chama para si a visão e o desejo do intelecto e o cerca com sua luz. Quando ela retorna a Deus cessando de conceber as formas dos seres, o intelecto, com efeito, passa a ver independentemente das formas. Chegando ao mais alto ponto do desconhecimento, ele ilumina sua própria visão com a luz inacessível da glória. Ele já não conhece nada, por que aquele a quem vê é incompreensível. Ele apenas conhece através da verdade d’Aquele que verdadeiramente é e que é o único que é além e acima do ser. Ele alimenta seu desejo de amor com a riqueza da bondade que emana desta fonte e, cumulando de certeza sua própria diligência, ele se torna digno de um repouso bemaventurado que não tem mais fim. Estes são os sinais da lembrança exata. A prece é um diálogo do pensamento com o Senhor, um diálogo no qual se realizam as palavras da súplica ao mesmo tempo em que o intelecto tende por completo para Deus. Com efeito, a partir do momento em que o pensamento pronuncia sem cessar o nome do Senhor e que o intelecto está claramente atento à invocação do nome divino, a luz do conhecimento de Deus cobre com sua aura toda a alma como uma nuvem radiante[19]. A lembrança exata de Deus engendra o amor e a alegria. De fato, foi dito: “Eu me lembrei de Deus e me regozijei [20]”. E a prece pura engendra o conhecimento e a compunção. Pois foi dito: “No dia em que o chamei soube que você é meu Deus [21]”. E ainda: “Meu sacrifício a Deus será um coração quebrantado[22]”. Naqueles que, como todo seu intelecto e todo seu pensamento se voltam para Deus por meio da energia da tensão e do calor da prece, a alma, com efeito, se recolhe em ternura. Mas nos que, em seu intelecto, a razão e o espírito se prosternam diante de Deus pela atenção, pela prece, pelo recolhimento e o amor, todo o homem interior serve ao Senhor. Pois foi dito: “Amarás ao seu Senhor de todo seu coração[23]”. Mas eu quero que você saiba. Ao mesmo tempo em que você pensa orar você pode muito bem estar caminhando longe da oração, esforçando-se sem nada ganhar e correndo em vão. Enquanto a boca canta louvores o intelecto vaga por aí, dividido pelas paixões e os afazeres, a ponto de perder toda a consciência da salmódia. O próprio pensamento é tocado. Pois muitas vezes, enquanto ele exprime as palavras da prece o intelecto não o segue nem se volta para Deus a quem é endereçada a oração. Ele permanece desviado em segredo para outros cuidados. O pensamento diz as palavras pela força do hábito, mas o intelecto não entra no conhecimento de Deus. A partir daí, com o intelecto disperso em imaginação e transportado para aquilo que ela dissimula ou para aquilo que ela deseja, a alma perde toda compreensão, toda disposição. Pois se falta o conhecimento que vem através da prece, se quem ora não se volta para
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA –Discurso que explica o trabalho oculto que implica a vida em Cristo e que mostra o labor imposto pela profissão monástica.
Deus para chama-lo, como poderá a alma se encher de doçura? Como se alegrará o coração, se a pessoa finge orar mas não se dedica à verdadeira oração? Pois “se alegrará o coração daqueles que buscam ao Senhor[24]”. E busca o Senhor aquele que, com todo seu pensamento e todo fervor, se prosterna diante de Deus, rejeitando todo cuidado para com o mundo em troca do conhecimento e do amor de Deus que nascem da prece pura e contínua. Mas para que fique bem claro aquilo que vemos quando nos lembramos de Deus no intelecto, e aquilo exatamente que buscamos quando nos dedicamos em pensamento à prece pura, usarei como exemplos as imagens do olho e da língua. Pois aquilo que a pupila é para o olho, aquilo que a expressão da palavra é para a língua, a lembrança é para o intelecto e a prece é para o pensamento. Como efeito, assim como o olho ao perceber o que está diante de si pelo sentido da visão nada diz, mas recebe pela experiência da visão o conhecimento daquilo que viu, também o intelecto quando, em seu desejo de amor, se aproxima de Deus pela lembrança ligando-se a ele com todo o fervor no silêncio da mais simples reflexão, é iluminado pela irradiação divina e recebe as garantias do esplendor futuro. A assim como a língua exprime as palavras da razão e revela a quem escuta a vontade oculta no intelecto, também o pensamento, ao repetir com frequência e calor as breves palavras da prece, revela o pedido da alma a Deus que tudo sabe. É por meio da prece assídua e da contínua contrição do coração que abrimos o coração do Compassivo, o coração de seu amor pelo homem, e assim recebemos a riqueza da salvação. Pois foi dito: “Ao coração contrito e humilhado Deus não desprezará[25]”. Ele o conduzirá na prece pura. Sua obra realizada o levará diante de d’Aquele que reina sobre a terra. De fato, é quando você se aproxima do Rei, quando você está diante dele em seu corpo, quando você suplica com a sua língua e volta para ele os seus olhos, é neste momento que você atrai sobre si a benevolência real. Faça portanto assim, quer esteja na assembleia da Igreja, quer na solidão de sua morada. Com efeito, quando você se reunir no Senhor com seus irmãos para estar diante dele em seu corpo e levar até ele o canto de sua língua, faça com que seu intelecto esteja atento às palavras e a Deus, e que ele, o intelecto, saiba com quem está falando e o que está pedindo. Pois se o pensamento se consagra com força e pureza à prece, o coração recebe dela uma alegria inalienável e uma paz indizível. E quando você estiver a sós, sentado em sua cela, agarre-se à prece em pensamento, com o intelecto sóbrio e vigilante e um espírito quebrantado. Pela sobriedade e a vigilância, a contemplação o cobrirá com sua sombra. Pela prece, o conhecimento habitará em você. E pela compunção a sabedoria virá repousa sobre você, expulsando o prazer irracional e abrindo sua morada ao amor de Deus. Creia-me. O que eu lhe digo é a verdade. Se em toda a sua obra você não se separar da mãe dos bens, a oração, não durma enquanto ela não lhe houver revelado o local das bodas, enquanto ela não o fizer penetrar no interior, enquanto ela não o cumular de glória e de regozijo inefáveis. Pois ela retira todos os obstáculos, aplaina o caminho da virtude e o torna fácil a quem a busca. Considere agora como age a prece espiritual. O diálogo apaga os pensamentos passionais. O olhar do intelecto voltado para Deus põe em fuga os pensamentos do mundo. A doçura da alma expulsa o amor pela carne. À custa de dizer em silêncio o nome de Deus, a prece se torna a harmonia e a união do intelecto com a razão e a alma. Pois foi dito: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estarei no meio deles[26]”. Assim, a prece, resgatando as potências da alma da divisão criada pelas paixões e religando entre si as três partes da alma se une ao Deus único em três Pessoas. Em primeiro lugar, pelas vias da virtude ela apaga da alma a vergonha do pecado. A seguir, reproduzindo a beleza dos sinais divinos pelo santo conhecimento que há nela, ela conduz a alma a Deus. E esta imediatamente reconhece seu Criador. Pois foi dito: “No dia em que clamei eu soube que você é meu Deus[27]”. E ela é conhecida por ele: “O Senhor conheceu os que pertenciam a ele[28]”. Ele conhece pela pureza do ícone. Com efeito, todo ícone se reporta ao seu modelo. E é conhecido pela semelhança que obtém pelas virtudes. Assim ele tem o conhecimento de Deus e é conhecido por Deus.
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA –Discurso que explica o trabalho oculto que implica a vida em Cristo e que mostra o labor imposto pela profissão monástica.
Quem implora pela benevolência real tem três maneiras de fazê-lo: ou suplicar em alta voz, ou permanecer em silêncio, ou se atirar aos pés daquele que o pode socorrer. E a prece pura, recolhendo em si mesma o intelecto, a razão e o espírito, pela razão invoca o nome, pelo intelecto se volta sem distração para Deus, a quem invoca, e, pelo espírito, manifesta a doçura, a humildade e o amor. Assim ela implora pela Trindade que não tem começo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o Deus Uno. Assim como a variedade de alimentos suscita o desejo de consumi-los, também as diferentes formas das virtudes despertam a vivacidade do intelecto. É por isso que, seguindo o caminho do pensamento, recite as palavras da prece. Fale, invoque sempre o Senhor e não se desencoraje[29]. Ore continuamente, imite a tenacidade da viúva que suplicava ao juiz intratável[30]. Então você caminhará em espírito[31] não mais se ligando aos desejos da carne, e os pensamentos do mundo já não virão interromper a continuidade da sua prece. Você terá se tornado o templo de Deus e celebrará a Deus sem descanso. Orando assim em pensamento lhe será concedido passar pela lembrança de Deus, penetrar no santuário do intelecto, ver o invisível nas contemplações místicas e servir apenas ao Deus único no coração de sua solidão, nas efusões comuns ao conhecimento e ao amor. Quando você perceber que a oração se detém, pegue um livro. Aplicando-se à leitura, receba o conhecimento. Atravesse as palavras sem transgredi-las, retenha-as ligando-as ao seu pensamento, e guarde seu intelecto. Depois medite no que leu, para que seu pensamento seja cumulado de doçura pela compreensão e para que a leitura permaneça inesquecível. Logo se inflamará em você o fervor dos pensamentos divinos. Com efeito, foi dito: “Enquanto eu meditava, um fogo queimava em mim[32]”. Pois assim como os alimentos mastigados agradam ao paladar, também as palavras divinas volteadas e reviradas na alma nutrem e alegram o pensamento. Foi dito: “Que suas palavras são doces em minha boca![33]”. Aprenda de cor as palavras do Evangelho e os apotegmas dos Padres bem-aventurados, siga as pegadas de suas vidas para poder meditar à noite. Assim você renovará pela leitura e a meditação das palavras divinas o pensamento cansado de orar, e o preparará para retomar a prece no dia seguinte com mais diligência. Cante a salmódia. Mas faça-o com a voz doce e o intelecto atento. Não permita que fique incompreensível nada do que você diz. Se alguma coisa escapara à sua inteligência, retome o verso tão logo possa, até que ela consiga seguir o que está sendo dito. Pois o intelecto está aí para permitir à boca cantar e para se lembrar de Deus. Aprenda com a experiência natural. Com efeito, assim como a pessoa que encontra alguém fala com ela olhando o interlocutor, também aquele que canta deve, pela memória, manter seus olhos em Deus. Não negligencie se colocar de joelhos. Ajoelhar-se representa de fato a queda do pecado, que é provocada pela confissão. Levantar-se significa o arrependimento, que lembra a promessa da vida virtuosa. Mas cada prosternação deve ser acompanhada pela invocação espiritual de Cristo, a fim de que, inclinando a alma e o corpo diante do Senhor, nos reconciliemos com o Deus das almas e corpos. Se, de resto, você acrescentar à prece em pensamento o trabalho aprazível das mãos, rejeitando o sono e a preguiça, isto ajudará a sustentar o combate da ascese. Todas as tarefas que mencionamos, desde que bem executadas e com o auxílio da prece, tornam mais agudo o intelecto, expulsam o desencorajamento, tornam a alma mais jovem e permitem ao espírito ser mais penetrante e mais fervente no trabalho do pensamento. Quando ouvir as batidas na madeira[34], saia da cela com os olhos do corpo voltados para o chão e levando o pensamento em Deus. Quando entrar no templo e tomar seu lugar no coro, não converse com o monge que estiver a seu lado nem deixe o intelecto vagar em frivolidades. Mantenha a língua atenta apenas à salmódia e seu pensamento preso à oração. Depois da refeição, retire-se para sua cela e dedique-se à regra que lhe foi assinalada. Quando estiver à mesa, não olhe para o que os irmãos comem nem deixe sua alma se dividir em maus pensamentos. Olhe e tome o que estiver à sua frente, leve o alimento à boca e escute as leituras com seus
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA –Discurso que explica o trabalho oculto que implica a vida em Cristo e que mostra o labor imposto pela profissão monástica.
ouvidos e dê a prece à sua alma, a fim de que, com o corpo e o espírito alimentados, você possa louvar Àquele que cumula de bens seu desejo[35]. Depois levante-se, retorne reservadamente e em silêncio à sua cela e, como a abelha laboriosa, trabalhe nas virtudes. Quando executar um serviço com os irmãos, que suas mãos trabalhem, que seus lábios se calem e que seu intelecto se lembre de Deus, E se, por acaso, alguém se puser a tagarelar, para que cesse a desordem, levante-se e faça uma metania. Rejeite os pensamentos. Não os permita penetrar em seu coração e aí permanecer. A persistência dos pensamentos passionais reanima as paixões e fere o intelecto. Uma vez que o atacarem, apresse-se em expulsá-los do intelecto com a flecha da oração. Porém, se eles continuarem a lhe bater e a confundir sua inteligência, avançando e recuando, saiba que eles estão sendo fortalecidos por uma vontade anterior. Uma vez que eles se sentem com direitos sobre a alma devido a uma falta de resolução, eles a perturbam e oprimem. É preciso dobrá-los por meio da confissão.Com efeito, os pensamentos maus fogem desde que triunfemos sobre eles. Assim como as trevas se retiram quando aparece a luz, também a luz da confissão apaga os pensamentos das paixões, que são como trevas. Pois a frivolidade e o relaxamento produzidos pelos pensamentos foram destruídos pela vergonha que acompanha a confissão e pelo mal que nos impomos para seguir a regra que nos foi ordenada. Encontrando o intelecto livre das paixões daí para frente graças à prece contínua e recolhida, eles fogem em confusão. Com efeito, quando aquele que combate se esforça por meio da oração para cortar pela raiz os pensamentos que o perturbam, ele os afasta por algum tempo e destrói sua empreitada atacando-os e lutando contra eles, mas não consegue se libertar totalmente, porque ainda ama as causas destes pensamentos opressores: o conforto da carne e a consideração do mundo, coisas que ele não confessou. Assim ele não alcança a paz, porque manteve dentro de si os direitos do adversário. Que, possuindo coisas que não são suas, não será arguido pelos proprietários? E quem se libertará dos que o perseguem, se não se livrar daquilo que lhe é solicitado e que ele mantém erradamente? Mas quando aquele que combate, fortificado pela memória de Deus, cessa de se agarrar à carne e de confortá-la, e confessa irrepreensivelmente seus pensamentos, logo os adversários se afastam, e o intelecto liberto pode se consagrar à prece contínua e à meditação das coisas de Deus. Afaste inteiramente toda suspeita que você possa eventualmente alimentar em seu coração contra quem quer que seja, pois isto destrói o amor e a paz. E aceite nobremente qualquer infelicidade vinda de fora, porque ela suscita a paciência salutar, esta paciência que permite permanecer e repousar nos céus. Assim, conduzindo seus dias no bem, você atravessará de bom coração a vida presente, na alegria das esperanças bem-aventuradas. E na hora do seu êxodo, você deixará com toda confiança as coisas daqui e partirá para os lugares do repouso que o Senhor lhe preparou, para que você reine com ele quando ele recompensá-lo pelos esforços e penas que você suportou aqui em baixo. A ele sejam dadas toda a glória, honra e adoração, assim como a seu Pai que não teve começo e ao seu Espírito Santo, bom e vivificante, agora e sempre pelos séculos dos séculos. Amém.
[1] Gálatas 5: 22. [2] Mateus 13: 46. [3] Cf. Gálatas 3: 27. [4] Cf. Jeremias 36: 11. [5] Salmo 33 (34): 15.
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA –Discurso que explica o trabalho oculto que implica a vida em Cristo e que mostra o labor imposto pela profissão monástica.
[6] Salmo 114 (115): 7. [7] Mateus 8: 12. [8] Salmo 90 (91): 9. [9] Cf. Mateus 7: 14. [10] Salmo 90 (91): 10. [11] Salmo 5: 6. [12] Cf. Salmo 90 (91): 10. [13] Cf. João 16: 22. [14] Cf. Salmo 90 (91): 11. [15] Cf. Salmo 90 (91): 13. [16] Cf. Salmo 90 (91): 15. [17] Salmo 103 (104): 23. [18] Salmo 118 (119): 97. [19] Cf. Êxodo 40: 32. [20] Salmo 76 (77): 4. [21] Salmo 55 (56): 10. [22] Salmo 50 (51): 19. [23] Deuteronômio 6: 5. [24] Salmo 104 (105): 3. [25] Salmo 50 (51): 19. [26] Mateus 18: 20. [27] Salmo 55 (56): 10. [28] II Timóteo 2: 19. [29] Cf. Lucas 18: 1. [30] Cf. Lucas 18: 2-5. [31] Cf. Gálatas 5: 16. [32] Salmo 38 (39): 4. [33] Salmo 118 (119): 103. [34] Simandron, placa de madeira que servia de sino. Ela representa tanto a madeira da cruz quanto a materialidade do culto. Na Quinta-Feira Santa, em alguns lugares, ela substitui o sino. [35] Cf. Salmo 102 (103): 5.
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA – Nove capítulos.
NOVE CAPÍTULOS.
1. O intelecto, fugindo das coisas exteriores e recolhendo-se nas que são interiores, retorna sobre si mesmo. Deste modo ele faz corpo com a razão que é naturalmente inerente ao pensamento e, por meio desta razão que está ligada ao seu próprio ser, ele se consagra à oração. Por meio da oração ele se eleva no conhecimento de Deus com todo o poder e as disposições do amor. Então o prazer da carne se vai, todas as sensações de prazer são suspensas e as belezas da terra são deixadas para trás[1]. Pois a alma deixa atrás de si todas as coisas do corpo e todas as coisas que cercam o corpo, e ela própria segue atrás da beleza de Cristo. Ela o segue por meio das obras da modéstia e da pureza intelectual. E assim ela canta: “As virgens serão conduzidas atrás de você[2]”. Ela considera a Cristo e, vendo-o de longe, diz: “Eu tenho sempre o Senhor diante de meus olhos, pois ele está à minha direita[3]”. Ela se agarra a Cristo com todo seu amor e diz: “Senhor, todo o meu desejo está diante de você[4]”. Ela não cessa de mirar a Cristo, dizendo: “Meus olhos estão sempre voltados para o Senhor [5]”. Ela conversa com Cristo na prece pura e se regozija em agradá-lo: “Minhas palavras lhe foram agradáveis, eu me regozijarei no Senhor[6]”. Quando ele recebe as palavras da oração, quando é amado, quando é nomeado, quando lhe pedem auxílio, Deus concede à alma que chore de alegria inefável. Pois, lembrando-se de Deus nas palavras da prece, ela é cumulada de alegria pelo Senhor, e diz, com efeito: “Eu me lembrei de Deus e me alegrei[7]”. 2. Fuja das sensações, e você terá detido o prazer das coisas sensíveis. Fuja também das imaginações dos prazeres no intelecto, e você terá detido a preguiça dos pensamentos. Uma vez que o intelecto se veja livre de toda imaginação, não aceitando ser marcado nem selado pelas condutas que buscam o prazer, nem pelos pensamentos submetidos ao prazer, a inteligência se torna simples. Acima das coisas sensíveis e inteligíveis, ele eleva o pensamento para Deus. Ela já não faz outra coisa que repetir o nome do Senhor para tê-lo sempre na memória, como uma criança que chama pelo pai. Pois foi dito: “Diante de você eu invocarei o nome do Senhor[8]”. E, assim como Adão, formado a partir da terra pela mão de Deus, se tornou uma alma viva sob o sopro divino[9], também quando a invocação frequente canta o Senhor com toda pureza e fervor, a inteligência modelada pelas virtudes se vê transformada por um chamado divino, é conduzida à vida e deificada, pois agora ela conhece a ama a Deus. 3. Se por meio da prece contínua, a prece pura, você se afastar do desejo das coisas terrestres, se em lugar do sono você se desviar de todo pensamento que vier antes de Deus, se você repousar inteiramente apenas com a lembrança de Deus, em você se edificará, com um grande socorro[10], o amor de Deus. Pois o apelo da oração bem ordenada suscita o amor divino. E o amor divino desperta o intelecto revelando a ele seus segredos. Então o intelecto unido ao amor recolhe o fruto da sabedoria e, por meio da sabedoria, ele anuncia os mistérios. Pois Deus o Verbo chamado e nomeado pelo apelo bem ordenado da oração recebe a reflexão do intelecto e lhe concede o conhecimento como a costela de Adão. Colocando no lugar desta a boa disposição, ele concede a virtude, edifica nele o amor luminoso que conduz ao intelecto extasiado, que então dorme e repousa de todo desejo terrestre. O amor é assim o outro auxílio do intelecto que repousa do pendor irracional pelas coisas sensíveis. Ele desperta o intelecto que se purifica nas palavras da sabedoria. Então o intelecto que o contempla e que dele recebe seu prazer anuncia aos demais, com suas palavras, as secretas disposições das virtudes e as energias invisíveis do conhecimento. 4. Afaste-se de tudo o que diz respeito aos sentidos, abandone a lei da carne e a lei espiritual se inscreverá em seu intelecto. Com efeito, do mesmo modo como aquele que caminha pelo Espírito já não experimenta o desejo da carne[11], segundo o Apóstolo, também aquele que se desembaraça das sensações e do sensível
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA – Nove capítulos.
– vale dizer, da carne e do mundo – começa a caminhar com o Espírito e a pensar nas coisas do Espírito. Aprenda isto pensando no que fez Deus a Adão antes da desobediência. 5. Quem combate para guardar os mandamentos, que persevera no paraíso da prece e permanece perto de Deus por sua contínua lembrança, a este Deus separa dos prazeres da carne, de todos os movimentos ligados aos sentidos e de todas as formas que investem contra o pensamento. Ele o faz morrer para as paixões e o pecado, e lhe concede tomar parte da vida divina. Com efeito, assim como quem dorme é semelhante a um morto, embora esteja vivo (ele está como morto quanto à energia do corpo, mas vive pela sinergia da alma), também aquele que habita no Espírito está morto para a carne e o mundo, mas vive pelo sentido do Espírito. 6. Se você souber o que está cantando, aprenderá a conhecer. Por meio desta descoberta você irá adquirir a reflexão. E da compreensão germinará a prática das coisas que aprendeu. Com a prática você portará em si o fruto do conhecimento vivido. E aquilo que você conhecer pela experiência suscitará em você a verdadeira contemplação. Desta surgirá a sabedoria que, pelas palavras radiantes da graça, preencherá o espaço do intelecto, iluminando o que está oculto aos olhos de quem está fora. 7. O intelecto começa por buscar, e então ele encontra[12]. Depois ele se une Àquele a quem encontrou. A busca se faz pela razão, mas a união é obra do amor. Aquilo que a razão busca conduz à verdade. A união pelo amor leva ao bem. 8. Aquele que vai além da natureza flutuante das coisas presentes, que supera o prazer daquilo que é passageiro, não vê as coisas de baixo nem é concupiscente para com os encantos da terra[13]. Ele se abre para as visões do alto, contempla as belezas que estão no céu e considera a beatitude daquilo que permanece em estado puro. Com efeito, assim como os céus estão fechados para aqueles que permanecem de boca aberta diante das coisas da terra e que se debruçam sobre os prazeres da carne – pois seus olhos espirituais se encontram nas trevas – também aquele que despreza das coisas de baixo e delas se desvia mantém seu intelecto nas alturas e vê a glória das coisas eternas. Este considera o esplendor que repousa nos santos. Ele recebe sobre si o amor de Deus que desce do alto, torna-se templo do Espírito Santo, deseja a vontade divina, é conduzido pelo Espírito de Deus e se torna digno da adoção: Deus lhe concede sua benevolência e se agrada dele. Pois os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, são estes os filhos de Deus[14]. 9. Enquanto você respirar, que nenhum estado de fraqueza o faça renunciar à oração, nem por um único dia, se você escutar àquele que disse: “Quando eu sou fraco, é então que sou forte[15]”. Você receberá um grande benefício se agir desta maneira. Com a ajuda da graça, a prece o restabelecerá rapidamente. Pois aonde está a consolação do Espírito, a fraqueza e o abatimento não duram.
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TII, VII –TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA – Nove capítulos.
[1] Cf. Salmo 73 (74): 17. [2] Salmo 44 (45): 15. [3] Salmo 15 (16): 8. [4] Salmo 37 (38): 10. [5] Salmo 24 (25): 15. [6] Salmo 103 (104): 34. [7] Salmo 76 (77): 4. [8] Êxodo 33: 19. [9] Cf. Gênesis 2: 7. [10] Cf. Gênesis 2: 21-22. [11] Cf. Gálatas 5: 16. [12] Cf. Mateus 7: 8. [13] Cf. Salmo 73 (74): 17. [14] Romanos 8: 14. [15] II Coríntios 12: 10.
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NICÉFORO O SOLITÁRIO
Nicéforo, nosso bem-aventurado Pai, que conduziu os combates da ascese sobre a santa Montanha de Athos, viveu ao redor dos anos 1340. Ele foi mestre e iniciador de Gregório de Tessalônica, a quem entregou os mais altos ensinamentos da filosofia ascética, como o atesta o próprio Gregório a seu respeito. Tendo se consagrado na solidão à hesíquia longe de qualquer distração, e por sua união consigo mesmo indizivelmente unido para além do mundo aos cumes do desejável, ele conheceu em toda a beatitude de seu coração a iluminação anipostática da graça. Cumulado em si próprio pela inimitável imagem da deificação e pela riqueza do dom deificante, o bem-aventurado, como um pai, nos transmitiu abundantemente este dom através da presente obra, se é que somos dignos destes velhos monges semelhantes a ele. Ele os reuniu em passagens que contam as biografias de santos Padres consagrados à sobriedade e à vigilância, à atenção e à prece. E ainda acrescentou de sua lavra um método verdadeiramente natural e sábio: a penetração do intelecto no coração e a invocação do Senhor Jesus como uma regra precisa da santa nepsis e como uma escada de prece pura e sem distração, e dos bens suscitados por esta. Como um novo Betsalel, ele sustentou os que desejam ser salvos, trabalhando assim na obra do arquiteto do Espírito. Portanto subam, subam todos vocês que desejam que Cristo venha a habitar em seu coração, que desejam ser transfigurados de glória em glória no ícone que o Espírito Santo fará de vocês, que desejam ser deificados e tornados dignos da parte luminosa dos que se salvam. * Nicéforo o Solitário viveu no século XIII. De origem italiana, trânsfugo do Ocidente cristão, ele se fez monge no Monte Athos, onde tomou o partido da dupla radicalidade da vida hesiquiasta e da tradição ortodoxa. No curto texto que deixou em testemunho e que transmitiu a seus discípulos ele vai diretamente ao coração da experiência monástica: o sentido e o objetivo da vida cristã é a transfiguração. “Queimar de luminosa alegria”, diz ele. Uma só coisa é necessária: fugir em pensamento das “trevas do século presente” e buscar “o tesouro que está no interior do coração”, exigência e incitação que Nicéforo fundamenta sobre um florilégio de passagens comentadas dos feitos e ditos de alguns Padres que abriram, balizaram e ilustraram a via: Antônio, Teodósio, Sabbas, Agatão, Marcos, João Clímaco, Isaías, Macário, Diádoco, Isaac o Sírio, João de Cárpatos, Simeão o Novo Teólogo. Ao final, ele próprio dá seu testemunho, todo centrado na atenção, na ascese da inteligência, na guarda do coração, na nepsis dos Padres, a sobriedade e a vigilância.
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Mas esta ascese não se improvisa. Não há outra coisa a fazer, lembra Nicéforo, do que buscar um “guia seguro”, capaz de dar testemunho e transmitir. Somente se faltar este exemplo vivo, é proposto um “método”: “Faça penetrar o intelecto pela via por onde o sopro penetra no coração”. Assim é que o caminhamento natural que, por meio da inspiração, leva o ar – o sopro – aos pulmões, e depois, por intermédio do sangue, o conduz dos pulmões ao coração, se torna simultaneamente a metáfora e a realidade do encaminhamento do intelecto que ora. Nicéforo é aqui o primeiro e o único a haver isolado e formulado o que não é dito da experiência hesiquiasta, mesmo correndo o risco de encerrá-la naquilo que hoje em dia chamaríamos de procedimento psicossomático e de dar a entender que o não-dito possa prevalecer sobre o caráter profundamente bíblico e eclesial da mensagem filocálica. Pois se Nicéforo não faz senão codificar uma prática milenar que remonta ao deserto do Egito e ao Sinai, esta, que os anacoretas chamavam de “meditação secreta”, não poderia por si só representar as bases e as finalidades da vida monástica. Nestas circunstâncias esta codificação teve uma dupla consequência. O “método” serviu, com toda evidência, de fermento para a renovação hesiquiasta dos séculos XIII e XIV. Mas ao dar à prece do coração as aparências de um exercício psicossomático limitado e autossuficiente ele também permitiu os ataques intempestivos dos adversários do hesiquiasmo. Foi então que Gregório Palamas saiu em sua defesa situando-a no coração quebrantado e luminoso da tradição teológica e eclesial da ortodoxia, no abismo da misericórdia, em pleno infinito. Assim se estabeleceu o lugar eminente do testemunho de Nicéforo, tanto em seu tempo como na antologia filocálica.
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TII, VII – NICÉFORO, O SOLITÁRIO – Tratado da sobriedade e da guarda do coração.
TRATADO DA SOBRIEDADE E DA GUARDA DO CORAÇÃO Vocês que ardem por obter a grandiosa e divina luz de Nosso Salvador Jesus Cristo, vocês que querem captar sensivelmente no coração o fogo mais que celeste, vocês que se esforçam por obter a experiência e sentir a reconciliação com Deus, vocês que deixaram todos os bens deste mundo para descobrir e possuir o tesouro que se esconde[1] nos campos do coração, vocês que desejam partir desta terra e abrasar com a bem-aventurada luz as tochas da alma, e que, para tanto, renunciaram a todas as coisas presentes; vocês que querem conhecer e apoderar-se com um conhecimento experimental do reino de Deus presente no seu interior[2], venham, porque vou expor a ciência, ou melhor o método da vida eterna, ou melhor da vida celeste, que introduz, sem fadiga nem suor, aquele que o pratica no porto da impassibilidade. Ele não teme nem a sedução nem o terror[3] que vêm dos demônios. Este método só perde sua razão de ser quando, por desobediência, marchamos longe da vida que lhes exponho. É o que aconteceu a Adão. Por haver desprezado o preceito divino, por ter se ligado à serpente, confiado nela e se deixado fartar do fruto enganador[4], ele precipitou-se lamentavelmente, e com ele sua descendência, nas goelas da morte, das trevas e da corrupção. Retornem, portanto – para falar mais exatamente, retornem a si mesmos, meus irmãos, rejeitando com o maior desprezo o conselho da serpente a perdição que nos arrasta ao mais baixo ponto. Pois só existe um meio para se alcançar a reconciliação e a união com Deus: retornar, em primeiro lugar e tanto quanto pudermos, a nós mesmos, ou melhor – por um paradoxo –, penetrar em nós mesmos, nos separando do comércio do mundo e dos desejos vãos, para nos ligarmos indefectivelmente ao Reino dos céus que está dentro de nós[5]. É por isso que a vida monástica recebeu o nome de “ciência das ciências e arte das artes [6]”. Pois esta vida santa não nos é estranha e não tem nada em comum com as vantagens corruptíveis daqui embaixo que desviam nosso espírito da melhor parte para nos enterrar sob seus aluviões. Ela nos promete bens maravilhosos e inefáveis, “como o olho jamais viu, o ouvido jamais ouviu, nem o coração do homem imaginou[7]”. Da mesma forma, “não devemos lutar contra a carne e o sangue, mas contra as dominações, as potências, os príncipes das trevas deste século[8]”. Como o século presente não é feito senão de trevas, fujamos, fujamos dele mesmo em pensamento. Que não haja nada de comum entre nós e o inimigo de Deus, pois “aquele que tornar-se amigo dele tornar-se-á inimigo de Deus[9]”. E àquele que se tornou inimigo de Deus, quem poderá ajudar? Imitemos portanto nossos Padres e, seguindo-os, busquemos o tesouro escondido em nossos corações e, tendo-o descoberto, seguremo-lo com todas as nossas forças para a um tempo guardá-lo e valorizá-lo[10]. É para isto que fomos nós destinados originalmente. Se algum novo Nicodemo quiser zombar a respeito: “Como é possível entrar no coração para aí viver e trabalhar? [11]”, ele terá direito à resposta que o próprio Salvador deu à objeção do primeiro Nicodemos: “O Espírito sopra aonde bem entende[12]”. Se por falta de fé duvidarmos das obras da vida ativa, como chegaremos às obras da contemplação? Pois a ação é o caminho que leva à contemplação. Mas, como é impossível convencer um espírito tão incrédulo sem provas escritas, vou apresentar no presente tratado, para proveito de todos, as vidas dos santos e seus escritos. Convencido, ele rejeitará todas as dúvidas. Começaremos por nosso pai, santo Antônio o Grande, seguindo com sua posteridade, e colheremos, com o melhor de nós, as peças de convencimento contidas nas palavras e na conduta destes santos.
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TII, VII – NICÉFORO, O SOLITÁRIO – Tratado da sobriedade e da guarda do coração.
EXTRATO DA VIDA DE NOSSO PAI SANTO ANTÔNIO[13] “Um dia, dois irmãos puseram-se a caminho para irem ao encontro do santo abade Antônio. Durante o caminho, faltou-lhes água; um morreu, e o outro sentiu que não duraria muito mais tempo; sem forças para prosseguir, ele deitou-se no chão a esperar a morte. Antônio, que estava sentado sobre uma montanha, chamou dois monges que estavam por lá, e apressou-os, dizendo: “Peguem um cantil com água e corram ao caminho que leva ao Egito; dois irmãos vinham por ali, um acaba de morrer e o outro não durará muito, se vocês não forem diligentes; isto me foi manifestado enquanto eu estava em oração.” Os monges colocaram-se a caminho, encontraram o morto e o enterraram; eles recuperaram o outro com água e o conduziram ao ancião, pois distavam um dia de marcha. Podemos nos perguntar por que Antônio não dissera nada antes da morte do primeiro; mas esta questão é deslocada. Não dependia de Antônio decidir sobre aquela morte, mas somente a Deus que resolveu deixar morrer um e revelar-lhe o estado do segundo. O que há de maravilhoso da parte de Antônio é que, sentado sobre a montanha, ele tinha o coração sóbrio e vigilante, tendo Deus lhe revelado acontecimentos distantes. Vemos com isto que Antônio, graças à sobriedade e vigilância de seu coração, foi gratificado com a visão divina e a vista longínqua. Pois Deus, nos diz João da Escada, “manifesta-se ao espírito no coração, primeiro para purificar aquele que o ama, depois como uma luz que ilumina o intelecto, tornando-o obra de Deus[14]”.
DA VIDA DE SANTO TEODÓSIO O CENOBIARCA (séculos V-VI)[15] São Teodósio foi atingido pela flecha suave da caridade e tornou-se seu prisioneiro a ponto de consumir em suas obras o sublime e divino mandamento: “Amarás ao Senhor teu Deus com todo o coração, com toda sua alma, com todo seu pensamento[16]”. Isto só foi possível porque todas as potências naturais de sua alma tendiam unicamente ao amor de seu Criador, à exclusão de todos os objetos aqui de baixo. Eu falo das atividades intelectuais de sua alma. Ele também inspirava reverência quando consolava e era por outro lado a própria doçura e afabilidade quando repreendia. Quem teve relações mais úteis a todos, sendo ao mesmo tempo capaz de recolher seus sentidos e dirigi-los para dentro de si mesmo, a ponto de enfrentar a agitação do mundo com a mesma tranquilidade que o deserto? Quem foi mais capaz de permanecer em si tanto na multidão quanto no isolamento? É assim que, recolhendo seu espírito para introduzi-los em si mesmo, nosso grande Teodósio foi atingido pelo amor do Criador[17]. DA VIDA DE SANTO ARSÊNIO[18] O admirável Arsênio criou para si uma regra de jamais tratar nada por escrito e de jamais escrever sequer uma carta. Não que ele não fosse capaz. Era-lhe mais fácil ser eloquente do que a um outro falar com simplicidade. Não, era unicamente pelo hábito do silêncio e pela repugnância a aparecer. Pela mesma razão, ele tinha o cuidado, após as reuniões da comunidade, em não ver ninguém nem ser visto: ele se colocava atrás de um pilar ou de qualquer obstáculo para esconder-se dos demais assistentes. Ele queria com isto vigiar a si mesmo, recolher seu espírito e assim, elevar-se a Deus com mais facilidade. Um novo exemplo de homem santo, verdadeiro anjo sobre a terra, que recolheu em si o espírito para elevar-se sem penas a Deus.
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TII, VII – NICÉFORO, O SOLITÁRIO – Tratado da sobriedade e da guarda do coração.
DA VIDA DE SÃO PAULO DE LATROS (+ 955)[19] São Paulo quase não deixava as montanhas e os lugares desertos. Os animais selvagens eram seus companheiros e seus convivas. Um dia ele achou bom descer para visitar os irmãos. Ele então os exortou e os ensinou a se mostrarem corajosos, a nunca negligenciar preguiçosamente os trabalhos penosos da virtude mas a se dedicarem com extrema atenção e discrição à vida evangélica e a combater valentemente os espíritos do mal. Ele expôs um método para reconhecer as sugestões da paixão e evitar as sementes clandestinas das paixões. Vocês viram nosso santo Pai ensinar a seus discípulos ignorantes um método para afastar as sugestões das paixões? Este método não era outro que a guarda do espírito, pois esta é sua obra e de nenhum outro. Vamos em frente. DA VIDA DE SÃO SABBAS (século VI)[20] Quando são Sabbas notava um noviço que ainda não havia aprendido bem a regra da vida monástica, e que já era capaz de guardar seu intelecto, de combater contra os pensamentos do inimigo, uma pessoa que havia banido de seu coração a lembrança do mundo, ele lhe reservava uma cela no meio da mosteiro, se ele tivesse a saúde delicada. Se ele fosse robusto, ele permitia que ele construísse sua própria cela. Vocês veem como são Sabbas exigia de seus discípulos a guarda do espírito, para lhe conceder uma cela e permitir que habitasse nela? Que faremos nós, que vivemos ociosamente na cela, sem sequer sabermos que existe uma guarda do intelecto? DA VIDA DE SÃO ÁGATÃO[21] Um irmão perguntou ao abade Ágatão: “Abade, diga-me qual dos dois é o melhor: o trabalho corporal ou a guarda do seu interior?” Ágatão respondeu: “O homem é como uma árvore: o trabalho corporal são as folhas, a guarda do espírito é o fruto. Está escrito que toda árvore que não produz fruto será cortada e atirada ao fogo[22]. Segue-se claramente daí que todo nosso esforço deve estar centrado nos frutos, entenda-se: na guarda do espírito. Mas também são necessárias a sombra e o frescor das folhas, ou seja, o trabalho corporal.” Admirem como nosso santo se expressa a respeito daqueles que não possuem a guarda do intelecto. Daqueles que só podem se prevalecer da vida ativa, ele dizia: “toda árvore que não dá fruto”, ou seja a guarda do intelecto, e que só tem folhas, ou seja a vida ativa, será cortada e atirada ao fogo. Terrível sentença, meu Pai! DO ABADE MARCOS A NICOLAU[23] “Meu filho, você quer ter sua própria lâmpada, possuir dentro de você a luz do conhecimento espiritual, a fim de caminhar sem hesitação na noite profunda deste século, que o Senhor dirija seus passos e que você deseje com ardente fé a via do Evangelho[24], ou seja, comungar, pelo desejo e pela prece, com os preceitos evangélicos perfeitos do Senhor? Vou lhe mostrar um método maravilhoso e uma invenção espiritual. Ele não exige nem fadiga nem combate corporais, mas uma fadiga espiritual e uma atenção do espírito apoiada no temor e no amor a Deus e, com este método, Você derrotará sem trabalho a falange dos inimigos.
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TII, VII – NICÉFORO, O SOLITÁRIO – Tratado da sobriedade e da guarda do coração.
Se portanto você quiser obter a vitória contra as paixões, recolha-se pela oração e a sinergia de Deus, entre em si mesmo, mergulhe nas profundezas do seu coração, siga a pista destes três gigantes poderosos: o esquecimento, a preguiça e a ignorância, que são o ponto de apoio dos estrangeiros inteligíveis. É através deles que as outras paixões más insinuam-se na alma, operam, vivem e prevalecem numa alma ligada aos prazeres. Uma grande atenção e discernimento do intelecto, unido ao impulso do alto, o fará descobrir o que permanece desconhecido à maioria, e você poderá assim, com grande esforço de prece e atenção, libertar-se dos gigantes do mal. Pois, pelo desejo do verdadeiro conhecimento, da memória da palavra de Deus, da boa harmonia, e por meio da graça que age sobre o coração que se esforça por ser firme e se proteger cuidadosamente, desaparecerão o esquecimento, a ignorância e a negligência. Veem a unanimidade das palavras espirituais, e como elas nos expõem claramente a ciência da atenção? Escutemos os próximos. SÃO JOÃO DA ESCADA[25] O hesiquiasta é aquele que, paradoxalmente, esforça-se por circunscrever o incorpóreo em uma moradia carnal. O hesiquiasta é aquele que diz: “Eu durmo, mas meu coração vela[26]”. Feche a porta de sua cela ao seu corpo, a porta de sua boca à palavra, e sua porta interior aos espíritos. Sentado no alto observe, se souber, e você verá a maneira, o momento, a origem, o número e a natureza dos ladrões que querem se introduzir na sua vinha para roubar as uvas. A sentinela está fatigada, ela se levanta para orar, depois ele se senta e se coloca valentemente em sua ocupação. Uma coisa é a guarda dos pensamentos, outra a guarda do intelecto: entre elas existe toda a distância do oriente ao ocidente [27], e a segunda é bem mais difícil. Os ladrões que percebem em algum lugar os exércitos do rei não se aventuram ali; da mesma forma, aquele que uniu a prece ao seu coração praticamente não corre o risco de ser despojado pelos ladrões espirituais. Vejam a obra admirável que nos revela nosso santo Pai. E dizer que nós caminhamos nas trevas, como em um combate noturno; não ouvimos as preciosas palavras do Espírito e, voluntariamente surdos, passamos ao largo. Prossigamos. Vejamos como outros Padres nos convidam à sobriedade e à vigilância.
DO ABADE ISAÍAS (+ 488)[28] Aquele que se separa do que está à sua esquerda (o mal), conhece então completamente todos os pecados que cometeu contra Deus, porque não vemos os pecados senão quando nos separamos dolorosamente deles. Quem chega a este grau encontra as lamentações, a prece e a vergonha perante Deus, diante da lembrança de sua má ligação com as paixões. Esforcemo-nos portanto, meus irmãos, tanto quanto pudermos, e Deus trabalhará conosco segundo a abundância de sua misericórdia. Se não guardamos nosso coração a exemplo de nossos pais, ao menos apliquemo-nos, na medida de nossas possibilidades, em guardar nosso corpo sem pecado como Deus nos pede, e tenhamos fé em que, na hora da fome[29], ele nos enviará sua misericórdia como o fez aos seus santos. Com estas últimas palavras nosso santo consola os fracos: “Ainda que tenhamos guardado nosso coração como fizeram os Padres, guardemos também nosso corpo sem pecados, como pede Deus, que tem compaixão por nós”. Tanta é a misericórdia e a piedade de tão grande santo!
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MACÁRIO O GRANDE[30] A obra mestra do atleta, é de penetrar em seu coração, combater e detestar Satanás e engajar-se numa gueraa contra ele atacando seus pensamentos. Aquele que guarda seu corpo visível da corrupção e do adultério mas comete o adultério interiormente ante Deus prostituindo seus pensamentos – de nada lhe servirá um corpo virgem. Porque está escrito: “Aquele que olha para uma mulher para desejá-la já cometeu adultério em seu coração[31]”. Existe um adultério que se consuma no corpo e existe o adultério da alma que se entrega a Satanás. Nosso Pai parece contradizer as palavras citadas do abade Isaías, mas não é o que acontece. Pois Isaías prescreve “guardar o corpo como Deus nos pede”; ora, Deus não pede apenas a pureza do corpo, mas também a do espírito. Assim, por meio dos mandamentos evangélicos, o abade Isaías dizia a mesma coisa. DIÁDOCO DE FOTICÉIA[32] Aquele que habita sem cessar em seu coração acaba por abandonar os encantos desta vida. Caminhando segundo o espírito, ele não conhece mais os desejos da carne[33]. Como ele vai e vem no castelo das virtudes que são por assim dizer as guardiãs das portas, os planos dos demônios não fazem efeito sobre ele. Diz bem o santo que os planos do demônio não têm efeito sobre nós quando vivemos nas profundezas de nosso coração, e isto na medida mesma em que aí permaneçamos mais tempo. Mas percebo que vai faltarme o tempo[34] para consignar, como eu queria, os propósitos de todos os Pais. Mencionarei apenas mais alguns e tentarei concluir a partir daí. ISAAC O SÍRIO[35] Aplique-se em entrar na sua câmara interior e você verá o tesouro celeste. Pois tudo é uma só coisa e a mesma porta abre para a contemplação das duas. A escada deste Reino está oculta dentro de você, na sua alma. Mergulhe nela, lave-se do pecado e você descobrirá os degraus nos quais subir. JOÃO DE CÁRPATOS[36] É preciso combater muito e se esforçar nas orações para descobrir o estado sereno da reflexão, este segundo coração celeste no qual habita o Cristo. Escutem o apóstolo: “Não sabeis que o Cristo habita em vós? A menos que sejais os reprovados[37]”. SIMEÃO O NOVO TEÓLOGO[38] O diabo e seus demônios, desde o dia em que a desobediência baniu o homem do paraíso e do contato com Deus, têm licença para agitar espiritualmente a alma do homem, de dia e de noite, seja pouco, seja muito, seja demais. O único meio de se proteger é a lembrança constante de Deus: a lembrança de Deus gravada no coração pela virtude da cruz firma inquebrantavelmente o espírito. Este é o objeto do combate espiritual que o cristão deve levar no estado de fé cristã e para o qual ele revestiu-se da armadura. Senão, ele combate em vão. Este combate é a única razão das várias asceses com as quais maltratamos o corpo por causa de Deus. Trata-se de forçar as entranhas do Deus de Bondade, de recuperar sua dignidade
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primeira e de imprimir o Cristo, tal qual um selo, na razão, conforme as palavras do apóstolo: “Minhas crianças, eu estou em trabalho de parto desde que o Cristo formou-se em vocêss[39]”. Vocês compreendem agora, meus irmãos, que existe uma arte, ou antes um método espiritual, para levar rapidamente quem o emprega à impassibilidade e à visão de Deus. Convençam-se de que a vida ativa vale para Deus tanto quanto as folhas da árvore, que não servirão de nada à alma que não possuir a guarda do espírito, o fruto. Façamos tudo para não morrermos estéreis e não termos que conhecer arrependimentos inúteis. PERGUNTA E RESPOSTA DE NICÉFORO
Questão: Seu tratado nos ensina a conduta daqueles que agradam ao Senhor; ele nos ensina que existe uma ocupação que liberta prontamente a alma de suas paixões e que ela é necessária a todo cristão que se alistou no exército de Cristo: não duvidamos mais, estamos convencidos. Mas o que é a atenção? Como chegar a ela? É o que queremos saber, pois não temos a respeito a menor ideia. Resposta: Em nome de nosso senhor Jesus Cristo que disse: “Sem mim vocês nada podem [40]” e depois de ter invocado sua ajuda e seu socorro, tentarei mostrar o melhor que puder o que é a atenção e como, com a graça de Deus, podemos alcançá-la.
DO MESMO NICÉFORO Alguns santos chamaram a atenção de “guarda do intelecto”, outros de “guarda do coração”, ou de “sobriedade e vigilância”, ou de “hesíquia intelectual”, e de outros nomes ainda. Diferentes expressões que querem dizer a mesma coisa, como quem diz pão, filãozinho ou pão francês. O que é a atenção, quais são suas propriedades? Escutem-me com bem. A atenção é o sinal da penitência cumprida; a atenção é a lembrança da alma, a aversão ao mundo e o retorno a Deus. A atenção, é desvestir-se dos pecados e revestir-se da virtude. A atenção é a certeza indubitável do perdão dos pecados. A atenção é o princípio da contemplação, ou melhor, é sua base permanente. Graças a ela, Deus se inclina sobre o espírito para manifestar-se a ele. A atenção é a serenidade do intelecto, ou melhor, seu estado imóvel, sua fixação à alma pela misericórdia de Deus. A atenção é a purificação dos pensamentos, o templo da lembrança de Deus. Ela guarda como um tesouro a paciência para suportar as provas. A atenção é a auxiliar da fé, da esperança e da caridade. Sem a fé, não suportaríamos as provas que vêm de fora: aquele que não aceita com alegria as provas não pode dizer ao Senhor: “Você é meu socorro e meu refúgio[41]”. E, se ele não faz seu refúgio no Altíssimo, ele não possuirá amor no fundo do seu coração[42]. Este efeito sublime chega à maioria, para não dizer a todos, pelo canal do ensinamento. É muito raro recebê-lo de Deus, dispensando um mestre, apenas com o vigor da ação e o fervor da fé. Ora, exceções não fazem leis. É importante assim buscar um mestre infalível: suas lições nos mostrarão nossos desvios, à esquerda e à direita, e também nossos excessos aos quais nos conduz o maligno; este guia nos iluminará com sua experiência pessoal nestas provas[43], nos esclarecerá a respeito e nos mostrará, sem dúvidas, o caminho espiritual que então poderemos percorrer sem dificuldade. Se você não tem um mestre, procure um a qualquer custo. Se você não o encontrar, invoque a Deus com espírito contrito e em lágrimas, suplique-lhe com todo o despojamento e faça o que eu vou lhe dizer. Você sabe que nosso sopro, o ar de nossa inspiração, nós só o respiramos por causa do coração. Pois é o coração que é o princípio da vida e o calor do corpo. O coração atrai o sopro a fim de expelir seu próprio calor para fora pela expiração, assegurando assim para si uma temperatura ideal. O autor desta
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organização, ou melhor seu instrumento, é o pulmão. Fabricado pelo Criador com um tecido fino e poroso, sem parar ele introduz e expele o ar à maneira de um fole. Desta forma o coração, por um lado atraindo o ar fresco pela inspiração e expelindo o calor pela expiração, conserva inviolável a função que lhe foi assinalada no equilíbrio geral do ser vivo. Quanto a você, como eu disse, sente-se, recolha seu intelecto, introduza-o – o intelecto – nas suas narinas; é o caminho que o ar toma para chegar ao coração. Empurreo, faça-o descer até seu coração junto com o ar inspirado. Quando ele chegar lá, você verá a alegria que irá se seguir; você não tem nada a temer. Assim como o homem que volta para casa depois de uma ausência não retém sua alegria de poder reencontrar sua esposa e filhos, também o intelecto, quando está unido à alma, transborda de uma felicidade e experimenta delícias inefáveis. Meu irmão, acostume então seu intelecto a não se apressar em sair do coração. No início faltará zelo, é o mínimo que podemos dizer, para esta reclusão e este encerramento interiores. Mas, uma vez adquirido o hábito, ele não experimentará mais prazer alguns nos circuitos exteriores. Pois o reino e Deus está dentro de nós[44] e a quem voltar para ele seu olhar e o buscar com uma prece pura, todo o mundo exterior se tornará vil e desprezível. Se, logo no começo, você penetrar pelo intelecto no lugar do coração que eu lhe mostrei, graças a Deus! Glorifique-o, exulte e agarre-se unicamente a este exercício. Ele lhe ensinará o que você ignora. Saiba a seguir que, enquanto seu intelecto se acha lá, você não deve nem se deter nem permanecer ocioso; dê a ele como tarefa e exercício contínuo a prece: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Sem trégua, por preço algum! Esta prática, mantendo seu espírito ao abrigo das divagações, o torna impenetrável e inacessível às sugestões do inimigo e, a cada dia, ele crescerá no amor e no desejo por Deus. Mas se, meu irmão, apesar de todos os seus esforços, você não conseguir penetrar nas partes do coração indicadas por mim, faça como eu lhe disse, e, com a ajuda de Deus, você alcançará seus objetivos. Saiba que a razão de todo homem está no coração. Pois é no coração, quando nossos lábios se calam, que falamos, deliberamos, colocamos nossas orações, os salmos e muitas outras coisas. Quando você tiver despojado sua razão de todo pensamento – e você pode, é só querer – dê-lhe o “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim” e obrigue-o a clamar interiormente, à exclusão de qualquer outro pensamento, estas palavras. Quando, com o tempo, você se tornar mestre nesta prática ela lhe abrirá a entrada do coração, assim como eu lhe disse, indubitavelmente. Eu mesmo fiz esta experiência. Com alegria da tão desejada atenção você verá chegarem-lhe todos os coros das virtudes, do amor, da felicidade, da paz e do resto[45]. Graças a elas, todas as suas demandas serão atendidas por Nosso Senhor Jesus Cristo. A ele, assim como ao Pai e ao Espírito Santo, a honra, o poder, a glória e a adoração agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.
[1] [2] [3] [4]
Cf. Mateus 13: 44. Cf. Lucas 17: 21. E não “queda”, como às vezes se traduz.
Cf. Gênesis 3: 21s.
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[5] Cf. Lucas 17: 21 [6] Esta expressão, empregada por Gregório de Nazianze à direção das almas, foi rapidamente confiscada pela corrente hesiquiasta. [7] I Coríntios 2: 9 [8] Efésios 6: 12. [9] Tiago 4: 4. [10] Cf. Gênesis 2: 15. [11] João 3: 4. [12] João 3: 8. [13] Cf. Santo Atanásio, Vida e conduta de nosso Pai santo Antônio 59. [14] Cf. São João Clímaco, A escada santa XXVIII, 54. [15] Cf. Teodoro de Petra, Vida de são Teodósio, in Monges do Oriente III, 3. [16] Deuteronômio 6: 5. [17] Cf. Cântico dos Cânticos 2: 5. [18] Cf. Sentenças dos Padres do Deserto, Arsênio 42. [19] Monge bizantino. O mosteiro de Latros se encontrava na Bitínia, reino da Ásia Menor próximo ao
Mar Negro, que teve como capitais Nicomédia e Nicéia. [20] Cf. Cirilo de Citópolis, Vida de são Sabbas, in Monges do Oriente III, 2. [21] Cf. Sentenças dos Padres do Deserto, Agatão 8. [22] Mateus 3: 10. [23] Cf. Marcos o Asceta, Carta ao monge Nicolas. [24] Cf. Salmo 111 (112): 1. [25] São João Clímaco, A escada santa, XXVII 7, 18,19, 23; XXVI 61; XXVI 34. [26] Cf. Cântico dos Cânticos 5: 2. [27] Cf. Salmo 102 (103): 12. [28] Isaías o Anacoreta, Sobre a guarda do intelecto 17. [29] Cf. Rute 1: 8. [30] Homilias espirituais de são Macário XXVI, 12 SO 40. [31] Mateus, 5:28. [32] Diádoco de Foticéia, Capítulos espirituais 57. [33] Cf. Gálatas 5: 16. [34] Cf. Hebreus 11: 32. [35] Passagem não identificada. [36] Aos monges da Índia 52. [37] II Coríntios 13: 5. [38] Passagem não identificada. [39] Gálatas 4: 19. [40] João 15: 5. [41] Salmo 3: 4. [42] Esta anexação de toda vida espiritual pela atenção é um dos traços característicos do hesiquiasmo sinaíta (cf. Hesíquio) [43] Cf. Hebreus 2: 18. [44] Cf. Lucas 17: 21. [45] Cf. Gálatas 5: 12.
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GREGÓRIO, O SINAÍTA Nosso Pai entre os Santos, Gregório, que se tornou monge no Monte Sinai – e por isso é chamado de Sinaíta – viveu sob o reinado de Andronico Paleólogo, ao redor do ano 1330. Chegando ao Monte Athos e após visitar muitos mosteiros e eremitérios, ele viu que muitos eram locais de encontro onde a vida transcorria nobremente, mas unicamente dedicados à prática. Os monges eram aí pouco iniciados na guarda do intelecto, no rigor da hesíquia e mesmo na contemplação, a qual sequer conheciam de nome. Ele encontrou apenas três, chamados Isaías, Cornélio e Macário, na sketa de Magoula, situada diante do mosteiro de Filoteu, que se dedicavam um pouco à via contemplativa. Inflamado pelo zelo divino, ele ensinou a nepsis, a guarda do intelecto e a noéra proseuké – a prece intelectual – não apenas àqueles que era propriamente hesiquiasta, mas a todos os que viviam nas comunidades. Assim fundou ele três grandes mosteiros nas fronteiras da Macedônia. Percorrendo o país e as províncias, ele exortava a todos que encontrava, pedindo-lhes que trabalhassem na prece contínua do intelecto. Por meio dela ele converteu um grande número de pecadores. De indignos que eram, tornou-os dignos, e contribuiu para que muitos tomassem lugar dentre os salvos. Calixto, o santo Patriarca, que foi seu discípulo, redigiu sua biografia. Com efeito, assim como em sua vida ele foi reconhecido como o mestre da santa nepsis, após sua morte ele continuou conduzindo a muitos para esta mesma nepsis através dos seus escritos. Com efeito, ele inicia de forma bela e perfeita ao modo prático da prece do intelecto no coração. Ele ensina o que são as virtudes éticas e as paixões. E ele explica quais são os sinais do erro e quais os da graça. Assim, esta obra auxilia mais do que todas, a muitos noviços, médios e perfeitos. Quaisquer que sejam suas idades e suas qualidades, quem ler com atenção encontrará nestes textos a riqueza oculta do Espírito. E aquilo que ele encontrar o encherá de alegria verdadeiramente indizível. * A vida de Gregório o Sinaíta cobre o final do século XIII e a primeira metade do século XIV. Originário de Clazomena, do lado ocidental da Ásia Menor, ele foi levado cativo pelos Turcos a Laodicéia. Resgatado por cristãos ele partiu para Chipre e depois para o Sinai, onde se tornou monge. Na sequência, ele foi do Sinai para Athos, passando por Jerusalém e Creta: uma peregrinação às raízes. Em Athos ele se estabeleceu na sketa de Magoula, nas proximidades do mosteiro de Filoteu, mas não permaneceu aí. Ele conheceu também Tessalônica e Constantinopla e terminou sua vida na Macedônia, onde fundou três mosteiros sobre uma montanha, às portas da Romênia e do mundo eslavo.
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Gregório o Sinaíta aparece como o iniciador e o pedagogo da renovação hesiquiasta dos séculos XIII e XIV. Ele é o homem chave que abre para o futuro absoluto os dois polos do périplo milenar que o movimento monástico realizou ao redor do Mediterrâneo oriental: estas duas montanhas, o Sinai e o Athos, onde ficaram representados na teofania luminosa o começo e o fim históricos. E ele os reuniu numa só convicção: o monaquismo é chamado para libertar o sentido último, afinando o destino do homem, do corpo ao intelecto, deste ao coração e do coração ao êxtase. A Filocalia fornece dele cinco coletâneas de textos de comprimento desigual. A primeira conta 137 capítulos, enquanto as quatro seguintes, bem mais curtas, possuem respectivamente 7, 10, 15 e 8 capítulos. A renovação hesiquiasta se fundamenta aqui sobre a lembrança constante daquilo que foram, durante um milênio, o discernimento e o combate espiritual dos monges. A repetição está em toda parte, mas o tom é bastante pessoal. Gregório fala menos como um anacoreta que destila sua reflexão do que como um Pai espiritual responsável por numerosos monges a quem prodigaliza os conselhos da experiência e as marcas da compaixão. Tudo nele é pedagogia da via monástica, até nos menores detalhes, da ascese do corpo e do intelecto até o amor extático, passando pela memória da origem, pela lembrança de Deus e a busca do lugar do coração. Mas tudo está enraizado na mensagem bíblica e na observância dos mandamentos. “Busque o Senhor no caminho, ou seja, no coração, através de seus mandamentos”. Lembrança constante: a ascese não tem outra causa nem outra finalidade do que o amor de Cristo e a identificação com Cristo. No fundo Gregório o Sinaíta não retoma os caminhos da ascese senão para melhor representar o último, e o último que vem no atual: “Tornar-se o Cordeiro tal como ele é no século futuro”. Assim é que ele carrega a renovação como se fosse uma gestação. Pois ele viveu o hesiquiasmo do interior, assim como a experiência e a transmissão da ascese. Ele não assume sua defesa e ilustração teológicas, como fará Gregório Palamas. Do Sinai ao Athos, e depois sobre esta montanha da Macedônia onde fundou seus últimos mosteiros, ele se tornou certamente o testemunho, o profeta e o missionário da extensão da via, para além da catástrofe histórica. Ele representa bem a recapitulação e a abertura.
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TII, VII – GREGÓRIO, O SINAÍTA – Sentenças diversas sobre os mandamentos, os dogmas, as ameaças e as promessas (Sobre os pensamentos, as paixões, as virtudes, a hesíquia e a prece).
SENTENÇAS DIVERSAS SOBRE OS MANDAMENTOS, OS DOGMAS, AS AMEAÇAS E AS PROMESSAS, SOBRE OS PENSAMENTOS, AS PAIXÕES E AS VIRTUDES, SOBRE A HESÍQUIA E A PRECE. 1. É impossível que um ser racional seja ou se torne segundo a natureza aquilo que possuía antes da pureza e da incorruptibilidade. Pois uma foi investida pela faculdade de sentir sem a razão, e a outra pelo estado de corruptibilidade da carne. 2. Os seres racionais segundo a natureza não se revelam santos senão através da pureza. Pois ninguém possuiu a razão em estado puro dentre os que são sábios pela palavra e que alteraram com os pensamentos a razão do alto. O espírito material e tagarela da sabedoria do mundo, levando as palavras aos sujeitos mais sabidos e os pensamentos aos objetos mais grosseiros, os faz permanecer juntos, privando-os da sabedoria anipostática, da contemplação e do conhecimento único e indivisível. 3. Considere que o conhecimento da verdade é antes de tudo a sensação da graça. Todos os outros conhecimentos devem ser chamados de expressão de ideias e demonstração de coisas. 4. Os que perdem a graça o fazem por infidelidade e negligência. E os que a encontram é pela fé e o esforço, graças aos quais se avança sempre. Quanto aos contrários, os obrigam a recuar. 5. Tornar-se insensível equivale a morrer. Ser cego em espírito é como não ver corporalmente. O primeiro está privado da faculdade de ver e de agir; o segundo, que não vê, está privado da luz divina, que permite ver e ser visto. 6. Poucos são os que recebem de Deus tanto o poder como a sabedoria. Com efeito, um participa dos bens divinos, enquanto a outra os revela. Ora, partilhar e comunicar é em verdade próprio de Deus. Isto ultrapassa o homem. 7. O coração sem pensamentos no qual age o Espírito é como um verdadeiro santuário antes mesmo da vida futura. Pois tudo o que nele se diz e se faz é obra do Espírito. Quem ainda não adquiriu isto é uma pedra para as demais virtudes: pode servir para edificar o templo de Deus, mas não é o próprio templo, nem a hierurgia do Espírito. 8. O homem foi criado incorruptível, sem os humores do corpo, e é assim que ele ressuscitará. Ele não era imutável, mas então será. A faculdade volitiva lhe deu o poder de mudar ou não. Mas não é a vontade que, por natureza, realiza a perfeita imutabilidade: esta é o prêmio da imutável deificação futura. 9. Pois a origem da carne é a corrupção. Comer, evacuar, pavonear-se e dormir são coisas naturais próprias das feras e dos animais. Tornados semelhantes aos animais[1] por causa da desobediência, decaímos dos bens concedidos por Deus e que nos eram próprios. De seres racionais que éramos nos tornamos como animais. De seres divinos nos tornamos feras. 10. O Paraíso é duplo, tanto sensível como inteligível. Existe o Paraíso enquanto Éden e o Paraíso da graça. O lugar do Éden é muito elevado, o terceiro antes do céu, como dizem os que o descreveram. Ele está semeado por Deus[2] com todas as espécies de plantas olorosas. Ele nem é totalmente incorruptível nem totalmente corruptível: ele foi criado como um intermediário entre o corruptível e o incorruptível. Ele está sempre coberto de frutos e não cessa de se carregar de flores que se abrem e de frutos verdes e frutos maduros. As árvores mortas e os frutos maduros caem sobre a terra e se transformam num solo 901
TII, VII – GREGÓRIO, O SINAÍTA – Sentenças diversas sobre os mandamentos, os dogmas, as ameaças e as promessas (Sobre os pensamentos, as paixões, as virtudes, a hesíquia e a prece).
perfumado, e não sofrem a corrupção como as plantas de nosso mundo. Pois a superabundância e a santificação da graça transbordam todo o tempo neste lugar. O rio oceano que o atravessa e que recebeu ordem de irriga-lo continuamente, ao sair deste lugar se divide em quatro rios menores, corre para levar aos Indianos e aos Etíopes o solo e as folhas caídas. O Fison e o Geon[3] reunidos inundam seus campos até se separarem novamente, um irrigando a Líbia e outro o Egito. 11. Foi dito que a criação que passa, portanto a criação corruptível, não foi a primeira a ser estabelecida. Foi apenas na sequência, segundo a Escritura, que a criação foi corrompida e submetida à vaidade, vale dizer ao homem, não por si mesma, mas involuntariamente, por causa daquele que a submeteu, e assim ela permanece na esperança[4] da renovação do Adão corrompido. E foi apenas quando ele renovou e santificou a Adão, trazendo em si mesmo um corpo corruptível nesta vida que passa, que ele renovou também a criação, mas ainda sem livrá-la da corrupção. Esta libertação da criação para longe de toda corrupção, uns dizem que se trata da mudança que nos levará ao melhor, outros que se trata de uma total transposição do sensível. O normal na Escritura, a respeito de assunto tão difícil no momento, é de afirmar pura e simplesmente. 12. Os que recebem a graça são como os que são fecundados em espírito antes de conceber. Mas eles rejeitam a semente divina seja por causa de suas quedas, seja porque se provam de Deus por se ligarem ao inimigo que vive neles. A rejeição da graça provém da energia das paixões; mas a privação total provém da ação dos pecados. Pois a alma que ama as paixões e os pecados, privada da graça que rejeitou, se torna uma moradia para as paixões, para não dizer dos demônios, tanto agora como no século futuro. 13. Nada torna o coração tão alegre e doce como a coragem e a compaixão. A primeira esmaga os inimigos de fora, a outra os de dentro, como as torres que fortificam as cidades. 14. Muitos dos que cumprem os mandamentos parecem estar no caminho. Mas eles ainda não alcançaram a cidade, permanecendo do lado de fora. Por desatenção, eles passam os limites dos caminhos reais e avançam de maneira insensata tangenciando os vícios que fazem fronteira com as virtudes. Pois os mandamentos não buscam nem a falta nem o excesso, mas apenas o objetivo que agrada a Deus, a vontade divina. Senão todo esforço é inútil: não se consegue tornar retos, conforme as Escrituras, os caminhos de Deus[5]. Em toda obra devemos buscar o objetivo pelo qual ela é feita. 15. Busque o Senhor no caminho, ou seja, no coração, por intermédio dos mandamentos. Quando ouvir o chamado de João prescrevendo a todos para prepararem os caminhos e endireitar as veredas [6] considere que se trata dos mandamentos, dos corações e dos atos. Com efeito, é impossível endireitar o caminho dos mandamentos e agir com inocência se o próprio coração não for direito. 16. Quando você ouvir falar da vara e do bastão nas Escrituras, considere que, na ordem profética, se trata do juízo e da providência; e, na ordem ética, da salmódia e da oração. Com efeito, quando somos julgados pelo Senhor, a vara da instrução nos castiga com vistas à conversão. Mas quando avara da salmódia viril castiga os que se rebelam contra nós, então nos tornamos firmes por meio da oração. Portanto, quando temos em mãos a vara e o bastão do exercício do intelecto, deixamos de castigar e sermos castigados até nos tornarmos totalmente assumidos pela providência, escapando tanto ao julgamento presente como ao futuro. 17. É típico dos mandamentos preferir sempre aquele que abarca todos os demais, ou seja, a lembrança de Deus: lembre-se continuamente do Senhor seu Deus. Pois é por intermédio deste mandamento que todos os demais podem ser perdidos ou guardados. De fato, o esquecimento, desde o início, perdeu a lembrança de Deus apagando os mandamentos, e assim despojou o homem de todos os seus bens.
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TII, VII – GREGÓRIO, O SINAÍTA – Sentenças diversas sobre os mandamentos, os dogmas, as ameaças e as promessas (Sobre os pensamentos, as paixões, as virtudes, a hesíquia e a prece).
18. Por meio dos dois mandamentos da obediência e do jejum aqueles que combatem retornam à dignidade original. Pois foi por intermédio dos seus contrários que todo o mal penetrou nos homens. Os que guardam os mandamentos pela obediência retornam a Deus mais rapidamente. E os que os guardam pelo jejum e a prece, mais lentamente. A obediência convém aos que começam e o jejum e a prece aos que já estão bem engajados no caminho do conhecimento e da coragem. Manter intacta a obediência a Deus através dos mandamentos não é dado senão a poucos e, mesmo para os mais corajosos, não se faz sem esforço. 19. A lei do Espírito da vida, segundo o Apóstolo, age e fala no coração, assim como a lei da letra opera na carne. Pois a primeira liberta o intelecto do pecado e da morte[7]. A outra faz secretamente uma obra farisaica, não cumprindo nem concebendo a lei senão para o corpo, e trabalhando os mandamentos apenas em aparência[8]. 20. Foi dito que o homem, perfeito ou imperfeito de acordo com seu progresso, é a síntese coordenada e coerente em espírito de todos os mandamentos[9]. Os mandamentos são o corpo. As virtudes – as qualidades adquiridas – são os ossos. E a graça é a alma vivificante que move e conduz como se fossem seu corpo as energias dos mandamentos. Pois conforme a negligência ou o esforço em vista a atingir o talhe de Cristo fica evidente se se trata de uma criança ou de um perfeito, tanto agora como no século futuro. 21. Quem quer fazer crescer o corpo dos mandamentos deve se apressar em desejar o leite da graça materna, cheio de razão e de inocência[10]. Com efeito, é deste leite que se nutre todo aquele que busca crescer em Cristo e que deseja este crescimento. De seu próprio seio a sabedoria dá o calor e o leite com vistas ao crescimento. Mas aos perfeitos ela dá sua própria alegria, o mel, como alimento visando a purificação. Foi dito: “O mel e o leite estão sob sua língua[11]”. Salomão dizia que o leite é a faculdade que o Espírito possui de nutrir e fazer crescer, enquanto o mel é sua faculdade de purificar. E o grande Apóstolo, fazendo alusão a estas energias diferentes, dizia: “Eu lhes dei leite para beber como se dá às crianças, e não alimento sólido[12]”. 22. Aquele que, sem praticar os mandamentos, procura as razões dos mandamentos e deseja encontrá-las apenas lendo e estudando, assemelha-se a alguém que toma a sombra pela verdade. Pois não é possível participar das razões da verdade sem comungar com a verdade. Os que não comungam nem são iniciados na verdade, ao buscar suas razões, não encontram senão aquelas da sabedoria tola[13]. O Apóstolo os chama “psíquicos”. Porque eles não possuem o Espírito[14], mesmo que se glorifiquem da verdade. 23. Da mesma forma como o olho sensível vê as letras e recebe a leitura dos sinais sensíveis, também o intelecto, quando se purifica e retorna à dignidade original, contempla a Deus e dele recebe os sinais divinos. Ele tem o Espírito por livro e o pensamento e a língua como pena. “Minha língua, foi dito, é um cálamo[15]”, e sua tinta é a luz. Ele mergulha os pensamentos na luz e, tomando da luz, escreve as palavras em espírito nos corações puros dos que compreendem. Então ele conhece o que foi dito: o modo como os fiéis serão ensinados por Deus e como Deus ensina o homem, segundo a profecia, o conhecimento em espírito[16]. 24. Considere que a lei dos mandamentos é a fé que age imediatamente no coração. É por meio dela, efetivamente, que todo mandamento se torna a fonte e a energia da iluminação das almas. Nas almas, os frutos da verdadeira fé ativa são a temperança e o amor e, finalmente, a humildade – este dom de Deus – que é o começo e a força do amor.
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TII, VII – GREGÓRIO, O SINAÍTA – Sentenças diversas sobre os mandamentos, os dogmas, as ameaças e as promessas (Sobre os pensamentos, as paixões, as virtudes, a hesíquia e a prece).
25. A glória dos seres que não mentem é o verdadeiro conhecimento da que é visível e invisível. O conhecimento do visível é a glória dos seres sensíveis. E o conhecimento do invisível é a glória dos seres dotados de inteligência e de razão, dos seres espirituais e divinos. 26. A definição de ortodoxia consiste em ver com toda pureza e em conhecer em si os dois dogmas da fé, ou seja, a Trindade e a dualidade. Contemplar e conhecer de uma parte a Trindade na Unidade sem confusão nem divisão; e, de outra parte, reconhecer a dualidade das naturezas de Cristo em uma só Pessoa, ou seja, confessar e conhecer em duas naturezas, antes e depois da encarnação, um único Filho glorificado em duas vontades, divina e humana, que não se confundem jamais. 27. Devemos confessar piedosamente as três propriedades imutáveis e inalienáveis da Santíssima Trindade: ter nascido, não ter sido gerada e proceder. O Pai não é gerado e não tem começo. O Filho é nascido e, como o Pai, não tem começo. O Espírito Santo procede do Pai, por intermédio do Filho (como diz Damasceno), e é eterno juntamente com eles. 28. Somente é necessária a fé vivida na graça, agindo pelo Espírito através dos mandamentos, contanto que a guardemos. Não devemos preferir a fé morta e inerte à fé viva e ativa em Cristo. Basta ao fiel, com efeito, a forma e a vida da fé ativa em Cristo. Pois é a ignorância que ensina aos devotos a fé em palavras, inerte e insensível, e não a fé vivida na graça. 29. A Trindade é Unidade simples, porque não é criada nem composta. A Trindade está contida na Unidade. Pois Deus é em três Pessoas que estão enoveladas sem no entanto se confundirem. 30. Em tudo, é na Trindade que Deus pode ser conhecido e chamado. Pois ele não tem limites. Ele contém e prevê tudo, pelo Filho, no Espírito Santo. E nenhuma das Pessoas, qualquer que seja o nome que lhe dermos, pode ser chamada ou concebida independentemente das outras, ou sem as outras. 31. No homem existe o intelecto, a palavra e o espírito. O intelecto não existe sem a palavra nem a palavra sem o espírito. Eles se relacionam uns com os outros e existem por si mesmos. Pois o intelecto se exprime pela palavra e a palavra é manifestada pelo espírito. Assim o homem traz em si um obscuro ícone da Trindade imutável e original. Ele é a criação à imagem[17], até o momento, e ele a revela. 32. Os Pais que trazem a Deus em si ensinam a partir de modelos que o intelecto é o Pai, a palavra o Filho e que o espírito é em verdade o Espírito Santo. Eles revelam a doutrina da Trindade supra-essencial e sobrenatural, o Deus único em três Pessoas. Eles nos legaram a verdadeira fé e a âncora da esperança [18]. Pois conhecer o Deus único é, segundo a Escritura, a raiz da imortalidade[19]. E conhecer o poder da unidade das três Pessoas é toda a justiça. Ou ainda, é assim que se deve compreender o que é dito no Evangelho: “A vida eterna consiste em que eles o conheçam, o único Deus verdadeiro, e aquele que você enviou[20]”, Jesus Cristo, em duas naturezas e duas vontades. 33. Os castigos são tão variados quanto as recompensas dos bens. Eles estão no inferno, diz a Escritura, na terra obscura e sombria, na terra das trevas eternas[21] para onde vão os pecadores. Eles aí permanecerão até o julgamento, e a sentença poderá enviá-los de volta. Que os pecadores voltem para o inferno[22] e que a morte os leve a pastar[23], que é isto senão o Juízo último e a condenação eterna? 34. O fogo, as trevas, o verme e o tártaro são o deboche geral, a universal ignorância das trevas, a excitação do luxo em todos, o medo, o odor infecto do pecado. Garantias e primícias dos castigos, eles agem desde agora nas almas dos pecadores, e são manifestados pelo estado em que estes se encontram.
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35. Os estados aos quais nos conduzem as paixões são a garantia dos castigos, assim como as energias das virtudes são as garantias do Reino. Mas devemos compreender e lembrar que os mandamentos são energias e que as virtudes são estados, assim como os vícios são igualmente estados. 36. Os castigos são repartidos como as recompensas, mesmo que para muitos as partes não pareçam iguais. Com efeito, a justiça divina concede a uns a vida eterna, a outros o castigo eterno. Uns e outros atravessaram bem ou mal o século presente, e serão retribuídos segundo suas obras. A quantidade e a qualidade da parte que receberem depende do estado e da energia das paixões ou das virtudes. 37. As almas debochadas são como pântanos de fogo[24]. Nelas o odor das paixões, como um lodo nauseabundo, alimenta o verme insaciável da desordem, a intemperança das concupiscências da carne, e também a serpente, os caranguejos, as sanguessugas dos maus desejos, a maldição e o veneno dos pensamentos e dos demônios. Uma condição como esta é desde já garantia de castigos no além. 38. Do mesmo modo como as primícias dos castigos estão escondidos nas almas dos pecadores, também as garantias dos bens agem pelo Espírito e são recebidas nos corações dos justos. Pois o Reino dos céus é o retorno que provém das virtudes, assim como o castigo é o estado das paixões. 39. A noite que se aproxima, segundo a palavra do Senhor[25], é a total inércia das trevas futuras. Vista de outro modo, ela é o Anticristo, que é a noite e as trevas e que assim é chamado. Na ordem moral, ela é a negligência cotidiana que, como a obscuridade, destrói a alma no sono da insensibilidade. Com efeito, assim como a noite leva a dormir todos os seres, como uma imagem da morte que nos aniquila, também a noite das trevas futuras, sob a embriaguez das penas, dá aos pecadores a morte e a insensibilidade. 40. O julgamento deste mundo, segundo a palavra do Evangelho[26], é a descrença dos ímpios: “Aquele que não crê já está julgado[27]”. São também as sentenças da providência em vista da supressão ou do retorno, e os impulsos que nos conduzem ao bem ou ao mal, segundo a energia que existe em nós: “Desde o seio os pecadores se extraviam[28]”. É então que, por nossa infidelidade, nossa experiência e nossa conduta, aparece o justo juízo de Deus castigando a uns, tendo piedade de outros, dando a alguns a coroa e a outros o castigo. Pois aqueles são totalmente ímpios e estes são fiéis mas negligentes: eles serão castigados com todo o amor que Deus tem pelos homens. Mas os que se tornaram perfeitos nas virtudes ou nos vícios decadentes receberão o que lhes é devido. 41. Se a natureza não é mantida intacta ou purificada pelo Espírito, como foi dito, é impossível que ela se torne um só corpo e um só Espírito em Cristo, tanto agora como na harmonia futura. Pois o poder englobante e unificador do Espírito não recupera as velhas vestimentas das paixões para delas fazer a nova túnica da graça[29]. 42. Aquele que recebeu gratuitamente e guardou a renovação do Espírito e que agora conhece inefavelmente a deificação sobrenatural será a própria imagem e a figura de Cristo. Porque será um com Cristo. A outra possibilidade é não sermos membros de Cristo por não participarmos desde já da graça e por não termos em nós, segundo o Apóstolo, a imagem da verdade e do conhecimento[30]. 43. Segundo a lei de Moisés, o Reino dos céus é semelhante a uma tenda construída por Deus e dividida em duas partes pelo véu[31] do século futuro. Na primeira metade da tenda, todos os que são sacerdotes da graça entrarão. Mas na segunda – a tenda espiritual – somente entrarão aqueles que, desde já, nas trevas da teologia, vivem à perfeição a liturgia hierárquica e trinitária, aqueles para quem Jesus, celebrando os mistérios, é o primeiro hierarca diante da Trindade. Eles entram na tenda que ele fundou e brilham visivelmente com seu próprio esplendor.
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44. O Salvador disse que existem numerosas moradas[32], que são os diferentes graus, os diferentes progressos da condição do além. O Reino é único, mas contém em si muitas e diversas moradas, assim como existem seres celestes e seres terrestres, segundo a virtude e o conhecimento, segundo o grau de deificação. Com efeito, uma coisa é a luz do sol, outra a da lua, outra a das estrelas, e ainda uma estrela difere em brilho de outra[33], como diz o Apóstolo, mesmo que todas brilhem no firmamento único de Deus. 45. Passa a viver com os anjos aquele que purifica com lágrimas seu intelecto e se torna pouco a pouco incorpóreo e incorruptível, aquele que, pelo Espírito, desde já resgata sua alma e que, da carne, da estátua de argila que é por natureza, faz, pela palavra de Deus, uma figura de luz e fogo, uma imagem da beleza divina, dado que os corpos se tornarão incorruptíveis e que desaparecerão os humores e a densidade. 46. O corpo terrestre está destinado à incorruptibilidade, sem humores nem densidade. Como ele é ao mesmo tempo material e celeste, de corpo material ele será inefavelmente transformado pela sutilização da imagem divina em corpo espiritual. Pois ele ressuscitará tal como foi criado no princípio, a fim de se conformar à imagem[34] do Filho do homem, na comunhão total da deificação. 47. A terra dos mansos[35] é o Reino dos céus, ou a natureza divina e humana do Filho, na qual nós entramos e na qual avançamos, nós que recebemos pela adoção filial o nascimento na graça e a renovação que provém da ressurreição. Ou ainda: a terra santa é a natureza deificada, a terra purificada para os terrestres que dela forem dignos; ou, num outro sentido, a terra herdada[36] pelos verdadeiros santos é a calma serenidade divina da paz que ultrapassa a inteligência[37] e onde habitará a geração de corações retos[38], quando nada mais vier zumbir ao redor de seus ouvidos para perturbá-los. 48. A terra prometida é a impassibilidade. Nela correm o leite e o mel[39] da alegria do Espírito. 49. Os santos falam entre si no século futuro a língua dos mistérios, a linguagem interior que é expressa no Espírito Santo. 50. Se não reconhecermos quem Deus nos fez, não reconheceremos quem o pecado nos faz. 51. Os que receberam desde já a plenitude da perfeição de Cristo são por esta dimensão iguais em espírito. 52. Quantas e quais são as penas de uns, as recompensas de outros, e qual a sua medida, descobriremos participando da ordem e da condição do além. 53. Foi dito que os santos, os filhos da ressurreição[40] de Cristo, pela incorruptibilidade e a deificação, se tornarão inteligências, portanto semelhantes aos anjos. 54. Foi dito que, no século futuro, os anjos e os santos não cessarão jamais de progredir no crescimento das graças, nem lhes faltarão os bens que desejam. No século futuro, de fato, nenhum mal virá relaxar ou diminuir a virtude. 55. Considere que o homem que recebeu como um dom a semelhança que o faz crescer até a dimensão de Cristo[41] é perfeito agora. Mas o homem perfeito no século futuro será revelado pela potência da deificação. 56. Aquele que desde já é perfeito em virtude a ponto de alcançar a idade do Espírito, é também tão digno e deificado quanto aqueles que, no século futuro, trazem em si a semelhança.
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57. Foi dito que a verdadeira glória consiste no conhecimento ou na contemplação do Espírito, que a busca da fé verdadeira consiste no discernimento preciso dos dogmas. 58. O deslumbramento é a total elevação das potências da alma para reconhecer a glória imensa e se unir a ela. Ou ainda, é a pura e total elevação voltada para o poder infinito que reside na luz. Mas o êxtase não consiste apenas no arrebatamento das potências da alma para o céu: ele nos despoja totalmente desta sensação. E o amor – o eros – é tanto uma coisa como outra: ele é a embriaguez do Espírito que tensiona o desejo. 59. Dois amores em espírito são verdadeiramente extáticos: o que reside no coração e o que faz ficar fora de si. O primeiro se encontra naqueles que ainda estão sob a luz de um ensinamento; o segundo, naqueles que se realizam na caridade. Ambos separam dos sentidos o intelecto que põem a trabalhar, na medida em que o amor – o eros – divino consiste na embriaguez do Espírito que conduz à superação do pensamento natural e por meio da qual também os sentidos são subtraídos das relações. 60. O início e a causa dos pensamentos é a transgressão do homem, que divide a memória única e simples e a faz perder a lembrança de Deus. De simples, a memória se torna composta. De única, se torna diversificada. E suas próprias forças a fazem perecer. 61. O retorno à simplicidade primordial cura a memória original da memória ruim dos pensamentos, que conduz à perdição. Pois o órgão da malícia, a desobediência, não apenas está na origem da memória simples voltada para o bem, como ainda corrompe suas próprias forças, apagando o desejo natural da virtude. Mas a lembrança de Deus, constante, enraizada na oração, cura cirurgicamente a memória, quando o espírito, falando das coisas da natureza, se une ao sobrenatural. 62. Os atos do pecado provocam as paixões; as paixões provocam os pensamentos; e os pensamentos, as imaginações. A memória é causa das reflexões; o esquecimento, da memória. A ignorância gera o esquecimento; e a negligência, a ignorância. A concupiscência gera a negligência. O movimento que altera é a mãe dos desejos, e a energia do ato é a mãe do movimento. O ato é o impulso irracional do mal que nos faz dispor do sensível e dos sentidos. 63. Os pensamentos agem e se desenvolvem na razão; as paixões brutais, no ardor; a memória do apetite selvagem, no desejo; as formações imaginárias, no intelecto; e as ideias, na reflexão. 64. A irrupção dos maus pensamentos é um rio que corre. A sugestão que reside neles e a conivência com o pecado que reside nesta sugestão, se tornam as ondas de uma inundação que cobre o coração. 65. O lodo profundo[42] significa o suor do desfrute, ou a lama da prostituição, ou o peso das coisas materiais, que tornam pesado o intelecto apaixonado, que, por causa dos pensamentos, mergulha no abismo do desespero. 66. A Escritura muitas vezes chamou as razões das coisas de pensamentos, assim como, para ela, as razões significavam o sentido das coisas, e, reciprocamente, o sentido das coisas representava suas razões. De fato, o movimento das razões é em si imaterial, mas através das coisas ele penetra numa imagem e se transforma. É assim que pode ser conhecido e denominado aquilo que se projeta em toda aparição. 67. Os pensamentos são as razões dos demônios e os precursores das paixões. O mesmo acontece com as razões e os sentidos das coisas. É impossível, de fato, fazer o bem ou o mal sem que antes isto não tenha sido sugerido em pensamento, dado que o pensamento é o movimento informal da sugestão de todas as coisas possíveis.
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68. A matéria das coisas engendra os pensamentos simples, mas a sugestão demoníaca trama os pensamentos de malícia. Porém, quando os comparamos, as razões e os pensamentos naturais não diferem das razões e dos pensamentos contra a natureza e dos sobrenaturais. 69. A partir do momento em que mudam, os pensamentos naturais e os pensamentos segundo a natureza agem da mesma forma, mas os pensamentos se voltam para os pensamentos contra a natureza e os pensamentos segundo a natureza se voltam para os pensamentos sobrenaturais. Todos passam uns pelos outros e nascem uns dos outros. Os pensamentos demoníacos têm como causa os pensamentos provenientes da matéria. Os pensamentos materiais têm como causa os pensamentos que provêm da sugestão. Os pensamentos divinos provêm dos pensamentos naturais, que geram os pensamentos sobrenaturais. Cada pensamento traz em si sua própria transformação, que o leva ao que lhe é próprio, e que se divide em quatro vias: ele possui uma causa, e ele gera. 70. Devemos notar que as causas provêm dos pensamentos; que os pensamentos provêm das imaginações; as imaginações provêm das paixões e as paixões, dos demônios. Existe, de uma maneira pérfida, como que uma ligação e uma ordem entre os espíritos desordenados. Cada um depende de outro ao qual está ligado. Nenhum age por si mesmo, mas é levado pelos demônios. A imaginação não cria imagens e a paixão não age se não for pelo poder demoníaco oculto em segredo. Pois, se Satanás caiu e foi despedaçado, nem por isso nossa negligência o torna menos forte, e ele se orgulha às nossas custas. 71. Os demônios configuram nossa inteligência, ou melhor, eles tomam uma forma semelhante a nós mesmos e se projetam sobre nós segundo o estado de paixão que domina e age sobre a alma. Pois eles portam em si o estado de paixão que provoca a formação das imagens. Durante a vigília e o sono ele fazem surgir em nós toda a diversidade de numerosas formas de imaginação. Os demônios do desejo, ou melhor, do deboche, se transformam seja em porcos, em asnos, em cavalos lúbricos e inflamados, seja em hebreus. Os demônios da cólera se mostram como pagãos ou leões. Os demônios da preguiça se fazem Israelitas, e os do deboche Edomitas. Os demônios da embriaguez e da intemperança se tornam Agáricos. Os demônios da avidez se transformam em lobos e panteras, e os da malícia em serpentes, víboras e raposas. Os demônios da impudência se fazem de cachorros, e os da acídia de gatos. Enfim, os demônios da prostituição se tornam serpentes, corvos e gaios, e os demônios psíquicos, ou aéreos, se transformam em pássaros. A imaginação tem três tipos de causas, que mudam as formas dos espíritos conforme as três partes da alma. Assim é que a tripla imaginação se encontra nos pássaros, nas feras e nas bestas de carga, que correspondem às potências da alma: o desejo, o ardor e a razão. Pois os três príncipes das paixões se armam sempre segundo estes três modos. Quando a alma secreta a paixão, então, conforme nos parecemos a eles, os demônios vêm fazer caretas em nós. 72. Os demônios do desfrute aparecem muitas vezes como fogo e brasas. Espíritos de desfrute, eles queimam o desejo e entenebrecem em confusões a reflexão da alma. Pois o desfrute das paixões é em si causa de queimação, de perturbação e de trevas. 73. A noite das paixões corresponde às trevas da ignorância. Ou ainda, a noite é o império que engendra as paixões. Nela reina o mestre das trevas, onde os animais dos campos, os pássaros do céu e as serpentes da terra, que figuradamente são chamados de “espíritos que rugem”, tentam nos devorar[43]. 74. Temporalmente, os pensamentos precedem ou se seguem às energias das paixões. Os pensamentos precedem as imaginações, e as paixões as seguem. As paixões precedem os demônios e os demônios seguem as paixões.
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75. O princípio e a causa das paixões é o abuso. A causa do abuso é a mudança, e a causa da mudança é o impulso da vontade. O instrumento da vontade é a sugestão. E o instrumento da sugestão são dos demônios, que são tolerados pela providência para mostrar qual é o nosso livre arbítrio. 76. O veneno do aguilhão do pecado que conduz à morte[44] é o estado passional da alma. Aquele que por sua própria vontade se atirou às paixões não consegue nem fazer avançar, nem alterar sua conduta. 77. As paixões têm muitos nomes. Elas se dividem em paixões corpóreas e psíquicas. As paixões corpóreas se dividem em paixões da dor e do pecado. As paixões da dor se dividem em paixões de doença e de castigo. Da mesma forma, as paixões psíquicas se dividem em paixões do ardor, do desejo e da razão. As paixões da razão se dividem em paixões da imaginação e da reflexão. Umas são voluntárias, por excesso. Outras, involuntárias, por necessidade: diz-se que estas são paixões às quais não está ligada reprovação, e os Padres as chamam de consequências e caracteres naturais. 78. Umas são as paixões do corpo, outras as da alma. Umas são as paixões do desejo, outras as do ardor. Outras ainda da razão, e outras as do intelecto e da reflexão. Todas comunicam entre si e trabalham umas com as outras. As paixões do corpo levam às do desejo; as paixões da alma conduzem às do ardor; às da razão levam às do intelecto e estas às da reflexão e da memória. 79. As paixões do ardor são a cólera, a amargura, a gritaria, a agressividade, a impudência, a vaidade, a vanglória, etc. As paixões do desejo são a avidez, o deboche, a intemperança, a concupiscência insaciável, o desfrute, a avareza, o egoísmo – este, de todas as paixões, a mais baixa. As paixões da carne são a prostituição, o adultério, a impureza, a libertinagem, a injustiça, a gula, a acídia, a frivolidade, o amor aos enfeites, a ligação a esta vida, etc. As paixões da razão são a descrença, a blasfêmia, a malícia, a trapaça, a curiosidade, a irresolução, a injúria, a bisbilhotice, a condenação, o desprezo, a palhaçada, a hipocrisia, a mentira, a grosseirice, a tolice, a falsidade, a ironia, a vaidade, o respeito puramente humano, a gabolice, os falsos juramentos, os discursos vãos, etc. As paixões do intelecto são a presunção, a insolência, a exaltação, a disputa, a inveja, a suficiência, a contradição, a ignorância, a imaginação, as invencionices, a exibição, a ambição, o orgulho – este, o primeiro e o último de todos os males. As paixões da reflexão são as inquietudes, as exaltações, os enclausuramentos, a vertigem, a cegueira, os desvios, as sugestões, as submissões, os pendores, as alterações, as agitações e tudo o que se lhes assemelha. Como se vê por sua definição, todos os males que são contra a natureza estão misturados às três potências da alma. Da mesma forma, todos os bens que se encontram na natureza se encontram nela. 80. Oh, quanto Davi louvou e temeu a Deus quando, maravilhado, disse: “Seu conhecimento está além de mim. Eu não posso chegar até ele[45]”, tão grande e inacessível, acima de meu fraco conhecimento e do poder que está em mim. Como esta carne, cuja complexa formação é impossível conhecer, pode ter em cada uma de suas formas a harmonia trinitária e única de seus próprios membros e de suas partes, honrada pelos números sete e dois (números que, segundo os sábios, manifestam o tempo e a natureza)? Existe aí um órgão revelador da glória de Deus, e fisicamente de acordo com a grandeza da Trindade, segundo as leis ativas da natureza. 81. As leis da natureza consistem em tal ou qual composição dos membros em estado de agir, que a razão pode considerar diferentes como se fossem numerosas partes com propriedades idênticas. Ou ainda, a lei natural é a energia em potência de cada forma e de cada membro. O que Deus fez por toda a criação a alma faz pelos membros do corpo. Ela coloca em ação e em movimento cada um deles por meio da mesma energia. Podemos nos perguntar por que razão os homens teóforos afirmam tanto que o ardor e o desejo são potências da carne, quanto dizem que são potências da alma. Quanto a nós, afirmamos que estas palavras dos santos, para aqueles que as conhecem exatamente, não se contradizem. Uns e outros testemunham a verdade e cruzam com sabedoria estas apelações, assim como seu nascimento inefável dos
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dois ao ser, segundo o modo de sua existência em comum, uma vez que a alma é perfeita desde já, mas o corpo é imperfeito, por causa do crescimento que está implicado na alimentação. Pois a alma também possui por si própria uma potência voltada para o desejo, um ardor que a leva à energia do amor, desde a sua formação, que faz dela uma criatura dotada de razão e inteligência. Com efeito, não se trata de um ardor sem razão e de um desejo sem inteligência que foram criados com ela. Nada está primeiramente na carne. Mas o que foi formado era incorruptível, sem os humores de onde saíram o desejo e o ardor brutal. Foi depois da transgressão que, por necessidade, o ardor e o desejo se inclinaram sobre aquele que tombara na corrupção e na densidade dos serem desprovidos de razão. É por isso que, por intermédio do ardor e do desejo, quando o mortal é quem domina, ele se opõe à vontade da alma. Mas quando ele é submetido à razão, ele segue a alma em direção à energia dos bens. Com efeito, quando aquilo que havia sido importado da carne se mistura desordenadamente às propriedades da alma, o homem se torna semelhante aos animais[46]. Pela necessidade da natureza, ele se inclina sob a lei do pecado. De ser racional ele se torna animal. De homem ele se faz fera. 82. Do mesmo modo como a alma, cuja razão foi criada pelo sopro e cujo intelecto pela inspiração vivificante, Deus não criou o ardor e desejo bestial, mas a potência voltada ao impulso e, além desta, a energia amorosa do encantamento, também no corpo, quando foi este formado no princípio, ele não colocou o ardor e o desejo irracionais. Foi apenas depois da transgressão que ele acrescentou tudo aquilo que é mortal, corruptível e bestial, tornando-o semelhante a isto. Pois o corpo, dizem os teólogos, foi criado incorruptível e, ainda que esteja sujeito à corrupção, ele ressuscitará, assim como a alma que foi criada impassível. Ambos – a alma e o corpo – foram corrompidos e misturados pela lei natural da pericorese[47] e da permuta. A alma foi marcada pelas paixões, ou melhor, pelos demônios. O corpo, tornado semelhante aos animais irracionais, foi marcado com a energia de seu estado e pelo império da corrupção. E as potências de ambos, por não constituírem senão uma única coisa, constituíram um animal único que, pelo ardor e o desejo, perdeu a razão e a inteligência. E assim, segundo a Escritura, ele foi assimilado aos animais e tornado semelhantes a eles de todas as maneiras[48]. 83. O princípio e a gênese das virtudes consiste em avançar para o que é bom – isto é o impulso para o bem – assim como Deus é a causa e a fonte de todo bem. O princípio do bem é a fé, ou antes Cristo, a pedra da fé, que é para nós o princípio e o fundamentos de todas as virtudes. Sobre ela nós somos. E nele edificamos todo bem[49]. Ele é a pedra angular[50] que nos une a si. Ele é a pérola preciosa[51] que o monge busca quando penetra na profundeza da hesíquia e, a fim de adquiri-la desde já, vende todas as vontades que possui, obedecendo aos mandamentos. 84. As virtudes são iguais entre si e convergem todas para uma única. Todas contribuem para definir e conformar a mesma virtude. Existem virtudes que são maiores do que outras, que abarcam e contêm a maior parte das outras – senão todas – como o amor divino, a humildade e a paciência divina. Desta disse o Senhor: “Por sua paciência vocês salvarão suas almas[52]”. Ele não disse: com seu jejum, com sua vigilância. E eu repito: a paciência que vem de Deus é a rainha das virtudes e o fundamento das ações fortes. É ela que dá paz nos combates, a calma nas tempestades, a imutável permanência daquilo que adquirimos. Nem as lágrimas, nem os exércitos em marcha, sequer a agressão dos demônios e a falange tenebrosa dos adversários poderão prejudicar aquele que a possui em Jesus Cristo. 85. As virtudes, embora engendrem umas às outras, têm sua gênese nas três potências da alma, salvo as divinas. Pois a causa e o princípio das quatro virtudes cardinais dentre as virtudes naturais – a prudência, a coragem, a temperança e a justiça – e das virtudes divinas, das quais e nas quais se formam todas, é a sabedoria divina dos teólogos, animada pelo Espírito e movida de quatro maneiros, seguindo o intelecto. Esta não age sobre todas as virtudes ao mesmo tempo, mas sobre cada qual, a seu bel-prazer e em seu tempo. Sobre uma, ela age como luz; sobre outra, como força penetrante e uma inspiração sempre em movimento; sobre outra, como uma potência que santifica e purifica; sobre outra ainda como um orvalho
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de pureza cheio de encanto e frescor, cobrindo a queimação das paixões. Ela age sobre cada qual e por cada qual, sobre a perfeição por meio do que é perfeito, como foi dito, e lhe permite operar seguindo seu modo. 86. O exercício das virtudes por seu próprio cuidado não concede à alma uma força perfeita se estas virtudes não forem assistidas pela graça. Com efeito, cada uma delas possui um carisma que lhe é próprio, uma energia que lhe pertence, de sorte que ela pode atrair mesmo aqueles que não querem, para fazê-los comungar com ela, por meio do estado e da natureza do bem. E quando a obtemos, ela permanece desde então imutável e imóvel. Pois as virtudes possuem em seus membros, como uma alma viva, a graça do Espírito que as faz agir. Sem a graça, todo o conjunto das virtudes é morto. Para os que pensam possuí-las ou adquiri-las perfeitamente, as virtudes por si sós não passam de sombras e imagens do bem, mas não são a própria imitação da verdade. 87. Existem quatro virtudes universais: a coragem, a prudência, a temperança e a justiça, e outras oito que as seguem de perto, por excesso ou carência, que consideramos como males, mas que os que estão no mundo chamam de virtudes e as concebem como tais. Elas são, para a coragem, a audácia e a timidez; para a prudência, a malícia e a ignorância; para a temperança, a licenciosidade e a indolência; para a justiça, a dominação e a sujeição. Com efeito, as virtudes médias são não apenas virtudes universais e naturais, superiores a todo excesso e toda falta, mas ainda são virtudes ativas, podendo agir a partir de uma resolução guiada pela retidão do pensamento, ou pela alteração e a presunção. Que estas virtudes médias sejam virtudes do direito, é testemunha o provérbio que diz: “Você tomará os caminhos do bem [53]”. Todas as virtudes se formam nas três potências da alma, onde elas nascem e se edificam. Elas têm como fundamento de sua edificação as quatro virtudes cardinais – ou antes: Cristo – a fim de que as virtudes naturais sejam purificadas pelas virtudes ativas e que as virtudes divinas sobrenaturais sejam concedidas pela bondade do Espírito. 88. Dentre as virtudes, algumas são ativas, outras naturais, e outras divinas, sendo estas as virtudes do Espírito. As virtudes ativas são as virtudes da resolução, as virtudes naturais as da formação e as divinas as da graça. 89. Assim como nossa alma traz em si a gênese das virtudes, ela traz também a das paixões. Mas ela gera as primeiras segundo a natureza e as outras contra a natureza. A causa da gênese do bem e do mal na alma é o impulso da vontade. Ela é como que o ponto central de onde partem as linhas, ou como o fiel da balança que pende para o lado de onde recebe um impulso. O que fundamenta as duas energias do bem e do mal é a intenção, porque este fundamento chama para si uma ou outra, uma pela gênese, a outra pelo livre impulso da vontade. 90. A Escritura chama de “donzelas” as virtudes[54] por causa da conexão que as liga à alma e as faz se considerarem como um só corpo e um só espírito com ela. A beleza da donzela é com efeito um símbolo do amor e a forma das virgens sagradas é um testemunho de pureza e de purificação. De fato é da ordem da graça transpor para os gestos aquilo que é divino, e de dar forma, àqueles que disto são capazes, àquilo que sem erro se parece com a origem. 91. Existem oito paixões principais, das quais três são as maiores: a gula, a avareza e a vanglória. As cinco que se seguem são: a prostituição, a cólera, a tristeza, a acídia e o orgulho. Três virtudes englobantes correspondem às três primeiras paixões: a pobreza, a temperança e a humildade. E com elas seguem-se as virtudes: a pureza e a doçura, a alegria, a coragem, o desprezo por si e toda a série de outras virtudes. Mas aprenda e conheça o poder, a ação, o odor de cada virtude ou de cada vício que não são dados a quem os quer, mas a quem age e prova por seus atos e suas palavras, e que recebe do Espírito Santo os carismas da ciência e do discernimento.
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92. Dentre as virtudes umas são ativas e outras passivas. As primeiras agem e permanecem em nós quando é preciso, cada vez que é preciso, tanto e como elas quiserem. Nós as trabalhamos na medida da resolução e do estado moral que nos é próprio. Mas as virtudes, elas, agem realmente, enquanto que nós agimos por imitação, porque somos imitadores por nosso modo de vida, pois a imitação é o modo de tudo o que fazemos para atingir os modelos originais, ou arquétipos, do além. Pois são poucos os que comungam real e verdadeiramente com o intelecto, antes da felicidade incorruptível do século futuro. Por enquanto o que temos são o esforço e as imagens, não exatamente as virtudes, e é isto que recebemos e colocamos a trabalhar. 93. Segundo Paulo, quem comunga com a iluminação de Cristo e que pode transmiti-la aos demais por meio de sua energia, este celebra o mistério do Evangelho[55]. Este lança a palavra como uma semente divina nos campos das almas dos que o escutam. “Que sua palavra, disse ele, seja revestida da graça e da bondade divina, a fim de que ela leve a graça aos que a escutarem com fé [56]”. E quando ele chama aos que ensinam e aos que são ensinados de cultivadores e de campo[57], ele indica com sabedoria que os primeiros são como operários e semeadores da palavra divina enquanto que os últimos são como a terra das virtudes, argilosa, fértil e fecunda. Com efeito, uma celebração realmente verdadeira do mistério é não somente a energia do que é divino, como também a participação dos bens e sua transmissão. 94. A palavra que é expressa com vistas ao ensinamento é diversa e, quaisquer que sejam seus numerosos modos, provém de quatro formas: do estudo, da leitura, da ação ou da graça. Assim como a água é uma por natureza, mas conforme os diferentes elementos da matéria terrestre que entram nela se renova e se transforma numa qualidade que lhe é própria e que é perceptível ao paladar (sendo amarga, doce, salgada, ácida), também no que tange ao estado moral de cada um, a palavra que dele provém muda, e será conhecida por sua energia e dada à sua assistência. 95. Sendo a palavra dada para o usufruto para razões de toda natureza, como diferentes alimentos, a alma que recebe este desfrute sente seu prazer diferentemente. Com efeito, a palavra que provém da ciência a marca ensinando-lhe uma arte de viver. A que vem da leitura a alimenta como uma água calma[58]. A palavra que vem da ação é fértil como as verdes pastagens[59]. A palavra que vem da graça embriaga como um cálice[60] e a encanta[61]. E esta alegria é inefável. Como o azeite, ela alegra e ilumina o rosto[62]. 96. Não apenas a alma adquire verdadeiramente estas coisas em si, como sua vida, mas ela as sente nos outros quando os ouve ensinar, pois o amor e a fé precedem estes dois modos. Um escuta pela fé enquanto o outro ensina pelo amor, falando das virtudes sem vaidade nem glória. A palavra que vem da instrução é recebida por ele como um pedagogo; a palavra que vem da leitura, como um provedor que alimenta os demais; a palavra que vem da ação, ele a recebe como uma linguagem interior, como a mais doce vestimenta de bodas; e a palavra radiante do Espírito é como a palavra nupcial que unifica e alegra. Pois são palavras que saem da boca de Deus[63], aquelas que, por intermédio do Espírito, vêm da boca dos santos. Trata-se, em sua energia, do sopro dulcíssimo do Espírito, do qual não usufruem todos, mas apenas os que dele são dignos. Aqui, os que se regozijam visivelmente das coisas do Espírito são bem poucos. A maior parte não conhece, de memória, senão as imagens das palavras espirituais, e só participa destas. Eles ainda não comungam da palavra como de um verdadeiro pão do século futuro na sensação de Deus. Pois somente este está além, concedido para o justo regozijo dos que dele são dignos. Ele nunca é consumido, nem, esgotado, nem sacrificado. 97. Sem o sentido espiritual é impossível provar a sensação de alegria daquilo que é divino. Como alguém que abafou seus próprios sentidos, privando-os da energia diante das coisas – ele não pode ver, ouvir, sentir, está inerte, quase morto – também aquele que destruiu por meio das paixões as potências naturais da alma as torna insensíveis à energia e à comunicação dos mistérios do Espírito. Pois quem não vê, não
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ouve, não sente em espírito, está morto. Cristo não está vivo nele. Nem seus atos, nem seus movimentos estão em Cristo. 98. Os sentidos voltados para as potências da alma possuem a mesma energia, igual em todos, para não dizer única, sobretudo quando se trata de santos. Com efeito, é por meio destes sentidos que as potências vivem e agem, e o Espírito de vida se une a eles. A verdadeira fraqueza do homem está em ser inteiramente tomado pela doença das paixões, de estar todo o tempo deitado na enfermaria da negligência. Dentre os sentidos, alguns vigiam claramente o que é sensível, outros o que é inteligível, sobretudo quando não há neles nenhum combate satânico oposto à lei do intelecto e do Espírito[64]. E quando, pelo Espírito, ele se unem em um e se tornam uma única forma, então eles conhecem imediata e fundamentalmente em sua natureza o que é divino e o que é humano. Eles contemplam claramente as razões das coisas e se iniciam puramente, na medida do possível, a respeito da causa de tudo, a Trindade. 99. Quem busca a hesíquia deve ter por fundamento primeiramente estas cinco virtudes sobre as quais se edificará a obra: o silêncio, a temperança, a vigília, a humildade e a paciência. Depois, estas três obras que agradam a Deus: a salmódia, a prece e a leitura – e também o trabalho manual, quando se é fraco. Pois as virtudes que mencionamos não apenas contêm todas as demais, como as unem umas às outras. Na primeira hora, desde a aurora, deve-se consagrar à lembrança de Deus por meio da prece e da hesíquia do coração e orar continuamente; na segunda hora, ler; na terceira, salmodiar;. Na quarta, orar; na quinta, ler; na sexta salmodiar; na sétima, orar; na oitava, ler; na nona, salmodiar; na décima, comer; na décima primeira, dormir, se for necessário; na décima segunda, salmodiar as vésperas. Passas assim a jornada cotidiana agrada a Deus. 100. De todas as virtudes, é preciso, com a abelha, recolher as mais úteis e, recebendo de todas um pouco, fazer assim uma grande mistura da obra das virtudes. É delas que provém o mel da sabedoria, para a alegria das almas. 101. É fácil, para quem quiser, passar também a noite desta maneira. Escute. A vigília noturna tem três modos: dos noviços, dos médios e dos perfeitos. O primeiro modo é o seguinte: Dormir metade da noite e velar a outra metade; ou então do entardecer até a meia noite, ou da meia noite até a aurora. O segundo modo é: velar uma hora ou duas depois do entardecer, depois dormir quatro horas e se levantar para as matinas, salmodiar e orar por seis horas até a aurora. Salmodiar durante a primeira hora e se dedicar à hesíquia conforme foi dito. E, ou bem observar durante as horas a regra do trabalho, ou bem manter firme a continuidade da oração, que concede seu estado a que leva esta vida. O terceiro modo consiste em permanecer em pé e velar a noite inteira. 102. Falemos também da alimentação. Quinhentas gramas de pão bastam a qualquer um que queira conduzir o combate pela hesíquia. Beber dois copos de vinho puro e três de água, nutrir-se com os alimentos que estiverem à mão – não os que a natureza nos manda buscar pelo desejo – e utilizar com sobriedade tudo o que nos envia a providência. Trata-se de uma ciência excelente e concisa para os que desejam levar com rigor suas vidas: observar as três obras que contêm as virtudes – o jejum, a vigília e a prece – e que asseguram a todos o sustento mais sólido. 103. A hesíquia está antes de tudo ligada à fé, à paciência, ao amor e à esperança, esta coisas que devemos viver com todo o coração, toda a força e todo o nosso possível[65]. Porque aquele que crê, ainda que aqui em baixo tenha perdido o que busca – por negligência ou por qualquer outro motivo – quando deixar este mundo, é impossível que não seja cumulado pelo fruto da fé e do combate e q1ue não veja a liberdade, que é Jesus Cristo, a redenção e a salvação das almas, o Verbo divino e humano. Quanto ao que não crê, este será julgado quando deixar este mundo. Mas ele já foi julgado, disse o Senhor[66]. Com efeito, foi dito, quem se dedica ao desfrute, “buscando a glória que vem dos homens e não a que vem de Deus, este não
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crê[67]”, mesmo que pareça crer por palavras. Este homem engana a si próprio sem saber. Pois ele irá escutar: “Porque você não me recebeu em seu coração, mas me rejeitou deixando-me para trás, também eu o rejeitarei[68]”. É preciso que o fiel tenha esperança, que ele creia verdadeiramente em Deus, de quem todas as Escrituras dão testemunho, e que ele confesse sua própria fraqueza, a fim de não incorrer no duplo julgamento inelutável. 104. Nada quebranta tanto o coração e humilha a alma como a vida retirada, baseada no conhecimento e no silêncio longe de tudo. E nada devasta tanto o estado de hesíquia e a potência divina que o despoja de tudo o que o cerca, como as seis paixões maiores: a liberdade de linguagem, a gula, a tagarelice, a distração, a vaidade e a paixão fundamental, a presunção. Quem se deixa levar por estes costumes, ao atingir o fundo das trevas, tornar-se-á totalmente insensível. Porém, se ele se corrigir, se recomeçar com fé e fervor, ele encontrará novamente o que buscava, principalmente se procurar com humildade. Mas se a negligência fizer com que reine uma das paixões de que falamos, então toda a sequência de males o virá assaltar, juntamente com uma descrença funesta, devastando sua alma. Entre a perturbação e o tumulto dos demônios[69], ele se tornará uma nova Babilônia, de sorte que sua última condição será pior do que a primeira[70]. O inimigo se torna irascível acusa os que buscam a hesíquia e afia sua língua contra eles como uma espada cortante de dois gumes. 105. As águas das paixões, cujo mar tempestuoso se mistura à hesíquia e inunda a alma, não podem ser atravessadas senão sobre a barca vazia e leve da pobreza total e da temperança. Com efeito, quando, por causa da intemperança e do amor à matéria, as torrentes das paixões cobrem a terra do coração, misturando a ela toda a lama e o lodo dos pensamentos, elas levam a confusão ao espírito, a perturbação ao intelecto, a pesandez ao corpo, tornando o coração e a alma negligentes, tenebrosos, obesos, e expulsam de sua morada os estados e as sensações naturais. 106. Nada como o egoísmo que alimenta as paixões torna tão vaidosa, negligente e irrefletida a alma dos que se agitam. Pois a cada vez que ela prefere as facilidades do corpo à busca penosa das virtudes e acredita que o conhecimento ajuda a não sofrer nas obras voluntariamente – em especial nos pequenos esforços fáceis dos mandamentos – nela se produz um esgotamento em relação ao estado de hesíquia, e isto torna forte e irremediável o relaxamento nas obras. 107. Para aqueles que fraquejam diante dos mandamentos e preferem vomitar a perturbação que os cega, não há remédio melhor nem mais rápido do que a obediência em tudo, indivisível e fiel. Pois este é um remédio que contém numerosas virtudes e que dá a vida aos que o tomam. É uma espada que purifica de um só golpe as cicatrizes dos ferimentos. Aquele que, com fé e simplicidade, o preferiu a qualquer outra atividade, cortou ao mesmo tempo e com um só talho todas as paixões. Este não apenas atinge a hesíquia como ainda a conserva em si por meio da própria obediência. Este encontrou a Cristo, tendo se tornado seu imitador e servidor. 108. Se não nos dedicarmos ao luto nem vivermos em tristeza será impossível resistir ao calor ardente da hesíquia. Pois quem chora e medita nas infelicidades que precedem e se seguem à morte, antes que elas cheguem por si mesmas, terá a paciência e a humildade, os dois fundamentos da hesíquia. Mas quem vive a hesíquia sem isto terá sempre por companhia a presunção e a negligência. Daí provém os isolamentos e as inquietudes que nos levam à vaidade. Pois a filha da negligência, a intemperança, amolece e relaxa o corpo, escurece e endurece o intelecto. Neste momento Jesus se oculta[71] e uma multidão de ideias e de pensamentos ocupam o lugar da reflexão. 109. É impossível a todos experimentar na sensação o tormento da consciência, seja a de agora, seja a do século futuro. Pois isto só é dado àqueles que, seja agora, seja no além, carecem da glória e do amor. Este tormento é como um carrasco temível que castiga os culpados de todas as maneiras. Ele aparece sempre
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como uma espada afiada que priva do zelo e da justificação. Se a consciência é concedida, este zelo, ou o ardor natural, se volta de fato de três modos contra os adversários, contra a natureza e contra a alma. É a ele que devemos afiar como um glaivo cortante contra os inimigos. Se formos vencedores, se os outros dois se submeterem ao primeiro, o limite da coragem, agora transformada, se voltará para Deus. Mas se a alma for submetida aos dois – ao pecado e à carne – o final no além será um tormento impiedoso, porque ela se submeteu aos adversários por sua própria vontade, fazendo aqui em baixo as coisas mais inapropriadas, perdendo o estado de virtude e caindo, separada de Deus. 110. Dentre todas as paixões, duas são especialmente duras e graves. Trata-se da prostituição e da acídia, que oprimem e esgotam a alma infeliz. Elas possuem uma reciprocidade comum e se unem uma à outra. São difíceis de combater, e nos é impossível desfazê-las e vencê-las. A primeira transborda no desejo. Ela contém a matéria que, por natureza e de maneira indefinida, pertence à alma e ao corpo. Seu prazer impregna inteiramente todos os membros. A segunda, que submete a razão que nos conduz, envolve totalmente a alma e a carne como uma trepadeira, e torna a natureza preguiçosa, inerte e inconsequente. Elas são expulsas, mas não inteiramente desfeitas, antes da bem-aventurada impassibilidade, quando a alma se regozija ao receber o poder do Espírito Santo através da oração, o qual, com a hesíquia, lhe concede o repouso, a força e uma paz profunda no coração. A primeira paixão, a prostituição, comanda, reina, domina. Ela é o prazer que abarca os prazeres. E sua companhia, a inconsequência, que conduz os príncipes ao Faraó[72], é o carro invencível. É por meio delas que penetra em nós, os infelizes, tudo o que causa as paixões da vida. 111. O início da prece intelectual é a energia, ou seja, o poder purificador do Espírito, e a celebração mística do intelecto. Da mesma forma, o início da hesíquia é o estudo. O meio é o poder iluminante e a contemplação, e o fim é o êxtase e o arrebatamento do intelecto para Deus. 112. A energia intelectual do intelecto é um santuário do Espírito antes que venha o regozijo futuro que ultrapassa o entendimento. Ela celebra misticamente o sacrifício do Cordeiro com os dons de Deus sobre o altar da alma, e dele participa. Mas comer o Cordeiro de Deus sobre o altar espiritual da alma não é apenas conceber e participar, é também se tornar tal e qual como é o Cordeiro no século futuro. Pois aqui em baixo esperamos desfrutar das palavras, mas, no além, das realidades dos mistérios. 113. A oração, nos noviços, é como um fogo de alegria que sobe ao coração. Mas entre os perfeitos ela é como uma luz ativa e olorosa. Ou ainda, a prece é a predicação dos apóstolos, a energia da fé, ou antes, a fé imediata, o fundamento daquilo que se espera[73], o amor ativo, o movimento angélico, o poder dos incorpóreos, sua obra e seu usufruto, o Evangelho de Deus, a plenitude do coração, a esperança da salvação, o signo da pureza, o símbolo da santidade, o conhecimento de Deus, a manifestação do batismo, a purificação do banho, as armas do Espírito Santo, a exultação de Jesus, a alegria da alma, a piedade de Deus, o signo da reconciliação, o selo de Cristo, o raio do sol espiritual, a estrela matinal dos corações, a certeza do cristianismo, o signo da absolvição divina, a graça de Deus, a sabedoria de Deus, ou antes, o começo da sabedoria em si, a manifestação de Deus, a obra dos monges, a vida dos que se consagram à hesíquia, a origem da hesíquia, o testemunho da vida angélica. Que dizer mais? Deus, que realiza tudo em todos[74], é oração. Pois é uma e a mesma a energia do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que realiza tudo em Jesus Cristo. 114. Se Moisés não tivesse recebido de Deus a vara do poder, ele não teria se tornado Deus para o Faraó[75], e nem este nem o Egito teriam sido batidos. Da mesma forma, se o intelecto não toma em mãos o poder da prece, lhe é impossível destruir os pecados e as potências contrárias. 115. Quem diz ou faz seja lá o que for, sem humildade, é como alguém que constrói no inverno ou sem argamassa. Mas os que encontram e conhecem a humildade por experiência e ciência são pouco
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numerosos. Pois os que falam dela são como quem mede um abismo. Ora, nós, os cegos, que, como crianças, imaginamos algo desta grande luz, dizemos: a humildade não fala de si mesma, nem se forma por si mesma. O humilde não se violenta por pensar com humildade, e também não se condena. Embora tenha causas e formas, que são como modos diversos, a humildade é antes de tudo uma graça e um dom do alto. Os Padres dizem que existem duas formas de humildade: colocar a si próprio abaixo de todos, e remeter a Deus suas ações. A primeira forma é o começo, a segunda é o fim. Os que buscam a humildade passam a conhecer, e consideram em si mesmos, três coisas: que são mais pecadores do que todos, que são mais vis do que todas as criaturas (como se fossem seres contra a natureza) e que são mais miseráveis do que os demônios, como se fossem servidores dos demônios. É preciso dizê-lo: o que sei eu exatamente dos pecados dos homens? Quais são eles, quantos são? Ultrapassam ou igualam meus próprios pecados? Por ignorância, ó minh’alma, somos mais baixos do que todos os homens, somos terra e cinzas[76]. Estamos sob seus pés. Como não serei eu mais vil do que todas as criaturas, que existem segundo a natureza tal como foram feitas, enquanto que eu, por causa de minhas inumeráveis injustiças, sou contra a natureza? Pois na verdade mesmo as feras e os animais são mais puros do que eu, o pecador. É por isso que estou abaixo de todos, como se tivesse descido aos infernos onde permaneço jacente antes mesmo da morte. Quem pode ignorá-lo, desde que sentiu isto, o ser pecador, pior do que os demônios, por ser seu servidor e seu objeto, e, desde aqui em baixo, encerrado com eles na prisão das trevas? Verdadeiramente, aquele que permanece sob o domínio dos demônios é pior do que eles. E é por isso, infeliz, que você herdou o abismo junto com eles. Você que habita a terra, o inferno e o abismo antes mesmo da morte, você que, por suas más obras, está sujo, pecador e demônio, como pode você ser tão abusado, a ponto de se dizer justo? Ah, você vive na superstição de sua fraude e de seu erro, cão impuro. É por isso que você será enviado ao fogo e às trevas. 116. A sabedoria movida pelo Espírito é, segundo os teólogos, o poder da prece intelectual, pura e angélica, cujo signo está no intelecto que, ao orar, contempla além de toda forma e não vê a si mesmo nem nada que possua extensão. Mesmo os sons muitas vezes são envolvidos por esta luz. Pois o intelecto, então, se torna imaterial e luminoso. Ele se liga inefavelmente a Deus em um só Espírito[77]. 117. Sete diferentes modos conduzem e dirigem na direção desta humildade dada por Deus. Ele são: o silêncio, o coração humilde, a linguagem humilde, o comportamento humilde, a autocondenação, a contrição e a vida em condições extremas. O silêncio com conhecimento engendra o coração humilde, do qual nascem três modos de rebaixamento: falar humildemente, comportar-se simples e modestamente e sempre condenar a si próprio. Estes três modos engendram a contrição, que provém do recuo das tentações. Nós a chamamos de instrução providencial, e humildade que provém dos demônios. A contrição ativa coloca facilmente a alma abaixo de todos, fazendo dela a última dentre todos, como se fosse dominada por todos. Estes dois modos promovem o perfeito rebaixamento, que é um dom de Deus, e ao qual chamamos de potência, uma perfeição de todas as virtudes. Ele atribui a Deus todas as ações. A primeira de todas é, portanto, o silêncio, do qual nasce a humildade, a qual engendra os três modos de rebaixamento. E os três engendram o modo único da contrição. E o modo da contrição gera o sétimo modo do primeiro rebaixamento abaixo de todos, que chamamos de rebaixamento providencial. O rebaixamento providencial traz o verdadeiro rebaixamento, que é um dom de Deus, que é perfeito e que não tem forma. O primeiro rebaixamento começa sempre da seguinte maneira: se o homem não é abandonado e vencido, sujeitado, e se não é dominado por toda paixão e todo pensamento, abatido em seu espírito, sem encontrar socorro nas obras ou em Deus, ou em seja o que for, de sorte que, rebaixado de todas as maneiras, falta pouco para que caia em desespero, então ele já não pode ser ferido, por já se encontrar abaixo de todos, como último e servidor de todos, pior do que os próprios demônios, tiranizado e vencido por eles. Esta é a humildade providencial, por meio da qual a segunda humildade, a humildade suprema, e concedida por Deus. Esta consiste no poder divino que age em tudo e que criou tudo. Por meio dela podemos nos ver continuamente como o instrumento de Deus e cumpridores de suas maravilhas.
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118. Uma contemplação espiritual pessoal da luz, um intelecto sóbrio e estável, uma verdadeira energia da prece jorrando sempre do findo do coração, uma ressurreição, uma tensão da alma em direção ao alto, um maravilhamento divino e uma sublimação deste universo, um êxtase total da reflexão no Espírito, fora dos sentidos, um arrebatamento do intelecto para além de suas próprias faculdades, um movimento angélico da alma conduzida por Deus para o infinito e levado até o cume – tudo isto é impossível de ser encontrado em nossa geração, quando em nós ainda reina a tirania das paixões através da multidão das tentações. É comum acontecer, com efeito, sobretudo entre os mais levianos, imaginar possuir estas coisas antes do tempo, de tal modo que, perdendo o pequeno estado que lhe fora concedido por Deus, eles morrem longe de tudo. Assim, é preciso que, com muito discernimento, não busquemos as coisas antes do tempo, nem rejeitemos as coisas que estão em nossas mãos, imaginando outras. De fato, por natureza, diante do que foi dito, é fácil ao intelecto imaginar e reformar aquilo que nele ainda não foi alcançado. Por isso é de temer que tal homem se veja privado do que lhe foi dado e, enganado, perca o espírito, tornando-se imaginativo e não hesiquiasta. 119. Não apenas a fé é uma graça, mas também a prece ativa. Pois a prece que age pelo amor no Espírito mostra a verdadeira fé, a que traz em si a revelação da vida de Jesus. Assim, àquele em quem não lhe apraz agir, a fé é contrária, morta, sem vida. Não devemos chamar de fiel a quem não crê senão em palavras, e cuja fé não trabalha pelos mandamentos ou pelo Espírito. É preciso demonstrá-la pelo progresso nas obras, ou trazê-la radiante, realizada na luz pelas obras. Como disse o Apóstolo divino: “Mostre-me sua fé pelas obras, e eu lhe mostrarei minhas obras por minha fé[78]”, querendo com isto dizer que pelas obras dos mandamentos é manifestada a fé da graça, assim como são cumpridos e brilham os mandamentos pela fé vivida na graça. Pois a raiz dos mandamentos é a fé, ou antes, ela é a fonte que os rega para fazê-los crescer, e de divide em duas, a confissão e a graça, ainda que permaneça indivisível por natureza. 120. A escada curta dos discípulos, a um tempo pequena e grande, tem cinco degraus que levam à perfeição: a renúncia, a submissão, a obediência, a humildade e o amor, que abre para Deus. A renúncia retira do inferno a quem estava deitado, destaca da matéria aquele que estava sujeitado. A submissão encontrou a Cristo e o serve, como ele próprio disse: “Aquele que me serve me segue. E onde eu estiver, aí estará meu servidor[79]”. Mas onde está Cristo? Ele está sentado à direita do Pai[80]. É onde está Aquele a quem ele serve, aí deve também estar seu servidor, erguendo o pé para subir e, a fim de alcançar a altura através dos diversos modos, elevar-se e subir com Cristo. A obediência ativa aos mandamentos constrói a escada a partir das diferentes virtudes e as dispõe como degraus na alma[81]. A humildade que eleva recebe então o servidor e, levando-o para o alto até o céu, o entrega ao amor, a rainha das virtudes, que o conduz a Cristo e o coloca junto a ele. Assim, pela escada curta, aquele que está submisso à verdade sobe facilmente até o céu. 121. A via mais curta para o Reino do alto por meio da pequena escada das virtudes não é outra senão a rejeição das cinco paixões que se opõem à obediência, ou seja, a desobediência, a controvérsia, a autossuficiência, a justificação e a funesta presunção. Elas são partes e membros do demônio rebelde, que engole os que não obedecem verdadeiramente, e os envia ao dragão no abismo. A desobediência é a boca do inferno e a controvérsia é sua língua, como uma espada cortante. A autossuficiência são os dentes agudos. A justificação é a couraça e a presunção que leva ao inferno é o odor de seu ventre voraz. Aquele que o vence por meio da obediência, vê tudo desaparecer ao seu redor e sobe aos céus na fina ponta de um único degrau. Isto é verdadeiramente um milagre indizível e inacessível. Mas é o q eu faz nosso Senhor que ama os homens, por meio de uma só virtude, ou antes, por uma única ordem, subindo aos céus fora do tempo, da mesma forma como, por uma única desobediência, descemos nós ao inferno e aí fomos engolidos.
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122. O homem é duplo, como um outro mundo. E ele é chamado de “novo”, segundo o Apóstolo divino que disse: “Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura[82]”. Com efeito, o homem se torna o céu e a terra e tudo o que há no mundo, e ainda traz nele seu nome. Toda palavra e todo mistério se refere a ele, como disse o Teólogo. Com efeito, uma vez que não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas contra as dominações, contra os poderes das trevas neste século, contra as energias espirituais da malícia do príncipe dos ares nos céus[83], conforme as palavras do Apóstolo, aqueles que se opõem a nós devem estar como que em outro mundo e ser tão grandes quanto a natureza das potências de nossa alma. De fato, os três príncipes que se opõem aos que combatem lutam contra as três partes da alma, e cada um, segundo seu progresso e sua obra, é combatido por elas. O dragão, o príncipe do abismo, assalta os que estão atentos no coração. Ele tem sua força nos rins e no umbigo, onde se assenta o desejo. Através do monstro do esquecimento, que mora no coração do desfrute, ele espeta neles os poderes incendiários das flechas de fogo. Ele mantém o desejo como um abismo, como uma espécie de mar que ele faz agitar-se e ferver, mergulhando, erguendo-se, espumando. Ele queima o desejo nas uniões, cobrindo-o sob torrentes de desfrute, sem nunca saciar, por que ele é insaciável. O príncipe deste mundo[84] se opõe aos que buscam a virtude ativa. Ele combate com o mesmo ardor. Por meio do monstro da irresponsabilidade, ele combate em espírito com todos os sortilégios das paixões, como se estivesse em outro mundo, num teatro ou num estádio. Vencedor, ou vencido pelos que o combatem sempre e com coragem, ele lhes apresenta diante dos anjos com coroas ou cheios de confusão. Para nos combater, ele arma sem parar suas ordens contra nós. Quanto ao príncipe do ar, ele vem àqueles que, pelo intelecto, buscam a contemplação. Ele penetra na imaginação. Com os espíritos da malícia do ar, ele se insinua na razão e no intelecto. Pelo monstro da ignorância, ele derruba e perturba o intelecto que estava voltado para o céu espiritual. Como trovões, relâmpagos, rajadas e troares, ele traz de modo enganador as formações imaginárias e brumosas dos espíritos, e conduz ao desleixo. Assim, os três príncipes se opõem às três partes da alma, cada um contra cada uma. Mas onde acontece a guerra, é lá também que se vence o combate. 123. Aqueles que foram também inteligências outrora decaíram de sua leveza e de sua natureza imaterial. Cada qual possui agora uma certa extensão, encarnado num corpo segundo a ordem ou a energia de que é feita a sua ação. E uma vez que eles, à maneira dos homens, perderam a alegria de serem anjos e foram privados das delícias divinas, sofrem agora por se alimentar da terra como nós, tendo também se tornado materiais devido aos estados passionais da matéria. Não devemos nos espantar que nossa alma criada à imagem de Deus[85], dotada de razão e intelecto, tenha se tornado bestial, insensível e quase desprovida de inteligência devido ao desfrute das coisas materiais e à ignorância de Deus. Com efeito, o estado transforma a natureza e muda o sentido da energia segundo a escolha que fazemos. Assim, dentre os espíritos, existem alguns que são materiais, pesados, desenfreados, irascíveis, agressivos, como as feras carnívoras que escancaram a boca para o desfrute das delícias materiais. Como cães que se alimentam de sangue, eles devoram a podridão sua amiga como se estivessem possuídos. Eles imaginam ter como delícias e morada as carnes pesadas e materiais. Outros, desenfreados e úmidos, habitam o desejo como as sanguessugas, caranguejos e serpentes habitam o mangue, às vezes se transformando em peixes, derrapando no prazer salobre do deboche. Eles encontram seu prazer e nadam num oceano de embriaguez. Sua natureza é mole e escorregadia. Eles se regozijam na umidade dos prazeres irracionais e levantam na alma ondas, tempestades e ventanias de pensamentos e sujeiras. Outros ainda são vazios e leves, como espíritos aéreos. Eles assopram para agitar a natureza contemplativa da alma e suscitam ventanias violentas e imaginações. Eles se tornam pássaros e, transformados em anjos, enganam a alma. Eles dão forma às lembranças de certos conhecimentos, transformando e invertendo toda contemplação espiritual, sobretudo nos que ainda combatem pela pureza e o discernimento de espírito. Pois nada existe de espiritual em quê eles não possam se transformar secretamente pela imaginação. Também eles se armam segundo o estado da alma e a medida de seu progresso. Trazendo o erro no lugar da verdade e a imaginação no lugar da contemplação, eles vêm habitar em nós. A Escritura dá testemunho de todos estes quando fala dos animais do campo, dos pássaros do céu e das serpentes da terra[86]. Ela se referia aos espíritos de malícia.
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124. A revolta das paixões e a guerra que a carne faz à alma estão baseadas em cinco modos. Tanto a carne abusa dos seres, como busca agir contra a natureza fingindo agir segundo a natureza. Ou ela é armada pelos demônios contra a alma, unindo-se a eles quando se entrega de bom grado à desordem, presa das paixões. Ela também declara uma guerra em todas as frentes, por causa da inveja dos demônios; mas aqueles que nos fazem oposição cedem diante da humildade quando, apesar de tudo o que foi dito, falham em seu objetivo. 125. Existem três causas principais da guerra, que nos vêm de toda parte e por todos os meios: o modo de ser, o desprezo dos seres e a inveja e o combate dos demônios quando cedem. A revolta ou o desejo da carne contra a alma, ou da alma contra a carne, as paixões da carne contra a alma e as ações da alma contra a carne[87] têm o mesmo modo conforme o estado e conforme a energia. E neste momento que, inconsideradamente e sem causa, em sua impudência e audácia, aquele que nos guerreia nos combate. Portanto, amigo, não permita que a sanguessuga sanguinária torne exangue suas artérias. Que ela jamais possa vomitar o sangue. Não dê terra para saciar a serpente e o dragão, e assim você vencerá facilmente o rugido do leão e do dragão[88]. Gema até se ver despojado e se revestir da morada do alto[89] e da figura daquele que o criou à sua imagem[90], Jesus Cristo. 126. Aqueles que não passam de carne e que abraçam o egoísmo são sempre escravos do prazer e da vanglória e neles a inveja deita raízes. Consumidos pela desonestidade, vendo a felicidade do próximo com azedume, eles transformam em mal tudo o que é bom. Eles são frutos do erro. Não recebem nem crêem nas coisas do Espírito. Em sua pouca fé não podem ver nem conhecer a Deus. Por causa de sua cegueira e desta pouca fé, com toda razão, eles ouvirão no além: “Eu não os conheço[91]”. Com efeito, é preciso que o fiel que pede, ou creia naquilo que ouve mas não sabe, ou que aprenda aquilo em que crê, ou que ensine o que conhece e multiplique o talento naqueles que o recebem com fé. Mas se ele não crê no que sabe, se nega o que não conhece, e se ensina o que não aprendeu, blasfemando contra os que ensinam ativamente estas coisas, ele será castigado. Sua parte será com aqueles que têm a bílis do azedume[92]. 127. O orador, segundo aqueles que são verdadeiramente sábios nas palavras, é aquele que, por meio da ciência geral, contém os seres na concisão, dividindo-os e religando-os num corpo único, mostrando que eles participam de uma mesma potência, conforme a alteridade e a identidade. Estes são chamados de “os que demonstram segundo a verdade”. Ou ainda, o orador verdadeiramente espiritual é aquele que divide e religa as cinco propriedades gerais, distintas e universais dos seres, que o Verbo que se encarnou no homem reuniu em si. E ele o fez pela palavra que a tudo engloba e com uma voz tal que, enquanto orador, abarcou a tudo. Não foi por meio de uma simples demonstração, como fazem os que estão do lado de fora, que ele revelou a todos estas coisas, mas a partir das coisas que lhe apareceram no espírito ele esclareceu os contemplativos e todos os demais. O verdadeiro filósofo é, assim, aquele que, a partir dos seres, conhece a causa dos seres, ou aquele que, a partir da causa, conhece os seres segundo a união que ultrapassa o intelecto e também segundo a fé direta. Não apenas ele aprende, mas ele experimenta o que é divino. Ou ainda, o verdadeiro filósofo é o espírito ativo e contemplativo que vive na cidade. Um espírito filosófico perfeito é o que se dedica alegremente à filosofia moral, natural e teológica, ou antes, ao amor divino, encontrando na filosofia moral as ações, na filosofia natural as razões, e na filosofia teológica a contemplação, ensina que a exatidão dos dogmas é coisa de Deus. Ou ainda, o orador divino nas coisas de Deus é aquele que, dentre o que é e o que não é, distingue aquilo que é verdadeiramente. Ele demonstra as razões das primeiras falando das segundas. E partindo das razões de umas, sob inspiração divina, ele vê as das outras. Ele define o inteligível e o invisível a partir do sensível e do visível, e o mundo sensível e visível a partir do invisível e inteligível, um como a imagem visível do invisível, o outro como o arquétipo invisível do visível. E ele afirma que as figuras e as formas são suscitadas pelo que não possui nem figura nem forma. O modo pelo qual aquelas aparecem nestas e estas naquelas, ele vê clara e espiritualmente, as primeiras nas segundas e as segundas nas primeiras, e as torna visíveis pela palavra da verdade. Não é por meio de palavras anagógicas ou alegóricas que ele forma o conhecimento flamejante da verdade, esta
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verdade que é como o sol, mas, pela ciência e o poder espiritual ele revela as razões da verdade de ambos, e demonstra claramente que um é nosso pedagogo e que o outro é a moradia eterna de Deus, que nos foi dada visivelmente. O filósofo divino é aquele que está diretamente unido a Deus pela ação e a contemplação. Ele se torna seu amigo, e assim é chamado. Por que, acima de todo amor, de qualquer outra sabedoria, de qualquer conhecimento, ele se apaixonou e amou a sabedoria primigênia, criadora e verdadeira. Ele ama o Verbo mais do que a sabedoria (embora a glória que toma o nome de sabedoria permaneça oculta, como disse Gregório o Grande), ele é o que ama e sonda a sabedoria da criação de Deus na sua última expressão, mas sem exercer com ostentação esta filosofia por um louvor e uma glória humanos, a fim de não se tornar uma amante da matéria, nem um filósofo da sabedoria natural de Deus. E é um escriba instruído no Reino de Deus, aquele que por meio da ação se dedica à contemplação de Deus e que persevera na hesíquia, e que extrai do tesouro de seu coração o novo e o antigo [93], ou seja, o que é evangélico e o que é profético, ou o que provém do novo Testamento e o que provém do antigo, ou o que diz respeito ao ensinamento e o que se refere à ação, ou o que vem da Lei e o que vem dos Apóstolos. Estes são os mistérios novos e antigos que o escriba ativo extrai de seu tesouro, que lhe foi ensinado pela vida agradável a Deus. O escriba ativo é aquele que, permanecendo em seu corpo, se oferece à ação. O orador divino é o que esta naturalmente em meio aos conhecimentos e as razões dos seres e que demonstra tudo em espírito pelo poder analítico da razão. E o verdadeiro filósofo é o que traz em si mesmo, pela via do conhecimento e pela via imediata, a união sobrenatural com Deus. 128. Os que falam e escrevem sem o Espírito e pretendem edificar a Igreja são psíquicos: como diz o Apóstolo, eles não possuem o Espírito[94]. Pois estes homens estão submetidos à maldição, que diz: “Infelizes os que são inteligentes para si e sábios aos seus próprios olhos[95]”. Pois estes falam a partir de si próprios. Não é o Espírito de Deus que fala por eles[96], segundo a palavra do Senhor. Os que falam a partir de seus próprios pensamentos sem que estejam purificados se perdem no espírito de presunção. A este respeito, diz o provérbio: “Eu vi um homem que se julgava sábio, mas o tolo tem mais esperanças do que ele[97]”. E: “Não se tornem sábios aos seus próprios olhos[98]”. A sabedoria no-lo ordena. E o próprio Apóstolo divino, cheio do Espírito, disse: “Não somos capazes por nós mesmos, mas nossa capacidade vem de Deus[99]”. E: “Diante de Deus, como vindo de Deus, falamos em Cristo[100]”. As palavras destes homens são assim odiosas e desprovidas de luz. Ele falam sem comungar da fonte viva do Espírito, mas se alimentam no mangue de um coração cheio de lama onde nadam as sanguessugas, as serpentes e os caranguejos dos desejos, do orgulho e da intemperança. A água de seu conhecimento é malcheirosa, perturbada e morna. Os que dela bebem são derrubados e transformados pelo langor, o desgosto e a náusea. 129. “Somos o corpo de Cristo, disse o Apóstolo divino, e cada qual é um de seus membros [101]”. E também: “Vocês são um só corpo e um só Espírito, conforme foram chamados[102]”. Pois, assim como o corpo está morto e insensível sem o Espírito[103], também aquele que, por haver negligenciado os mandamentos depois do batismo e ter sido levado à morte pelas paixões, se torna inerte, privado da luz do Espírito Santo e da graça de Cristo. Pela fé e o novo nascimento, ele possuía o Espírito, mas pela morte da alma se tornou inerte e imóvel. Pois se existem muitos membros num corpo, existe uma só alma. Esta mantém, anima e move tudo o que recebe vida. Quando sobrevém uma enfermidade que resfria os membros e os torna como mortos e inertes, a alma os carrega consigo, ainda que eles estejam sem vida e insensíveis. Assim o Espírito de Cristo está por inteiro, sem se misturar, em todos os membros de Cristo. Ele age e carrega a vida nos que podem participar da vida. Mas em seu amor pelo homem ele domina também como se fossem seus os membros enfermos que não podem participar. Todo fiel participa assim pela fé da filiação do Espírito, mas a negligência e a descrença o tornam inerte e tenebroso, privado da luz e da vida de Jesus. Da mesma forma, todo fiel é membro de Cristo e possui o Espírito de Cristo, mas se se tornar inerte e imóvel, não é admitido a participar da graça.
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130. Dentre as oito contemplações maiores, dissemos que a primeira pe a contemplação em Deus sem forma, sem começo, incriada e causa do universo, a Divindade trinitária, uma e supra-essencial. A segunda é a da ordem e do estado das potências. A terceira é a da constituição dos seres. A quarta é a da descida do Verbo entre nós, em sua economia. A quinta é a da ressurreição universal. A sexta é a da terrível segunda vinda de Cristo. A sétima é a do castigo eterno. A oitava é a do Reino dos céus. Quatro contemplações se debruçam sobre o que é passado e que já aconteceu, e quatro sobre o que está para vir e que ainda não se manifestou. Todas estas contemplações são claramente distintas e se encontram naqueles que, pela graça, adquiriram uma grande pureza de inteligência. Mas quem se dirige para aí sem a luz, saiba que imagina, mas não contempla. O espírito de ilusão faz com que ele imagine, e ele imagina. 131. Também é preciso falar do erro, na medida do possível, pois para muitos ele é difícil de ser conhecido e é quase inapreensível, por causa de seus múltiplos truques muito inventivos. Diz-se que o erro aparece, ou antes, sobrevém e assalta, sob duas formas, pela imaginação e pela ação – embora sempre extraia seu princípio e sua causa de uma única fonte, o orgulho. A primeira forma é o princípio da segunda, e esta é o princípio de uma terceira, que desorienta o espírito. O princípio da visão imaginária é a presunção, que nos faz imaginar o divino sob uma forma. É por meio dela que, pela imaginação que conduz à ilusão, nos chega o erro, do qual nasce a blasfêmia. E o erro ligado à imaginação engendra o terror diante dos fantasmas estranhos, seja no estado de vigília ou durante o sono, que é o que chamamos de terror e estremecimento da alma. De fato, o erro provém do orgulho; do erro provém a blasfêmia; dela, a negligência; daí, o medo e dele a desorientação dos sentimentos naturais. Este é o primeiro modo do erro, o que nasce da imaginação. O segundo modo provém da ação. Ele tem seu princípio no desfrute, que nasce do desejo dito natural. Com efeito, do prazer nasce o deboche das impurezas que não é lícito mencionar. Depois, estas, aquecendo toda a natureza e perturbando a razão com uma mistura de imagens, leva o intelecto a se perder. Ela o imbeciliza por meio da embriaguez da energia abrasadora. Ela o faz dizer falsas profecias e interpretar as supostas visões de certos santos e suas palavras como se tivessem sido reveladas por ele, bêbadas com a vertigem da paixão. A conduta se altera e se torna demoníaca. Os que são levados pelo mundo pela ilusão do erro atraem as pequenas almas destes homens para os lugares consagrados a determinados santos. Estes supostamente os inspiram, agindo sobre eles e os atormentando. Eles anunciam aos homens aquilo que recebem dos santos. Mas devemos antes chama-los de possuídos pelo demônio, sujeitos às ilusões e escravos do erro, e não de profetas que anunciam o presente e o futuro. Pois o próprio demônio do deboche, ferindo sua inteligência na fogueira do prazer, os leva à desorientação do coração, fazendo-os imaginar os santos e lhes mostrando conversas e visões com eles. Estes mesmos demônios os confundem para torná-los frouxos. Pois, prendendo-os ao jugo do diabo, o demônio do deboche os empurra ao erro por suas ações, a fim de torná-los cativos e servis até a morte, enviando-os ao castigo. 132. Devemos saber que o erro tem três causas universais, por meio das quais ele penetra nos homens. Ele provém do orgulho, da inveja dos demônios e da recusa em se corrigir. Estas, por sua vez, têm as suas causas. A causa do orgulho é a leviandade. A da inveja é o progresso. A da recusa em se corrigir é a vida no pecado. O erro que provém apenas da inveja e da presunção pode ser rapidamente curado, sobretudo quando nos humilhamos. Mas Deus concede a absolvição do castigo ao qual nos atira Satanás, até o momento da morte. Quando os inocentes são atormentados, ele lhes concede a sua salvação. Convém saber que o demônio da presunção chega primeiro naqueles que não estão estritamente atentos ao coração. 133. Os sacerdotes e os reis e todos os que se dedicam à piedade são consagrados pela verdade à renovação, como dantes os antigos o eram figuradamente. Aqueles eram, de fato, as imagens de nossa verdade. Não alguns, mas todos deram seu testemunho a nós. Embora sejam os mesmos símbolos, nossa realeza e nosso sacerdócio não possuem o mesmo modo nem a mesma forma como eram para eles. Para nós a natureza – ou a graça e o chamado à consagração – não estão divididos a ponto de que aquele que se consagra seja diferente. Temos um único e mesmo chamado, a mesma fé, a mesma forma. Isto significa e
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demonstra, conforme a palavra de verdade, que podemos ser puros, impassíveis, e ao mesmo tempo inteiramente consagrados a Deus, agora e no século futuro. 134. Quem alcança este estado, proclama a sabedoria por sua boca e a inteligência pela meditação de seu coração[104], fazendo surgir claramente, a partir dos seres, o Deus Verbo, a sabedoria anipostática de Deus Pai[105], por trazer em si as razões dos modelos que deixam suas marcas nos seres. Pela palavra viva que proclama, sua boca diz a sabedoria a partir da sabedoria. Com o coração iluminado pelo poder da inteligência renovadora meditada em espírito, ele pode criar e esclarecer por meio desta inteligência aqueles que o escutam com fé. 135. Um grande erro se opõe à verdade e conduz hoje em dia os homens à perdição. Por meio dele a ignorância das trevas reina nas almas negligentes, tornando-as estranhas a Deus. Os que sabem que existe um Deus que nos recriou e nos iluminou, ou bem não crêem nele e só o conhecem em palavras e não em obras, ou pensam que ele só apareceu aos antigos em não a nós. Eles ligam a outros, ou aos que lhes disseram, os testemunhos da Escritura a respeito de Deus, e, quando eles falam de Deus, blasfemam a glória[106], negando a devoção que nasce do conhecimento. Eles lêem as Escrituras apenas no nível dos corpos, para não dizer à maneira dos judeus, negando a subida desde baixo pela ressurreição da alma, e desejam permanecer sem conhecimento, nos seus túmulos. Este grande erro constitui-se das três paixões: a descrença, a malícia e a negligência, que se engendram e contêm-se mutuamente. A descrença chama a malícia, a malícia é companheira da negligência, cujo sinal é a preguiça. OU então, reciprocamente, a negligência gera a malícia, como disse o Senhor: “Servidor mau e preguiçoso[107]”. E a malícia é a mãe da descrença. De fato, todo ser mau é também descrente: não crê, não teme a Deus. Daí nasce a negligência, a mãe do desdém, por cuja causa todo bem é desleixado e se cumpre todo mal. 136. O pensamento verdadeiro a respeito de Deus e o conhecimento verídico constituem a perfeita ortodoxia dos dogmas. Por esta razão, o ortodoxo deve glorificar assim: “Glória a ti, Cristo nosso Deus, glória a ti; por nós te fizestes homem, Deus Verbo acima do ser; grande é o mistério de tua economia, nosso Salvador, glória a ti”. 137. Dentre as palavras escritas, segundo o grande Máximo, existem três modos distintos que não podemos julgar nem condenar. O primeiro é o que escrevemos para nós; o segundo, o que escrevemos para o bem dos outros; o terceiro, o que escrevemos por obediência. É aí que se situa a maior parte dos escritos, para aqueles que buscam humildemente a palavra. Mas aquele que escreve sobre as virtudes por complacência, pela glória ou para ser visto, dele se diz que já recebeu seu salário [108]. Isto não tem utilidade alguma aqui em baixo nem recompensa no século futuro. Por tentar agradar os homens, este se iludiu e traficou a palavra de Deus[109]; ele será condenado.
[1]
Cf. Salmo 48 (49): 21. Cf. Gênesis 2: 8s. [3] Cf. Gênesis 2: 11-13. [4] Cf. Romanos 8: 20. [5] Cf. Isaías 40: 3. [6] Cf. Mateus 3: 3. [7] Cf. Romanos 8: 2. [8] Cf. Mateus 23: 5. [9] Cf. Efésios 4: 16. [10] Cf. I Pedro 2: 2. [2]
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Cântico dos Cânticos 4: 11. I Coríntios 3: 2. [13] Cf. I Coríntios 1: 20. [14] Cf. Judas 19. [15] Salmo 44 (45): 2. [16] Cf. Isaías 54: 13; João 6: 45. [17] Cf. Gênesis 1: 26-27. [18] Cf. Hebreus 6: 19. [19] Cf. Sabedoria 15: 3. [20] João 17: 3. [21] Cf. Jó 10: 21-22. [22] Salmo 9: 18. [23] Salmo 48 (49): 15. [24] Cf. Apocalipse 19: 20. [25] Cf. João 9: 4. [26] Cf. João 12: 31. [27] João 3: 18. [28] Salmo 57 (58): 4. [29] Cf. Mateus 9: 16. [30] Cf. Romanos 2: 20. [31] Cf. Êxodo 25: 8s. [32] Cf. João 14: 2. [33] Cf. I Coríntios 15: 41. [34] Cf. Filipenses 3: 21. [35] Cf. Salmo 36 (37): 11; Mateus 5: 5. [36] Cf. Números 34: 13. [37] Cf. Filipenses 4: 7. [38] Cf. Salmo 111 (112): 3. [39] Cf. Êxodo 13: 5. [40] Cf. Lucas 20: 36. [41] Cf. Efésios 4: 13. [42] Cf. Salmo 68 (69): 3. [43] Cf. Salmo 103 (104): 21; I Pedro 5: 8. [44] Cf. I Coríntios 15: 56. [45] Salmo 138 (139): 6. [46] Cf. Salmo 48 (49): 21. [47] Pericorese: inter-habitação das Pessoas Divinas umas nas outras. [48] Cf. Salmo 48 (49): 21. [49] Cf. I Coríntios 3: 11. [50] Cf. Efésios 2: 20-21. [51] Cf. Mateus 13: 45-46. [52] Lucas 21: 19. [53] Provérbios 2: 9. [54] Cf. Cântico dos Cânticos 1: 3. [55] Cf. Romanos 15: 16. [56] Colossenses 4: 6. [57] Cf. I Coríntios 3: 9. [58] Cf. Salmo 22 (23): 2. [59] Cf. Salmo 22 (23): 2. [60] Cf. Salmo 22 (23): 5. [12]
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Cf. Salmo 103 (104): 15. Cf. Salmo 103 (104): 15. [63] Cf. Deuteronômio 8: 3; Mateus 4: 4. [64] Cf. Romanos 7: 23. [65] Cf. Deuteronômio 6: 5. [66] João 3: 18. [67] João 5: 44. [68] Ezequiel 5: 11. [69] Cf. Isaías 13: 21. [70] Cf. Mateus 12: 45. [71] Cf. João 5: 13. [72] Cf. Êxodo 14: 7. [73] Cf. Hebreus 11: 1. [74] Cf. I Coríntios 12: 6. [75] Cf. Êxodo 7: 1. [76] Cf. Gênesis 18: 27. [77] Cf. I Coríntios 6: 17. [78] Tiago 2: 18. [79] João 12: 26. [80] Cf. Romanos 3: 34. [81] Cf. Salmo 83 (84): 6. [82] II Coríntios 5: 17. [83] Cf. Efésios 2: 2; 6: 12. [84] Cf. João 12: 31. [85] Cf. Gênesis 1: 26-27. [86] Cf. Oséias 2: 14. [87] Cf. Gálatas 5: 17. [88] Cf. Salmo 90 (91): 13. [89] Cf. II Coríntios 5: 2. [90] Cf. Colossenses 3: 10. [91] Mateus 25: 12. [92] Cf. Atos 8: 23. [93] Cf. Mateus 13: 52. [94] Cf. Judas 19. [95] Isaías 5: 21. [96] Cf. Mateus 10: 20. [97] Provérbios 26: 12. [98] Provérbios 3: 7. [99] II Coríntios 3: 5. [100] II Coríntios 2: 17. [101] I Coríntios 12: 27. [102] Efésios 4: 4-5. [103] Cf. Tiago 2: 26. [104] Salmo 48 (49): 4. [105] Cf. I Coríntios 1: 24. [106] Cf. Judas 8. [107] Mateus 25: 26. [108] Cf. Mateus 6: 16. [109] Cf. II Coríntios 2: 17. [62]
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TII, VII – GREGÓRIO, O SINAÍTA – Outros capítulos.
OUTROS CAPÍTULOS 1. Todos os que foram batizados em Cristo devem passar por todos os estágios da vida de Cristo. Por que receberam seu poder. E, por meio dos mandamentos, eles podem descobri-lo e aprende-lo. A concepção é a garantia do Espírito. O nascimento é a energia da alegria. O batismo é o poder purificador do fogo do Espírito. A transfiguração é a contemplação da luz divina. A crucificação é a morte para o mundo. O enterro é a guarda do amor divino no coração. A ressurreição é o despertar vivificante da alma. A ascensão é o êxtase em direção a Deus e o arrebatamento do intelecto. Quem não descobriu nem sentiu a passagem por estes estados ainda é uma criança em seu corpo e em seu espírito, ainda que diante de todos pareça um homem entrado em anos e cheio de ações. 2. A paixão de Cristo traz em si uma morte que dá a vida, por aqueles que sofrem apesar de todos, uma vez que sofremos com ele para sermos glorificados com ele[1]. Mas as paixões e os prazeres arrastam os que por eles se entregam a uma morte que traz a morte. Sofrer voluntariamente os sofrimentos de Cristo consiste, de fato, em crucificar a crucificação e em fazer morrer a própria morte. 3. Sofrer por Cristo consiste em suportar o que acontece. Pois a instrução do Senhor, que é um ardor ciumento pelo bem dos inocentes, nos denuncia para que retornemos, abrindo os ouvidos, a nós que somos culpados. É por isso que o Senhor prometeu a coroa da eternidade àqueles que suportam. Glória ao nosso Deus, glória a ti, Trindade santa, por tudo, glória a ti. Da transformação passional 4. A acídia, paixão difícil de combater, afrouxa o corpo. E quando o corpo está relaxado, também a alma fica frouxa. Esgotados um e outra, a compleição do corpo é alterada pela preguiça. Esta suscita o desejo; o desejo, o calor; o calor, a rebeldia; a rebeldia suscita a memória; a memória, a imaginação; a imaginação, a sugestão; a sugestão, a associação; a associação, o consentimento; e o consentimento cria o ato, seja por meio do corpo, seja por meio de outras aberrações. Assim o homem é vencido e tomba. Da boa transformação 5. A paciência em todas as obras engendra a coragem; a coragem, a resolução; a resolução, a constância; a constância, a tensão; a tensão do trabalho, ou a superação, acalma a intemperança do corpo e domina o relaxamento do desejo; o desejo suscita a aspiração; esta, o amor; o amor suscita o ardor; o ardor, o calor; o calor, o despertar; o despertar, o esforço; o esforço, a prece; a prece, a hesíquia; a hesíquia engendra a contemplação, e esta o conhecimento; o conhecimento engendra a inteligência dos mistérios; o fim dos mistérios é a teologia; o fruto da teologia é a perfeita caridade; o fruto da caridade é a humildade; o fruto da humildade é a impassibilidade; o fruto da impassibilidade é a vidência, a profecia, a previsão. Pois aqui em baixo ninguém é perfeito em virtudes, nem absorve de uma vez por todas todos os vícios. Mas quando a virtude cresce pouco a pouco, o vício retorna insensivelmente para o nada. Das tentações durante o sono 6. Questão: quando a polução noturna é pecado, e quando não? Resposta: a polução é pecado em três situações: a prostituição, a frouxidão e o consentimento dos pensamentos. Mas em sete casos ela não é pecado: quando o fluxo provém da urina, dos alimentos materiais, dos alimentos purgativos, da água fria, do relaxamento do corpo, da fadiga extrema e das diversas imaginações demoníacas. Dentre os ativos, depois da velhice, o fluxo ocorre no mais das vezes por cinco dos modos mencionados. Mas entre os impassíveis, a matéria do humor não vem senão com a
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urina. As numerosas penas e a energia divina que purifica e santifica sutilizaram as passagens secretas. Ademais, eles receberam os carismas da temperança. O último modo – o fluxo que provém dos fantasmas durante o sono – é o dos passionais e dos enfermos. Mas também este, na medida em que é involuntário, não é um pecado. É o que disseram os Padres. No impassível, o movimento que não é pecado e que a providência suscita de tempos em tempos, é consumido pelo fogo divino como o resto da matéria. No ativo, a necessidade é múltipla, e nada do que sai do corpo é condenável. No passional, o fluxo é duplo. Ele pode ser mau ou não. Ele pode ser provocado durante o sono pelos fantasmas, ou na vigília pelo consentimento. O primeiro modo não é condenável; mas o segundo é pecado, e a ele esta ligada uma pena. Nos impassíveis, o fluxo e o alívio do corpo são a mesma coisa. O humor se vai com a urina, segundo os caminhos da providência. A urina se espalha como um resíduo e o humor se perde, consumido pelo fogo divino. É o que se diz. Nos ativos e nos médios, diz-se que o corpo se purifica e se libera do humor corruptível e daquilo que é natural e necessário, por seis modos gerais e irrepreensíveis do fluxo: os alimentos materiais, os alimentos purgativos, a água fria, o relaxamento da natureza, o esgotamento pelo trabalho e por fim a natureza afetada por si mesma sob a influência da inveja dos demônios. Entre os doentes e os noviços, os modos passionais são também em número de seis: a gula, o falatório, o excesso, a vanglória, o duplo consentimento da imaginação e a inveja agressiva dos demônios. Mas este é o objetivo da providência: purificar a natureza da corrupção, dos acréscimos estrangeiros e dos desejos selvagens que penetram nela, e, por meio da atenção, ensinar àquele que combate a humildade e a temperança em tudo[2] e longe de tudo. 7. Aquele que vive só e que come o que lhe é dado por caridade, deve receber a esmola de sete maneiras: a primeira, pedir quando necessário; a segunda, receber quando necessário; a terceira, receber o que vem como se fosse dado por Deus; a quarta, ter confiança em Deus, crer que é ele quem retribui; a quinta, ser um operário dos mandamentos; a sexta, não transgredir nenhum deles; a sétima, não ser avaro, mas generoso e compassivo. Quem age assim se alegra: este é conduzido por Deus, não pelos homens.
[1] Cf. Romanos 8: 17. [2] Cf. I Coríntios 9: 25.
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DA HESÍQUIA E DA PRECE
Dos sinais da graça e da ilusão. Qual é a diferença entre calor e energia. Como é fácil, sem um guia, cometer o erro do sincretismo. 1. Seria preciso falar como o grande Doutor e não ter necessidade do auxílio das Escrituras [1], nem de outros Padres, ó Longino, você que traz o sinal, mas sim sermos ensinados por Deus – pois foi dito: “Todos serão ensinados por Deus[2]” - a fim de receber dele e por ele o conhecimento e de aprender o que é bom. Não foi apenas a nós, mas a cada fiel, que foi dado, como a lei do Espírito sobre as tábuas de nossos corações[3], trazer escrito ao mesmo tempo aqui e com os Querubins, o extraordinário, e de nos entretermos com Jesus por intermédio da prece pura. Mas, se recebemos a nova criação[4] ainda crianças, não concebemos a graça nem percebemos toda a renovação, mas antes desconhecemos a transbordante imensidão da honra e da glória da qual participamos. E não sabemos que através dos mandamentos devemos crescer em nossa alma e nosso espírito, e ver com o intelecto aquilo que recebemos. A maior parte dentre nós, pela negligência e o estado passional, cai na insensibilidade e na cegueira. Não sabemos nem se Deus existe, nem o que somos, nem aquilo que nos tornamos ao nos tornarmos filhos de Deus, filhos da luz, filhos e membros de Cristo. E se somos batizados na idade adulta, não percebemos senão a água, não sentimos o Espírito. Mesmo renovados no Espírito, não cremos senão com uma fé morta e inerte, não afirmamos plenamente aquilo que nos tornamos. Somos assim carne e vivemos e caminhamos segundo a carne. Se nos arrependemos, não observamos nem conhecemos os mandamentos senão de modo corpóreo, não espiritual. Se, depois de muitas penas, a alguns dentre nós é dado ver aparecer a graça em seu amor pelo homem, nós a vemos como uma ilusão. E quando ouvimos dizer que esta graça age em outros, ficamos com inveja e a vemos como um erro. Assim, permanecemos mortos até o último dia, e não vivemos nem agimos em Cristo. Como diz a Escritura, aquilo que temos nos será tirado[5] no momento do êxodo e do Juízo, por nossa descrença ou nossa desesperança. Nunca compreendemos que é preciso que os filhos sejam à imagem do Pai: deuses, pois eles vêm de Deus; espirituais, porque vêm do Espírito. Diz-se que aquilo que é nascido do Espírito é espírito[6]. Mas nós somos carne e, embora tenhamos recebido a fé e tenhamos nos tornado celestes, o Espírito de Deus não permanece em nós[7]. Se o Senhor permitiu a angústia e o cativeiro e deixou que se multiplicassem as carnificinas, é talvez porque quis nos corrigir com remédios mais fortes, ou nos separar, ou nos livrar da malícia. 2. Direi, antes de tudo, uma vez que Deus dá voz aos que anunciam tais bens[8], como podemos encontrar o Cristo que possuímos, ou que recebemos pelo batismo no Espírito, ou melhor, como podemos ser encontrados por ele. São as palavras do Apóstolo Paulo: “Não sabem que Jesus Cristo mora em seus corações?[9]”. Depois direi como avançar – possa isto ser assim – e como conservar o que foi conseguido. A melhor maneira, e a mais curta, é expor brevemente os extremos e o meio, pois a coisa é muito vasta. É por isso que muitos levaram o combate só até achar o que buscavam, e aí detiveram seu impulso. Eles não foram mais longe e não se preocuparam com isto, contentando-se com o começo que encontraram. Quando encontraram um obstáculo e deixaram secretamente a via, eles imaginaram continuar no bom caminho, e marcharam para longe dele sem nenhum ganho. Outros, que chegaram até a metade do caminho da iluminação, pararam antes do fim. Foram negligentes, ou voltaram atrás vivendo na indiferença, e tornaram-se novamente noviços. Outros chegaram a tocar a perfeição, mas não foram suficientemente atentos. A presunção os fez cair, voltaram atrás e se viram outra vez trabalhando com os médios e os noviços. Ora, os noviços, os médios e os perfeitos têm cada qual sua própria via, uns a energia, outros a iluminação e outros a purificação ou a ressurreição da carne.
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Como encontrar a energia 3. A energia do Espírito, que recebemos misteriosamente no batismo, encontra-se segundo dois modos. Em primeiro lugar, de modo geral, por obra dos mandamentos, através de muitas penas e tempo, é que, segundo são Marcos[10], se revela o dom que, na medida em que cumprimos os mandamentos, nos ilumina mais e mais com sua própria irradiação. Em segundo lugar, o dom se manifesta na submissão, pela invocação aplicada e contínua do Senhor Jesus, ou seja, pela lembrança de Deus. Seguimos mais lentamente a primeira via, e mais depressa a segunda, se aprendermos com esforço como cavar pacientemente a terra para encontrar ouro. Se quisermos encontrar e conhecer a verdade sem cairmos em erro, busquemos unicamente a energia do coração, sem imagens ou qualquer tipo de forma. Não tentemos nem ver em imaginação a forma ou a figura dos supostos santos, nem contemplar luzes, pois, com tais imaginações falsas, o erro vem bater no intelecto daqueles que não possuem experiência. Não nos liguemos senão na energia da oração que age no coração, que aquece e alegra o intelecto e inflama a alma com o inefável amor a Deus e aos homens. Veremos então uma grande humildade e uma grande contrição virem por intermédio da prece, uma vez que ela é, para um noviço, uma energia do Espírito Santo, espiritual e sempre em movimento, De início, ela é como que um fogo de alegria que sobe do coração. No final, ela é como uma luz ativa que espalha perfumes. 4. Estes são os sinais do começo, para aqueles que procuram realmente, mas que não tentam, como diz a palavra de sabedoria que afirma que ela é encontrada pelos que não tentam e se manifesta aos que não lhe são infiéis[11]. Em alguns ela se manifesta como a luz da aurora. Em outros, é uma exultação trêmula. Em outros, uma felicidade. Em outros, uma alegria mesclada de temor. Em outros, ela é tremor e alegria. Em alguns, às vezes, ela consiste em lágrimas e temor. A alma se regozija com a visita e a compaixão de Deus. Mas ela teme e treme em sua presença, pois é culpada de numerosos pecados. Outros, de início, ficam numa indizível contrição, numa pena inefável da alma, dolorosa como a da mulher que sofre no parto[12], conforme a Escritura. Pois a palavra viva e ativa – vale dizer: Jesus –, penetra nas juntas e na medula do corpo[13], como diz o Apóstolo, até a divisão entre a alma do corpo, para consumir pela força o que existe de passional em todas as suas partes. Em outros ainda, trata-se de um amor e de uma paz irresistíveis, que se revelam diante de nós. Em outros, é uma exultação que os Padres muitas vezes chamaram de sobressalto, uma potência do Espírito, um movimento do coração vivo. Podemos chamá-la também de pulsação e suspiro do Espírito intercedendo inefavelmente por nós junto a Deus[14]. Isaías a chama de “onda da justiça de Deus[15]”. O grande Efrém a chama de “picada”. O Senhor a chamou de “fonte de água que jorra na vida eterna[16]” (pois por “água” ele entendia “Espírito”), saltando no coração e transbordando de ardor e de poder. 5. É preciso saber que o sobressalto, ou a exultação, apresenta duas formas diferentes: a forma serena (a que chamamos pulsação, suspiro e intercessão do Espírito) e a grande alegria do coração (a que chamamos sobressalto e batimento, e que consiste num salto, um voo do coração vivo em direção ao céu e a Deus). Pois, ao receber do Espírito divino as asas do desejo amoroso e livre dos laços da paixão, a alma se esforça por voar para o alto antes mesmo de seu êxodo; ela tenta se livrar da pesandez. Aí acontece o fremir do espírito, que chamamos de ardor transbordante e movimento da alma, conforme diz o Evangelho: “Jesus tremeu em espírito e ficou comovido, e disse: Aonde vocês o colocaram? [17]”. O divino Davi explicou a diferença entre o grande e o pequeno sobressalto quando disse que as montanhas saltam como carneiros e as colinas como cordeiros[18]. Ele está falando dos perfeitos e dos noviços. Que as montanhas e as colinas sensíveis que ele evoca, e que não são vivas, possam saltar, isto é coisa que, para ele, ultrapassa a natureza.
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6. É preciso saber que o temor a Deus não está ligado ao tremor (não me refiro ao tremor que vem da alegria, mas daquele que provém da cólera, ou seja, do castigo e do abandono). Com efeito, nasce da prece uma exultação trêmula no fogo do temor a Deus. Mas este temor não é aquele trêmulo temor da cólera e do castigo. Ele é o temor da sabedoria, do qual se diz ser o começo da sabedoria[19]. Existem três espécies de temor (embora os Padres só mencionem dois): o temor elementar e o temor perfeito, e ainda o temor da cólera, que devemos chamar propriamente de tremor: este é o que derruba e fere. 7. O tremor possui muitas formas diferentes. Um é o tremor da cólera, outro o da alegria, outro o do ardor (quando se diz que o sangue ferve em torno do coração), outro o da velhice, outro o do pecado, ou seja, do erro, outro ainda o da maldição que, por intermédio de Caim[20], foi imposta à raça dos homens. De início, o tremor que provém da alegria e o que provém do pecado combatem contra aquele que luta, mas isto não acontece com todos. Cada um dos dois é reconhecível. Um é a exultação trêmula, a graça que chama a alma para uma grande alegria e para as lágrimas. Outro é um calor inconstante, um torpor, uma dureza do coração, que queimam a alma, inflamam os membros que desejam se juntar e que, buscando na imaginação interior a união dos corpos e o amor, consentem e permitem o ultraje. 8. Nos noviços a energia é dupla. Ela age no coração de duas maneiras que não podem se misturar. Uma vem da graça, outra do erro. Isto é atestado pelo grande Marcos o Asceta: ele diz que existe uma energia espiritual e uma energia satânica[21], ignorada pela criança. E ainda, que o calor da energia que queima nos homens é tripla: uma vem da graça, outra do erro ou do pecado, e a outra da superabundância de sangue, a que Talassius o Africano chamava de compleição[22], e que pode ser amansada e apaziguada pela temperança. 9. A energia da graça é o poder do fogo do Espírito, suscitada no fundo do coração na alegria e no regozijo, firmando, aquecendo e purificando a alma. Ela faz imediatamente cessar os pensamentos e por um tempo paralisa os movimentos do corpo. Estes são seus sinais, e os frutos que manifestam a verdade: as lágrimas, a contrição, a humildade, a temperança, o silêncio, a paciência, o retiro, e tudo o que se lhes assemelha, tudo aquilo que nos faz ter uma certeza indubitável. 10. A energia do erro é a inflamação do pecado que esquenta a alma pelo prazer, suscitando no movimento do corpo o desejo furioso da cópula. Ela não possui nem consistência nem ordem, segundo são Diádoco. Ela é feita de uma alegria sem razão, de presunção, de confusão, de felicidade sem gosto e a que falta alimento. Num regozijo tépido, ela é feita sobretudo para satisfazer ao desejo. Imaginando uma matéria que inflama, ela opera com os prazeres e o ventre insaciável. Ela penetra e queima, com efeito, a compleição da carne, a fim de que o homem, dedicado ao usufruto do prazer por seu estado, expulse pouco a pouco de si a graça.
DA HESÍQUIA E DOS DOIS MODOS DA PRECE
1. Existem dois modos de união, ou antes, duas entradas que levam à prece do intelecto, que age no coração por meio do Espírito. Através destes dois modos, ou bem o intelecto que adere ao Senhor[23] em conformidade com a Escritura recebe em primeiro lugar a prece no coração, ou bem a energia, despertando paulatinamente no fogo da alegria, faz com que a prece atraia o intelecto e o incite a invocar o Senhor Jesus e unir-se a ele. Pois se o Espírito age em cada um como quer[24], como diz o Apóstolo, pode acontecer que, em alguns, uma das formas de que falamos preceda a outra. Pode ser que a energia chegue ao coração ao diminuírem as paixões e manifeste o calor divino, pela invocação contínua de Jesus Cristo, pois, como diz a Escritura,
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nosso Deus é um fogo que consome[25] as paixões. Pode ser que o Espírito atraia o intelecto para si, encerrando-o nas profundezas do coração e impedindo seu movimento habitual. O intelecto então já não é um cativo levado aos Assírios fora de Jerusalém, mas é levado de Babilônia para Sião numa mudança bem melhor, e assim ele pode dizer com o Profeta: “É a você, Deus, que são endereçados os hinos em Sião, e a você é dirigida a prece em Jerusalém[26]”. E também: “Quando o Senhor trouxer de Sião os que eram cativos[27]”. E: “Jacó exultará e Israel se regozijará[28]”, ou seja, o intelecto ativo e contemplativo que, pela ação e com a ajuda de Deus vence as paixões e, pela contemplação, vê o próprio Deus, na medida em que isto é possível. É então que o intelecto, convidado para uma mesa abundante e cheia das delícias divinas, canta: “Você preparou para mim uma mesa, na cara dos demônios e das paixões que me atormentavam[29]”.
Como orar 2. Pela manhã, diz Salomão, semeie sua semente, ou seja, a prece, e que à tarde sua mão não descanse[30], a fim de não interromper no tempo a continuidade da prece e de não faltar no momento em que ela se esgotar. Pois, diz ele, você não sabe qual se realizará, se um ou outro[31]. Logo pela manhã, sentado num banquinho, faça o intelecto sair da razão, encerre-o no coração e guarde-o lá. Dolorosamente encurvado, com uma viva dor no peito, nas espáduas e na nuca, diga perseverantemente em seu intelecto ou em sua alma: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. A seguir, por causa do suplício e da pena, e talvez também pela pesada continuidade (não devido ao único e contínuo alimento do triplo nome, pois “aqueles que no comem, foi dito, terão ainda mais fome[32]”), transporte o intelecto para a outra metade, e diga: “Filho de Deus, tenha piedade de mim”. Repita esta metade de muitas formas. Mas não mude frequentemente, por negligência. As plantas que são constantemente podadas não se enraízam. Retenha a subida do sopro, a fim de não respirar facilmente. Pois o movimento dos sopros provenientes do coração obscurece o intelecto e agitam o pensamento; ele o faz desviar-se ou o deixa cativo do esquecimento, ou fá-lo ocupar-se de uma coisa atrás da outra, e o intelecto termina por se encontrar insensivelmente aonde não deveria estar. Se você perceber a aproximação das impurezas dos maus espíritos ou dos pensamentos, ou se eles tomarem forma em seu intelecto, não se perturbe. E se lhe ocorrerem bons pensamentos sobre as coisas, tampouco deixe sua atenção ligar para eles. Na medida do possível, retenha a respiração, encerre seu intelecto no coração e invoque continuamente, com perseverança, o Senhor Jesus. Você queimará e afastará rapidamente todas essas distrações, flagelando-as invisivelmente com o nome divino. Com efeito, disse João Clímaco: “Flagele com o nome de Jesus aqueles que o combatem. Não existe arma mais forte no céu ou sobre a terra[33]”.
Da respiração 3. Isaias o Anacoreta é testemunha da necessidade de reter a respiração, assim como muitos outros. Um disse: “Domine o intelecto desenfreado, ou seja, puxado e dissipado pela potência contrária que a negligência permite retornar à alma despreocupada, após o batismo, com outros espíritos ainda piores, como disse o Senhor. E sua última condição se torna ainda pior do que a primeira[34]”. Outro afirma que o monge deve ter a lembrança de Deus como respiração. Outro, que o amor a Deus antecede a expiração. E o Novo Teólogo disse: “Segure a respiração que vem do nariz, a fim de não respirar facilmente”. E João Clímaco: “Que a lembrança de Jesus se uma à sua respiração, e você então conhecerá o benefício da hesíquia[35]”. E o Apóstolo: “Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim[36]”, operando e inspirando a vida divina.
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“O Espírito sopra aonde bem quer[37]”, diz o Senhor, tomando como exemplo o sopro do vento sensível. Quando nos tornamos puros, é porque recebemos a garantia do Espírito[38] e a palavra implantou-se[39] em nós como uma semente, segundo Tiago, o irmão de Deus. Aquele que transborda de bondade é então plantado em nós e nos conforma consigo permitindo-nos receber aquilo que não se partilha. Sem confusão, sem diminuição, ele nos faz cumprir a obra divina. Mas nós negligenciamos os mandamentos que mantêm a graça e, por nossa indolência, caímos novamente ante as paixões. E no lugar da respiração do Espírito Santo, nós nos enchemos dos sopros dos maus espíritos. É certamente daí que provêm os bocejos e o espreguiçamento, como dizem os Padres. Aquele que adquiriu o Espírito e dele recebeu a purificação é, com efeito, aquecido por ele e respira a vida divina, proclama-a, concebe e desenvolve, conforme a palavra do Senhor: “Não serão vocês a falar, mas o Espírito de meu Pai que falará por vocês[40]”. Mas aquele que carrega em si o contrário e que é dominado por ele, age e fala o oposto.
Como salmodiar 4. “Quem é preguiçoso, diz João Clímaco, deverá se levantar para orar. Depois sentar-se-á novamente e retomará corajosamente seu primeiro trabalho[41]”. Ele fala do que o intelecto deve fazer depois que atingiu a guarda do coração. Mas é claro que ele também está falando da salmódia. Diz-se que o grande Barsanulfo foi um dia interrogado sobre a salmódia e o modo de salmodiar, e o ancião respondeu: “As Horas e as odes são tradições da Igreja, e é bom que elas nos tenham sido transmitidas para a vida comum. Mas os monges de Sceta não cantam as Horas nem possuem odes. Eles têm um trabalho manual, uma meditação solitária e uma prece intermitente. Quando você se levantar para orar, diga o Trisagion[42] e o Pai Nosso. Peça a Deus que o liberte do homem velho. E não se demore: pois seu intelecto está em oração o dia todo[43]”. O ancião queria demonstrar que a meditação solitária é a prece do coração, e que a oração intermitente é o momento da salmódia. Também o grande João Clímaco diz claramente: “A obra da hesíquia é a ausência de preocupações em tudo, depois a prece ativa e, em terceiro lugar, a obra indefectível do coração[44]”. Este é o lugar da prece, portanto o lugar da hesíquia.
Das diferentes salmódias 5. Alguns ensinam que se deve salmodiar muito; outros, que se deve salmodiar pouco; outros, que não se deve salmodiar, mas apenas orar e fatigar-se, trabalhar com suas mãos, ou arrepender-se, ou dedicar-se a algum outro trabalho difícil. Qual é a diferença? A resposta é: aqueles que, depois de muitos anos e muitas penas, encontraram a graça na vida ativa, ensinam aos demais conforme aprenderam, e não podem admitir que outros possam aí chegar em pouco tempo pelo estudo, a misericórdia de Deus e uma prece ardente, como diz o santo Isaac. Enganados pela ignorância e a presunção, eles os condenam, e afirmam que agir de outra forma é uma ilusão e não uma energia da graça. Eles não sabem que aos olhos do Senhor, segundo a Escritura, é fácil proporcionar rapidamente a riqueza ao pobre[45], e que “o começo da sabedoria é adquirir a sabedoria[46]”, a graça, como diz o Provérbio. Também o Apóstolo repreende seus discípulos que ignoram a graça, quando diz: “Não sabem vocês que Jesus Cristo mora em vocês? A não ser que sejam reprovados[47]”, ou seja, incapazes de progredir devido à sua negligência. Em sua incredulidade e sua autossuficiência, eles não admitiam as obras extraordinárias próprias da oração, que o Espírito cumpre em alguns singularmente. 6. Objeção. Diga-me: jejuar, abster-se, velar, permanecer em pé, fazer as metanias[48], chorar, ser pobre, estas coisas não são ações? Como pode você dizer, colocando apenas a salmódia, que sem a vida ativa é impossível manter a prece? Estas coisas não são ações?
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Resposta. Se a boca ora e o intelecto se agita, qual é a vantagem? “Um edifica e o outro destrói; cansamonos à toa[49]”. Mas o intelecto deve trabalhar como o corpo. Caso contrário, seremos justos de corpo, mas com o coração cheio de toda acídia e impurezas. O Apóstolo confirma-o: “Se eu rezo com a língua, ou seja, com a boca, meu espírito está em oração, mas é apenas minha voz, e meu intelecto permanece estéril. Eu rezo apenas com a boca. Mas é preciso rezar também com a inteligência [50]”. E: “Eu prefiro dizer cinco palavras, etc.[51]”. João Clímaco o testemunha, ao dizer: “Prefiro dizer cinco palavras com minha inteligência, etc.”. Existem muitas obras, mas elas são parciais. A grande obra que a tudo engloba, a fonte das virtudes segundo João Clímaco, é a prece do coração, por meio da qual se descobre todos os bens[52]. “Não há nada mais terrível, diz são Máximo, do que o pensamento da morte, e nada maior do que a lembrança de Deus[53]”. Aqui ele mostra a transcendência da obra. Porém muitos, cegos por sua extrema insensibilidade e por sua ignorância, têm pouca fé e se recusam a entender que existe uma graça no tempo atual. 7. Penso que os que salmodiam pouco fazem bem. Eles observam a proporção mais justa – segundo os sábios, toda medida é excelente – e não esgotam toda a potência da oração na vida ativa. Assim, o intelecto, não se mostrando negligente à oração, não relaxa diante dela. Mas, se eles salmodiam apenas em parte, eles se desdobram o mais possível na oração. Há, entretanto, momentos em que, sufocado por seu apelo contínuo e pela constante repetição, o intelecto pode dar-se um repouso, deixando a estreiteza apertada da hesíquia pelas extensões da salmódia. Este é o melhor conselho e o ensinamento dos homens mais sábios. 8. Aqueles que nunca salmodiam fazem bem, se estiverem suficientemente avançados. Eles não precisam de salmos, mas de silêncio, de prece contínua e de contemplação, se lhes foi dado receber a luz. Eles estão unidos a Deus e não têm necessidade de separar dele seu intelecto para lança-lo na confusão. A vontade própria faz tombar o obediente, diz João Clímaco[54]. E a interrupção da prece faz cair o hesiquiasta. Quando ele se separa da lembrança de Deus como de seu esposo, seu intelecto se torna adúltero: ele se toma de amor pelas menores coisas. Nem sempre é possível ensinar aos demais este tipo de prece. Aos simples e aos iletrados que vivem na obediência, sim: pois a obediência, pela humildade, participa de todas as virtudes. Mas aos que não obedecem, sejam eles simples ou sábios, não se pode ensinar, para que não sejam levados a se perder. Quem não segue senão a si mesmo, com efeito, não pode escapar à presunção, que acompanha naturalmente o erro, diz o santo Isaac[55]. Alguns, que não veem o perigo das consequências, não ensinam senão este tipo de oração aos que encontram, para que seu intelecto, dizem eles, adquira a prática e o amor à lembrança de Deus. Mas isto é inadmissível, sobretudo com os monges independentes. Pois seu intelecto ainda se encontra impuro, por causa da negligência e da autossuficiência. Ele não foi purificado pelas lágrimas, e reflete mais as más imagens dos pensamentos do que a oração, quando os espíritos impuros que estão no seu coração, perturbados pelo som terrível, grunhem e tentam destruir aquilo que os flagela. Se o monge independente escuta, se recebe o ensinamento relativo a esta obra e tenta mantê-lo, ele cairá em um destes dois males: ou se desvirtuará, e, iludindo-se, não será curado, ou será negligente, e não fará nenhum progresso durante toda a sua vida. 9. Direi eu, na medida em que conheço um pouco o assunto por experiência própria: quando você permanecer na hesíquia, dia e noite, orando a Deus constantemente, sem pensamentos, humildemente, e seu intelecto esteja esgotado de chamar, seu corpo esteja dolorido e o coração não sinta mais nem calor nem alegria, demasiado concentrado pela invocação de Jesus, que dá a resolução e a paciência àquele que combate, então levante-se, salmodie, sozinho ou com seu discípulo, ou ocupe-se em meditar sobre uma
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palavra, pense na lembrança da morte, trabalhe com suas mãos ou com os outros membros. Ou aplique-se à leitura, de preferência em pé, para que o corpo mantenha a pena. Quando você estiver em pé, salmodiando só, diga o Trisagion, depois a oração do Senhor, com sua alma ou em espírito, e com o intelecto atento ao coração. Se a acídia o pressionar, diga ainda dois ou três salmos e dois tropários[56] penitenciais, sem cantar. Estes tropários não são cantados, diz João Clímaco[57]. A pena do coração, devotado à piedade, basta para levar-lhe a alegria, como diz são Marcos[58], e o calor do Espírito lhe é dado, com a graça e o regozijo. Durante o salmo, diga também a oração em espírito ou com sua alma, sem distração, e o Aleluia. Esta é as ordem dos santos Padres, de Barsanulfo, de Diádoco e de muitos outros. Como diz o divino Basílio[59], é preciso variar o salmo a cada dia, para estimular a resolução, e para que o intelecto não fique cansado de cantar todos os dias os mesmos salmos. Ao contrário, é preciso deixa-lo livre, e ele será fortalecido em sua resolução. Mas se você salmodia em companhia de um discípulo fiel, que seja ele a dizer os salmos. Você se guarde, secretamente atento e orando em seu coração. Com a ajuda da oração, despreze todos os pensamentos que sobem ao coração, venham eles dos sentidos ou do intelecto. Com efeito, a hesíquia consiste no despojamento momentâneo dos pensamentos que não vêm do Espírito, afim de que você não perca o melhor, prestando atenção ao que há de bom neles.
Da ilusão 10. Você que ama a Deus, fique especialmente atento ao conhecimento. Quando, trabalhando na obra, você enxergar uma luz ou um fogo fora de você, ou uma suposta figura de Cristo, ou de um anjo, ou de um santo, não a receba para não ser prejudicado. Vigie sempre para não permitir que seu intelecto imagine tais figuras. Tudo o que se forma assim a contratempo do exterior não faz senão perder-se a alma. O verdadeiro princípio da prece é o calor do coração que queima as paixões, leva o bom humor e a alegria à alma, confirma o coração num desejo seguro e numa indubitável plenitude. Os Padres dizem que tudo de sensível ou de intelectual que chega à alma, e que o coração põe em dúvida ou não aceita, não vem de Deus, mas é enviado pelo adversário. Quando você perceber o intelecto atraído para fora ou para cima por qualquer potência invisível, não creia nela, não permita que ela se entranhe, mas tranque-a o mais depressa possível em sua obra. “As coisas de Deus, diz o santo Isaac, vêm por si sós, e você não sabe o momento”. O inimigo natural que reside nos rins transforma como quer pela imaginação as coisas do Espírito, substituindo umas pelas outras. Em lugar do calor, ele coloca a desordem de seu próprio fogo, até tornar a alma pesada com esta ilusão. Em lugar do regozijo, ele suscita uma alegria selvagem e o suor do prazer, de onde vêm a presunção e a cegueira. Ele se esconde dos noviços, e os faz tomar suas maquinações por uma graça operante. Mas o tempo, a experiência e a percepção o revelam aos que não ignoram sua malícia. “A garganta, diz a Escritura, distingue os alimentos[60]”; vale dizer, que o paladar espiritual descobre infalivelmente o que são todas essas coisas.
Da leitura 11. “Você é um operário, diz João Clímaco. Aquilo que você lê deve visar à ação. Esta obra torna supérflua qualquer outra leitura[61]”. Não cesse de ler os livros sobre a hesíquia e a prece, tais como a Escada, santo Isaac, os escritos de são Máximo, do Novo Teólogo, de seu discípulo Stéthatos, de Hesíquio, de Filioteu o Sinaíta, além de tudo o que for deste gênero Deixe os outros escritos até que chegue o momento; não que seja necessário rejeitá-los, mas eles não têm o mesmo objetivo. Eles dirigem o intelecto para aquilo que buscam, e o desviam da oração.
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Que sua leitura seja solitária, dita numa voz sem ênfase, se eloquência estudada, sem elegância de linguagem ou de modulação, sem sair de você de modo passional e inconsciente, ausente de onde você está, para agradar a alguns, mas também sem ser insaciável, porque toda medida é excelente. Leia sem rudeza, nem lentidão, nem negligência, mas modestamente, mansamente, pausadamente, de maneira compreensível e harmoniosa, com sua inteligência, sua alma e sua razão. O intelecto sentir-se-á reconfortado. Ele receberá em sai a força de orar intensamente. Mas nas condições contrárias a essas, ele não encontrará senão a obscuridade, o relaxamento e a confusão. A razão acaba por fazer mal à cabeça, e se esgota para a oração. 12. Esteja atento em examinar precisamente e a toda hora para onde o está levando sua resolução, se ela conduz conforme a Deus a este bem que é a hesíquia para benefício da alma, ou à salmódia, ou à leitura, ou à prece, ou à obra de virtudes semelhantes, a fim de não ser devastado sem o saber, por ser um operário apenas na forma, querendo, em seu modo de vida e seus pensamentos, agradar aos homens, e não a Deus[62]. Pois as armadilhas do maligno são numerosas. No mais profundo segredo, ignorado pela maioria, ele vê a tendência da resolução e não cessa de tentar devastar a obra sem que nos demos conta, a fim de que o realizado não se faça conforme a Deus. Mesmo que ele chegue a sustentar contra você um combate inflexível e sobrevenha o enfrentamento, você, estando certo de sua resolução diante de Deus, não se deixe devastar, mesmo que o impulso de sua vontade, forçada pelo maligno, o leve a perder-se em delírios contra sua vontade. É possível que, agravado pela moléstia, sejamos vencidos sem o querer. Mas somos logo perdoados e encorajados por Aquele que conhece as resoluções e os corações. Esta paixão – a vanglória – não deixa o monge avançar na virtude, mas ele permanece com suas penas, e chega à velhice sem dar frutos. Ela sempre pode alcançar os três – noviço, médio e perfeito – e despojá-los da obra das virtudes. 13. Eu afirmo, por haver aprendido, que o monge jamais poderá progredir sem estas virtudes: o jejum, a temperança, a vigília, a paciência, a coragem, a hesíquia, a prece, o silêncio, o luto, a humildade. Pois elas engendram-se mutuamente e guardam umas às outras. O desejo consumido pelo jejum constante gera a temperança. A temperança gera a vigília. A vigília, a paciência. A paciência, a coragem. A coragem, a hesíquia. A hesíquia, a prece. A prece, o silêncio. O silêncio, o luto. O luto, a humildade. Reciprocamente, a humildade gera o luto. Retornando em sentido inverso, você descobrira como os filhos, por seu turno, geram as mães. Dentre as virtudes, nenhuma é maior do que esta geração recíproca. Pois todas desejam claramente suas contrárias. 14. É preciso situar aqui as penas e as fadigas da obra, e expor claramente como se deve conduzir cada obra, para que alguém que nos ouça não caminhe sem assumir suas penas e, não produzindo frutos, não nos acuse, a nós e a outros, de que as coisas não se passam como dissemos. Com efeito, somente as penas do coração e a fadiga do corpo podem cumprir a obra da verdade. Elas revelam a energia do Espírito Santo que, pelo batismo, lhe foi dada, a você e a todo fiel que afundou nas paixões por negligenciar os mandamentos, este mesmo Espírito Santo que, por sua inefável misericórdia, aguarda nosso arrependimento, para que não ouçamos ao final, por causa de nossa esterilidade: “Tirem dele o talento, e deem ao que tem dez. Porque, a todo aquele que tem, será dado mais, e terá em abundância. Mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado[63]”, e para que não sejamos atirados ao castigo, para sofrermos eternamente na Geena. Nenhuma obra do espírito ou do corpo feita sem pena e sem fadiga jamais dará fruto a quem a faz, pois “o Reino dos céus sofre violência, diz o Senhor, e são os
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violentos que o tomam[64]”. A violência de que se trata consiste em sentir as penas do corpo em todas as coisas. Muitos, por terem trabalhado por longos anos e ainda trabalharem sem fadiga para não penar duramente sob a quente resolução do coração, por recusarem o amargor das penas, esvaziaram-se de toda pureza, e não comungaram com o Espírito Santo. Os que trabalham na preguiça e na negligência talvez acreditem ter muitas penas. Mas, por não sofrerem e por serem, no fundo, insensíveis, eles jamais colherão frutos. Testemunha disto é aquele que disse: “Ainda que as obras de nossa vida sejam grandes, se nosso coração não estiver dolorido, elas não passarão de bastardas e sem conteúdo”. Toda vez que caminhamos sem penas, levados pela acídia às distrações vãs e acreditando nelas encontrar repouso – o que não acontece nunca – estamos sem dúvida em meio às trevas. Atados invisivelmente por correias indefectíveis, não podemos nos mover, tornamo-nos inertes em toda obra, transbordamos de vaidade – sobretudo os noviços. Pois, para os perfeitos, tudo o que faz com medida é bom. É o que atesta o grande Efrém, quando diz: “Pene uma pena terrível, para escapar às penas das penas inúteis”. Senão, segundo o profeta, nossos rins não poderão ser libertados pelo sofrimento do jejum[65]. No doloroso aperto do coração, somos concebidos entre dores como o recém-nascido daquela que dá à luz, mas não geramos um espírito de salvação sobre a terra do coração[66]. Não estamos senão no tempo, no deserto inútil, no relaxamento e na hesíquia, pensam alguns, e se gloriam. Mas no momento do êxodo, todos seremos indubitavelmente conhecidos por nossos frutos. 15. Não cabe a ninguém aprender por si só a ciência das virtudes, mesmo que alguns tenham se servido da experiência a título de mestre. Com efeito, há presunção em pretender agir por si próprio, e não a partir do conselho dos que precederam. Ademais, cada um deve ser gerado, “parido”. Se, de fato, o Filho não faz nada por si próprio, mas faz o que lhe foi ensinado pelo Pai[67], e se o Espírito não fala por si só[68], quem poderá ter alcançado tamanha altura que não tenha necessidade de outro para inicia-lo? Estará enganado aquele que pensa ter mais loucura do que virtude? É preciso obedecer àqueles que conhecem as penas da virtude ativa, segui-los no jejum e na fome, na temperança que afasta os prazeres, na vigília constante, na dura genuflexão, na dolorosa posição imóvel, na prece perseverante, na humildade autêntica, na contrição e no contínuo gemido do coração, no silêncio que traz a palavra e que é temperado de sal[69], na paciência em tudo. Não se deve viver sempre em repouso, nem se manter todo o tempo num só lugar antes da velhice e da doença. Pois, diz a Escritura, você se alimentará das penas das virtudes e o Reino dos céus pertence aos violentos[70]. Quem se dá a pena de cumprir a cada dia as obras de que falamos, com a ajuda de Deus, colherá os frutos no seu tempo.
DE COMO O HESIQUIASTA DEVE SE MANTER SENTADO EM ORAÇÃO E NÃO TER PRESSA EM LEVANTAR-SE Tanto, na maior parte do tempo – porque é penoso – você pode permanecer sentado sobre um banco, tanto, raramente, por um momento e para relaxar, você pode alongar-se sobre seu leito. Você deve permanecer sentado com paciência, por causa daquele que disse: “Persevere na oração[71]”, e não ter pressa em se levantar por negligência, quando o apelo espiritual do intelecto e a longa imobilidade o fizerem sofrer. “Eis, diz o profeta, que fui tomado de dores, como quem está para parir[72]”. Curvado para frente, reunindo o intelecto no coração, se ele se abrir, peça ajuda ao Senhor Jesus. Você terá dores nas espáduas, e muitas vezes a cabeça ficará dolorida. Mas persevere na pena e no amor, procurando o Senhor dentro do coração. Pois o Reino dos céus é dos violentos e são os violentos que dele irão se apoderar[73]. O
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Senhor mostrou em verdade como devemos assumir tais penas. A paciência e a perseverança em tudo parem as penas do corpo e da alma. Como dizer a oração Dentre os Padres, uns ordenam dizer toda a oração – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim” – enquanto outros recomendam dizer a metade – “Jesus, Filho de Deus, tenha piedade de mim” – o que é mais fácil devido à fraqueza do intelecto. Pois ninguém só e por si só, pode dizer no mistério “Senhor Jesus”, pura e perfeitamente, se não for por meio do Espírito Santo[74]. Como a criança que ainda balbucia, ele é incapaz de articular plenamente. Não se deve alternar frequentemente as invocações, por negligência, mas fazê-lo raramente, pela perseverança. Da mesma forma, alguns ensinam a dizer a prece com a boca, outros com o intelecto. Penso que se deve fazer com ambos. De fato, tanto o intelecto como a boca podem ser presas da acídia e não conseguir falar. Devemos assim orar com os dois, a boca e o intelecto. Mas devemos chamar igualmente com calma e sem perturbação, para que a voz não ferva e entrave a percepção e a atenção do intelecto, até que este, pronto para o trabalho, tenha progredido e recebido do Espírito o poder de orar total e intensamente. Então não haverá mais necessidade de falar com a boca, mesmo porque será impossível. Basta o intelecto para realizar a obra inteiramente. Como manter o intelecto desperto Saiba que ninguém consegue por si só dominar o intelecto, se antes não tiver sido dominado pelo Espírito. Não que, em seu movimento natural, ele seja desenfreado por natureza, mas sim, arrastado ao turbilhão pela negligência, ele aí se estabeleceu desde a origem. Pois, pela transgressão dos mandamentos de Deus que nos regeneraram, nós nos separamos de Deus, perdemos a percepção de Deus pelo sentido intelectual, e perdemos a união com Deus. Em seguida, o intelecto, perdido, separado de Deus, foi levado por toda parte como um cativo. Já não lhe é mais possível permanecer em repouso a não ser submetendo-se a Deus, permanecendo junto a ele e unindo-se a ele na alegria, orando a ele continuamente e com perseverança, e confiando em espírito a ele nossas quedas de todo dia, pois ele a tudo perdoa imediatamente àqueles que, com humildade e contrição, oram e invocam sempre seu santo nome. “Confessem o Senhor, foi dito, e invoquem seu santo nome[75]”. A retenção do sopro, a boca fechada, estas coisas detêm o intelecto em parte, e este logo volta a se dispersar. Quando chega a energia da prece, é ela que o mantém junto a si, o alegra e livra-o do cativeiro. Mas quando o intelecto está em oração, imóvel no coração, pode também acontecer que o pensamento de perca, ocupado com outras coisas. Este não está submetido a ninguém, senão aos perfeitos do Espírito Santo, que atingiram a imobilidade em Jesus Cristo. Como expulsar os pensamentos Jamais um noviço expulsará um pensamento que Deus já não tenha expulsado. Cabe aos fortes combater e expulsar os pensamentos. E mesmo eles não os expulsam por si sós. É com Deus, e revestidos de sua armadura, que eles conduzem o combate contra os pensamentos. Quando estes chegarem, apele para o Senhor, muitas vezes e com perseverança, e eles fugirão. Pois eles são suportam o calor que vem da prece para o coração, e fogem como se queimados pelo fogo. “Fustigue os que o combatem, diz João Clímaco, com o nome de Jesus[76]”. Pois nosso Deus é um fogo que consome[77] a perversidade. O Senhor apressa-se a auxiliar, e logo faz justiça aos que, com toda alma, o chamam dia e noite[78].
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Mas os que não possuem a energia da prece podem derrubar os pensamentos de outra maneira, imitando Moisés[79]. Se permanecer em pé, com as mãos e os olhos voltados para o céu, Deus fará fugir os pensamentos. Depois poderá se sentar e se dedicar à oração com perseverança. Isto é o que deve fazer aquele que ainda não adquiriu a força da oração. E mesmo aquele que tem esta energia, todas as vezes que enfrentar as paixões do corpo, a acídia e a prostituição, as mais duras e mais pesadas dentre as paixões, deve também estender as mãos para chamar o socorro contra elas. Mas para não cair na ilusão, ele não deve fazer isto por muito tempo e deve sentar-se novamente para que o inimigo não venha pela imaginação enganá-lo do alto, mostrando-lhe uma pretensa forma da verdade. Pois possuir um intelecto infalível em cima e embaixo, no coração e em todos os lugares, e mantê-lo a salvo, é coisa que só podem os puros e os perfeitos. Como salmodiar Uns dizem que se deve salmodiar de tempos em tempos, outros, com muita frequência, outros nunca. Não salmodie muito, para não ficar confuso. Nem nunca, por causa do relaxamento e da negligência que advirão. Imite aqueles que salmodiam de tempos em tempos: toda medida é excelente, segundo os sábios que são os loucos de Deus. A salmódia frequente é própria dos ativos, por causa de sua ignorância e porque ela traz a pena. Mas ela não convém aos hesiquiasta, aos quais basta orar a Deus apenas no coração e se afastar dos pensamentos. A hesíquia, segundo João Clímaco, consiste de fato na rejeição de todo e qualquer pensamento que venham dos sentidos e do intelecto[80]. Se esgotar toda sua força na salmódia frequente, o intelecto ficará fraco para orar com intensidade e perseverança. “Durante a noite, diz João Clímaco, dedique muito tempo à prece e pouco à salmódia[81]”. É o que você deve fazer. Quando, estando sentado, você perceber a oração agir e não cessar de se mover no coração, não a deixe para se levantar e salmodiar, a menos que ela o deixe por si só. Abandonando a Deus dentro de si, você se levantará para falar ao exterior, desviar-se-á do que é elevado para dirigir-se ao que está abaixo e criará uma confusão. Você perturbará o intelecto, tirando-o de sua calma. Pois é assim que o hesiquiasta guarda também a ação, mantendo-a na paz e na serenidade, como o indica seu próprio nome. Deus é paz[82], para além da confusão e do barulho. Nosso louvor, assim como nossa maneira de viver, deve ser angélica e não carnal. Salmodiar em plena voz não passa de um símbolo do apelo do intelecto. A salmódia nos foi dada devido à nossa negligência e nossa rusticidade, para nos orientar àquilo que é verdadeiro. Aqueles que não conhecem a prece que é, segundo João Clímaco, a fonte das virtudes que rega as plantas[83] – as potências da alma – devem salmodiar muito, sem medida, sempre com grande diversidade, jamais cessando, até que esta longa e penosa ação os conduza à contemplação e eles possam descobrir a prece intelectual ativa em seu interior. Pois uma coisa é o ato do hesiquiasta, outra a vida comum. Cada um, se perseverar sobre o caminho para o qual foi chamado[84], será salvo. Assim, quando eu o vejo regressar para o meio deles, receio não estar escrevendo senão para os fracos. Todos os que tentam viver a prece a partir daquilo que ouviram ou aprenderam não fazem mais do que se perder, se não tiverem quem os guie. Quem já provou da graça deve, segundo os Padres, salmodiar com medida e se dedicar sobretudo à prece. Mas nos momentos de despreocupação, ele deve salmodiar ou ler os livros dos Padres. O navio não precisa de remos quando o vento infla as velas e lhe traz uma brisa favorável para vagar pela superfície do mar salgado das paixões. Mas quando ele se detém, ele é empurrado pelos remos ou puxado por outro barco. Se alguns, que gostam de discussões, afirmam que os santos Padres, ou outros hoje em dia, permanecem em pé toda a noite e salmodiam continuamente, nós lhes responderemos com a Escritura que nada é perfeito em todos, que o ardor e a força podem faltar, e que o que é pequeno não necessariamente é pequeno para os grandes, nem o que é grande é necessariamente perfeito para os pequenos[85].
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Qualquer ação é fácil para os perfeitos. É por isso que nem todos o são, e que nem todos foram ativos. Nem todos seguiram a mesma via, nem a guardaram até o fim. Muitos passaram da vida ativa à contemplação e repousaram de tudo o mais, e penetraram no sábado conforme a lei espiritual[86]. Eles se alegraram apenas em Deus, saciados com as delícias divinas e, pela graça, ficaram incapazes de salmodiar ou de meditar qualquer outra coisa. Eles foram arrebatados por um tempo para fora de si mesmos, e atingiram parcialmente, como em garantia, o cimo daquilo a que aspiravam. Outros, na vida ativa até o fim, dormiram e foram salvos, e receberam sua recompensa no século futuro. Outros, que se embalsamaram após a morte como sinal de sua salvação, foram na morte cumulados de certeza, tendo tido durante sua vida toda esta graça do batismo, com a qual, por causa do aprisionamento ou da ignorância de seu intelecto, não puderam comungar. Outros se comprouveram em ambas as coisas, na prece e na salmódia, e assim obtiveram sucesso, transbordando de graça sempre ativa, sem jamais encontrar obstáculos. Outros conservaram até o fim a hesíquia, homens simples a quem bastou a simples oração, o que é muito bom, e viveram unidas a Deus, sós diante de Deus apenas. Os perfeitos, como dissemos, tudo podem em Cristo que lhes dá a força[87]. A ele a glória por todos os séculos dos éculos. Amém. Que dizer do ventre, que reina entre as paixões? Se você conseguir detê-lo de deixá-lo meio morto, não relaxe. Ele me dominou, bem-amado, e eu o servi como um escravo, como alguém que capitulou. Ele trabalha com os demônios, é a moradia das paixões. Por ele chegou-nos a queda, e por meio dele, se temperante, vemos a ressurreição. Por sua causa decaímos tanto da primeira como da segunda dignidade divina. Uma vez corrompida a dignidade original, havíamos sido renovados em Cristo, mas negligenciamos os mandamentos que conservam e aumentam a graça assegurando nosso progresso, e caímos agora para longe de Deus, mesmo se, em nossa ignorância, nos coloquemos acreditando estar com Deus. Os corpos se nutrem de maneiras bem diversas, como dizem os Padres. Um precisa de pouco, outro de muito, para sustentar sua força natural. Cada um, segundo sua força e seu estado, provê aquilo que lhe é necessário. Mas o hesiquiasta deve estar sempre desprovido, jamais saciado. Quando o peso do estômago vem perturbar o intelecto, é impossível orar com intensidade e pureza. A ingestão de numerosos alimentos leva o homem ao sono: ele quer dormir o mais depressa possível, e, no sono, inúmeras imaginações assaltam o intelecto. Quem quer encontrar a salvação e se esforça por viver na hesíquia para o Senhor, deve, em minha opinião, satisfazer-se a cada dia com uma fatia de pão e três ou quatro copos de água e de vinho, e, dentre os alimentos que se apresentarem, tomar um pouco de cada um a seu tempo, evitando a saciedade a fim de, ao mesmo tempo em que se alimenta sabiamente, escapar ao torpor que nos invade quando comemos de tudo; e ainda não deve desprezar as criaturas de Deus, que são excelentes [88], dando sempre graças por tudo. Este é o discernimento dos sábios. Quanto aos que são fracos na fé e na alma, é melhor para eles absterem-se de alimentos. Eles não creem que Deus os guarda, e o Apóstolo lhes ordena que não comam senão legumes[89]. Que posso dizer-lhe? Você é velho. A regra que você busca é uma carga pesada. Os mais jovens não podem permanecer no lugar e na medida. Como você irá se manter? Pois quando você come, você deve permanecer livre nem tudo. Se você for vencido, arrependa-se e retorne ao trabalho. Nunca deixe de fazer assim, caindo e levantando, condenando a si mesmo e não aos outros, e assim você obterá o repouso[90] e vencerá sabiamente por meio das quedas. Como diz a Escritura. Basta que você não ultrapasse o limite que colocamos. Porque nada fortifica tanto o corpo como o pão e a água. Já dizia o Profeta, menosprezando os demais alimentos: “Filho do homem, coma seu pão e beba sua água com moderação[91]”. O alimento tem três limites: a temperança, o contentamento e a saciedade. A temperança consiste em ter fome após tomar a refeição; o contentamento, em não ter fome mas não se sentir pesado; a saciedade, em
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sentir-se pesado. Mas comer após estar saciado é a porta da gulodice, pela qual entra a prostituição. Se você possuir este conhecimento preciso, escolha o melhor, na medida em que lhe for possível, e não ultrapasse os limites. É próprio dos perfeitos, para o Apóstolo, sentir fome e ser saciados[92], e ser fortes em tudo. Do erro, e de outros aspectos Compreenda, eu quero que você tenha um conhecimento preciso do erro, e que você saiba se proteger dele, para não ser ferido profundamente por ignorância e perder sua alma. A ignorância inclina facilmente o livre arbítrio do homem a se associar aos inimigos e sobretudo aos que os seguem. Os demônios se aproximam e cercam os noviços e os monges independentes, colocando-lhes armadilhas de pensamentos, fossos que os farão cair, e o chicote dos fantasmas. Sua cidadela está em poder dos bárbaros. E não devemos estranhar que alguns se tenham desorientado, que tenham perdido o espírito, que tenham admitido ou que admitam o erro, que vejam coisas estranhas à verdade, ou, por inexperiência ou ignorância, digam incongruências. É coisa comum que os simples, querendo falar da verdade e dizendo sem o saber uma coisa por outra, não conseguiram se expressar corretamente, perturbando muitas almas e, por sua desinteligência, lançaram sobre os hesiquiasta a vergonha e o ridículo. Nada há de espantoso, de fato, em que um noviço se engane, mesmo depois de numerosas penas. Isto aconteceu a muitos dos que buscaram e buscam a Deus, tanto antigamente como hoje em dia. Quem pretende ir a Deus e confessá-lo com toda pureza, e que se esforça por tê-lo em si, de forma impudente e temerária, é facilmente destruído pelos demônios e abandonado a si mesmo. Procurando com presunção e audácia coisas que ultrapassam sua própria condição, ele se esforça por chegar antes do tempo e se vangloria. Mas muitas vezes, movido pela compaixão, vendo em nós esta audácia para com as coisas elevadas, o Senhor não permite que sejamos tentados por muito tempo, a fim de que cada um, conhecendo sua própria presunção, retorne a si, antes de se tornar o opróbio dos demônios e de provocar nos homens risos ou lamentações, sobretudo aquele que deve buscar esta obra maravilhosa com paciência e humildade, e mais ainda com submissão, interrogando aos que têm experiência, para não colher contra sua vontade espinhos ao invés do trigo, e a perdição em lugar da salvação. Cabe aos fortes e aos perfeitos combater sempre a sós os demônios, levantando continuamente contra eles o glaivo do Espírito, que é a palavra de Deus[93]. Mas os fracos e os noviços devem escapar da morte fazendo de sua fuga sua cidadela, com temor e piedade: eles devem evitar o combate e toda audácia prematura. Quanto a você, se você estiver bem na hesíquia, esperando estar com Deus, quando você perceber uma imagem sensível ou intelectual, exterior ou interior, seja a própria figura de Cristo, ou a pretensa forma de um anjo ou de um santo, ou uma luz, desenhando-se e modelando-se em seu intelecto, não o aceite jamais. Pois o intelecto tem por si só, em sua natureza, a faculdade de imaginar. Ele pode facilmente dar forma àquilo que ele deseja, naqueles que ainda não estão completamente atentos. Ele prejudica a si mesmo. A lembrança daquilo que é bom e daquilo que é mau acaba por deixar totalmente sua marca na percepção do intelecto, levando-o à imaginação. Desta forma tornamo-nos imaginativos e não hesiquiastas. Por isso, vigie para não conceder sua fé e seu assentimento – mesmo se a coisa parecer boa – sem antes interrogar aqueles que têm experiência, e sem examinar longamente o assunto, a fim de não se prejudicar. Permaneça atento a esta coisa, e mantenha seu intelecto incolor e vazio de qualquer figura ou forma. Pois aquilo que Deus envia como prova para coroá-los, muitas vezes fez tombar os homens. Nosso Senhor quer testar as tendências de nossa liberdade. Aquele que, na reflexão ou nos sentidos, viu alguma coisa, mesmo vinda de Deus, e a recebeu sem referi-la aos que têm experiência, engana-se facilmente ou se enganará, pois se compraz aceitando a coisa. O noviço deve se agarrar à energia do coração, que não engana, e não admitir nada mais, até apaziguar as paixões. Deus não reprova aquele que, para não se enganar, permanece estritamente atento a si mesmo, mesmo que não receba o que vem dele
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sem antes interrogar e examinar longamente. Ele louva acima de tudo a sabedoria, mesmo que ele tenha às vezes censurado alguns. Não devemos fazer perguntas a todos, mas apenas a um a quem, pelo brilho de sua vida, foi confiada a conduta dos demais, o homem pobre que enriquece os outros[94], conforme a Escritura. Pois muitos que não tinham experiência prejudicaram inúmeros que não possuíam inteligência, e receberão seu julgamento após a morte. Nem todos podem conduzir os outros, mas apenas aqueles a quem, segundo o Apóstolo, foi dado o discernimento divino, o discernimento dos espíritos[95], que separa o melhor do pior com a espada da palavra. Cada um pode ter um conhecimento próprio, um discernimento natural, prático ou matemático, mas nem todos possuem o discernimento do espírito. Dizia o sábio Eclesiastes: “Os que vivem em paz com você são muitos. Mas somente um em mil pode aconselhá-lo[96]”. Não é pequena a batalha para encontrar um guia seguro nas obras, palavras e pensamentos. Podemos distinguir aquele que é seguro e que não se engana porque seus atos e seu julgamento são atestados pela divina Escritura, e que ele está certo naquilo que precisa ter em espírito. É uma grande força, com efeito, alcançar a evidência da verdade e ser purificado de tudo o que é contrário à graça. O diabo costuma dar aos seus erros (principalmente entre os noviços) a aparência de verdades, transformando seus vícios em virtudes espirituais. Quem se esforça por adquirir a prece pura deve assim caminhar na hesíquia com um grande temor, em luto, sob a condução daqueles que têm experiência e interrogando-os sempre. Ele deve chorar seus pecados todo o tempo, aflito e temendo a danação e a separação de Deus agora ou no século futuro. Quando o diabo vê alguém que vive aflito ele não permanece, temendo a humildade que provém do luto. Mas se alguém imagina presunçosamente atingir as coisas elevadas, seu desejo não é verdadeiro, mas satânico. O diabo o apanha facilmente em sua rede e o transforma em seu servidor. A arma suprema é a constância na oração e no luto, a fim de não tombar da alegria da prece na presunção, mas, tomando sobre si a pena que alegra o coração, permanecer a salvo. A prece infalível é o calor que acompanha a prece de Jesus que veio despejar fogo sobre a terra[97] de nossos corações. Ela queima as paixões como espinhos e dá à alma o regozijo e a alegria. Ela não vem nem da direita, nem da esquerda, nem do alto, mas jorra no coração como uma fonte de água que brota do Espírito que dá a vida. Não deseje encontrar ou possuir senão a ela em seu coração, guardando seu intelecto sempre livre de imagens, despojado de reflexões e de pensamentos, e não tema nada. Pois aquele que disse: “Coragem, sou eu, nada temam[98]”, está conosco. É a ele que pedimos que nos proteja. E quando invocamos a Deus, não devemos nem temer, nem gemer. Se alguns se perderam e perderam o espírito, considere que eles chegaram aí por sua independência e seu orgulho. Pois quem busca a Deus na submissão e na humildade, interrogando, jamais fará mal a si próprio, pela graça de Cristo que quer salvar a todos os homens[99]. A tentação, quando chega, é sempre uma prova e uma coroa. Pois Deus, pelos meios que só ele conhece, oferece sua ajuda. Àquele que se conduz corretamente e leva uma vida sem mácula, evitando o desejo de agradar aos homens e o orgulho, ainda que toda a falange dos demônios suscite contra ele miríades de tentações, nenhum mal será feito, dizem os Padres. Mas os que caminham com presunção e por sua própria vontade prejudicam a si mesmos facilmente. O hesiquiasta deve sempre conservar a via real. O excesso em tudo causa facilmente a autossuficiência, à qual segue-se depressa o erro. Retenha a expiração do intelecto, fechando um pouco a boca durante a prece, mas não a expiração das narinas como fazem os ignorantes, a fim de não se prejudicar inflando o orgulho. Existem três virtudes da hesíquia, que devem ser estritamente observadas, examinando sempre se vivemos sempre com elas ou se, enganados pelo esquecimento, não estamos caminhando à deriva. Estas são a
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temperança, o silêncio e a autocondenação, ou seja, a humildade. Elas contêm e protegem umas às outras, e delas a prece nasce e cresce continuamente. O início da graça na oração não vem para todos da mesma maneira. E o dom natural do Espírito, diz o Apóstolo, se revela e é conhecido de muitos modos, segundo sua vontade[100]. Ele se manifesta em nós como a Elias o Tesbita[101]. Em alguns, um espírito de temor, fendendo as montanhas das paixões e rompendo os rochedos, os corações duros, vem paralisar a carne de pavor e a deixa como morta. Em outros, um tremor, ou uma exultação imaterial e essencial, pois o que não possui ser nem substância não existe (é o que os Padres denominam com mais clareza “balanço”), estremece o coração. Em outros, enfim, sobretudo nos que progrediram na oração, Deus provoca uma brisa leve e pacífica de luz, Cristo se estabelece no coração, segundo o Apóstolo[102], e se revela misticamente em espírito. É por isso que Deus disse a Elias sobre o monte Horeb que o Senhor não estava nem num lugar nem noutro, nas ações parciais dos noviços, mas que o Senhor estava na leve brisa[103] de luz, e lhe mostrou a perfeição da prece. Que fazer quando o demônio se transforma em anjo de luz[104] e engana o homem? O homem necessita de muito discernimento para reconhecer a diferença entre o bem e o mal. Não se apresse em se livrar sozinho daquilo que lhe aparece, mas permaneça grave. Não guarde o bem senão depois de testá-lo longamente. E rejeite a malícia[105]. Primeiro você deve testar e discernir, e só depois crer. Saiba que existem obras evidentes da graça que o demônio não pode fazer, mesmo que se transforme. Ele não pode dar a doçura, a mansidão, a bondade, a humildade, o desprezo pelo mundo, nem deter os prazeres e as paixões: estas são ações da graça. A energia do demônio não passa de torpor, orgulho, preguiça e todas as formas de malícia. Do modo como agir em você, você saberá se a luz que brilha em sua alma é de Deus ou de Satanás. A alface parece com uma salada amarga; o vinagre aparentemente é como o vinho. Mas ao paladar, a boca conhece e discerne a diferença. O mesmo acontece com a alma: se ela tiver discernimento, ela conhecerá pelo sentido intelectual os carismas do Espírito Santo e os fantasmas de Satanás.
[1] Cf. I Tessalonicenses 4: 9. [2] Isaías 54: 13; João 6: 45. [3] Cf. II Coríntios 3: 3. [4] O batismo [5] Cf. Mateus 25: 29. [6] João 3: 6. [7] Cf. Gênesis 6: 3. [8] Cf. Salmo 67 (68): 12. [9] II Coríntios 13: 5. [10] Marcos o Asceta – Tratados espirituais e teológicos, IV, O batismo 15. [11] Cf. Sabedoria 1: 2. [12] Cf. Apocalipse 12: 2. [13] Cf. Hebreus 4: 12. [14] Cf. Romanos 8: 26. [15] Isaías 48: 18. [16] João 4: 14.
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[17] João 11: 34. [18] Cf. Salmo 113 (114): 6. [19] Cf. Provérbios 1: 7; Salmo 110 (111): 10. [20] Cf. Gênesis 4: 10-12. [21] Marcos o Asceta - Dos que pensam ser justificados pelas obras, 28. [22] Thalassius o Africano – Sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto III, 35. [23] Cf. I Coríntios 6: 17. [24] Cf. I Coríntios 12: 11. [25] Cf. Deuteronômio 4: 24. [26] Salmo 64 (65): 2. [27] Salmo 125 (126): 1 [28] Salmo 52 (53): 7. [29] Salmo 22 (23): 5. [30] Cf. Eclesiastes 11: 6. [31] Idem. [32] Eclesiástico 24: 20. [33] João Clímaco, A escada santa XX, 7. [34] Cf. Mateus 12: 45. [35] João Clímaco, A escada santa XXVIII, 62. [36] Gálatas 2: 20. [37] João 3: 8. [38] Cf. II Coríntios 1: 22. [39] Cf. Tiago 1: 21. [40] Mateus 10: 20. [41] João Clímaco, A escada santa XXVII, 24. [42] “Santo Deus, Santo poderoso, Santo imortal, tem piedade de mim”. [43] Barsanulfo e João de Gaza, Correspondência, carta 143. [44] João Clímaco, A escada santa XXVII, 47. [45] Cf. Eclesiástico 11: 21. [46] Provérbios 4: 7. [47] II Coríntios 13: 5. [48] Ato de contrição e arrependimento (gr. Metanoia) [49] Eclesiástico 34: 23. [50] I Coríntios 14: 15. [51] I Coríntios 14: 19. [52] João Clímaco, A escada santa XXVIII, 22. [53] João Clímaco, A escada santa XXVIII, 1. [54] João Clímaco, A escada santa XXVII, 63. [55] Isaac o Sírio, Obras espirituais, og. 211. [56] Tropário: Esta palavra de origem grega designa uma maneira de canto com semelhanças a hino, a Salmo Responsorial e a ladainha, e que se emprega, sobretudo, nos ritos orientais, acompanhando as procissões. Muitos deles são marianos. O tropário é como que uma antífona mais prolongada. Costuma ser formado por uma estrofe cantada pelo coro, um estribilho respondido pela comunidade, um versículo cantado por um solista, de novo o estribilho da comunidade (isto pode repetir-se várias vezes), e, no final, de novo a estrofe, às vezes cantada também em parte pela comunidade. Esta estrofe é mais longa que uma antífona, mais de tipo hímnico e lírico, enquanto que os versículos estão pensados à maneira de «tropos», cantados por um solista, com resposta mais breve da comunidade. É um género de canto, portanto, que conjuga bem os três protagonistas: a assembleia, o coro e o solista. Às vezes, os tropários têm formas parecidas aos responsórios do ofício de Leitura ou aos responsórios breves das outras Horas. Servem, sobretudo, como cânticos de entrada na celebração, como também depois das leituras e da homilia, à
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maneira de resumo e assimilação do escutado. São como comentários e desenvolvimentos poéticos das ideias da festa. [57] João Clímaco, A escada santa VII, 57. [58] Marcos o Asceta - Dos que pensam ser justificados pelas obras, 131. [59] São Basílio, Grande Regra 37. [60] Eclesiástico 36: 19. [61] João Clímaco, A escada santa XXVII, 94. [62] Cf. Gálatas 1: 10. [63] Mateus 25: 28-29. [64] Mateus 11: 12. [65] Cf. Isaías 21: 3. [66] Cf. Isaías 26: 17-18. [67] Cf. João 5: 19. [68] Cf. João 16: 13. [69] Cf. Colossenses 4: 6. [70] Cf. Mateus 11: 2. [71] Colossenses 4: 2. [72] Isaías 21: 3. [73] Cf. Mateus 11: 12. [74] Cf. I Coríntios 12: 3. [75] Salmo 104 (105): 1. [76] João Clímaco, A escada santa XX, 7. [77] Cf. Deuteronômio 4: 24. [78] Cf. Lucas 18: 7. [79] Cf. Êxodo 17: 11s. [80] João Clímaco, A escada santa XXVII, 52. [81] João Clímaco, A escada santa XXVII, 92. [82] Cf. Efésios 2: 14. [83] João Clímaco, A escada santa XXVIII, 1. [84] Cf. I Coríntios 7: 24 [85] João Clímaco, A escada santa XXVI, 75. [86] Cf. Êxodo 20: 10-11. [87] Cf. Filipenses 4: 13. [88] Cf. Gênesis 1: 31. [89] Cf. Romanos 14: 2. [90] Cf. Eclesiástico 21: 1. [91] Ezequiel 4: 16. [92] Cf. Filipenses 4: 12. [93] Cf. Efésios 6: 17. [94] Cf. I Coríntios 6: 10. [95] Cf. I Coríntios 12: 10. [96] Eclesiástico 6: 6. [97] Cf. Lucas 12: 49. [98] Mateus 14: 27. [99] Cf. I Timóteo 2: 4. [100] Hebreus 2: 4. [101] Cf. I Reis 19: 11-12. [102] Cf. Efésios 3: 17. [103] Cf. I Reis 19: 12. [104] Cf. II Coríntios 11: 14.
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[105] Cf. I Tessalonicenses 5: 21.
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TOMO II, VOLUME III
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GREGÓRIO PALAMAS Nosso Pai entre os Santos Gregório de Tessalônica viveu sob o reinado de Andrônico II Paleólogo, por volta do ano da graça de 1340. Deixando o mundo inteiro e tudo o que é do mundo, ele partiu de sua pátria, Constantinopla, para levar a vida monástica no Monte Athos. Dedicando-se à mais dura ascese, ligado apenas a Deus na mais extrema hesíquia, ele foi, como Deus, o espelho do Espírito Santo. Mais do que qualquer outro, ele alcançou o cume da ação e da contemplação. Sua inteligência iluminada pelos esplendores da visão de Deus, ele deixou à Igreja, como uma coluna da ortodoxia, escritos transbordantes de sabedoria e teologia. Alguns extratos dos seus escritos foram inseridos neste livro. Eles confiam ao leitor tesouros do verdadeiro conhecimento divino, de sabedoria espiritual e de perfeição. Pois não apenas este vidente, esta inteligência celeste escolheu o que se deve ler dos antigos santos, como, propondo o que ele conheceu sobrenaturalmente por si próprio por sua longa experiência e bemaventuradas provações, ele fez de seus escritos o próprio fruto da beleza dos népticos, de tal modo que ninguém pode imaginar que se trata aí de frutos de uma inteligência humana. Na verdade, a inteligência de Cristo e as vozes de Deus ultrapassam todo entendimento e toda reflexão. Por meio de seus escritos ele combateu corajosamente pelos santos hesiquiasta e pelos que se dedicam à sobriedade, à vigilância e à prece do intelecto. E por meio de suas demonstrações ele respondeu com muita ciência às palavras vazias e contrárias dos adversários quando estes tentaram destruir a verdade.
* A vida de Gregório Palamas se passou inteira nestes três lugares onde se concentrou e onde foi recapitulada, logo antes da catástrofe histórica, a herança milenar do Oriente cristão: Constantinopla, o Monte Athos e Tessalônica. Nascido em Constantinopla em 1296, monge no Monte Athos por volta de 1317, arcebispo de Tessalônica em 1347 até sua morte nesta mesma cidade em 1359, Gregório Palamas passou todo o seu tempo a ilustrar e a defender o que havia de mais secreto e mais puro na herança, e também o mais duro: o fundamento teológico e a experiência existencial do hesiquiasmo, esta interiorização das causas e dos efeitos da anacorese. Iniciado por Teolepto e Nicéforo, Gregório Palamas poderia, e deveria, como todos os hesiquiastas, não passar de um monge consagrado ao silêncio, à solidão, à edificação, com o intelecto todo absorto na prece do coração e na compaixão. Mas naquela ocasião o hesiquiasmo foi atacado diretamente em sua própria linha de frente – em Constantinopla, no Monte Athos e em Tessalônica – pelos adeptos de uma perspectiva intelectual que rompia com a densa rede de referências e de reflexões tecida durante dez séculos de tradição teológica e de exercício monástico. Gregório Palamas foi chamado a fazer frente, tanto
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na adversidade e na perseguição como no reconhecimento e na responsabilidade eclesiástica. Sua obra foi assim marcada em grande parte por uma controvérsia crucial sobre a relação entre o incriado e o criado, sobre o sentido do intelecto, sobre a compreensão de Deus, sobre o conhecimento do mundo e, finalmente, sobre o curso e a finalidade da civilização: um debate críptico, mas fundamental, na aurora dos tempos modernos. A Filocalia oferece desta obra considerável um conjunto de textos onde se cruzam a edificação e a controvérsia. Pela ordem: a carta a Xênia, o Decálogo das leis de Cristo, um extrato da Defesa dos santos hesiquiastas, três capítulos sobre a prece e a pureza do coração, os 150 capítulos físicos, teológicos, éticos e práticos e enfim o Tomo hagiorítico. A carta a Xênia, provavelmente escrita por volta de 1345, é uma exortação ao mesmo tempo delicada e rigorosa endereçada a uma velha higoumena para a instrução de suas monjas. Gregório Palamas fala aí das escolhas e dos combates: a virgindade, o estado de hesíquia, a morte para o mundo, a rejeição de toda vanglória, a renúncia a todo desejo que não se relacione com a glória de Deus. E ele define os fundamentos: a pobreza e a aflição, ou o luto, que chamam para as virtudes da humildade, da contrição, da temperança e, finalmente, para a transfiguração de toda pobreza e de toda aflição na beatitude, na consolação íntima, no Reino dos céus, aqui e então. Uma apologia clássica da vida monástica. No Decálogo das leis dadas por Cristo, Gregório Palamas remonta os mandamentos de Deus ao amor e à liberdade evangélica. Todas as leis de Moisés cabem no primeiro mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus”. Ora, o Senhor é Cristo. As proibições da lei não fazem mais do que balizar o caminho apertado que conduz à porta estreita: as leis encontram sua finalidade em Jesus Cristo. A partir daí a conduta cristã é menos guiada pela observância do que pela imantação. A lei não foi dada senão para ser cumprida em estado de graça. A exigência evangélica a empurra para além de seus próprios limites, onde já não cabe se impor à vida. Daqui por diante é a vida que passa a ser consagrada a Deus na pessoa de Cristo. “Guarde os preceitos, diz Palamas, para depositar na alma os tesouros da piedade”. O extrato do tratado Pela defesa dos santos hesiquiastas, escrito por volta de 1338, trata do exercício do intelecto. Estamos aqui no coração do debate que opôs Gregório Palamas e os hesiquiastas ao seu primeiro adversário, o calabrês Barlaam. O intelecto deve ser exercido naturalmente em seu “movimento retilíneo”, através dos sentidos para o exterior, na direção do mundo, ou, ao contrário, em seu “movimento circular”, fundamentalmente retornando ao lugar de Deus, ao coração, por um “enovelamento que unifica”? Aqui Gregório Palamas retoma e justifica o “método” de Nicéforo: a prece hesiquiasta não é outra, para ele, do que a oração do Publicano, a única comprovada pelo Evangelho. O intelecto humano se une ao intelecto divino, ao intelecto anterior, sem outro conhecimento, daqui em diante, do que o do fogo, o qual, diz ele, “retorna à origem”. Os três capítulos Sobre a prece e a pureza do coração lembram em primeiro lugar as condições desta prece e desta pureza, que são a humildade e o luto. A partir daí eles significam o encaminhamento e a finalidade. “O divino, diz Palamas, é compaixão e abismo de doçura”. Ora, é impossível descobrir a compaixão sem a prece do coração, e é impossível chegar à prece do coração sem um “retorno do intelecto sobre si mesmo”, a única coisa capaz de manter o coração puro e de permitir, com a ajuda da oração, o arrebatamento contemplativo: “Unir-se à unidade trinitária da divina origem”. Redigidos provavelmente por volta de 1350, os 150 capítulos físicos, teológicos, éticos e práticos constituem certamente, junto com as Tríades para a defesa dos santos hesiquiastas, a obra maior de Gregório Palamas, então arcebispo de Tessalônica. Obra sem medida comum com a monumental suma teológica que acabara de adotar o Ocidente cristão, mas que drenava e assumia um milênio de herança, apresentando as conexões que unem Deus incriado (a teologia), o mundo criado (a física) e a meditação
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humana entre o criado e o incriado (a ética e a prática, ou ascese), até a deificação do homem diretamente na luz incriada, não na essência inacessível de Deus, mas nas suas energias participáveis. Os primeiros capítulos (de 1 a 33) são consagrados ao mundo natural criado, conhecimento “parcial” que passa pelo homem e desemboca no próprio homem. O homem é assim chamado a conhecer a si mesmo, e esta é, segundo Gregório Palamas, “um conhecimento mais elevado do que o estudo da natureza”. O homem, imagem de Deus, passa a se devotar ao conhecimento de Deus, à teologia, à sua consagração pessoal a Deus por meio da ética e da ascese (capítulos de 34 a 63). O final da obra (capítulos de 64 a 150) retoma, talvez palavra por palavra, as controvérsias anteriores com Barlaam e sobretudo com o bizantino Gregório Acindino e seus adeptos, a quem a Filocalia trata como “adversários”. Sobre a essência e as energias incriada de Deus, sobre as Hipóstases divinas, sobre a luz do Tabor, sobre a deificação, Gregório Palamas, citando abundantemente os Padres da Igreja, recorda e estabelece lhanamente a doutrina ortodoxa. O Tomo hagiorítico (ou Tomo da Montanha Sagrada) foi escrito para ser apresentado no Sínodo de Constantinopla em 1341, e responde às acusações de Barlaam. Gregório Palamas chama aqui os monges do Montes Athos para sustentar o combate que junto com eles conduz para demonstrar o perfeito fundamento da doutrina ortodoxa sobre a osmose cristã do criado e do incriado. Apoiando-se no testemunho dos Padres da Igreja e na experiência dos santos, ele afirma que a graça deificante do Espírito, em suas energias incriadas, pode tocar o homem desde já, além de toda imitação e de toda disposição natural, mas que em nenhum caso poderia ser deificado diretamente dentro da essência inacessível de Deus. Assim ele denuncia a inconsequência dos que, recusando a possibilidade real e atual da osmose deificante graças ao caráter incriado e participável das energias do Espírito Santo – ou seja, a possibilidade do impossível – prometiam transgredir o impossível, ou a fazer do possível um impasse. Um texto claro e cabal, que contribuiu para as decisões do Sínodo. Gregório Palamas se coloca aqui como fizeram Diádoco de Foticéia e Máximo o Confessor. Assim como Diádoco, no século V, sustentava na ortodoxia os anacoretas egípcios, no século XIV Palamas defendeu os hesiquiastas athonitas em nome da mesma ortodoxia. E, como Máximo no século VII, ele proclamou a fé ortodoxa até a arena política onde se debatia o futuro da herança bizantina. Ele próprio conheceu a prisão. Mas seu testemunho era fiel e verdadeiro. Ele prolongou, recapitulou e realizou dez séculos de tradição teológica e ao final obteve o ganho de causa. Porém a civilização bizantina, incapaz a esta altura de se manter sozinha, não podia deixar de desaparecer, e o máximo que pode foi manifestar, profeticamente, seu último baluarte: a vida e a obra de Gregório Palamas.
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – Carta a monja xênia (Sobre as paixões, as virtudes e sobre o que gera o exercício do Intelecto).
DE NOSSO PAI ENTRE OS SANTOS GREGÓRIO, METROPOLITA DE TESSALÔNICA
À NOBRE MONJA XÊNIA SOBRE AS PAIXÕES E AS VIRTUDES, E SOBRE O QUE GERA O EXERCÍCIO DO INTELECTO
Os que pretendem verdadeiramente viver na solidão devem ter não apenas uma aversão ao contato com a multidão, mas até ao contato com aqueles que levam uma vida semelhante à sua própria. Pois este contato interrompe a continuidade da relação tão agradável que temos com Deus e quebra a unidade do intelecto, esta unidade que faz o verdadeiro monge, o monge interior: ele desdobra esta unidade, e às vezes a rompe. É por isso que um Padre, interrogado sobre a razão de fugir aos homens, respondeu: “Eu não consigo estar com Deus ao mesmo tempo em que em encontro com os homens[1]”. Outro, que explica esta reação pela própria experiência, colocou em questão não só o contato com os homens, mas o próprio fato de vê-los, na medida em que isto pode destruir o equilíbrio e a calma dos pensamentos dos que vivem a hesíquia. E, se levarmos este exame com todo o rigor, mesmo a lembrança da relação ou a espera pela visita e pelo reencontro tiram do repouso os pensamentos da alma. Quanto ao que confia suas palavras à escrita, este cerca seu intelecto de um cuidado mais atento. Caso faça parte dos que progrediram e que adquiriram o amor de Deus para dar força à sua alma, aquele que escreve possui em si este amor ativo, mas não de forma pura e diretamente. E se faz parte dos que ainda caem nas numerosas enfermidades e paixões da alma – como eu próprio – e que precisam constantemente clamar a Deus “Cure-me, por que pequei[2]”, não é razoável que tal homem relaxe a oração antes de ser curado, e que se ocupe voluntariamente de outra coisa. Por outro lado, através do que escreve ele se dirige a pessoas que não estão presentes e transmite a um grande número de homens e épocas, às vezes até a quem não desejaria, a mensagem contida nestes textos feitos para permanecer depois de sua morte. É por isso que muitos Padres que chegaram ao cume da hesíquia não se dedicaram a escrever, embora pudessem ter exposto grandes coisas e coisas muito úteis. Quanto a mim, desprovido de rigor nas coisas, sempre tive o hábito de escrever, mas pela pressão da necessidade. Ora, atualmente, alguns que viram com maus olhos meus textos e que procuraram motivos para me prejudicar, me tornaram ainda mais reservado. Tais pessoas, segundo o grande Denis[3], têm um pendor pelos elementos e pelos textos ininteligíveis, assim como por sílabas e palavras desconhecidas, que não penetram na inteligência de suas almas. Ora, é irrazoável e descabido, e não é próprio de quem pretende compreender o divino, ligar, não para o poder do objetivo, mas para as palavras. Mas eu suporto sua reprovação com toda justiça, por que sei que não escrevo em desacordo com os Padres, pois a tradição, pela graça de Cristo, está guardada em meus escritos, e que escrevi sobre coisas das quais não sou digno, como se fosse Oza, que tentou endireitar pela palavra o carro tombado da verdade[4]. Isto por que a sanção viria para mim não pela cólera, mas como uma correção na medida do que tivesse escrito. É por isso que aqueles que nos atacaram nada puderam nos fazer. E mesmo isto está ligado à minha indignidade: por que eu não fui digno nem capaz de sofrer pela verdade, nem de participar desta maneira da felicidade dos santos. Não foi o que aconteceu como nosso Padre Crisóstomo, ele que nos céus foi unido à Igreja dos primogênitos[5] quando ainda vivia revestido de um corpo, por haver ilustrado com seus escritos a piedade com toda certeza, com clareza e uma doçura de mel, não foi ele, este tão grande homem, afastado da Igreja e condenado ao exílio, acusado de escrever e de professar as opiniões de Orígenes? E 949
TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – Carta a monja xênia (Sobre as paixões, as virtudes e sobre o que gera o exercício do Intelecto).
Pedro, o corifeu do coração eminente dos discípulos do Senhor, disse que os ignorantes de então desnaturavam, para sua própria perdição, o que era de difícil compreensão nas cartas de Paulo[6]. Devido à pequena agressão por parte dos que me atacaram, embora tenham sido todos derrubados, eu teria podido, pensei, renunciar totalmente a escrever, se não tivesse você naquele momento, ó santa anciã, me pedido em cartas e bilhetes, até me persuadir a por mãos a obra enviando a você palavras de encorajamento, ainda que você não precise de exortação. Pois você possui, pela graça de Cristo, com a velhice trazida pela idade, a inteligência venerável e a lei dos santos mandamentos que lhe foram dados pela ação e a experiência de muitos anos ao longo dos quais você dividiu sua vida todo o tempo entre a hesíquia e a obediência, tendo, por meio delas, tornado as tábuas da alma lisas e próprias para receber e conservar os caracteres divinos. Esta é a cidadela da alma, a cidadela fortificada pelo desejo do ensinamento espiritual, jamais saciada. É por isso que a sabedoria diz de si mesma: “Os que se alimentam de mim ainda terão fome[7]”. E o Senhor, que coloca este desejo nas almas, disse a respeito de Maria que a boa parte que ela escolheu jamais lhe seria tirada[8]. E é a você igualmente que devemos aplicar estas palavras, para as filhas do grande Rei que levam a vida sob a sua conduta, e em especial para a inteligência com que você deseja ser esposa d’Aquele que dispensa a incorruptibilidade. É verdade que você o imita. Assim como ele tomou verdadeiramente por nós a nossa forma, também você toma hoje o rosto daqueles a quem você conduz e que pedem para ser ensinadas. E eu também, embora não me seja fácil fazer discursos e ainda mais estes discursos, mas por causa da obediência e do mandamento de dar a quem pede[9], irei agora desenvolver minha exposição, quitando a dívida do amor de Cristo. Saiba então, santa anciã, ou antes, as jovens monjas que com você aprendem a levar a vida segundo Deus: existe uma morte da alma imortal por natureza. Assim é que o bem-amado Teólogo disse: “Existe um pecado que conduz à morte, e um que não leva à morte[10]”. Ele se referia aqui, com certeza, à morte da alma. Também o grande Paulo disse: “A tristeza segundo o mundo suscita a morte[11]”; mais uma vez, trata-se da morte da alma. E ainda: “Desperte, você que dorme, levante-se de entre os mortos e Cristo o cumulará de luz[12]” De entre quais mortos lhe é ordenado levantar? Certamente, de entre aqueles que estão mortos sob o poder das concupiscências da alma, estas concupiscências que fazem guerra à alma[13]. É por isso que o Senhor chama de mortos aos que vivem neste mundo vão. Ao discípulo que o interrogou ele sequer permitiu que fosse enterrar o próprio pai, ordenando que o seguisse, deixando que os mortos enterrassem seus mortos[14]. O Senhor chamou aqui de mortos aos vivos que estão mortos em suas almas. Pois, assim como a separação da alma em relação ao corpo significa a morte para o corpo, também a separação de Deus em relação à alma representa a morte da alma. Esta morte, a da alma, é que é propriamente a morte. É a esta morte que Deus se referiu no mandamento dado no Paraíso, quando disse a Adão: “No dia em que você comer do fruto da árvore proibida, você morrerá[15]”. Foi então que a alma de Adão, separada de Deus, foi levada à morte pela transgressão. A partir daí ele viveu em seu corpo até a idade de 930 anos[16]. Ora, a morte que sobreveio na alma pela transgressão não apenas corrompeu a própria alma, tornando o homem maldito, como ainda oprimiu o corpo com penas e paixões, tornando-o corruptível e levando-o finalmente à morte. Então, de fato, depois da morte do homem interior por causa da transgressão, Adão ouviu: “A terra será maldita pelas suas obras. Ela dará espinhos e ervas daninhas. Você comerá seu pão com o suor do seu rosto, até que retorne à terra de onde você foi tirado. Pois você é terra, e à terra voltará[17]”. E mesmo que no decurso deste novo nascimento futuro, na ressurreição dos justos, os corpos dos iníquos e dos pecadores se levantarem, será para que sejam atirados à segunda morte[18], ao castigo eternos, ao verme que não dorme jamais[19], ao ranger de dentes[20], às trevas exteriores[21] e tangíveis, à obscura e inextinguível Geena de fogo[22], segundo o profeta que disse: “Os iníquos e os pecadores serão queimados, e ninguém haverá que lhes extinga o fogo[23]”. Pois esta é a segunda morte, como nos ensinou João no Apocalipse. E escute também o que disse o grande Paulo: “Se, pelo espírito, vocês derem morte às obras
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do corpo, viverão[24]”. Ele fala aqui da vida e da morte no século futuro: da vida que é a fruição no Reino eterno e da morte que é a danação perpétua. E esta é propriamente a morte: que a alma seja separada da graça divina e unida ao pecado. É desta morte terrível que devem fugir aqueles que têm inteligência. É também esta morte que, mais do que os castigos da Geena, aterroriza os que procuram o bem. Também nós fujamos desta morte com todas as nossas forças. Rejeitemos tudo, afastemos tudo, renunciemos a tudo, às nossas relações, às nossas ações, às nossas vontades, a tudo o que nos arrasta para baixo, que nos separa de Deus e que pode nos causar esta morte. Pois aquele que a teme e que dela se protege não temerá a morte que virá, a morte da carne: quem se liga ao irredutível mais do que à morte terá em si a verdadeira vida. Pois, assim como a morte da alma é a verdadeira morte, a vida da alma é a verdadeira vida. A vida da alma é a união com Deus, do mesmo modo como a vida do corpo é a união com a alma. Pois, assim como foi pela transgressão do mandamento de Deus que a alma separada encontrou a morte, é pela obediência ao mandamento que a alma novamente unida a Deus é revivificada. É por isso que o Senhor disse nos Evangelhos: “As palavras que eu digo são Espírito e vida[25]”. É também o que lhe disse Pedro, que aprendera com sua própria experiência: “Você tem as palavras da vida[26]”. Mas as palavras da vida eterna são para quem as escuta; para os que transgredem, este mandamento de vida conduz à morte[27]. Foi assim com os Apóstolos: o bom odor de Cristo foi para uns um odor de morte que levava à morte, e para outros um odor de vida que conduzia à vida[28]. De resto, esta vida não se resume à vida da alma, mas inclui também a do corpo. Pois ela imortaliza a este igualmente pela ressurreição, a partir do momento em que ela liberta não apenas da mortalidade, mas também da morte sem fim – ou seja, deste castigo futuro. Com efeito, ela concede o dom da vida eterna em Cristo, desembaraçada de toda pena, de toda enfermidade, de toda tristeza, verdadeiramente imortal. Pois assim como a morte do corpo, a dissolução na terra e o retorno ao pó se seguiram à morte da alma – a dissolução e o pecado – e a condenação da alma ao inferno se seguiu à morte do corpo, também a ressurreição do corpo novamente unido à alma seguir-se-á à ressurreição da alma, vale dizer, o retorno ao corpo pela obediência ao mandamento divino. E esta ressurreição será ela própria seguida pela verdadeira incorruptibilidade e pela eternidade da qual desfrutarão com ele os que tenham se tornados dignos de Deus, de carnais que eram tornados espirituais e levando no céu a vida dos anjos divinos. Pois foi dito que seremos arrebatados até as nuvens ao encontro do Senhor no espeço, e que a partir daí estaremos sempre com o Senhor[29]. Com efeito, assim como o Filho de Deus, que se tornou homem por amor ao homem e morreu na carne, tendo sua alma separada do corpo mas não separada da divindade – e é por isso que seu corpo ressuscitado retornou aos céus em glória –, também os que viveram aqui segundo Deus, quando se virem separados do corpo, mas não separados de Deus, serão assumidos em seus corpos junto a Deus na ressurreição: eles entrarão com indizível alegria onde Jesus entrou por nós como nosso precursor[30], e desfrutarão da glória que se revelará em Cristo[31]. Pois eles não participarão apenas da ressurreição, mas terão parte também na ascensão do Senhor e em toda a vida divina. Mas o mesmo não acontecerá com os que aqui tenham vivido segundo a carne: na hora do êxodo eles não estarão em comunhão com Deus. Pois, se é verdade que todos ressuscitarão, foi dito que cada um ressuscitará em sua ordem própria[32]. Aquele que, pelo Espírito, houver levado à morte aqui em baixo as ações do corpo, viverá no além a vida divina e verdadeiramente eterna com Cristo. Mas quem, pelas concupiscências e paixões da carne tiver levado à morte o Espírito aqui em baixo, será condenado no além, junto com o artesão e executor do mal, e será entregue ao insuportável e irresistível castigo, ou seja, à segunda morte irremediável[33]. Pois aonde estão as raízes da verdadeira morte, aquela que suscita e provoca na alma e no corpo a morte temporal e a morte eterna? Não estão elas no país da vida? É por isso que imediatamente o homem foi condenado ao exílio fora do Paraíso de Deus: sua vida trazia em si a morte e não estava de acordo com o Paraíso. Deste modo, a verdadeira vida, aquela que suscita na alma e no corpo a vida que é verdadeiramente imortal, terá suas raízes neste lugar: no lugar da morte.
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Quem não se esforça por possuir em sua alma aqui em baixo a verdadeira vida, que não se iluda [34] com a vã esperança de recebê-la no além. Também não espere receber neste momento o amor que Deus dedica ao homem. Pois este será o tempo da retribuição e do castigo[35], não da compaixão e do amor pelo homem: o tempo da revelação do ardor, da cólera e do justo julgamento de Deus: o tempo em que ele mostrará o poder de sua mão erguida[36] prestes a castigar os indóceis. Infeliz daquele que cair nas mãos do Deus vivo[37]! Infeliz daquele que lá provar do ardor do Senhor, daquele que por temor a Deus não tenha conhecido aqui em baixo o poder de sua cólera e que por suas obras não tenha buscado previamente seu amor pelo homem: pois é isto que foi assinalado ao tempo presente. E foi certamente para isto que Deus nos concedeu esta vida, e no-la deu como um lugar de arrependimento. Pois se não fosse assim, mal tivesse o homem pecado e já seria provado desta vida. E então, de que serviria ela? É por isso que tampouco o desespero tem lugar entre os homens, mesmo se o maligno, de muitas maneiras, o inspira não apenas aos que vivem na indiferença, mas às vezes até aos que combatem. Pois dado que o tempo da vida é o tempo do arrependimento, esta mesma vida, embora submetida ao pecado, para quem deseja retornar a Deus, responde ao nosso acolhimento junto a ele. Pois aqui em baixo a liberdade e a vida andam de mãos dadas. Como a matéria, o caminho da vida revelada do alto e o caminho da morte estão cada qual submetidos à liberdade de escolher ou de fugir, conforme queiramos adquirir um ou outro, na medida do possível. Onde teria lugar o desespero, se a qualquer tempo e quando se queira, todos podem adquirir a vida eterna? Vê a grandeza do amor que Deus dedica ao homem? Por um juízo justo, ele não usa seu poder contra nós que fomos infiéis, mas, pacientemente, ele nos dá tempo para o retorno. Nestes tempos de paciência, ele nos concede o poder, se assim o quisermos, de ser adotados por ele. Eu disse adotados? Ele nos concede unirmo-nos a ele e nos tornarmos com ele um só Espírito[38]. Mas mesmo nestes tempos de paciência, se caminharmos sobre a via contrária e se amarmos mais a morte do que a verdadeira vida, mesmo assim Deus não nos retirará o poder que nos concedeu. Não apenas não o retirará, como ainda o fará reviver. Ele nos rodeará, buscando e retornando às obras da vida, segundo a parábola da vinha[39], da manhã até o entardecer desta existência. Mas quem é este que chama e que paga o salário? O Pai de nosso Senhor Jesus Cristo e o Deus de toda consolação[40]. E quem chama para trabalhar nesta vinha? O Filho de Deus, que disse: “Eu sou a vinha[41]”. Pois ninguém pode achegar-se a Cristo, como ele próprio disse no Evangelho, se o Pai não o atrair[42] primeiro. E quem são os ramos? Nós. Pois ouça o que foi dito: “Vocês são os ramos, meu Pai é o vinhateiro[43]”. É, portanto, o Pai, que, por meio do Filho que nos reconcilia com ele sem considerar nossas faltas[44], nos chama, não por que trabalhamos em obras descabidas, mas por que não trabalhamos – embora o ócio seja um pecado – pois prestaremos conta de toda palavra vã[45]. Mas como eu disse, Deus, passando por cima das faltas cometidas por cada qual, nos chama ainda e sempre. E para que nos chama ele? Para trabalhar na vinha: vale dizer, para que nos ocupemos dos ramos, ou seja, de nós mesmos. A seguir – incomparável grandeza do amor pelo homem! – ele nos promete um salário e nos paga, a nós que penamos por nossa própria causa. Ele diz: “Venham, recebam a vida eterna que eu concedo em abundância. Eu pagarei um salário – pois sou eu que lhes devo – pelas penas de sua viagem e por sua vontade de receber de mim esta vida”. Quem não deve o preço de seu resgate Àquele que o libertou da morte? Quem não dá graças Àquele que lhe deu a vida? Mas é ele que nos promete adiantar um salário, e um salário indizível. “Eu vim, disse ele, para que eles tenham vida, e que a tenham em abundância[46]”. E no que consiste esta abundância? Não apenas ser e viver com ele, mas nos tornarmos para ele irmãos e coerdeiros. Esta abundância, ao que parece, é o salário dado aos que correm para a vinha vivificante, que se tornam ramos desta vinha, que penam por si próprios e cultivam a si mesmos. Mas o que fazem eles? Em primeiro lugar, eles retiram tudo o que está demais e que não contribui para o desenvolvimento, e também tudo o que impede a vinha de dar frutos dignos da divina colheita. E o que é este demais? A riqueza, as delícias do mundo, a vanglória, tudo o que flui e passa, toda paixão infame e má da alma e do corpo, todas as inutilidades trazidas pela distração dos pensamentos,
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tudo o que, naquilo que escutamos, vemos e dizemos, pode introduzir o mal em nossas almas. Pois se não fizermos o enorme esforço de arrancar tudo isto e podar a árvore do coração, não poderemos dar frutos na vida eterna[47]. Os que levam a vida conjugal podem se esforçar para alcançar esta pureza, mas será bem mais difícil. É por isso que aqueles que, desde a sua juventude, experimentaram a benevolência de Deus, podem melhor discernir esta vida (espiritual) com os olhos de seu intelecto e são presos pelos bens que nela se encontram, e assim fogem do casamento, uma vez que na ressurreição ninguém casa nem desposa, mas se tornam todos como anjos de Deus[48]. Assim é que quem deseja ser como um anjo de Deus e se assemelhar aqui em baixo ao filho desta ressurreição[49], deve se colocar acima da união dos corpos, considerando que foi a esposa quem manifestou o pecado dando-lhe espaço no princípio[50]. Portanto, aqueles que não querem dar por si mesmos nenhum pretexto ao adversário[51], devem recusar o casamento. Mas se é difícil dominar o corpo e conduzi-lo à virtude, ou melhor, se nos o trazemos com uma oposição inata, como, na medida em que aumentamos a dificuldade em nos dirigirmos para a virtude, nos confiaremos a Deus, ligados que estamos a um sem-número de outros corpos? E como poderá ter liberdade, esta que nos é ordenado buscar com ardor, aquela que, pelos laços naturais, se liga a um marido, aos filhos e a todos os que lhe são próximos pelo sangue? Como poderá se colocar sem mais cuidados junto ao Senhor, aquela que está engajada em cuidar de tantas pessoas: Como poderá estar calma, ligada que está a uma multidão de gente? É por isso que aquela que é verdadeiramente virgem e que se consagrou Àquele que é também ele virgem, que nasceu de uma virgem e que é o esposo das almas que vivem na virgindade, foge não apenas do casamento da carne, mas da própria frequentação do mundo, renunciando a todo parentesco, até que finalmente possa dizer, como Pedro, como toda a segurança, disse a Cristo: “Nós deixamos tudo para segui-lo[52]”. E se uma esposa terrestre abandona pai e mãe por um esposo mortal, ligando-se a ele, segundo a Escritura[53], o que há de extraordinário em que uma virgem os abandone para uma morada nupcial e um esposo que está acima do mundo? Como poderá ela ter parentescos sobre a terra, ela cuja vida se passa nos céus[54]? Como poderá ela, que é filha não da carne, mas do Espírito, ter pai e mãe de carne e irmãos de sangue? Como poderá aquela que fugiu do próprio corpo e que ainda foge tanto quanto lhe é possível, por ter rejeitado a vida na carne, numa palavra, como poderá manter relações com corpos que lhe são estranhos? Se a semelhança produz a amizade, como se diz, e se todo ser abraça o semelhante, como poderá a virgem assemelhar-se aos que ama, e assim recair na doença do amor pelo mundo? “O amor pelo mundo é inimigo de Deus[55]”, disse Paulo, ele que enfeitou a noiva para levá-la à câmara espiritual das núpcias. A virgem que escolher o mundo, não apenas perderá o Esposo que está acima do mundo, como ainda correrá o risco de sentir aversão por ele. Não se espante nem se aflija pelo fato de que a Escritura não condena os que são casados quando estes se ocupam das coisas do mundo e não das coisas do Senhor[56], mas se, aos que prometeram a Deus permanecer virgens, ela proibiu tocar o que é do mundo e a estes não permite que vivam no relaxamento. E, no entanto, é assim que Paulo se dirige aos esposos: “O tempo é curto. Daqui em diante, é melhor que aqueles que têm esposas ajam como se não tivessem, e que os que usufruem do mundo ajam como se não o fizessem[57]”; este, penso eu, é um combate mais difícil do que o da virgindade. Pois a experiência demonstra que o jejum é mais fácil do que o é a temperança quando se vive entre delícias e bebidas. E diremos algo justo e verdadeiro se afirmarmos que, se alguém não escolhe ser salvo, não há o que possamos lhe dizer. Mas a quem se preocupa de sua própria salvação, saiba que a vida levada em virgindade é mais eficaz e menos penosa do que a vida conjugal. Mas deixemos isto de lado, virgem, esposa de Cristo, ramo da vinha da vida, e considere o que foi dito mais acima. Pois o Senhor afirma: “Eu sou a vinha, vocês são os ramos, meu Pai é o vinhateiro. Todo galho que em mim der fruto, ele o podará, para que dê ainda mais [58]”. Faça dos cuidados que ele tem para com você o signo de sua virgindade e do amor que lhe tem o Esposo. Alegre-se, e em troca se esforce por
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ser-lhe dócil. É quando acrescentamos chumbo ao ouro que podemos dizer se ele é falso ou não; mas quando o chumbo é revestido de pó de ouro fundido, este parece ainda mais brilhante e rutilante. Assim é que aquelas que já não são virgens a olham com nostalgia, ó virgem, a você e às suas obras, que para elas são uma glória; mas que você as olhe com nostalgia, seria uma desonra; por que seu desejo a faria retornar ao mundo, primeiro por que, tendo morrido para o mundo, você estaria mantendo relações com quem vive no mundo, vivendo com eles; segundo por que, ligando-se a eles, você desejaria o mesmo que eles desejam para si mesmos e para os seus próximos: abundância de toda espécie de bens que se pode ter nesta vida, a riqueza, a aparência, a glória e a alegria que estas coisas trazem. E desta maneira você se afastaria da vontade de seu Esposo. Tudo isto ele próprio considerou nos Evangelhos como sendo causas de infelicidade, ao dizer: “Infelizes de vocês, os ricos, infelizes os que se riem, os que estão saciados, infelizes quando de vocês falarem bem todos os homens[59]”. Mas como coloca ele a infelicidade sobre tais pessoas? Não será porque suas almas estão mortas? Que parentesco pode ligar aos mortos a esposa da vida? O que pode unir aos que caminham por vias contrárias? Pois a via pela qual eles caminham é larga e espaçosa [60]. Se estes não se detiverem, mesclando às suas vidas um pouco do que existe em você, cairão totalmente na perdição, enquanto que você entrará pela porta estreita e pelo caminho apertado[61] que conduzem à vida. Ora, ninguém poderá passar pela porta estreita se se mantiver referenciado aos faustos da glória, às efusões do prazer, aos encargos do dinheiro e das posses. E não pense que este caminho, do qual você ouvir dizer que é largo, escapa da tristeza, pois ele conduz a muitas e pesadas infelicidades. Foi dito que ele é largo e espaçoso, por que muitos passam por ele[62], cada qual rodeado por uma mistura desordenada da matéria que escoa. Mas, virgem, sua porta é estreita: duas pessoas não podem passar juntas por ela. Assim é que muitas que estavam conciliadas com o mundo, ao se tornar viúvas, sós, separadas de seus esposos, renunciaram à vida, imitando a sua vida que está acima do mundo, e escolheram percorrer o seu caminho para tomar parte da sua coroa: são elas a quem Paulo ordena que honremos[63], por que perseveraram na súplica e na oração, esperando em Deus. Pois se a esta vida está ligada uma dose de aflição, ela é também uma fonte de consolação, uma porta para o Reino dos céus e uma causa de salvação. As delícias e as aflições lhe são igualmente mortais. Com efeito, foi dito que a tristeza segundo o mundo suscita a morte, mas que a tristeza conforme a Deus suscita um arrependimento que conduz à salvação e que não lamentaremos[64]. É por isso que o Senhor louva aquilo que é contrário aos bens deste mundo, quando diz: “Bemaventurados os pobres em espírito, pois deles será o Reino dos céus[65]”. Mas porque, depois de haver dito “Bem-aventurados os pobres”, ele acrescentou “em espírito”? Para mostrar que ele louva e acolhe a modéstia da alma. E porque não disse ele “Bem-aventurados os pobres de espírito” – pois assim estaria se referindo àquilo que está dentro dos limites do intelecto – mas “Bem-aventurados os pobres em espírito”? Para nos ensinar que a pobreza do corpo pode ser chamada de bem-aventurada e que ela abre para o Reino dos céus, desde que assumida em função da humildade da alma, desde que unida a ela, extraindo dela sua origem. Pois ao louvar os pobres em espírito, ele mostrou admiravelmente quais são, por assim dizer, a raiz e a fonte da pobreza manifestada pelos santos: ou seja, seu espírito. Este espírito, que recolheu assim a graça da predicação evangélica, faz jorrar de si mesmo a fonte da pobreza, que irriga toda a superfície da nossa terra[66], ou seja, o homem exterior, e o transforma em paraíso de virtudes. É esta pobreza que Deus chama de bem-aventurada[67]. Ao reduzi-la a uma única palavra sobre a terra, segundo o profeta[68] (quando mostrou e explicou com grande felicidade a causa de todas as formas de pobreza voluntária e a causa desta pobreza), o Senhor, que a tudo ensinou com poucas palavras, abarcou inúmeros efeitos reais. Pois uma pessoa pode possuir nada, e mesmo assim ser vil; pode ser abstinente, até de forma voluntária, mas fazê-lo pela glória diante dos homens. Esta pessoa não será pobre em espírito, pois a hipocrisia nasce da pretensão, e esta é o contrário da pobreza em espírito. Mas a quem possui o espírito quebrantado, modesto e humilde, é impossível não se regozijar por sua baixeza e
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sua humildade aparentes, por que este considera a si próprio como indigno da glória, da felicidade, das facilidades e de tudo o que se assemelha. O pobre que Deus chama de bem-aventurado é aquele que considera a si mesmo como indigno destes bens, e este pobre, que é o verdadeiro pobre, não se arroga este nome parcialmente. É por isso que o divino Lucas disse: “Bem-aventurados os pobres[69]”, sem acrescentar “em espírito”. Estes são os que ouvem e seguem o Filho de Deus, e que se fazem semelhantes a ele, quando disse: “Aprendam comigo que sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão o repouso para suas almas[70]”. É por isso que o Reino dos céus pertence também a estes, pois eles são herdeiros com Cristo. Uma vez que a alma possui três partes, que ela é considerada nestas três faculdades – a razão, o amor e o desejo – e que ela se torna enferma de todas, é natural que Cristo, que a cura, comece a cuidar dela a partir da última: o desejo. Pois o desejo é a matéria do ardor. E quando ele é a matéria da distração dos pensamentos, estas duas faculdades vão mal. O ardor da alma não pode ser são, se o desejo não for curado primeiro. Tampouco a razão pode ser sã, se antes o desejo e o ardor não tenham sido curados também. Se observarmos bem, veremos que o primeiro fruto do desejo é o amor às posses. Pois os desejos que sobrevêm aos homens no sentido de ajudá-los a viver não são condenáveis. É por isso que eles crescem conosco desde a mais tenra idade. O amor ao dinheiro nasce um pouco mais tarde, quando ainda somo crianças. Daí vem que ele não tenha sua origem na natureza, mas na vontade. O admirável Paulo chamouo de raiz de todos os vícios[71]. É ele que engendra, dentre os demais vícios, a mesquinhez, o tráfico, as pilhagens, os roubos, numa palavra, todas as formas de cupidez, esta cupidez que o mesmo Paulo denominou como a segunda idolatria[72]. Ela fornece a própria matéria de que é feita a quase todos os que não conseguiram deixar a idolatria. Todos os vícios que nascem do amor pela matéria são paixões da alma que não arde por fazer o bem. Pois os vícios que provêm da vontade se transmitem mais facilmente do que as paixões que têm sua origem na natureza, E não crer na providência de Deus torna difícil rejeitar as paixões nascidas do amor pelo dinheiro. Quem não crê na providência coloca sua confiança no dinheiro. E quando ouve o Senhor dizer que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos céus[73], este homem, que considera o Reino dos céus como nada sendo – este Reino que é celeste e eterno – deseja a riqueza terrestre passageira, esta riqueza que, mesmo quando não está em mãos dos que a desejam, causa os maiores males pelo fato mesmo de ser desejada. Os que querem ser ricos caem nas tentações e nas armadilhas do diabo, diz Paulo[74]; então, quando a riqueza vem por si só ela mostra nada ser; depois, quando ela não está mais aí, aqueles que não receberam a inteligência (por experiência própria) sentem sede dela. Pois este amor infeliz não provém de uma ausência, muito pelo contrário. O amor pelo dinheiro vem da loucura que Cristo, nosso Mestre de todos, acusou naquele que destruiu seus celeiros e construiu outros maiores[75]. Pois como não será louco alguém que, por causa de algo que não pode lhe afiançar nada (pois, mesmo na maior abundância, a vida de um homem não depende daquilo que ele possui[76]), adianta por causa disto o que tem de mais útil e não se mostra um negociante sábio que recolhe e ajunta tanto quanto possível o que é necessário ao capital do comércio ou da agricultura, que realmente lhe rendem muito e o fazem ganhar dinheiro? Em particular a agricultura que, antes mesmo de chegado o tempo da colheita, multiplica por cem o que foi semeado: ela indica assim previamente o ganho futuro e a fecundidade quando chegado o tempo, como uma coisa inexprimível e impensável, e tanto mais paradoxal na medida em que as sementes provêm de celeiros menores. Assim, os homens não deixam de ter razão ao buscar a riqueza para seu bem. Mas eles temem a sua falta, por que não creem Naquele que prometeu que as coisas daqui seriam dadas em acréscimo aos que buscam o Reino de Deus[77] e, não tendo mais do que este motivo, mesmo rodeados de tudo, jamais se afastam de
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seu desejo maligno e mortal. Ajuntando sempre mais, eles se sobrecarregam com um fardo inútil, ou melhor, enquanto ainda estão nesta vida, se cercam de um novo túmulo. Pois os que morrem dentre os homens são enterrados na terra simples, mas a inteligência do avaro é enterrada, ainda em vida, num monturo de poeira de ouro. Para quem desfruta de saúde em seus sentidos, este túmulo tem pior cheiro do que o outro. E o cheiro será tanto pior quanto mais poeira o avaro acumular. Pois o mal com que estes miseráveis enterrados foram feridos é mais forte do que eles. E sua pestilência chega até os céus, até os anjos de Deus e até Deus. Por isso eles inspiram horror e se tornam os homens dos quais nos desviamos, por que seu cheiro é horrível devido à sua loucura, como disse Davi[78]. O que pode separar estes homens desta paixão nauseabunda que traz a morte é a despossessão voluntária, sem nenhuma complacência para com os homens: vale dizer, a pobreza em espírito, a que o Senhor chamou de bem-aventurada. É impossível a um monge que tenha esta paixão pelo dinheiro ser submisso. Se ele persistir em atender cada vez mais a esta paixão, deverá temer fortemente cair ainda em males irremediáveis do corpo. Gieze e Judas, no Antigo e no Novo Testamento, são provas suficientes disto. Um foi coberto pela lepra[79], a marca de uma alma incurável. O outro, em um campo de sangue, dependeu-se da forca, caiu para frente, rasgou-se ao meio e suas entranhas se espalharam[80]. E, se a renúncia precede a submissão, como poderá o que vem depois preceder o que vem antes? E se a renúncia precede também a vida monástica, uma vez que ela constitui seu princípio elementar, como poderá alguém que não renunciou primeiro ao dinheiro conduzir com sucesso outros combates da renúncia? Com efeito, como, não sendo capaz de submissão, poderá alguém viver sozinho em estado de hesíquia em sua cela, consagrando-se à solidão e se dedicando à prece? Ora, “onde está seu tesouro, disse o Senhor, aí estará também seu coração[81]”. Então, como poderá alguém que ajunta tesouros sobre a terra voltar os olhos do intelecto para Aquele que está sentado à direita da Majestade no mais alto dos céus[82]? Como herdará ele o Reino, que não é permitido ao intelecto receber se não estiver puro de toda paixão? É por isso que serão “bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles será o Reino dos céus”. Você vê quantas paixões o Senhor cortou com uma só beatitude? Mas ele não cortou apenas estas paixões. Com efeito, dissemos que o primeiro fruto do mau desejo era o amor pela matéria. Mas existe um segundo, do qual devemos fugir ainda mais do que do primeiro, e um terceiro que não é menos vicioso. Então, qual é este segundo? É o amor à vanglória. Com efeito, quando se avança em idade, é esta paixão que primeiro vem ao encontro do amor pela carne naqueles que ainda são jovens, como um mau prelúdio a esta. Assim é que eu digo que uma forma de amor da vanglória é a que vê os ornamentos do corpo e a suntuosidade das vestes: é o que os Padres chamam de vanglória mundana. A outra forma de vanglória ataca aqueles que se distinguem pela virtude: ela traz consigo a presunção e a hipocrisia por meio das quais o inimigo se esforça por pilhar e dispersar a riqueza espiritual. Todos esses defeitos podem ser perfeitamente curados pela sensação do desejo da honra que vem do alto, desde que a pessoa considere ser indigno dela. Também podem ser curados pela consideração de que a glória de Deus é sempre preferível à nossa própria glória, conforme o que foi dito: “Não a nós, Senhor, não a nós, mas a seu nome seja dada toda a glória[83]”. Mesmo sabendo que realizamos uma obra louvável, devemos imputar a Deus a causa da ação correta. É a Deus que honramos, é a Deus que rendemos glória com gratidão, e nunca a nós mesmos. Assim nos regozijamos, por termos recebido a virtude como um dom. Mas não nos orgulharemos, por que nada temos feito por nós mesmos. Assim viveremos na humildade, tendo diz e noite os olhos do intelecto em Deus, como a serva de que fala o Salmo, que mantinha os olhos nas mãos de sua patroa[84], por receio de que ao nos separarmos do Deus único, que concede e mantém o bem, não sejamos precipitados no abismo do mal: é o que irá sofrer aquele que se sujeitou à presunção e à vanglória. A anacorese, a vida solitária, a permanência na cela, ajudam especialmente na cura desses defeitos. O eremita sente bem a própria
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fraqueza de sua vontade, e considera ser incapaz de se misturar aos homens. Ora, o que é isto, senão a pobreza de espírito, que o Senhor chama de bem-aventurada[85]? Se alguém refletir sobre as infâmias da paixão que podem atacá-lo, fugirá da vanglória da qual extrai seu poder. Pois, desejando a glória perante os homens, pelas próprias obras que faz para adquiri-la, ele cai em desonra. Preocupando-se com os tempos oportunos, cuidando escrupulosamente da glória de seus ancestrais e do bom perfume de suas vestimentas, vangloriando-se de outras coisas do mesmo gênero, ele mostra por si só ser presa de um pensamento infantil. Pois tudo isto junto não passa de pó. E o que existe de mais vil do que o pó? Quem não se veste apenas para se cobrir e se manter aquecido, mas se apaixona pela delicadeza das roupas e pelo seu brilho, não apenas denuncia aos que o observam a esterilidade de sua própria alma, mas ainda se inclina à indecência das cortesãs. Que ele escute Aquele que disse: “Os que trazem vestes delicadas moram nos palácios dos reis[86]”. Mas “nossa cidade está nos céus[87]”, diz o admirável Paulo. Por causa de nossas fraquezas pelas belas vestes, não nos atiremos do céu às tendas do príncipe das trevas deste século[88]. É isto que sofrem aqueles que vão buscar a glória do lado dos homens. Por que eles, que receberam sua parte em ter sua cidadania nos céus[89], preferiram erguer suas tendas no pó, para sua própria glória, atraindo sobre si a maldição de Davi Suas orações já não sobem aos céus e toda a sua aplicação cai abaixo, por não estar cercada das asas do amor divino que eleva às alturas aquilo que fazemos na terra. Assim, eles se esforçam, mas não recebem seus salários. Eu disse que eles não recebem seus salários? Ora, eles dão frutos, mas estes frutos são a confusão, a instabilidade dos pensamentos, o cativeiro e a perturbação do intelecto. Foi dito: “O Senhor dispersou os ossos dos que procuraram agradar aos homens. Eles foram confundidos, por que o Senhor os reduziu a nada[90]”. Esta paixão é a mais sutil de todas as paixões. É por isso que quem combate deve não apenas controlar a chegada do mal e fugir do consentimento, mas considerar a própria sugestão como um consentimento e dela se proteger, pois do contrário lhe seria mais difícil ser mais rápido do que a derrota. Se o monge sóbrio e vigilante age assim, a sugestão se torna uma fonte de compunção; do contrário, se torna um ligar preparado para o orgulho. E quem é tocado pelo orgulho terá dificuldade em recuperar a saúde, se é que conseguirá se curar, pois a queda é diabólica. Mas mesmo antes disto, a paixão por agradar aos homens espalha tal dano naqueles que a adquirem que leva ao naufrágio[91] a própria fé, segundo Aquele que disse: “Como podem vocês crer em mim, vocês que recebem a glória dos homens e que não buscam a glória que vem de Deus? [92]”. o que pode haver, ó homem, entre você e a glória dos homens – ou antes entre você e o vão nome da glória – esta glória que não apenas é privação, mas que priva da própria glória, e não apenas isto, mas ainda gera a inveja em relação aos outros, esta inveja que é a morte em potência e que foi a fonte do primeiro homicida e, mais tarde, do deicídio[93]? Então, o que contribui para ajudar a natureza? O que a mantém, ou o que a protege, ou a recebe de alguma forma em sua queda e que a cura? É impossível dizê-lo com certeza. Eu penso que é a refutação da falsa razão dos maus hábitos. Se examinarmos com rigor, veremos que a mesma natureza simultaneamente provoca e refuta falsamente a maior parte das piores infâmias, que ela retira a máscara impudentemente, às vezes mesmo aqui em baixo, e que ela desonra os amantes, ainda que os mestres das doutrinas gregas pensem que nenhuma ação direita na existência não se faz sem ela: quão grande erro, quando eles dizem não se envergonhar! Mas nós não fomos ensinados assim, nós que derivamos nosso nome, o nome que nos convém[94], Daquele que, por si mesmo, em seu amor pelo homem, ungiu nossa natureza: e a ele que temos para vigiar nossos atos. Os que o miram realizam nele e por ele tudo o que existe de melhor. Eles fazem tudo pela glória de Deus[95] e não procuram agradar aos homens de modo algum. Antes eles recusam agradar, como Paulo, o eminente discípulo do nosso legislador, que nos deu a lei. Pois “se eu ainda agradasse aos homens, disse ele, eu não seria servidor de Cristo[96]”.
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Mas vejamos, com efeito, se a terceira filha do desejo doentio é afastada por esta pobreza que é chamada de bem-aventurada. A terceira filha da alma doente de desejo é a gula, que caminha ombro a ombro com todas as impurezas da carne. Mas como podemos chamá-la de terceira e última, se desde a origem ela seja inata em nós? Pois não é apenas ela, mas também todos os movimentos naturais que visam à procriação, que marcam as crianças desde que ainda mamam no seio materno. Como então podemos considerar como última a doença do desejo da carne? Por que estas coisas estão ligadas a nós devido à nossa própria natureza. Ora, as coisas da natureza não são condenáveis: elas foram criadas pelo Deus bom, a fim de que por intermédio delas caminhemos por boas obras. Assim, elas não são manifestações de uma alma enferma, mas o são quando fazemos mau uso delas. Por conseguinte, quando cuidamos da carne para satisfazer seus desejos[97], neste momento a paixão é má e o amor aos prazeres se torna fonte das paixões da alma e enfermidade da alma. Nestas coisas, a primeira coisa a ser atingida é o intelecto. É por isso que, quando as más paixões se lançam primeiro sobre a reflexão, o Senhor diz que os maus pensamentos saem do coração, e que são eles que mancham o homem[98]. E a Lei anterior ao Evangelho diz: “Vigie a si mesmo para que uma palavra oculta não se torne uma injustiça em seu coração[99]”. Pois se o intelecto for o primeiro a ser levado ao mal, e, abaixo dele, por meio dos sentidos, ele modelar a imaginação dos corpos sensíveis, será em direção a eles que ele será levado, em especial pelos olhos, que podem em primeiro lugar, mesmo de longe, atrair a sujeira, excitando-o e arrastando-o ao mau uso. A prova evidente disto é Eva, nossa primeira mãe: pois ela primeiro viu que o fruto da árvores proibida era bonito de ver e precioso para adquirir a inteligência, e, quando seu coração consentiu, ela o tomou e provou dele[100]. Portanto, temos razão em dizer que a derrota diante da beleza dos corpos precede as paixões infames e é como que o seu prelúdio. É por isso que os Padres recomendam não considerar a beleza dos outros corpos nem se comprazer com o próprio corpo. Entretanto, se, nas crianças, antes do surgimento dos pensamentos passionais, observarmos estas paixões de forma natura, elas não estarão levando ao pecado, mas contribuindo para a ordem da natureza. É por isso que, neste momento, elas não são más. Mas a partir do momento em que as paixões da carne extraem sua origem do intelecto passional, é do intelecto que é preciso cuidar. Com efeito, num incêndio, quem combate o fogo não obtém nenhum resultado se começar a extinguir as chamas pelo alto. Mas se ele retirar a matéria que queima logo o incêndio se esgota. O mesmo acontece com as paixões que nos prostituem. Se você não acessar dentro de você, por meio da prece e da humildade, a fonte dos pensamentos, mas se armar contra eles apenas com o jejum e a vida dura, seu esforço não lhe servirá de nada. Mas se você santificar a raiz pela humildade e a prece, como dissemos, logo você notará a santificação das coisas exteriores. É isto que, me parece, exprime a palavra do Apóstolo que diz ter a verdade como cintura para os rins[101]. Da mesma forma, um dos Padres afirma que a contemplação oprime e reduz o desejo das paixões dos rins e do ventre. Mas é preciso também dar ao corpo uma vida dura e temperar comedidamente a comida, para que o desejo não se torne difícil de dominar e não seja mais forte do que o pensamento. Assim todas as paixões da carne só se curam por meio da vida dura do corpo e da oração que brota de um coração humilhado: está aí a pobreza em espírito, a que o Senhor chamou de bem-aventurada[102]. Se alguém deseja obter a riqueza da santificação sem a qual ninguém verá o Senhor [103], que permaneça em sua própria cela, levando uma vida dura e orando com humildade. Pois a cela de quem vive na solidão como se deve é um porto de castidade. Todas as coisas exteriores, em particular as assembleias em praça pública e as feiras, estão cheias da desordem da prostituição que excita tudo o que ouvimos e tudo o que vemos em desregramento, submergindo a pobre alma do monge que se expôs a tudo isto. Podemos dizer também que o mundo da malícia é um fogo que queima: ele transforma em lenha os que o frequentam e reduz a cinzas todas as formas da sua virtude. Mas o fogo que não consome se acha no deserto[104]. Quanto a você, em lugar do deserto, permaneça na sua cela e esconda-se por algum tempo até
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que de você se afaste a tempestade do estado passional[105]. Pois, passada a tempestade, a vida que você leva ao ar livre não terá sido devastada. Então você se tornará uma monja verdadeiramente pobre em espírito, possuirá o Reino oposto às paixões e ouvirá chamá-la com clareza e alegria Aquele que disse: “Bem-aventurados os pobres em espírito, por que deles será o Reino dos céus[106]”. Como não serão chamados de felizes aqueles que não confiam no dinheiro, mas em Deus? Os que não procuram agradar a ninguém senão a ele? Os que, com toda humildade, vivem com tais homens diante de si? Sejamos, portanto, pobres, nós também, humilhando o espírito, levando a vida dura na carne e nos proibindo possuir seja o que for nesta vida, a fim de que venha a nós o Reino de Deus e que possamos ver atendidas as bem-aventuradas esperanças quando herdarmos o Reino dos céus. Ao expor certas palavras englobantes e capitais do Evangelho de nossa salvação, não apenas reuniu inúmeras virtudes numa única palavra, não apenas afastou de sua beatitude inúmeros males e abençoou, pelo arrependimento, os que afastam o estado passional de suas almas, como ainda afastou muitos outros males que não correspondem à circuncisão, mas ao frio, ao gelo, à neve, à geada e à violência dos ventos, numa palavra, que correspondem às vicissitudes que as plantas sofrem por causa dos invernos e verões, quando são expostas ao fio e ao calor sem os quais nada do que cresce sobre a terra pode chegar à maturidade. E quais são estes males? Os diversos ataques das tentações, que devemos suportar com gratidão para que possamos dar o fruto futuro Àquele que cultiva os espíritos. Com efeito, se alguém, por piedade das plantas que nascem da terra e têm dificuldade em crescer, as cerca com um muro, as cobre com um teto e não deixa as ervas daninhas crescerem por perto, ele não colherá nenhum fruto destas plantas, ainda que as regue e cuide delas com grande zelo. Ao contrário, ele deve deixar crescer. Assim, depois das dificuldades do inverno, a estação da primavera as fará crescer e florir, cobrir-se de folhas e estas bels plantas darão cachos verdes. Aquelas que amadurecerem após uma breve exposição ao sol, chegarão à maturidade e se tornarão boas para comer e para fazer vinho. Do mesmo modo, quem não aguenta a carga das tentações, difícil de suportar, mesmo que não lhe falte nenhuma das demais virtudes, jamais dará frutos dignos do divino lagar e da adega eterna. É, com efeito, por meio da paciência nas penas voluntárias e involuntárias – as que afligem o exterior e as que se suporta no interior – que todo monge fervoroso atinge a perfeição. Pois os frutos que a natureza oferece pelas plantas da terra, graças aos cuidados dos que as cultivam e à alternância das estações, são semelhantes a nós, que somos os ramos espirituais[107] de Cristo e nos confiamos a ele para que cultive nossas almas: eles se ligam sozinhos aos que vivem em plena liberdade. Sem a paciência naquilo que acontece independentemente de nossa vontade, mesmo aquilo que fazemos voluntariamente não obterá a bênção divina. Pois é o amor que dedicamos a Deus em meio ao sofrimento das tentações que é o melhor meio de superar as provas. É preciso assim, antes de tudo, conduzir com sucesso a ascese voluntária e, por meio dela, habituando-nos a desdenhar o prazer e a glória, não teremos dificuldade em suportar também os ataques involuntários. Aquele que, graças à pobreza em espírito, despreza estes ataques e considera a si próprio como tributário dos remédios mais ativos do arrependimento, está continuamente preparado para toda aflição. Ele aceita todas as provas como aquilo que mais lhe convém e se regozija em ir ao seu encontro, por que delas obtém a purificação da alma. Ele faz delas a matéria de sua prece a Deus, por meio da qual ele se esforça e que o leva diretamente ao seu objetivo. Ele considera que isto ao mesmo tempo abraça e protege o bom estado da alma, e não apenas ele não deixa espaço para nenhum ressentimento, como pede a graça sobre aqueles que o afligem e ora por eles como se fossem seus benfeitores. É por isso que ele próprio não somente recebe o perdão concedido aos que pecaram e a promessa que lhes foi feita, mas ainda obtém o Reino dos céus e a bênção divina. Ele é chamado de bem-aventurado pelo Senhor por ter mantido a paciência até o fim com a humildade em espírito. Quanto a nós, depois de havermos demonstrado brevemente um pouco do que é a circuncisão espiritual, acrescentemos agora algumas palavras a respeito da fecundidade da qual ela é a fonte. Por que a seguir,
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para os que possuem a riqueza inalienável concedida pela pobreza em espírito[108], o único bemaventurado comunica aos aflitos sua própria beatitude, quando diz: “Bem-aventurados os aflitos, por que serão consolados[109]”. Porque Cristo acrescentou esta tristeza, esta angústia, esta aflição, à pobreza? Por que uma vai sempre de par com a outra. Mas a tristeza ligada à pobreza no mundo suscita a morte da alma, diz o Apóstolo, e a tristeza ligada à pobreza em Deus suscita um arrependimento para a salvação da alma, que não se pode lamentar[110]. Uma, que é involuntária, suscita uma tristeza involuntária; a outra, que é voluntária, é seguida necessariamente por uma tristeza voluntária. Pois a tristeza que é chamada de feliz se une aqui à pobreza em Deus, e necessariamente nos vem por causa dela; e é a partir daquela que esta pode ser entendida ao mesmo tempo como tristeza espiritual e voluntária. Mas vejamos, com efeito, de que modo a pobreza bem-aventurada engendra a tristeza bem-aventurada. O que dissemos um pouco acima revelou quatro formas de pobreza espiritual: a pobreza no pensamento, a pobreza no corpo, a pobreza nas posses desta vida e a pobreza nas tentações que vêm do exterior. Que ninguém, ao ouvir falar de formas de pobreza que se acrescentam a estas ao mesmo tempo em que permanecem separadas, coloque de parte a ação que estas formas implicam. Pois estas se realizam naturalmente junto com as outras. É por isso que elas foram incluídas todas numa única beatitude, que mostra ao mesmo tempo de modo admirável qual é por assim dizer a raiz e a causa das outras, a saber, nosso espírito. Este, que traz em seu seio, como dissemos, a graça da predicação evangélica, faz jorrar de si mesmo uma fonte de pobreza que irriga toda a face de nossa terra[111], ou seja, o homem exterior, e o transforma em paraíso de virtudes. Uma vez que existem quatro formas de pobreza espiritual, de cada uma delas nasce a tristeza que lhe corresponde, assim como a consolação que lhe corresponde, por meio da pobreza e da humildade voluntárias do corpo, que são a fome, a sede e as vigílias, numa palavra, a vida dura e as penas corporais e, além destes esforços, a contração dos sentidos por meio da razão. É, portanto, destas penas que nascem não apenas a tristeza, como também as lágrimas. Pois assim como a insensibilidade, a dureza e a crueza do coração nascem naturalmente da negligência, do desfrute e do prazer, também a contrição do coração e a compunção, que afastam toda amargura e criam uma doce alegria, nascem de uma vida levada na temperança e na renúncia. Com efeito, foi dito que, sem a contrição do coração, é impossível se separar do mal. Ora, o que quebranta o coração é a tripla temperança no sono, na alimentação e no descanso do corpo. Mas a alma que esta contrição afastou da malícia e da amargura assume de imediato a alegria espiritual. E esta é o consolo por cuja razão o Senhor chama de bem-aventurados aos aflitos[112]. João Clímaco, que nos mostrou a escada espiritual em suas palavras, o confirma: “A sede e as vigílias afligem o coração e, quando o coração fica aflito, ele derrama lágrimas. Mas nestas lágrimas rirá aquele assim que é testado[113]”: vale dizer, este terá sido consolado pelo riso bem-aventurado, como prometeu o Senhor. A tristeza que, por meio da beatitude, consola os que possuem a pobreza do corpo, extrai assim sua origem desta outra pobreza amada por Deus. Mas de que modo extrai ela sua origem do sentimento de temor e da divina humildade da alma? A condenação de si próprio anda sempre de par com esta humildade. Ora, esta tende com toda sua força para o começo, que é o temor do castigo, colocando diante dos olhos a reunião terrível dos adversários no lugar único da danação, e, dando-se conta de que esta reunião é indizivelmente mais nefasta do que tudo, acrescentando a esta o temor. Esta reunião jamais chega ao fim, por que males se acrescentam a males. O calor ardente, o frio, as trevas, o fogo, o movimento e a imobilidade, os laços, os terrores, as mordidas das feras sempre vivas se concentram neste lugar único que conduz à danação. Mas esta infelicidade não é aquela que jamais subiu ao coração do homem, como foi dito[114]. Então, o que é esta tristeza vã, inconsolável e sem fim? É a tristeza que toma aqueles que pecaram contra Deus, ao reconhecerem suas faltas. Lá em baixo, com efeito, para aqueles que se convenceram do erro,
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que perderam a esperança bem-aventurada e renunciaram à salvação, o involuntário exame de consciência que então acontecerá multiplicará em cada um, por meio desta tristeza, o sofrimento imposto. E esta tristeza perpétua, na medida em que não mais cessará, se torna a causa de outra tristeza: trevas ainda mais terríveis, um calor ardente que pesa no coração e o abismo insondável do desespero. Mas aqui em baixo esta tristeza é muito útil. Pois, em sua benevolência, Deus está nos escutando. Assim como ele desceu até nós, ele prometeu que, visitando-os, ele levará aos que estão aflitos a consolação que consiste nele próprio, pois ele é chamado de Consolador[115]. Você está vendo a tristeza da alma humilhada e a consolação que lhe é dada? Mas, com efeito, somente a condenação de si próprio, por longo tempo colocada como um peso espiritual sobre a razão que há na alma esmaga, pressiona e espreme o vinho da salvação que alegra o coração do homem[116], ou seja, de nosso homem interior. Este vinho é a compunção. Pois, por intermédio da tristeza, a compaixão pressiona também as paixões e enche a alma de uma alegria que é dita bem-aventurada, separando-a do peso terrível que as paixões exercem sobre ela. É por isso que os aflitos são bem-aventurados, por que eles serão consolados[117]. Quanto à despossessão, ela consiste na pobreza em relação aos bens e à pobreza naquilo que nos pertence; entretanto, ela está ligada à pobreza em espírito, da qual falamos acima. Pois todas essas virtudes, que se realizam umas com as outras, são perfeitas e agradam a Deus. É por meio desta pobreza, capaz de nos trazer a um tempo a tristeza e a consolação, que entra aquele que escuta com inteligência. Com efeito, depois de renunciar ao dinheiro e às posses, rejeitando-os ou dispersando-os conforme o mandamento[118], e após afastar a alma do cuidado para com as coisas, o homem que agora pode afirmar estar satisfeito com o que tem deseja se voltar para a busca desta alma desligada de tudo o que a mantinha fora de si. Quando o intelecto se afasta de todo objeto sensível emergindo do dilúvio da confusão dos bens deste mundo e considerando apenas o homem interior, então, vendo a máscara odiosa da errância do mundo de baixo, ele se apressa em se lavar com as lágrimas da tristeza. Depois de levantado este véu disforme, a alma, deixando de ser preguiçosamente dispersa nas relações de toda espécie, penetra sem distrações no interior dos verdadeiros tesouros e ora ao Pai que está no secreto[119]. É o Pai quem primeiro lhe dispensa o dom que contém os carismas, a paz nos pensamentos[120], com a qual ele realiza a humildade que engendra e abraça toda virtude. Esta humildade não é suscitada em quem a quer, por meio de palavras e formas definidas, mas é atestada pelo Espírito bom e divino, e o próprio Espírito a constrói quando é restaurado nos corações[121]. É aí, no paraíso do intelecto, como em um recinto seguro, que estão plantadas todas as espécies de árvores da verdadeira virtude. No centro se erguem os reinos sagrados do amor. E diante dos seus umbrais florescem as primícias do século futuro: a alegria inexprimível e indefectível. Pois a despossessão é a mãe da despreocupação, e a despreocupação é a mãe da atenção e da prece. Estas, por sua vez, são mães da tristeza e das lágrimas. E as lágrimas apagam a presunção. E quando são rejeitados de os vícios de nos oprimem, o caminho da virtude se torna mais fácil e a consciência deixa de se condenar. É isto que faz brotar a alegria e o riso bem-aventurado da alma. Então, mesmo as lágrimas dolorosas se transformam em delícias, as palavras de Deus se tornam doces da garganta e melhores do que o mel na boca[122], a súplica orante se transforma em ação de graças e o estudo dos testemunhos divinos se torna um regozijo do coração mesclado a uma esperança que nada pode confundir. Esta esperança está como que enraizada naquilo que recebemos desde já, está ligada ao testemunho contido na experiência que provamos, e ensina em parte a riqueza transbordante da bondade[123], conforme foi dito: “Provai e vede que o Senhor é bom[124]”. É a exultação dos justos, a alegria dos corações direitos, o regozijo dos humilhados, o consolo dos que foram afligidos por causa do Senhor. Como assim, as graças da consolação conduzem até ele? Somente estas graças constituem os presentes das novas sagradas? O esposo destas almas não manifesta a si próprio, mais puro do que estes presentes, aos que atingem a tristeza bem-aventurada, que se purificaram, e que, por meio das virtudes, estão vestidos
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para as bodas? Certamente não. Nós mesmos estamos agora submetidos às imprecações daqueles que estão prontos a nos condenar. É como se eles dissessem: “Não fale no nome do Senhor[125], senão apagaremos seu nome, por que você é mau[126], e tramaremos e divulgaremos contra você calúnias e mentiras”. Mas nós, sem levar em conta o que eles dizem, levemos mais adiante nosso discurso, confiando-nos às palavras de nossos santos Padres, relembrando-as, mirando-nos nelas e por meio delas persuadindo os demais. Pois foi dito: “Eu acreditei, e por isso falei[127]”, e: “Nós cremos, e por isso falamos[128]”. Com efeito, depois de se desembaraçar de todas as paixões infames que nele residiam, o intelecto se volta inteiramente para si próprio e para as demais potências da alma, avançando na direção do que é mais que perfeito e, balizando sua marcha ascendente nos degraus da ação e cultivando a virtude, ama a beleza que se encontra na alma. Daí por diante, com a ajuda de Deus, ele se limpa e se lava, e não apenas enxuga tudo o que antes possuía a marca do mal, como ainda retira de si tudo o que lhe é estranho, mesmo que nestas coisas exista ainda uma parte ou um pensamento melhorzinho. Depois de ter ultrapassado os inteligíveis e os pensamentos dos inteligíveis, que necessitam da imaginação, e a tudo ter deixado para trás, a um tempo amado por Deus e amante de Deus, surdo e mudo, como está escrito, ele se apresenta diante de Deus. Neste momento ele domina a razão da matéria e modela a criação mais além de toda liberdade: pois nada do que está fora bate à porta, a graça do coração traz o melhor e, o que é o mais paradoxal, ela ilumina com uma luz misteriosa o interior e conduz à perfeição o homem interior. Quando o dia começa a amanhecer e a luz da manhã se levanta em nossos corações[129], como diz o primeiro dos apóstolos, o homem verdadeiro sai para seu verdadeiro trabalho[130], conforme a palavra profética e, com o auxílio da luz, sobe o caminho onde se elevam as montanhas eternas[131]. Ó milagre, ele se torna o contemplador das coisas que, nesta luz, estão acima do mundo, quer não esteja ele separado, ou que esteja separado da matéria suscitada no princípio, como ensina o caminho. Pois ele não se eleva sobre as asas imaginárias do pensamento, nem percorre tudo como um cego: ele não se liga à compreensão precisa e indubitável nem do sensível ausente, nem do inteligível transcendente. Ele se eleva em direção à verdade pelo poder inefável do Espírito e, por meio desta concepção espiritual indizível, escuta as palavras inefáveis e vê o invisível. E, milagre, ele é e se torna inteiramente aqui em baixo, embora tenha partido para além e rivalize com os cantores infatigáveis: ele se tornou verdadeiramente como um novo anjo de Deus sobre a terra e, através dele, todas as formas da criação são levadas ao Senhor. Pois ele próprio, participando de tudo, participa também daquilo que está acima de tudo, a fim de se tornar o cumprimento da imagem. É por isso que o divino Nilo disse: “Em sua natureza o intelecto é uma altura inteligível semelhante a uma cor celeste por meio da qual o mistério da Santa Trindade, no momento da prece, se torna luz”. E também: “Se alguém quiser ver a natureza do intelecto, que se prive de todo e qualquer pensamento; então a verá, semelhante a uma safira ou a uma cor celeste. Mas isto não será possível sem a impassibilidade. Pois será preciso que Deus o ajude e exale nele a luz incriada[132]”. São Diádoco diz igualmente: “Por intermédio do batismo, a santa graça nos transmite duas coisas, das quais uma ultrapassa infinitamente a outra. Pois a primeira graça renova pela água e faz brilhar nosso ser à imagem de Deus, apagando todas as rugas do nosso pecado. Depois esta graça recebe a segunda, a fim de que esta trabalhe conosco. Então, quando o intelecto começa a provar, sentindo plenamente a doçura do Espírito Santo, devemos saber que a graça começa por assim dizer a inclinar nosso ser para a semelhança, acima de nosso ser à imagem, de sorte que nossos próprios sentidos nos indicam que nosso ser à semelhança começa a tomar forma. Será então pela iluminação que saberemos ter atingido a perfeição da semelhança[133]”. E mais: “Ninguém pode alcançar o amor espiritual se não for iluminado em toda plenitude pelo Espírito Santo. Com efeito, se o intelecto, por meio da luz divina, não receber à perfeição o ser à semelhança, ele não poderá conter em si todas as demais virtudes, e não terá ainda sua parte no amor perfeito[134]”.
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Da mesma forma ouvimos santo Isaac nos dizer: “No momento da prece, o intelecto que recebeu a graça vê sua própria pureza semelhante à cor celeste que foi chamada pela assembleia de Israel de “lugar de Deus” quando ela apareceu aos hebreus sobre a montanha[135]”. E também: “A pureza do intelecto é esta pureza sobre a qual, no momento da prece, brilha a luz da Santa Trindade[136]”. Mas o intelecto que foi tornado digno de tal luz transmite ao corpo que está ligado a ele as marcas da beleza divina: é uma mediação entre a graça divina e o peso da carne, que a ela leva a força dos fracos. Nisto reside o estado de virtude semelhante a Deus e que nada é capaz de combater, aquilo que é impossível ou dificílimo conduzir ao mal. Aí reside o Verbo que ilumina as razões dos seres e que revela por si mesmo, em sua pureza, os mistérios da natureza por meio dos quais, conforme as razões da analogia, o pensamento dos que escutam com fé é conduzido à compreensão daquilo que está acima da natureza, esta compreensão que o próprio Pai do Verbo concebeu inteiramente em símbolos imateriais. Aí residem os outros muitos milagres: o discernimento e a visão profética, mesmo de coisas distantes, como se os olhos as distinguissem e, o que é ainda maior, como se não fosse este o objetivo para o qual se voltam estes homens bem-aventurados. Mas, da mesma forma pela qual alguém olha um raio de sol e vê os corpúsculos que flutuam no ar, ainda que não seja este seu objetivo, também estes homens se oferecem com toda pureza aos raios divinos, aos quais está ligada por natureza a revelação de tudo, não apenas do que é ou do que foi, mas também do que será, ao longo do caminho, na medida em que chegar verdadeiramente o conhecimento de tais coisas, proporcionalmente à pureza. Eles conhecem assim para seu bem o retorno do intelecto sobre si mesmo e sua união com Deus, ou antes, mesmo se isto parecer espantoso, o retorno de todas as potências da alma para o intelecto, e a energia que é ao mesmo tempo a sua própria energia e a energia de Deus, por meio da qual aqueles que se recriam à imagem do modelo estão no bom caminho, quando a graça restaura a beleza maravilhosa e original. É a estas alturas que a tristeza bem-aventurada eleva os humildes de coração e os pobres em espírito. Por causa da negligência que está em nós e que é mais forte do que nós voltemos ao fundamento de tudo isto e falemos ainda um pouco mais da tristeza. Ela se liga certamente a todos os que conhecem a pobreza involuntária: a pobreza no mundo. De fato, como não estariam aflitos aqueles a quem falta o dinheiro, aquele que tem fome por nada possuir, aquele que é oprimido e desonrado? Esta tristeza é inconsolável, e tanto mais na medida em que se estendem as consequências da pobreza, ou melhor, ela é tanto maior quanto mais aquele que sofre está afastado do verdadeiro conhecimento. Pois tal homem não submete à razão os prazeres e as dores que lhe chegam pelos sentidos. Ao contrário, fazendo mau uso do rigor da razão nestes prazeres e nestas dores, ele os faz crescer indevidamente, sem extrair deles o menor benefício, experimentando sempre um grande prejuízo próprio. Ele deixa evidente o sinal e a prova clara de que não recebeu com certeza a boa nova do Evangelho de Deus e dos profetas que viveram antes de Cristo, nem daqueles que, com ele e por ele, obtiveram e repartiram por meio da pobreza a riqueza inesgotável; por meio da simplicidade, a glória indizível; por meio da temperança, as delícias libertas da dor; por meio da paciência nas provações, a libertação da angústia e da aflição eternas longe de Deus, esta angústia e esta aflição que acometem aqui em baixo aos que buscaram a existência fácil e que não escolheram avançar na vida pela porta estreita e pelo caminho apertado[137]. Assim é que o apóstolo Paulo teve razão ao dizer que a tristeza segundo o mundo suscita a morte[138]. Pois mesmo através da razão o pecado penetra para conduzir à morte. Se a verdadeira vida é a luz divina da alma, nascida da tristeza conforme a Deus, como disseram acima os Padres, a morte da alma são as trevas suscitadas nela pela tristeza do mundo. É destas trevas que fala o grande Basílio, ao dizer: “O pecado, que extrai sua existência do abandono do bem, tem como símbolo das trevas espirituais suscitadas pelas injustiças”. E o divino Marcos disse também: “Como poderá aquele que está cercado por pensamentos do mal ver o pecado rela que eles encobrem, este pecado que é feito de trevas e enevoa a alma, derramando sobre ela, depois das reflexões, más palavras e más ações? Ora, quem nunca viu este pecado que abarca tudo, como poderá ser purificado no momento da prece? Sem ser purificado, como poderá encontrar o lugar da natureza pura? Se não encontrar este lugar, como poderá enxergar o interior da morada de Cristo?
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Assim, é necessário, por meio da oração, bater à porta com perseverança e pedir não apenas para possuir esta morada, como também para guarda-la. Pois muitos foram os que a perderam depois de tê-la obtido. Os que aprendem na velhice e os jovens podem ter desta natureza pura um conhecimento simples ou uma experiência aproximada. Mas o trabalho constante e paciente sé é exercido, e não sem esforço, pelos anciãos mais experimentados, que se votaram à piedade[139]”. Dentre estes anciãos está Macário, celeste por seu conhecimento, e também todo o coro dos santos. Mas, assim como as trevas recebem sua existência das nossas faltas, se você examinar a tristeza do mundo verá que ela vem da soma de todas as paixões e que delas ela extrai sua existência. Ela, assim, traz em si a imagem e é como que as primícias, o prelúdio e a garantia da tristeza sem fim que virá sobre aqueles que não escolheram a tristeza que o Senhor chamou de bem-aventurada[140], esta tristeza que não apenas traz a consolação trazendo como fruto a garantia da alegria eterna, mas ainda conforta a alma tornando a alma inexpugnável para o pior. Pois se alguém, tendo se tornado pobre e humilde esforçando-se para desenvolver em si a simplicidade conforme a Deus, não adquirir ademais a tristeza ao progredir em direção ao melhor, será facilmente levado pela versatilidade e pela negligência a voltar em pensamento ao que havia abandonado, desejando novamente o que havia deixado no começo e se tornando outra vez transgressor. Mas se, perseverando e permanecendo atento a tudo o que o conduz á bem-aventurada pobreza, ele introjetar a tristeza, já não tornará atrás: ele não retornará no sentido do mal, para aquilo que foi um dia, mas agirá sempre no sentido do bem. Pois a tristeza segundo Deus, como disse o Apóstolo, suscita um arrependimento pela salvação da alma que não se pode lamentar[141]. É por isso que um dos Padres dizia que ele provocava e guardava a tristeza. Não apenas – e este é o benefício da tristeza – o homem agora quase imóvel já não pode se voltar para o mal e as faltas que um dia cometeu, mas ele ainda considera que estas coisas já não existem. Com efeito, a partir do momento em que o homem lamenta o começo, Deus considera que ele cometeu aquelas faltas sem querer. E o homem não é responsável por suas faltas involuntárias. Com efeito, se alguém afligido pela indigência, confirma por seu testemunho que esta não é voluntária (tendo caído nas armadilhas do diabo junto com os que desejam enriquecer ou que já são ricos[142], mesmo que se esforce em se desviar das armadilhas), ele será enviado junto com os ricos ao castigo eterno. Da mesma forma, aquele que pecou contra Deus, se se entristecer por seus pecados, verá que estes serão considerados por Deus como involuntários e, sem encontrar obstáculos, caminhará junto com os que não pecaram sobre o caminho que conduz à vida eterna. Este é o benefício do começo da tristeza, que é um começo doloroso por que traz consigo o temor a Deus. Porém, mais adiante, a tristeza se une maravilhosamente ao amor de Deus e traz o fruto da doce e santa consolação da bondade do Consolador, quando dele prova aquele que se aflige, esta consolação que não podem compreender aqueles que não a experimentaram, pois é impossível ser descrita. De fato, se não é possível descrever a doçura do mel a quem nunca dele provou, como será possível descrever a quem não experimentou o prazer da alegria e da graça sagradas que provêm de Deus? Certamente, é impossível. O começo da tristeza parece um pedido de casamento feito a Deus, que parece quase impossível de ser cumprido: é por isso que alguns alegram com suas promessas de casamento aos que adotam a tristeza por causa do desejo pelo esposo ao qual não podem se unir. Eles se batem e o chamam com gritos de dor, como se ele não estivesse aqui ou não devesse jamais estar aqui. O fim da tristeza é a união perfeita na pureza nupcial. É por isso que Paulo chamou de grande mistério a reunião do casal numa só carne, e afirmou: “Digo isto em relação a Cristo e a Igreja[143]”. Com efeito, assim como os esposos se tornam uma só carne, também aqueles que são de Deus se tornam um só Espírito com Deus, como o mesmo Paulo disse com sabedoria em outra passagem: “Aquele que se liga ao Senhor se torna com ele um só Espírito[144]”. Onde estão os que chamaram de criada a graça que habita nos santos de Deus? Saibam estes que blasfemam contra o próprio Espírito, que ela está com os santos na transmissão.
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Mas tomemos um outro exemplo em relação ao que dissemos, ainda mais significativo: pois o começo da tristeza é semelhante ao retorno do filho pródigo. É por isso que se enche de tristeza aquele que faz este retorno e o leva a dizer estas palavras: “Pai, eu pequei contra o céu e contra você, e não sou digno de ser chamado seu filho[145]”. Depois o fim da tristeza é semelhante ao reencontro com o Pai e com o abraço deste. Ao descobrir neste abraço a riqueza da incomparável misericórdia, chegando por meio dele a uma enorme alegria e liberdade, o filho foi amado e amou em troca. Depois de entrar com o Pai, participou de seu festim e desfrutou com ele de uma felicidade celeste. Mas venham, caiamos nós também na pobreza chamada de bem-aventurada e peçamos ao Senhor nosso Deus[146] que apague os pecados que cometemos, para que não mais façamos nenhum movimento para o mal e para que recebamos o Consolador, para que nele sejamos consolados e lhe rendamos glória, assim como ao Pai que não tem começo e ao Filho único, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém,
[1] Sentenças dos Padres do Deserto, Arsênio 13. [2] Salmo 40 (41): 5. [3] Nomes Divinos VI, 11. [4] II Samuel 6: 6-7. [5] Cf. Hebreus 12: 23. [6] Cf. II Pedro 3: 16. [7] Sabedoria 24: 21. [8] Cf. Lucas 10: 42. [9] Cf. Mateus 5: 42. [10] I João 5: 16-17. [11] II Coríntios 7: 10. [12] Efésios 5: 14. [13] Cf. I Pedro 2: 11. [14] Cf. Mateus 8: 22. [15] Gênesis 2: 17. [16] Cf. Gênesis 5: 5. [17] Gênesis 3: 17-19. [18] Cf. Apocalipse 20: 14. [19] Cf. Marcos 9: 44. [20] Cf. Mateus 8: 12. [21] Cf. Mateus 8: 12. [22] Cf. Mateus 5: 22. [23] Jeremias 4: 4. [24] Romanos 8: 13. [25] João 6: 63. [26] João 6: 68. [27] Cf. Romanos 7: 10. [28] Cf. II Coríntios 2: 16. [29] Cf. I Tessalonicenses 4: 17. [30] Cf. Hebreus 6: 20. [31] Cf. I Pedro 5: 1. [32] Cf. I Coríntios 15: 23. [33] Cf. Apocalipse 20: 14. [34] Cf. Efésios 5: 6.
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[35] Cf. Isaías 63: 4; Jeremias 28: 6. [36] Cf. Isaías 5: 25. [37] Cf. Hebreus 10: 31. [38] Cf. I Coríntios 6: 17. [39] Cf. Mateus 20: 1-16. [40] Cf. II Coríntios 1: 3. [41] Cf. João 15: 1. [42] Cf. João 6: 44. [43] Cf. João 15: 1-5. [44] Cf. II Coríntios 5: 19. [45] Cf. Mateus 12: 36. [46] João 10: 10. [47] Cf. João 4: 36. [48] Cf. Mateus 22: 30. [49] Cf. Lucas 20: 36. [50] Cf. Gênesis 3: 1-6. [51] Cf. I Timóteo 5: 14. [52] Lucas 18: 28. [53] Cf. Gênesis 2: 24. [54] Cf. Filipenses 3: 20. [55] Cf. Romanos 8: 6; Tiago 4: 4. [56] Cf. I Coríntios 7: 34. [57] I Coríntios 7: 31. [58] João 15: 1-2. [59] Cf. Lucas 6: 24-26. [60] Cf. Mateus 7: 13. [61] Cf. Mateus 7: 14. [62] Cf. Mateus 7: 13. [63] Cf. I Timóteo 5: 3. [64] Cf. II Coríntios 7: 10 [65] Mateus 5: 3. [66] Cf. Gênesis 2: 6. [67] Cf. Lucas 6: 20. [68] Cf. Isaías 10: 23 LXX. [69] Lucas 6: 20. [70] Mateus 11: 29. [71] Cf. I Timóteo 6: 10. [72] Cf. Colossenses 3: 5. [73] Cf. Mateus 19: 24. [74] Cf. I Timóteo 6: 9. [75] Cf. Lucas 12: 18. [76] Lucas 12: 15. [77] Cf. Mateus 6: 33. [78] Cf. Salmo 37 (38): 6. [79] Cf. II Reis 5: 27. [80] Cf. Atos 1: 18. [81] Mateus 6: 21. [82] Cf. Hebreus 1: 3. [83] Salmo 113 (114): 9. [84] Cf. Salmo 122 (123): 2.
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[85] Cf. Mateus 5: 3. [86] Mateus 11: 8. [87] Filipenses 3: 20. [88] Cf. Efésios 6: 12. [89] Cf. Filipenses 3: 20. [90] Salmo 52 (53): 6. [91] Cf. I Timóteo 1: 19. [92] João 5: 44. [93] Cf. Gênesis 4: 3s; Mateus 27: 18. [94] O nome de “cristãos”, que deriva de Cristo, o “Ungido” (cf. Atos 11: 26) [95] Cf. I Coríntios 10: 31. [96] Gálatas 1: 10. [97] Cf. Romanos 13: 14. [98] Cf. Mateus 15: 19. [99] Deuteronômio 15: 19. [100] Cf. Gênesis 3: 6. [101] Cf. Efésios 6: 14. [102] Cf. Mateus 5: 3. [103] Cf. Hebreus 12: 14. [104] Êxodo 3: 2-3. [105] Cf. Isaías 26: 20. [106] Mateus 5: 3. [107] Cf. João 15: 5. [108] Cf. Mateus 5: 3. [109] Mateus 5: 4. [110] Cf. II Coríntios 7: 10. [111] Cf. Gênesis 2: 6. [112] Cf. Mateus 5: 4. [113] A escada santa VI, 15. [114] Cf. I Coríntios 2: 9. [115] Cf. João 14: 7-16. [116] Cf. Salmo 103 (104): 15 [117] Cf. Mateus 5: 4. [118] Cf. Lucas 14: 33. [119] Cf. Mateus 6: 6. [120] Cf. Jeremias 36: 11. [121] Cf. Salmo 50 (51): 11. [122] Cf. Salmo 118 (119): 103. [123] Cf. Efésios 2: 7. [124] Salmo 33 (34): 9. [125] Jeremias 11: 21. [126] Cf. Lucas 6: 22. [127] Salmo 115 (116): 1. [128] II Coríntios 4: 13. [129] II Pedro 1: 19. [130] Cf. Salmo 103 (104): 23. [131] Cf. Salmo 75 (76): 5. [132] Evagro o Pôntico, Capita practica as Anatolium, PG 40, 1244 AB. [133] Diádoco de Foticéia, Cem Capítulos 89. [134] Ibid.
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[135] Isaac o Sírio, Obras Espirituais, pg. 203. [136] Ibid. [137] Cf. Mateus 7: 14. [138] Cf. II Coríntios 7: 10. [139] Marcos o Asceta, Dos que pensam ser justificados 224-225. [140] Cf. Mateus 5: 4. [141] Cf. II Coríntios 7: 10. [142] Cf. Gênesis 2: 15. [143] Efésios 5: 32. [144] I Coríntios 6: 17. [145] Lucas 15: 21. [146] Cf. Salmo 94 (95): 6.
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DAS LEIS DO NOVO TESTAMENTO O Senhor seu Deus, o Senhor é um[1], conhecido no Pai, no Filho e no Espírito Santo: no Pai, não gerado; no Filho, gerado, o Verbo sem começo, fora do tempo, fora de toda paixão, que, tendo por si próprio ungido e assumido nossa carne, foi chamado de Cristo; e no Espírito Santo, que, ele também, provém do Pai, não por geração, mas por sucessão. Ele é um só Deus. E ele é o verdadeiro Deus: o Senhor uno na Trindade das hipóstases, indivisível em sua natureza. Sua vontade, sua glória, seu poder, sua energia e em todas as marcas de sua Divindade. Somente a ele você amará. Somente a ele adorará, de todo pensamento, todo coração e com toda sua força[2]. Suas palavras e seus mandamentos estarão no seu coração, para que você os cumpra, medite a respeito e os repita, sentado, caminhando, deitado ou em pé[3]. Lembre-se continuamente do Senhor seu Deus[4], tema apenas a ele[5], não o esqueça e não se esqueça de seus mandamentos. É assim que ele próprio lhe dará a força para fazer a Sua vontade. Pois ele não pede a ninguém nada além de temê-lo, nada além de amá-lo, nada além de caminhar pelos seus caminhos[6]. Ele é a glória, ele é o seu Deus[7]. Não procure a impassibilidade e a invisibilidade dos Anjos que dominam o mundo, nem a grande malícia daquele que caiu dos céus, nem a sabedoria, a penetração, a engenhosidade com que ele persegue o erro, e não glorifique nenhuma destas potências rendendo-lhe as mesmas honras que a Deus. Não sonde a grandeza dos céus e as numerosas formas de seu movimento, os raios do sol, a claridade da lua, a cintilação das demais estrelas, o bem que nos faz o ar que respiramos, a prodigalidade do mar e da terra, e não deifique nada disto. Pois todas as coisas são servas e criaturas do Deus único: elas foram tiradas no nada pela sua palavra. Pois ele disse e elas surgiram, ele ordenou e elas foram criadas [8]. É, portanto, somente a ele, o Mestre e Criador do universo, que você glorificará como seu Deus, somente a ele você dedicará seu amor e diante dele você se arrependerá noite e dia por suas faltas voluntárias e involuntárias. Pois ele é compassivo e misericordioso, paciente, cheio de piedade[9], benevolente: ele prometeu o Reino celeste, o Reino perpétuo, a existência sem sofrimento, a vida imortal e a luz que não se extingue, para a alegria daqueles que o veneram, o adoram, o amam e que guardam os seus preceitos. Mas ele é também um Deus ciumento[10], um juiz justo e um justiceiro terrível. Os que o ultrajam, que lhe são infiéis, que transgridem seus preceitos, ele ao condena ao castigo eterno, ao fogo que não se apaga jamais, à dor contínua, à aflição inconsolável, às vestes das trevas negras, ao país sombrio e opresso, ao ranger de dentes[11], aos vermes venenosos que não dormem[12], que ele preparou para o primeiro apóstata que se submeteu ao mal, e com ele para todos os que se deixaram perder por sua causa, que o seguiram e se revoltaram contra seu Criador, em suas obras, palavras e pensamentos. * Você não fará imagem alguma que se assemelhe aos seres que estão no alto dos céus, sobre a terra e nas águas[13], para adorá-los e glorifica-los como se fossem deuses. Pois todos eles são criaturas do Deus único, que, no final dos séculos, tomou a carne de um seio virginal, apareceu sobre a terra, viveu entre os homens[14], sofreu por sua salvação, foi morto, ressuscitou e subiu aos céus com seu corpo e está sentado à direita da Majestade, no ponto mais alto[15]. É com este corpo que ele retornará em sua glória para julgar os vivos e os mortos[16]. Será, portanto, dele, que se fez homem por nós, que, por amor a ele, você fará ícones, é dele que por meio destes ícones você se recordará, é a ele que por meio destes ícones você adorará, erguendo seu intelecto por intermédio destes ícones até este corpo venerado do Salvador, que está sentado à direita do Pai no céu. Da mesma forma, você representará e venerará as figuras dos santos, não como deuses, pois isto não é permitido, mas por causa da relação que nos une a eles, pelo estado e pela honra imensa que nos conferem, quando o intelecto, por intermédio dos ícones, se refere a eles, como Moisés quando
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representou os ícones dos Querubins no santuário. Este Santo dos santos era a imagem daquilo que está acima do céu. O santuário cósmico trazia em si o ícone do mundo inteiro. E Moisés chamou-o de santuário, não por que ele glorificava as criaturas, mas por que através delas ele glorificava a Deus que criou o mundo. Também você, não deifique os ícones de Cristo nosso Mestre, nem os dos santos. Mas, através deles, você adorará Aquele que primeiramente nos criou à sua própria imagem, e que a seguir, em seu indizível amor pelo homem e por sua benevolência, tomou sore si nossa imagem sua e revestiu-se dela. Você venerará não apenas o ícone divino, mas também a imagem de sua cruz. Pois esta é um símbolo imenso. É o troféu que Cristo ganhou sobre o diabo e toda a falange dos adversários. Por isso eles tremem e fogem quando a veem representada. Este símbolo, antes mesmo de se tornar o modelo, já era glorificado nos profetas e fazia grandes prodígios. Mas será no momento da segunda vinda d’Aquele que foi suspenso nela, o Senhor Jesus Cristo que veio para julgar os vivos e os mortos, que surgirá como na origem este grande e terrível símbolo, com poder e grande glória[17]. Assim, glorifique-o agora, a fim de que então você possa vê-lo abertamente e ser glorificado com ele. E pelo fato de que os santos foram crucificados com o Senhor, você venerará seus ícones, fazendo o sinal da cruz sobre a sua face e se lembrando daquilo que foram as suas obras: a comunhão com os sofrimentos de Cristo. Da mesma forma, você venerará as urnas que contêm as relíquias de seus ossos. Pois a graça de Deus não se retirou deles, assim como a Divindade não se retirou do corpo venerado de Cristo quando de sua morte vivificante. Se você fizer isto. E se glorificar os que glorificaram a Deus ao se revelarem perfeitos em suas obras por amor a Deus, também você será glorificado por Deus e cantará com Davi, quando ele disse: “Deus, eu honrei muito os que o amam[18]”. * Você não invocará o nome do Senhor seu Deus em vão[19], por nada que seja terrestre, ou por temor aos homens, ou por vergonha, ou para benefício próprio, pronunciando um falso juramento. Pois o perjúrio é a negação de Deus. É por isso que você, em hipótese alguma, jurará[20], mas evitará qualquer juramento, pois é por intermédio disto que nos vem o perjúrio que afasta de Deus e que classifica entre os iníquos a quem o comete. Se você diz a verdade em todas as suas palavras, você dispensa por isso mesmo a confirmação por um juramento. E se algum dia lhe ocorrer comprometer-se por juramento, o que é detestável, e se o motivo do seu compromisso estiver relacionado com a lei divina, você o fará por que se trata da lei, mas pedirá para ser corrigido apenas por ter jurado, implorando pela compaixão, suplicando com tristeza e uma dura ascese do corpo pela piedade de Cristo, que disse: “Não jurarás”. Mas se aquilo com o que você se compromete é proibido pela lei, cuida para não realizar a iniquidade por causa do seu juramento, a fim de não ser contado com Herodes que matou o profeta[21]. Anule este juramento iníquo, tome a resolução da jamais voltar a jurar e chame sobre si a compaixão de Deus, esforçando-se até as lágrimas para usar os remédios de que falamos. No primeiro dia da semana, que é chamado de domingo – o dia do Senhor[22], por ter sido consagrado ao Senhor que, neste dia, ressuscitou dos mortos, mostrando e confirmando naquele momento a ressurreição comum na qual repousará toda a humanidade –, este dia você santificará[23] e não fará nenhum dos trabalhos da vida cotidiana, salvo o necessário, e concederá o repouso a todos os que vivem e dependem de você, a fim de que, juntos, vocês glorifiquem o Senhor que nos resgatou com sua própria morte, que ressuscitou e que ressuscitou com ele a nossa criatura. E lembre-se do século futuro, medite os mandamentos todos e os preceitos do Senhor, examine se você nada transgrediu ou omitiu, e corrija-se em tudo. Neste dia do Senhor, mantenha-se fielmente ligado ao templo de Deus, permaneça nas assembleias, comungue com uma fé pura e uma consciência irrepreensível o santo corpo e o santo sangue de Cristo, assuma uma vida mais rigorosa, renove a si mesmo e prepare-se para receber os bens eternos que virão, por cuja causa, mesmo nos demais dias, você não abusará dos bens terrestres. Mas no domingo, para estar
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perto de Deus, você deixará tudo de lado, exceto o que é absolutamente necessário e sem o que não é possível viver. Desta forma Deus será para você um local de refúgio do qual você não sairá. Você não acenderá o fogo das paixões, nem carregará peso dos pecados. Assim você santificará o dia do repouso, celebrando nele a cessação do mal. Da mesma forma, nas grandes festas, você fará as mesmas coisas e se absterá das mesmas coisas. * Honre seu pai e sua mãe[24]. Foi por intermédio deles que Deus o trouxe à vida, e são eles que, depois de Deus, constituem a fonte do seu ser. Portanto, você os honrará e a amará depois de Deus, na medida em que seu amor por eles contribua pata seu amor por Deus. Mas, se seu amor por eles não contribuir para tal, fuja para longe deles imediatamente. Se, da mesma forma, por serem heterodoxos, eles constituem um obstáculo para você, em especial para a verdadeira fé salvadora, não apenas você fugirá deles como os detestará, e não apenas a eles, mas a todos os parentes e a todos os que estão ligados por outros afetos e outros laços, bem como seus próprios membros e seus desejos, seu próprio corpo e o pendor que este possui pelas paixões. Pois, “se alguém não detesta seu pai, sua mãe, sua esposa, seus filhos, seus irmãos e até sua própria alma, se não tomar a sua cruz e me seguir, ele não será digno de mim [25]”, disse o Senhor Jesus Cristo. Que seja assim com seus pais na carne, seus amigos e seus irmãos. Mas aqueles que são seus iguais na fé, que não são um obstáculo à sua salvação, você os honrará e amará. E, se isto for assim em relação aos seus pais na carne, quanto mais ainda você honrará e amará aqueles que se tornaram seus pais pelo Espírito. Eles o fizeram passar do ser a ser do bem, eles lhe transmitiram a iluminação do conhecimento, eles lhe ensinaram a manifestação da verdade, eles o regeneraram com o banho da nova criação[26], eles colocaram em você a esperança da ressurreição, da imortalidade, do Reino perpétuo e da herança, de indigno o fizeram digno dos bens eternos, de terrestre eles o tornaram celeste, de temporal o tornaram eterno, filho e discípulo não de um homem, mas do Deus-homem Jesus Cristo[27] que lhe concedeu o Espírito de filiação[28]. É ele quem disse: “Não chamem a ninguém de pai e mestre sobre a terra. Por que vocês não têm senão um pai e um mestre: Cristo[29]”. Portanto, você deve toda honra e todo amor aos pais espirituais, uma vez que a honra que lhes é devida se refere a Cristo, ao Espírito Santo no qual você recebeu a filiação, e ao Pai celestial de quem tira seu nome toda paternidade no céu e na terra[30]. Ao longo de toda a sua vida você se esforçará por ter um pai espiritual, confessando a ele todas as suas faltas e pensamentos, recebendo dele o remédio e o perdão. Pois aos pais espirituais foi concedido desligar e ligar as almas: tudo o que eles ligarem na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligarem na terra será desligado nos céus[31]. De Cristo eles receberam esta graça e este poder. É por isso que você os escutará sem contradizê-los, para não lançar sua alma na perdição. Com efeito, se aquele que contradiz seus pais na carne em assuntos que não são proibidos pela Lei divina é condenado à morte segundo a Lei[32], como poderá aquele que contradiz a seus pais no Espírito não expulsar de si este Espírito de Deus e perder assim sua própria alma? Por isso, não cesse de interrogar e escutar a seus pais em espírito, para que sua alma seja salva e você possa herdar os bens eternos sem mistura. * Você não se prostituirá[33], a fim de não se tornar membro de uma prostituta[34] ao invés de se tornar membro de Cristo, a fim de não ser cortado do corpo divino, de não decair da herança de Deus, tombando na Geena. Pois se a filha de um sacerdote que se prostitui abertamente deve ser queimada, segundo a Lei[35], para compensar a vergonha de seu pai, quanto mais passível de castigo eterno será aquele que inflige tal mácula ao corpo de Cristo. Se você compreende isto[36], aplique-se à ascese da virgindade, a fim de poder ser inteiramente de Deus e se ligar a ele com um amor perfeito, consagrando-se a ele por toda a
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vida, cuidando das coisas do Senhor sem se deixar distrair, abraçando desde já a vida futura e se conduzindo sobre a terra como um anjo de Deus. Pois a virgindade é apanágio dos anjos, e será a eles, na medida do possível, que se assemelhará o corpo daquele que se consagrar à virgindade: ou melhor, antes deles, será ao Pai que, antes de todos os séculos, gerou na virgindade; será ao Filho virgem, gerado no começo por um Pai virgem e nascido da carne, no fim dos séculos, de uma Mãe virgem; e será ao Espírito, indizivelmente proveniente apenas do Pai, não por geração, mas por sucessão. É a este Deus que se assemelha e se une num casamento incorruptível aquele que escolhe a verdadeira virgindade, e que se torna virgem de alma e corpo, vestido com as belezas da virgindade em todos os sentidos e ainda na razão e na reflexão. Mas se você não escolheu ser virgem nem se prometeu a Deus, é lícito tomar uma esposa no Senhor segundo a lei, habitar apenas com ela, tê-la para si como um vaso de eleição para santificá-lo[37], abstendose criteriosamente de outras mulheres. E você poderá perfeitamente se abster delas se você evitar os encontros intempestivos, se você não se permitir dizer nem ouvir nada que leve à prostituição, se você desviar delas o olhar de seu corpo e da sua alma, tanto quanto puder, e se você se habituar a ver a beleza dos rostos sem se prender a ela. Pois quem olha uma mulher para deseja-la já cometeu com ela adultério em seu coração[38]; e com isto, ele será impuro aos olhos de Cristo, que vê o que está no coração. E a partir daí o infeliz cairá na condenação dos atos feitos pelo corpo. Porque insisto eu aqui na prostituição, no adultério e em todas as demais máculas que estão na nossa própria natureza? Por que é, com efeito, à força de ver e se prender à beleza dos corpos que o homem é arrastado sem freios às licenças contra a natureza. Portanto, será afastando de si as raízes amargas que você não dará os frutos da morte, mas os frutos da pureza e da santificação que existem na natureza, sem os quais ninguém poderá ver o Senhor[39]. * Você não matará[40], a fim de não decair de seu estado de filho adotivo d’Aquele que fez viver os mortos e para não ser adotado por causa das suas obras por aquele que desde o começo matou o homem[41]. Pois o assassinato provém de um golpe, o golpe provém de uma injúria, a injúria provém da cólera, e a cólera de um malefício que outros nos infligem, de um golpe que nos dão ou de uma injúria que nos dirigem. É por isso que você deve dar sua túnica àquele que toma o seu manto[42], disse Cristo. Não devolva o tapa que lhe deram. E não injurie quem o injuriou. É assim que você se livrará da queda mortal, que dela você livrará aquele que o maltrata, e que você receberá, para si, o perdão das faltas cometidas contra Deus. Pois foi dito: “Perdoem e lhes será perdoado[43]”. Mas quem diz e faz o mal será condenado ao castigo eterno[44]. Pois “quem chama seu irmão de ‘idiota’ será passível da Geena de fogo[45]”, disse Cristo. Se você conseguiu desenraizar o mal cultivando na alma a beatitude da doçura, glorifique a Cristo, que ensinou as virtudes e nos ajuda a cumpri-las: sem ele, como você sabe, nada podemos fazer de bom[46]. Mas se você não puder escapar à cólera, envergonhe-se por estar irritado, e arrependa-se diante de Deus e diante daquele que você feriu, que ouviu de você o mal que você disse. Pois quem se arrepende na origem do pecado não vai até o seu fim, mas quem permanece insensível nas pequenas faltas cairá nas grandes. * Não roube[47], a fim de que aquele que conhece os segredos não agrave o seu castigo por havê-lo desdenhado. Antes distribua secretamente seus bens aos que necessitam, a fim de receber ao cêntuplo, de Deus que vê no secreto[48], a vida eterna no século futuro[49]. *
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Não calunie[50], para não se fazer semelhante àquele que caluniou Eva diante de Deus no princípio, e que foi maldito[51]. Ao contrário, se isto não prejudicar a muitos, você encobrirá a queda do seu próximo para não se parecer com Caim, mas a Sem e Jafé, e assim obter a bênção[52]. * Você não cobiçará o que possuem aqueles que estão próximos de você[53]: nem propriedades, nem dinheiro, nem nada que pertença a eles. Pois a cobiça, concebida na alma, engendra o pecado. E o pecado, realizado, traz a morte[54]. Não desejando nada que não lhe pertença, você se absterá de roubar por cupidez. Antes, dê de seus bens a quem lhe pede, tenha compaixão, tanto quanto puder, por quem precisa da sua piedade, não volte as costas a quem lhe pede emprestado[55], e se encontrar alguma coisa que foi perdida, devolva-a ao seu dono, ainda que este seja algum dos que lhe são hostis [56]. Pois assim você o transformará e vencerá o mal com o bem, como Cristo ordenou. * Guardando estes preceitos com todas as suas forças e vivendo por eles, você depositará em sua alma o tesouro da piedade, você agradará a Deus, receberá as benesses de Deus e os homens de Deus e herdará os bens eternos. Possamos nós todos obter, pela graça e o amor que o Senhor, nosso Deus e nosso Salvador Jesus Cristo tem pelos homens, a ele seja dada toda a glória, honra e adoração, e a seu Pai que não tem começo, e ao Espírito Santo, bom e vivificante, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.
[1] Cf. Deuteronômio 6: 4. [2] Cf. Deuteronômio 6: 5. [3] Cf. Deuteronômio 6: 7. [4] Cf. Deuteronômio 8: 18. [5] Cf. Deuteronômio 6: 13. [6] Cf. Deuteronômio 10: 12. [7] Cf. Deuteronômio 10: 21. [8] Cf. Salmo 32 (33): 9. [9] Cf. Salmo 102 (103): 8. [10] Cf. Êxodo 20: 5. [11] Cf. Mateus 8: 12. [12] Cf. Marcos 9: 48. [13] Êxodo 20: 4. [14] Cf. Baruc 3: 38. [15] Cf. Hebreus 1: 3. [16] Cf. II Timóteo 4: 1. [17] Cf. Mateus 24: 30. [18] Salmo 138 (139): 17. [19] Êxodo 2: 7. [20] Cf. Mateus 5: 34. [21] Cf. Mateus 14: 7-12. [22] Cf. Apocalipse 1: 10.
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[23] Cf. Êxodo 20: 8.10. [24] Êxodo 20: 12. [25] Lucas 14: 26; Mateus 10: 38. [26] Cf. Tito 3: 5. [27] Cf. João 6: 45 citando Isaías 54: 13. [28] Cf. Romanos 8: 15. [29] Mateus 23: 9-10. [30] Cf. Efésios 3: 15. [31] Cf. Mateus 18: 18. [32] Cf. Êxodo 21: 17. [33] Êxodo 20: 14. [34] I Coríntios 6: 15. [35] Cf. Levítico 21: 9. [36] Cf. Mateus 22: 30. [37] Cf. I Tessalonicenses 4: 4. [38] Cf. Mateus 5: 28. [39] Cf. Hebreus 12: 14. [40] Êxodo 20: 13. [41] Cf. João 8: 44. [42] Lucas 6: 29. [43] Mateus 6: 14. [44] Cf. II Tessalonicenses 1: 9. [45] Mateus 5: 22. [46] Cf. João 15: 5. [47] Êxodo 20: 15. [48] Cf. Mateus 6: 4. [49] Cf. Marcos 10: 30. [50] Êxodo 20: 16. [51] Cf. Gênesis 3: 14. [52] Cf. Gênesis 9: 25. [53] Êxodo 20: 17. [54] Tiago 1: 15, [55] Mateus 5: 42. [56] Cf. Êxodo 23: 4-5.
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – Sobre os santos hesiquiastas.
SOBRE OS SANTOS HESIQUIASTAS Questão: Você fez bem, ó Pai, em citar as palavras dos santos a propósito de minha pergunta. De fato, quando o escutei solucionar minhas incertezas, admirei a evidência da verdade, mas uma reflexão deslizou entre os meus pensamentos: uma vez que toda palavra combate outra palavra, como você disse, uma palavra poderá também contestar aquilo que você disse. No entanto, eu não temo isto. Eu sei que só o testemunho dos santos é incontestável, e já ouvi santos dizerem a mesma coisa que você. Pois quem não foi convencido por eles, como será ele próprio digno de fé? Como não rejeitará este o Deus dos santos? Pois foi Deus quem disse aos apóstolos, e, por intermédio deles, aos santos que os seguiram: “Quem os rejeitar, estará rejeitando a mim[1]”, ou seja, estará rejeitando a própria verdade[2]. Portanto, como poderão os que buscam a verdade aprovar alguém que se opõe à verdade? É por isso que lhe peço, Pai, que me exponha cada um dos argumentos que ouvi destes homens que perseguem a educação helênica por toda a vida, e que depois me diga o que você pensa, acrescentando ainda a opinião dos santos. Estes homens afirma que estamos errados em nos esforçar por conter no corpo nosso intelecto. É fora do corpo, dizem eles, que devemos coloca-lo de alguma maneira. Por isso eles fustigam duramente alguns dos nossos. Eles escrevem contra eles, exortando os noviços a olhar para si mesmos e fazer penetrar neles seu próprio intelecto por meio da inspiração do sopro. Eles dizem que o intelecto não está separado da alma; mas como fazer penetrar aquilo que não está separado, mas unido? Eles acrescentam que os nosso falam em introduzir pelas narinas e alojar neles a graça divina. Mas eu sei que suas alegações nos caluniam, pois ouvi isto de um dos nossos, o que me levou a penar que em outros domínios seu comportamento deve ser também perverso. Pois é a mesma coisa forjar o que não está à vista dos homens, e perverter o que está. Mas ensine-me, Pai: por que escolhemos tão ardentemente fazer penetrar em nós o intelecto, e não pensamos no mal que existe em contê-lo no corpo? Resposta: Aos que escolheram colocar sua atenção sobre si próprios na hesíquia, não é inútil se esforçar para manter seu intelecto no interior de seu corpo. Irmão, você ouviu o Apóstolo dizer: “Nosso corpo é o templo do Espírito Santo que reside em nós [3]”, e também: “Somos a morada de Deus, conforme Deus disse: Eu habitarei e marcharei neles e serei seu Deus[4]”. Então, porque, se temos a inteligência, nos indignar que a inteligência habite naquilo que se torna naturalmente a morada de Deus? E de que maneira fez Deus habitar a inteligência no corpo desde o princípio? Terá ele feito mal? Estas questões, irmãos, cabe aos heréticos colocarem, eles que dizem que o corpo é mau e que ele é obra do maligno. Quanto a nós, pensamos que o intelecto é mau nos pensamentos corporais, mas que ele não é mau no corpo, uma vez que o corpo não é mau. É por isso que, com Davi, cada um que se liga a Deus por toda a vida chama por Deus assim: “Minha alma tem sede de ti. Quantas vezes te desejou minha carne![5]”. E: “Meu coração e minha carne se regozijam junto ao Deus vivo[6]”. E com Isaías: “Meu seio ressonou como uma cítara, e tudo o que há dentro de mim como um muro de bronze que reconstruístes[7]”. E: “Por temor a ti, Senhor, concebemos o Espírito de tua salvação[8]”. Confiando-nos a ele, não tombaremos. Cairão aqueles que falam a linguagem da terra e que mentem atribuindo à terra as palavras e as condutas celestes. Pois se o Apóstolo chama o corpo de “morte” (com efeito, ele disse: “Quem me libertará deste corpo de morte?[9]”) é por que o pensamento material e corporal tem realmente a forma do corpo. É por isso que, comparando-o ao pensamento espiritual e divino, ele o chamou de corpo, e não apenas de corpo, mas de corpo de morte. Isto ele já havia demonstrado claramente um pouco antes, ao acusar não a carne, mas o impulso faltoso suscitado pela transgressão. Ele disse: “Eu fui vendido ao pecado[10]”. Ora, quem é
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – Sobre os santos hesiquiastas.
vendido não é escravo por natureza. E mais: “Eu sei que o bem não habita em mim, ou seja, na minha carne[11]”. Veja, ele não diz que a carne é má, mas que é mau aquilo que reside no corpo, ou seja, esta lei que vive em nossos membros e que se opõe à lei do intelecto[12]. É por isso que, ao nos opormos à lei do pecado, nós a fazemos sair dos domínios do corpo e aí colocamos a atenção do intelecto. Por meio dela damos a cada potência da alma sua lei própria e a cada um dos membros do corpo aquilo que lhe convém. Aos sentidos, damos aquilo que eles devem perceber, e em qual medida: esta obra da lei se chama “temperança”. Na parte passional da alma, suscitamos o melhor estado, que se chama “amor”. E melhoramos também a razão, recusando tudo o que impede a reflexão de se elevar a Deus, e chamamos esta parte da lei de “sobriedade e vigilância” (nepsis). Aquele que purificou o corpo pela temperança, que fez do amor e do desejo uma oportunidade de virtude por meio do amor, que apresentou diante de Deus um intelecto despojado pela prática da prece, adquire e vê em si mesmo a graça prometida aos corações puros. Então ele poderá dizer com Paulo: “Deus, que disse: ‘Que a luz brilhe do fundo das trevas’, fez brilhar a luz em nossos corações, para que resplandeça o conhecimento da glória de Deus sobre a face de Jesus Cristo[13]”. Mas, diz ele ainda, trazemos este tesouro em vasos de barro[14]: nossos corpos. Se retivermos nosso intelecto dentro do corpo, estaremos agindo de uma maneira indigna da nobreza do intelecto? Quem poderá afirmar uma coisa destas, não digo do espiritual, mas daquele que possui um intelecto desprovido da graça divina, e, no entanto, um intelecto de homem? A partir do momento em que nossa alma constitui uma existência única dotada de diversas potências, e que ela se serve do corpo, que vive naturalmente em relação com ela, como se fosse um órgão, de quais órgãos se serve em sua atividade a potência da alma a que denominamos “intelecto”? Ninguém jamais supôs que a atividade do intelecto se situasse nas unhas ou nas pálpebras, nem nas narinas ou nos lábios. Todos concordam em que ela se encontra dentro de nós. Mas alguns se puseram a debater para saber de qual órgão, dentre os que se encontram dentro de nós, ele se erve em primeiro lugar. Alguns o colocam no cérebro, como numa espécie de acrópole. Outros lhe dão como veículo o próprio centro do coração, onde não existe o sopro terrestre. Quanto a nós, sabemos que nossa razão não está nem dentro de nós como num vaso, por que ela é incorpórea, nem fora de nós, por que está ligada a nós, mas que ela reside no coração como se este fosse seu órgão. Não aprendemos isto de um homem, mas d’Aquele mesmo que criou o homem e que disse no Evangelho: “Não é o que entra, mas o que sai da boca que suja o homem[15]”. Pois “é do coração, completa ele, que vêm os pensamentos[16]”. O grande Macário diz a respeito a mesma coisa: “O coração dirige todo o organismo, e quando a graça ocupa as pastagens do coração ela reina sobre todos os pensamentos e todos os membros. Pois aí está o intelecto e aí estão todos os pensamentos da alma[17]”. Assim é que nosso coração é o lugar do pensamento, e o primeiro órgão carnal da razão. Assim, quando nos esforçamos para examinar e endireitar nossa razão por meio do rigor da sóbria vigilância, com que a examinaremos, se não reunirmos nossa inteligência dispersa no exterior pelos sentidos, e não a conduzirmos para o interior, para o próprio coração, o lugar dos pensamentos? É por isso que Macário, que não tem este nome à toa[18], logo depois do que foi citado acima, acrescenta: “É, portanto, aí que se deve observar se a graça gravou as leis do Espírito[19]”. Aí aonde? No órgão diretor, sobre o trono da graça, onde estão o intelecto e todos os pensamentos da alma, ou seja, no coração. Veja como é necessário, para os que escolheram estar atentos a si próprios na hesíquia, reunir e conter o intelecto no corpo, e, em especial, neste corpo que está no fundo último do corpo, ao qual chamamos de “coração”. Se, conforme o salmista, toda a glória da filha do rei vem de dentro[20], porque iríamos buscá-la fora? E se, de acordo com o Apóstolo, Deus colocou em nossos corações seu Espírito que clama “Abba, Pai [21]”, como não iremos orar com o Espírito em nossos corações? E se, enfim, conforme o Senhor dos profetas e dos apóstolos, o Reino dos céus está dentro de nós[22], como poderia se colocar fora deste Reino dos céus aquele que se esforça por extrair o intelecto daquilo que está no seu interior? O coração reto, disse
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Salomão, busca o sentido[23], que ele afirma em outra parte ser intelectual e divino, e ao qual nos conduzem todos os Padres, quando dizem: “A inteligência propriamente intelectual se reveste do sentido intelectual. Não cessemos de buscar este sentido em nós e naquilo que não está em nós[24]”. Como você pode ver, se nos esforçamos por nos opor ao pecado, para adquirir a virtude, para obter a recompensa do combate da virtude, ou melhor, a garantia da recompensa da virtude – que é o sentido intelectual – é preciso remeter para o interior do próprio corpo o intelecto. Quanto a extrair o intelecto, não para fora do sentimento corporal, mas para fora do próprio corpo, para obter visões espirituais, este é o mais grave erro dos helênicos, a raiz e a fonte de toda falsidade, uma invenção dos demônios, uma doutrina que gera a estupidez[25] e que provém da desorientação[26]. É por isso que aqueles que falem pelos demônios saem de si e não compreendem o que dizem. Quanto a nós, coloquemos o intelecto não apenas no interior do corpo e do coração, mas no interior dele mesmo. Que falem, então, os que dizem que o intelecto não está separado da alma, mas que está unido a ela, e que perguntam como ainda é possível enviá-lo para o interior. Eles ignoram, ao que parece, que a essência do intelecto é uma coisa e que sua energia é outra coisa. OU antes, eles o sabem, se se colocam entre os impostores, jogando com a semelhança dos nomes. Pois ao não aceitarem a simplicidade da doutrina espiritual, eles, a quem a dialética tornou agudos na contradição, segundo o grande Basílio, invertem a força da verdade por meio de antíteses de falso conhecimento[27], sob a razão especiosa dos sofismas. É disto que se tornam mutuamente devedores aqueles que não são espirituais e que se creem dignos de julgar o espírito e de ensinar. Pois eles esqueceram que não ocorre com o intelecto o que acontece com o olho, que vê as demais coisas sensíveis mas não enxerga a si mesmo. O intelecto opera sobre outras coisas que ela pode observar: é o que Denis o Grande chama de seu movimento retilíneo. Mas ele retorna sobre si mesmo e opera sobre si mesmo, quando enxerga a si próprio: é o que o mesmo Denis chama de seu movimento circular[28]. Ora, este movimento constitui a melhor energia do intelecto, aquela que lhe é mais própria. Por meio desta energia é que o intelecto pode ultrapassar a si mesmo e chegar a estar com Deus. Pois “o intelecto, diz o grande Basílio, não se dispersa no exterior”. Como você vê, ele pode sair, e, se pode sair, é preciso que retorne. É por isso que ele acrescenta: “Ele retorna sobre si mesmo, e se eleva até Deus por si próprio[29]”, como caminhando por uma via que não se perde nem desvia. Denis, este infalível contemplador do inteligível, diz também que este movimento do intelecto não pode cair em erro algum[30]. O pai do erro deseja sempre desviar o homem deste movimento e conduzi-lo ao movimento que carrega seus erros. Ora, até hoje, que o saibamos, ele ainda não encontrara ninguém que o ajudasse e se esforçasse por atirar o homem a este movimento por meio de palavras sedutoras. É agora, ao que parece, que ele encontrou auxiliares, se é verdade, como você disse, que existem homens que chegaram a escrever tratados neste sentido e que tentam convencer a maior parte, e até os que abraçam a vida hesiquiasta mais elevada, de que é melhor manter fora do corpo o intelecto que ora. Eles não respeitam sequer o que disse João, que nos construiu com seus tratados a escada que leva aos céus, de maneira definitiva e decisiva: “O hesiquiasta é aquele que se esforça para conter o incorpóreo em seu corpo[31]”, que é o mesmo que unanimemente nos ensinaram nossos pais espirituais. Pois se o homem não for capaz de conter o incorpóreo em seu corpo, como poderá ele conter em si Aquele que se uniu ao corpo, e que progride, como uma forma natural, através de toda a matéria organizada, cuja exterioridade e cuja divisão não podem senão corresponder à essência do intelecto, dado que ao final esta matéria se torna viva após ver suscitada nela uma forma de vida votada para a união. Você vê, irmão, de que modo João Clímaco mostrou que não é apenas de um modo espiritual, mas também de uma maneira humana, que é possível experimentar o modo como aqueles que escolheram ser e dar ao seu homem interior o nome de monge, devem enviar e manter em si o intelecto no interior do coração? Desta forma, ensinar aos noviços a ver em si mesmos e a enviar para o seu interior, pela inspiração, seu próprio intelecto, não é de modo algum fora de propósito. Nenhum homem de bom senso
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impediria o intelecto que ainda não contempla a si próprio de se recolher sobre si mesmo por certos meios. Pois o intelecto reunido escapa continuamente àqueles que acabam de se despojar para conduzir tal combate. É preciso, portanto, que eles o reconduzam para si continuamente também. Eles ignoram, por falta de experiência, que nada é mais difícil de contemplar nem mais móvel do que o intelecto. É por isso que alguns recomendam prestar atenção ao sopro, à inspiração e à expiração, retendo-a um pouco, de modo a reter igualmente o intelecto vigiando a respiração, até que, com a ajuda de Deus, depois de haver progredido, conseguir impedir o intelecto saia em direção ao que o cerca, e, purificando-o, conseguir reuni-lo num enovelamento que o unifique. Podemos ver nisto um efeito espontâneo da atenção do intelecto, pois este sopro entra e sai pacificamente quando todo pensamento que sustenta o combate está concentrado, sobretudo naqueles que vivem na hesíquia do corpo e da reflexão. Estes se entregam ao sabbat espiritual. Repousando de todas as suas obras próprias, na medida do possível, eles apagam das potências da alma todas as obras do conhecimento, mutantes e passageiras em sua diversidade, todas as percepções dos sentidos e em geral todas as atividades do corpo que dependem de nós. Quanto àquelas que não dependem inteiramente de nós, como a respiração, eles também de despojam delas, na medida do possível. Tudo isto vem sem esforço e sem que seja preciso pensar, para aqueles que progrediram na hesíquia. Pois tudo isto é necessária e espontaneamente suscitado pela perfeita entrada da alma sobre si mesma. Mas entre os noviços nada do que descrevemos é possível sem fadiga. Como a paciência é uma consequência do amor – pois o amor suporta tudo[32] e aprendemos a obter a paciência com todas as nossas forças, a fim de, graças a ela, alcançar o amor – o mesmo acontece aqui. Mas porque dizê-lo desde logo? Todos os que têm experiência riem dos que legislam se opondo a eles e à sua experiência. Pois o mestre destes homens não é a palavra, mas o esforço, e a experiência que provém das penas, que traz os frutos úteis e recusa as palavras estéreis dos que amam disputar e acusar. Um dos grandes monges disse a respeito que “depois da transgressão o homem interior se adapta naturalmente às formas do exterior[33]”. A partir daí, aquele que se esforça por fazer retornar o intelecto sobre si mesmo, a fim de suscitar não o movimento linear, mas o movimento circular e infalível, ao invés de deixar seu olho passear por aí, como não encontrará ele um grande benefício em fixá-lo sobre o peito ou sobre seu umbigo como um suporte? Pois, além de se enrolar sobre si mesmo num círculo diretamente no mundo exterior, tanto quanto possível, à imagem do movimento interior do intelecto ao qual ele se aplica, ele enviará para dentro do coração, com esta disposição do corpo, a potência do intelecto que, pela vista, se dispersa no exterior. Pois se a potência do animal inteligível assenta-se no centro do ventre[34], uma vez que a lei do pecado aí exerce seu império e lhe concede pastar, porque não colocaríamos aí a lei do intelecto, que, armado com a prece, combate esta lei do pecado[35], a fim de que o espírito mau expulso pelo banho do novo nascimento não volte a se instalar aí com sete outros espíritos ainda piores e que nossa última condição não se torne pior do que a primeira[36]? Esteja atento a si mesmo[37], disse Moisés, ou seja, a você mesmo por inteiro. Mas, por meio de qual órgão? Certamente, pelo intelecto. Pois por nenhum outro é possível estar atento a si mesmo por inteiro. Assim, coloque esta guarda sobre sua alma e seu corpo. É por meio dela, com efeito, que você se desembaraçará facilmente das más paixões corporais e psíquicas. Aplique-se, vigie a si mesmo, examine a si mesmo, ou antes, exponha-se, observe e verifique. É assim que você submeterá ao Espírito a carne que se revolta, e assim não haverá jamais palavra oculta no seu coração[38]. Se o espírito do dominador, ou seja, dos maus espíritos e das más paixões, se ergue contra você, diz o Eclesiastes, não abandone seu lugar[39], ou seja, não deixe nenhuma parte da alma, nenhum membro do corpo sem supervisão. Você se elevará assim acima dos espíritos que o ameaçam desde baixo e, por havêlos sondado, você se apresentará com segurança e sem ser você próprio sondado, diante d’Aquele que sonda os corações e os rins[40]. Paulo diz, com efeito: “Se julgarmos a nós mesmos, não seremos
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julgados[41]”. Provando desta bem-aventurada paixão de Davi, também você dirá a Deus: “As trevas, graças a você, não serão mais obscuras e a noite será para mim tão clara como o dia, pois você guarda meus rins[42]”. Não apenas, dizia ele, você tornou seu a tudo o que minha alma deseja, mas se um fogo em meu corpo reanimar a chama deste desejo, ele retornará para a origem, ele voará para você, meu Deus, e se ligará e se unirá a você. Da mesma forma, com efeito, como os que se dedicam aos prazeres corruptíveis dos sentidos esgotam na carne todo o desejo da alma, e se tornam inteiramente carne sem que seja possível ao Espírito de Deus habitar neles[43], também nos que elevaram o intelecto a Deus e ligaram a alma ao desejo divino, a carne, transformada, se eleva igualmente, desfruta da comunhão divina com a alma e se torna ela também o domínio e a morada de Deus, cessando de ser hostil a Deus e de desejar contra o Espírito[44]. Qual é, na carne e no intelecto, o lugar que mais convém ao espírito que sobe até nós desde baixo? Não é na carne, na qual nada de bom habita, conforme o Apóstolo, antes de que nela venha e permaneça a lei da vida[45]? Portanto, será sobre ela que deveremos atentar sem relaxamento. Como torná-la nossa? Como não abandoná-la? Como impedir o maligno de subir até ela, sobretudo nós que ainda não sabemos rejeitar o mal espiritualmente, pelos próprios caminhos do Espírito, senão nos educando sobre os caminhos da atenção sobre nós por intermédio da atitude exterior? Mas porque falar dos que acabam de começar, quando existem alguns mais perfeitos que adotaram esta atitude durante a oração e que foram atendidos pelo divino, não apenas dentre os que viveram depois de Cristo, mas dentre alguns que viveram antes que ele viesse a nós? O próprio Elias, o mais perfeito dentre os que receberam a visão de Deus, depois de haver apoiado a testa entre os joelhos e ter reunido seu intelecto em si e em Deus depois de muito esforço, colocou fim a uma seca de muitos anos[46]. Mas estes homens de que você fala, irmão, ouvindo-os falar assim, me parecem ter a doença dos fariseus. É por isso que eles não querem examinar nem purificar o interior da taça[47], ou seja, do coração. E ao mesmo tempo em que eles não seguem as tradições dos Padres, eles se esforçam por ter a primazia sobre todos[48], como se fossem novos doutores da lei. Eles mesmos desdenham esta forma de oração que foi justificada no publicano[49], e exortam os outros a não adotá-la quando oram. Com efeito, como disse o Senhor nos Evangelhos: o publicano não tinha coragem sequer para erguer os olhos aos céus [50]. Ora, é a ele que estão imitando os que em suas orações voltam o olhar sobre si próprios. E os que os chamam de “onfalopsíquicos” o fazem manifestamente para caluniá-los com esta acusação. Quem, dentre eles, jamais afirmou que a alma ficava no umbigo? Assim, além de se entregarem a uma manifesta calúnia, eles se mostram como são: homens que ultrajam os que são dignos de louvor e que não corrigem os que se enganam, pois eles não escrevem pela causa da hesíquia e da verdade, mas pela vanglória, e não para conduzir à sóbria vigilância, mas para afastar dela. Por todos os meios, e partindo das correspondentes ações, eles se esforçam por desqualificar a própria obra e aqueles que a ela se dedicam corretamente. Tais homens chamariam facilmente de “coilopsíquicos” aquele que disse: “a lei de Deus está em meu ventre[51]”, e que confiou em Deus: “Meu ventre ressoará como uma cítara, e o que há em mim como um muro de bronze que você reconstruiu[52]”. Eles englobariam numa mesma acusação todos os que, por meio de símbolos corporais, representam, designam e buscam as coisas do intelecto, divinas e espirituais. Nisto, em nada eles prejudicam os hesiquiastas. Antes eles os cumularão de beatitudes e multiplicarão suas coroas nos céus. Mas eles próprios permanecerão fora dos véus sagrados, e não poderão contemplar sequer as sombras da verdade. E é de se temer que sejam passíveis do julgamento eterno, não apenas por terem se separado dos santos, mas ainda por tê-los combatido com suas palavras. Você conhece a vida de Simeão o Novo Teólogo. Quase tudo ali é milagre, a tal ponto Deus o glorificou com milagres sobrenaturais. Você conhece também seus escritos: se os chamarmos de “escritos de vida” não estaremos longe da verdade. Você conhece também Nicéforo, este santo que passou longos anos no
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deserto e na hesíquia, que depois viajou pelas partes mais desérticas da Santa Montanha e que, tendo se consagrado a recolher todos os testemunhos dos Padres, nos transmitiu sua prática de sobriedade e vigilância. Ambos ensinaram aos que a escolheram esta via, que, segundo você disse, alguns recusam. E o que dizer dos santos de antigamente? Homens que, pouco tempo antes de nós, testemunharam e experimentaram em si o poder do Espírito Santo e que nos transmitiram pela sua boca. Assim é este renomado teólogo de nossos dias, este verdadeiro teólogo, o mais seguro contemplador da verdade dos mistérios de Deus, este Teolepto “que recebeu de Deus”, como seu nome indica, bispo de Filadélfia, ou melhor, aquele que, desde Filadélfia, como um candelabro, ilumina o mundo. E Atanásio, que durante anos ornamentou o trono patriarcal, e cujo ataúde Deus honrou. E este Nilo, originário da Itália, imitador de são Nilo. E Sebiotas e Elias, que em nada lhes são inferiores. E Gabriel e Atanásio, que foram considerados dignos de um carisma profético. É deles certamente que quero lhe falar, e de muitos outros antes deles, com eles ou depois deles, louvando e exortando aos que desejam conservar esta tradição que os novos “mestres” da hesíquia, que dela não conhecem nem traço, tentam rejeitar, deformar, desqualificar, admoestando, não por sua experiência, mas pelo mero falatório, sem nenhum proveito para os que os escutam[53]. Ora, dentre estes santos existem alguns com que nós mesmos pudemos conversar, e que foram nossos mestres. Como poderemos considerá-los como nada, a eles que receberam o ensinamento da experiência e da graça, para ceder diante daqueles que se puseram a ensinar pelo orgulho e a disputa? Isto não pode acontecer, e não acontecerá jamais. Portanto, você também, afaste-se de tais homens[54]. E diga sabiamente a si próprio o que disse Davi: “Minha alma bendiz ao Senhor, e tudo o que existe em mim bendiga o seu santo nome[55]”. Deixe-se conduzir pelos Padres, e escute como eles o exortam sempre a interiorizar o intelecto.
[1] Lucas 10: 16. [2] Cf. João 14: 16. [3] II Coríntios 6: 19. [4] II Coríntios 6: 16. [5] Salmo 62 (63): 2. [6] Salmo 83 (84): 3. [7] Isaías 16: 11. [8] Isaías 26: 18. [9] Romanos 7: 24. [10] Romanos 7: 1.4. [11] Romanos 7: 18. [12] Cf. Romanos 7: 23. [13] II Coríntios 4: 6. [14] II Coríntios 4: 7. [15] Mateus 15: 11. [16] Mateus 15: 19. [17] São Macário, Homilias espirituais XV, 20. [18] Macário significa “bem-aventurado”. [19] São Macário, Op. cit. [20] Cf. Salmo 44 (45): 13. [21] Gálatas 4: 6.
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[22] Cf. Lucas 17: 21. [23] Cf. Provérbios 15: 14. [24] João Clímaco, A escada santa XXVI, 17. [25] Anoia: literalmente, ausência de inteligência. [26] Aponoia: literalmente, a desorientação da inteligência. [27] Basílio de Cesaréia, Hom. XII in Prov., PG 31,401 A. [28] Nomes divinos IV, 9. [29] Carta II. [30] Nomes divinos IV, 9. [31] João Clímaco, A escada santa, XXVII, 7. [32] Cf. I Coríntios 13: 7. [33] São Macário, Homilias espirituais, XVI, 7. [34] Cf. Jó 40: 16. [35] Cf. Romanos 7: 23. [36] Cf. Mateus 12: 45. [37] Cf. Deuteronômio 15: 19. [38] Cf. Deuteronômio 15: 9. [39] Cf. Eclesiastes 10: 4. [40] Cf. Salmo 7: 10. [41] I Coríntios 11: 31. [42] Salmo 138 (139): 12-13. [43] Cf. Gênesis 6: 3. [44] Cf. Gálatas 5: 17. [45] Cf. Romanos 7: 18. [46] Cf. II Reis 18: 42-43. [47] Cf. Mateus 23: 25. [48] Cf. Mateus 23: 6. [49] Cf. Lucas 18: 9-14. [50] Cf. Lucas 18: 13. [51] Salmo 39 (40): 0. [52] Isaías 16: 11. [53] Cf. II Timóteo 2: 14. [54] Cf. II Timóteo 3: 5. [55] Salmo 102 (103): 1.
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – Sobre a prece e a pureza do coração.
SOBRE A PRECE E A PUREZA DO CORAÇÃO 1, Uma vez que o divino é a bondade mesma e propriamente a compaixão e o abismo de doçura, ou antes, é o que abraça este abismo, na medida em que ultrapassa todo nome que pode ser nomeado[1] e toda coisa concebível, não é possível encontrar a compaixão senão unindo-se a ele. Ora, o modo de nos unirmos a ele, na medida do possível, consiste em partilhar com ele as virtudes semelhantes, partilhando o pedido e a união na prece a Deus. A partilha das virtudes torna naturalmente o menos fervoroso apto a receber o divino por semelhança. Mas ela não conduz à união. É o poder da oração que celebra esta comunhão e realiza a tensão do homem em direção ao divino e sua união com ele, pois ela é um laço que amarra ao Criador as criaturas dotadas de razão quando, por uma ardente compunção, os movimentos da prece superam as paixões e os pensamentos. Pois é impossível ao intelecto passional unir-se a Deus. Assim, o intelecto, na medida em que não se encontra em estado de prece, é incapaz de descobrir a compaixão. Mas quanto mais ele se desembaraça dos pensamentos, mais ele alcança a tristeza. E, na medida desta tristeza, ela participa da compaixão que a consola. Se, com humildade, ela consagra seu tempo a esta ascese, ela transforma a parte passional da alma. 2. Quando a unidade do pensamento se torna tripla ao mesmo tempo em que permanece uma, então ela se une à Unidade trinitária da divina Origem, depois de haver fechado rodas as entradas do erro e de se ter colocado acima da carne, do mundo e daquele que mantém o mundo sob seu domínio. Escapando assim aos seus projetos, ela permanece em si e em Deus: na medida em que ela permanece sendo o que é, ela desfruta da alegria espiritual que brota do coração. Mas a unidade do intelecto se torna tripla ao mesmo tempo em que permanece uma quando este se volta para si mesmo e quando, através de si próprio, se eleva a Deus. Ora, o retorno do intelecto sobre si mesmo é sua própria proteção. Sua elevação para Deus de início é operada pela prece e, na medida em que a prece se desenvolve, pode acontecer que ele se expanda subitamente, o que exigirá mais trabalho. Mas se perseverarmos neste desdobramento do intelecto e na sua tensão em direção ao divino, à custa de nos violentarmos para avançarmos pouco a pouco até a reflexão divina, será assim que, por meio do intelecto, nos aproximaremos de Deus: descobriremos o indizível, provaremos do século futuro e conheceremos pelo próprio sentido do intelecto que o Senhor é bom, como disse o Salmista: “Provem e vejam que o Senhor é bom[2]”. Descobrir o intelecto triplo ao mesmo tempo em que se conserva a identidade única, guardando e orando por sua guarda, não é, portanto, uma coisa muito difícil. Mas perseverar longamente neste estado pela geração do indizível é da mais alta dificuldade. Todos os outros esforços exigidos pelas demais virtudes são mínimos e suportáveis comparados a este. É por isso que muitos, por recusarem o que existe de mais estreito e estrito nas virtudes orantes, não alcançam além dos carismas. Mas aos que perseveram, os socorros divino os protegem, tornando-os maiores e, transportando-os e sustentando-os, os conduzem adiante com prazer, e assim tornam a eles mais acessível a difícil capacidade de orar, a fazem por assim dizer angélica e dão à nossa natureza a força de dialogar com o sobrenatural, como disse o profeta: “Os que perseverarem renovarão sua força. E receberão asas[3]”. 3. O que é chamado de intelecto é a energia desta inteligência suscitada nos raciocínios e nos pensamentos. O intelecto é também a potência que coloca em movimento estes pensamentos, e que a
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – Sobre a prece e a pureza do coração.
Escritura chama de coração. Por intermédio do coração, a mais importante das nossas potências interiores, o intelecto é a alma dotada de razão que está em nós. É claro que a energia do intelecto nos pensamentos se estabelece e se purifica facilmente naqueles que se consagram à oração, em especial à prece do nome único de Deus. Mas o poder que suscita esta prece não pode se purificar se não o forem as demais potências da alma, pois a alma constitui uma única e mesma atividade com múltiplas potências. Assim, ela se mancha inteira quando sobrevém o mal, por qualquer uma das potências que existem nela, uma vez que todas comunicam com a potência única na unidade da alma. Uma vez que cada uma das potências dispensa uma energia diferente, é possível, vigiando-a, purificar qualquer uma delas no momento em que ela age, mas nem por isso esta potência se tornará pura. Pois, comunicando-se com as demais, esta potência pura pode se tornar outra vez impura. É por isso que quando alguém, dedicando-se à oração, purifica a energia do intelecto e se torna numa certa medida iluminado pela luz do conhecimento ou pela iluminação intelectual, esta pessoa se perde se enganar a si própria pensando estar por causa disso purificada; por sua presunção ela estará abrindo de par em par a porta àquele que tenta nos enganar todo o tempo. Mas se, conhecendo a impureza de seu próprio coração, ele não se satisfizer com esta pureza mitigada e solicitar a ajuda das demais potências da alma, ele verá com mais pureza sua impureza e progredirá na humildade, acrescentando a tristeza e encontrando o remédio que convém a cada potência da alma: ele purificará por si própria a potência prática por meio da ação, a potência cognitiva pelo conhecimento, a potência contemplativa pela oração, e chegará assim à perfeita, verdadeira e certíssima pureza do coração e do intelecto que só pode ser concedida pela perfeição na ação, pela constante aplicação, pela contemplação e pela prece na contemplação.
[1] Cf. Efésios 1: 21. [2] Salmo 33 (34): 9. [3] Isaías 40: 31.
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – 150 capítulos físicos, teológicos, éticos e práticos.
150 CAPÍTULOS FÍSICOS, TEOLÓGICOS, ÉTICOS E PRÁTICOS
1. Que o mundo começou um dia, a natureza o ensina, a história confirma, a invenção das artes, a instituição das leis, os costumes no governo das cidades o representa claramente. Conhecemos os que inventaram quase todas as artes, os que instituíram as leis, os que estão na origem do governo das cidades e até, com certeza, os que estão na origem de tudo o que foi escrito sobre não importa qual assunto. E vemos que nenhum deles vai além da gênese do mundo e do tempo descrita por Moisés. O próprio Moisés, que relatou o começo da gênese do mundo, deu provas incontestáveis da sua verdade, e o fez por meio de tantas obras e palavras extraordinárias que convenceu o gênero humano e expôs o ridículo daqueles que haviam imaginado o contrário. Pois a natureza deste mundo, que sempre teve necessidade do novo começo de cada um de nós e que não pode de modo algum se manter sem isto, representa com isto sua própria origem, que não proveio de outro começo. 2. Que o mundo não apenas começou, mas ainda terá um fim, está evidente pela natureza das coisas contingentes, uma vez que ele nunca cessa de se encaminhar parcialmente para o seu final. A profecia de outros inspirados, como a de Cristo Deus que domina o universo, fornece a prova certa e incontestável. Não apenas os homens de piedade, mas também os ímpios, devem necessariamente concordar que estas coisas são verídicas: é visível que os profetas, em tudo o que anunciaram, disseram a verdade. E não é preciso ensinar que este mundo inteiro não terminará no completo nada, mas, na medida em que ele é análogo a nós, será transformado como o serão nossos próprios corpos, dissolvido e transformado em vista do pleno divino, pelo poder do Espírito Santo. 3. Os sábios gregos ensinam que o céu gira, levado pela natureza da alma cósmica, e que ele ensina a justiça e a razão. Qual justiça? Qual razão? Pois se o céu não gira por sua própria natureza, mas pela natureza daquilo a que eles chama “alma cósmica”, e se a alma cósmica é a alma do mundo todo, como não giram também a terra, a água e o ar? Embora a alma esteja sempre em movimento, segundo os sábios gregos, a terra, por sua própria natureza, é imóvel, e o mesmo acontece com a água que ocupa a região inferior. Da mesma maneira o céu, que mantém a região superior, está sempre em movimento, e seu movimento é circular. Mas o que seria esta alma cósmica cuja natureza colocaria o céu em movimento? Será ela dotada de razão? Mas então ela seria independente, e o corpo celeste não suscitaria os mesmos movimentos perpétuos. Pois aquilo que é independente possui outro tipo de movimento. Que traço da alma dotada de razão vemos sobre esta esfera mais baixa, quero dizer outra vez da terra, o daquilo que está próximo dela, a água e o ar, e o próprio fogo? Pois a alma cósmica seria também a sua alma. Ou como, mais uma vez, uns seriam dotados de alma e outros não? Tudo isto, segundo os sábios gregos. Não há nada aqui por acaso: falo de toda pedra, todo metal, todo pó, toda água, todo fogo. Pois eles próprios dizem que o fogo é movido por sua própria natureza e não pela alma. Portanto, se a alma é comum, como é possível que somente o céu seja movido pela natureza da alma, e não por sua própria natureza? A alma que, segundo eles, coloca em movimento o corpo celeste não é dotada de razão. Mas como poderá não sê-lo, se ela própria, ainda segundo eles, é a fonte das nossas almas? Porém, ainda que não seja dotada de razão, ela deve possuir sentidos, ou deve ter uma natureza. Não vemos como uma alma pode colocar em movimento um corpo que não possui órgãos. E não vemos que a terra ou o céu ou qualquer de seus elementos possua um membro orgânico. Pois todo órgão é composto de diferentes naturezas. Ora, cada um dos elementos citados é de natureza simples, em especial o céu.
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A alma seria assim a energia ativa de um corpo orgânico que tem uma vida potencial. E o céu, que não possui nenhum membro ou parte orgânica, não poderia ser vivo. Mas então, como algo que não tem possibilidade de vida pode possuir uma alma? Ora, aqueles cujos raciocínios foram reconhecidos como vãos[1] criaram a partir de seu coração sem inteligência uma alma que não o é, que nunca existiu nem existirá. E desta alma disseram eles ser a criadora, o guia e a provedora de todo o mundo sensível e de nossas almas, ou antes, de todas as almas, como uma raiz e uma fonte, que extrai de sua inteligência a própria origem. Ora, esta inteligência ordinária dizem eles ser, em sua essência, diferente da inteligência extrema a que eles mesmos chamam de Deus. É isto o que ensinam aqueles que, segundo eles, estão no cume da sabedoria e da teologia. Estes não são melhores do que os que deificam os animais e as pedras, pelo contrário, seu culto é bem pior. Pois os animais, o ouro, a pedra e o cobre são alguma coisa, mesmo que sejam as últimas criaturas. Mas a alma cósmica e condutora dos astros não existe e não é nada: ela não passa de uma imaginação nascida do mau gênio do intelecto. 4. Dado que é necessário – dizem eles – que o corpo celeste se mova, mas que para além deles não há nenhum lugar para onde possam se dirigir, seu movimento retorna sobre si mesmo e volta para o ponto de onde partiu. Bem. Se ao menos houvesse um lugar, eles se dirigiriam para o alto, como o fogo, e ainda mais do que o fogo, pois sua natureza é ainda mais leve do que a do fogo. Ora, este movimento não é da natureza da alma, mas da natureza da leveza. Então, se o movimento do céu consiste em girar, e se ele se mantém neste movimento por sua própria natureza, mas não pela natureza da alma, então o corpo celeste gira, não pela natureza da alma, mas por sua própria natureza. Portanto, ele não tem alma, e tampouco existe uma alma celeste ou universal. A única alma dotada de razão é a alma humana, que não é celeste, mas mais do que celeste, não pela localização, mas por sua própria natureza, dado que ela é um ser de inteligência. 5. O corpo celeste não pode nem avançar, nem estender-se para o alto, mas não que não haja lugar lá. Com efeito, a esfera etérea que se segue a ele e que ele engloba tampouco se dirige para o alto, embora não deixe de existir lugar para onde ela poderia ir. Com efeito, ela é envolta pelo espaço celeste. Ela não se estende para o alto, por que aquilo que é mais alto do que ela é também mais sutil do que ela; o alto é mais alto do que ela por sua própria natureza. Assim, o céu não se dirige para o alto, não por que não exista lugar mais alto do que ele, mas por que não existe corpo mais fino nem mais leve do que ele. 6. Não há corpo mais elevado do que o celeste, não por que o que é mais alto não possa receber um corpo junto de si, mas por que o céu abarca todos os corpos. Não há outro corpo além; mas, se fosse possível atravessá-lo, como cremos nós que nos votamos à piedade, este corpo mais alto do que o céu não seria acessível. Pois Deus, que preenche tudo e se estende ao infinito para além do céu, preenchia por completo, antes mesmo que existisse o mundo, o lugar que foi dado ao mundo, como o faz ainda hoje. E nada impede que ele se torne um corpo ali. Portanto, nada impede que haja, além do céu, um lugar que abarque o universo e que esteja no interior do mundo a fim de formar um corpo com ele. 7. Uma vez que nada o impede, como então o corpo celeste não se dirige para o alto, mas retorna sobre si mesmo e se move em círculo? Por que, ao se elevar, ele que é o mais sutil dos corpos é o mais alto de todos e também o mais móvel. Com efeito, assim como algo que foi comprimido ao extremo se torna mais denso, mais baixo e mais estável, o que é menos denso e mais leve é ao mesmo tempo o mais alto e o mais móvel. Pois ele se move elevando-se ao alto, por natureza. Mas é impossível que aquilo que assim se eleva se separe, por suja própria natureza, dos corpos acima dos quais se eleva. Ora, são os corpos esféricos estes acima dos quais se eleva o corpo celeste, e, por necessidade, ele não cessa de girar ao redor deles, não por causa da natureza da alma, mas por causa da forma corporal de sua própria natureza. Pois ele
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passa, a cada volta, de lugar em lugar. Este é o movimento próprio a estes corpos, como o estado contrário é próprio dos corpos que estão no outro extremo oposto. 8. Podemos igualmente considerar os ventos que sopram nas regiões que estão próximas de nós e nos rodeiam. Eles se elevam naturalmente acima destas regiões e giram ao redor delas sem jamais se separar, mas eles não se dirigem mais para o alto. Não que eles não tenham para onde ir, mas por que o que está acima deles é mais levedo que eles. Eles permanecem lá, até onde se elevaram, acima dos corpos, uma vez que são por natureza mais leves do que eles. Mas também giram ao redor destes corpos, não pela natureza da alma, mas por sua própria natureza. Penso eu, esta é a semelhança que Salomão, que em tudo era sábio, quis mostrar quando chamou o corpo celeste pelo mesmo nome dos ventos, escrevendo a respeito: “O vento gira ao redor, ele avança e retorna em círculos[2]”. A natureza dos ventos que nos cercam é tão diferente dos lugares do alto e de seu movimento rapidíssimo quanto de sua leveza. 9. Duas zonas da terra são temperadas e habitáveis, segundo os sábios gregos. Como cada uma é dividida em duas partes habitadas, eles sustentam que estas partes são em número de quatro. É por isso que eles afirmam que existem sobre a terra quatro raças de homens, que não podem passar de uma parte a outra. Com efeito, existem, segundo eles, homens que habitam do outro lado, na parte temperada oposta à nossa, e que estão separados de nós pela zona tórrida da terra. É do mesmo lado que habitam também, apo que parece, os que habitam abaixo desta zona, e que têm por assim dizer a mesma posição que nós. Os sábios gregos dizem que dentre estes homens, alguns estão ao nosso lado enquanto outros nos são antípodas e estão voltados em sentido contrário. Por que eles ignoram que fora da décima parte da esfera terrestre quase todo o resto, e tudo ao redor, está mergulhado no abismo das águas. 10. Sabemos que fora das regiões onde estamos, nenhuma outra parte da terra é habitável, por estar mergulhada no abismo, se considerarmos que os quatro elementos dos quais é composto o mundo têm partes iguais. Ora, em razão de sua densidade própria, cada um deles ocupa uma esfera bem maior que o outro, como também pensa Aristóteles. De fato, ele diz que existem cinco elementos, contidos em forma de esfera nas cinco regiões, sendo os menores contidos dentro dos maiores: a terra pela água, a água pelo ar, o ar pelo fogo e o fogo pelo éter. Assim está constituído o mundo. 11. O éter possui assim um volume bem maior do que o fogo, a que chamamos abrasamento; o fogo possui um volume maior do que a esfera aérea; por sua vez, o ar tem um volume maior do que a água; e a água tem um volume bem maior do que a terra, que, comprimida ao extremo, tem o menor volume dentre os quatro elementos que estão sob o céu. Sendo a esfera das águas bem maior do que a terra, se ela estivesse espalhada ao redor de toda a superfície terrestre, de modo a que as duas esferas, a terra e a água, girassem ao redor do mesmo centro, a água não deixaria nenhum lugar do globo conter animais de terra firme: ela recobriria totalmente o solo terrestre e se estenderia amplamente sobre toda a superfície. Mas, uma vez que ela não engloba toda a superfície da terra (pois a terra firme que ocupamos não está recoberta) a esfera das águas necessariamente deve ter outro centro. É preciso determinar o quanto ela é excêntrica, e onde fica seu centro. Ele está acima ou abaixo de nós? É impossível que esteja acima. Com efeito, vemos que a superfície das águas está em parte abaixo de nós. O centro da esfera das águas está assim, em relação a nós, abaixo do próprio centro da terra. Mas ainda falta determinar o quanto este centro está afastado do centro da terra.
12. Saberemos o quanto, aparentemente, em relação a nós, para baixo, está o centro da esfera das águas afastado do centro da terra, se considerarmos que a superfície das águas que vemos e que está abaixo de nós como o solo da terra sobre o qual caminhamos, se ajusta à superfície da esfera terrestre, que é o mundo no qual habitamos. Ora, a parte da terra habitável é cerca de um décimo de sua circunferência. Pois a terra possui cinco zonas e apenas a metade de uma destas zonas é habitada por nós. Se quisermos ajustar
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a esta décima parte de sua superfície a uma esfera que abarca a terra, encontraremos a esfera que lhe corresponde. O diâmetro desta esfera que lhe corresponde exteriormente e que a contém é, de forma aproximada, o dobro. Sua superfície é oito vezes maior e seu centro nos aparece na extremidade mais baixa da terra, como o mostra a figura.
13. Seja um círculo representando a esfera da terra, no interior do qual estão inscritos os pontos A, B, C e D, e outro círculo, que representa a esfera das águas e se coloca ao redor do primeiro tangenciando o ponto mais alto do círculo que lhe é interior. Sobre este círculo estão marcados os pontos E, F, G e H. O ponto mais baixo do círculo interior, em relação a nós, será o centro do círculo exterior. Tendo esta esfera um diâmetro duplo, tem-se por uma demonstração geométrica que a esfera cujo diâmetro é duplo é oito vezes maior do que a esfera cujo diâmetro é a sua metade. Segue-se que a esfera da terra é oito vezes menor do que a esfera das águas que a engloba. É por isso que tantas fontes brotam na superfície terrestre. É também por isso que sobre esta superfície se distribuem as correntes abundantes e inesgotáveis dos rios, comunicam entre si os seios de numerosos mares e flui o transbordamento das águas dos lagos. E não existe lugar sobre a terra onde, cavando, não se encontre a água que corre abaixo. 14. A figura e o raciocínio acima demonstram que não existe outra terra senão aquela que habitamos. Pois, assim como a terra seria inabitável caso tivesse o mesmo centro das águas, com mais razão ela seria inabitável caso as águas tivessem como centro um ponto fora da terra que habitamos e que se encontra no alto da esfera da terra. É impossível que sejam habitadas terras inundadas por tal massa de água. Ora, já ficou provado que a alma dotada de razão recebeu um corpo na única terra habitada, a qual, por ser uma, a única e a nossa, constitui agora uma prova a mais. Segue-se daí que é sobre ela que habitam, dentre os animais irracionais, os animais de terra firme. 15. A visão se forma a partir das cores e das formas dispostas de várias maneiras. O olfato se forma a partir dos vapores. O paladar, a partir dos sabores. A audição, a partir dos sons. O tato, a partir do que é rude ou liso segundo seu estado. As formas que assim nascem nos sentidos provêm dos corpos, mas não são corpos, embora sejam corpóreas. Pois elas não provêm simplesmente dos corpos, mas da aparência dos corpos. Não obstante, elas tampouco são a aparência dos corpos, mas suas marcas e como que imagens inseparavelmente separadas da aparência dos corpos. Isto é ainda mais evidente no caso da visão e em especial naquilo que vemos nos espelhos.
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16. São estas marcas dos sentidos, o imaginário da alma reintegrada em si a partir dos sentidos, que separam completamente dos corpos e de suas aparências não apenas os sentidos em si, mas as imagens que se formam neles, como dissemos. O imaginário os mantém fechados como tesouros, às vezes um, às vezes outro, mesmo na ausência de corpos, projetando-os sucessivamente no interior para seu próprio uso e dispondo à vontade tudo o que pode ser visto ouvido, saboreado, sentido ou tocado. 17. O imaginário da alma, no animal dotado de razão, é assim uma fronteira entre o intelecto e os sentidos. Quando o intelecto vê e faz girar ao redor de si as imagens nele fixadas pelos sentidos, como que separadas dos corpos e transformadas em formas incorpóreas, produz os pensamentos mais diversos: ele distingue, recapitula, conclui de muitas maneiras, passional, impassível, moderado, perdido, infalível, pois de tais pensamentos nasce a maior parte das virtudes e dos vícios, bem como os bons e os maus juízos. Com efeito, nem todo pensamento do intelecto provém das imagens ou lhes diz respeito. Podemos encontrar coisas que não podem ser submetidas à observação dos sentidos, por que são fornecidas ao pensamento pelo intelecto. É por isso que eu disse que nem toda verdade ou todo erro, toda virtude ou todo vício nos pensamentos têm sua origem na imaginação. 18. É digno de admiração e de se considerar o modo como, a partir do temporal e do sensível, fixam-se na alma seja a beleza, seja a feiura, seja a riqueza ou a indigência, a glória ou a desonra, numa palavra, a luz do intelecto, que dispensa a vida eterna ou as trevas inteligíveis do castigo. 19. O intelecto que é levado pelo imaginário da alma e que por meio deste imaginário se une aos sentidos gera o conhecimento composto. Se, com efeito, alguém vê com seus olhos a lua seguir o sol poente e ser iluminada em sua parte mais estreita voltada para o sol, para depois afastar-se pouco a pouco nos dias seguintes e então brilhar mais e mais até se colocar em oposição ao sol, para novamente diminuir progressivamente até que sua luz se extinga, afastando-se do ponto de origem onde recebera a iluminação, este homem, após ter impregnado seu intelecto com tais visões, e pelo fato de que algumas permanecem na imaginação enquanto outras estão presentes nos sentidos, compreenderá, a partir dos sentidos, da imaginação e da intelecção, que a lua extrai sua luz do sol, mas também que o círculo que ela descreve está mais próximo da terra e ainda que está abaixo do polo solar. 20. Não apenas as coisas da lua, mas também as do sol, seus eclipses e conjunções, as paralaxes e as distâncias dos outros planetas que estão no céu, os numerosos aspectos de suas configurações, numa palavra, tudo que sabemos das coisas do céu, e, por outro lado, as razões de sua natureza, todas as maneiras pelas quais eles avançam, em suma, todo conhecimento de todas essas coisas, reunido a partir de compreensões parciais, foram obtidos por nós a partir dos sentidos e da imaginação, por meio do intelecto. Mas nenhum destes conhecimentos pode ser jamais chamado de espiritual. É melhor chama-lo de conhecimento natural, ou físico, uma vez que ele não contém em si coisas do Espírito. 21. De onde aprendemos nós a respeito de Deus, de onde aprendemos sobre o mundo todo, de onde aprendemos sobre nós mesmos alguma coisa de sólido e verdadeiro? Não é por meio dos ensinamentos do Espírito? É este ensinamento, com efeito, que nos ensina que somente Deus é Aquele que é verdadeiramente, Aquele que é sempre, Aquele que é imutavelmente, por não ter recebido seu ser do nada e por não se dirigir ao nada novamente. Ele nos ensinou também que existem três Hipóstases e que Deus é todo-poderoso, ele, que em seis dias e apenas por sua palavra tirou os seres do nada – ou melhor, a tudo fundou conjuntamente, como disse Moisés. Pois nós ouvimos o que foi dito: no princípio criou Deus os céus e a terra[3], sem o menor espaço vazio, sem que qualquer coisa houvesse neste intervalo. Pois a terra estava misturada à água. Cada qual trazia em seu seio o ar, os animais e as plantas segundo suas espécies. O céu trazia os diferentes luminares e os diversos fogos que iriam constituir o universo. Assim fez Deus no princípio os céus e a terra, como uma matéria que contém tudo e que carrega em si, em potência, o universo: isto afasta de modo perfeito os que pensam erroneamente que a matéria preexistiu por si mesma.
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22. Depois disto, ornando de beleza e enfeitando o mundo, Aquele que tirou tudo do nada dispensou em seis dias a ordem acordada aos que se regozijam nele e que completam seu mundo, distinguindo a cada um com um único mandamento, extraindo de tesouros ocultos aquilo que ia depositando em cada espécie, envolvendo com um círculo altíssimo a terra imóvel como um centro e ligando a ela, com toda sabedoria, através de intermediários, o movimento perpétuo do céu, a fim de que este mundo permaneça ao mesmo tempo móvel e imóvel. Pois, a partir do momento em que os corpos com movimento perpétuo e rápido estavam por toda parte dispostos ao redor de um círculo, o imóvel recebeu necessariamente o posto central: ele ocupou o lugar que contrabalança o movimento, a fim de que a esfera do universo não se torne um cilindro. 23. Depois de atribuir um lugar assim a cada um dos confins do universo, o artista supremo reuniu e colocou em movimento, em boa ordem, este universo, este “cosmos” – a um tempo universo, mundo e ordem – como foi dito. Depois ele atribuiu a cada coisa dentro destes confins aquilo que mais lhe convinha. Algumas ele fixou no alto e lhes ordenou permanecer no céu e ali girar por todo o tempo ao redor do limite mais elevado do universo, com inteligência e boa ordem. São os corpos leves e ativos que transformam para seu benefício os corpos que estão neles. Com muita sabedoria, eles se elevam acima do centro a uma altura tal que sob sua ronda abrasadora eles quebram equilibradamente o frio central, mantendo seu calor desmedido, refreando ainda a desmedida impulsão dos confins mais elevados movendo-se em sentido contrário, e assim, por meio desta rotação em sentido contrário, eles mantêm em seus lugares os confins e nos propiciam, aos que compreendemos, as utilíssimas diferenças das estações naturais, as medidas do tempo e do espaço e o conhecimento do Deus que criou, ordenou e enfeitou a beleza do mundo. Alguns ele deixou girando assim nas alturas, onde eles se elevam em círculos numerosos, por duas razões: a beleza universal e todas as formas de utilidade. Outros ele colocou em baixo e ao redor do centro, por pesados e vulneráveis em suas naturezas, submetidos ao devir e à mudança, separando-se e reunindo-se, adstritos a se transformar cada vez mais para seu próprio benefício: e assim ele fundou em boa ordem estas coisas e a razão que une umas às outras, a fim de que tudo possa, no sentido etimológico do termo, ser chamado de “cosmos”. 24. Assim é que um primeiro ser foi conduzido à criação, e depois deste primeiro veio outro. Depois deste veio outro ainda, e assim por diante, e depois de todos os seres veio o homem. O homem foi considerado digno de tal honra e de tal solicitude da parte de Deus, que todo este mundo sensível que fora criado antes dele foi feito para ele, que o Reino de Deus foi igualmente preparado para ele desde a fundação do mundo[4] antes dele, que o projeto de sua criação precedeu a esta fundação, que ele foi formado pela mão de Deus e à imagem de Deus[5], e que ele não dispõe de tudo e do mundo sensível como os outros animais, mas que do mundo ele só recebeu seu corpo. Sua alma ele recebeu daquilo que é mais alto do que o mundo, em especial do próprio Deus que lhe concedeu seu sopro[6] inefavelmente como uma grande e maravilhosa realização que ultrapassa o universo, que vela sobre tudo, que domina tudo, que assim conhece a Deus, que recebe e mostra em todas as coisas a magnificência do artista no mais alto dos céus. E não apenas por receber de Deus por meio do combate e da graça, mas também porque lhe é possível unir-se a Deus em uma hipóstase. 25. É nessas coisas e em outras semelhantes que se encontram a verdadeira sabedoria e o conhecimento salvador que buscam a beatitude do alto. Qual Euclides, qual Marinus, qual Ptolomeu as pode abarcar de um só golpe? Qual Empédocles, qual Sócrates, qual Aristóteles, qual Platão puderam descobri-las pelos caminhos da lógica ou pelas demonstrações matemáticas? Ou antes, que sentidos estão ligados a estas coisas? Que inteligência deve ser aplicada a elas? Ora, se a estes homens que cultivavam a filosofia natural, e a seus epígonos, a sabedoria do Espírito pareceu vulgar, aqui está o que a ultrapassa no mais alto grau. Pois aquilo que são os animais irracionais diante da sua sabedoria e de todos os seus conhecimentos (ou, se preferirmos, o que são as crianças, para quem os doces que têm à mão são melhores do que a coroa
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real ou que todos os conhecimentos de nossos filósofos), são estes filósofos diante da verdadeira sabedoria e o verdadeiro ensinamento do Espírito, que permanecem muito acima deles. 26. Não apenas conhecer a Deus em verdade (na medida em que isto é possível) é incomparavelmente melhor do que a filosofia dos gregos, mas ainda simplesmente saber qual é o lugar do homem junto a Deus ultrapassa toda a sua sabedoria. Com efeito, único dentre todos os seres terrestres e celestes, o homem foi feito à imagem do Criador de tal maneira a que ele pudesse contemplá-lo e amá-lo, ser iniciado apenas nos seus mistérios e não adorar senão a ele, e, pela fé, a inclinação, a disposição que o abrem para ele, conservar sua própria beleza, enfim, ver que todas as demais coisas que o céu e a terra trazem em seu bojo estão abaixo dele e não participam de sua inteligência. Isto é uma coisa que os sábios gregos nunca puderam saber. Eles desonraram nossa natureza e não veneraram a Deus, mas reverenciaram e adoraram a criatura em lugar do Criador, atribuindo aos astros visíveis e invisíveis uma inteligência proporcional, em poder e dignidade, para cada um deles, à sua grandeza corporal. Venerando miseravelmente estes astros, dirigindo-se a eles como a deuses maiores e menores, eles validaram a soberania do universo. Ligados assim às coisas sensíveis e à filosofia destas coisas, não infligiram eles às suas próprias almas a vergonha, a desonra, a miséria definitiva e as reais trevas dos tormentos do intelecto? 27. Saber que fomos feitos à imagem do Criador não nos permite deificar o mundo inteligível. Pois havermos sido criados à imagem não pertence à condição do corpo, mas à natureza do intelecto, que é o que temos de melhor. Se, com efeito, houvesse alguma coisa que fosse melhor, é nela que estaria o ser criado à imagem. Ora, o melhor que há em nós é o intelecto, e este melhor, embora tenha sido feito à imagem divina, foi criado por Deus. Isto posto, que dificuldade existe em saber, ou melhor, como não é claro por si só que o Criador de nosso ser dotado de intelecto é também o Criador de todo ser dotado de intelecto? Toda natureza dotada de intelecto serve, portanto, a Deus, conosco, e foi feita à imagem do Criador, embora estes seres sejam mais veneráveis do que nós, na medida em que eles existem fora dos corpos e se aproximam diretamente da natureza absolutamente incorpórea e incriada. Ou antes, dentre eles, alguns, que mantiveram seu lugar e que amam aquilo pelo quê foram criados, ainda que sejam nossos companheiros de serviço, são por nós venerados e são de longe, por sua ordem, mais veneráveis do que nós. Outros, que não mantiveram seu posto, mas que dele se afastaram e que rejeitaram aquilo pelo quê foram criados, afastaram-se também profundamente dos que se aproximaram de Deus e decaíram de sua honra. Mas se eles tentam nos arrastar com eles na sua queda, não apenas se tornam inúteis e desonrados, como ainda se opõem a Deus, maltratam nossa raça e são completamente hostis ao Criador. 28. Mas os que estudam a natureza, que observam os astros, que se vangloriam de seu saber, e que, por meio de sua filosofia jamais puderam conhecer as coisas que mencionamos, não apenas colocam acima de si o príncipe das trevas do intelecto e todas as potências que ele arrastou à apostasia, como ainda os chamam de deuses, honram-nos em templos, oferecem-lhes sacrifícios e se submetem aos seus oráculos perniciosos, brincam com eles com suas consagrações sacrílegas, suas purificações que os mancham impondo-lhes uma presunção maldita, enfim, por meio de seus profetas e profetizas que os desviam para longe da verdade real. 29. Que o homem seja não apenas instruído por Deus e conheça a si próprio e à sua ordem (o que agora é também próprio dos que são considerados como pessoas simples, e que são cristãos), este é um conhecimento mais elevado do que o estudo da natureza, dos astros e toda a filosofia; do mesmo modo, que nosso intelecto seja instruído a respeito de sua própria enfermidade e procure curar-se é também incomparavelmente melhor do que saber e buscar a grandeza dos astros, as razões das naturezas, a natureza do que está em baixo e o curso do que está no alto, as revoluções e as elevações dos astros, suas estações e movimentos retrógrados, seus distanciamentos e suas conjunções, numa palavra, todas as relações tão diversas que lhes impõe a variedade de seus movimentos. Pois o intelecto que conheceu sua
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própria enfermidade encontra por onde entrar para alcançar a salvação, por onde se aproximar da luz do conhecimento e de onde receber a verdadeira sabedoria que este século tenta por todas as formas destruir. 30. Toda natureza dotada de razão e intelecto tem em si a vida como uma essência, podemos dizer, seja angélica, seja humana, graças à qual, em sua existência, ela permanece imortal, sem ser alterada pela corrupção. Mas a natureza que existe em nós dotada de intelecto e de razão não apenas tem a vida como essência, mas tem também a energia da vida. Pois esta vivifica o corpo que está ligado a ela. Por isso ela pode ser chamada de vida do corpo. É por algo que não ela que ela é chamada de vida e que possui uma energia própria. Pois não se pode dizer que, por si mesma, uma essência exista em função de outra. Ora, a natureza angélica dotada de intelecto não possui em si a vida como uma energia semelhante. Pois Deus não lhe concedeu, ligado a ela, um corpo extraído da terra, a fim de que, por intermédio deste corpo, ela recebesse um poder vivificante. Em compensação, ela recebeu pares antagônicos, como a malícia e a bondade. Isto é o que produziu os anjos maus, que caíram por causa de seu orgulho. Portanto, num sentido, os anjos são também compostos: eles têm sua própria essência, e trazem em si uma das qualidades contrárias, ou seja, a virtude ou o vício. Assim eles demonstram que não possuem em si a bondade como uma essência. 31. A alma de cada um dos animais irracionais é a vida do corpo vivo em si mesmo. Por isso ela traz consigo a vida, não como uma essência mas como uma energia, porque ela existe por causa de outra coisa, e não por si mesma. Vemos que neles não há nada diferente do que aquilo que age através do corpo. Quando este se dissolve, esta coisa se dissolve com ele, por ser tão mortal quanto o corpo. Tudo o que ela é existe em função do mortal, e é assim que existe; por isso esta coisa morre juntamente com o que morre. 32. A alma de cada homem é também a vida do corpo vivo, em si mesma, e possui em si a energia vivificante em função de outra coisa, a energia que busca esta outra coisa, ou seja, aquilo que é vivificado por ela. Entretanto, ela traz em si a vida não apenas como uma energia, mas como uma essência, porque ela vive por si própria. Vemos que ela traz em si a vida dotada de razão e de intelecto, esta vida que é visivelmente outra coisa que a vida do corpo e de tudo o que passa pelo corpo. É por isso que, quando o corpo se dissolve, ela não se dissolve com ele. E, como ela não se dissolve com ele, ela permanece imortal, porque ela não existe em vista de outra coisa, mas traz em si como uma essência a própria vida. 33. A alma dotada de razão e de intelecto traz a vida como uma essência, mas também recebe os pares antagônicos, ou seja, a malícia e a bondade. Donde se segue que ela não traz em si a bondade como uma essência, tampouco a malícia, mas como uma espécie de qualidade, por estar disposta a uma ou outra quando uma ou outra se apresenta a ela. Ora, a malícia e a bondade se apresentam não diretamente, mas apenas quando a alma dotada de intelecto, tendo recebido do Criador a liberdade, se dirige para uma ou outra destas qualidades e decide viver segundo ela. É por isso que, num sentido, a alma dotada de razão e intelecto é composta, mas não a partir da energia de que falamos acima. Pois esta, embora vise outra coisa, não gera naturalmente uma mistura. É a partir da essência em si que ela engendra uma ou outra das duas qualidades contrárias de que falamos, a virtude ou o vício. 34. A Inteligência suprema[7], o bem soberano, a natureza mais do que viva e mais do que divina, que não admite contrários, não traz em si, evidentemente, a bondade enquanto qualidade, mas como essência. É por isso que tudo o que se pode conceber de bom está nela. Ou antes, ela é o bem e está acima de tudo o que é bom. E tudo o que podemos conceber nela é bom, ou antes, ela é a bondade, e uma bondade mais do que boa. Também a vida está contida nela, ou antes, ela é a própria vida[8]. Pois a vida é o bem, e na Inteligência divina a vida é a bondade. Enfim, a sabedoria está contida nela, ou antes, ela é a própria sabedoria. Pois a sabedoria é o bem, e na Inteligência divina a sabedoria é a bondade. O mesmo acontece com a eternidade e a beatitude, numa palavra, com tudo o que é possível conceber de bom. Assim, não existe diferença entre a vida, a sabedoria, a bondade e outros bens semelhantes. Pois esta bondade
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engloba a todos em sua unidade e em sua extrema simplicidade. Ela extrai sua concepção e seu nome de todos os bens. E tudo o que podemos conceber e chamar de bom na Inteligência divina é uno e verdadeiro. Ora, esta bondade não é apenas o que é concebido em verdade pelos que a pensam com uma inteligência perfeitamente exercida sobre a sabedoria divina, e pelos que dela falam por meio de uma linguagem teológica animada pelo Espírito. Na medida em que ela é inefável e incompreensível, ela é igualmente mais do que esses bens e não lhe falta nem a unidade nem a simplicidade sobrenaturais, uma vez que ela é uma única e mesma essência inteiramente boa e mais do que boa. Somente assim podemos concebê-la, e somente assim podemos chamá-la. E é assim e por isso que, em suas próprias energias voltadas para a criação, o Criador e Mestre da criação é pura bondade e mais do que bom, e por isso ele tem a bondade como essência; pois Deus não pode admitir em si nada que seja contrário a esta bondade. Pois nenhuma essência possui contraditório. 35. Esta bondade inteiramente boa é mais do que boa é também a fonte da bondade. Este é o bem, o bem mais extremo: e ele não seria possível se lhe faltasse a bondade perfeita. A partir do momento em que a Inteligência divina é a bondade transcendente e perfeita, aquilo que dela provém (como de uma fonte) não poderia ser outra coisa que o Verbo – mas não a palavra que nós mesmos proferimos. Pois esta não provém da inteligência, mas do corpo animado pela inteligência. E não no sentido de uma palavra que seria interior a nós e que em nós correspondesse a tipos de sons. Tampouco no sentido de uma palavra que passasse pelos nossos pensamentos, ainda que sem nenhum som, e que fosse inteiramente suscitada por impulsos incorpóreos. Pois o Verbo é anterior a nós, e necessita de espaços e de grandes intervalos de tempo para progredir em direção ao seu objetivo e para nos conduzir de uma origem imperfeita a uma realização perfeita. Antes, ele passa pela palavra que a inteligência colocou em nós de maneira inata, esta palavra por meio da qual o Criador nos fez à sua imagem[9]: o conhecimento que sempre acompanha a inteligência. Este conhecimento está aí, na suprema Inteligência da bondade perfeita e transcendente, junto da qual nada existe de imperfeito (salvo o que sai dela), porque todas as coisas são indistintamente a bondade. É por isso que o Verbo supremo é o Filho e é assim chamado por nós, a fim de que o reconheçamos como um ser perfeito, numa hipóstase perfeita que lhe é própria: pois ele extrai seu ser do Pai, e nada lhe falta da essência paterna, mas ele se mantém imutavelmente o mesmo que o Pai, salvo em sua hipóstase. Ou ainda, o ser nascido divinamente do Pai revela o Verbo. 36. A bondade que, por nascimento, como de uma fonte, provém da bondade da Inteligência suprema, é, portanto, o Verbo. Mas quem quer que possua inteligência não poderá conceber o Verbo sem o Espírito. É por isso que é juntamente com o Espírito Santo que o Verbo, Deus de Deus, provém do Pai. Não o espírito no sentido do sopro que acompanha a palavra que sai de nossos lábios. Tampouco o espírito no sentido da palavra interior que passa pelos nossos pensamentos, ainda que de maneira incorpórea. Pois este é um impulso da inteligência desdobrado no tempo com nossa própria palavra, requerendo os mesmos intervalos e se dirigindo do imperfeito para a perfeição. Este Espírito do Verbo supremo é como um desejo ardente – o eros – indizível do Pai pelo Verbo engendrado indizivelmente: este desejo ardente – este eros – é o mesmo que o Verbo e Filho amado pelo Pai dedica àquele que o gerou. E ele lhe dedica como algo proveniente com ele do Pai e que repousa nele numa mesma natureza. É por meio deste Verbo que nos falou na carne que aprendemos o nome da existência diferente junto ao Pai: a existência do Espírito. O Espírito não é apenas o Espírito do Pai, mas o Espírito do Filho. Pois foi dito que o Espírito da verdade precede do Pai[10], a fim de que conheçamos não apenas o Verbo, mas o Espírito do Pai, que não é engendrado, mas que procede. E ele é o Espírito do Filho, que o tira do Pai como Espírito de verdade, de sabedoria e de razão. Pois o Verbo é a verdade e a sabedoria que concorda com Aquele que o engendrou. Ele se regozija com o Pai que se regozija nele, como disse Salomão a respeito: “Eu estava onde eu me regozijava com ele[11]”. Esta alegria do Pai e do Filho, esta alegria anterior aos séculos, é o Espírito Santo que, em suas relações, lhes é comum (e é por isso que ele é enviado por um e outro aos que são dignos). Mas ele só extrai do Pai sua existência; e é por isso que, em sua existência, ele procede apenas do Pai.
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37. Nossa inteligência criada à imagem de Deus traz em si a imagem deste desejo ardente – deste eros altíssimo – no conhecimento que nunca cessa de existir por ela e nela. Este amor aí reside e permanece por ela e nela, e dela provém juntamente com a palavra interior. O insaciável desejo de conhecer que possuem os homens é um exemplo claríssimo disto para aqueles que não conseguem ver o mais profundo de si mesmos. É neste modelo original, nesta bondade perfeita e transcendente, na qual nada existe de imperfeito (salvo o que sai daí), que o ardente desejo de Deus – o eros divino – é, de modo imutável, tudo o que é a própria bondade. É por isso que este eros divino é também chamado por nós de Espírito Santo além de Consolador, pois ele acompanha o Verbo, a fim de que nós o reconheçamos como um ser perfeito, numa hipóstase perfeita e própria, uma vez que ele não é absolutamente desprovido da essência do Pai, sendo ao contrário imutavelmente o mesmo que o Pai e o Filho, salvo por sua hipóstase, que o revela para nós em seu ser procedente divinamente do Pai. Assim é que nós veneramos um único Deus verdadeiro e perfeito em três hipóstases verdadeiras e perfeitas: ou seja, um Deus que não é triplo, mas simples. Pois a bondade não é tripla nem é uma tríade de bondade, mas a bondade suprema é a Trindade Santa, venerada e adorada, derramando-se divinamente de si própria em si própria antes de todos os séculos. Ela não tem limites e não pode ser definida senão por si mesma; ela define tudo, estende-se para além de tudo e não deixa nenhum ser fora de si própria. 38. A natureza dos anjos, que é dotada de intelecto e de palavra tem também, portanto, uma inteligência, uma palavra nascida desta inteligência e um desejo ardente – um eros – da inteligência pela palavra. O próprio eros nasce da inteligência, está sempre com a palavra e a inteligência, e podemos chamá-lo de espírito, uma vez que, por natureza, ele acompanha a palavra. Mas a natureza dos anjos não possui este espírito vivificante, porque ela não recebeu de Deus um corpo ligado à terra, a fim de receber igualmente, por intermédio deste corpo, um poder vivificante que o mantenha. Mas a natureza da alma, dotada de inteligência e de palavra, por ter sido criada com um corpo terrestre, recebeu também de Deus o espírito vivificante, por meio do qual ela mantém e faz viver o corpo que está ligado a ela. Donde se demonstra aos que compreendem que o espírito do homem, que vivifica o corpo, é um desejo ardente – um eros – da inteligência. Este eros nasce da inteligência e da palavra. Ele está na inteligência e na palavra, e tem em si a palavra e a inteligência. Pois através dele a alma carrega naturalmente e com enorme amor a relação que a une ao seu próprio corpo, o qual ela não quer jamais deixar, e que não deixaria jamais se não sobreviesse do exterior uma enfermidade muito grave ou uma ferida mortal. 39. A natureza da alma, que é dotada de inteligência e de palavra, a única que contém em si a inteligência, a palavra e o espírito vivificante, é também a única, e acima dos anjos incorpóreos, criada por Deus à sua imagem. Ela traz tudo isto em si de maneira imutável, mesmo que, não reconhecendo sua própria dignidade, ela não pense nem se comporte de maneira digna Daquele que a criou à sua imagem. Assim, mesmo depois da transgressão ancestral do Paraíso por causa da árvore do conhecimento [12], nós que, antes da morte corporal, sofremos a morte da alma – que é a sua separação em relação a Deus – e que rejeitamos ser à semelhança divina, não perdemos o ser à imagem. Portanto, se a alma toma aversão à sua relação com o pior, se ela se liga ao melhor com amor, e se submete a ele por meio das obras e dos modos da virtude, ela é consolada por Deus com a luz e a beleza, confortada e persuadida por seus conselhos e exortações, graças aos quais ela recebe a vida eterna. Através desta, quando chegar o tempo, ela imortaliza o corpo ligado à ressurreição prometida, que participará da glória por toda a eternidade. Mas se ela não afastar a tendência à queda que a puxa para o pior e que suscita na imagem de Deus a vergonha desonrosa, ela será separada e afastada da vida realmente bem-aventurada de Deus, pois, por havê-la abandonado, abandonou também o melhor. 40. A natureza trinitária que acompanha a Trindade suprema – pois, mais do que todas, ela foi criada por esta Trindade à sua imagem, dotada de inteligência, palavra e espírito (assim é a alma humana) – deve preservar sua ordem, seguir apenas a Deus, submeter-se apenas a ele, somente se inclinar diante dele, só obedecer a ele, voltar seu olhar exclusivamente para ele, enfeitar-se com sua lembrança contínua e com
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sua contemplação e lhe dedicar o ardor de um amor maior do que tudo. É por meio destas coisas que ela é atraída para si mesma de forma maravilhosa. Ou antes, pode acontecer que ela atraia para si o esplendor místico e indizível desta natureza. Então o ser feito à imagem de Deus terá também a semelhança em verdade. Esta semelhança torna a natureza trinitária graciosa, sábia e divina. Com efeito, é por meio dela, quer esteja visivelmente presente, quer se aproxime invisivelmente, que ela passa a ensinar agora e sempre a amar a Deus mais do que a si própria e ao próximo como a si mesma[13], e, a partir daí, a conhecer e manter sua dignidade e sua ordem, e a amar a si mesma em verdade. Pois “aquele que ama a injustiça detesta sua alma[14]”. Destruindo e tornando inútil o ser feito à imagem de Deus, este se carrega de uma paixão próxima dos que, por loucura, rasgam a própria carne sem sequer sentir. Pois também ele, sem o sentir, arranha e rasga impiedosamente sua beleza inata, destruindo, com sua loucura, as vestes de sua própria alma, esta vestimenta trinitária mais alta que o mundo, cujo amor havia outrora enchido seu coração. Ora, o que existe de mais injusto e de mais ruinoso do que não lembrar nem querer contemplar continuamente, não amar Aquele que nos criou e nos vestiu de beleza à sua imagem, Aquele que, por meio disto, nos concedeu o poder do conhecimento e do amor e que, aos que utilizam bem este poder, concede, além disto, a abundância dos dons indizíveis e da vida eterna? 41. Um dos piores inimigos de nossa alma, bem pior dos que os outros, é, de longe, a serpente espiritual que se encontra na raiz dos males, e que se tornou agora, pelos maus conselhos dados aos homens, o anjo de sua malícia. A tal ponto ele é mais baixo e malvado do que todos que chegou a pensar, em seu orgulho, tornar-se semelhante em poder a Deus. Ao final, foi, com toda justiça, abandonado por Deus na mesma medida em que o abandonou, e a tal ponto que se tornou seu opositor, adversário e contrário. Portanto, se um é a bondade vivificante e vivifica os vivos, o outro é a maldade morta e mortificante. Pois Deus tem a bondade por essência e sua natureza não admite contrário, vale dizer, o mal, uma vez que lhe é impossível se aproximar dos que parte com o mal, qualquer que seja ele; quanto mais o próprio faltoso e príncipe do mal, que suscita este mal nos outros! Já o maligno, que tem como essência não a malícia mas a vida (e é por isso que nela ele permanece imortal), admite por isso simultaneamente a vida e o mal, e foi honrado com a liberdade, a fim de que, submetido interiormente e ligado à fonte eterna da bondade, ele possa ainda participar da verdadeira vida. Mas como ele não se sacia de seu impulso para o mal e continua a provocar as piores infâmias, acaba fazendo de si mesmo um espírito mortificante, e se esforça para atrair também o homem, de modo a fazê-lo participar de sua própria morte. 42. Tortuoso em suas maneiras e prolixo em mentiras, o mediador e autor da morte revestiu-se outrora da serpente tortuosa no paraíso de Deus, embora não tendo se tornado ele mesmo uma serpente (pois não é possível que o tenha feito, senão pela imaginação, pois sabia que nada poderia fazer por si próprio, temendo ser pego em flagrante), mas, evitando uma relação direta, escolhendo a relação pérfida. Ele escolheu esta via na medida em que já estava resolvido a permanecer oculto, a fim de que, mostrando-se como amigo, pudesse introduzir invisivelmente as coisas mais hostis, mesmo tendo que lançar mão do prodígio da palavra (pois a serpente real não é dotada de razão, e é pouco provável que algum dia tenha sido dotada de palavra), disfarçando-se e atraindo para si como uma presa fácil aquela que o escutava, a fim de submetê-la rapidamente ao pior e sujeitá-la doravante aos que a ele foram dados dominar, como se fosse a serpente única entre os seres dotados de sentido a ter sido honrada com a razão pela mão de Deus e a ter sido feita à imagem do Criador. Mas Deus concedeu ao homem que, vendo o conselho provir do pior (e quão pior do que o homem é a serpente!), este se aperceba suficientemente que este conselho não é útil e se indigne com a injustiça de se submeter ao que é visivelmente pior; ao homem foi dado guardar a fé no Criador observando seus mandamentos, conquistando a vitória sobre aquele que decaiu da verdadeira vida e recebendo com justeza a bem-aventurada imortalidade, permanecendo vivo junto a Deus pelos séculos dos séculos. 43. Nada é melhor para o homem do que querer e trazer em si um pensamento que lhe permita conhecer e transmitir o que é importante. Somente se ele aguardar sua ordem própria e conhecer a si mesmo e Àquele
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que é melhor do que ele, somente se observar igualmente o que aprendeu e o que não aprendeu do melhor, é que ele não desejará receber mais ninguém além de Deus como seu conselheiro. Pois os anjos, embora nos ultrapassem em dignidade, servem, eles também, às decisões divinas que nos dizem respeito, por serem enviados para aqueles que deverão herdar a salvação[15]. Ou melhor, nem todos servem, mas apenas aqueles que são bons e que mantêm sua ordem. Pois também eles possuem estas três faculdades inerentes à sua natureza: a inteligência, a palavra e o espírito, e, como nós, devem obedecer ao Criador, que é Inteligência, Verbo e Espírito. Eles nos superam em muitas coisas, mas existem outras nas quais nós os ultrapassamos, coo já dissemos e voltaremos a dizer, no que se refere a realizar o ser à imagem do Criador. Isto porque, mais do que eles, nós fomos criados à imagem do Criador. 44. Os anjos foram destinados a servir ao Criador e lhes foi assinalado ser comandados, mas não lhes foi ordenado que comandassem os que viessem depois deles, se para tanto não fossem conduzidos por Aquele que domina o universo. Em seu orgulho, Satanás pretendeu comandar, contra a vontade do Criador. E, por ter abandonado sua ordem própria, juntamente com os anjos que com ele se afastaram de Deus, foi abandonado pela fonte que distribui a verdadeira vida e a verdadeira luz, e se revestiu de morte e trevas eternas. Mas uma vez que o homem recebeu a ordem de não apenas ser comandado mas de comandar tudo o que há sobre a terra, o príncipe do mal, olhando-o com inveja, se empenha por todos os meios tentando derrubá-lo deste mandamento. Assim ele rouba os homens, ou melhor, os persuade a trair o mandamento, a considerá-lo como nada, a anulá-lo, e mesmo a se opor a ele e fazer o contrário da ordem e do conselho dados pelo melhor, enfim, partilhando com ele sua apostasia e também as trevas eternas que são dele, e também a morte. 45. Que a alma dotada de razão possa morrer enquanto ainda está em vida, é o que nos ensina o grande Paulo quando escreve: “A viúva que só busca o prazer é uma morta viva[16]”. Não se poderia imaginar nada pior para a alma dotada de razão: pois a alma privada do esposo espiritual, se não se recolhe e se entrega ao luto levando uma vida fechada e aflita pelo arrependimento, mas ao contrário, se esparrama e se dissipa nos prazeres, se torna uma morta viva (pois ela é imortal por sua essência) e traz em si ao mesmo tempo a pior morte e a melhor vida. Mas se a viuvez é corporal, aquela que se entrega ao deboche enquanto vive em seu corpo está certamente, diz Paulo, morta em sua alma. Mas ele próprio diz em outra parte: “A nós que estávamos mortos por nossas faltas, ele nos deu a vida em Cristo [17]”. E o que diz João? “Existe um pecado que leva à morte[18]”. Mas o próprio Senhor, ao ordenar a alguém que deixasse os mortos enterrarem seus mortos[19], mostrou que os que se enterram vivos em seus corpos estão certamente mortos em suas almas. 46. Desde que se afastaram voluntariamente da lembrança e da contemplação de Deus, desde que transgrediram o mandamento do paraíso, desde que se acomodaram ao espírito morto de Satanás e que comeram do fruto proibido contra a vontade do Criador[20], os ancestrais de nossa raça, despojados das vestes luminosas e vivificantes tecidas pelo esplendor do alto, se viram também, como Satanás, mortos em espírito. Uma vez que Satanás é não apenas um espírito morto mas também um espírito que leva a morte aos que dele se aproximam, e que aqueles que participam desta morte possuem igualmente um corpo por intermédio do qual se realiza o cumprimento do conselho que leva à morte, estes espíritos mortos e mortificantes acabam por transmitir a morte também a seus próprios corpos. Também o corpo humano se dissolve retornando à terra de onde foi tirado[21], uma vez que, deixando de ser mantido por uma solicitude e um poder mais fortes, sofre a sentença Daquele que conduz o universo com sua simples palavra, sentença sem a qual nada do que acontece alcança seu termo. Esta sentença é sempre proclamada com justiça. Pois “o Senhor é justo, como disse o salmista, e ele ama a justiça[22]”. 47. Como está dito nas Escrituras, Deus não criou a morte[23]. Ele impediu que ela viesse, mas para isto precisou dissuadir aqueles a quem concedera a liberdade, e convencê-los de que era possível exercê-la com justiça. Com efeito, logo de início ele deu um conselho que abria para a imortalidade, e, para que
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desde logo houvesse a certeza disto, ele transformou este conselho num mandamento específico. Ele preveniu com toda clareza e deixou explícita a ameaça, sublinhando que a transgressão do mandamento de vida representava a morte[24], a fim de que os homens pudessem se proteger da experiência da morte, fosse pelo desejo, fosse pelo conhecimento, fosse pelo temor. Pois Deus ama, conhece e pode conceder o que é bom a cada uma das criaturas. Assim, se ele apenas conhecesse o que é bom mas não amasse, com a proibição ele teria deixado imperfeito aquilo que sabia ser o bem; se ele amasse sem conhecer o que é bom e sem poder concedê-lo, aquilo que ele desejava e conhecia teria, sem dúvida, permanecido imperfeito. Mas uma vez que ele conhece, ama e pode nos conceder nosso maior bem, aquilo que provém dele, ainda que venha malgrado nós mesmos, vem, de um modo ou de outro, para nosso benefício. Ao contrário, se, na medida em que recebemos uma natureza livre, evoluímos contrariamente por nossa própria conta, isto nos será forçosamente prejudicial. Desde que, sob a vigilância de Deus, foi dada uma proibição, como no Paraíso[25], como no Evangelho pelo próprio Senhor, ou como aos descendentes de Israel pelos profetas, ou como na lei da graça pelos apóstolos de Cristo e seus sucessores, está claro que é desvantajoso e desastroso desejar voluntariamente cometer tal gesto e nos esforçarmos para tanto. Quem quer que nos proponha ou nos engaje neste esforço, persuadindo-nos com palavras ou nos encantando com uma aparência agradável, estará sendo manifestamente hostil e oposto à nossa vida. 48. Portanto, seja pelo desejo, uma vez que Deus deseja que vivamos (pois porque teria ele criado seres vivos se não os quisesse vivos?), seja por que reconhecemos que ele sabe melhor do que nós o que é bom para nós (pois como Aquele que nos deu o conhecimento não haveria de ser incomparavelmente o Senhor do conhecimento[26]?), seja por temor à sua autoridade onipotente, não devemos nos deixar roubar, nem seduzir, nem persuadir a transgredir sua ordem e seu conselho. Da mesma forma, tampouco agora devemos transgredir os mandamentos e os conselhos salutares que nos foram dados depois daquele. Também agora, com efeito, os que escolheram não se opor nobremente ao pecado e que desconsideram os mandamentos divinos, acolhem o conselho contrário. Isto equivale a dizer que eles recebem o conselho que os leva à morte interior e eterna, a menos que, por meio do arrependimento, reconquistem sua alma. Da mesma maneira o casal ancestral, não resistindo aos que os persuadiam a desobedecer, transgrediram o mandamento: a decisão, anunciada previamente, Daquele que os haveria de julgar com justiça, foi imediatamente aplicada. Segundo esta decisão, tão logo comessem do fruto da árvore, eles morreriam. E eles sabiam, de fato, que este era uma mandamento de verdade, de amor, de sabedoria e de poder que lhes havia sido dado e que eles haviam esquecido. Por vergonha eles se esconderam, despojados da glória [27] que cumula de vida superior os espíritos imortais. Sem esta glória, a vida dos espíritos é de longe bem pior do que muitas mortes; nisto cremos. 49. Que tampouco teria sido útil que os ancestrais comessem do fruto da árvore, é o que mostra aquele que disse: “a meu ver, a árvore simbolizava a contemplação”, aquela que pode ser alcançada por aqueles cujo estado é suficientemente perfeito. Mas ela não é boa para os que são ainda toscos e ávidos em seu desejo, assim como o alimento sólido não é útil aos que são ainda bebês e necessitam de leite[28]. Mas se quisermos transformar em contemplação, num sentido espiritual, esta árvore e o alimento que ela fornece, não será difícil, penso eu, ver como ela permanece inútil aos seres ainda imperfeitos. Pois me parece que, para os sentidos, ver seu fruto e comê-lo é a última razão de ser da mais agradável das árvores do Paraíso. Ora, o alimento mais agradável aos sentidos não pertence nem àquilo que é verdadeira e completamente bom, nem ao que é sempre bom, nem ao que é bom para todos. Este alimento é bom para aqueles que podem utilizá-lo sem morrer, no momento conveniente, da maneira conveniente e para a glória Daquele que o criou. Para os que não são capazes de utilizá-lo assim, ele não é bom. É por isso, penso eu, que chamaram esta árvore de árvore do conhecimento do bem e do mal[29]. Pois somente os perfeitos no estado da contemplação divina e da virtude são capazes de se dedicar ao que existe de mais agradável aos sentidos e não desviar seu intelecto da contemplação de Deus, dos hinos e das orações que lhe dedicam, mas de fazer do que é agradável aos sentidos a matéria e a ocasião de sua tensão em direção a Deus, e de dominar o prazer dos sentidos por meio do movimento do intelecto para o melhor. Mesmo não tendo o
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hábito do prazer, e mesmo que o prazer seja ainda maior e mais violento devido à sua inexperiência, eles não esvaziam a razão da alma para correr para este ser mau, que apresenta como bom aquilo que eles já haviam vencido. 50. Este era um benefício para os ancestrais que, vivendo neste lugar sagrado, não deveriam jamais se esquecer de Deus. Eles deveriam se dedicar e como que se educar sempre mais aos bens puros e simples e elevá-los até o estado de contemplação. Mas como eles ainda não haviam alcançado este termo, mas se encontravam a meio caminho, e porque eram, pela força das coisas de que se serviam, facilmente levados ao bem ou ao seu contrário, eles acabariam fazendo esta experiência. E fizeram isto empurrando para baixo, dominando e abatendo por meio dos sentidos o intelecto inteiro, dando espaço às ações más e mostrando o quanto era persuasivo o iniciador e artífice de tais paixões, cuja origem, a partir daí, consiste na nutrição excitante oferecida pelos alimentos mais agradáveis. Com efeito, se a simples visão desta árvore, segundo a história, permitiu à serpente fazer-se admitir e ser recebida confiantemente como conselheira, quanto mais o será o alimento dado em abundância! Não fica assim claro que não era útil aos ancestrais, com seus sentidos, comer do fruto desta árvore? E não deveriam os que dele comeram ser expulsos do Paraíso de Deus[30], para não fazer do lugar divino um local onde se tramasse e se elaborasse o mal? Não deveriam estes transgressores sofrer desde logo a morte do corpo? Mas o Mestre tinha paciência. 51. A sentença de morte da alma, que a transgressão desatou, estava em conformidade com a justiça do Criador. Ele abandonou os que o haviam abandonado, porque eles havia agido por sua própria vontade: ele não os forçou a nada. Deus havia anunciado esta sentença previamente [31], em seu amor pelo homem, pelas razões que já mencionamos. Mas primeiro ele aplicou e estabeleceu a sentença da morte do corpo. E quando ele a pronunciou, na profundeza de sua sabedoria e na superabundância de seu amor pelo homem, ele reservou para o futuro sua aplicação real, não dizendo a Adão: “Volte para o lugar de onde veio”, mas: “Você é terra e retornará à terra[32]”. É possível, para os que escutam com inteligência, ver nestas palavras que Deus não criou a morte da alma nem a morte do corpo[33]. Pois quando ele estabeleceu sua ordem, ele não disse: “Morram no dia em que comerem”, mas “Vocês morrerão no dia em que comerem[34]”. Como ele não diz agora: “Volte para a terra”, mas: “Você voltará”. Ele adverte, deixa fazer e, com justiça, não impede o que acontecerá. 52. Assim é que nossos ancestrais deveriam comer a morte, como comemos nós, os que ainda estamos neste estado: nosso corpo se tornou mortal. É por isso que este é por assim dizer como que uma longa morte, ou antes, uma miríade de mortes, cada uma recebendo a outra, cada uma por sua vez, até que chegamos à morte única, última e definitiva. Pois nascemos para morrer. E uma vez nascido, escoamos até deixar de escoar e de vir a ser. Não somos jamais os mesmos, ainda que aos olhos dos que não prestam atenção pareçamos sê-lo. Somos como um fogo que peja na extremidade de um junco, que ora é uma chama, ora outra, e que tem como medida de sua existência o comprimento do junco. Da mesma forma, para nós que estamos submetidos à mudança, a medida é o intervalo de vida que é atribuído a cada qual. 53. Para que não ignoremos a superabundância do seu amor pelo homem e a profundidade da sabedoria por cuja causa Deus, após aplicar a sentença da morte, não concedeu ao homem que vivesse doravante, mas primeiro lhe mostrou que o castigava com compaixão, ou melhor, que lhe aplicava o castigo com justiça, para que nós não nos desesperemos totalmente. Ele nos deu tempo para o arrependimento e para nos conduzirmos de modo a agradá-lo desde o começo. Ele aliviou com as alternâncias do devir a tristeza da morte. Ele aumentou a raça com descendentes, para que a multitude dos que nascessem superasse o números dos que morrem. Em lugar de um único Adão tornado miserável e indigente por causa da beleza da árvore sensível, Deus suscitou inúmeros homens, nascidos do sensível, que foram, por sua beatitude, ricos da ciência de Deus, de virtude, de conhecimento e de bem-aventurança divina, como Seth, Enoque, Né, Melquisedeque, Abraão e todos os que se revelaram dentre eles, antes, depois ou junto deles. Mas
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dentre tantos e tais homens, nenhum houve que vivesse totalmente sem pecado, para poder reparar com seu combate a derrota dos ancestrais, curar a ferida recebida na raiz da raça e bastar daí por diante para alcançar a santificação, a bênção e o retorno da vida para todos. Deus havia previsto isto e no tempo azado escolheu as raças e as tribos de onde haveria de extrair o ramo[35] célebre que daria a flor por meio da qual iria se realizar a economia capaz de salvar o gênero humano. 54. Ó profundezas da riqueza, da sabedoria[36] e do amor de Deus pelo homem! Pois se não tivesse havido a morte, e se nossa raça, saída de tal raiz, não tivesse se tornado mortal antes mesmo da morte, não seríamos nós ricos das primícias da imortalidade, não seríamos chamados aos céus, nossa natureza não seria entronizada acima de toda autoridade e de todo poder, à direita da Majestade, nos céus[37]. Assim por sua própria sabedoria e seu próprio poder, Soube Deus, em seu amor pelo homem, transformar com vistas ao melhor a perdição na qual nos fez cair nosso livre arbítrio. 55. Muitos acusam Adão por haver transgredido o mandamento divino ao se deixar persuadir pelo mau conselheiro, e por ter, através desta transgressão, suscitado em nós a morte. Mas não é a mesma coisa provar de uma erva mortal antes de ter tido esta experiência e desejar comê-la depois de ter aprendido pela experiência que ela é mortal. Quem, depois de haver experimentado, devora o veneno e atrai miseravelmente a morte sobre si mesmo é bem mais condenável do que aquele que, inexperiente, faz este gesto e sofre suas consequências. É por isso que cada um de nós está bem mais sujeito à vergonha e à condenação do que o próprio Adão. Mas esta árvore não está em nós? Não existe agora, dirigido a nós, um mandamento de Deus que nos proíbe de comer seu fruto? Assim é que esta árvore pode também não estar em nós. O mandamento de Deus permanece para sempre entre nós, e hoje como sempre. Aos que o obedecem e que desejam viver na sua observância, ele os livra dos castigos pelos pecados cometidos, assim como da maldição e da condenação ancestral. Mas aos que ainda agora o transgridem, preferindo a sugestão e o conselho do maligno, é impossível que não sejam expulsos para longe desta vida, para fora dos caminhos do Paraíso, e que não caiam na Geena do fogo eterno que a todos nos ameaça. 56. Qual é então este mandamento de Deus que hoje nos é proposto? O arrependimento, cujo princípio é de não mais tocar no que foi proibido. Com efeito, quando fomos justamente rejeitados do campo das delícias divinas e excluídos do Paraíso de Deus, quando tombamos no fundo deste abismo, quando fomos condenados a viver e permanecer entre os animais desprovidos de razão e perdemos a esperança de ver chegar a nós o chamado do Paraíso, o próprio Deus, trazendo-nos um julgamento justo, ou melhor, permitindo a nós nos aproximarmos deste julgamento, na superabundância de seu amor pelo homem e de sua bondade, das entranhas de sua compaixão[38], por nós, desceu até nós. E tornando-se, embora sem pecado, homem como nós[39], por sua benevolência, a fim de ensinar e salvar o mesmo pelo mesmo, nos trouxe o conselho e o mandamento salutar do arrependimento, dizendo-nos: “Arrependam-se, pois o Reino de Deus está próximo[40]”. Antes que o Verbo de Deus se fizesse homem, o Reino dos céus estava tão distante como está o céu afastado da terra. Mas quando o Reino dos céus veio e pe3rmaneceu entre nós, e se uniu a nós em sua benevolência, ele se aproximou de todos nós. 57. Uma vez que o Reino dos céus se aproximou de nós, fazendo descer a nós o Verbo de Deus pelo amor que nos dedica, não nos afastemos dele levando uma vida sem arrependimento. Fujamos da miséria daqueles que estão sentados nas trevas e na sombra da morte[41]. Tentemos adquirir as obras do arrependimento, um pensamento humilde, uma compunção e uma tristeza espirituais, um coração manso e doce, cheio de piedade, tomado de justiça, esforçando-nos pela pureza, dóceis, pacíficos, tenazes, acolhendo com alegria as perseguições, as injúrias, os ultrajes, as calúnias e os sofrimentos pela verdade e a justiça. Pois o Reino dos céus, ou antes, o Rei dos céus – ó magnificência indizível! – está em nós[42]. É a ele que devemos nos ligar sempre pelas obras do arrependimento, amando, tanto quanto nos é possível, Aquele que tanto nos amou.
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58. A ausência de paixões e a abundância de virtudes suscita o amor que dedicamos a Deus. Pois a aversão aos vícios, da qual procede a ausência de paixões, deixa espaço para o desejo e a aquisição dos bens. Ora, aquele que se afeiçoa a estes bens e os possui, como não amará acima de tudo ao Mestre que é o bem em si, o único que dispensa e guarda todos os bens: é nele que está o bem por excelência, e é ele que o traz consigo por amor, segundo o Apóstolo que disse: “Quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele[43]”. E nisto podemos ver não apenas o amor a Deus nascendo das virtudes, mas também as virtudes nascendo do amor. É por isso que o Senhor nos Evangelhos tanto diz: “Quem guarda meus mandamentos, este me ama[44]”, como diz: “Quem me ama guardará meus mandamentos[45]”. Mas nem as obras das virtudes são louváveis naqueles que agem sem amor, nem o amor é louvável e útil sem as obras. É o que Paulo mostra sobejamente quando escreve aos Coríntios: “Se eu fizer isto, mas não tiver o amor, isto de nada me servirá[46]”. Reciprocamente, o discípulo que Cristo amava disse: “Não amemos com palavras e com a língua, mas em ato e verdade[47]”. 59. O Altíssimo, o Pai adorado, é o Pai da própria verdade, ou seja, do Filho único, e ele traz o Espírito de verdade, o Espírito Santo, como mostrou previamente a palavra de verdade. Portanto, os que adoram o Pai no Filho e no Espírito e creem neles, agem com o que por intermédio deles. É pelo Espírito, diz o Apóstolo, que adoramos e oramos[48]. Da mesma forma: “Ninguém chega ao Pai senão por mim[49]”, disse o Filho único de Deus. Os que assim adoram o Pai Altíssimo em espírito e em verdade, são estes os verdadeiros adoradores[50]. 60. Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade[51], ou seja, concebendo de modo incorporal o incorpóreo. É assim que eles o verão verdadeiramente em toda parte, em seu Espírito e em sua verdade. Com efeito, a partir do momento em que Deus é Espírito, ele é incorpóreo. Ora, o incorpóreo não pode ser localizado num lugar, nem circunscrito a limites espaciais. Portanto, quem diz que é preciso adorar a Deus num dado lugar em detrimento de todos os outros lugares da terra, nem diz a verdade, nem adora verdadeiramente. Pois se Deus é incorpóreo ele não está em parte alguma, mas, como ele é Deus, está em toda parte. Com efeito, se Deus estivesse numa montanha, ou num lugar, ou numa criatura – lugares onde ele não está – ele estaria circunscrito por alguma coisa. Ora, ele está em toda parte porque ele não tem limites. Mas como pode ele estar em toda parte? Estará ele contido, não numa parte, mas no todo? Certamente não, porque neste caso ele continuaria sendo um corpo. Mas uma vez que ele mantém e contém o todo, ele está em si mesmo, em toda parte e acima de tudo, adorado por seus verdadeiros adoradores, em seu Espírito e sua verdade. 61. O anjo e a alma, seres incorpóreos, não estão em parte alguma, mas também não estão em toda parte. Porque eles não sustentam o todo, mas têm necessidade Daquele que os sustém, a eles também. Assim é que eles estão contidos Naquele que mantém e sustém o todo, determinados por ele à sua medida. Porém a alma, que sustenta o corpo, para o qual foi criada, permanece ligada ao corpo, não como ligada a um lugar, nem como contida nele, mas como algo que mantém, contém, vivifica e porta o corpo, à imagem de Deus. 62. Não é apenas por possuir em si mesmo um poder englobante e vivificante que o home foi feito à imagem de Deus mais do que os anjos, mas também porque ele comanda. Pois existe na natureza de nossa alma, de uma parte, algo que dirige e comanda e, de outra, algo que está naturalmente sujeito e que obedece: a vontade, o desejo, os sentidos, numa palavra, tudo o que, depois do intelecto, foi criado com ele por Deus, mesmo que, por amor ao pecado, nos sirvamos destas faculdades para nos revoltar não apenas contra o Deus Todo-Poderoso, mas ainda contra Aquele que é por natureza o próprio poder e que está ligado a nós. Mas Deus, ao nos conferir o poder de comandar, nos concedeu dominar a terra inteira[52]. Os anjos não estão ligados a corpos, na medida em que não têm corpos submetidos à inteligência. Alguns, os decaídos, mantêm a vontade de seu intelecto continuamente voltada para o mal. Outros, os bons, têm sua vontade continuamente dirigida para o bem, sem que haja necessidade de que ela
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seja dirigida. O maligno não tinha poder sobre a terra, mas a tomou para si, donde fica claro que ele não foi criado para comandá-la. Mas os anjos bons receberam do Todo-Poderoso a ordem de velar sobre o que se passa na terra, depois da nossa queda, quando perdemos nossa dignidade, embora não por completo graças ao amor que Deus tem pelo homem. Pois Deus fixou os limites dos anjos quando separou as nações[53], como diz Moisés em sua ode. Esta partilha ocorreu depois de Caim e Seth, entre os homens chamados filhos de Caim e os homens nascidos de Seth, chamados filhos de Deus. Foi este nome que, desde então, penso eu, efetuou a divisão e anunciou previamente a raça da qual deveria nascer o filho único de Deus. 63. Podemos dizer com muitos outros que o caráter trinitário do nosso conhecimento mostra que, mais do que os anjos, fomos nós feitos à imagem de Deus, e não apenas porque nosso conhecimento é trinitário, mas porque ele ainda engloba toda espécie de conhecimento. Com efeito, únicos dentre todas as criaturas, trazemos em nós o domínio dos sentidos, além do intelecto e da razão. A parte de nós naturalmente ligada à razão encontrou uma grande multitude e variedade de artes, de ciências e de conhecimentos: cultivar a terra, construir, criar a partir do que não existia (mas não a partir do nada absoluto, que só pertence a Deus), isto foi concedido apenas aos homens. Pois é quase impossível fazer ou destruir o que foi realizado por Deus, mas nós podemos misturar as coisas umas com as outras para gerar outras formas. Mais ainda, as coisas trazidas pela palavra invisível do intelecto não apenas são percebidas pelo ouvido quando ela se une ao ar, como ainda podem ser transformadas em escrita: Deus concedeu apenas aos homens vê-la, com o corpo e por intermédio do corpo, levando-os a acreditar constantemente na vinda do Verbo Altíssimo e na sua revelação na carne. Nada disto foi dado aos anjos. 64. Mas se, mais do que os anjos, somos feitos à imagem de Deus, estamos bem abaixo deles, em especial agora, no que diz respeito à semelhança com Deus. Pois, se me é permitido deixar o resto de lado por um momento, a semelhança com Deus se realiza pelo flamejar divino que provém de Deus. Os anjos maus foram privados disto: por isso se foram para as trevas[54]. Mas os intelectos divinos o trazem consigo: por isso são chamados de segunda luz e efusão da luz primeira, se, como espero, não ignoro nenhuma dos que leram com atenção e inteligência as palavras inspiradas de Deus. É assim que os anjos têm também o conhecimento das coisas sensíveis. Pois eles não as concebem em função de uma potência sensível e natural, mas em função de uma potência semelhante à de Deus, para a qual nada do que existe, de um modo ou de outro, seja passado, presente ou futuro, pode permanecer oculto. 65. Os que participam deste flamejamento e que o trazem em si mesmos numa certa medida possuem também o conhecimento dos seres na proporção desta medida. Também os anjos participam deste flamejamento, pois ele é incriado, mas não como no caso da essência divina, como sabem todos os que leram os apóstolos e os teólogos dotados da sabedoria de Deus. Quem pensa o contrário blasfema contra o flamejamento divino, sustentando, ou bem que ele é uma criatura, ou bem que ele é uma essência de Deus. Quando se diz que ele é uma criatura, não se admite que seja a luz dos anjos. Ouçamos então Denis o Areopagita, o Teofante, que explica brevemente estas três coisas: “As inteligências divinas que se movem em círculos se unem aos flamejamentos sem começo nem fim do Deus belo e bom. É claro para todos que as inteligências divinas são os anjos bons[55]”. Uma vez estabelecida a pluralidade dos flamejamentos, ele as separa da essência de Deus. Pois esta é una e totalmente indivisível. E ao mostrar que estes flamejamentos não têm começo nem fim, que nos mostra ele, senão que eles são incriados? 66. O Verbo de Deus se apiedou da pesandez de nossa natureza desprovida desta flamejamento e deste esplendor divino por causa da transgressão, e a assumiu, nas entranhas de sua compaixão [56], e a mostrou tal como é aos seus discípulos eleitos quando a revestiu claramente sobre o monte Tabor[57]: aquilo que fomos outrora e que por ele seremos no século futuro se escolhermos viver aqui em baixo segundo ele, na medida em que nos for possível, como disse João que tinha uma língua de ouro[58].
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67. Também Adão partilhava deste flamejamento e deste esplendor de Deus antes da transgressão, quando ainda se cobria de uma veste de glória: ele não estava nu. Antes, ele se vestia de mais beleza, não é preciso dizer, do que os que hoje são coroados com diademas ornados de ouro e pedras preciosas. A este flamejamento e a esta graça de Deus, o grande Paulo chama de nossa morada celeste, quando diz: “É neste estado que gememos, desejando vestir nossa morada que vem do céu, para que sejamos encontrados vestidos e não nus[59]”. Paulo recebeu de Deus as garantias deste flamejamento divino e desta vestimenta de luz no caminho de Jerusalém a Damasco[60], quando, para retomarmos as palavras de Gregório o Teólogo, “antes de ser purificado das perseguições ele encontrou o Perseguido, ou melhor, um breve lampejo da grande luz[61]”. 68. A supra-essência divina jamais é mencionada no plural. Mas a graça de Deus, sua energia divina e incriada, indivisivelmente repartida, à imagem da irradiação solar, aquece, ilumina, vivifica, faz crescer, leva seu próprio esplendor àqueles a quem ilumina e aparece aos olhos dos que a veem. Ora, neste esplendor, que no fundo é como uma imagem obscura, a divina energia de Deus não é apenas nomeada no singular pelos teólogos, mas também o é no plural, como quando Basílio o Grande diz: “As energias do Espírito, quais são elas? Sua grandeza é indizível, sua multitude inumerável. De fato, como poderíamos conceber o que está além dos séculos? Quais eram estas energias antes da criação do inteligível?[62]”. Certamente, ninguém disse nem jamais pensou que antes da criação inteligível e além dos séculos (pois os séculos são também criaturas inteligíveis) o esplendor fosse incriado. As potências e as energias do Espírito divino são, portanto, incriadas, mas a teologia as considera como plurais, inseparavelmente separadas da essência única e inteiramente inseparáveis do Espírito. 69. Os teólogos, como mostrou acima Basílio o Grande, afirmam que a energia incriada de Deus é inseparavelmente repartida na pluralidade. Portanto, o flamejamento divino e deificante – a graça – não é a essência, mas a energia de Deus. É por isso que ela não se desenvolve apenas no singular, mas também na pluralidade, uma vez que ela está na medida daqueles que dela participam, e sendo assim está em maior ou menor grau naqueles que recebem, segundo sua qualidade própria, o esplendor deificante. 70. Isaías disse que estas energias eram em número de sete. Ora, a cifra sete, entre os hebreus, significa muitas coisas. Com efeito, ele disse: “Uma ramo nascerá da raiz de Jessé, e deste ramo nascerá uma flor. Sobre esta flor repousarão sete espíritos: de sabedoria, de inteligência, de conhecimento, de piedade, de conselho, de força e de temor[63]”. Os que tolamente professam doutrinas heréticas sustentam que estes sete espíritos foram criados. Esta doutrina, já a expusemos e recusamos ampla e suficientemente em nossas “Refutações[64]”. Mas Gregório o Teólogo, depois de haver mencionado estas sete energias do Espírito, diz que lhe agrada chamar de espíritos, como Isaías, às energias do Espírito[65]. E este último, que foi a maior voz dentre os profetas, não apenas mostrou por meio do número a diferença entre as energias e a essência divina, como também estabeleceu o caráter incriado destas energias divinas, dizendo que elas “repousam”. Pois “repousar” é próprio da suprema dignidade. Se as energias repousam sobre esta carne que é a nossa e que o Mestre assumiu, como poderão elas ser criaturas? 71. Nosso Senhor Jesus Cristo disse, segundo Lucas, que ele expulsava os demônios com o dedo de Deus[66]; e segundo Mateus, por meio do Espírito de Deus[67]. O grande Basílio disse que o dedo de Deus é uma das energias do Espírito[68]. Portanto, se uma destas energias é o Espírito Santo, as demais certamente o serão também, como ele próprio nos ensinou. Mas isto não significa que existam numerosos Deus ou numerosos Espíritos. Pois tais manifestações são as sentinelas, os reveladores e as energias naturais do Espírito único: é o mesmo Espírito que trabalha em cada energia. Os que professam o erro, dizendo que estes espíritos são criaturas, rebaixam sete vezes ao grau de criatura o Espírito de Deus. Que sejam sete vezes confundidos! Pois o Profeta disse ainda que estes sete espíritos são os olhos do Senhor que observam toda a terra[69]. E quando o Apóstolo escreve no Apocalipse: “Que a graça e a paz lhes
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sejam dadas por Deus, dos sete espíritos que estão diante de seu Trono, e de Cristo [70]”, ele mostra claramente aos fiéis que estes espíritos são o Espírito Santo. 72. Deus Pai, ao anunciar previamente pelo profeta Miquéias que o Filho único nasceria na carne, e querendo mostrar que sua Divindade não possuía começo, disse: “Suas origens remontam ao começo, aos dias da eternidade[71]”. Os Padres divinos explicaram que estas “origens” eram as energias da Divindade. Trata-se com efeito das potências e das energias do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que aqueles que se esforçam em professar e justificar as opiniões dos construtores de mentiras proclamam ser criadas. Mas se algum dia eles receberem a inteligência, deverão se perguntar quem é Aquele que existe desde a origem, quem é Aquele de quem Davi disse: “Você existe desde a eternidade” (o que equivale a dizer: “Você existe desde os dias da eternidade”) e “Você existirá até a eternidade[72]”, e, neste dia, que eles considerem com inteligência que ao dizer pela voz do profeta que no começo havia “origens” Deus não disse que elas haviam sido suscitadas, feitas ou criadas. Basílio, que falava como teólogo no Espírito de Deus, disse também que as energias do Espírito não haviam sido suscitadas, mas que elas existiam antes da criação inteligível e além dos séculos. Portanto, somente Deus é ativo e todo-poderoso desde a origem, uma vez que ele possuía as potências e as energias anteriores aos séculos. 73. Evidentemente opostos aos santos, os que professam a opinião contrária[73] dizem: “O incriado é um, a natureza divina. Tudo o que difere desta, de um modo ou de outro, é criado”. Logo, eles tornam criaturas o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Pois também a energia dos três é uma. Ora, se a energia de Deus é criada, ele próprio deixa de ser incriado. Portanto, não é a energia de Deus, longe disto, mas aquilo que recebe esta energia e se realiza a partir dela que é criatura. É por isso que o maravilhoso Damasceno ensinou que a energia, diferente da natureza divina, é também um movimento da essência, vale dizer, um movimento da natureza divina[74]. Uma vez que é próprio da energia de Deus criar, disse o divino Cirilo[75], como poderá ela ser uma criatura, a menos que ela tenha sido posta em ação por outra energia, e esta por outra, e sucessivamente, até o infinito? Nós, ao contrário, buscamos e proclamamos a causa incriada da energia. 74. Uma vez que a essência divina e a energia divina estão presentes em toda parte sem ser divididas, a energia de Deus pode ser recebida também por nós, as criaturas. Pois, segundo os teólogos, elas se dividem sem se dividir, pois a natureza divina, dizem eles, permanece inteiramente indivisível. É por isso que nosso Pai Crisóstomo, quando disse quem a gota da graça preencheu de conhecimento o universo, que por meio dela aconteceram os milagres e foram absolvidos os pecados, e quando mostrou que esta gota de graça é incriada, logo se apressou em precisar que ela consiste na energia, mas não na essência. Além disso, ele lembra a diferença que separa a energia divina da essência divina e da hipóstase do Espírito, ao escrever: “Eu digo que tal é a parte da energia, mas o Consolador certamente não foi dividido. A graça divina e a energia não são menos recebidas por cada um de nós. Pois elas se distribuem sem se dividir. Mas a essência de Deus, que em si mesma é absolutamente indivisível, como poderia ela ser recebida por uma criatura?”. 75. Uma vez que existem três caracteres de Deus, a essência, a energia e as hipóstases divinas da Trindade, aqueles que foram considerados dignos de se unir a Deus até se tornarem com ele um só Espírito (como disse o grande Paulo: “Quem se une ao Senhor se torna com ele um só Espírito[76]”, pois foi dito mais acima que os que são dignos disto não se unem a Deus em sua essência), e todos os teólogos, atestam que Deus não é participável em sua essência. A união segundo a hipóstase pertence apenas ao Verbo, o Deus-Homem. Os que se tornaram dignos de se unir a Deus se unem através da energia. E o Espírito por meio do qual ele se une a Deus é um com Deus, é e é chamado de energia incriada do Espírito, mas não de essência de Deus, mesmo que isto desgoste os que pensam o contrário[77]. Pois Deus predisse através do Profeta: não será meu Espírito, mas “de meu Espírito, que repartirei sobre aqueles que creem[78]”.
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76. Foi dito: “Ao chamado de Deus levantaram-se Moisés e Davi”, e todos os que receberam a energia divina por se terem despojado das marcas da carne. E: “Eles se tornaram ícones vivos de Cristo, iguais a ele, mas mais pela graça do que pela assimilação”. E: “A pureza em Cristo e a pureza nos santos é a mesma coisa”. E: “O esplendor de nosso Deus está sobre nós[79]”, como cantou o mais divino dos poetas. Pois “as almas que trazem o Espírito e são por ele iluminadas se tornam elas próprias – segundo o grande Basílio – espirituais, e enviam a outras a graça, da qual procedem a presciência do futuro, a inteligência dos mistérios, a compreensão do que está oculto, a partilha dos carismas, a cidadania celeste, a ronda com os anjos, o regozijo que não tem fim, a efusão divina, a semelhança a Deus, o desejo máximo: tornar-se Deus[80]”. 77. Na ordem desta graça, do esplendor e da união com Deus, os anjos superam os homens. Por isso eles são “o segundo esplendor, os liturgistas do esplendor do alto”. E: “As potências intelectuais e os espíritos litúrgicos[81] são as luzes segundas, as irradiações da luz primigênia”. E: “Os anjos são a primeira natureza luminosa após a natureza original, da qual recebem a irradiação”. E: “Um anjo é uma luz segunda que jorra ou participa da luz primigênia”. E: “As inteligências divinas, girando em círculos, se unem às irradiações sem começo nem fim do Deus belo e bom”. “Pois Deus é em si mesmo luz para os eternos, e nada senão isto”. “Aquilo que é o sol para o sensível, é Deus para o inteligível. Ele é em si a primeira e mais alta luz que ilumina toda natureza dotada de razão”. “Mesmo que você ouça a palavra do Profeta: ‘Eu vi o Senhor sobre seu Trono[82]’, disse nosso Pai Crisóstomo, não imagine que ele tenha visto esta essência, mas sim a irradiação de sua compaixão que desce a nós. E ele não viu esta irradiação mais obscuramente do que a veem as Potências do alto[83]”. 78. Toda natureza está como que afastadíssima da natureza divina e é totalmente estranha a ela. Pois se Deus é uma natureza, tudo o que não é ele não poderia ser uma natureza. E se os outros são uma natureza, é ele quem não é. Também ele não será um ser, se os outros forem seres. E se Deus for um ser, os outros não o serão. E se admitirmos o mesmo raciocínio em relação à sabedoria, a bondade, numa palavra, em relação a tudo o que é dito ao redor de Deus ou sobre Deus, estaremos falando dele corretamente, na mesma linha dos santos. Deus é e é chamado de natureza de todos os seres, na medida em que todos participam dele e são constituídos por esta participação nele, não pela participação em sua natureza, longe disto, mas pela participação em sua energia. Ele é assim a essência dos seres, a forma das formas – na medida em que é a própria origem das formas –, a sabedoria dos sábios, numa palavra, o tudo de todos. E ele não é uma natureza, na medida em que está acima de todas as naturezas. E ele não é um ser, na medida em que está acima de todos os seres. E não é uma forma, nem possui uma forma, na medida em que está acima das formas. Como então poderemos nós nos aproximar de Deus? Será em nos aproximando de sua natureza? Mas jamais uma criatura, uma sequer, teve ou terá, mesmo que uma única vez, a possibilidade de entrar em comunhão com a natureza suprema, ou de se aproximar dela. Portanto, se nos aproximarmos de Deus, esta aproximação terá sido por meio da energia. Mas como? Participando naturalmente desta energia? Mas isto é comum a todas as criaturas. Portanto, não é por intermédio do que está ligado a nós devido à natureza, mas por intermédio daquilo que provém de uma resolução, que nos aproximamos ou nos afastamos de Deus. A resolução é característica apenas dos seres dotados de razão. Portanto, apenas estes, dentre todos os seres, podem estar perto ou longe de Deus, dele se aproximando ou se afastando por meio da virtude ou do vício. A apenas eles também recebem a beatitude ou a infelicidade. Quanto a nós, esforcemo-nos para receber a beatitude. 79. Comparada a outra, uma criatura pode ser considerada unida a Deus segundo a natureza, ou estranha a ele. Aquilo que está unido à Divindade, diz-se, são as naturezas intelectuais que somente o intelecto é capaz de captar. E o que lhe é completamente estranho são as naturezas que captam os sentidos, e dentre estas aquelas que são inteiramente sem alma e sem movimento são ainda mais afastadas. Comparadas entre si, as criaturas podem ser chamadas de unidas a Deus segundo a natureza, ou estranhas. Mas todas as que são por si mesmas segundo a natureza são estranhas a Deus. Com efeito, é tão impossível dizer o
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quanto a natureza intelectual está afastada de Deus quanto dizer o quanto os sentidos e o sensível estão afastado dos seres intelectuais. É neste ponto que estamos afastados de Deus por nossa própria natureza, em realidade, para nossa infelicidade, se, devido a uma nobre resolução de nossa parte, não nos aproximarmos dele por meio das boas obras e de uma boa conduta. 80. A língua divina e comum aos que pregam a Deus, Damasceno o Teóforo, diz no segundo de seus capítulos teológicos: “Quem pretende dizer ou ouvir algo sobre Deus deve saber claramente que nem tudo é indizível e que nem tudo é dizível, tanto na ordem da teologia como na ordem da economia, assim como nem tudo é desconhecido e nem tudo é conhecido[84]”. Mas, sabemos nós, aquilo que é permitido dizer das coisas de Deus ultrapassa a palavra, na medida em que provém de uma palavra supra-eminente que temos viva em nós, não exteriormente a esta palavra que nos falta, mas fora de nossa própria palavra, e que a partir de nós mesmos levamos ao ouvido dos outros. Pois nem quem interpreta pode se apropriar dela, nem quem se ocupa de tudo são capazes de alcançá-la. Nem a nós mesmo é permitido dizer seja o que for de Deus. Mas é permitido aos que dizem em espírito as coisas do Espírito, e também quando os adversários pedem que lhes dirijamos uma palavra. 81. Diz-se que na porta da academia de Platão estava escrito: “Não entre aqui se não for geômetra”. Ora, não é geômetra quem não é capaz de pensar ou dizer que os indivisíveis podem ser divididos. Pois sem o finito, é impossível que exista um limite. A geometria é quase toda ela um discurso sobre os limites, que são definidos e traçados sem os corpos finitos, às vezes com eles, quando o intelecto divide o indivisível. Mas quem ainda não aprendeu em seu intelecto a separar os corpos das coisas que os cercam, como poderá compreender quando ouvir falar da natureza em si mesma, que não apenas não pode ser separada das coisas naturais – por existir nelas – como sequer existe sem elas. Como compreenderá, quando ouvir falar do universal enquanto universal, uma vez que este também se encontra no particular, dividido apenas pela inteligência e a simples razão do particular, ele que é concebido antes do múltiplo e totalmente sem o múltiplo pela razão verdadeira? Como compreenderá quando ouvir falar do inteligível e do intelectual? Como compreenderá que cada inteligência em nós que falamos tenha pensamentos, e que cada um de nossos pensamentos seja uma inteligência? E como não nos acusará de erro e não nos refutará, nos acusando de dizer que cada homem possui duas, e mesmo muitas, inteligências? Quem, a propósito destas noções, não consegue compreender nada nem dizer nada sobre os indivisíveis capazes de se dividir, como poderá, a propósito de Deus, dizer ou compreender semelhantemente, uma vez que existem inúmeras uniões e distinções, assim denominadas pelos teólogos? Mas “as uniões superam as distinções e as ultrapassam”: elas não as suprimem nem são impedidas por elas. Em todo caso, os adversários[85] recusam e são incapazes de conhecer a indivisível divisão e a união divisível que estão em Deus, quando nos ouvem dizer – em acordo com os santos – que Deus é ao mesmo tempo incompreensível e compreensível ao mesmo tempo em que permanece sendo um, incompreensível na sua essência e compreensível pelas criaturas em suas energias divinas, vale dizer, sua vontade, sua providência, sua sabedoria que ele dirigiu a nós antes dos séculos, e, para falarmos como o divino Máximo, seu poder, sua sabedoria e sua bondade infinitas. Quando os adversários e os que os seguem nos ouvem dizer estas verdades necessárias, eles nos acusam de afirmar que existem muitos Deuses e muitos incriados, e de fazer de Deus um ser composto. Pois eles ignoram que Deus é indivisivelmente dividido, que ele permanece um, mesmo se dividindo, e que nisto ele não conhece nem multiplicação nem composição. 82. O grande Paulo, a boca de Cristo, o vaso de eleição[86], aquele que mais claramente levou o nome divino, disse: “Aquilo que Deus tem de invisível desde a fundação do mundo se deixa ver ao intelecto nas criaturas, como seu poder e sua eterna divindade[87]”. Será então a essência de Deus que se deixa ver ao intelecto das criaturas? Absolutamente. Este é o delírio de espíritos falsos[88], e antes deles a loucura de Eunomo. Pois este, antes deles e como eles, escreveu que através das criaturas, o que se deixe ver ao intelecto não é outra coisa que a essência de Deus. Ora, falta muito para que o Apóstolo divino houvesse falado a mesma coisa. Depois de haver ensinado que o que é conhecido de Deus é manifestado, e de haver
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demonstrado que existe outra coisa, que está além daquilo que conhecemos de Deus e que o próprio Deus revelou aos que têm inteligência, ele acrescentou: “O que Deus tem de invisível desde a criação do mundo se deixa ver ao intelecto nas criaturas”. Assim, é possível saber o que conhecemos de Deus: os Padres teóforos o explicam. Eles disseram: o que não conhecemos de Deus é sua essência, e o que conhecemos é tudo o que envolve esta essência: a bondade, a sabedoria, o poder, a divindade, ou, em verdade, a grandeza. É isto que Paulo chama de invisível, mas visível ao intelecto das criaturas. Ora, o que é visível ao intelecto das criaturas e que envolve a essência de Deus, como poderá isto ser ainda uma criatura? Portanto, a energia de Deus visível ao intelecto das criaturas é também ela incriada, e ela não é a essência. Pois ela é suscitada não apenas no singular, mas na pluralidade. 83. “As criaturas permitem conhecer a sabedoria, a arte, o poder, mas não a essência[89]”, disse o grande Basílio, replicando Eunomo, que afirmava que a essência de Deus era representada pelas criaturas. Portanto, a energia de Deus representada pelas criaturas é também incriada, e ela não é a essência. E os que dizem que a energia divina em nada difere da essência divina são manifestamente eunomianos. 84. Nas suas “Refutações”, seu irmão teve razão em dizer-lhe com sentimento fraterno: “Quando consideramos a beleza e a grandeza dos milagres da criação, e que recebemos destes milagres e de coisas semelhantes outros pensamentos do divino, damos os nomes que lhes convêm a cada um destes pensamentos que nos ocorrem. Com efeito, é a partir da grandeza e da beleza das criaturas que consideramos por analogia o autor da existência. E damos ao Criador o nome de demiurgo, o chamamos de poderoso, a ele, a quem basta o poder de criar seres apenas com sua vontade, e o chamamos de justo, porque ele é um juiz íntegro. Mas compreendemos também que o que prevalece a partir da energia criadora é o enunciado do nome de Deus, de tal modo que depois de havermos aprendido uma energia particular da natureza divina, pelo enunciado deste nome, não estejamos em condições de compreender a essência em si mesma”. 85. Denis o Areopagita, o mais eminente de todos os teólogos que sucederam aos maravilhosos apóstolos, depois de haver examinado o que distingue as hipóstases de Deus, disse: “A distinção divina é a processão que a bondade suscita, uma vez que a união divina cresce e se multiplica além de si mesma pela bondade[90]”. Ele acrescenta: “Dizemos que a distinção divina consiste nas processões da Tearquia, suscitadas pela bondade. Pois ela é concedida a todos os seres e distribui abundantemente as participações a todos os bens, e assim se distingue primeiramente na união para em seguida crescer na unidade e se multiplicar inseparavelmente no Um[91]”. E ele acrescenta ainda: “Nós nos esforçaremos tanto quanto possível para celebrar estas distinções da divindade, comuns e unidas à divindade em sua inteireza, ou as processões suscitadas pela bondade[92]”. Ele mostra claramente aqui que em Deus existe uma outra distinção: não apenas a distinção das hipóstases, mas a distinção diferente daquela das hipóstases: a distinção da divindade. Pois a distinção das hipóstases não é a distinção da divindade. É segundo as processões e as energias divinas que se diz que Deus cresce e se multiplica. Ele diz que estas processões são a mesma processão que se desenvolve aqui e agora. Mas por outro lado o divino não se multiplica, longe disto, nem se separa do próprio Deus. Pois para nós Deus é tríade, e não triplo. Por fim ele mostra o caráter incriado destas processões e destas energias. Pois ele as chama de divinas e diz que elas são as distinções da divindade em sua inteireza, acrescentando ainda que é a própria Tearquia que cresce e se multiplica por intermédio de suas processões e de suas energias, não por receber qualquer acréscimo do exterior, longe disto, mas por ordenar que suas processões sejam celebradas. E ele acrescenta: “tanto quanto possível”. O mais eminente dos compositores sacros mostra aqui o quanto as processões são celebradas acima de tudo. 86. O mesmo teofante, depois de haver dito acima que a processão suscitada pela bondade é uma distinção divina, acrescenta: “As difusões absolutas estão unidas na origem, segundo a distinção divina[93]”. Abarcando pelo pensamento as difusões aqui e agora, ele as chamou de processões e energias de Deus. E
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acrescentou que elas são absolutas, a fim de que ninguém pense que elas são resultados, como a essência de cada um dos seres, ou como a vida sensível que reside nos vivos, ou como a razão e o intelecto nos seres racionais e inteligentes. Pois como seriam estas qualidades absolutas em Deus se forem criadas? E como as processões e as difusões absolutas de Deus seriam criaturas, uma vez que a difusão absoluta está naquele que difunde, como vemos pela luz? 87. Indo adiante, este grande teólogo celebra estas processões e estas energias de Deus com outros nomes divinos: ele as denomina participações e autoparticipações, e mostra, em diversos pontos de seus discursos, que elas estão acima dos seres e que, preexistindo em Deus numa união supraessencial, elas são modelos dos seres. Assim, como poderiam elas ser criaturas? Ensinado então quais são estes modelos, ele prossegue: “Chamamos de modelos às razões – logoi – que em Deus criam os seres, que preexistem na unidade e que a teologia denomina predeterminações, vontades divinas e boas que definem e criam os seres: é por meio delas que Aquele que é mais alto que o ser predeterminou e suscitou todos os seres[94]”. Como poderiam ser criadas as predeterminações e as vontades criadoras dos seres? Como não denunciar aqueles que, reduzindo a providência de Deus ao estado de criatura, considera que estas processões e estas energias são criadas? Pois a energia que gera o ser, a vida e a sabedoria, e que, numa palavra, fundamenta e engloba os seres criados, consiste nas vontades de Deus, estas participações divinas e os dons da bondade que são a causa de tudo. 88. A participação do ser que existe por si mesmo não participa de nada em nenhum modo que seja, como ainda afirma o grande Denis: as demais participações, na medida em que são participações e princípios dos seres, não participam de absolutamente nada, pois nem a providência participa da providência, nem a vida participa da vida. Mas na medida em que elas têm o ser, nós dizemos que elas participam do ser que existe por si mesmo, pois sem ele elas não existiriam, nem teriam como ser participadas, assim como não pode existir presciência sem conhecimento. É por isso que as autoparticipações não são absolutamente criadas. Segundo o divino Máximo, elas jamais começaram a ser. Elas se revelam em sua essência ao redor de Deus. Elas sempre existiram. Os adversários[95], que, em sua impiedade, pensam que a vida em si, a bondade em si e as energias semelhantes sejam seres criados, porque elas participam da denominação comum dos seres, ao mesmo tempo não percebem que, mesmo que sejam chamadas de seres, elas estarão ainda acima dos seres, como disse o grande Denis. Em sua leviandade, aqueles que colocam assim as autoparticipações no nível das criaturas consideram que também o Espírito Santo é criado, pois o grande Basílio diz que o próprio Espírito Santo participa dos nomes divinos[96]. 89. Se alguém afirmar que apenas a existência em si consiste em participação, como se fosse a única que não participa de nada mas que é apenas participada – porque as outras participam dela – saiba que não está concebendo com inteligência as demais participações. Pois aquilo que vive, ou o que é santo, ou o que é bom, não é chamado de vivo, santo ou bom pelo simples fato de existir e de participar da existência em si, mas pelo fato de participar da vida em si, da santidade em si ou da bondade em si. Ora, a vida em si, ou outra energia semelhante, não se torna vida em si por participação a alguma outra vida em si. É por isso que, enquanto vida em si, ela pertence às energias participadas, não às que participam. Ora, o que não participa da vida mas é ele próprio participado e que vivifica os vivos, como poderá ser uma criatura? E o mesmo acontece com as demais participações. 90. O divino Máximo nos diz que a providência que gera os seres consiste nas processões de Deus, quando escreve em seus Comentários: “As providências e as bondades criadoras, ou seja, as energias que geram o ser, as que suscitam a vida e as que suscitam a sabedoria, são inerentes à Mônada das três hipóstases em suas distinções[97]”. Ao afirmar que estas energias são numerosas e distintas, ele demonstra que elas não são por si mesmas a essência de Deus. Pois esta é uma e completamente indivisível. Mas ao dizer que elas são inerentes à Mônada das três hipóstases em suas distinções, ele nos sinaliza que elas não são nem o Filho nem o Espírito Santo. Pois a energia não teria como ser identificada a estas três
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hipóstases. Mas ao afirmar não apenas que elas são providências e bondades, mas ainda que elas são criadoras, ele demonstrou que elas são incriadas. Pois se não for assim, o que cria será também criado. Ou seja, por algum outro criador, que, por sua vez, terá sido criado por outro, e assim ao infinito, se levarmos a coisa até o último grau do absurdo, o que seria inconcebível. Portanto, as processões e as energias de Deus são incriadas, e nenhuma delas é nem a essência, nem uma hipóstase. 91. A partir do momento em que Aquele que gerou e qualificou o universo lhe atribuiu numerosas formas na incomparável abundância de sua bondade, ele quis também que algumas possuíssem apenas o ser, enquanto outras, para ter o ser, adquirissem também a vida. Ele quis que umas tivessem parte nesta vida recebendo também o intelecto, enquanto outras desfrutassem apenas de uma das duas coisas, e ainda que algumas tivessem em si uma mistura de vida e inteligência. E dentre estas que receberam dele a vida dotada de razão e de inteligência, ele quis que, chamando-as para si, elas se descobrissem unidas a ele e vivessem assim sobrenatural e divinamente, tornadas dignas de sua graça e de sua energia teúrgicas. Com efeito, sua vontade foi a gênese dos seres, seja dos que ele tirou do nada, seja dos que ele aperfeiçoou. E tudo diferentemente. Mas no coração desta diferença da vontade divina a respeito dos seres existe esta única providência e esta única bondade, que é a compaixão de Deus voltada, por sua bondade, àquilo que é de mais baixo. Existem numerosas providências e numerosas bondades, é também o que dizem os teólogos que possuem a sabedoria de Deus: elas estão indivisivelmente divididas e repartidas em tudo o que é partilhado. É assim que eles chamam a uma poder previdente de Deus, e à outra poder criador e englobante, pois, dentre estas, segundo o grande Denis, umas engendram o ser, outras a vida, outras a sabedoria[98]. E cada uma delas é comum ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. No coração de cada vontade boa e divina que nos cerca assim, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são a energia que gera o ser, a vida e a sabedoria, às quais ele chamou também de difusões absolutas[99] e irredutíveis, retirando-as de tudo o que é criado e ensinando que elas estão naturalmente Naquele que difunde. 92. Assim como o sol, difundindo irredutivelmente sobre aqueles que participam de seu calor e luz, possui aí energias inatas e essenciais, também as difusões divinas, irredutivelmente inerentes Àquele que as difunde, são energias naturais e essenciais: são elas, portanto, incriadas. Assim é que não desaparece a impressão da luz solar a quem está sobre a terra quando o sol se põe sob a terra, e não é possível que o olhar que desfrutou desta claridade não se tenha misturado a ela e, por meio dela, se unido àquele que espalha esta luz: então vem o calor que provém dele e tudo o que se realiza por meio deste calor, na medida em que ele contribui para o nascimento e o crescimento das coisas sensíveis e para as variadas diferenças de sabores e de qualidades – nada falta, mesmo às coisas que não estão ligadas ao sol por intermédio dos seus raios. Da mesma maneira, através da imagem obscura que está nas coisas sensíveis é possível aos que se voltam para a luz sobrenatural e divina – e apenas a eles – participar da graça deificante e por meio dela se unir a Deus. Todas as demais coisas são o resultado da energia criadora: elas são geradas a partir do nada pela graça, vale dizer, gratuitamente. Mas elas não são iluminadas por esta graça, que é outro nome do esplendor de Deus. 93. Este esplendor de Deus, esta energia deificante que deifica os que dela participam, é uma graça divina, mas não é a natureza de Deus. Não que esta esteja ausente em quem recebe a graça, segundo a tola calúnia dos adversários[100] – pois a natureza de Deus está em toda parte – mas ela não é participável, pois, como dissemos, nenhum ser criado é capaz de recebê-la em partilha. Mesmo a energia divina, a graça do Espírito, presente em toda parte e inseparável dele, não poderia ser recebida em partilha pelos que, por causa de sua impureza, estão impróprios para a comunhão: neste caso, a graça está como que ausente. Pois foi dito: “Assim como a expressão das máscaras de teatro não se adequa a todas as situações, mas apenas àquelas mais móveis e transparentes, também a energia do Espírito não se imprime em todas as almas, mas apenas naquelas que nada têm de tortuoso e enganador”. E ainda: “O Espírito Santo não está presente em todos. Mas ele revela seu próprio poder aos que se purificam de suas paixões. E aos que ainda possuem a razão queimada pelas manchas do pecado, ele não se revela”.
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94. Assim como a luz do sol é inseparável da irradiação e do calor que ela distribui, mas aqueles que não podem ver não conseguem participar desta luz – estes apenas recebem o calor que provém da irradiação, pois, estando privados da visão, não conseguem perceber a luz – também, e com mais razão ainda, nenhum dos que desfrutam do esplendor divino são capazes de participar da essência do Criador, porque não há criatura capaz de ter o poder que lhe permita receber a natureza do Criador. 95. Que a divina energia participada não é nem uma energia criada nem a essência de Deus, é o que para nós testemunham aqui e agora João, que batizou a Cristo, João, a quem Cristo amou mais do que os outros discípulos[101], e João, que tinha uma língua de ouro[102]. Um conta e descreve. O outro, Precursor e Batista de Cristo, diz que o Espírito foi dado a Cristo por Deus Pai sem medidas. Enfim, o que fala como o ouro explica e descreve: “Está dito que a energia é Espírito. Pois todos recebemos a energia do Espírito comedidamente. Mas ele, Cristo, possui toda energia desmedida e integralmente. Ora, se sua energia é desmedida, quanto mais será sua essência[103]”. Com efeito, dizer que a energia é Espírito, e em especial o próprio Espírito de Deus, como disse o Batista, mostra que esta energia, por ser sem medidas, é incriada. E o fato de que recebemos esta energia comedidamente mostra que a energia incriada difere da essência incriada. Pois ninguém recebe a essência de Deus, mesmo que recolha todas as energias conjuntamente: esta graça é recebida por cada um parcialmente, na razão mesma de sua purificação. Indo além, nosso Pai João Crisóstomo mostra também outra diferença entre a essência incriada e a energia incriada, na medida em que diz que “se a energia do Espírito é incriada, quanto mais o será a essência”. 96. Se, de acordo com as bobagens dos adversários[104] e dos que pensam como eles, a energia divina em nada difere da essência de Deus, a criação, que é apanágio da energia, em nada diferirá da geração e da ecporese[105], que são o apanágio da essência. E, se criar não é outra coisa que engendrar e suscitar a ecporese, as criaturas em nada se diferenciarão do que foi engendrado e do que foi projetado. Enfim, se as coisas forem como eles dizem, o Filho de Deus e o Espírito Santo em nada diferirão das criaturas. Todas as criaturas terão sido engendradas e projetadas por Deus Pai, a criação será deificada e Deus será colocado entre as criaturas. É por isso que o divino Cirilo, ao mostrar a diferença entre a essência de Deus e a energia, disse que a geração é própria da natureza divina e que a criação é própria de sua energia. E ele acrescenta claramente: “A natureza e a energia não são a mesma coisa[106]”. 97. Se a essência de Deus não diferir em nada da energia divina, a geração e a ecporese em nada diferirão da criação. Deus Pai criou pelo Filho no Espírito Santo. Assim, segundo a opinião dos adversários e dos que pensam como eles, Deus engendra e suscita a ecporese, pelo Filho, no Espírito Santo. 98. Se a essência de Deus em nada difere da energia divina, ela tampouco difere da vontade. E o Filho único nascido da essência do Pai teria sido, segundo eles, ao que parece, criado por sua vontade. 99. Se a essência de Deus em nada difere da energia divina, enquanto que na verdade os Padres teóforos atestam que Deus possui em si inúmeras energias, como, por exemplo, suas providências e suas bondades criadoras, como demonstrado acima, então Deus possui muitas essências: e isto ninguém que traga em si o nome de Cristo jamais disse nem jamais pensou. 100. Se as energias de Deus em nada diferirem da essência divina, elas também não apresentarão diferenças entre si. Portanto, a vontade de Deus não será diferente da sua presciência. Desta forma, ou bem Deus não conhece tudo previamente, por que não deseja tudo o que acontece; ou bem, se conhece tudo previamente, deseja também o mal. Mas se ele não conhece tudo com antecedência, isto equivale a dizer que ele não é Deus. E se ele não é bom, isto equivale também a dizer que ele não é Deus. Portanto, a presciência deve diferir da vontade divina. Por conseguinte, também a essência divina diferirá destas energias.
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101. Se as energias divinas não apresentam diferenças entre si, então a energia criadora não se distinguirá da presciência. Desde o momento em que Deus começou a criar, ele começou também a conhecer por antecipação. Pois como seria ele Deus se não conhecesse tudo antes dos séculos? 102. Se a energia criadora de Deus em nada difere da presciência divina, as criaturas andarão de par com a presciência de Deus. Elas terão sido criadas fora de todo começo, como ele próprio criou antes de qualquer começo. Pois ele conhecia tudo antes do começo: o que é conhecido previamente é conhecido antes do começo. Como seria ele Deus se suas criaturas não viessem depois dele? 103. Se a energia criativa não se diferenciar em nada da presciência de Deus, criar não dependerá da vontade, uma vez que tampouco da presciência dependerá dela. Pois não será Deus a criar por sua vontade, mas apenas a natureza. E como seria ele Deus se não pudesse criar somente com sua vontade? 104. De um lado, Deus permanece em si mesmo. Assim, as três hipóstases divinas estão conjuntamente na união eterna e envolvem umas às outras numa pericorese sem confusão. Por outro lado, Deus está no universo, e o universo está em Deus. Deus, porque o contém; e o universo, porque nele está contido. Assim, o universo participa da energia englobante, mas não da essência de Deus. E os teólogos dizem que, se Deus está em toda parte, é devido à sua energia. 105. Os que agradaram a Deus e que alcançaram aquilo pelo que foram criados – ou seja, a deificação – dizem que Deus nos fez para que possamos comungar com sua própria Divindade[107]. Tais homens estão em Deus, porque foram deificados por ele, e Deus está neles, pois foi ele quem os deificou. A partir daí, eles também participam da energia divina, mesmo que de outra maneira, mas não da essência de Deus. É por isso que os teólogos dizem que a divindade é o nome da energia divina. 106. A natureza mais alta do que o ser, mais do que viva, mais do que divina e mais do que boa, se ela for mais do que boa, mais do que divina e tudo o mais, não poderá nem ser nomeada, nem concebida, nem contemplada de modo algum, uma vez que, separada de tudo, ela é mais do que desconhecida, levada por uma potência inalcançável acima das inteligências mais do que celestes, e, para todos, totalmente incompreensível e completamente indizível para sempre. Pois não existe nome que a possa denominar neste século presente ou no século futuro[108]. Não existe palavra que a possa suscitar na alma ou proferi-la pela língua. Não há contato ou participação, sensível ou intelectual, nem imaginação qualquer que a possa captar. É por isso que os teólogos acrescentam a ela a mais total incompreensibilidade expressa pelas apofases[109], porque ela apaga com sua transcendência tudo o que existe e tudo o que pode ser nomeado. Portanto, não é permitido a quem nomeia propriamente falando, chamar de essência ou natureza a esta natureza mais alta do que o ser, desde que ele reconheça a verdade que está acima de toda verdade. Porque está é, de resto, a origem de tudo, tudo gira ao redor dela, tudo existe por ela, ela existe antes de todas as coisas, ela preparou todas as coisas em si mesma simplesmente e sem limites, e é apenas abusivamente, mas não propriamente, que ela pode ser nomeada a partir de tudo. Devemos antão chamá-la essência e natureza e propriamente processão e energia de Deus criadoras dos seres. Pois esta é a real denominação do ser em si, conforme disse também o grande Denis[110]. 107. Podemos encontrar a denominação de natureza igualmente aposta aos atributos naturais, tanto para os seres criados quanto para Deus, como disse Gregório o Teólogo em seus escritos: “A natureza de meu mestre consiste em oferecer a felicidade”. Pois dar não consiste na natureza de qualquer um, mas é um atributo natural do benfeitor. É como com o fogo: podemos dizer do fogo que sua natureza consiste em subir e em levar a luz aos que veem. Mas para o fogo sua natureza não está no movimento, nem na criação, mas na origem do movimento. Também denominamos natureza às coisas naturais, como o próprio Denis afirma ao escrever: “A natureza consiste em conduzir ao bem e em salvar”. Isto equivale a dizer que
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a salvação está naturalmente ligada ao bem. Assim, quando ouvimos ao Padres dizer que a essência de Deus não pode ser participada, devemos considerar que ela não pode nem se dividir, nem se manifestar. E quando ouvimos dizer que ela é participável, devemos considerar que se trata da processão, da manifestação e da energia, que estão naturalmente ligadas a Deus. Amando a ambas – a essência e a energia – estaremos de acordo com os Padres. 108. Uma parte da essência – ainda que a mais ínfima – contém em si todas as potências desta. Como a chama, ela é luminosa e ilumina: esta distingue e queima os que dela se aproximam, e, por sua própria natureza, se move sozinha e se eleva ao alto: numa palavra, a chama é tudo o que o fogo é, e não uma parte. Da mesma forma, a gota traz em si todas as propriedades da água da qual é feita. E o lingote contém todas as propriedades do metal de que é feito. Portanto, se participamos da essência não-manifestada de Deus, seja da essência como um todo ou de parte dela, sermos todo-poderosos. Cada ser será, portanto, todo-poderoso: e isto nem todos juntos podemos ser, ainda que afirmemos abarcar toda a criação. É o que Paulo demonstra sobejamente: ele atesta que a totalidade dos carismas do Espírito não se liga a cada um que obtém um desses carismas deificantes: “Mas a um, diz ele, foi dada uma palavra de sabedoria, a outro uma palavra de conhecimento, a um terceiro outro carisma, segundo o mesmo Espírito[111]”. Nosso Pai Crisóstomo, denunciando com antecedência e clareza o erro dos adversários[112], afirmou que “não recebemos todos os carismas para que não creiamos que a graça é uma natureza”. Mas ninguém dotado de inteligência pensará que a graça da natureza divina, tal como a distinguimos aqui, seja criada. Não há o menor perigo que isto aconteça: é impensável que a criatura seja a natureza de Deus. Ora, se a graça do Espírito é diferente da natureza divina, ela não pode ser separada dela, mas antes conduz à união com o Espírito de Deus aqueles que se tornaram dignos disto. 109. A essência possui tantas hipóstases quantas pessoas que dela participam. Pois quanto mais lâmpadas forem acesas a partir de uma primeira, mais hipóstases do fogo serão suscitadas nelas. Decorre daí, portanto, que, se a essência de Deus é participável, como sustentam os adversários – e todos eles dizem a mesma coisa – esta essência não possui apenas três hipóstases, mas miríades delas. Quem, dentre os que se nutriram dos dogmas divinos, não reconhecerá aí a opinião dos Messalianos, a saber, que aqueles que chegam ao extremo daquilo a que eles chamam virtudes participam da essência de Deus? Nossos adversários[113], que se vangloriam de ir ainda além nesta blasfêmia, dizem, por um motivo totalmente insensato, que não apenas aqueles que se distinguiram dos homens pela virtude, mas absolutamente todos os homens, participam da essência divina: esta estaria presente em toda parte. Gregório, o grande teólogo, derrubando as opiniões aberrantes de uns e outros, disse: “Aquele que foi ungido – Cristo – o foi por intermédio da divindade. Pois esta é a unção da humanidade. Ora, não foi por sua energia que ela santificou a Cristo, como no caso dos demais ungidos, mas pela presença Daquele que ungiu, inteiramente[114]”. Os Padres, que tinham a sabedoria dada por Deus, mostraram também, de comum acordo, que a divindade habita naqueles que se purificaram, mas não como se eles a possuíssem por natureza. Portanto, não é nem segundo a essência, nem segundo uma hipóstase que participamos de Deus. Pois nem uma nem outra se divide em absoluto, nem se transmite a ninguém de modo algum. É por isso que, neste sentido, Deus é absolutamente inacessível, mesmo que, por outro lado, esteja presente em toda parte. Mas a energia e a potência que são comuns às três hipóstases da natureza divina são partilhadas de maneira diferente e apropriada dentre aqueles que participam: é por isso que elas são acessíveis aos que receberam a graça. Pois o Espírito Santo, como disse o grande Basílio, “não é participado numa só medida pelos que são dignos dele, mas ele distribui a energia na proporção da fé. Simples por essência, ela é múltipla em suas potências[115]”. 110. Aquilo do qual se diz participar de alguma coisa deve ter em si uma parte daquilo de que participa. Com efeito, se participarmos, não de uma parte, mas da totalidade de uma coisa, podemos dizer que a possuímos, mas não que participamos dela. Aquilo que é participado é, portanto, sempre parcial, pois necessariamente aquilo que participa só pode fazê-lo em parte. Ora, a essência de Deus é absolutamente
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indivisível: portanto, ela é igualmente imparticipável. A distribuição é apanágio da energia divina, como o declara nosso Pai Crisóstomo em numerosas passagens de seus discursos. Assim, é ela que é dada em partilha aos que se tornaram dignos da graça teúrgicas. Ouça sua língua de ouro ensinar claramente estas duas coisas: “É a energia, não a essência, que é indivisivelmente dividida e participada; não a essência, que é imparticipável, e da qual procede a divina energia”. E, citando de início estas palavras da Escritura: “Nós todos recebemos de sua plenitude[116]”, ele acrescenta: “Com efeito, se dividimos e deixamos de dividir o fogo, cuja divisão consiste numa essência e num corpo, quanto mais dividiremos e deixaremos de dividir a energia, esta energia saída de uma essência incorpórea[117]”. 111. E ainda: “Participar de algo em sua essência implica a necessidade comum de possuir em si a essência do participado e de ser de algum modo a mesma essência. Mas quem jamais ouviu dizer que a essência de Deus e a nossa sejam a mesma?”. E isto, pela boca do grande Basílio: “As energias de Deus descem até nós, mas sua essência permanece inacessível[118]”. Também o divino Máximo disse: “Tudo o que Deus é, sê-lo-á aquele que foi deificado pela graça, com a exceção da identidade segundo a essência”. Portanto, mesmo os que foram deificados pela graça divina não podem tomar parte na essência de Deus. Mas a eles é possível participar da energia divina. “Pois é a ela diz Gregório o Teólogo, que me leva o modesto brilho de verdade que me foi dado aqui em baixo: ver e experimentar o esplendor de Deus[119]”. E: “O esplendor de nosso Deus está sobre nós[120]”, disse o profeta salmista. E Máximo, glorioso entre todos, escreveu precisamente: “A energia de Deus e a dos santos são a mesma energia”. E: “Os santos são ícones vivos de Cristo, um só ser com ele, mas mais pela graça do que por assimilação”. 112. Deus é idêntico a si mesmo, uma vez que as três hipóstases divinas estão umas nas outras e se envolvem mutuamente de uma forma total, eterna e inseparável, mas também sem mistura e sem confusão, pois sua energia é uma, coisa que não se pode encontrar em nenhuma criatura. A energia, com efeito, é semelhante em seres da mesma raça, mas é própria a cada pessoa quando esta age por si mesma. Ora, não é o que acontece com estas três hipóstases divinas e adoradas. Pois aí existe em verdade uma só e mesma energia. Suscitada pela causa primeira que é o Pai, desdobrando-se no Filho e se manifestando no Espírito Santo, o movimento da vontade divina é um. Isto é evidente se observarmos os efeitos. Pois aqui toda energia natural é conhecida. Não é um casulo semelhante, mas outro casulo que produz outra borboleta, outra página escrita por outro escritor, mesmo que o casulo e a página sejam constituídos pelos mesmos elementos. Assim é com o Pai, o Filho e o Espírito Santo: cada hipóstase provoca um efeito que lhe é próprio. Mas tudo o que é criado pelos três constitui uma só e mesma obra. É a partir desta criação que os Padres nos fazem compreender que a energia divina é uma só e mesma energia nas três pessoas, que ela não é particular a nenhuma delas, e que ela é semelhante em todas. 113. Uma vez que o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão uns contidos nos outros sem confusão nem mistura, sabemos que seu movimento e sua energia são estritamente únicos: a vida ou a potência que o Pai contém em si não é outra que a do Filho, na medida em que o Filho contém em si a mesma vida e a mesma potência. E o mesmo acontece com o Filho em relação ao Espírito Santo. Mas os que pensam que não existe diferença alguma entre a essência de Deus e a energia divina – por que nossa vida não é outra coisa que o próprio Deus, por que ele não existe em função de outra coisa, mas existe por si mesmo uma vida anterior aos séculos – estes são ímpios e ignorantes. São ignorantes, por que não aprenderam que a Trindade suprema não é outra senão o próprio Deus, e que nada impede de distinguir a Unidade na Trindade. E são ímpios, por que destroem uma contra a outra a essência e a energia. Pois existir em função de outro não constitui uma essência, e ser por si mesmo não é a mesma coisa que existir em função de algo outro. Assim, se a essência e a energia em nada diferem uma da outra, elas destroem uma à outra. Ou melhor, elas excluem do número dos que veneram a Deus aqueles que dizem que elas não diferem em nada.
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114. Mas nós, nós confessamos que nossa vida segundo a causa e a energia é o Filho de Deus. E dizemos que é ele mesmo a vida em si, e que ele traz ambas – a vida em si e a nossa vida – no incriado, de modo irredutível e absoluto. O mesmo acontece com o Pai e o Espírito Santo. Esta vida nossa, que nos vivifica como causa dos vivos, não é outra coisa que o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É segundo a causa que nosso Deus em três Pessoas é chamado de nossa vida. Ora, se a vida divina, tal como a teologia a considera, não existe nem segundo a causa nem em função de algo outro, mas existe absolutamente e em si mesma, ela não é outra coisa senão o Pai, nem outra coisa que o Filho e o Espírito Santo. Isto não se opõe aos que pensam que Deus é incriado não apenas em sua essência e suas hipóstases, mas também na energia divina comum aos três. Pois nós afirmamos teologicamente que existe um único Deus em três hipóstases, e que, portanto, uma é a essência, uma a potência, uma a energia e tudo o mais que possa haver ao redor da essência: é o que a Escritura chama de coesão e plenitude da Divindade[121], que a teologia considera como as mesmas para cada uma das três santas hipóstases. 115. Os que recusam esta energia divina dizendo ora que ela é criada, ora que ela não difere em nada da essência de Deus, inauguram uma nova impiedade, ensinando que existe apenas uma única energia incriada, o Filho único do Pai. Pretendendo impor esta opinião, eles acusam as ideias de são Cirilo, a saber: “A vida que o Pai contém em si não é outra coisa que a do Filho, e a vida que está no Filho não é outra que a do Pai, conforme é verdade o que foi dito: ‘Eu estou no Pai, e o Pai está em mim’ [122]”. Na medida em que isto nos for possível, mostraremos agora o que quis dizer o Santo com estas palavras, e denunciaremos a impiedade daqueles que nos contradizem a partir de suas confusas trevas. Aos que afirmam falsamente que o Filho não apenas não é semelhante ao Pai, mas que veio depois do Pai – uma vez que não é pela natureza que ele vive e tem a vida – mas que a vida lhe foi dada por participação e adjunção, e que a recebeu do Pai, conforme está escrito: “Assim como o Pai tem a vida em si, ele concedeu ao Filho que tivesse a vida em si[123]”, a estes, que compreendem de forma ímpia esta passagem do Evangelho, o divino Cirilo replica: “Deus é chamado de vida segundo a energia, na medida em que ele vivifica os vivos. Pois ele próprio é a vida dos que vivem segundo a natureza, uma vez que ele é o Criador da natureza. Mas ele também é a vida dos que vivem divinamente, por que é ele quem dispensa a graça. Mas ele próprio é também chamado de vida em si, não em vista de outra coisa, mas de modo livre e absoluto[124]”. Demonstrando que o Filho em nada difere do Pai segundo cada uma destas duas vidas, e que o Filho recebeu do Pai, o divino Cirilo mostra que o Filho não vem depois do Pai, nem é segundo no tempo, e diz, entre outras coisas: “Ele não possui o ser por receber algo, mas ele recebe algo por que ele é[125]”. Concluindo, ele acrescenta: “Receber algo do Pai não obriga o Filho e a ser em realidade segundo no tempo”. Aqui ele admite que a vida que o Pai possui e que o Filho recebe do Pai não constitui a essência. 116. O divino Cirilo mostra ainda que se o Filho de Deus é chamado, em sua energia, vida para os vivos, uma vez que ele os vivifica e é chamado de sua vida, nisto ele em nada difere do Pai, pois sua natureza consiste em ser sua vida e em vivificá-los como o faz o Pai. Indo adiante, ele escreve: “Se o Filho não for a vida segundo a natureza, como será verdade: ‘Quem crê em mim terá a vida eterna[126]’, e ‘Minhas ovelhas ouvem a minha voz e eu lhes dou a vida eterna[127]’?”. E ele acrescenta: “Desde que ele prometeu dar a vida aos que creem nele[128], vida esta que está ligada a ele por natureza e que nele está em essência, como será possível entender aqui que o Filho não possui esta vida e que a recebe do Pai? [129]”. Sejam, portanto, confundidos os insensatos que, ouvindo dizer que a vida está ligada a Deus naturalmente, afirmam que ela é sua própria essência. Pois não é sua essência que o Pai, ou o Filho, ou o Espírito Santo nos dão, a nós os fiéis. Longe de nós esta impiedade. 117. Continuando, o grande Cirilo não se opõe menos aos que professam os pensamentos do adversário[130]. Prosseguindo, ele diz: “O Filho traz em si, por natureza, provindo do Pai, tudo o que o Pai possui. Ora, a vida é um dos atributos do Pai”. Assim, ao dizer “um dos atributos do Pai”, ele mostra claramente que estes atributos são numerosos. E se a vida for a própria essência de Deus, para os que
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pensam assim, Deus terá numerosas essências. Mas afirmar que o ser e os atributos são a mesma coisa, ainda que isto fizesse algum sentido, não deixa de ser, além de uma impiedade, um excesso de ignorância. Dizer que o ser e os atributos não diferem em nada é ainda mais insensato do que dizer que a unidade e a multiplicidade são a mesma coisa. Pois é impossível e irrazoável que uma coisa possa ser ao mesmo tempo uma e plural. 118. O divino Cirilo, ao dizer que a vida é um dos atributos do Pai, deixa claro aqui que ele não chama a essência de Deus de vida. Acompanhemo-lo, quando ele diz que tais atributos de Deus são numerosos. Aprofundando a questão, são Cirilo afirma: “Foi dito que o Pai possui como atributos numerosas qualidades. Mas o Filho tampouco está desprovido delas[131]”. Como poderão estes numerosos atributos de Deus constituir a essência divina? Citando algumas destas qualidades que são os atributos do Pai, ele cita Paulo, que disse: “Ao Deus incorruptível, invisível, o único sábio[132]”. Por aí fica demonstrado, definitivamente, que nenhum dos atributos de Deus é sua essência. Pois como a essência poderia ser incorruptível ou invisível, ou seja, atributos privativos ou negativos, tomados em conjunto ou separadamente? Com efeito, não existe essência que não esteja ligada a um ou muitos atributos reais. Quanto a estes atributos de Deus, classificados de maneira afirmativa pelos teólogos, nenhum deles representa a essência de Deus, mesmo que, por necessidade, nos sirvamos de todos estes nomes para designar esta supra-essencialidade que é absolutamente sem nome. 119. É preciso buscar ao que se ligam os atributos. Se eles não estiverem ligados a nada, tampouco serão atributos. Mas se os atributos estiverem ligados a uma coisa e esta coisa for a essência, esta não diferirá deles, nem de cada um deles, nem deles todos. Se esta única essência possuir numerosos atributos, existirão aí numerosas essências. Aquilo que é um por essência se tornará plural em sua essência: haverá assim numerosas essências, e aquilo que possui numerosas essências é necessariamente composto. O divino Cirilo, refutando os que se deixam persuadir por estas ignorâncias ímpias, diz em seus Tesouros: “Se o que existe apenas por Deus é sua essência, ele, para nós, será composto de muitas essências. Pois numerosas são as coisas que existem naturalmente apenas por ele e por nenhum outro ser. As divinas Escrituras dizem dele ser ele o Rei, Senhor, incorruptível, invisível. E lhe atribuem ainda outros nomes. Se cada um destes atributos for classificado na ordem da essência, como poderá Aquele que é simples não ser também composto? Conceber tal coisa é completamente absurdo”. 120. Cirilo, que possuía a sabedoria do divino, depois de ter dito em várias passagens de seus escritos que, se o Filho é a vida e se se diz que ele possui a vida segundo a energia – uma vez que ele nos vivifica – nisto ele não será distinto do Pai, por que também o Pai vivifica. São Cirilo quer mostrar com isto que se o Filho não existe em função de algo outro, é por que ele existe de modo livre e absoluto a vida e por que ele possui a vida. Assim, não é pela vida que ele é distinto do Pai. Com efeito, quando não chamamos a Deus de nossa vida por que ele nos vivifica, mas o chamamos assim livre e absolutamente, nós nomeamos sua essência a partir da energia que está ligada a ele por natureza. O mesmo acontece com a sabedoria, a bondade e todos os demais atributos. Demonstrando isto, ele diz: “Quando dizemos que o Pai tem em si a vida, é ao Filho que estamos chamando de vida. O Filho só é distinto do Pai por sua hipóstase, mas não pela vida. Por isso nenhuma composição ou dualidade é concebível nele. E quando, reciprocamente, dizemos que o Filho possui a vida em si, chamamos esta vida de Pai, concebida de modo absoluto. Pois o Pai, que não existe em função de outra coisa, mas existe livremente por si próprio, e o Filho, estão contidos um no outro. O Filho disse: ‘Eu estou no Pai, e o Pai está em mim[133]’.”. Estas são as palavras do divino Cirilo, ao mostrar que a vida contida no Pai, ou seja, o Filho, é de certa maneira outra coisa e não é outra coisa do que o Pai. Mas os que dizem que a vida que está nele não é absolutamente outra que ele, e que ela é a mesma em tudo, por não ser em nada diferente, estes, ao sustentar que esta vida é o Filho único do Pai, necessariamente não estão conduzidos pelos ensinamentos do divino Cirilo, mas pelos de Sabélio
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121. Mas ao tentar colocar o grande Cirilo em contradição consigo mesmo, os que seguem os adversários[134] atraem sobre si a maior condenação. Pois dizer ora uma coisa, ora outra, sendo as duas coisas verdadeiras, é típico de todo teólogo que se exprime com piedade. Mas dizer por si mesmo coisas contraditórias não é típico de quem possui inteligência. Pois como é possível que aquele que afirmou que o Filho tem por natureza a vida que concede aos que nele creem, e que mostrou com isto que não apenas a essência de Deus – que ninguém recebe – mas também a energia segundo a natureza são chamadas de sua vida (esta vida que os santos vivificados por ele receberam na graça, a ponto de serem capazes de salvar por si mesmos, ou seja, de imortalizar no Espírito aqueles que antes não viviam no Espírito e de ressuscitar criaturas mortas em um de seus membros ou de corpo inteiro), como será possível que aquele que demonstrou isto correta e sabiamente poderia em seguida, para suprimir esta energia divina, chamar de vida a essência de Deus, como afirmam tolamente os que distorcem suas palavras e o caluniam? 122. Não é apenas o Filho de Deus, mas também o Espírito Santo que é chamado pelos santos de energia e potência. Mas eles possuem exatamente as mesmas potências e as mesmas energias que o Pai, uma vez que Deus, segundo o Grande Deus, é chamado de Potência, por que a traz em si desde sempre e transcende ainda todo poder[135]. Por isso o Espírito Santo, quando é chamado de potência e energia em sua hipóstase, contém em si cada uma das hipóstases que com ele fala e escuta, conforme disse o grande Basílio: “O Espírito Santo é a potência vivificante, que em si é inerente à essência, à existência e à hipóstase[136]”. Quanto às demais potências que provêm do Espírito, ele mostra que elas não existem todas em uma hipóstase. É claro que aí ele distingue as potências das criaturas. Os seres que provêm do Espírito vêm numa hipóstase, mesmo sendo criaturas, uma vez que Deus suscitou os seres criados. 123. A teologia negativa não se opõe à teologia afirmativa, nem a suprime. Ela mostra que aquilo que afirmamos a respeito de Deus é verdadeiro e é dito com piedade, mas que Deus não possui seus atributos como nós. Por exemplo: Deus, como nós, possui o conhecimento dos seres. Mas nós o temos como um conhecimento dos seres que existem e que existiram, enquanto com Deus as coisas não se passam assim, pois ele já conhecia estes seres antes mesmo de seu nascimento. Em todo caso, aquele que diz de Deus que ele não conhece os seres enquanto seres, não se opõe ao que diz que Deus conhece os seres e que os conhece como tais. Existe igualmente uma teologia afirmativa que tem a mesma faculdade da teologia negativa, como quando é dito que todo conhecimento se refere a um dado objeto, ou seja, àquilo que é conhecido. Mas o conhecimento de Deus não se refere a nenhum objeto. Isto equivale a dizer que Deus não conhece os seres enquanto seres, e que, portanto, ele não tem o conhecimento dos seres como nós o temos. Extrapolando neste sentido, podemos afirmar que Deus é o não-ser. Mas quem afirma isto para mostrar que não falam corretamente os que dizem que Deus é, não está usando a teologia negativa por extrapolação, mas por falta, como se Deus não existisse na realidade. Existe aí um excesso de impiedade, da qual sofrem, aliás, aqueles que, por meio da teologia negativa, tentam suprimir a essência e a energia incriada tais como Deus as tem. Quanto a nós, longe de suprimir uma pela outra, apreciamos as duas, confirmados que somos por uma e outra na piedade. 124. Penso que basta uma breve palavra dos Padres para derrubar totalmente as futilidades dos adversários[137] e mostrar que elas não passam de um vasto falatório. Pois está dito: “O que não tem começo, o começo e o que existe com o começo são um só Deus. Mas o começo não é separado daquilo que não tem começo pelo fato de ser o começo. Pois o começo não é a natureza de um, assim como o não começo não é a natureza do outro. O começo e o não começo envolvem a natureza, mas não são a natureza”. E então? Pelo fato de o começo e o não começo não serem a natureza, mas envolverem a natureza, diremos que eles são criados? Isto seria tolice. Mas, se o começo e o não começo fossem incriados e fossem por natureza atributos de Deus, então seria Deus composto? De modo algum. Pois os atributos não diferem da natureza divina. Ao contrário, se os atributos naturais de Deus fossem sua natureza, então o divino seria composto: é o que ensina o grande Cirilo, junto com os outros Padres. Mas você, mostre-me os escritos que o grande Basílio e seu irmão endereçara, a Eunomo, mostrando
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sentimentos fraternais em relação a ele. Aí você encontrará aqueles que seguem os adversários [138] e concordam com Eunomo, e você terá amplamente com que os refutar. 125. Para os Eunomistas que pensam que a essência do Pai e a do Filhos não são as mesmas, por que consideram que tudo o que é dito de Deus é dito da essência, e que sustentam que as essências são diferentes por que existe uma diferença entre engendrar e nascer, e para os que dizem que não é o mesmo Deus que tem a essência divina e a energia divina, por que acreditam que tudo o que se diz de Deus é essência, e que sustentam que existem muitos Deuses diferentes, por que existe uma diferença entre a essência e a energia divina: para uns como para outros, mostramos que tudo o que é dito a respeito de Deus não é dito segundo a essência, mas é dito de maneira relativa, ou seja, em vista daquilo que ele próprio não é. Assim, o Pai é chamado em função do Filho, pois o Filho não é o Pai. Da mesma forma, o Senhor é denominado em função da criação submetida. Pois Deus domina os que existem no tempo e no século, e os próprios séculos. Ora, dominar pertence à energia incriada de Deus, que difere da essência, por que ela é denominada em função de outra coisa que não é ela mesma. 126. Os Eunomistas afirmam que tudo o que é dito sobre Deus é essência. Assim, eles têm como doutrina que a essência consiste no não gerado. A partir daí, ao menos no que lhes concerne, como o Filho é distinto do Pai, eles o reduzem ao estado de criatura. Justificam dizendo que não pode existir dois deuses: o primeiro, não gerado, e o segundo, posterior a ele, gerado. À imitação dos Eunomistas, nossos adversários afirmam que tudo o que é dito sobre Deus é essência, a fim de reduzir, eles também, de maneira ímpia, a energia ao estado de criatura, que não é separada mas que difere da essência de Deus na medida em que procede desta, e que é participada pelas criaturas. Pois foi dito que tudo participa da providência, tal como ela emana da Divindade que é causa de tudo. E eles justificam dizendo que não é possível haver duas divindades: a essência em três pessoas, além de qualquer designação, de toda causa e de toda participação, e a energia de Deus, que provém da essência, e que é participada e nomeada. Pois eles não veem o seguinte: como Deus Pai é chamado de Pai em função de seu próprio Filho, e como ser Pai pertence à ordem do incriado, mesmo que ser Pai não significa a essência, terá Deus a energia de modo incriado, mesmo que a energia seja distinta da essência. Quando nós falamos de uma só Divindade, dizemos que tudo é Deus: a essência e a energia. São eles que dividem de maneira ímpia a Divindade única de Deus em criada e incriada. 127. O acidente é aquilo que aparece e desaparece, uma vez que mesmo no invisível encontramos acidentes. O atributo natural, na medida em que cresce ou diminui, é também de certo modo um acidente: por exemplo, o conhecimento, na alma dotada de razão. Mas não há nada disto em Deus, pois ele permanece imutável, pelo fato de que nele nada pode ser tratado como acidente. Entretanto, nem tudo o que é dito a respeito de Deus se refere à essência. Pois é possível dizer que também Deus existe em função de alguma coisa: isto indica um sentido relativo e indica relações com outra coisa, mas não essências. É o que acontece com a energia divina em Deus. Pois ela não é nem a essência nem um acidente, mesmo que os teólogos a chamem assim de certa maneira, apenas para mostrar que ela está em Deus, mas não é a essência. 128. Temos ainda o seguinte: a energia divina, mesmo se for um acidente, como se usa dizer, está contemplada em Deus e não implica composição. É o que nos ensina Gregório o Teólogo quando escreve sobre o Espírito Santo: “O Espírito Santo, diz ele, pertence ou bem ao que existe em si, ou bem àquilo que é considerado em outro. Os que são capazes de falar disto dizem que a primeira ordem é a da essência, e a segunda a do acidente. Mas se acidente existe, este é a energia de Deus. Como poderia ser outra coisa? Ou de quem? Pois, desta maneira, este acidente escapa à composição[139]”. Ele diz claramente que aquilo de que está falando pertence ao que é contemplado em Deus, e que não se trata da essência, mas de um acidente a que ele dá o nome de Espírito. Não é possível que este acidente seja outra coisa do que uma energia de Deus. É o que ele mostra ao dizer: “Como poderia ser outra coisa? Ou de quem?”.
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Estabelecendo desde logo que nada senão a energia – nem a qualidade, nem a quantidade, nem nada semelhante – pode ser considerado em Deus, ele acrescenta: “Pois, desta maneira, este acidente escapa à composição”. De que modo a energia considerada em Deus escapa à composição? Por que só existe a energia mais impassível, uma vez que ele é um ato puro e não se altera em função da energia: ele não muda nem se torna outra coisa. 129. Pois o Teólogo sabe que esta energia é incriada, e ele o mostrou um pouco acima quando a opôs à criatura. “Dentre os nossos sábios, disse ele, alguns compreenderam que a energia era o Espírito, outros uma criatura, outros Deus[140]”. Ele diz com isto que Deus é a própria hipóstase. Depois, mostrando que a energia se distingue da criatura, ele prova claramente que ela não é uma criatura. E um pouco adiante, ele fala que esta energia é um movimento de Deus[141]. E como um movimento de Deus não seria incriado? Damasceno o teóforo escreve em seu 59º Capítulo: “A energia é o movimento ativo e essencial da natureza. A natureza é atividade, é dela que provém a energia. O efeito é o resultado da energia. Quem age é aquele que usa a energia, ou seja, a hipóstase[142]”. 130. A partir do que disse aqui o Teólogo, a saber, que se a energia é operada e não opera ela, por isso mesmo, cessará de ser operada[143], os adversários[144] logo conjecturaram e declararam que esta energia divina é criada. Pois eles ignoram que também dos incriados se diz serem operados, como o mostra o Teólogo quando escreve: “Se o Pai é o nome da energia, a consubstancialidade será o efeito desta energia”. Damasceno o teóforo também afirma: “Realizando divinamente a providência universal, Cristo se assenta à direita do Pai[145]”. Mas Damasceno não aplica o termo “ele repousa” ao caráter incriado da energia. Pois ao criar, Deus começa e termina, como disse Moisés: “Deus repousou de todas as obras que começara[146]”. Permanecer criando, aquilo em que Deus começa e termina, tal é a energia natural e incriada de Deus. 131. Em outra parte o divino Damasceno, depois de afirmar que a energia é o movimento ativo e essencial da natureza, para mostrar de que modo o Teólogo disse que esta energia era operada e cessava, acrescentou: “É preciso saber que a energia é o movimento, e que ela é operada mais do que opera, como disse Gregório o Teólogo em seu tratado sobre o Espírito Santo: se a energia existe, ela será operada e não operará, e, por isso mesmo, ela cessará de ser operada[147]”. Daí fica claro que aqueles que professam as opiniões dos adversários[148] ensinando que é criado aquilo que Gregório o Teólogo chama aqui de energia, esta energia natural e essencial de Deus, a reduzem tolamente ao estado de criatura. São João Damasceno, ao declarar que ela não apenas é operada, como é opera, estabeleceu que ela é incriada, no que, de resto, ele não está em desacordo com o epônimo da teologia[149], como abundantemente já mostrei em meus tratados. 132. Os caracteres próprios das hipóstases se reportam igualmente a Deus, uns e outros de maneira relativa, e as hipóstases diferem umas das outras, mas não segundo a essência. É possível reportar Deus à criação, de maneira relativa. Pois não ele não é chamado de anterior aos séculos, anterior ao começo, grande, bom, Deus, Santíssima Trindade, da mesma maneira como ele pode ser chamado de Pai. Não é cada uma das hipóstases, mas apenas uma dentre as três, que é o Pai. É dele que vem o seguimento, e a ele que retorna. Mas diante da criação, por ser esta a obra única dos Três e por que os filhos são formados pela graça comum que os Três lhes concedem, a Trindade pode ser chamada de Pai. Dizer: “O Senhor seu Deus é um[150]” e “Nosso Pai único está nos céus[151]” equivale a dizer que a Santa Trindade é um só Senhor e nosso Deus, e em especial nosso Pai, que nos regenera por sua graça. Mas isto é dito de maneira relativa, como vimos. Só o Pai é o Pai em vista do Filho consubstancial. Ele próprio é chamado também de começo em vista da criação, como Mestre e Criador de todas as criaturas. Então, quando o Pai é assim chamado em vista da criação, também o Filho é o começo, em vista da criação, como um mestre perante seus servidores. O Pai e o Filho com o Espírito são, portanto, em vista da criação, um único Mestre, um só
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Criador, um só Deus e Pai, previdente, vigilante e tudo o que segue Mas nenhum destes atributos é essência. Pois nenhum estaria em relação com outro qualquer, se fosse sua essência. 133. As adoções, os estados, os lugares, os tempos e tudo o que lhes é assemelhado não são chamados de Deus no sentido próprio, mas de forma metafórica. Criar e operar não podem em verdade ser ditos senão de Deus apenas. Pois somente Deus cria. Ele próprio não se torna nem está submetido a nada, na medida em que pertence apenas à sua própria essência. Somente ele cria continuamente todas as coisas. Só ele criou do nada, pois a energia nele é todo-poderosa. É segundo esta energia, em vista da criação, e de maneira relativa, que se diz que ele tem o poder. Ele próprio, com efeito, não pode estar submetido a nada em sua natureza. Mas ele pode aumentar as criaturas, se quiser. Pois estar submetido à força, ter e receber qualquer coisa em sua essência é próprio da fraqueza. Mas criar com poder, ter e aumentar as criaturas ao bel prazer é próprio de uma força divina e todo-poderosa. 134. Para além daquilo que pode ser recapitulado em dez caracteres, ou seja, a essência, a quantidade, a qualidade, a relação, o lugar, o tempo, o fazer, o sofrer, o ter, o estado e os caracteres subsequentes considerados na essência, Deus é uma essência supra-essencial, na qual, consideradas isoladamente, a relação e a criação não operam nenhuma composição nem nenhuma alteração. Pois Deus criou todas as coisas e ele próprio não sofreu [mudança] em sua essência. Diante da criação, ele é Criador, Começo e Mestre, uma vez que ela própria começou e ela própria foi extraída. Mas ele é também nosso Pai, que nos regenera por meio da graça. E ele é igualmente Pai para o Filho, que também não começou no tempo. E o Filho existe para o Pai. E o Espírito é a processão do Pai, eterno com o Pai e o Filho, e todos pertencem a uma só e mesma essência. Quanto aos que dizem que Deus não é senão uma essência na qual nada existe a considerar, estes não se dão conta nem que Deus cria e opera, nem que ele tem em si a relação. Mas se o Deus no qual pensam não possui estes atributos, ele não será nem ativo, nem demiurgo, e não terá em si a energia. Tampouco será o começo e o Criador, nem Mestre, nem nosso Pai segundo a graça. Pois como poderia ele ser estes atributos se não tiver a relação e a criação consideradas em sua própria essência? Mesmo as três Pessoas da Trindade serão apagadas e a relação não será considerada na essência de Deus. Ora, o que não existir em três Pessoas não será nem Mestre do universo, nem Deus. Portanto, serão ateus os que pensam assim, ao modo dos adversários. 135. Deus possui também aquilo que não tem essência. Não que aquilo que não tem essência seja um acidente. Pois o que não apenas não passa, como também não recebe nem opera nenhuma espécie de crescimento ou diminuição, não pode de nenhum modo ser contado como acidente. Mas, como esta energia não é nem acidente nem essência, ela tampouco pertence ao nada, mas existe, e existe em verdade. Ela não é acidente, por que é imutável. Mas também não é essência, por que não pertence ao que existe por si mesmo. Por isso ela é de certo modo um acidente para os teólogos que a chamam assim, e que pretendem demonstrar que ela não é uma essência. O que acontece? Toda realidade e toda hipóstase, se não são em Deus nem essência nem acidente, pertencerão assim ao nada? Longe disto. Pois da mesma forma a divina energia de Deus não é nem essência, nem acidente, e tampouco pertence ao nada. E, para falarmos de acordo com todos os teólogos, de Deus criou por sua vontade, ele não criou simplesmente por natureza: donde uma coisa é a vontade, e outra a natureza. Se assim é, a vontade divina é diferente da natureza divina. E então? Por ser a vontade de Deus distinta da natureza e por não ser essência, ela não poderá existir? Absolutamente. Mas ela existe, ela pertence a Deus, que não apenas possui a essência, como também a vontade, por meio da qual ele cria. Mesmo que a chamemos de um tipo de acidente, por não ser ela uma essência, ela não será um acidente, na medida em que não opera nenhuma composição, nenhuma alteração. Assim é que Deus possui em si algo que é essência e algo que não é essência e que não podemos chamar de acidente: ou seja, a vontade divina e a divina energia. 136. Se a essência não possuir uma energia distinta dela, estará totalmente desprovida de hipóstase e não será senão um ofuscamento do espírito. Pois o homem abstrato, aquele a quem chamamos de homem em
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geral, não pensa, não reflete, não vê, não sente, não fala, não escuta, não caminha, não respira, não come, numa palavra, não possui em si energia diferente da essência e que mostre que ele está numa hipóstase. É por isso que o homem em geral é totalmente desprovido de hipóstase. Mas do homem que tem em si a energia distinta da essência, seja uma ou muitas, ou todas as de que falamos, dele podemos dizer que ele está numa hipóstase, que este homem não é desprovido de hipóstase. E que estas energias possam se revelar não uma, ou duas, ou três, mas muitas vezes, mostra que este homem é feito de miríades de hipóstases. 137. Para aquilo que recebemos por intermédio de sua graça, ou seja, a piedade de sua Igreja, Deus tem uma energia inata que o revela por si mesma e que difere nisto de sua essência. Pois ele conhece previamente as criaturas mais baixas, ele as socorre em suas necessidades, ele as cria, as guarda, as dirige e as transforma segundo sua própria vontade: ele mostra que está numa hipóstase, que não é apenas uma essência desprovida de hipóstase. Graças a todas essas energias, Deus se revela a nós existindo não numa única, mas em três hipóstases. Ora, os adversários[152], que afirmam que Deus não possui uma energia inata, distinta de sua essência e que o revele de per si, dizem que não há Deus em uma hipóstase, e fazem do Senhor em três hipóstases um Deus desprovido delas. Eles ultrapassam em erro ao líbio Sabélio, na mesma medida em que a ausência de piedade ultrapassa em malícia a má piedade. 138. A energia das três hipóstases divinas não é uma por ser a mesma, como em nós, mas também é uma numericamente. Isto os que professam as opiniões dos adversários[153] não podem dizer, pois eles afirmam que a energia incriada das três não é comum. E dizem que suas respectivas hipóstases são energias, uma vez que, segundo eles, a energia divina não é comum. Eles recusam dizer que haja uma única energia dos três. Apagando desta maneira umas pelas outras, eles tornam o Deus em três Pessoas desprovido de hipóstases. 139. Os que têm a alma enferma pelo erro da falsa opinião[154], e que dizem que a energia diferente da essência divina é criada, professam que o próprio ato criador de Deus é criado. É o mesmo que dizer que seu poder criador é criado. Pois não é possível operar e criar sem energia, assim como é impossível existir sem existência. Assim, da mesma forma que não é possível a quem diz que a existência de Deus é criada pensar que o próprio Deus é de maneira incriada, também é impossível a quem diz que a energia de Deus é criada pensar que Deus opera e cria de maneira incriada. 140. As criaturas de Deus não são a energia de Deus, e os que pensam com piedade jamais dizem isto, como o fazem os falastrões dos adversários[155] – longe de nós esta impiedade! As criaturas são os efeitos da energia divina. Pois, se as criaturas forem energias, ou bem elas serão incriadas (ó tolice!), por que terão existido mesmo antes de serem criadas, ou bem Deus não possuía a energia antes que existissem as criaturas (ó impiedade!). Mas Deus é ativo e todo-poderoso por toda eternidade. Portanto, não é a energia de Deus, mas os que a recebem e que são por assim dizer seus efeitos, que são as criaturas. A energia de Deus é incriada e eterna com Deus, é o que dizem os teólogos. 141. Não é a partir da essência que conhecemos a energia. Mas é a partir da energia que sabemos que a essência existe, sem, no entanto, sabermos o que ela é. É por isso que, dizem os teólogos, não é a partir da essência, mas da providência, que sabemos que Deus existe. Também nisto a energia difere da essência. Pois o que conhece é a energia, e o que é conhecido por ela, aquilo que por ela sabemos que existe, é a essência. Mas os que sustentam a impiedade do erro, esforçando-se por persuadir que a energia divina em nada difere da essência divina, apagam o conhecedor e se esforçam por nos convencer a não conhecer que Deus existe, como, de qualquer modo, eles próprios não o conhecem. Ora, quem não conhece pode ser chamado de o mais ateu e insensato de todos.
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142. Quando dizem que Deus possui uma energia, mas que esta em nada difere de sua essência, [os adversários] se esforçam por dissimular assim sua própria impiedade, iludindo e enganando com sofismas aqueles que os escutam. Assim é que o líbio Sabélio dizia que Deus Pai tem um Filho que não difere dele em nada. Mas assim como ele foi refutado por haver nomeado o Pai sem o Filho e haver negado que entre eles exista uma diferença de hipóstase, também os de agora, ao dizerem que a energia divina em nada difere da essência de Deus, são refutados por pensarem que Deus não contém em si nenhuma energia. Pois se a essência e a energia em nada diferem, Deus não possui em si nem a faculdade de criar, nem a de operar. Pois não é possível operar sem energia, dizem os teólogos, assim como, sempre segundo eles, não é possível existir sem existência. Que a divina energia seja distinta da essência de Deus é algo claríssimo também aqui, para os que pensam corretamente. A energia opera algo diferente daquilo que não opera. Pois Deus opera e faz as criaturas, mas ele próprio é incriado. A relação é sempre estabelecida em função do outro. O Filho é chamado de Filho em função do Pai, e ele jamais é o Pai de seu Pai. Portanto, assim como é impossível que a relação não seja em nada distinta da essência, nem que ela seja considerada na essência, nem que ela seja a essência, da mesma forma tampouco é possível que a energia não difira totalmente da essência e que seja a essência, mesmo que isto desagrade aos adversários[156]. 143. O grande Basílio, falando de Deus em seus “Capítulos silogísticos” diz: “A energia não é nem aquele que opera, nem o que é operado. Assim, a energia é diferente da essência”. O divino Cirilo, também falando de Deus, diz como teólogo: “A criação é própria da energia, mas a geração é própria da natureza. Natureza e energia não são a mesma coisa[157]”. Damasceno o teóforo afirma: “O nascimento é obra da natureza divina, mas a criação é obra da vontade de Deus[158]”. Em outra parte, ele diz claramente: “Uma coisa é a energia, outra é aquilo que opera. Com efeito, a energia é o movimento essencial da natureza, e o que opera é a natureza, da qual provém a energia[159]”. Portanto, a energia difere da essência divina de muitas maneiras, segundo os Padres semelhantes a Deus. 144. A essência de Deus é totalmente sem nome, pelo fato de que é inteiramente incompreensível. Portanto, ela é designada a partir de suas próprias energias, e nenhum destes nomes se diferencia dos demais naquilo que significa. O que é significado por cada um destes nomes não é outra coisa do que esta essência oculta da qual é impossível saber o que seja. Quanto às energias, cada um de seus nomes tem um significado diferente. Que Deus cria, domina, julga, provê, nos adota por sua graça – quem não sabe que estes atributos diferem uns dos outros? Portanto, os que dizem que são criadas estas energias naturais de Deus que diferem entre si e diferem da natureza divina, que fazem estes senão reduzir Deus ao estado de criatura? Pois o que é criado, o que é dominado, o que é julgado – numa palavra, tudo o que assim pertence ao mundo – tudo são criaturas, nunca o Criador, o Mestre e o Juiz, assim como não o são o julgar, o dominar e o criar, que vemos nele naturalmente. 145. A essência de Deus, na medida em que não tem nome, está também acima de todo nome, dizem os teólogos. Da mesma forma, sempre segundo eles, na medida em que ela é imparticipável, está acima de toda participação. Os que hoje desobedecem ao ensinamento do Espírito transmitido por nossos santos Padres e se riem de nós que estamos de acordo com estes, dizem que existem muitos Deuses, ou que o Deus único é composto, se a divina energia diferir da essência de Deus, e se, numa palavra, considerarmos qualquer coisa de outro na essência de Deus. Pois eles ignoram que não é pelo fato de operar e pela energia, mas por estar sujeito à influência e ser passivo, que se define a composição. Deus opera, mas ele próprio não é influenciado nem se transforma. Portanto, ele não será composto devido à energia. Da mesma forma, Deus contém em si a relação em vista da criação, na medida em que ele é sua Origem e seu Mestre. Mas nem por isso ele é contado entre as criaturas. Eles dizem ainda que existem diversos Deuses pelo fato de que Deus possui uma energia, se esta pertencer ao mesmo Deus, enquanto que a essência divina e a energia divina são na verdade o mesmo Deus. Fica claro que tudo isto não passa de palavrório tolo.
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146. O Senhor disse aos seus discípulos que alguns dos que estavam ali não conheceriam a morte antes de ver o Reino de Deus chegar com seu poder[160]. Seis dias depois, ele tomou a Pedro, Tiago e João e subiu ao Monte Tabor. Ele brilhou como o sol e suas vestes se tornaram brancas como a luz [161]. Mas os discípulos não puderam ver imediatamente, ou antes, incapazes de suportar tamanho esplendor, foram atirados à terra[162]. Porém, segundo a promessa do Salvador, eles haviam visto o Reino de Deus, esta luz divina e misteriosa que os grandes Gregório e Basílio chamaram de Divindade. De fato, o grande Basílio diz que essa luz é a beleza de Deus, contemplada apenas pelos santos no poder do Espírito divino. É por isso que ele diz também: “Pedro e o filho do trovão viram no topo da montanha sua beleza, mais luminosa que a radiação solar e assim se tornaram dignos de receber com seus olhos as premissas da parúsia [163]”. O teólogo Damasceno e João da língua de ouro chamaram esta luz de irradiação natural da Divindade. Um – João Damasceno – escrevendo que o Filho nascido do Pai fora de qualquer começo possui independente de qualquer começo a irradiação natural da Divindade, e que a glória da Divindade se tornou a glória do seu corpo[164]. O outro – João Crisóstomo – ao dizer que o Senhor, sobre a montanha, apareceu mais luminoso do que ele próprio, quando a Divindade mostrou sua irradiação luminosa. 147. Esta luz divina e misteriosa – a Divindade e o Reino de Deus, a beleza e o esplendor da natureza divina, a visão e o regozijo dos santos no século infinito, a irradiação e a glória natural da Divindade – dela dizem os heréticos[165] falastrões ser um fantasma e uma criatura. E eles proclamam, caluniando, que os que não blasfemam como eles essa luz divina e que consideram que Deus é incriado em sua essência e em sua energia, são diteístas. Com efeito, a partir do momento em que esta luz divina é incriada, Deus é, para nós, um na Divindade única. Como já mostramos, a essência incriada e a energia incriada – ou seja, a graça divina e sua irradiação – são próprias do Deus uno. 148. Daí que os hereges insensatos que ousaram dizer no Concílio e que tentaram demonstrar que essa luz divina que irradiava do Senhor no Tabor era um fantasma e uma criatura, que foram reprovados por muitos e não se retrataram, foram submetidos à excomunhão escrita a ao anátema. Pois eles blasfemaram contra a economia de Deus na carne, disseram tolamente que a Divindade de Deus é criada, e, ao menos no que lhes concerne, reduziram ao estado de Criaturas o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Pois a Divindade dos três é uma só e mesma Divindade. E, se eles dizem que veneram a Divindade incriada, devem reconhecer que existem duas Divindades de Deus, uma criada e outra incriada. Assim, eles rivalizam com todos os antigos desviados em matéria de erro, e os superam em impiedade. 149. Por outro lado, esforçando-se para dissimular o próprio erro, eles dizem que a luz que brilha sobre o Tabor é incriada, e que ela é a essência de Deus, e, com isto, eles a blasfemam ainda mais. Pois esta luz foi vista pelos Apóstolos: então, nossos adversários pensam que a essência de Deus é visível. Que eles escutem o que foi dito: a ninguém, não apenas dentre os homens, mas também entre os anjos, foi dado ver[166] ou revelar a essência e a natureza de Deus. Pois mesmo os Serafins de seis asas, ao aproximarem este derramamento de esplendor que é a irradiação de Deus no coração do mundo, cobrem seus rostos com as asas[167]. Portanto, como a supra-essencialidade de Deus jamais foi vista por ninguém, quando os heréticos dizem que esta luz é a supra-essencialidade, eles atestam que ela é absolutamente invisível, que não foi ela que os Apóstolos eleitos viram sobre a montanha, e que não falou a verdade aquele que disse: “Vimos sua glória, nós que com ele estávamos sobre a montanha santa”, e “permanecendo despertos, Pedro e os que com ele estavam viram sua glória[168]”. O outro discípulo disse que João, a quem Cristo amava especialmente, viu esta Divindade do Verbo revelada sobre a montanha. Portanto, eles viram, e verdadeiramente viram o esplendor divino incriado, esta luz do Deus invisível que permanece no segredo supra-essencial, mesmo que o tentem apagar os príncipes da heresia[169] e os que pensam como eles. 150. Quando interrogamos estes hereges, que afirmam que esta luz da Divindade é a essência, e que a essência de Deus é visível, eles são obrigados a dissimular a mentira, dizendo que esta luz é a essência, uma vez que é a essência de Deus que é visível nela, e que são as criaturas que veem a essência de Deus.
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Novamente estes infelizes fazem da luz da transfiguração do Senhor uma criatura. O que as criaturas veem não é a essência, mas a energia criadora de Deus. É, portanto, de modo ímpio, também aí, que eles dizem, em acordo com Eunomo, que a essência de Deus é vista pelas criaturas. É assim que eles colhem da colheita da impiedade. É preciso fugir deles e de sua companhia, como da hidra de muitas cabeças que corrompe a alma, como de um flagelo que, sob tantas e variadas formas, devasta a piedade.
[1] Cf. Romanos 1: 21 [2] Eclesiastes 1: 6. [3] Cf. Gênesis 1: 1. [4] Cf. Mateus 24: 34. [5] Cf. Gênesis 1: 27. [6] Cf. Gênesis 2: 7. [7] Ou o Intelecto supremo. [8] Cf. João 11: 25. [9] Cf. Gênesis 1: 27. [10] Cf. João 15: 26. [11] Provérbios 8: 30. [12] Cf. Gênesis 3: 6. [13] Cf. Mateus 22: 37-39. [14] Salmo 10 (11): 5. [15] Cf. Hebreus 1: 14. [16] I Timóteo 5: 6. [17] Efésios 2: 5. [18] I João 5: 16. [19] Cf. Mateus 8: 22. [20] Cf. Gênesis 3: 6. [21] Cf. Gênesis 2: 7; 3: 19. [22] Salmo 10 (11): 7. [23] Cf. Sabedoria 1: 13. [24] Cf. Gênesis 2: 17. [25] Cf. Gênesis 2: 17. [26] Cf. I Samuel 2: 3. [27] Cf. Gênesis 3: 7-8. [28] Cf. Hebreus 5: 12. [29] Cf. Gênesis 2: 17. [30] Cf. Gênesis 3: 23-24. [31] Cf. Gênesis 2: 17. [32] Gênesis 3: 19. [33] Cf. Sabedoria 1: 13. [34] Gênesis 3: 19. [35] Cf. Números 17: 23. [36] Romanos 11: 33. [37] Cf. Hebreus 8: 1. [38] Cf. Lucas 1: 78. [39] Cf. Hebreus 4: 15. [40] Marcos 1: 15.
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[41] Cf. Isaías 9: 2; Lucas 1: 79. [42] Cf. Lucas 7: 21. [43] I João 4: 16. [44] João 14: 23. [45] João 14: 23. [46] I Coríntios 13: 3. [47] I João 13: 8. [48] Cf. I Coríntios 12: 3. [49] João 14: 6. [50] Cf. João 4: 23. [51] Cf. João 4: 24. [52] Cf. Gênesis 1: 28. [53] Cf. Deuteronômio 32: 8. [54] Cf. Judas 6. [55] Nomes Divinos IV, 8. [56] Cf. Lucas 1: 78. [57] Cf. Mateus 17: 1-6. [58] João Crisóstomo. [59] II Coríntios 5: 2-3. [60] Cf. Atos 9: 3-4. [61] Gregório de Nazianze, Discurso XXXIX, 9. [62] São Basílio, Tratado do Espírito Santo. [63] Isaías 11: 1-2. [64] Antirréticos contra Acindino. [65] Discurso XLI. [66] Cf. Lucas 11: 20. [67] Cf. Mateus 12: 28. [68] Contra Eunome. [69] Cf. Zacarias 4: 10. [70] Apocalipse 1: 4-5. [71] Miquéias 5: 1. [72] Salmo 89 (90): 2. [73] A opinião de Acindino. [74] João Damasceno, A fé ortodoxa III, 18. [75] Cirilo de Alexandria, Thesaurus de Trinitate, PG 75, 312. [76] I Coríntios 6: 17. [77] Barlaam e Acindino. [78] Joel 3: 1. [79] Salmo 89 (90): 17. [80] Tratado sobre o Espírito Santo, op. cit., pg. 328. [81] Cf. Hebreus 1: 14. [82] Isaías 6: 1. [83] Sobre a incompreensibilidade de Deus. [84] A fé ortodoxa. [85] Acindino. [86] Cf. Atos 9: 15. [87] Romanos 1: 20. [88] Barlaam e Acindino. [89] São Basílio, Contra Eunomo II. [90] Nomes divinos II, 5.
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[91] Ibid. II, 11. [92] Ibid. [93] Ibid. [94] Ibid. V, 8. [95] Os Barlaamitas. [96] São Basílio, Tratado sobre o Espírito Santo, op. cit., pg. 418. [97] Máximo o Confessor, Scholia, PG 4, 221 AB. [98] Nomes divinos XI, 6. [99] Ibid. II, 5. [100] Acindino. [101] João Evangelista. [102] João Crisóstomo. [103] João Crisóstomo, Homilia XXX, 2. [104] Acindino. [105] Do verbo ekporeuô, “fazer sair”, termo empregado no Credo de Nicéia, em um sentido mais preciso do que o de “processão”, para expressar a relação entre o Pai e o Espírito Santo. [106] Cirilo de Alexandria, Thesaurus de Trinitate, PG 75, 312... [107] Cf. II Pedro 1: 4. [108] Cf. Efésios 1: 21. [109] Aproximação de Deus que procede por negação. [110] Nomes divinos V, 1. [111] I Coríntios 12: 8. [112] Barlaam e Acindino. [113] Discípulos de Acindino. [114] Gregório de Nazianze, Discurso XXX, 21. [115] Tratado do Espírito Santo, op. cit., pgs. 324-326. [116] João 1: 16. [117] Homilia 14: 1. [118] São Basílio, Carta CCXXXIV, 1. [119] Discurso XXXVIII, 2. [120] Salmo 89 (90): 17. [121] Cf. Colossenses 2: 9. [122] Thesaurus de Trinitate, PG 75, 244, citando João 14: 11. [123] João 5: 26. [124] Thesaurus de Trinitate, PG 75, 236-237. [125] Ibid. 233. [126] João 6: 47. [127] João 10: 27-28. [128] Cf. João 17: 2. [129] Thesaurus de Trinitate, PG 75, 263 BC. [130] Barlaam. [131] Ibid. 240 A [132] I Timóteo 1: 17. [133] João 14: 11. [134] Barlaam e Acindino. [135] Nomes divinos I, 6. [136] Contra Eunomo V. [137] Os Barlaamitas. [138] Barlaam e Acindino. [139] Gregório de Nazianze, Discurso XXXI, 6.
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – 150 capítulos físicos, teológicos, éticos e práticos.
[140] Ibid, XXXI, 5. [141] Ibid. XXXI, 6. [142] A fé ortodoxa, III, 15. [143] Discurso XXXI, 6. [144] Os Acindinistas. [145] A fé ortodoxa IV, 2. [146] Gênesis 2: 2. [147] A fé ortodoxa III, 15; Gregório de Nazianze, Discurso XXXI, 6. [148] Barlaam e Acindino. [149] Gregório o Teólogo (Gregório de Nazianze). [150] Deuteronômio 6: 4. [151] Mateus 6: 9; 23: 9. [152] Os Acindinistas. [153] Acindino. [154] O erro de Acindino. [155] Os Acindinistas. [156] Acindino e seus seguidores. [157] Thesaurus de Trinitate, PG 75, 312. [158] A fé ortodoxa, PG 94, 813ª. [159] Ibid. 1048ª. [160] Marcos 9: 1. [161] Mateus 17: 2. [162] Mateus 17: 6. [163] Homilia do Salmo 44. [164] Homilia da Transfiguração. [165] Os Acindinistas. [166] Cf. Jeremias 23: 18. [167] Cf. Isaías 6: 2. [168] Cf. Lucas 9: 32. [169] Barlaam e Acindino.
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – Tomo Hagiorítico.
TOMO HAGIORÍTICO Sobre os santos hesiquiastas, para aqueles que, por sua inexperiência e porque não são fiéis aos santos, rejeitam as energias místicas do Espírito. Ou melhor: discurso sobre aqueles que vivem segundo o Espírito a operação destas energias manifestadas pelas obras, mas não demonstradas pelas palavras. A doutrina justamente ensinada pela palavra, comumente conhecida por todos e pregada abertamente constituía os mistérios da Lei de Moisés, que somente os profetas de então viram no Espírito. Mas os bens do século futuro, os bens prometidos aos santos que se tornaram dignos de ver pelo Espírito são os mistérios da vida vivida segundo o Evangelho, estes mistérios que lhes foram dados com parcimônia, parcialmente, como garantias, e que eles puderam contemplar previamente. Ora, assim como um judeu de antigamente, ouvindo sem dar graças dizerem os profetas que o Verbo e o Espírito de Deus eram um e outro eternos e anteriores aos séculos, tapava os ouvidos pensando ouvir vozes proibidas pela piedade e contrárias ao que confessavam unanimemente os religiosos, ou seja, a voz que dizia: “O Senhor é seu Deus, o Senhor é um[1]”, da mesma forma hoje acontece de as pessoas não escutarem com piedade os mistérios do Espírito conhecidos apenas pelos que foram purificados pela virtude. Mas, assim como a realização das profecias demostrou uma conformidade visível com os antigos mistérios, e assim como cremos hoje no Pai, no Filho e no Espírito Santo, Divindade em três Pessoas, natureza única e simples, não composta, incriada, invisível, incompreensível, da mesma forma, quando século futuro se revelar em seu tempo, na indizível manifestação do Deus único em três Pessoas perfeitas, os mistérios serão manifestados em acordo com tudo o que é visível. Mas é preciso considerar igualmente que, se as três Pessoas da Trindade foram a seguir manifestadas sem nenhum prejuízo aos confins da terra pela palavra da monarquia divina – e que, antes mesmo da realização das coisas as três Pessoas foram conhecidas dos próprios profetas e recebidas por eles que as escutaram então – da mesma maneira, hoje, também não ignoramos as palavras da confissão daquilo que é abertamente pregado e misticamente manifestado previamente no Espírito àqueles que dele se tornaram dignos. Uns foram iniciados por esta experiência – aqueles que pela vida evangélica não apenas renunciaram à posse do dinheiro, à glória dos homens e aos maus prazeres do corpo, mas ainda confirmaram esta renúncia se submetendo aos que alcançaram o canteiro de Cristo – pois, após se terem consagrado a Deus para além de todos os cuidados, ultrapassaram na hesíquia a si próprios alcançando a Deus pela prece pura e, unindo-se a ele na união mística que supera a inteligência, foram iniciados naquilo que está acima do intelecto. Outros foram iniciados pelo respeito, a confiança e o afeto que dedicaram a tais homens. O mesmo nos acontece hoje, a nós que escutamos o grande Denis dizer na segunda epístola a Gaio: “Estamos persuadidos de que o dom deificante de Deus, a divindade, a divina origem, a boa origem, Deus que dispensa esta graça aos que dela são dignos, estas coisas estão acima desta divindade”. Pois Deus não poderia se multiplicar, e assim não podemos dizer que existem duas divindades. O divino Máximo, escrevendo a respeito de Melquisedeque, declara que esta graça deificante de Deus é incriada, que ela é eternamente e que ela provém do Deus eterno[2]. Em outras passagens, ele afirma que ela é uma luz não gerada e pessoal, que se manifesta aos que dela são dignos, no momento em que estão, mas que não é suscitada neste momento. Ele chama a esta luz “luz da glória mais que inefável e pureza dos anjos [3]”. O grande Macário[4], por sua vez, a chama de alimento dos incorpóreos, glória da natureza divina, beleza do século futuro, fogo divino e celeste, luz indizível do intelecto, garantia do Espírito Santo[5], azeite santificante que espalha a alegria[6]. Portanto, aquele que se alinha aos messalianos[7] e que chama de diteístas[8] àqueles que dizem que esta graça deificante de Deus é incriada, não gerada e pessoal, saiba ele que está se opondo aos santos de Deus
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – Tomo Hagiorítico.
e que priva a si mesmo da participação entre os que serão salvos, caso não se arrependa, e que se afasta do Deus uno, que é, por natureza, o único Deus dos santos. Mas aquele que crê, que está convencido, que fala com os santos, que busca desculpas para seus pecados, que em sua ignorância não rejeita o que é dito abertamente nem ignora que aí existe um caminho de mistério, que ele não considere indigno buscar e aprender junto àqueles que sabem. Pois ele verá que nada está em desacordo com as palavras e os atos de Deus, e isto nas coisas mais necessárias, sem as quais nada poderia se manter, nem mesmo o mistério divino. Quem declara haver alcançado a união perfeita com Deus apenas pela imitação e a disposição natural, sem a graça deificante do Espírito, como os que vivem esta mesma união e amam uns aos outros, e que afirma que a graça deificante de Deus é um estado da natureza dotada de razão, suscitada apenas pela imitação, e não uma iluminação sobrenatural e misteriosa e uma energia divina que é invisivelmente visível para os que dela são dignos, e concebida incompreensivelmente, saiba este homem que caiu sem o saber no erro dos messalianos. Pois terá sido pela natureza, necessariamente, que o deificado será Deus, se a deificação provém de uma potência natural e se encontra naturalmente compreendida dentro dos limites da natureza. Que este homem não tente imputar seu próprio comportamento àqueles cujo hábito é firme, nem colocar seu opróbrio sobre aqueles cuja fé é irretocável, mas que deponha a arrogância e aprenda, com os que têm experiência ou com quem foi ensinado por estes, que “a graça da Divindade é completamente irredutível, na medida em que ela não encontra na natureza nenhuma potência capaz de recebê-la. Caso contrário, ela não seria mais a graça, mas a manifestação de uma energia de uma potência natural, e nada haveria de paradoxal se a deificação proviesse de uma potência capaz de recebê-la. Pois se a deificação for racionalmente uma obra da natureza, ela não poderá ser um dom de Deus. Este homem poderia ser Deus por natureza e se dizer Deus propriamente, pois a potência natural de todo ser não é outra coisa do que o movimento que mantém a natureza em sua energia. Mas como poderia a deificação fazer sair de si mesmo o deificado? Não vejo como poderia ser, se ele permanecer contido dentro dos limites da natureza[9]”. A graça da deificação ultrapassa assim a natureza, a virtude e o conhecimento. Estão lhe são, conforme são Máximo[10], infinitamente inferiores. Pois toda virtude, como a imitação de Deus de que somos capazes, torna aquele que a adquire apto para a união divina. Mas é a graça que realiza a união misteriosa em si. De fato, é por meio dela que “Deus por inteiro envolve inteiramente aqueles que são dignos disto, e é por meio dela que os santos, também inteiros, envolvem inteiramente a Deus inteiro: eles recebem a Deus inteiro em troca de si próprios e, como recompensa por sua elevação a Deus eles obtêm apenas a Deus[11]”, o próprio Deus: a direção da alma que se liga ao corpo como se fossem seus próprios membros, e que os torna dignos de estar nele. Quem diz serem messalianos os que veem no coração ou no cérebro a sede do intelecto, saiba está agredindo erroneamente os santos. Pois o grande Atanásio diz que a razão da alma está no cérebro [12]. E Macário, que não é menor, afirma que a energia do intelecto está no coração[13]. Quase todos os santos estão de acordo com eles. Com efeito, quando o divino Gregório de Nissa diz que o intelecto, por ser incorpóreo, não está nem o interior nem no exterior do corpo[14], ele não se opõe aos santos Atanásio e Macário. Estes afirmam que o intelecto está no interior do corpo, por estar ligado a ele. Eles dizem isto de outra maneira, e não diferem absolutamente de são Gregório. Pois à afirmação de que o divino não está em parte alguma por ser incorpóreo, não se opõe a afirmação de que o Verbo de Deus esteve um dia no seio virginal e puríssimo, onde, acima da razão, ele se uniu à nossa natureza, em seu indizível amor pelo homem. Quem diz que a luz que brilhou ao redor dos discípulos no Tabor[15] era um fantasma e um símbolo, que apareceu e desapareceu, que ela não existe por si própria e que não ultrapassa todo entendimento, mas que se trata de uma banal projeção do pensamento, está em manifesta contradição com as opiniões dos santos.
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Estes, com efeito, em seus cantos e seus escritos, a chamam de misteriosa, incriada, eterna, intemporal, inacessível, imensa, infinita, sem limites, invisível aos anjos e aos homens, beleza original e imutável, glória de Deus, glória de Cristo, glória do Espírito, raio da Divindade e outros nomes semelhantes. Esta dito, com efeito, que “a carne foi glorificada pela encarnação de Cristo, e que a glória da Divindade se tornou a glória do corpo. Mas no corpo manifestado a glória não aparece para aqueles que não trazem em si aquilo que mesmo para os anjos é invisível. Cristo se transfigurou, não por assumir o que ele não era, nem por se transformar no que não era, mas manifestando aos discípulos aquilo que ele é, abrindo os seus olhos e tornando videntes a eles que eram cegos. Ao mesmo tempo em que permanecia no mesmo estado no qual antes lhes aparecera, ele então se manifestou e se revelou aos discípulos. Pois ele é em si a verdadeira luz[16], a beleza da glória. Ele brilhou como o sol[17]... A imagem não é justa, mas é impossível representar corretamente o incriado na criação[18]”. Aquele que diz que somente a essência de Deus é incriada, mas não as energias eternas – por que a essência as ultrapassa a todas como o operador supera o operado – que escute são Máximo, que afirma: “Tudo o que é imortal, e a própria imortalidade, tudo o que vive, e a própria vida, tudo o que é santo, e a própria santidade, tudo o que é virtuoso, e a própria virtude, tudo o que é bom, e a própria bondade, tudo o que é, e o próprio ser, são manifestamente obras de Deus. Mas alguns começaram a ser no tempo (pois houve um tempo em que não existiam), e outros não começaram a ser no tempo: pois jamais houve um tempo em que não existiam a virtude, a bondade, a santidade e a imortalidade[19]”. E também: “A bondade e tudo o que está contido na palavra bondade, em suma, toda a vida, toda imortalidade, toda simplicidade, toda imutabilidade, toda infinitude e tudo o que é considerado em sua essência ao redor de Deus, são obras de Deus e não tiveram um começo no tempo. Pois aquilo que não era não pode jamais ser mais antigo do que a virtude, nem mais antigo que os demais caracteres de que falamos, mesmo que aquilo que deles participa tenha começado com eles a ser no tempo. Com efeito, toda virtude é sem começo, dado que o tempo não é mais antigo do que ela, pois a virtude possui em si a Deus que, somente ele, gerou o ser eternamente. Mas Deus se eleva infinitamente ao infinito acima de todos os seres, participantes e participados[20]”. Aprenda este homem com isto que todas as existências saídas de Deus não estão submetidas ao tempo. Pois entre elas existem algumas que são sem começo e que não são absolutamente apagadas pela Unidade trinitária, que somente ela é pura natureza sem começo, e pela simplicidade sobrenatural que nela reside. Do mesmo modo o intelecto, como uma imagem obscura desta indivisibilidade transcendente, através dos pensamentos que lhe são naturais, não é absolutamente composto. Quem não aceita as disposições espirituais manifestadas diretamente no corpo pelos carismas do Espírito na alma daqueles que progridem em Deus, e chama de impassibilidade a mortificação habitual do estado passional, mas não a energia que leva normalmente para o melhor aquele que se desembaraçou totalmente do mal e se voltou para o bem, largando os maus hábitos e se enriquecendo com os bons, este, conforme ao que pensa, nega que o corpo possa levar sua vida naquilo que é eterno. Pois se um dia, por intermédio da alma, o corpo participar dos bens indizíveis, é provável que agora ele já participe, na medida do possível, da graça misteriosa e indizivelmente concedida por Deus ao intelecto purificado, e que ele se entregará por si só ao divino quando a parte passional da alma for transformada e santificada, mas não mortificada em seu estado. Uma vez que o corpo e a alma têm uma existência em comum, ela santificará então por si própria as disposições e as energias do corpo. Pois uma vez que for separado dos bens da existência pela esperança dos bens futuros, segundo são Diádoco, o intelecto, vigorosamente conduzido na ausência de cuidados, sentirá por si só o indizível odor divino. E ele transmitirá ao corpo sua própria doçura, na medida de seu progresso[21]. Tamanha alegria, que sobrevirá então na alma e no corpo, é uma reminiscência infalível da vida incorruptível.
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Uma é a luz percebida naturalmente pelo intelecto, e outra a luz percebida pelos sentidos. Pois os sentidos percebem o sensível, e os objetos sensíveis têm sua qualidade de objetos sensíveis. Mas a luz do intelecto é o conhecimento que reside nos pensamentos. Assim é que a vida e o intelecto não percebem a mesma luz, na medida em que cada qual opera segundo sua própria natureza e no domínio que se refere à sua natureza. Mas quando participam da graça e da potência espiritual, os que são dignos disto veem com os sentidos e com o intelecto aquilo que ultrapassa todo sentido e todo intelecto. E eles realizam tais milagres, como somente Deus sabe, para retomar o que disse o grande Gregório o Teólogo. É isto o que aprendemos das Escrituras, e o que recebemos de nossos Padres. É o que nos permite conhecer nossa minúscula experiência. É isto que, para a plena e segura informação dos que lerão este texto, junto com nosso venerado irmão entre os hieromonges, Gregório, que escreveu sobre os santos hesiquiastas seguindo rigorosamente as tradições dos santos, nós assinamos. O primaz dos veneráveis mosteiros da Montanha Santa, hieromonge Isaac. O higoumeno da santa Láuria real, Teodosa, hieromonja. Assinatura do higoumeno do mosteiro de Iberes, em sua língua. O higoumeno do venerável mosteiro real de Vatopedi, hieromonge Joanico. Assinatura do higoumeno do mosteiro de Serbes, em sua língua. Filoteu, o menor dos hieromonges, é o que eu penso. Eu assino. O menor dos hieromonges e confessor do venerável mosteiro de Esfigmenou, Amfilóquio. O menor dos hieromonges e confessor de Vatopedi, Teodósio. O higoumeno do mosteiro de Koutloumousi, Teosterictos. Gerontios Maroulis, peador, vivendo entre os anciãos da venerável Láuria, é o que eu penso. Eu assino. O menor dos monges, Calistos Mouzalon. Gerásimo, o último dos hieromonges, eu vi e li tudo o que está escrito no amor da verdade. Concordo e assino. Geronte Moisés, o último e menor dos monges, é o que eu penso. Eu assino. O menor e último dos monges, Gregórios Stravolancadites, que se intitula hesiquiasta, é o que eu concebo e penso. Eu assino. Geronte Isaías, da sketa de Magoula, o menor dos monges, é o que eu penso. Eu assino. O menor dos monges, Marcos, do Sinaíta. O menor dos hieromonges, Calisto da sketa de Magoula. Assinatura do Geronte hesiquiasta, do mosteiro dos Sírios, em sua língua. O menor dos monges, Sofrônio. O menor dos monges, Joasafe. Humilde bispo de Hierissos e da Montanha Santa, Tiago, elevado nas tradições hagioríticas e patrísticas, eu atesto que pelos homens escolhidos que assinaram aqui, é toda a Montanha Santa que assina num mesmo acordo. Eu próprio estou de acordo, aprovo e assino. E acrescento o seguinte perante eles: quem não está de acordo com os santos, como estamos nós e como estão os Padres que vieram antes de nós, este não será por nós recebido em comunhão.
[1] Deuteronômio 6: 4. [2] Ambigua, PG 91,1141 B. [3] Ad Thalassium, 16. [4] Ver p. ex. Paráfrase de Simeão Metafraste, cap. 62, 65, 70, 73, 74...
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TII, VIII – GREGÓRIO PALAMAS – Tomo Hagiorítico.
[5] Cf. II Coríntios 1: 22. [6] Cf. Salmo 44 (45): 8. [7] Messalianos ou euquitas eram membros de uma seita herética que considerava que este mundo teria sido criado por Satanás, sendo, portanto, mau. [8] Diteísmo: religião dualista que admite dois princípios, um bom e um mau. [9] Máximo o Confessor, Ambigua, PG 91, 11237 B. [10] Centúrias sobre a teologia e a economia, III, 75. [11] Ambigua, PG 91, 1308 B. [12] Orat. Contra gentes, PG 25, 61 AB; Ad monachos, 70. [13] Homilias espirituais de são Macário, XV, 20. [14] A criação do homem, PG 44, 177 BC. [15] Cf. Mateus 17: 5. [16] João 1: 9. [17] Cf. Mateus 17: 2. [18] João Damasceno, Hom. In Transf. in Joie de la Trasnfiguration d’après les Pères d’Orient, SO 39, Bellefontaine 1985, pgs. 199-200. [19] Centúrias sobre a teologia e a economia, I, 50. [20] Ibid., 48-49. [21] Diádoco de Foticéia, Cem capítulos 25.
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CALIXTO E INÁCIO XANTHOPOULOI
Calixto, que tinha o nome de Xanthopoulos e foi Patriarca de Alexandria, viveu no século XIV no reinado de Andronico II Paleólogo. Discípulo de Gregório o Sinaíta (cuja biografia redigiu), ele foi monge no Monte Athos, na sketa de Magoula diante do Mosteiro de Filoteu. Aí ele viveu por vinte e oito anos com seu discípulo Marcos. Ele ficou ligado por uma forte amizade com Inácio, que também tinha por nome Xanthopouloi, tornando-se como que uma só alma. Tornando-se Patriarca, e a caminho da Sérvia, onde iria trabalhar pela união e a paz da Igreja, ele passou pela Montanha Santa. Aí, Máximo o Capsocalyvita fez a seu respeito uma previsão bem humorada, dizendo: “Este ancião perdeu sua anciã”. Com efeito, mal chegado à Sérvia, Calixto trocou a vida mortal pela incorruptibilidade. Em seus capítulos sobre a prece deificante, Simeão de Tessalônica disse a seu respeito: “Nosso Pai entre os santos Calixto, pela graça de Deus Patriarca da nova Roma, e o bem-aventurado Inácio, que, com ele viveu na oração, cujo conhecimento expuseram em cem capítulos. Filhos de Constantinopla, eles abandonaram tudo, primeiro para viver na submissão uma vida de virgindade e solidão, e depois para alcançar, por meio da ascese, o estado celeste e indivisível. Eles guardaram em especial a unidade em Cristo (esta unidade que Cristo pediu ao Pai que nos concedesse) e foram como chamas que trouxeram ao mundo a palavra de vida. Pois mais do que muitos que foram santificados, eles atingiram o grau de união e de amor em Cristo, a ponto de que jamais se manifestou neles a menor alteração de tendência ou de comportamento, nem a menor tristeza, coisa que é quase impossível aos homens. Tornando-se angélicos, eles adquiriram e mantiveram em si mesmos, como haviam pedido, a paz de Deus, que é Jesus Cristo, nossa paz, ele que de dois fez um e cuja paz ultrapassa todo conhecimento. Tendo partido em paz, eles desfrutam agora da serenidade do alto, e contemplam Jesus com toda pureza, ele a quem amaram com toda sua alma, a quem eles buscaram verdadeiramente. Eles se tornaram um com ele. Eles participam de sua dulcíssima e divina Luz, cuja garantia receberam desde aqui em baixo, purificados que estavam pela contemplação e pela ação. Como os Apóstolos, eles conheceram a divina iluminação do Tabor, de que muitos foram testemunhas. Eles viram seus rostos brilhando como o de Etiene, pelo muito de graça que se expandia não somente em seus corações, mas em toda a sua aparência. É por isso que, como o grande Moisés, eles revelaram a transfiguração (e os que o viram testemunham), e a forma de seus corpos brilhou como o sol. Tendo experimentado esta beatitude e a conhecendo por experiência, eles deram a conhecer a luz divina, a energia e a graça naturais de Deus, a sagrada oração, e tomaram os santos por testemunhas.
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No final do século XIV, no Monte Athos, oferecidos ao sacrifício e à transfiguração, devotados a atestar a passagem última e a abertura absoluta, Calixto e Inácio, ambos com o nome de Xanthopoulos, apareciam como os modelos para estes monges – os hesiquiastas – a quem Gregório o Sinaíta e Gregório Palamas exortavam e defendiam nos fronts e nas brechas da história. Mas também para eles valiam os sinais dos tempos: aqueles que mais se aprofundaram na morte ao mundo e na interiorização do Reino eram chamados a dirigir a Igreja no coração da Cidade, e, em 1397, no fim de sua existência, Calixto foi eleito Patriarca de Constantinopla. Ele morreu três meses depois. Terá sido ele o autor dos textos inseridos no final da antologia sob o nome de Calixto o Patriarca e de Calixto Cataphygiotes? É o que veremos, se pudermos pensar assim, embora não o saibamos ao certo. Resta a presente centúria, concebida como uma série de conselhos, um conjunto de reflexões e um florilégio temático, que fazem dela, não apenas o mais pedagógico dos textos da antologia, mas uma antecipação da própria antologia, na medida em que convoca inúmeros testemunhos que asseguraram durante um milênio a transmissão da experiência hesiquiasta, e, em especial, os dois testemunhos fundamentais de João Clímaco e Isaac o Sírio. Tal é bem esta centúria: uma obra prima da recapitulação e de realização, escrita em conjunto por dois monges que dispensam os frutos de sua amizade espiritual e que se cercaram eles mesmos de testemunhos para relatar as causas e os efeitos de sua própria transfiguração. E esta é a mensagem: a prece contínua no interior do coração não pode ser relegada. Tanto no decurso como saída da liturgia do tempo, ela se incorpora aos combates da ascese e à graça da eucaristia sacramental. Enfim, por meio do arrependimento, da tristeza espiritual e das lágrimas, por meio da hesíquia, da atenção e da prece, são colocadas como nunca as primícias do ocaso histórico, a abertura mesma da porta estreita: alcançar o amor à beleza, alcançar o êxtase do amor e a irradiação da luz incriada que precede e anuncia a nova criação. Isto equivale a dizer que o conteúdo e o alcance da transmissão filocálica estão aqui inteiros neste último apelo, amplo e preciso, do caminho a seguir.
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TII, VIII – CALIXTO E INÁCIO XANTHOPOULOI – Centúria Espiritual.
CENTÚRIA ESPIRITUAL 1. Do modo como conduzem, governam e regram sua vida aqueles que assumem na razão a hesíquia, e das grandes benesses que esta lhes traz. A presente obra se divide em cem capítulos. Este exórdio – primeiro capítulo – trata do dom sobrenatural e da graça que os fiéis recebem pelo Espírito Santo. Seria preciso, como mostram as divinas profecias, que fôssemos ensinados por Deus[1], levando, mais clara que uma chama, a nova lei inefavelmente escrita em nossos corações[2]. Seria preciso que fôssemos conduzidos pelo Espírito de bondade e de toda retidão, como filhos e herdeiros de Deus, herdeiros com Cristo[3]. Seria preciso que levássemos a vida dos anjos, jamais nos afastando d’Aquele que nos ensinou a conhecer o Senhor. Mas agora, quando, desde nossos primeiros fios de cabelo, nossa desorientação em face do melhor e nossa tendência para o pior, somados aos enganos do demônio malfeitor e à sua implacável tirania contra nós, nos conduziram de modo condenável para longe dos mandamentos salutares da obra de Deus, fomos arrastados para os abismos que destroem a alma. Enfim, o que é mais lamentável, somos insuflados a pensar e a agir contra nós mesmos. É por isso que, segundo a palavra divina, “não existe ninguém que compreenda, ninguém que busque a Deus[4]”. Pois, “desviados do caminho direito, nos tornamos inúteis[5]”, somos inteiramente carne[6], e, privados da graça luminosa de Deus, perdemos o impulso e o auxílio que deveríamos receber uns dos outros para nos orientarmos para o bem.
2. Que os temas desenvolvidos nesta obra respondem à interrogação é à busca de um irmão, mas também à observância do mandamento paternal. Uma vez que em seu desejo de sondar as divinas Escrituras que dão a vida[7], em conformidade ao que ordenou o Senhor, e de se iniciar com toda segurança, você muitas vezes nos pediu, a nós os inúteis, uma palavra e uma regra escrita, para seu próprio bem e o de outros, como você mesmo nos disse, mesmo que não o tenhamos feito antes, possamos hoje satisfazer seu louvável desejo, esquecendo nossa habitual, por seu amor e seu benefício, admirando-o no mais alto grau por seu zelo pelo bem e seu gosto constante pelo trabalho, caro filho espiritual. Mas, acima de tudo, devemos temer o julgamento de Deus, cuja ameaça é terrível, como vimos pelo que aconteceu com aquele que escondeu o talento[8]. Por outro lado, cumprimos assim a ordem paternal que nos foi dada por nossos pais e mestres espirituais: confiar a outros que amam a Deus aquilo que eles nos ensinaram. Que Deus, Pai do amor, o primeiro que dispensou abundantemente todos os bens de uma vez por todas, ele que em muitas ocasiões concedeu a inspiração da palavra a animais sem razão[9] para o bem dos que os ouviram, nos conceda também uma palavra oportuna e nos abra a boca[10], pois somos lentos e não sabemos falar[11]. Mas a você e a todos os que nos leem, como você mesmo disse, que ele conceda um ouvido capaz de escutar o que se segue com sabedoria e ciência, a fim de que vocês possam levar uma vida direita e firme que agrade a Deus. Pois sem ele, como está escrito, nada podemos fazer de útil[12] e de salutar, e, “se o Senhor não constrói a morada, aqueles que trabalham penam em vão”. É exatamente assim.
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TII, VIII – CALIXTO E INÁCIO XANTHOPOULOI – Centúria Espiritual.
3. Que em todas as coisas o objetivo é o primeiro, e que o objetivo da presente obra é de ensinar o fundamento. Todas as coisas começam pelo objetivo. [13]O mesmo acontece com nosso objetivo que também é o seu. O nosso é o de expressar na medida do possível o que ajuda no crescimento espiritual, e o seu consiste em viver realmente aquilo que lhe é dito. É preciso antes de tudo examinar como chegaremos ao acabamento do edifício que construímos, este acabamento que vemos como se fosse num espelho. Pois, uma vez que tenhamos colocado eficazmente as primeiras fundações, mais tarde, quando chegar o tempo, ou melhor: quando tivermos recebido abundantes socorros do alto, colocaremos também um teto digno da arquitetura do Espírito.
4. Que o começo de tudo o que se faz em Deus consiste em viver segundo os mandamentos do Salvador. E o fim consiste em retornar à graça perfeita do Espírito Santo que é a origem da vida, esta graça que desde o começo nos foi dada por meio do batismo divino. O começo de tudo o que se faz em Deus, para dizê-lo em poucas palavras, consiste em nos esforçarmos de todas as maneiras e com todas as nossas forças para viver segundo os mandamentos deificantes do Salvador. E o fim consiste em, por intermédio da observância destes mandamentos, retornar àquilo que, desde o começo mesmo, foi concedido do alto pelo banho sagrado do batismo: a regeneração e a nova criação perfeita da graça. Ou então, se você preferir, atrair para si um tal dom. E despojando-se do velho Adão com seus atos e suas concupiscências, revestir-se do novo e do espiritual[14] que é o Senhor Jesus Cristo, como disse o divino Paulo: “Meus filhos por quem eu sofro de novo as dores do parto, até que o Cristo seja formado em vocês[15]”. E: “Vocês que foram batizados em Cristo, vocês se revestiram de Cristo[16]”.
5. O que é a graça, e como podemos descobri-la. O que a perturba e o que a purifica. Mas o que é a graça, como podemos descobri-la, o que a perturba, o que ao contrário a torna pura, isto tudo será revelado a você por aquele cuja alma e cuja língua são mais luminosas do que todo o ouro do mundo, quando ele diz: “Refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nesta mesma imagem[17]”. O que isto significa? É o que ele mostrou com maior clareza ainda ao suscitar a graça dos milagres. Entretanto, a quem possui os olhos da fé, mesmo hoje em dia não é difícil ver coisa semelhante. Pois “ao mesmo tempo em que somos batizados, a alma brilha mais do que o sol, purificada pelo Espírito. E não apenas nós vemos a glória de Deus, como recebemos dela algum esplendor. Da mesma forma, com efeito, que a prata pura brilha quando colocada sob a luz do sol – não só por sua natureza mas porque ela reflete a irradiação solar – também a alma purificada e mais luminosa que toda prata do mundo recebe um raio de glória do Espírito que dela se aproxima para cobri-la de glória[18]”, desta glória que é conforme ao Espírito do Senhor[19]. Percebe você que eu lhe mostro isto da maneira mais sensível, partindo do testemunho dos apóstolos? Lembre-se de Paulo, cujas vestes operavam milagres[20]. Lembre-se de Pedro, cuja simples sombra tinha o mesmo poder[21]. Eles não poderiam fazer isto se não carregassem em si a imagem do Rei, se a luz que saía deles não fosse a luz inacessível, a tal ponto que suas vestes e suas sombras operavam milagres. Pois as vestes do Rei aterrorizam até os ladrões. Você também quer ver a imagem de Deus irradiar através do corpo? Foi dito: “Contemplando o rosto de Estevão, eles acreditavam ver a face de um anjo[22]”. Mas isto não é nada diante da glória que irradia dentro. Pois aquilo que Moisés tinha em seu rosto[23], revestia sua alma, e muito mais. A transfiguração de
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Moisés foi mais sensível, mas esta era incorpórea. Assim como os corpos luminosos espalham sua luminosidade sobre aqueles que estão próximos, transmitindo-lhes sua própria claridade, o mesmo acontece com os fiéis. É por isso que aqueles que provaram desta luz se distanciam da terra e se revestem das coisas do céu; mas, ora essa!, é bom estar aqui, e é amargo gemer. Pois nós desfrutamos de uma tal nobreza, e não sabemos o que dizer, tanto se perdem as coisas rapidamente, e por tanto medo que temos do que sentimos. Esta glória misteriosa e terrível, não permanece em nós mais do que um ou dois dias. Nós a extinguimos quando entramos no inverno desta vida, recusando seus raios sob a espessura das nuvens. Também foi dito: “Os corpos daqueles que agradaram a Deus se revestirão de tamanha glória que será impossível aos olhos da carne enxerga-los. Mas Deus fez com que nos tenham sido dados, no Antigo e Novo Testamentos sinais e traços obscuros destes corpos. Lá o rosto de Moisés irradiava tanta glória que era inacessível aos olhos dos Israelitas. Mas no Novo Testamento o rosto de Cristo brilhava muito mais[24]”. Ouviu as palavras do Espírito? Compreendeu o poder do mistério? Sabe você por quantas dores surge em nós a nova criação espiritual, perfeita no banho sagrado do batismo, e quais são os frutos, o cumprimento, as recompensas? Depende de nós fazer crescer ou diminuir esta graça sobrenatural, depende de nós manifestá-la ou torná-la obscura, tal como o faz aquilo que nos é peculiar: a tempestade de coisas desta vida, as trevas das paixões engendradas por estas coisas. Elas nos arrastam, de fato, como o inverno ou a torrente selvagem. Elas engolem a alma e não lhe permitem respirar nem contemplar a verdadeira beleza e a verdadeira beatitude, para as quais ela foi feita: as paixões a entenebrecem, ela é sacudida e destroçada sob o ruído e a fumaça dos prazeres, que a afogam nas suas águas. Mas o contrário destas coisas, ou seja, aquilo que nasce dos mandamentos deificantes, é dado aos que caminham não segundo a carne, mas segundo o Espírito. Pois foi dito: “Caminhem conforme o Espírito, e não cedam à concupiscência da carne[25]”. É aí que encontra seu bem e sua salvação aquele que, como a escada, leva consigo o cume e a extremidade dos degraus, o amor, que é Deus[26].
6. Que no santo batismo, a graça divina é concedida a nós gratuitamente. Se nós a encobrimos com as paixões, também podemos reencontrá-la em toda sua pureza cumprindo os mandamentos. Mas então, no seio de Deus, ou seja, no banho sagrado do batismo, recebemos o dom totalmente perfeito, a graça divina. E se, na sequência, pelo mau uso dos negócios temporais, pelos cuidados das coisas da existência e pelas brumas das paixões, recobrimos esta graça contra o que seria certo, ainda nos é possível, pelo arrependimento e pelo cumprimento dos mandamentos da obra divina, reencontrar rapidamente e adquirir outra vez esta benfazeja luz sobrenatural e nela enxergar a mais límpida revelação. Mas a graça nos é manifestada na medida da vigilância de cada qual na fé, e antes de tudo pelo socorro e a benevolência de nosso Senhor Jesus Cristo. Como diz são Marcos o Asceta: “Sendo Cristo o perfeito Deus, concedeu aos batizados a graça perfeita do Espírito Santo, à qual nada há a acrescentar [27]. Mas ela nos é revelada, nos é manifestada na medida em que trabalhamos nos mandamentos. E ela nos concede ainda a fé, até que cheguemos todos, na unidade desta, à medida da plenitude de Cristo [28]”. Se nos oferecemos então, renovados pelo novo nascimento nele, tudo isto lhe pertence, vem dele, e estava todo o tempo oculto em nós.
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7. Que aquele que conduz sua vida no caminho de Deus deve assumir todos os mandamentos. Que é preciso atribuir de certa forma aos primeiros, tanto quanto aos mais gerais dos mandamentos, a maior parte da obra. O começo e a raiz de toda esta obra, como dissemos, consiste em levar uma vida conforme aos mandamentos salutares. O fim e o fruto consistem em retornar à graça perfeita do Espírito que nos foi dada inicialmente pelo batismo, e que está em nós. Pois foi dito que Deus não volta atrás naquilo que nos concedeu[29]. Mas a graça se encontra recoberta pelas paixões, velada para a obra dos mandamentos divinos. Por meio do cumprimento dos mandamentos na medida do possível, cabe a nós nos esforçarmos de toda maneira para liberarmos em nós a manifestação do Espírito[30] e assisti-la claramente. “Sua Lei, disse a Deus o bem-aventurado Davi, é lanterna para meus pés e luz para meus caminhos [31]”. E: “O mandamento do Senhor é claro, ele ilumina os olhos”. E: “Eu me engajei em todos os seus mandamentos[32]”. E o Apóstolo bem-amado: “Quem guarda seus mandamentos permanece em Deus, e Deus nele[33]”. E: “Seus mandamentos não são pesados[34]”. E o Salvador: “Quem recebe meus mandamentos e os guarda, este me ama. Quem me ama, será amado por meu Pai. Eu o amarei e me revelarei a ele. Se alguém me ama, guardará minhas palavras, e meu Pai o amará. Nós viremos até ele, e nele faremos nossa morada”, e “quem não me ama não guarda minhas palavras[35]”. É sobretudo a estes primeiros mandamentos, que são os mais gerais e como que as matrizes de todos os outros, que se deve atribuir a maior parte de nossa obra. Assim poderemos, com Deus, atingir sem falta a meta que nos propusemos, tendo um bom começo até o final da impulsão: ou seja, a manifestação do Espírito[36]. 8. Que o princípio de toda obra amada por Deus é a invocação com fé do nome de nosso Senhor Jesus Cristo, e que esta obra é acompanhada da paz e do amor que se elevam da oração. O princípio de toda obra amada por Deus é a invocação com fé do nome salvador de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois foi ele mesmo que disse: “Sem mim, vocês nada podem[37]”. A obra também é a paz, pois foi dito que é preciso orar sem cólera e sem disputas[38]. Ela é amor, pois “Deus é amor”, e “quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele[39]”. Esta paz e este amor, não apenas fazem com que a prece seja agradável, como nascem e se elevam dela mesma. Como dois raios gêmeos de Deus, elas crescem e se completam.
9. Que por meio destas obras, por cada uma delas e pelas três, o conjunto de todos os bens nos é concedido abundantemente. É por intermédio destas obras, ao mesmo tempo por meio de cada uma delas e pelas três, que o conjunto de todos os bens nos é concedido em abundância e transborda. Pela invocação na fé do nome de nosso Senhor Jesus Cristo, esperamos com toda certeza receber a piedade e a verdadeira vida que está oculta nele[40], como de outra fonte divina eterna transbordante naquele que clama puramente em seu coração o nome do Senhor Jesus Cristo. Pela paz que ultrapassa toda inteligência e não tem limites [41], somos tornados dignos de nos reconciliarmos com Deus, e de nos reconciliarmos uns com os outros. Pelo amor, cuja glória é incomparável, pois ele é o fim e o fundamento da Lei e dos Profetas[42] – e o próprio Deus se chama amor[43] – nós nos unimos inteiramente a Deus. Então, nosso pecado é abolido pela justiça de Deus e pela adoção da graça que age paradoxalmente em nós no amor. Com efeito, foi dito que o amor cobrirá uma multitude de pecados[44]. E: “O amor perdoa tudo, atesta tudo, espera tudo, suporta tudo. O amor não passa jamais[45]”.
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10. Que nosso Senhor Jesus Cristo, no momento da paixão salvadora, deixou a seus discípulos, como um mandamento de adeus, uma herança divina. O mesmo aconteceu depois da ressurreição. Porque nosso Senhor Jesus Cristo é todo bondade e mansidão, quando chegou o momento de sua Paixão voluntária por nós, quando apareceu aos Apóstolos depois da Ressurreição e certamente quando retornou a seu Pai por natureza e nosso Pai pela graça – Pai verdadeiro e afetuoso – deixou a todos os seus, como mandamentos de adeus, consolações de bondade e, por assim dizer, garantias dulcíssimas e certas: a inalienável herança de Deus. Sabendo que se aproximava o tempo de sua Paixão salvadora, ele disse aos seus discípulos: “Aquilo que vocês pediram em meu nome, eu o farei[46]”. E: “Amém, eu lhes digo, tudo o que vocês pedirem ao Pai em meu nome eu lhes darei. Até agora vocês nada pediram em meu nome. Peçam e receberão, para que sua alegria seja perfeita”. E: “Neste dia vocês pedirão em meu nome[47]”. E logo após a Ressurreição: “Milagres acompanharão aqueles que creram. Em meu nome eles expulsarão os demônios, eles falarão línguas novas[48]”. O discípulo bem-amado acrescenta: “Jesus fez muitos outros sinais diante de seus discípulos, que não estão escritos neste livro. Estes foram escritos, para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, vocês levem a vida em seu nome[49]”. E o glorioso Paulo: “Diante do nome de Jesus todo joelho se dobrará[50]”. Da mesma forma, está escrito nos Atos dos Apóstolos: “Então, cheio do Espírito, Pedro disse: Que isto seja conhecido por todos e por todo Israel. É pelo nome de Jesus Nazareno que vocês crucificaram e que Deus ressuscitou de entre os mortos, é por seu nome que este homem se apresenta curado diante de vocês[51]”. E pouco depois: “Em nenhum outro senão nele está a salvação. Pois nenhum outro nome foi dado aos homens por meio do qual possamos nos salvar[52]”. E o Salvador: “Todo poder me foi dado no céu e sobre a terra[53]”. E ainda mais, quando o Senhor, o Deus Homem, disse aos Apóstolos antes da cruz: “Eu lhes deixo minha paz, eu lhes dou a minha paz[54]”. E: “Eu lhes disse essas coisas para que vocês tenham paz em mim[55]”. E: “Este é meu mandamento: amem uns aos outros[56]”. E: “Assim todos saberão que vocês são meus discípulos, se amarem uns aos outros[57]”. “Como o Pai me amou, assim também eu os amei. Permaneçam em meu amor. Se vocês guardarem meus mandamentos, vocês permanecerão em meu amor, assim como eu guardei os mandamentos de meu Pai e permaneci em seu amor[58]”. E, logo após a Ressurreição, ele voltou muitas vezes, em diferentes momentos, para dar a sua paz. Ele apareceu aos seus e disse: “A paz esteja com vocês[59]”. A Pedro, a quem ele havia confiado a autoridade dentre seus discípulos, ele disse três vezes, para fazê-lo entender que o cuidado com o rebanho estava relacionado ao fervente amor por ele, o Senhor Jesus Cristo: “Pedro, se você me ama mais do que os outros, apascente minhas ovelhas[60]”. Podemos dizer não sem razão que por meio destas três maravilhosas virtudes reveladas nascem em nós três outras virtudes admiráveis, que são a purificação da alma, a iluminação e a perfeição.
11. Que nestas três obras estão tecidas todas as virtudes. Se quisermos examinar a coisa com exatidão e clareza, encontraremos que por intermédio desta corda de três fios e como que indestrutível[61] se desenvolve e é tecido todo o amplo manto real das virtudes criadas por Deus. A vida em Deus é, com efeito, como uma cadeia preciosa, uma corda de ouro na qual com toda pureza uma virtude depende da outra, e onde todas se reúnem num mesmo lugar. Múltiplas, elas compõem uma obra única: deificar o homem que vive com elas na pureza; e, como os nós e laços desta trama, enriquecê-lo com a invocação salvadora do nome do Senhor bem-amado Jesus Cristo, na fé, na esperança e na humildade, e ainda com a paz e o amor; esta é árvore de três troncos que Deus plantou verdadeiramente, e que dá a vida. Quem ela alimenta a seu tempo e concede naturalmente seus frutos, não colhe a morte, como a primeira criatura, mas a vida eterna que jamais perece.
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12. Que o dom do Espírito Santo aos fiéis, por Deus Pai, e sua chegada, são dispensados em Jesus Cristo e em seu santo nome. Sim, o dom do Espírito Santo aos fiéis por Deus Pai, e sua chegada, são dispensados em Jesus Cristo e em seu santo nome. Como disse aos apóstolos o Senhor Jesus Cristo mais que divino, que ama as almas: “É bom para vocês que eu me vá. Porque se eu não for, o Consolador não virá para vocês. Mas se eu for eu o enviarei a vocês[62]”. E: “Quando vier o Consolador que eu enviarei do Pai, o Espírito da verdade que procede do Pai[63]”, e também: “O Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome[64]”.
13. Que é com razão que nossos santos Padres, e o Espírito Santo que neles reside, nos ordenam orar a nosso Senhor Jesus Cristo e pedir a sua piedade. Assim, é por isso que nossos gloriosos guias e nossos mestres nos ensinam sabiamente e com o Espírito Santo que neles reside, que antes de qualquer outra boa obra e qualquer exercício, todos – e em especial os que querem engajar-se pessoalmente no estado deificante da hesíquia, se consagrarem a Deus, romper com o mundo e viver esta hesíquia segundo a razão – devem orar ao Senhor e pedir resolutamente sua piedade; e adotar como obra e meditação contínuas seu nome santíssimo e dulcíssimo, trazendo-o sempre no coração, no intelecto e nos lábios; nele e com ele respirar, viver, dormir e velar, comer, beber; e, por assim dizer, esforçar-se para tudo fazer da mesma maneira. Pois quando o Senhor está ausente, tudo vai mal. Nada recebemos daquilo de que necessitamos. Mas estando ele presente em nós, tudo o que lhe é contrário é expulso. Nenhum dos bens nos falta, mesmo aquilo que é impossível de se atingir, como o próprio Senhor nos afirma: “Quem permanece em mim, com este eu estou. Ele carrega muitos frutos. Pois sem mim vocês nada podem[65]”. Portanto, esta realidade, este nome terrível que toda a criação venera, e que está acima de toda realidade e de todo nome[66], nós, os indignos, o invocamos na fé, e, desdobrando sobre ele de todos os modos os véus do presente discurso, vamos adiante naquilo que temos a dizer.
14. Que aquele que pretende marchar sem tropeçar sobre o caminho da hesíquia no Senhor, deve antes de tudo escolher a renúncia total, a submissão perfeita. Em nome de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo, que disse: “Eu sou a luz[67], a vida, a verdade e a via[68], a porta que abre para Deus Pai”, e “e alguém passar por mim será salvo, entrará, sairá e encontrará seu pasto[69]”, ou seja, a salvação, esteja atento às minhas palavras, aos conselhos que lhe damos com toda fidelidade. Antes de tudo com total renúncia, escolha a verdadeira e perfeita submissão que pede a santa revelação. Procure, esforce-se por encontrar um guia e mestre direito. Você saberá que ele é direito porque ele submeterá tudo o que diz ao testemunho das sagradas Escrituras. Ele leva uma vida que traz o Espírito e que está de acordo com suas palavras. Seu intelecto é elevado, mas seu coração é humilde, e ele é manso em tudo o que faz. Tal é o Mestre à imagem de Cristo: ele ensina as palavras que Deus nos transmitiu. Se você o encontrar, agarre-se a ele como um filho afetuoso de corpo e espírito, permaneça por inteiro naquilo que ele lhe der, siga suas ordens como se obedecesse ao próprio Cristo, com os olhos neste e não num homem, rejeitando toda incredulidade que surgir em si, toda incerteza, todo orgulho, todo desejo da vontade. Assim, simplesmente e sem afetação, siga o mestre de perto, guardando como um espelho em vista da clara certeza a extrema e pura obediência em relação ao iniciador: sua própria consciência. Mas, se acaso o demônio que odeia o bem semear em seu intelecto uma ou outra das coisas contrárias, afaste-se depressa, como da prostituição ou do fogo, e entre em si mesmo, responda sabiamente ao impostor que quer suborna-lo, a fim de que aquele que é levado não dirija ao que guia, mas que o que guia
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dirija o que é levado. Não sou eu que julgo quem comanda, mas ele que desvenda meu julgamento. Eu não sou seu juiz, ele é que é meu juiz, como diz João Clímaco[70], dentre outros. Com efeito, nada é mais verdadeiro do que esta conduta, ou seja, a obediência, desde que tenhamos resolutamente decidido abrir o manuscrito de nossas próprias faltas e nos inscrevermos no livro divino dos que são salvos. Segundo o bem-aventurado Paulo, o Filho de Deus, nosso Deus e Senhor Jesus, que tomou nossa forma por nós e sabiamente colocou em movimento a bem-aventurança paterna, abriu este caminho. Para além de toda auto-complacência humana, ele recebeu as palavras que lhe foram ditas pelo Pai. “Pois ele se rebaixou, disse Paulo, e obedeceu até a morte, e morte sobre a cruz. É por isso que ele a elevou e lhe deu um nome...[71]”. Quem então teria a ousadia, para não dizer a ignorância, de pretender alcançar a glória do Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo, e receber recompensa do Pai, sem ter escolhido caminhar sobre a mesma via que nosso Guia e nosso Mestre Jesus Cristo? Se o discípulo quiser se tornar como o Mestre, deverá ter em si toda a beleza da empreita e do modelo. Assim ele permanecerá de toda alma voltado para a conduta e a arte de viver daquele que o forma, ardoroso em imitá-lo a cada dia. Está escrito que nosso Senhor Jesus Cristo era submisso ao seu pai e à sua mãe[72]. O próprio Salvador disse de si mesmo: “Eu não vim para ser servido, mas para servir[73]”. Haverá alguém que queira viver de outro modo, na auto-complacência e na arbitrariedade, e sem guia? Julgará este homem caminhar segundo a razão na vida divina? Isto não é possível, porque ele ultrapassou os limites. É João Clímaco quem diz: “Assim como alguém que caminha sem guia erra facilmente de caminho, também aquele que pretende caminhar sobre a via única com toda independência se perde facilmente, ainda que conheça toda a sabedoria do mundo[74]”. É por isso que a maior parte – para não dizer todos – dos que pretendem caminhar sem receber conselhos semeia entre penas e suores, e no mais das vezes estes não fazem senão sonhar. Na verdade, eles colhem muito pouco. Alguns chegam a colher ervas daninhas ao invés do trigo. Eles seguem seu espírito de independência, comprazem-se consigo mesmos. Ora, nada é pior. João Clímaco o atesta, dizendo: “Vocês que tentaram se despojar entrando no estágio da confissão intelectual, vocês que querem trazer ao pescoço o jugo de Cristo, que tentam colocar sua própria carga sobre as costas dos outros, que se apressam em escrever o prêmio de suas aquisições, e que pretendem que, quanto a esta recompensa, são livres, vocês que, sustentados e nadando pelas mãos de outros, atravessam o grande oceano, saibam que escolheram avançar sobre um caminho duro que não leva longe e que traz consigo uma só e única ilusão, que se chama independência[75]”. Aquele que renunciou de uma vez por todas a esta, em tudo o que pode ser considerado bom, espiritual e agradável a Deus, chega antes de começar a andar. Pois a obediência é a recusa em acreditar, até o fim da vida, que trazemos em nós mesmos, por nós mesmos, qualquer bem. É por isso que, aprendendo você essas coisas com toda inteligência, dedicando-se a viver a boa parte[76], a parte indefectível, a da hesíquia que se eleva aos céus, siga aqueles que carregaram a boa ordem, como as leis lhe revelaram. Possa você assim descobrir a hesíquia. Pois, assim como a ação é o fundamento da contemplação, também a obediência é o fundamento da hesíquia. E não queira deslocar os limites que os Padres colocaram[77], conforme está escrito: “Pobre do homem sozinho[78]”. Se você começar colocando tais fundações, com o tempo você cobrirá com um teto glorioso a mansão edificada pelo Espírito. Quando o começo não é aprovado tudo é perdido. Ao contrário, quando o começo é aprovado, tudo é belo e certamente bem ordenado, mesmo que o contrário aconteça eventualmente, mas então é porque ele surge fora de nossa intenção e de nossa resolução.
15. Quais são os sinais da verdadeira submissão, de modo a que aquele que é verdadeiramente obediente e que os possui possa ser submisso sem a menor falha. É demorado e difícil falar de tal conduta. Os que chegam a viver assim o fazem por diferentes caminhos. É preciso que você imprima em si, como um selo, algumas pequenas coisas relativas a esta conduta. Se você
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as conservar como um modelo e uma regra infalíveis, você viverá santamente. Vamos dizer o seguinte: quem se dedica verdadeiramente à obediência, nos parece, deve conservar necessariamente as cinco virtudes. A primeira é a fé. Deve-se ter uma fé pura e sem sutilezas diante do pai espiritual, uma fé tal que se veja nele o próprio Cristo e se submeta a ele como a Cristo, como disse o Senhor Jesus: “Quem os escutar me escutará. Quem os rejeitar rejeitará a mim, e àquele que me enviou[79]”. João Clímaco lembra que tudo o que não vem da fé é pecado[80]. A segunda virtude é a verdade. Deve-se ser verdadeiro em obras e palavras, e na exata confissão dos pecados. Pois foi dito: “O começo de suas palavras é a verdade[81]”. E: “O Senhor exige a verdade[82]”. O próprio Cristo disse: “Eu sou a verdade[83]”. Nós o chamamos de “verdade em si”. A terceira virtude consiste em não fazer sua própria vontade. Pois foi dito: “Quem se consagra à obediência se perde se fizer a própria vontade”. É preciso diariamente dobrar esta vontade voluntariamente, ou seja, sem ser instado pelo mestre. A quarta virtude consiste em não contestar nem disputar em nada. Pois a contestação e a disputa não são próprias a quem se consagrou à piedade. São Paulo escreveu: “Se alguém pretende disputar, nós não temos este hábito, assim como as Igrejas de Deus[84]”. Ora, se os cristãos têm em comum evitar essas coisas, quanto mais os monges. É a própria ordem do Senhor: é preciso se submeter estritamente. Contestar e disputar são próprios de um pensamento misturado de dúvida e orgulho, conforme foi dito: “O monge orgulhoso contesta violentamente[85]”. O contrário – ou seja, não contestar nem disputar – vem da fé e da humildade. Enfim, a quinta virtude consiste no dever de manter uma confissão exata e sincera diante do pai espiritual. Pois no dia da tonsura junto ao terrível altar de Cristo nós prometemos diante de Deus e dos santos anjos termos por princípio e por fim, juntamente com a profissão e a aliança que nos ligam ao Senhor, revelarmos os segredos do coração. O divino Davi disse: “Irei ao Senhor confessar meu pecado... e você absolveu meu delito [86]”. E João Clímaco: “As feridas ultrapassadas já não pioram, mas são curadas[87]”. Quem guarda sábia e ciosamente as cinco virtudes que enumeramos, saiba sem dúvidas que logo receberá como garantia a beatitude dos justos. Tudo isto está ligado à obediência memorável. Tais são a raiz e o fundamento. Mas aprenda também quais são os ramos e os frutos, e qual é a copa. “Da obediência, acrescenta João Clímaco, nasce a humildade. Da humildade, o discernimento. Do discernimento, a clarividência. E desta, a visão profética[88]” Aí está a obra exclusiva de Deus, o dom maravilhoso e sobrenatural que ele concede aos que o servem com toda beatitude. Além de tudo o que dissemos, que isto fique claro: a humildade produzirá em você na mesma medida a estrita submissão; o discernimento, na medida da humildade; e assim por diante. Portanto, esforce-se quanto puder para percorrer sem falta o caminho da obediência: é assim que você chegará com segurança aos estágios mais elevados. Verifique se você manca ao ultrapassar os limites da submissão. Saiba que se isto acontecer você terá dificuldades para terminar o resto do percurso até a chegada, ou seja, até a vida de Cristo, e você não será coroado com o turbante concedido aos vencedores. Ao contrário, a obediência é um guia. Guarde consigo o que ela é e tudo o que dissemos, como o ponto que os marinheiros observam para manter o curso, a fim de que, mantendo sempre os olhos neste ponto, você possa atravessar o grande oceano das virtudes e alcançar a calma do porto da impassibilidade. Mesmo que a tempestade e as ondas o assaltem, é para lá que a submissão o conduzirá. Pois, dizem os Padres, o próprio diabo não é capaz de prejudicar aos que verdadeiramente obedecem. Para mostrar um pouco a grandeza do prêmio que merece a obediência admirável, lembraremos uma palavra do santo Padre. A chama luminosa da vida de Cristo, o novo Besaleel[89] da Escada celeste, disse: “Os Padres simbolizam a salmodia como arma, a prece como muralha, e as lágrimas puras como banho. E eles consideraram que a bem-aventurada obediência é a confissão sem a qual nenhum dos que vivem presa das paixões verá o Senhor[90]”. Isto basta, nos parece, para mostrar claramente e louvar a inimitável imitação da obediência três vezes bem-aventurada.
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Mas ainda teremos muito que aprender pela experiência, e a discernir se olhamos para os cumes, se examinamos a causa daquilo que nos fere e nos leva à morte, quando essas coisas não são cumpridas de início, e também qual é a causa da renovação e da imortalidade. Assim é que encontraremos na origem da corrupção a autossuficiência, a independência e a desobediência do primeiro Adão, de onde nasceram a rejeição e a transgressão do mandamento divino[91], e na origem da incorruptibilidade a obediência a seu Pai do segundo Adão, nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, e sua vontade em comum, de onde nasce a observância de seu mandamento: “Pois eu não falei por mim mesmo, disse o Salvador. Foi o Pai que me enviou quem me ordenou o que eu deveria dizer e explicar. E eu sei que seu mandamento é a vida eterna. Aquilo que eu digo, o faço como meu Pai disse a mim[92]”. Portanto, da mesma forma como a presunção é a raiz e a mãe de todos os que se seguiram ao ancestral, também no homem novo, no Deus Homem, Jesus Cristo, e naqueles que desejam viver como ele viveu, a origem, a fonte e o fundamento de todos os bens é a humildade. Vemos no mundo dos anjos divinos, no mundo sagrado do alto que nos domina, e também em nossa Igreja terrestre, a observância desta atitude e desta ordem. Mas os que se inclinam para longe desta lei que nos foi dada e que querem viver de modo desviado, para não dizer impudente, sabemos e cremos que eles irão se ferir, que serão banidos para longe de Deus, para longe da parte iluminada da Igreja celeste e católica, e que serão enviados para as trevas e o fogo da Geena. É isto que sofreram os maus obreiros que cercam Lúcifer e os faladores que seguiram os heréticos mentirosos. Aqui só repetimos o que dizem as palavras da divina Escritura. Por causa de sua autossuficiência e de seu orgulho, como foi dito, eles foram lamentavelmente rejeitados da glória e das delícias divinas e da santa assembleia. São os contrários, disse um sábio, que nos curam dos contrários. Pois a causa de todas as tristezas é a desobediência e a presunção. E a causa de todas as alegrias é a obediência e a contrição. Quem deseja viver sem faltas deve levar uma existência submetida a um Pai experimentado, que rejeitou todo erro, que recebeu sua autoridade da experiência do tempo e da ciência das coisas de Deus, e que adornou sua vida com a beleza do círculo das virtudes. Ele deve considerar as ordens e os conselhos deste Pai como a voz e a vontade de Deus. Com efeito, foi dito que a salvação vem dos numerosos conselhos que recebemos[93], e que aquele que não recebe conselho combate a si mesmo. Um ou outros dos Padres gloriosos talvez tenha podido, sem passar por esta ascese da submissão, alcançar a hesíquia deificante e a perfeição da vida divina. Estes receberam a revelação de Deus. Mas isto é raro. Ora, como foi escrito, aquilo que é raro não é a lei da Igreja, assim como uma andorinha não faz verão. Confie a si próprio à verdadeira submissão como a uma ciência que permite penetrar em toda a beleza da hesíquia. Deixe as coisas que aconteceram uma única vez por uma particular disposição de Deus e conforme-se com as resoluções comuns dos veneráveis Padres. É assim que você será considerado digno das recompensas dos que vivem segundo a regra. Ora, ninguém, sem experiência, escolheria tomar esta via sem um guia seguro, como não tentaria atravessar o oceano sem um piloto experiente, ou aprender uma arte ou uma ciência sem um mestre infalível. Assim, diante da arte das artes e da ciência das ciências, diante do caminho que conduz a Deus, diante deste oceano espiritual infinito que é a vida solitária semelhante à vida dos anjos, quem ousaria se consagrar ao início da ascese e imaginar que poderia levá-la a bom termo, sem um guia, um piloto, um Mestre testado e verdadeiro? Este homem, qualquer que seja, erra antes mesmo de haver começado [94], pois ele não segue a lei. Ao contrário, aquele que, antes mesmo de dar o primeiro passo, se submete ao que foi colocado pelos Padres, chegará certamente ao final. Com efeito, sem ser pelos Padres, como poderemos saber se marchamos naturalmente segundo a carne, ou se combatemos as paixões e os demônios? Pois os vícios, como foi escrito, estão ligados às virtudes, como se fossem seus vizinhos. Quem, fora os Padres, poderá educar em nós os sentidos do corpo e ritmar como uma harpa as potências de nossa alma? E, sobretudo, como nos será possível discernir as vozes e as
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revelações, as consolações e as visões de Deus? E as armadilhas, as ilusões e os fantasmas dos demônios? Numa palavra, como poderemos ser considerados dignos de chegar à união com Deus, às celebrações teúrgicas, aos mistérios, se não formos iniciados por um verdadeiro guia esclarecido? Verdadeiramente, isto não é possível. Quando vemos o vaso de eleição, o bem-aventurado Paulo, o iniciado dos mistérios inefáveis, a boca de Cristo, a luz do mundo, o sol comum, o mestre de toda a terra dos homens, ele que transmitiu e aprofundou o Evangelho com os demais apóstolos, dizer “tenho medo de correr ou haver corrido por nada[95]”; quando vemos nosso Senhor Jesus Cristo, a sabedoria em pessoa, dizer de si mesmo: “Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade do Pai que me enviou[96]”; quando ele diz do Espírito Santo vivificante: “Ele não falará por si mesmo, mas dirá aquilo que ouviu [97]”; por causa dessa boa ordem que mantém unidos o céu e a terra, somos tomados de um calafrio, de estupor e de angústia diante de nosso nada e de nossa indolência, particularmente entre aqueles dentre nós que escolheram estúpida e perigosamente, por tolice e orgulho, viver por sua conta e fora da obediência. Este combate é verdadeiramente terrível. Os ladrões são miríades. As armadilhas colocadas pelos assaltantes são inumeráveis. Os naufrágios estão além de toda medida. Dentre tantos seres, bem poucos são salvos[98]. Mas deixemos que marchem como queiram: “o fogo provará o que é a obra de cada um[99]”, como foi escrito. E: “Você dará a cada um conforme suas obras[100]”. É preciso não apenas querer, mas querer e viver como se deve. Possa o Senhor dar inteligência a todos[101]. Mas você, e qualquer um que queira viver segundo Deus e aprender a conhecer, como que se agarrando às franjas das parábolas, o tecido espiritual todo em ouro e a benfazeja obediência, apresse-se em encontrar um mestre correto e perfeito, como eu lhe mostrei. O alimento sólido, disse Paulo que tinha a Cristo em si, é o alimento dos perfeitos que têm, por seu estado, os sentidos exercitados no discernimento do bem e do mal[102]. Se é isto que você procura, entre penas e fé, você não perderá o objetivo proposto. Pois, diz a divina Escritura, quem pedir receberá, quem procura encontrará, a quem bater será aberto[103]. Tal mestre o iniciará na ordem e em sequência em todas as coisas necessárias, em todas as coisas que Deus ama, e, acima de tudo, ele o conduzirá às coisas mais espirituais, que primeiro agradam a Deus e que não são transmitidas a muitos, a partir do momento em que ele perceber que você se regozija em sua alma com a continência, a sobriedade, a simplicidade que você coloca no comer, no beber, nas suas vestes e em tudo o que o cobre, contentando-se com as coisas úteis e necessárias que convêm a cada momento, não se comprazendo com as coisas vãs e fúteis com que se glorificam os que vivem tolamente na negligência e na frivolidade, e que carregam a espada contra si próprios e contra sua salvação. O grande Apóstolo disse: “Contentemo-nos em ter o que comer e o que vestir[104]”. Mas você pede, você deseja aprender, você quer entender de nós por escrito aquilo que convém ao começo, ao meio e ao fim da vida em Cristo. A questão é louvável, mas a resposta é naturalmente difícil. Entretanto, Cristo estende sua mão direita à sua pergunta, e nós nos esforçaremos em aceder. Como sobre um fundamento sólido e firme construiremos sobre a venerável e perfeita obediência o templo glorioso de todo o edifício espiritual, ou seja, da hesíquia deificante. Eis o que diremos, servindo-nos das palavras dos Padres inspirados pelo Espírito, e nos apoiando sobre eles como sobre colunas inquebráveis.
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16. Que, em nome da fé ortodoxa, aquele que quiser, com toda fidelidade, viver a hesíquia segundo Deus, deve velar por estar cheio de boas obras. Que a fé é dupla. Que com a fé o hesiquiasta deve ser pacífico, viver sem distrações, permanecer sem inquietudes e cuidados, calar-se, ser calmo, dar graças por tudo, reconhecer sua própria fraqueza, suportar nobremente as tentações, esperar em Deus e dele aguardar o que nos é bom. A) O Salvador disse: “Não é quem me diz ‘Senhor, Senhor’ que entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus[105]”. Também você, bem-amado, se não for apenas em palavras que você ama a hesíquia deificante que desde já faz aparecer na luz o Reino dos céus e o Reino de Deus naqueles que os recebem com toda fidelidade, e que no século por vir se revelarão mais total e perfeitamente, mas se seu desejo de amor for real e verdadeiro, vigie, em nome da fé ortodoxa, para estar igualmente cheio de boas obras. De sua parte, que você possa estar em paz com todos, sem se deixar distrair ou inquietar, sem se preocupar com nada, que você possa ser silencioso, calmo, agradecido por tudo e consciente de sua própria fraqueza. Em resumo, mantenha seu olhar vigilante e sóbrio sobre as diversas e numerosas tentações que chegam a cada dia, combata com a paciência e a temperança a tempestade e a tormenta que o assaltam de todas as maneiras. Quanto à primeira e à segunda ordem – ou seja, em nome da fé ortodoxa adornar-se de boas obras – que o glorioso irmão de Deus seja para você um mestre claro, quando diz: “A fé sem obras é morta, assim como as obras sem a fé”. E: “Mostre-me sua fé com suas obras[106]”. Mas antes de tudo o guia e mestre de todos, nosso Senhor Jesus Cristo, já havia dito aos seus discípulos: “Vão e ensinem a todas as nações, batizem em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Aprendam a guardar tudo o que eu lhes ordenei[107]”. E o Teólogo diz que Deus reclama de todo homem que recebeu o batismo três coisas: a reta fé da alma, a castidade do corpo e a verdade da língua.
Que a fé é dupla. B) Note que, segundo a tradição divina, a fé é dupla. Uma é a fé geral dos cristãos ortodoxos, na qual fomos todos no princípio batizados, e com a qual partimos para o fim. Outra é a fé dos raros homens que, tendo cumprido todos os mandamentos deificantes, alcançaram a imagem e a semelhança, e, com isto, ricos da divina luz da graça, repousam no Senhor toda a sua esperança[108]. E de tal modo que, no momento da prece, segundo a palavra do Senhor, eles não sabem o que pedir a Deus [109], mas buscam com fé e – que bela recompensa! – recebem facilmente o que lhes convém. Os bem-aventurados adquiriram a fé certeira que provém das obras puras. Eles rejeitaram de si mesmos todo conhecimento, toda distinção, toda dúvida, toda preocupação. Inteiramente mergulhados na embriaguez divina da fé, da esperança e do amor a Deus, foram transformados pela excelente e bem-aventurada transformação da direita do Altíssimo, segundo o divino Davi[110]. Não cabe aqui nos estendermos sobre a primeira fé. Mas é oportuno falar da segunda fé que, como um fruto divino, floresce e nasce da primeira. Com efeito, a fé é como que a raiz e o cume da hesíquia que chamamos deificante. “Pois se você não crê, diz João Clímaco, porque você vive a hesíquia? [111]”. Também o divino Davi disse: “Eu acreditei, e por isso eu falei[112]”. E o grande apóstolo Paulo: “A fé é o fundamento daquilo que se espera, a prova daquilo que não se vê[113]”. E: “O justo viverá por sua fé[114]”. O próprio Senhor disse aos discípulos que lhe pediam que aumentasse sua fé: “Se vocês tivessem a fé do tamanho de um grão de mostarda, vocês diriam a esta amoreira: ‘Desenraize-se e plante-se no mar’, e ela obedeceria[115]”. E: “Se vocês tiverem fé e não duvidarem, não apenas farão o que fiz com a figueira, mas ainda, se disserem a esta montanha: ‘Levante-se e se atire ao mar’, ela os obedecerá. Tudo o que vocês pedirem pela prece e acreditando, vocês receberão[116]”. E: “Sua fé o salvou[117]”. Também santo Isaac escreveu: “A fé é mais sutil do que o conhecimento, assim como o conhecimento é mais sutil do que as
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coisas sensíveis”. Todos os santos considerados dignos de encontrar o modo de vida que os mergulhou no temor a Deus passaram, de fato, pelo poder da fé, pelas delícias deste mundo sobrenatural. Aquilo a que chamamos fé não consiste em crer na distinção das Pessoas divinas adoradas, na própria natureza extraordinária da Divindade, na admirável economia, por elevada que esta seja, que a trouxe para a humanidade e a fez tomar nossa natureza. A fé de que falamos se ergue da luz da graça na alma pelo testemunho da consciência. Ela conforta o coração resoluto na plena certeza da esperança, longe de toda presunção. Não a descobrimos naquilo que o ouvido escuta, mas ela mostra aos olhos espirituais os mistérios escondidos na alma. Ela dispensa a riqueza secreta de Deus escondida aos olhos dos filhos da carne e revelada no espírito aos que comem à mesa com Cristo e conversam sobre suas leis, como ele disse: “Se vocês guardarem meus mandamentos, eu lhes enviarei o Consolador, o Espírito de verdade que o mundo não pode receber. E ele lhes ensinará toda a verdade...[118]". E também: “Até que ele venha, ele que é o cumprimento dos mistérios, e que sejamos dignos de ver sua revelação, a fé celebrará entre Deus e os santos a liturgia destes mistérios inefáveis que nos foram dados como garantia pela graça do próprio Cristo, na própria fonte da verdade, no Reino dos céus, com os que o amam[119]”.
Que devemos ser pacíficos. C) Quanto à terceira ordem – estar em paz com todos – que a palavra do bem-aventurado Davi seja para você uma clara exortação; e que, da mesma forma, a de Paulo que tinha Cristo em si ressoe mais forte do que uma trombeta. Um disse: “Uma grande paz está naqueles que amam a lei, e eles não tombarão[120].” [121]E: “Eu permaneci pacífico entre os que desprezavam a paz”. E: “Busque a paz e persiga-a[122]”. O outro disse: “Procurem a paz com todos e a santificação, sem as quais ninguém verá o Senhor[123]”. E: “Se isto for possível, estejam em paz com todos[124]”.
Que devemos viver longe de todas as distrações. D) A quarta obra – viver longe de todas as preocupações – lhe será mostrada por santo Isaac, que disse: “Se a concupiscência nasce dos sentidos, que se calem aqueles que confessam manter a paz no intelecto enquanto levam uma vida agitada[125]”. E: “Não comungue da vida daqueles que se agitam[126]”.
Que é preciso estar sem inquietudes e cuidados. E) Que o ensinamento da quinta ordem – permanecer sem inquietudes e sem cuidados com as coisas boas ou más – lhe seja dado pelo que disse o Senhor nos Evangelhos: “Por isso eu lhes digo: não fiquem preocupados com a vida, com o que comer; nem com o corpo, com o que vestir. Afinal, a vida não vale mais do que a comida? E o corpo não vale mais do que a roupa? Olhem os pássaros do céu: eles não semeiam, não colhem, nem ajuntam em armazéns. No entanto, o Pai que está no céu os alimenta. Será que vocês não valem mais do que os pássaros? Quem de vocês pode crescer um só centímetro, à custa de se preocupar com isso? E por que vocês ficam preocupados com a roupa? [127]”. E logo depois: “Portanto, não fiquem preocupados, dizendo: O que vamos comer? O que vamos beber? O que vamos vestir? Os pagãos é que ficam procurando essas coisas. O Pai de vocês, que está no céu, sabe que vocês precisam de tudo isso. Pelo contrário, em primeiro lugar busquem o Reino de Deus e a sua justiça, e Deus dará a vocês, em acréscimo, todas essas coisas. Portanto, não se preocupem com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações. Basta a cada dia a própria dificuldade[128]”. Santo Isaac disse: “Se você não estiver vazio de cuidados, não procure a luz em sua alma, nem a calma e o repouso na vaidade dos sentidos [129]”. E João Clímaco: “Um único fio de cabelo perturba o olhar, e o menor cuidado destrói a hesíquia. Pois a
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hesíquia é o retiro dos pensamentos e a renúncia aos cuidados da razão. Quem realmente recebeu a hesíquia não se preocupará com a carne. O Senhor que prometeu isto é fiel[130]”.
Que é preciso estar em silêncio. F) Quanto à sexta ordem – calar-se – é a continuação do discurso que nos obriga a falar. Santo Isaac diz a este respeito: “Quem fecha sua boca ao falatório guarda seu coração das paixões. E quem purifica seu coração das paixões contempla o Senhor a toda hora[131]”. E: “Se você faz uma parte de todas as obras da vida social e uma parte de silêncio, você verá que esta pesa mais[132]”. E: “Ame o silêncio mais que tudo, pois ele o aproxima do fruto. A língua é impotente para explicar. Obriguemo-nos ao silêncio. Então, dele nascerá em nós algo que nos conduzirá a ele mesmo. Que Deus lhe permita sentir esta coisa que vem do silêncio. Se você começar a levar esta vida, eu não sei, a partir dela, que luz se levantará em você”. E: “O silêncio é o mistério do século futuro. As palavras são o órgão deste mundo[133]”. É assim que a voz divina prescreveu a santo Arsênio: “Arsênio, fuja, cale-se, viva a hesíquia e você será salvo[134]”.
Que é preciso estar calmo. G) No que diz respeito à sétima ordem – viver a hesíquia – você pode confiar no que expõem o grande Basílio e também santo Isaac. Um diz: “A hesíquia é o começo da purificação da alma[135]”. E o outro: “O objetivo da hesíquia é o silêncio longe de tudo[136]”. Com essas palavras, um aponta brevemente o começo da hesíquia e o outro o fim. Está dito no Antigo Testamento: “Você pecou? Fique em repouso[137]”. E: “Detenha-se, e saiba que eu sou Deus[138]”. João Clímaco diz: “A obra que conduz à hesíquia é em primeiro lugar a ausência de preocupações de qualquer tipo, boas ou más. Pois quem abre para as primeiras, acaba caindo nas segundas. Depois vem a prece ativa. Enfim o trabalho do coração, que ninguém violenta. É naturalmente impossível a alguém que não a prendeu as letras estudar nos livros. Mas é mais impossível ainda a quem não aprendeu a primeira parte da obra alcançar com razão às duas outras[139]”. E santo Isaac: “O amor à hesíquia é a espera contínua da morte. Quem entra na hesíquia fora desta meditação não pode suportar aquilo que é preciso aguentar e manter de toda maneira”.
Que é preciso dar graças por tudo. [140]
H) Quanto à oitava ordem – dar graças por tudo – basta que você tenha por guia o divino apóstolo Paulo, que ordena: “Deem graças por tudo[141]”. E santo Isaac: “A ação de graças daquele que recebe leva o que dá a dar dons maiores do que os primeiros. Quem não dá graças pelas pequenas coisas é mentiroso e injusto nas maiores[142]”. E: “Quem abre ao homem os carismas de Deus é um coração levado à contínua ação de graças. Mas abrir a alma à tentação significa que temos o coração sacudido por murmúrios”. E: “Uma boca que dá graças continuamente recebe a benção de Deus”. E: “A graça desce no coração que permanece em ação de graças[143]”.
Que é preciso conhecer a própria fraqueza. I) Ganha muito, aquele que chegou a conhecer sua própria fraqueza. Esta é a nona ordem. Que ele escute e aprenda o décimo-sexto salmo do divino Davi, onde é dito: “Tem piedade de mim, Senhor, porque sou fraco[144]”. E em outra parte: “Eu sou um verme e não um homem, a vergonha dos homens e o rejeito do povo[145]”. E santo Isaac: “Bem-aventurado o homem que conhece sua própria fraqueza. Este conhecimento é o fundamento, a raiz, o começo de toda bondade. Quando aprendemos, de fato, quando
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em verdade sentimos nossa própria fraqueza, encerramos nossa alma longe de toda vaidade que obscurece o conhecimento, recolhemos em nós o tesouro da vigilância[146]”. E: “O homem que chegou a conhecer a medida de sua fraqueza alcançou a perfeição da humildade[147]”.
Que é preciso suportar nobremente as tentações. J) O último capítulo do discurso, o décimo, que encerra nossa exposição, estabelece como suportar nobremente as diversas tentações de todos os tipos que vão assaltar, e como resistir a elas com paciência e perseverança. Escute o que diz a respeito disto a Santa Escritura. Paulo, que tinha Cristo em si, disse: “Irmãos, não temos que combater o sangue e a carne, mas as dominações, os poderes, os príncipes do mundo que mantêm as trevas deste século, os espíritos do mal nos lugares celestes[148]”. E: “Se vocês não têm a experiência do castigo que receberam, vocês são bastardos e não filhos[149]”. E: “O Senhor castiga aqueles a quem ama. Ele castiga aos que aceita como filhos[150]”. E o irmão de Deus: “O homem que não tem a experiência da tentação não é testado[151]”. E santo Elias de Ecdicos: “É permitido a todo cristão ter uma fé reta em Deus, viver fora de todas as preocupações, mas também esperar continuamente e receber a tentação para que, quando ela chegar, não ser surpreendido, não ficar perturbado, mas suportá-la dando graças pela pena e a aflição, e assim compreender o que ele diz quando canta com o profeta: ‘Salve-me, Senhor, prove-me’. Ele não diz: seu castigo me destruiu, mas: ‘Ele reergueu no fim’.[152]” Também não procure a causa das tentações, não se inquiete buscando de onde elas vêm. Apenas reze a Deus para suportá-las dando-lhe graças, como diz são Marcos o Eremita: “Quando a tentação chegar, não procure saber por que ou de onde ela vem. Tente suportá-la dando graças e sem ressentimento”. E ainda: “Se não é fácil encontrar alguém que leve uma vida agradável sem tentações, é preciso dar graças a Deus por tudo o que acontece”. E: “Toda aflição permite verificar o movimento que conduz a vontade, seja à direita, seja à esquerda. É por isso que a aflição que chega é chamada de tentação. Ela dá a quem a recebe a experiência das vontades ocultas[153]”. Também santo Isaac, entre outros, diz o seguinte: “A tentação é útil a todos os homens. Pois se ela foi útil a Paulo, toda boca deve se calar, e que todo mundo se saiba culpado diante de Deus[154]. Os que combatem são tentados para acrescentar às suas riquezas. Também os que se deixam levar pela vaidade, a fim de que se guardem daquilo que os prejudica. Os que dormem, a fim de que disponham a despertar. Os que estão longe, para que se aproximem de Deus. Os que vivem em casa, para que permaneçam com toda confiança. Todo filho que não é testado não recolhe a riqueza da casa de seu pai, não recebe dele nenhuma ajuda. É por isso que Deus começa primeiro tentando-o e testando-o, para depois revelar-lhe seus dons. Glória ao Mestre que por meio dos remédios mais amargos nos traz as delícias da saúde. Não há homem que não se sinta oprimido quando ele chega. E não há homem a quem não pareça amargo o tempo em que bebe o veneno das tentações. Mas sem estas coisas é impossível adquirir uma boa constituição”. E: “Não cabe a nós suportar. Como poderia o vaso de argila suportar a água que é vertida nele, se não tivesse antes endurecido no fogo divino? Se nós nos submetermos orando humildemente numa tensão contínua, também a nós será concedido suportar em Jesus Cristo nosso Senhor[155]”. Está escrito na Sabedoria do Eclesiastes: “Meu filho, se você quer servir ao Senhor seu Deus, prepare sua alma para as tentações [156]”. E: “Torne direito seu coração, persevere, não se deixe levar quando estiver angustiado[157]”.
Que é preciso esperar em Deus e dele esperar tudo o que é bom. Jogue a âncora da esperança para Deus que pode salvá-lo, e dele você receberá para seu bem a libertação das tentações. Com efeito, foi dito: “Deus é fiel e não permitirá que sejamos tentados além do que podemos suportar. Junto com a tentação ele nos fornecerá os meios de escapar dela [158]”. E: “A aflição engendra a perseverança, a vitória na provação; e esta vitória, a esperança. Ora, a esperança não
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engana[159]”. E: “Aquele que perseverar até o fim será salvo[160]”. E: “Por sua perseverança, vocês salvarão suas almas[161]”. O irmão de Deus disse igualmente: “Considerem, meus irmãos, que é uma grande alegria ser exposto a diversas tentações, sabendo que a prova de sua fé engendra a paciência. Mas é preciso que a paciência realize perfeitamente sua obra, a fim de vocês próprios sejam perfeitos e completos, sem falhar em nada[162]”. E: “Bem-aventurado o homem que suporta com paciência a tentação. Quando ele for testado, ele receberá a coroa da vida, que o Senhor prometeu aos que o amam[163]”. E: “Os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados à glória que virá e que será revelada a nós[164]”. E: “Eu pus minha paciência no Senhor, e ele veio a mim, escutou minha prece, livrou-me do abismo do mal e do pântano lodoso. Ele pôs meus pés sobre um rochedo e dirigiu meus passos. E colocou em minha boca um canto novo, um louvor ao nosso Deus[165]”. O bem-aventurado Simeão o Metafrasto escreveu: “A alma presa nos laços do amor a Deus jamais considera estar sofrendo. Ela faz suas delícias das coisas dolorosas, e floresce quando lhe fazem mal. Quando ela não sofre nada que a aflige por aquele a quem ama, é então que ela se sente dolorosa. Ela foge do conforto como de uma danação”.
17. Do temor a Deus. Que ele é duplo: um é o temor dos noviços, outro o temor dos perfeitos. Não podemos deixar de lembrar agora o duplo temor divino, mesmo que tenhamos julgado melhor terminar os dez capítulos precedentes falando apenas do temor perfeito, invertendo assim de certa maneira a ordem do primeiro temor. O temor foi colocado pelos Padres depois da fé.
Do primeiro temor, o temor dos noviços. Saiba então, bem-amado, que o temor divino é duplo: um é o dos noviços, outro o dos perfeitos. Do primeiro, está escrito: “O temor do Senhor é o começo da sabedoria[166]”. E: “Venham, filhos, escutemme. Eu lhes ensinarei o temor do Senhor[167]”. E: “Pelo temor do Senhor, todo homem se desviará do mal[168]”. E: “O temor é a observância dos mandamentos[169]”. Santo Isaac disse: “O temor a Deus é o começo da virtude. Diz-se que ele nasce da fé[170]”. E: “Ele é semeado no coração quando o intelecto se separa da distração do mundo para reunir os pensamentos que impulsionam a dispersão e recolhe-los na meditação contínua do restabelecimento futuro”. E: “O temor a Deus é o começo da verdadeira vida do homem. Ele não aceita residir na alma daqueles que se dispersam”. E: “Tenha a sabedoria a fundamentar seu caminho sobre o temor a Deus. Em poucos dias você estará estabelecido nas portas do Reino, fora do movimento circular”.
Do segundo temor, o temor divino perfeito. Quanto ao segundo temor, o temor divino perfeito, foi dito: “Bem-aventurado o homem que teme ao Senhor e que coloca toda sua vontade nos mandamentos[171]”. E: “Felizes os que temem ao Senhor e caminham sobre suas vias[172]”. E: “Temam ao Senhor, todos os seus santos. Pois nada falta àqueles que o temem[173]”. E: “Vejam, assim será bendito o homem que teme ao Senhor[174]”. E: “O temor ao Senhor é puro, ele permanece pelos séculos dos séculos[175]”. São Pedro Damasceno escreveu: “O sinal do primeiro temor é a aversão ao pecado, é voltar-se contra ele, como alguém que foi ferido por um animal selvagem. Mas este é o sinal do temor perfeito: amar a virtude e recear se desencaminhar. Pois ninguém é imutável. Em todas as coisas desta vida, devemos sempre temer a queda. Por isso, também você, que ouve estas coisas com inteligência, esforce-se, com todos os de
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que falamos, para sempre trazer consigo o primeiro temor. Pois ele é como um tesouro mais seguro do que todas as boas ações. Se você agir assim, você guiará seus passos[176] para a obra de todos os mandamentos de nosso Senhor Jesus Cristo. E avançando neste caminho você adquirirá o temor perfeito e puro[177], no desejo das virtudes e do amor de nosso bom Deus[178]”.
18. Que graças aos mandamentos e à fé em nosso Senhor Jesus Cristo, fé esta que passa pelos mandamentos, quando chegar o momento não devemos nada tentar preservar desta vida. Quanto ao que dissemos, é preciso ainda saber o seguinte: graças aos mandamentos do Senhor Jesus Cristo, que dispensam a vida, e graças à fé que passa por eles, devemos, quando chegar o momento, perder até a alma com alegria. Vale dizer que não devemos tentar preservar nossa vida. É isto que o próprio Senhor Jesus Cristo disse: “Quem perder sua alma por minha causa e por causa do Evangelho, se salvará[179]”. É preciso crer sem hesitar, e não duvidar que o Deus Homem, Jesus o Salvador, é ele mesmo a ressurreição, a vida, e tudo o que conduz à salvação, como ele próprio disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morto, viverá”. E: “Quem crer e viver em mim não morrerá jamais”. [180]E: “Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho único para que quem nele crer não se perca, mas tenha a vida eterna[181]”. E: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância[182]”. Portanto, faça o seguinte: esqueça o que ficou para trás. Volte-se para o que está adiante[183]. Siga seu caminho com Jesus Cristo nosso Senhor, sem se voltar. Mas aqui é bom, nos parece, e muito útil, expor primeiro um método natural que o bem-aventurado Nicéforo o Grande, que nos ensina como penetrar no coração pela respiração, e que de certo modo tende a recolher o intelecto. Assim, com a ajuda de Deus, a continuação do presente trabalho progredirá em boa ordem. Entre muitas outras coisas que extraem sua autoridade dos testemunhos escritos dos Santos, este homem divino disse o seguinte:
19. Método natural referente à entrada e saída do sopro no coração pela respiração, e sobre a prece que, com este, produz sua obra em nós. Esta prece é: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim. Este método leva de qualquer maneira ao recolhimento do intelecto. “Saiba, irmão, que o sopro que respiramos é o próprio ar. E que só respiramos este ar por causa do coração. Com efeito, o coração é a fonte da vida e do calor do corpo. Assim, o coração atrai o sopro a fim de lançar para fora seu próprio calor pela expiração e garantir para si uma boa temperatura. O autor, ou melhor, o servidor desta ordem, é o pulmão. Ele foi feito poroso pelo Criador. Como um fole, ele faz o ar entrar e sair sem esforço. Assim, o coração, atraindo o frio do sopro e rejeitando o calor, mantém sem jamais transgredir a ordem segundo a qual ele foi regulado para manter vivo o ser”. “Portanto, irmão, sente-se na calma de sua célula e, recolhendo todo o seu intelecto, faça-o entrar pelo caminho das narinas, por onde o sopro penetra no coração. Empurre-o e force-o a permanecer com o sopro inspirado dentro do coração. Quando ele penetrar aí e já não estiver sem a alegria e a graça, acontecerão a você as coisas subsequentes. Do mesmo modo como um homem que partiu para longe de sua casa exulta de alegria quando retorna a ela, porque pode rever seus filhos e sua esposa, também o intelecto, quando se une à alma, se enche de prazer e de regozijo inefáveis”. “Então, irmão, habitue o intelecto a não escapar do coração facilmente. De fato, no começo ele não se deixará capturar e prender no seu interior. Mas depois que ele se habituar, ele não mais cobiçará os movimentos do exterior. Pois o Reino de Deus está em nós[184]. Àquele que o contempla no coração e que o busca através da prece pura, todas as coisas do exterior parecem desprezíveis e detestáveis”.
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E ainda: “Eis é uma coisa que você precisa aprender, quando seu intelecto chegar lá: você não deve deixálo no silêncio e na inércia, mas deve dar-lhe como trabalho e como exercício contínuo a oração: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’. Que ele jamais cesse de dizê-la. Pois a prece o defenderá de toda dispersão. Ela impedirá que ele seja submetido ou tocado pelos ultrajes do inimigo. Ela o elevará a cada dia mais no amor e no desejo de Deus[185]”. Este é o objetivo do bem-aventurado Padre: que, de sua desorientação costumeira, de seu cativeiro, de sua agitação, o intelecto, sob a ação deste método natural, retorne à atenção; que pela atenção ele se ligue novamente a si mesmo e assim se uma à prece; que então, junto com a prece, ele desça até o coração e nele permaneça para sempre. Um outro sábio de Deus, explicando esta prática e partindo naturalmente de sua experiência nesta obra santa, disse o seguinte:
20. Do método da respiração natural e da invocação do Senhor Jesus Cristo que acompanha a respiração. “Eis uma coisa que deve ficar bem clara para quem deseja aprender: se, quando o sopro entra, instruímos nosso intelecto a descer com ele, então saberemos precisamente que o intelecto, uma vez descido, não sai mais se houver renunciado a todo pensamento, vendo-se uno e nu, sem nenhuma outra recordação ao seu redor que não a invocação de nosso Senhor Jesus Cristo. Mas se ele deixar o coração, ele voltará às coisas de fora, à memória múltipla, e se dividirá ainda que não queira[186]”.
21. Que são João Crisóstomo, assim como outros antigos Padres, ordena orar em Jesus Cristo nosso Senhor, e de rezar no interior do coração. Ele diz que esta oração é: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim. Também o grande Crisóstomo disse: “Eu lhes imploro, irmãos, jamais transgridam ou desprezem a regra da oração”. E: “Quer coma, quer beba, quer se sente ou caminhe, faça o que faça, o monge deve dizer continuamente: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’”. E: “Que o nome do Senhor, descendo à profundeza do coração derrube o dragão que tomou as pastagens, que ele salve a alma e lhe devolva a vida. Permaneça sem parar no nome do Senhor Jesus, para que o coração absorva o Senhor e que o Senhor absorva o coração, e que os dois se tornem um”. E ainda: “Jamais separem de Deus seu coração. Permaneçam nele e mantenham-no sempre com a lembrança de nosso Senhor Jesus Cristo, até que o nome do Senhor se encontre aí firmemente plantado e que o coração não considere outra coisa, a fim de que Cristo seja exaltado em vocês[187]”.
22. Da lembrança de Jesus pela respiração e a prece no interior do coração. João Clímaco escreveu: “Que a lembrança de Jesus se ligue à sua respiração. Então você conhecerá o socorro da hesíquia[188]”. E santo Hesíquio: “Se você quiser realmente cobrir de vergonha os pensamentos, viver sem mal a hesíquia, possuir um coração sóbrio e vigilante comodamente, que a prece de Jesus se uma à sua respiração. Você verá a coisa surgir em poucos dias[189]”.
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23. Que aquele que pretende ser sóbrio e vigilante em seu intelecto, em particular o noviço, deve se sentar no momento da prece num cômodo calmo e escuro, para recolher assim naturalmente, ainda que de forma parcial, o intelecto e o pensamento. A tudo o que foi revelado, que veio do alto, àquilo que os santos Padres anunciaram ao longo dos testemunhos com os quais nos explicaram como devemos, seguindo a inspiração até dentro do coração, por meio da prece, da meditação, da sobriedade e da vigilância, permanecer em nosso Senhor Jesus Cristo e em seu santo Nome salvador rogando por sua piedade, devemos acrescentar o seguinte: Os divinos Padres, os Mestres, que tiveram a experiência desta obra bem-aventurada, ensinam e prescrevem aos que se aplicam com todo seu intelecto em ser sóbrios e vigilantes em seu coração, e em particular aos noviços, sentarem-se sempre num lugar calmo, sobretudo no momento fixado para a prece, e num canto sem iluminação. Pois a visão dos olhos, o olhar que se projeta sobre as coisas que vemos e observamos, distrai naturalmente o intelecto, divide-o e o modifica. Mas se, como dissemos, o encerramos numa cela calma e escura, ele deixa de ser dividido e modificado pelo olhar. Assim, quer queira, quer não, ao menos parcialmente, o intelecto é conduzido à serenidade, ele se habitua a se recolher sobre si mesmo, como diz o grande Basílio: “O intelecto que não vagueia fora, que não escoa pelo mundo através dos sentidos, retorna para si mesmo[190]”.
24. Que o intelecto é libertado de toda distração acima de tudo pela invocação no interior do coração e com fé de nosso Senhor Jesus Cristo e de seu santo Nome. O método natural da respiração no interior do coração, o recolhimento num lugar calmo e sombrio e outras coisas semelhantes, não passam de recursos auxiliares.
Mas antes dessas coisas, ou melhor, antes de todas as coisas, o intelecto chega ao termo de tal combate pelo socorro da graça divina, que lhe é dado na fé pela pura e simples invocação do simples nome de nosso Senhor Jesus Cristo do fundo do coração, mas não pelo simples método natural – a respiração, ou a imobilidade num lugar calmo e sombrio – que acabamos de expor. Pois os Padres divinos não viram nestas coisas mais do que um recurso auxiliar para recolher o intelecto, para fazê-lo retornar a si mesmo, fora de sua agitação natural, e lhe fornecer a atenção. É assim, como dissemos, que a prece pura, contínua e recolhida, nasce no intelecto. É o que diz também são Nilo: “A atenção que busca a prece encontrará a prece. Pois a prece segue a atenção, se existe algo que siga[191]”. Devemos, assim, nos aplicar à atenção. Mas já dissemos o bastante. Você, filho, se quiser a vida, se desejar com todo seu amor ver os dias felizes[192], viva no seu corpo como se fosse incorpóreo, submeta a sua vida a uma regra e siga-a.
25. Como o hesiquiasta deve passar o tempo entre o entardecer e a aurora. Início do desenvolvimento desta instrução. Ao por do sol, após haver pedido a ajuda do Senhor infinitamente bom e todo-poderoso, sente-se sobre seu leito em uma cela calma e escura. Recolha seu intelecto para longe de seu redemoinho e de sua errância habitual por aí. Empurre-o gentilmente para dentro do coração inspirando. Retenha nele a prece: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’. Então, junto com o sopro, e como que unidas a ele, faça entrar as palavras da prece, como diz santo Hesíquio: “Uma à sua respiração a sobriedade, a vigilância e o nome de Jesus, a meditação contínua da morte e a humildade. Pois ambos são salutares[193]”.
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Com a oração e as outras coisas de que falamos coloque também a lembrança do Juízo e da retribuição das ações boas e más. Considere com toda sua alma que você é mais pecador do que todos os homens, mais maldito que os próprios demônios, e que está condenado à danação eterna. Que o pensamento destas coisas o leve à compunção, ao luto, sós. Mas se você ainda não recebeu o dom das lágrimas, combata, peça com o coração humilde para adquiri-lo. Pois é pelas lágrimas que somos purificados das paixões e de toda sujeira. É por meio delas que tomamos parte nas coisas da doçura e da salvação, como diz João Clímaco: “Assim como o fogo destrói o junco, as lágrimas puras retiram toda mancha da carne e do espírito [194]”. E um outro Padre: “Quem quiser destruir os vícios o fará chorando. E quem quiser adquirir as virtudes o fará chorando[195]”. Se você não sente a compunção, saiba que você tem vaidade. Pois esta impede a alma de se recolher. Se as lágrimas não veem, permaneça sentado durante uma hora, atento a esses pensamentos e à oração. Depois se levante, cante com atenção as pequenas completas[196]. Sente-se novamente, retenha a prece o quanto puder, com pureza, com calma, sem nenhuma preocupação, sem nenhum pensamento qualquer que seja, com toda sobriedade e vigilância, por cerca de meia hora, conforme aquele que disse: “Na oração, fique fora de todas as outras coisas, sem a respiração nem o alimento, se você quiser ficar só com o intelecto[197]”. Então trace sobre si mesmo o sinal da cruz venerável e vivificante. Trace-o também sobre seu leito. Sente-se, pense nas alegrias e nos castigos futuros, no tempo que escoa, no engano das coisas temporais, e, certamente, na necessidade súbita e comum, a morte, no terrível Julgamento antes e depois do fim. Repasse brevemente na memória todas as faltas que você possa ter cometido, peça o perdão por elas com todo fervor, reveja precisamente como você passou este dia, deite-se, retenha em si a oração. Foi dito: “Que a lembrança de Jesus partilhe seu sono[198]”. Durma cinco ou seis horas. Ou melhor, durante a noite, tenha o sono que lhe couber.
26. Como se deve passar o tempo da aurora até a manhã. Quando você se levantar, glorifique a Deus, chame-o em seu socorro assim que puder, e comece o dia com a primeira obra: orar calmamente no coração, com toda pureza, durante uma hora. Este é o momento em que o intelecto está naturalmente mais sereno, mais calmo. É a ordem que recebemos: oferecer a Deus o sacrifício daquilo que temos de primeiro e de melhor[199], ou seja, voltarmos diretamente, na medida em que pudermos, para nosso Senhor Jesus Cristo, nosso primeiro pensamento, por intermédio da prece do coração, a prece pura. São Nilo disse: “Cumpra sua prece, oferecendo a Deus o fruto do primeiro pensamento[200]”. Depois disso, cante o ofício das Noturnas. Se neste momento, de fato, você não puder oferecer as primícias, por não estar firme em ter alcançado a hesíquia mais perfeita, ou por qualquer outra razão, como costuma acontecer aos que dão seus primeiros passos nessa obra, e mesmo – mais raramente – com os que já estão mais avançados mas ainda não atingiram a perfeição (pois os perfeitos tudo podem em Cristo que lhes dá força[201]), e então se levante, afaste o sono, desperte o mais que puder, e comece por cantar o ofício das Noturnas com toda atenção e toda consciência. Depois se sente, reze em seu coração, puro, recolhido, como já lhe mostramos, durante uma hora e até mais se o Dispensador dos bens lhe conceder isto. É o que disse João Clímaco: “Durante a noite, dedique-se o mais possível à oração e um pouco à salmodia. E durante o dia, assuma o que puder fazer[202]”. Se você sustentar este combate mas for negligente, ou se sentir a acídia, se seu intelecto for perturbado por qualquer evento, levante-se, desperte, retome a prece. Sente-se, vele sobre a oração, como escrevemos, aplicando-se sempre em reencontrar, pela prece pura, a pureza de Deus. Depois se levante, cante o
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hexapsalmo, o salmo cinquenta e o cânon a gosto, mas como toda consciência. Sente-se novamente, permaneça desperto, reze com toda pureza por meia hora. Levante-se para cantar os hinos, a doxologia habitual, a primeira hora e depois desta a despedida. Que aquilo que seus lábios proferem esteja numa altura tal que só seus ouvidos escutem. Pois recebemos a ordem de oferecer a Deus os frutos dos lábios[203], dando graças com toda nossa alma, com todo nosso intelecto, a nosso Deus que ama o homem, que vela por ele com toda sabedoria, que em sua infinita piedade nos concede ter atravessado sem mal o oceano da noite passada e ver o estágio radioso do dia presente. É preciso, assim, que imploremos com fervor para que ele nos permita atravessar em calma a negra e selvagem tempestade dos demônios e das paixões, e que ele tenha piedade de nós.
27. O que se deve fazer da manhã até o almoço. Da manhã até o almoço, tanto quanto você puder, consagre-se inteiramente a Deus. Com o coração contrito peça-lhe que venha em auxílio à sua fraqueza, sua negligência, sua hesitação. Passe seu tempo com a prece do coração, a prece pura, recolhido, e também lendo as passagens do saltério, das epístolas e do santo Evangelho que lhe forem prescritas, consagrando-se ainda às orações a nosso Senhor Jesus Cristo e à Mãe de Deus puríssima e a outras leituras das santas Escrituras. Depois disto, cante com toda sua inteligência as horas habituais, que foram sabiamente organizadas pelos padrinhos da Igreja. Expulse o ócio de sua alma, ele que é o mestre de todos os vícios, com as paixões e suas causas, ainda que algumas delas pareçam pequenas e inofensivas.
28. Como se proteger do ócio. Que é necessário ao hesiquiasta observar a tradição da Igreja. É o que disse santo Isaac: “Ó bem-amados, protejam-se do ócio. Pois nele se esconde a morte que conhecemos. Longe do ócio não será possível cairmos nas mãos daqueles que se esforçam para capturar o monge. Não é pelos salmos que Deus nos abandonará no dia, nem por nossa preguiça em orar, mas porque, ao abandonarmos as preces, deixamos entrar os demônios. Ora, se eles descobrem em nós um lugar para eles, se eles entram, se eles fecham as portas de nossos olhos, eles nos encherão com sua tirania e sua impureza, que submetem ao Julgamento de Deus e à violência do castigo os que se entregam às suas obras. Caímos sob seu poder porque abandonamos as pequenas coisas que, para Cristo, mereceriam nossa atenção, como escreveram os sábios: quem não submete a Deus sua própria vontade, submete-se ao seu adversário. Essas coisas que lhe parecem pequenas, considere-as como muralhas diante daqueles que querem nos capturar. Aqueles que mantém a ordem da Igreja ordenaram sabiamente edificar estas muralhas no interior da cela, para guardar nossas vidas num espírito de revelação. Mas os que não têm sabedoria as desdenham. Eles as consideram como coisinhas, e não veem o mal que estas coisas podem fazer. O começo e o meio de seu caminho é a liberdade que não se deixa instruir. Esta liberdade é a mãe das paixões. Mais vale se esforçar para não abandonar as pequenas coisas do que deixa-las crescer e abrir espaço para o pecado. Pois o fim desta liberdade intempestiva é a servidão brutal[204]”. Ele acrescenta: “Como são doces as fontes das paixões! Existem ocasiões em que podemos romper com as paixões, podemos estar calmos longe delas e nos alegrarmos por vê-las cessar. Mas não fomos capazes de abandonar suas causas, e por isso somos tentados sem querer. Ficamos tristes por cairmos nas paixões, mas gostamos de manter em nós suas fontes. Não desejamos os pecados, mas recebemos com prazer as causas que os trazem. É por isso que a ação das causas suscita os pecados. Quem ama as fontes das paixões está submetido às paixões, mesmo que não queira. Mas quem detesta seus próprios pecados se verá livre delas, e que os confessar obterá o perdão. É impossível abandonar o estado de pecado antes de haver adquirido a aversão, como é impossível obter o perdão antes de haver confessado as faltas. Pois uma
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é a causa da verdadeira humildade; e outro da compunção que, por meio da vergonha, penetra no coração[205]”. E ainda: “Não há pecado que não seja perdoado, exceto aquele para o qual não houve arrependimento[206]”. Mas já dissemos o bastante. Você, depois da salmodia das horas de que falamos, coma, mas mantenha a prece enquanto come. Se você fizer isto, pela força da graça, você chegará ao estado da prece contínua, conforme o mandamento[207]. Mas agora, nosso propósito sobre o alimento que conforta o corpo na inefável sabedoria do Criador pode esperar um pouco. E passemos ao alimento que firma a alma e lhe dá vida, ou seja, segundo os santos, a prece sagrada, a prece deificante. E isto é bem natural, uma vez que a alma importa mais do que o corpo.
29. A prece. Que é preciso orar. Assim como nosso corpo sem a alma é morto e infecto, também a alma que não se volta para a oração está morta, miserável e corrompida. O grande profeta Daniel nos ensina que a falta da oração é mais amarga que qualquer morte: “Eu prefiro morrer a ser privado da oração sequer por uma hora[208]”. O divino Crisóstomo também nos ensina: “Quem ora conversa com Deus. Nenhum ser ignora a grandeza do homem que encontra a Deus na oração, mas pela palavra ninguém pode avaliar o que seja esta honra, pois ela ultrapassa a magnificência dos anjos”. E: “A prece é a obra comum dos anjos e dos homens; nela não existe mais nenhuma distância entre as naturezas de uns e de outros. É ela que o separa dos animais, é ela que o une aos anjos. Se alguém se esforça para consagrar sua vida à prece e à adoração de Deus, será logo transportado ao lugar onde vivem os anjos, em suas moradias, sua honra, sua nobreza, sua sabedoria e sua compreensão”. E ainda: “Quando o diabo vê uma alma cercada de virtudes ele não ousa se aproximar dela, ele teme a força e o poder que as preces lhe dão, elas que alimentam a alma mais do que o corpo”. E ainda: “As preces são os nervos da alma. Com efeito, assim como, pelos nervos, o corpo se mantém, permanece íntegro e vive coordenadamente (mas se os cortamos, destruímos toda a harmonia do corpo), também pelas santas orações as almas se compõem, se recolhem e correm facilmente para o estado de piedade. Privar a alma da prece, é como tirar o peixe da água, pois assim como a água é a vida para o peixe, a prece á a vida para você. Por meio dela, como o peixe na água, lhe é possível voar pelos espaços, subir aos céus e se aproximar de Deus”. E: “A prece e a súplica permitem aos homens se tornarem os templos de Deus. E assim como o ouro, as pedras preciosas e o mármore constroem as mansões dos reis, a prece faz dos homens templos de Cristo. Pode haver maior elogio à prece do que este: ela nos permite nos tornarmos templos de Deus? Aquele a quem os céus não podem conter penetra na alma e vive nas preces”. E mais: “Podemos ver aqui o poder das santas orações. Paulo, que corria por todo o mundo como que sustentado por asas, esteve na prisão, suportou os golpes, carregou correntes, viveu entre o sangue e os perigos, expulsando os demônios, ressuscitando os mortos, curando os doentes, e em nada disso se fiava para a salvação dos homens, mas fortificava sua alma pela oração. Depois dos milagres, depois da ressurreição dos mortos, corria para a oração, como um atleta corre para o exercício que lhe dará a coroa. Pois é a prece que dispensa a ressurreição dos mortos e tudo o mais. A mesma força que a água dá às árvores, a prece dá à vida dos santos”. E também: “A prece é a fonte da salvação, a porta da imortalidade, a firme muralha da Igreja, a guarda inviolável, temível aos demônios, mas salutar para nós que carregamos em nós a piedade”.
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E ainda: “Assim como uma rainha que entra numa cidade deve ser seguida de toda sua riqueza, também a prece, quando penetra no coração, é seguida por todas as virtudes”. E: “Aquilo que a fundação representa para uma casa representa a prece para a alma. É preciso que ela seja a primeira coisa, como o fundamento, como uma raiz mergulhada na alma, para edificar diligentemente a castidade, o cuidado com os pobres e todas as demais leis de Cristo”. E: “A prece atenta é a luz do intelecto e da alma. Ela é uma luz contínua que jamais se extingue. É por isso que o maligno assalta nosso intelecto com milhares de pensamentos imundos. Aquilo em que jamais pensaríamos, ele junta no momento da oração e espalha sobre nossa alma”. E ainda: “A prece é uma grande arma, ela dá toda a segurança[209]”. E o Teólogo: “É preciso lembrar-se de Deus como se respira”. E: “Pense em Deus mais do que você respira[210]”. E santo Isaac: “Sem a oração contínua, você não pode se aproximar de Deus”. E: “Depois de penar na oração, dê ao seu intelecto outra responsabilidade: dissipar os pensamentos”. E: “É preciso considerar que toda prece que não afadiga o corpo nem aflige o coração é um fruto abortado. Pois esta prece está fora da alma[211]”. E João Clímaco: “Por sua qualidade, a prece é a conjunção e a união do homem com Deus. Por sua ação, ela é a ordem do mundo, a reconciliação com Deus, a mãe e a filha das lágrimas, a expiação dos pecados, a ponte que atravessa sobre as tentações, o muro diante da tormenta, o fim das guerras, a obra dos anjos, o alimento dos incorpóreos, a alegria futura, a obra infinita, a fonte das virtudes, a causa dos carismas, o progresso invisível, o alimento da alma, a iluminação da inteligência, o machado que corta o desespero, a prova da esperança, a libertação da tristeza, a riqueza dos monges, o tesouro dos hesiquiastas, a redução do ardor, o espelho do progresso, a manifestação da medida, o ensino de nosso estado, a revelação das coisas por vir, o sentido da glória. Para aquele que ora, a prece é verdadeiramente o lugar onde Deus nos julga antes do Julgamento futuro[212]”. E mais: “A prece não é outra coisa que a passagem do mundo visível para o mundo invisível[213]”. E são Nilo: “Se você quiser rezar, rejeite tudo para herdar tudo[214]”. E: “A prece é a elevação do intelecto até Deus[215]”. E: “A prece é uma conversa do intelecto com Deus[216]”. E: “Assim como o pão é um alimento para o corpo e a virtude um alimento para a alma, a prece é o alimento espiritual do intelecto[217]”. Isto é tudo, por enquanto. Mas agora é tempo de expor também brevemente aquilo que diz respeito à vida do corpo, e explicar a medida que lhe é necessária em quantidade e qualidade.
30. Da vida corporal. Como o hesiquiasta deve se alimentar. Está escrito: “Filho do homem, coma seu pão com moderação, e beba sua água na medida[218]”, a fim de poder levar uma vida de combate conforme a Deus. Pois foi dito: “Se você não der seu sangue, não receberá o Espírito[219]”. Também o grande Paulo disse: “Eu trato duramente meu corpo e o submeti, para que, depois de ter pregado aos outros, eu não me veja como inapto[220]”. E o divino Davi: “Meus joelhos se dobram de fraqueza sob o jejum. Privada de azeite, minha carne se esgota[221]”. E o Teólogo: “Nada serve melhor ao Senhor do que a vida dura, nem dá em retorno o amor pelos homens como as lágrimas”. E santo Isaac: “Assim como uma mãe vela por seu filho, também Cristo vela sobre o corpo que assume suas penas. Ele está continuamente junto deste corpo[222]”. E: “O conhecimento dos mistérios de Deus não está num ventre cheio[223]”. E: “Assim como foi dito que semeamos nas lágrimas as sementes da bemaventurança, também a alegria segue as penas que assumimos por Deus[224]”. E: “Bem-aventurado aquele que arranca de si toda preguiça que o separa de seu Criador[225]”.
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E ainda: “Por longo tempo tentado à direita e à esquerda, muitas vezes testado nestas duas vias, coberto de inumeráveis feridas feitas em mim pelo adversário, mas secretamente cumulado de recompensas, eu recolhi em mim mesmo a experiência de muitos anos. Nas provações e pela graça de Deus eu aprendi que o fundamento de todos os bens, o apelo da alma longe do cativeiro a que a levara o inimigo, o caminho que conduz à luz e à vida, tudo provém destas duas coisas: recolher-se a um lugar solitário e jejuar sempre, ou seja, regrar sua vida pela temperança do ventre, sábia e prudentemente, permanecendo imóvel na busca e na meditação constante de Deus. Pois é assim que se obtém a submissão dos sentidos; assim que se descobre a sobriedade do intelecto, assim que se acalmam as paixões selvagens que agitam o corpo; assim que se amansam os pensamentos; assim que se ilumina a reflexão; assim que se desperta a atenção para as obras divinas da virtude; assim que se elevam e se afinam os pensamentos; assim que nos chegam todo o tempo as lágrimas sem medida e a lembrança da morte; assim que nos é concedida a castidade pura, perfeitamente afastada de qualquer imaginação que atormente o intelecto; assim que recebemos a visão aguda, a acuidade do conhecimento do que está distante; assim recebemos também as profundezas dos significados místicos que o intelecto compreende no poder das palavras de Deus, os movimentos interiores que nascem na alma e o discernimento que nos permite distinguir entre os espíritos e as santas potências e entre as verdadeiras visões e as imaginações vãs; enfim, é assim que recebemos o temor das vias e dos caminhos que cruzam o oceano da reflexão, este temor que proíbe a irresponsabilidade e a negligência; e a flama do zelo que supera todo perigo e ultrapassa todo medo; e o fervor que despreza todas as concupiscências, as apaga da reflexão e nos faz esquecer com o resto toda lembrança das coisas passadas. Numa palavra, é assim que descobrimos a liberdade do homem verdadeiro, a alegria da alma, a ressurreição e o repouso com Cristo no Reino dos céus. Se alguém é negligente nessas duas coisas, saiba que não apenas perde tudo o que dissemos, mas também que, ao desprezar estas duas virtudes, ele inverte o fundamento de todas as demais virtudes. Com efeito, assim como elas são o começo e a cabeça da obra divina na alma, a porta e a via que levam a Cristo se as guardamos e perseveramos nelas, também se nos separamos e nos afastamos delas acabamos por cair nas duas coisas que são seus contrários, ou seja, a excitação do corpo, a gula intempestiva e tudo o que se segue[226]”. Em outra parte: “Alguns, irresponsáveis e moles desde o início, ficam atemorizados e perturbados não apenas com tais combates e com os esforços que eles exigem, mas até pelo ruído das folhas das árvores; a menor necessidade a que a fome os leva, a menor fraqueza os domina. Eles renunciam e voltam atrás. Outros, que são verdadeiros, que são experientes, nem de legumes se alimentam: eles vivem das raízes de plantas secas, e não aceitam comer nada antes da hora que se fixaram para tomar alimento. Eles permanecem deitados sobre a terra no esgotamento e na agonia do corpo. Seus olhos já não veem claramente, tanto estão vazios seus corpos. Levados por esta necessidade, eles estão prestes da deixar seus corpos. Mas em sua firme resolução, eles não se deixam levar pelo desencorajamento nem pela queda. Pois, com todo seu desejo eles não buscam outra coisa do que violentar-se por amor a Deus. Eles preferem sofrer pela virtude a usufruir desta vida passageira e do repouso que ela permite. E quando lhes advêm as tentações, eles se regozijam por ter de lutar contra elas para se tornarem perfeitos. Em seu amor a Deus, eles não hesitam em enfrentar as duras penas que elas lhes trazem. Até sua partida desta vida, eles acolhem nobremente e de coração os ultrajes e não recuam, pois é pelos ultrajes que eles se tornam perfeitos[227]”. Também nós marchamos sobre as pegadas destes homens e dos que a eles se assemelham, obedecendo ao que foi ordenado: “Vá pela via real, não se desvie nem à direita nem à esquerda[228]”; e assim nós lhe expusemos o modelo e a regra do justo meio, cuja verdadeira definição está aqui descrita.
31. Como deve aquele que conduz o combate espiritual se alimentar na segunda-feira, na quarta e na sexta-feira. Três dias por semana – segunda, quarta e sexta-feira – coma seu almoço na nona hora[229] e não se alimente mais do que uma vez no dia. Coma cerca de seis onças de pão e alimentos secos, com
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temperança: o que for suficiente. Beba três ou quatro copos de água, conforme sua vontade. Siga aquilo que está prescrito no 69º cânon dos Santos Apóstolos: se um bispo, um padre, um diácono, um leitor, um mestre de canto não jejua durante a santa quaresma da Páscoa, ou na quarta ou na sexta-feira, sem que o impeça a fraqueza do corpo, que ele seja deposto. Se um leigo faz o mesmo, que seja excomungado. Os divinos Padres acrescentaram a segunda-feira ao cânon.
32. Como deve se alimentar na terça e na quinta-feira. Nos outros dois dias – terça e quinta-feira – coma duas vezes. No desjejum, coma seis onças de pão e alimentos cozidos, com temperança, e um pouco de alimentos secos. Tome também vinho misturado com água, até três ou quatro copos, se sentir necessidade. Ao entardecer, três onças de pão, um pouco de alimentos secos ou algumas frutas, um copo de vinho ou de água, ou dois se tiver muita sede. Pois a sede faz com que venham as lágrimas, e ela tem a vigília por companheira, como diz João Clímaco: “A sede e a vigília partem o coração; do coração partido jorram as lágrimas[230]”. E santo Isaac: “Tenha sede por Deus, a fim de que ele o encha com seu amor”. Mas se, durante estes dois dias, você quiser se manter com uma só refeição, você fará muito bem. Pois as primícias, a mãe, a raiz, a fonte, o fundamento de todos os bens são o jejum e a temperança. Um autor profano escreveu: “Escolha da vida o melhor, e o hábito o tornará doce”. E o grande Basílio: “Onde existe resolução, não há impedimento”. E outro dos Padres que têm a Deus em si: “O começo da frutificação é a flor. E o começo da vida ativa é a temperança[231]”. Talvez estas e outras coisas pareçam difíceis a alguns, e até mesmo impossíveis. Mas quem considera os frutos que elas podem dar e que vê a glória que elas engendram, as julgará fáceis. Com a ajuda de nosso Senhor Jesus Cristo, e com seu próprio zelo na medida de suas forças, ele as proclamará em palavras e obras e confirmará seu poder. Santo Isaac disse: “Uma refeição frugal sobre uma mesa pura purifica de todas as paixões a alma daquele que come”. E: “Da mesa dos que jejuam, que velam e que se esforçam no Senhor, receba para você o remédio da vida”. E: “Desperte sua alma da morte. Pois o Bem-Amado deitouse em meio deles, santificou seus alimentos e transformou com sua inefável doçura a amargura de suas vidas duras. Os espíritos celestes que o servem cobriram-nos com sua sombra, a eles e a seus santos alimentos”. E: “O doce odor daquele que jejua e sua proximidade regozijam os corações dos que são dotados de discernimento”. E: “A vida do homem temperante é amada por Deus[232]”. 33. Como deve se alimentar no sábado. Das vigílias noturnas. Como se alimentar no tempo das vigílias. Todos os sábados – exceto o sábado santo – é preciso tomar duas refeições, como indicado para a terça e a quinta, conforme a definição dos santos cânones, e porque você deve celebrar todas as vigílias noturnas dos domingos de todo o ano, salvo o domingo que precede à grande quaresma. Mas se se acrescentarem as vigílias de uma das grandes festas do Senhor ou de um dos santos maiores, você deverá celebrar estas vigílias e deixar a do domingo. Seja como for, coma duas vezes aos sábados. É bom que você sempre se esforce para a obra da vigília noturna. É por isso que, se acontecer destas vigílias acontecerem no meio da semana, será vantajoso celebrar também a do domingo: você logo receberá um grande ganho. É assim que sua luz jorrará como a aurora, diz o profeta, e assim se levantará sua cura[233]. Santo Isaac diz também: “A pena da vigília e do jejum é o começo de todo combate contra o pecado e a concupiscência, sobretudo para quem enfrenta o pecado que está no interior de cada um. Os que se esforçam para sustentar este combate invisível veem nisto o sinal de que realmente odeiam o pecado e a concupiscência. Quase todos os ataques das paixões começam a diminuir quando se jejua. E depois do jejum, a vigília da noite contribui para a ascese. Que, durante toda sua vida, ama unir em si o jejum e a vigília, será o amigo da castidade. Assim como a saciedade do ventre e a preguiça do sono, que inflamam
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o desejo da prostituição, são o começo de todos os males, também a santa via divina, o fundamento de toda virtude, é o jejum unido à vigília e à vigilância na liturgia de Deus[234]”. E ainda: “Quando a alma está noite e dia iluminada pela lembrança de Deus e vela sobre esta sem descanso, o Senhor desdobra sobre sua firme segurança uma nuvem que a cobre de dia e uma luz de fogo que a ilumina de noite[235]. A luz sempre brilhará no interior de sua treva[236]”. E: “Escolha uma obra das delícias, a vigília constante durante as noites. É por meio dela que todos os Padres se despojaram do homem velho[237] e foram considerados dignos da renovação do intelecto. É ao longo dessas horas de vigília que a alma toma consciência desta vida imortal, é quando ela sente isto que ela se despoja das trevas das paixões e recebe o Espírito Santo[238]”. E mais: “Honre a obra da vigília, a fim de encontrar consolo para sua alma[239]”. E: “Não imagine, homem, que, em toda a obra dos monges, se possa encontrar algo de maior que a vigília noturna”. E: “Não pense que um monge que permanece em vigília com o discernimento do intelecto se encontra ainda na carne. Esta obra pertence na realidade à ordem angélica”. E também: “A alma que se esforça por levar esta vida angélica da vigília terá os olhos dos querubins. Seu olhar estará continuamente voltado para a contemplação celeste[240]”. No tempo da vigília, permaneça com a prece, a salmodia e a leitura, com toda pureza, recolhimento e compunção, só ou com alguém que lhe agrade e que compartilha de sua vida. Depois do período de vigília, dê a si mesmo um pouco do conforto de um alimento e de bebida, para aliviá-lo da pena, durante a refeição. Vale dizer: coma três onças de pão. Tome alguns alimentos secos, se puder. Beba ainda três copos de vinho misturado com água. Se no dia em que você come à nona hora houver vigília, suprima esta refeição. Pois é preciso fazer uma coisa e não permitir a outra[241]. Quanto ao reconforto do alimento ao final das vigílias, já dissemos o que deve ser feito.
34. Como se alimentar nos domingos. De algumas outras coisas. Enfim, das penas e da humildade. Da mesma forma, aos domingos, como aos sábados, coma duas vezes durante a jornada. Guarde esta fórmula tal e qual, sem fraqueza. O mesmo vale para os dias que foram autorizados aos Padres divinos e como que liberados devido a um longo costume ou por razões mais recentes, vale dizer, razões que vêm de Deus, ou até por razões contrárias. Nestes dias, rompemos com a refeição única e com os alimentos secos, mas tomamos todo tipo de alimento útil e irreprochável, e também legumes, com temperança e na quantidade prescrita. Pois é sempre melhor ser temperante em tudo. Durante as enfermidades corporais, dissemos, podemos tomar sem vergonha todos os alimentos legítimos e úteis que confortam o corpo. É o que ensinaram os Padres divinos: “É preciso destruir as paixões, mas não o corpo”. Que lhe seja natural, por tudo o que foi ensinado, ou seja, por tudo o que é permitido à profissão monástica, comer um pouco, para dar graças a Deus e pela modéstia. Rejeite o supérfluo. “A raridade das coisas, diz santo Isaac, ensina a temperança ao homem, mesmo que ele não queira”. Quando temos coisas em abundância e licenciosamente, não possuímos a nós mesmos. Não ame o conforto do corpo, pois a alma que ama a Deus, conforme santo Isaac, não sente conforto senão em Deus[242]. Melhor é escolher a pena, a vida dura, o rebaixamento. “São as penas e a humildade, escreveu um santo, que permitem alcançar a Jesus”.
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35. Como se alimentar e como se conduzir durante a grande Quaresma e em especial durante a Semana Santa. Quanto ao alimento que você deve tomar, bem como sobre a vida que você deve levar durante a santa Quaresma, pensamos que é supérfluo dar aqui uma explicação detalhada e especial. Pois durante a santa Quaresma, exceto nos sábados e domingos, você deve fazer o que foi ordenado nos dias em que você come à nona hora. Se você puder, seja ainda mais rigoroso e mais sóbrio durante a santa e grande Quaresma, pois ela oferece o dízimo de todo o ano e concede, pelo dia do Senhor, no dia divino e luminoso da Ressurreição, as recompensas dos combates aos que conseguem vencer em Jesus Cristo.
36. Do discernimento. Do desprezo pelo trabalho comedido. Da submissão. Entretanto, é preciso se dedicar a essas práticas e a outras semelhantes com rigoroso discernimento, se você quiser manter em harmonia e em estado de calma o duplo animal que somos. Foi dito: “É pela sabedoria que se constrói uma morada. É pela inteligência que ela é edificada. É pela experiência que seus celeiros são cheios de todas as riquezas preciosas e boas[243]”. O divino Thalassius também escreve: “A indigência e o jejum, levados a efeito com discernimento e razão, constituem o caminho real. Mas a mortificação sem discernimento, ou a condescendência irrefletida, são nocivas, pois de um lado como de outro as coisas se fazem contra a razão”. Santo Isaac diz: “A desorientação e a confusão de pensamentos seguem-se ao relaxamento dos membros. A acídia se segue ao trabalho feito sem medida, e a desorientação acompanha a acídia. Mas são desorientações diferentes: a primeira segue-se ao combate que nos faz a prostituição; a segunda, ao abandono do mosteiro e à errância de lugar em lugar. Deixamos de honrar o trabalho ritmado feito com esforço. Quando diminuímos as penas do trabalho, passamos a buscar o prazer. E a falta de medida faz aumentar a desorientação[244]”. E o grande Máximo: “Não coloque toda sua atenção na carne, mas delimite sua ascese tanto quanto puder, e volte todo seu intelecto para o interior. Pois os exercícios corporais não servem para grande coisa, mas a piedade é útil para tudo, etc.[245]”. Na balança, a carne pode suplantar a alma, dominá-la e pesar sobre ela, arrastando-a para os impulsos e os movimentos desordenados que a corrompem, conforme está escrito: “A carne deseja contra o espírito, e o espírito contra a carne[246]”. Mas você ponha nela a mordaça da temperança, refreie-a, mortifique-a até que, mesmo não querendo, ela se torne dócil e submissa ao melhor. Lembre-se do que foi dito pelo grande Paulo: “Na medida em que o homem exterior se destrói o homem interior se renova dia após dia [247]”. E santo Isaac: “Esforce-se para morrer nos combates, e não para viver na negligência. Pois os mártires não são apenas os que recebem a morte pela fé em Cristo, mas os que morrem para guardar seus mandamentos[248]”. E: “É melhor morrer no combate do que viver em falta[249]”. E: “Antes de tudo, não faça nada sem antes receber o conselho de seu pai espiritual no Senhor. Então, com a graça de Cristo, o que era pesado lhe parecerá leve para carregar, e o que era escarpado se inclinará como uma planície”. Mas agora devemos voltar ao ponto de onde partimos.
37. Como o combatente deve passar o tempo entre a refeição e o por do sol. Que é preciso crer que as graças divinas são dispensadas seguindo a pena e a medida de nosso trabalho. Depois de haver almoçado como convém ao combatente, conforme ordenado pelo glorioso Paulo quando disse que quem luta deve ser temperante em tudo[250], sente-se e faça uma leitura, consequente, sobretudo dos Padres consagrados à sobriedade e à vigilância. Se os dias forem longos, durma por uma hora. Depois se levante e trabalhe um pouco com as mãos, mantendo a oração. Depois ore como lhe mostramos, leia, medite, cuide para se rebaixar e se considerar abaixo de todos os homens. Pois foi dito: “Quem se eleva será rebaixado e quem se humilha será elevado[251]”. E: “Que aquele que se acha de pé cuide para não
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cair[252]”. E: “O Senhor se opõe aos orgulhosos, mas concede sua graça aos humildes[253]”. E: “O começo do orgulho é a ignorância do Senhor[254]”. E: “Os orgulhosos foram profundamente injustos[255]”. E: “Não se satisfaçam no orgulho, mas vão procurar o que é humilde[256]”. O divino Crisóstomo diz igualmente: “Quem conhece a si mesmo deve considerar-se como um nada. Nenhuma outra coisa agrada tanto a Deus como contar a si mesmo dentre os últimos”. E santo Isaac: “Os mistérios são revelados aos humildes[257]”. E: “Aonde leva a humildade, tudo se cobre com a glória de Deus”. E: “A humildade corre adiante da graça, e a presunção adiante do castigo [258]”. E são Barsanulfo: “Se você realmente quer ser salvo, escute bem: erga seus pés de sobre a terra e leve seu espírito ao céu. Mantenha sua atenção noite e dia. Despreze todo poder, lute para se considerar abaixo de todos os homens. Esta é a verdadeira via. Não existe outra para quem quer ser salvo por Jesus Cristo, que lhe dá a força[259]. Quem o quiser que corra. Quem o quiser, corra para ganhar[260]. Eu o testemunho diante do Deus vivo[261], que quer dar a vida eterna a todo homem que a desejar”. E João Clímaco: “Eu não jejuei; eu não velei; sequer dormi no chão duro. Mas eu me humilhei e, em pouco tempo fui salvo[262]”. Antes de qualquer outra coisa busque apagar-se, como disse são Barsanulfo: “Não se preocupar com nada o fará aproximar-se da cidadela. Desaparecer em meio aos homens o fará residir na cidadela. Morrer para os homens o tornará herdeiro da cidadela e de seus tesouros”. E: “Se você quiser ser salvo, mantenha-se apagado e corra para o que está diante de você[263]”. Segundo o bem-aventurado João, o discípulo de são Barsanulfo, apagar-se significa não se igualar a ninguém, implica jamais dizer a respeito de uma boa obra: “Fui eu que fiz[264]”. E mais: sente-se, ore com pureza e recolhimento até que chegue o por do sol. Então cante as vésperas costumeiras e se recolha. Creia com um coração sincero: na medida em que penamos e que sofremos pela virtude, na medida de nosso trabalho, receberemos de Deus a partilha dos dons e das recompensas, o elogio e o consolo, como disse o divino salmista: “Quanto mais eu sofro em meu coração, mais as consolações alegram minha alma[265]”. E o Salvador: “Venham a mim todos os que sofrem sob o peso, e eu os aliviarei[266]”. E o grande Paulo: “Nós sofremos com Cristo para sermos também glorificados com ele. Com efeito, eu considero que os sofrimentos do tempo presente nada são comparados à glória que deverá se revelar em nós[267]”. Máximo, que possuía a sabedoria das coisas divinas, dizia igualmente: “É dito que os bens de Deus são dispensados na medida da fé de cada um. Segundo cremos, com efeito, aumenta em nós o desejo de levar a obra adiante. Quem se encaminha para o final da obra revela a medida de sua fé proporcionalmente àquilo que fez, e recebe a graça na medida em que acreditou[268]”. Mas quem não chega ao final da obra mostra a medida de sua descrença proporcionalmente àquilo que deixou de fazer, e se priva da graça na medida em que não acreditou O invejoso faz mal em invejar aquele que conseguiu escolher este caminho que está claramente aqui e em nenhum outro lugar: crer, agir e receber a graça na medida da fé. Peçamos com toda nossa alma que nos seja dado levar pacientemente os anos que nos restam, que o fim de nossa vida seja cristã, sem dor, sem vergonha, pacífica, e que possamos responder positivamente quando comparecermos diante do trono terrível de onde nos julgará o Senhor, nosso Deus e Salvador Jesus Cristo.
38. Que a prece pura é maior do que todo trabalho. Além do que mostramos, saiba também, irmão, que todo método, toda regra, e, se você quiser, toda ação diferenciada, é formulada assim porque ainda não somos capazes de orar em nosso coração com toda pureza e em perfeito recolhimento. Pois, quando alcançamos este estágio, pela benevolência e a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, quando deixamos para trás a divisão e a diversidade do múltiplo, ficamos, diretamente e acima da razão, unidos ao um, ao simples, ao unificador, como disse o glorioso Teólogo:
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“Deus se une e se revela aos deuses[269]”. Esta é a iluminação enipostática[270], que o Espírito Santo traz ao coração. Esta iluminação, diz-se, nasce da prece pura em recolhimento, da prece do coração de que falamos. Mas isto é raro. Dificilmente encontramos um em mil que seja digno, pela graça de Cristo, de progredir até este estado. Quanto a navegar mais alto e ser considerado digno da prece espiritual, descobrindo a revelação dos mistérios do século por vir, pouquíssimos encontramos dentre inúmeras gerações, que tenham este poder pela benevolência da graça. É isto que também escreve santo Isaac: “Assim como, entre miríades de homens, dificilmente se encontra um que mal e mal cumpra os mandamentos e as leis e que alcance a pureza de alma, também se acha um em mil que possa ser considerado digno de atingir, com muita vigilância, a prece pura, de atravessar esta fronteira e descobrir este mistério. Pois a prece pura não é concedida a muitos, mas a poucos. Quanto a este mistério que a segue, e para além daí, dificilmente se encontra um que chegue até aí em gerações e gerações, pela graça de Cristo”. E ele acrescenta: “Se é difícil encontrar um homem que reze com toda pureza, que dizer da prece espiritual? Toda prece espiritual é desembaraçada do movimento. A prece ligada ao movimento está abaixo da prece espiritual[271]”. É por isso que se você quiser, pelo trabalho e realmente, vale dizer, por experiência própria, ser considerado em Jesus Cristo digno destes mistérios novos, esforce-se durante todo o tempo para aí chegar, em todas as horas e em todo o trabalho da prece pura e recolhida em seu coração. Você poderá assim progredir da criança que engatinha até o homem perfeito, na medida da plenitude de Cristo [272], e com a economia fiel e prudente[273] ser chamado de bem-aventurado e receber o elogio, pois você terá gerado suas palavras com discernimento, ou seja, você terá vencido segundo a razão daquilo que você diz. Então você não poderá mais ser sacudido, como escreveu são Filemon: “Irmão, quando Deus o tornar digno de orar noite e dia com o intelecto puro e recolhido, não se preocupe mais com a regra, mas permaneça voltado tanto quanto puder para sua ligação com Deus. É ele que ilumina seu coração sobre a obra espiritual[274]”. E um dos sábios divinos: “Se você quiser celebrar a liturgia de Deus em seu corpo como um incorporal, adquira secretamente e, seu coração a prece contínua, e sua alma, ainda que antes da morte, será como um anjo”. Santo Isaac escreveu no mesmo sentido. Interrogado por alguém que lhe perguntou o que abarca todas as penas dessa obra, ou seja, da hesíquia, a fim de aprender, depois de alcançá-la, que aí está a perfeição da vida monástica, ele respondeu: “Quando se traz em si a prece contínua. Quando atingimos esta oração, chegamos de fato à extremidade de todas as virtudes. Tornamo-nos daí em diante uma morada do Espírito Santo. Pois, se não recebemos a graça do Consolador, é impossível termos em nós como toda liberdade a perfeição desta oração contínua. Com efeito, foi dito que o Espírito, quando estabelece sua moradia em um homem, não deixa nunca mais de estar em oração. O próprio Espírito ora todo o tempo. A partir daí, quer durma ou vele, a prece já não deixa a alma deste homem. Quer ele coma, quer beba, durma, seja lá o que faça, e até no sono profundo, os perfumes e os vapores da oração sobem sem dificuldade ao seu coração. Então a prece já não mais se interrompe. Em todas as horas de sua vida, ainda que a prece repouse fora dele, ele não deixará de dizê-la em si secretamente[275]”. Um dos Padres que traziam a Cristo em si chamou a prece de silêncio dos puros. Pois seus pensamentos são os movimentos de Deus. Mas os movimentos do coração puro e do intelecto são doces vozes que cantam secretamente a Deus que permanece no segredo. Muitos outros Padres que tinham a Deus em si, iniciados em tal graça pela experiência, expuseram numerosas coisas como esta, dignas de admiração, mas que não mencionaremos para não nos estendermos em demasia aqui.
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39. Do número de prosternações a cada noite e dia. Quanto às prosternações que devemos fazer a cada noite e dia durante os cinco dias da semana, os Padres divinos estabeleceram o número de trezentas. Mas todos os sábados e domingos, e em outros dias fixados pelo costume por razões ocultas e misteriosas, mesmo que caiam durante a semana, nos é ordenado não nos prosternarmos. Existem alguns que ultrapassam este número, outros que não o alcançam. Cada um age de acordo com sua força e resolução. Faça você também o que puder. Em verdade, bem-aventurado é quem se violenta em todas as coisas dedicadas a Deus. Pois a entrada no Reino dos céus se faz a força, e dele se apoderam os que se violentam[276].
40. Que os dons de Deus são distribuídos, como dissemos, não apenas segundo nosso combate e na medida de nosso esforço, mas também conforme o estado de nossa vida, o cuidado com que a levamos, nossa fé e a disposição natural que nos é própria. É preciso saber, como já dissemos, como nos são distribuídos os dons de Deus, não apenas segundo nosso combate e na medida de nosso esforço, mas também segundo o estado de nossa vida e o cuidado com que a levamos e, com certeza, conforme nossa fé diante daquilo que nos é proposto e a disposição natural que nos é própria. São Máximo disse: “O intelecto é o órgão da sabedoria e a palavra é o órgão do conhecimento. A certeza natural que decorre dos dois é o órgão da fé suscitada por um e outro. O amor natural do homem é o órgão do carisma das curas. Pois todo carisma divino tem em nós um órgão apropriado – uma faculdade, um estado ou uma disposição – que está naturalmente ligado a ele e que é capaz de recebê-lo. Assim, aquele que purifica o intelecto de todas as imaginações sensíveis recebe a sabedoria. Quem permite que a razão domine as paixões naturais – o ardor e o desejo – recebe o conhecimento. Quem traz em si, pelo intelecto e a razão, a inquebrantável certeza do divino, recebe a fé que tudo pode. Quem atinge o amor natural do homem, depois da total destruição do egoísmo, recebe o carisma das curas[277]”. Mas que seja assim: “Vigie para que ninguém conheça a sua obra fora aquele que o assiste e dirige. E reze por nós, os indignos, que falamos do bem mas não o praticamos, a fim de que sejamos considerados dignos de fazer primeiro o que agrada a Deus, para depois falar aos homens e exortá-los. Pois aquele que fez e depois ensinou, como diz a palavra divina, será chamado grande[278]. Então o Senhor todo-poderoso e compassivo o fortificará e guiará, para que você possa ouvir estas coisas, compreendê-las e fazê-las com todo o seu desejo. Pois não são aqueles que ouvem a lei que são justos diante de Deus, segundo o divino Paulo, mas os que a cumprem[279]. Ele o colocará em todas as obras boas e salutares. E neste trabalho intelectual e sagrado que ele lhe propõe, ele o conduzirá em espírito, pelas orações dos santos. Amém”. Já falamos um pouco do discernimento prático. Agora é tempo de falarmos do discernimento total e perfeito, na medida em que é possível explica-lo brevemente. Pois o discernimento é naturalmente a maior de todas as virtudes, de acordo com nossos gloriosos Padres.
41. Do discernimento total e perfeito. Quem é aquele que vive contra a natureza e carnalmente. Quem é o que vive segundo a natureza e psiquicamente. E quem é o que vive acima da natureza e espiritualmente. Aquele que vive e se conduz carnalmente e contra a natureza perdeu totalmente sua capacidade de discernir. Mas quem se afasta do mal, que começa a fazer o bem (conforme está escrito: “Afaste-se do mal e faça o bem[280]”), se for iniciado e abrir os ouvidos ao ensinamento, adquirirá pouco a pouco algum discernimento, como convém aos noviços. Aquele que, seguindo a natureza e psiquicamente, submete sua
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vida à reflexão e à razão, e que é chamado de médio, este vê as coisas pela sua própria medida, e discerne o que lhe diz respeito e o que concerne aos que são como ele. Mas quem conduz sua vida além da natureza e espiritualmente, este ultrapassa o apaixonado que se inicia e também os limites da vida média e, graças a Cristo, progride para a perfeição – esta iluminação enipostática – e para o discernimento perfeito: ele se vê, ele discerne a si próprio com plena clareza. Ele vê e discerne igualmente com toda pureza a todos os seres. Mas ele próprio, por mais que o vejamos, não é visto nem discernido por ninguém. Ele tampouco é julgado, porque ele é verdadeiramente espiritual, e é assim chamado não com tinta e papel, mas de fato e pela graça, como disse o divino apóstolo: “O espiritual julga todos os seres, mas não é julgado por ninguém[281]”.
42. Do discernimento: um exemplo. Dentre esses homens, um se parece com alguém que caminha numa noite profunda, nas trevas sombrias. Errante e cego na intangível escuridão, não apenas ele não se vê nem discerne a si próprio, como também não sabe aonde vai nem por onde caminha, como disse o Salvador: “Aquele que caminha nas trevas não sabe aonde vai[282]”. Outro está numa noite pura iluminada pelos astros. Ele avança pouco a pouco sob a fraca luminosidade. Muitas vezes seus pés topam nas pedras – pois ele discerne mal – e ele cai. Este homem se vê e discerne a si mesmo com dificuldade, como nas sombras, conforme está escrito: “Você que dorme, levante-se dentre os mortos, e a luz de Cristo se levantará com você[283]”. Um outro está numa noite calma de plenilúnio. Os raios da lua o guiam: ele caminha sem erros e vai avante. Ele se vê e distingue a si mesmo como em um espelho, e distingue os que caminham com ele, como está dito: “Vocês fazem bem em estarem atentos à lei, como uma lâmpada que brilha num lugar escuro, até que venha o dia e que o astro da luz se levante em seus corações[284]”. Outro está na imensa pureza do pleno meio-dia iluminado pelos raios solares em todo seu ardor. Sob esta luz do sol, ele se vê se distingue tal qual é. E ele julga muitos seres, e mesmo todos os seres, como disse o apóstolo divino[285], e, certamente, também todas as coisas que lhe acontecem, sejam quais forem. Pois ele avança sem erro, e conduz infalivelmente aos que o seguem para a verdadeira luz, a vida e a verdade. É sobre estes homens que está escrito: “Vocês são a luz do mundo[286]”. O divino Paulo diz também: “Deus, que mandou que a luz brilhasse nas trevas, brilhou em nossos corações, para que irradie o conhecimento da glória de Deus que está na face de Jesus Cristo[287]”. E o bem-aventurado Davi: “Revele a nós a luz de sua face, Senhor[288]”. E: “Em sua luz veremos a luz[289]”. E o Senhor: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não caminhará nas trevas, mas terá a luz da vida[290]”.
43. Da mudança e da alienação para cada um. E da glória eminente da humildade. Queremos que você saiba também como, pela purificação e a iluminação, alguns atingiram a perfeição até o limite que é possível atingi-la. Pois não existe perfeição perfeita dentro do século imperfeito; na verdade, seu cumprimento não tem fim. Mesmo aqueles homens não trazem em si o imutável todo o tempo, por causa da fraqueza natural e da presunção que às vezes se insinua. Pode acontecer com eles, para serem testados, sofrerem alienações e cativeiros. Eles então clamam pelos maiores socorros. O que é contrário aos perfeitos, os Padres denominam “parte dos lobos”. Pois a imobilidade e a imutabilidade são mantidas tais quais apenas no século futuro. Mas no século presente, existem tanto os tempos de pureza, de paz e consolação divina, como os tempos de confusão, tempestade e tristeza. E isto na medida da vida e do progresso de cada um, segundo os julgamentos que o Senhor conhece, e, certamente, para que através deles reconheçamos nossa fraqueza. Pois foi dito: “Bem-aventurado aquele
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que conhece a própria fraqueza[291]”. E, segundo Paulo: “Não confiemos em nós mesmos, mas naquele que ressuscita os mortos[292]”. Assim, retornemos continuamente a Deus na humildade, no arrependimento, na confissão. Santo Isaac disse: “Quantas vezes alguns transgredem e curam suas almas pelo arrependimento, e a cada vez a graça os recebe. Pois, em toda natureza dotada de razão, a mudança ocorre indefinidamente e as alterações assaltam o homem por toda sua vida. Quem é dotado de discernimento compreende o sentido de tantas vicissitudes. Mas acima de tudo as provas que ele vive a cada dia podem lhe trazer a experiência, se ele for sóbrio e vigilante. Assim ele se manterá recolhido em seu intelecto. Ele aprenderá quais variações de doçura e de bem-aventurança sofre a cada dia sua reflexão e como ela passa subitamente da paz à confusão, sem saber por que, e como vai parar em grande e indizível perigo. É isto que o bem-aventurado Macário quis mostrar com muita presciência e atenção, para a memória e o ensinamento dos irmãos, ao escrever que não devemos cair em desespero quando as coisas contrárias nos forçam a mudar, pois é comum caírem os que se mantêm na ordem da pureza, sem que tenham sido negligentes ou dissolutos, assim como às vezes o ar se torna frio. Com efeito, é justamente quando caminham segundo sua ordem que lhes acontece caírem topando com coisas contrárias ao objetivo de sua vontade”. E mais adiante: “O que acontece ao justo? As mudanças chegam para cada um como o ar que muda”. Compreenda o que eu quero dizer com “cada um”. Pois também a natureza é uma. Mas a fim que você não pense que ele disse isto apenas dos homens mais baixos e menos avançados, e que os perfeitos estão livres da mudança e se mantêm sempre inflexivelmente na mesma ordem, sem pensamentos passionais, como dizem os euquitas[293], ele precisou: em cada um. Como é isto possível, ó bem-aventurado? Mas você mesmo o diz: “faz frio, e pouco depois vem o calor, talvez a geada, e depois a calmaria. O mesmo acontece com o exercício de nossa vida. A guerra e o socorro da graça se sucedem. Por um tempo, a alma atravessa o inverno, duras vagas a assaltam. Novamente chega uma mudança: a graça a visita e cumula seu coração de alegria e de paz vindas de Deus, e de pensamentos castos e tranquilos”. Ele declara aqui que os pensamentos são castos, dando a entender que antes disso eles eram bestiais e impuros. E exorta: “Assim, se depois destes pensamentos castos e doces sobrevém uma agressão, não nos aflijamos nem nos desesperemos. Mesmo no momento do repouso concedido pela graça, não nos glorifiquemos ainda, mas no tempo da alegria esperemos pelos tormentos”. Ele acrescenta: “Saiba que todos os santos passaram por esta obra. A partir do momento em que estamos neste mundo, a imensa consolação que está no meio deles nos é dada em segredo, pois todo dia e toda hora nos é pedida a prova de nosso amor a Deus em nossos esforços e nos combates contra as tentações. E a prova é esta: jamais nos afligirmos, nunca nos deixarmos abater durante o combate. Mas quem quiser mudar de caminho ou se desviar deste, se tornará a parte dos lobos”. Ó milagre! Como, com tão poucas palavras, soube confirmar um modo de vida, dar-lhe todo o sentido e tirar completamente as dúvidas do intelecto do leitor. Disse ele: quem se desviar do caminho e se tornar a parte dos lobos, é porque quis marchar sobre uma via que não é o caminho. É isto que ele deixou de adquirir em espírito: ele quis caminhar por um caminho próprio, que não foi traçado pelos Padres. E logo após: “A humildade, mesmo sem obras, apaga numerosas faltas. Ao contrário, sem ela as obras não servem para nada”. E: “Aquilo que representa o sal para os alimentos, representa a humildade para todas as virtudes. Ela pode quebrar a força de inúmeros pecados. Assim, é preciso esforçar-se por ela em espírito continuamente, com modéstia e nas provas do discernimento. Se a adquirirmos, ela fará de nós filhos de Deus. E mesmo sem as boas obras, ela nos levará diante de Deus. Mas sem ela, todas as nossas obras, virtudes e penas terão sido em vão. O que Deus quer é a transformação do intelecto”. E: “Nós nos tornamos melhores no intelecto. Basta que ele, sem outra ajuda, se mantenha diante de Deus e fale por nós”. Ele diz ainda: “Um dos santos disse que, quando lhe vier um pensamento de orgulho dizendo: ‘Lembre-se de suas virtudes’, você deve responder: ‘Amigo, veja sua prostituição’[294]”.
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44. Do arrependimento, da pureza e da perfeição. “Todo caminho é cumprido através destas três coisas: o arrependimento, a pureza e a perfeição. O que é o arrependimento? Abandonar as coisas passadas e afligir-se por elas. O que é a pureza, em poucas palavras? Um coração compassivo por todas as naturezas criadas. E o que é a perfeição? A profundeza da humildade: o abandono de todas as coisas visíveis – as coisas sensíveis – e de todas as coisas invisíveis – as coisas inteligíveis – e não mais nos preocuparmos com elas”. E ainda: “O arrependimento é a dupla morte voluntária para todas as coisas. É um coração compassivo, o fervor do coração por toda a criação, pelos homens, pelos pássaros, pelos animais, pelos demônios, por todas as criaturas”. E mais: “Enquanto estamos neste mundo, abandonados na carne, se quisermos nos elevar até a abóboda dos céus, não poderemos fazê-lo permanecendo na irresponsabilidade, sem obras nem penas. Nisto está o cumprimento, perdoe-me. Mas existe mais do que isto, e é a meditação: a meditação fora de qualquer pensamento”. E são Máximo: “A filosofia dedicada à virtude cria a impassibilidade do julgamento, mas não a impassibilidade da natureza. Vale dizer que a graça do prazer divino, no intelecto, está ligada a esta impassibilidade do julgamento”. E também: “Quem recebeu a experiência da tristeza e do prazer da carne é chamado noviço, pois experimentou a facilidade das coisas que cercam a carne. Chamamos perfeito aquele que combateu com o poder da razão o prazer e a dor da carne. E chamamos completo aquele que, pela tensão em direção ao divino, manteve inalienáveis suas faculdades de agir e de contemplar [295]”. É por isso que declaramos que o discernimento é a mais alta das virtudes, pois nas coisas que, pela benevolência de Deus, podemos ver fora da luz divina, torna-se possível distinguir exatamente o que é divino e o que é humano, o que é místico e o que é apócrifo. Mas agora é o momento de expor, na medida do possível, o princípio da santa hesíquia edificante que nos foi prometida, agora que podemos vê-la com clareza. E que Deus conduza o que temos a dizer.
45. Das cinco obras da primeira hesíquia dos noviços, ou hesíquia elementar: a prece, a salmodia, a leitura, a meditação e o trabalho manual. O noviço, aquele que começa a se consagrar à hesíquia, deve passar noite e dia dedicado às cinco obras por meio das quais ele servirá a Deus. Na oração, ou seja, na lembrança contínua do Senhor Jesus Cristo calmamente introduzida no coração pela inspiração do sopro, como dissemos, e depois devolvida assim: lábios cerrados, nenhum pensamento, nenhuma imaginação estranha. A prece, dissemos, é descoberta na pura humildade, no interior da cela, através da temperança que fecha o ventre, através da privação do sono e do jejum dos demais sentidos. Na salmodia, na leitura do sagrado Saltério, do Apóstolo e dos santos Evangelhos, dos escritos dos santos Padres teóforos, e, em especial, dos capítulos sobre a prece, a sobriedade e a vigilância. Quanto aos outros ensinamentos divinos do Espírito, na lembrança dos pecados que colocam o coração em penas, na meditação do Julgamento de Deus, ou da morte e do castigo, ou da bem-aventurança, e de outros temas semelhantes. E no pequeno trabalho das mãos, para amordaçar a acídia. Depois voltar à oração, ainda que as coisas estejam difíceis, até que o intelecto se habitue a rejeitar com facilidade sua própria agitação ocupando-se inteiramente do Senhor Jesus Cristo, pela lembrança constante, por uma contínua tensão voltada para o tesouro interior – o lugar secreto do coração – e por um enraizamento profundo. Santo Isaac escreveu também: “Esforce-se para penetrar no tesouro que está em você, e você verá o tesouro celeste. Pois um e outro são um e você contempla os dois pela mesma porta[296]”. E são Máximo:
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“O coração comanda todos os órgãos do corpo. Quando a graça ocupa os pastos do coração, ela reina sobre todos os pensamentos e todos os membros. Pois aí estão o intelecto e todos os pensamentos da alma. É, portanto, aí que deve ser verificado se a graça do Santíssimo Espírito escreveu suas leis. Aí; mas onde? No órgão que comanda, no trono da graça, onde estão o intelecto e todos os pensamentos da alma: no coração”.
46. Por onde devem começar aqueles que pretendem viver a hesíquia segundo a razão. Quais são o começo, o crescimento, o progresso e a perfeição. Esta é a primeira obra dos antigos monges, pois ela abre o caminho aos que escolhem viver a hesíquia segundo a razão. Eles começavam pelo temor a Deus, e na medida em que lhes era possível, pelo cumprimento de todos os mandamentos deificantes: a ausência de preocupações em todas as coisas boas ou más, a fé, a fuga completa para longe das coisas contrárias, a pura consagração ao ser em si, como foi dito. Depois eles cresciam na esperança indefectível[297], e atingiam a medida da plenitude de Cristo[298]. Eles chegavam aí por meio do eros divino, total e sobre-eminente, que atravessa a prece do coração, pura e sem distração, e que termina na prece espiritual, firme e imutável. Eles aí chegavam pelo único êxtase imediato em direção ao único, pelo arrebatamento, pela unidade do apelo extremo que escorre das fontes do amor perfeito. É assim que a ação leva infalivelmente à contemplação. E é assim que se ressuscita. Davi, o ancestral de Deus[299], sentiu isto. Transformado por esta mudança bem-aventurada, ele proclamou fortemente: “Eu disse em meu êxtase: todo homem é mentiroso[300]”. E um outro, dentre os que se distinguiram no Antigo Testamento: “O que o olho não viu, o que o ouvido não ouviu, o que não subiu ao coração do homem, é isto que Deus preparou para aqueles que o amam[301]”. E o grande Paulo acrescentou em conclusão: “Ele nos revelou isto por seu Espírito. Pois o Espírito sonda tudo, mesmo as profundezas de Deus[302]”.
47. Da ordem da hesíquia dos noviços. O noviço, dissemos, não deve sair constantemente de sua cela. Ele deve evitar falar com todos, mesmo vêlos, se não for por grande necessidade, e aí, raramente, com atenção e precaução, assegurando-se, como disse o divino Isaac: “Que em todas as coisas permaneça em você a lembrança que o socorro que provém da guarda de si mesmo é melhor do que o socorro que provém das obras [303]”. Pois estas coisas provocam a dispersão e a confusão, não apenas entre os noviços, mas ainda entre os que estão mais avançados, como o próprio Isaac diz adiante: “O conforto só prejudica os jovens, mas o relaxamento prejudica os jovens e os velhos”, e: “A hesíquia destrói as sensações exteriores e desperta os movimentos internos. Mas a vida exterior provoca efeitos opostos: ela desperta as sensações externas e destrói os movimentos internos[304]”. Santo Isaac quer nos mostrar com isto onde está a ação e, certamente, o caminho da hesíquia ao qual leva a boa obra. João Clímaco, por seu lado, sugere pelas seguintes palavras quem é aquele que age e caminha como se deve sobre o caminho: “O hesiquiasta é aquele procura a coisa mais maravilhosa: conter o incorpóreo na morada do corpo[305]”. E: “O hesiquiasta é aquele que diz: Eu durmo, mas meu coração vela[306]”. E: “Feche sobre seu corpo a porta de sua cela, sobre suas palavras a porta de sua língua, e sobre os espíritos a porta de seu coração[307]”.
48. Da prece do coração na atenção, na sobriedade e na vigilância, e de sua obra. Dissemos que a prece que sobe ao interior do coração com a atenção, a sobriedade e a vigilância, fora de todo pensamento, de toda imaginação – qualquer que seja – é, em primeiro lugar: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus. O intelecto se volta inteiramente para fora de toda matéria, fora de toda palavra, para o
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Senhor Jesus Cristo, a quem ela comemora. Depois vem: Tenha piedade de mim. O intelecto retorna sobre si mesmo, como se não suportasse não orar por si próprio. Tendo progredido em direção ao amor pela experiência, ele se inclina daí para frente apenas para o Senhor Jesus Cristo, por ter recebido da segunda parte da invocação uma nítida certeza.
49. Como os Padres divinos nos transmitiram o modo de dizer a oração. Quais são as diferentes formas da oração. Por isso os Padres divinos parecem não ter sempre transmitido a oração inteira. Um a transmitiu inteiramente, outro a metade, outro parcialmente, outro diferentemente, conforme a força e o estado daquele que ora. O divino Crisóstomo a transmitiu inteira. Ele disse: “Eu lhes peço, irmãos, não pisoteiem nem desprezem jamais a regra da oração. Pois eu ouvi os Padres dizerem: Que será do monge que desprezar ou pisotear a oração? Mas, ao contrário, quer ele coma, quer beba, quer repouse, sirva ou caminhe, seja lá o que fizer, ele deve clamar Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim, a fim de que a memória do nome de nosso Senhor Jesus Cristo provoque o inimigo ao combate. Pois a alma que se violenta deve descobrir tudo pela memória, seja o mal, seja o bem. Ela deve primeiro ver o mal no interior do seu coração; então ela verá o bem. É a memória que suscita o dragão e a memória que o derruba. É a memória que denuncia o pecado que existe em nós[308], e é a memória que o espalha e que chama todas as potências do inimigo para dentro do coração. Mas é também a memória que pode vencê-lo e desenraizá-lo em parte, a fim de que o nome de nosso Senhor Jesus Cristo descendo às profundezas do coração derrube o dragão que ocupa as pastagens, salve a alma e lhe dê a vida. Portanto, permaneça continuamente com o nome do Senhor Jesus, a fim de que o coração absorva o Senhor, que o Senhor absorva o coração, e que os dois se tornem um. Mas isto não é trabalho para um dia ou dois. É preciso muito tempo combatendo, para que o inimigo seja rejeitado e que Cristo habite em nós[309]”. E ainda: “É preciso que o intelecto se afirme, que ele conduza com as rédeas e o freio e que castigue todo pensamento, toda ação do Maligno por meio da invocação de nosso Senhor Jesus Cristo. Aonde estiver o corpo, esteja ali o intelecto, a fim de que entre Deus e o coração não se encontre nada que seja como um muro ou uma barreira que entenebreça o coração e separe o intelecto de Deus. E, se acontecer das trevas se apoderarem do intelecto, não devemos nos demorar nos pensamentos, para que o consentimento a estes mão lhe seja imputado como um ato no dia do Julgamento diante do Senhor, quando Deus virá para julgar os segredos dos homens[310]. Detenham-se de uma vez por todas e permaneçam no Senhor nosso Deus, até que ele tenha compaixão de nós[311]. E não busquem outra coisa senão a piedade que vem do Senhor da glória[312]. Mas, se buscarem a piedade, procurem com um coração humilde, com o coração contrito. E repitam da manhã até a noite, e se possível toda a noite: Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim. Engajem o intelecto com toda força nesta obra até a morte, pois ela exige que nos violentemos. A porta é estreita, a via que conduz à vida é apertada[313]. Aí só entram os que se violentam, pois deles é o Reino dos céus[314]. Por isso eu lhes peço: não separem de Deus seus corações. Mas perseverem, mantenham-se todo o tempo na memória de nosso Senhor Jesus Cristo, até que o nome de nosso Senhor esteja plantado nos seus corações e que estes não concebam nada de outro, a fim de que Cristo seja magnificado em vocês[315]”. Mas, bem antes disso, o grande Paulo havia escrito: Senhor Jesus. Ele disse: “Se você confessar com sua boca o Senhor Jesus, e se crer em seu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, você será salvo. Pois é crendo no coração que se chega à justiça, e é confessando pela boca que se alcança a salvação [316]”. E mais: “Ninguém pode dizer ‘Senhor Jesus’, se não for pelo Espírito Santo[317]”. Ele acrescenta: pelo Espírito Santo, o que quer dizer: quando o coração recebe a energia do Espírito Santo, é por meio dele que
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passa a orar. Isto é próprio dos que progrediram, dos que receberam a riqueza de Cristo, a partir do momento em que este permanece claramente neles. “Siga este caminho, diz também são Diádoco. Quando, pela lembrança de Deus, fechamos todas as saídas do intelecto, ele não cessa de nos pedir uma obra que lhe permita manter-se até o final de seu curso. É preciso, assim, dar-lhe as simples palavras: Senhor Jesus, para atingir plenamente este objetivo. Pois, segundo Paulo, ninguém pode dizer ‘Senhor Jesus’ se não for pelo Espírito Santo[318]. Mas que ele encerre sempre estas palavras dentre seus tesouros, a fim de não ser desviado por imaginações. Os que meditam sem relaxar, do fundo do coração, o nome glorioso e tão desejado, poderão ver um dia a luz do intelecto. Se a reflexão a guarda e vigia, esta luz, com efeito, queima, o bastante para que sintamos, toda sujeira colada à alma. Pois foi dito que Deus é um fogo devorador[319]. O Senhor chama a alma para o grande amor de sua glória. Quando o calor do coração faz residir em nós, pela memória do intelecto, o nome glorioso e tão desejado, nos coloca em estado de amar sua bondade. E nada poderá nos impedir. Com efeito, esta é a pérola preciosa que precisamos adquirir vendendo tudo o que temos, e cuja descoberta cumula de alegria inefável[320]”. Santo Hesíquio escreveu: Jesus Cristo. Ele acrescenta: “A alma que, através da morte, voa no espaço para as portas celestes e que tem Jesus consigo e por ela, não será confundida por seus inimigos, mas então, e daí por diante, lhes falará às portas com segurança. Mas até sua partida ela não deve se desencorajar de chamar por Jesus Cristo noite e dia. Ele agirá por ela. Ele lhe fará justiça rapidamente, segundo a promessa verídica e divina, esta promessa que ele fez a propósito do juiz iníquo[321]. Sim, eu lhes digo, ele o fará, tanto na vida presente como depois que a alma tiver deixado seu corpo[322]”. São João Clímaco fala apenas de: Jesus. “Ataque seus adversários com o nome de Jesus. Pois não existe sob o céu arma mais poderosa. E não acrescente mais nada”. Ele diz também: “Que a lembrança de Jesus se cole à sua respiração. Então você conhecerá o socorro da hesíquia[323]”.
50. Que não foi apenas pelos Padres mencionados, mas pelos próprios Príncipes dos Apóstolos, Pedro, Paulo e João, que fomos iniciados em espírito nas palavras da prece deificante. Mas não é apenas a partir desses Padres teóforos que mencionamos, e dos que vieram depois deles, que poderemos nos iniciar nas palavras da santa prece; antes deles, houve estes corifeus que foram os primeiros dentre os apóstolos, ou seja, Pedro, Paulo e João. Um disse, como lembramos: “Ninguém pode dizer: ‘Senhor Jesus’, se não for pelo Espírito Santo[324]”. O outro: “A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo[325]”. E: “Todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne é de Deus[326]”. E o eleito dentre os discípulos de Cristo, que, em resposta à questão que o Mestre e Salvador dirigiu aos próprios apóstolos: “Quem os homens dizem que sou?” – respondeu com esta feliz confissão: “Você é o Cristo, o Filho de Deus vivo[327]”. É por isso que aqueles que vieram depois deles, nossos mestres gloriosos, e sobretudo os que levaram no deserto e no repouso a vida livre de todos os jugos, seguiram estes exemplos que nos deram primeiramente, cada um por sua vez, as três colunas da pura Igreja, e nos transmitiram como vozes divinas pela revelação do Espírito Santo. O uso das palavras da prece é, assim, largamente atestado por estes três testemunhos dignos de fé[328]. Pois foi dito que toda palavra deverá estar fundamentada sobre três testemunhas. Estes sábios celestes, perfeitamente ligados entre si no Único e em acordo com o Espírito Santo que neles habitava, pregaram a regra da prece e a transmitiram aos que os seguiram que a mantivessem e guardassem da mesma maneira. Veja a ordem e o encadeamento que, com a sabedoria do alto, levaram a
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esta coisa maravilhosa. Pois um disse: Senhor Jesus. O outro: Jesus Cristo. E o outro: Filho de Deus. Tudo se passa como se um seguisse ao outro, como se estivessem ligados uns aos outros pelo acordo e a ligação destas palavras que são obra de Deus. Você pode ver, com efeito, cada um receber do final das palavras do anterior o começo das suas, e tudo se completa nos três. Você verá a mesma coisa se acrescentar o sentido do Espírito. De fato, o bem-aventurado Paulo disse: “Ninguém pode dizer ‘Senhor Jesus’ se não for pelo Espírito Santo[329]”. E é pelo que foi aqui colocado por último – pelo Espírito Santo – que começa João, a voz do trovão, quando diz: “Todo espírito que confessa Jesus Cristo como se manifestando na carne é de Deus[330]”. Eis aqui o que eles deram a conhecer a todos, não por si próprios ou por seu próprio movimento, mas suscitados pela mão do Santíssimo Espírito. A confissão revelada ao divino Pedro veio-lhe, de fato, do Espírito Santo. Pois foi dito: “O único e mesmo Espírito cumpre todas as coisas, dispensando-as a cada um como quer[331]”. Assim é que a tripla corda[332] indefectível da oração deificante, trançada, ajustada, coordenada com enorme sabedoria e ciência, chegou igualmente aos nossos, que a guardaram da mesma maneira. Os divinos Padres que vieram depois acrescentaram as palavras: Tenha piedade de nós às palavras salutares da prece – Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus – e as adaptaram e prescreveram aos que são ainda pequeninos na ordem da virtude, os noviços e os imperfeitos. Pois aqueles que progrediram, que são perfeitos em Cristo, por meio de cada um desses oráculos – ou seja, ‘Jesus Cristo, Filho de Deus’, e até mesmo pela simples invocação de Jesus – abraçam e estreitam, por assim dizer, a inteira obra da oração. Assim eles se encheram de um prazer e de uma alegria inefáveis, mais alta do que toda inteligência, mais alta do que tudo o que se pode ver e ouvir. Deste modo aqueles três vezes bem-aventurados, deixando a carne e o mundo, iniciando seus sentidos pelos dons divinos e a graça que neles habitava, foram tomados de amor no êxtase e na beatitude, foram purificados, foram iluminados, atingiram a perfeição, pois contemplaram a partir daí secretamente e como uma garantia a graça que não tem começo, a graça sobrenatural e incriada da Divindade mais alta do que o ser. Eles se satisfizeram com a simples lembrança, mas também, como ressaltamos, em dizer cada uma das invocações do Verbo, do Deus-Homem, como indicamos. Assim elevados por esta prece nos arrebatamentos, nos conhecimentos e nas revelações, eles foram tornados no Espírito Santo dignos de palavras inefáveis. Em sua grande doçura e seu amor pela alma, nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, cujas palavras foram obras e a linguagem espírito de vida[333], como ele próprio disse, lhes deu uma clara certeza e uma confiança segura. Ele lhes declarou com força: “Sem mim vocês nada podem [334]”. E: “Se vocês pedirem algo em meu nome, eu o farei[335]”. E: “O que quer que peçam em meu nome, eu o farei[336]”. E tudo o que se segue, conforme nos foi transmitido.
51. Que é permitido aos noviços tanto dizer todas as palavras da prece como apenas uma parte, mas sempre dentro do coração. E que não se deve mudar constantemente as palavras. É permitido aos noviços, seja dizer todas as palavras da oração, seja dizer uma parte delas; mas sempre dentro do coração e continuamente. Conforme são Diádoco, “aquele que permanece sempre em seu próprio coração abandona todos os encantos desta vida. Pois, caminhando no Espírito, ele já não conhece os desejos da carne[337]. Este homem vai e vem na fortaleza das virtudes, que nele estão como guardiões da cidadela da pureza. É por isso que as armadilhas dos demônios contra eles não têm efeito[338]”. Santo Isaac escreve também: “O coração daquele que visita sua alma todo o tempo se alegra nas revelações”. E: “Aquele que recolhe em si mesmo sua contemplação, contempla a irradiação do Espírito. Aquele que despreza toda distração contempla seu Mestre no interior do seu coração[339]”.
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Mas não se deve mudar constantemente as palavras da oração, a fim de que, devido às mudanças e transferências constantes, o intelecto não se torne instável, não se desvie, nem se torne inconsistente e estéril, como as árvores que são constantemente transportadas e transplantadas.
52. Que o fruto é a prece no interior do coração. Mas que é preciso muito tempo, de combate e de violência. Que simplesmente os bens não podem ser adquiridos senão com tempo e penas. Este prece contínua no interior do coração, e aquilo que está para além dela, não se obtém simplesmente, como que por acaso, penando um pouco, e depressa, quando na verdade ela se encontra raramente em uns poucos. Ao contrário, é preciso muito tempo e muitas penas, é preciso combater no corpo e na alma e violentar-se intensamente para alcançá-la. Pois, conforme a parte que nos cabe do dom e da graça que esperamos receber devemos, tanto quanto nos for possível, travar por ela os combates correspondentes e avaliar os momentos. Esta graça, para os santos mestres, consiste em expulsar o inimigo das pastagens do coração e trazer Cristo para habitar nele claramente. Santo Isaac disse igualmente: “Quem quiser ver o Senhor deve se esforçar para purificar o coração por meio da lembrança contínua de Deus. Assim, na claridade de sua reflexão, ele verá o Senhor a toda hora[340]”. E são Barsanulfo: “Se a obra interior que se faz com Deus não vem em socorro do homem, este pena em vão exteriormente. Pois a obra interior que coloca o coração em penas carrega em si a pureza; a pureza carrega a verdadeira hesíquia; a hesíquia carrega a humildade; e a humildade faz do homem a m orada de Deus. Uma vez que Deus habita nele, os demônios são banidos com as paixões. O homem se torna assim um templo de Deus cheio de santidade, cheio de luz, de pureza e de graça. Bem-aventurado aquele que, refletindo seu próprio Senhor no segredo de seu coração, espalha sua oração e chora diante de sua bondade[341]”. E são João de Cárpatos: “É preciso consagrar às preces um longo combate e muito tempo para descobrir no estado sem perturbações da reflexão um outro céu do coração, onde habita Cristo, como disse o Apóstolo: ‘Ou vocês não sabem que Jesus Cristo mora em vocês? A menos que vocês sejam reprovados’[342]”. E o grande Crisóstomo: “Persevere sem relaxar no nome do Senhor Jesus, a fim de que o coração absorva o Senhor, que o Senhor absorva o coração, e que os dois se tornem um. Mas isto não é trabalho para um dia ou dois. É preciso um longo combate e muito tempo para que o inimigo seja rejeitado e que Cristo habite em nós[343]”. Haveria muito mais a ser dito, mas devemos voltar à sequência de nossa exposição.
53. Da prece do coração que não é pura. Como atingir a prece pura e sem distrações. À força de perseverar no método de que falamos, o método da prece do coração, da prece pura e sem distração, mesmo se em outros momentos ela estiver mesclada às impurezas e à agitação, é claro que, atravessando as percepções e os pensamentos que a entravam, aquele que combate chegará ao estado de prece com toda liberdade, com toda imobilidade, com toda pureza, com toda verdade. É preciso então que o intelecto persevere no coração, que ele penetre nele pela respiração, sem nada forçar nem negligenciar, e que não o deixe precipitadamente. Ao contrário, que ele permaneça ali, orando continuamente.
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Santo Hesíquio diz igualmente: “Aquele cuja prece não está livre de todo pensamento não está armado para o combate. Refiro-me à prece que dizemos provir das profundezas do coração, a fim de que a invocação de Jesus Cristo ataque aquele que nos combate secretamente e queime o adversário[344]”. E em seguida: “Bem-aventurado aquele que em sua reflexão está ligado à prece de Jesus, aquele que, sem relaxar, invoca o Senhor em seu coração, como o ar está unido ao nosso corpo ou a chama está unida à cera”. E mais: “Quando o sol passa sobre a terra faz-se o dia. O santo e venerável nome do Senhor Jesus, brilhando continuamente na reflexão, engendrará inumeráveis pensamentos tão luminosos quanto o sol[345]”.
54. Da prece do coração, pura e sem distrações, e do calor que ela suscita. Esta é a que chamamos de prece do coração, pura e sem distrações, da qual se diz: “Dela nasce um calor no coração”. Está escrito: “Meu coração queima em mim”, e: “Um fogo se acendeu em minha meditação[346]”. Este é o fogo que nosso Senhor Jesus Cristo veio atirar sobre a terra de nossos corações que, de outro modo se encheria de espinhos sob o jugo das paixões, mas que, sob a graça, se enche do Espírito. Ele próprio disse: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra: e como gostaria que já estivesse aceso![347]”. É este fogo que se acendeu em Cléofas e em seu companheiro, que os aqueceu e os fez dizer: “Não queimava nosso coração pelo caminho?[348]”. O grande João Damasceno escreveu num tropário de seus cânticos à puríssima Mãe de Deus: “O fogo do coração me entranha e me leva a celebrar o desejo virginal”. Santo Isaac escreveu igualmente: “O calor sem medida que chega à superfície da reflexão, vindo das lembranças abrasadoras, consome o coração com seu fogo, nasce da violência que fazemos a nós mesmos. Esta obra, esta guarda do coração, afina o intelecto com seu calor e lhe concedem a visão”. E mais adiante: “É deste calor que proveniente da graça da contemplação que nasce o fluxo das lágrimas”. E logo depois: “A alma recebe a paz dos pensamentos das lágrimas incessantes. Da paz dos pensamentos ela se eleva à pureza do intelecto. E pela pureza do intelecto o homem consegue ver os mistérios de Deus”. E ainda: “Depois disso, o intelecto pode ver as revelações e os sinais, como viu o profeta Ezequiel[349]”. E mais: “As lágrimas, a cabeça que toca o solo durante a oração, o calor das prosternações despertam no coração a chama de sua doçura. Este é o êxtase digno de todos os louvores. O coração voa para Deus e diz: ‘Minha alma tem sede de ti, Deus forte, Deus vivo. Quando verei eu tua face, Senhor?’[350]”. E assim por diante”. E João Clímaco: “O fogo que visitou meu coração fez erguer-se a prece. Quando a prece despertou e subiu ao céu, o fogo desceu à câmara mais alta da alma[351]”. E ainda: “Quem é o monge fiel e prudente[352] que guardou vivo o calor que nele existe? E que, até sua partida desta vida, não cessou de acrescentar, a cada dia, o fogo ao fogo, o calor ao calor, o desejo ao desejo, o esforço ao esforço?[353]”. E são Elias de Écdicos: “Quando a alma deixou as coisas exteriores e se uniu à oração, então esta a envolve qual uma chama, como o fogo envolve o ferro, e a abrasa inteiramente. A alma permanece a mesma, mas não a podemos tocar, como o ferro em brasa não pode ser tocado[354]”. E ainda: “Bemaventurado aquele que nesta vida foi julgado digno de ser considerado assim, Bem-aventurado aquele que viu seu corpo, por natureza de terra, se tornar fogo pela graça[355]”.
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55. Que o calor tem diversas origens. Mas o calor fundamental é aquele que vem da prece do coração, da prece pura. Saiba que tal calor possui muitas e diferentes formas em sua gênese e sua existência em nós. É o que se depreende claramente das palavras dos santos que expusemos, e também, hesitamos em afirma-lo, do próprio ato, pois o calor que provém da prece do coração, da prece pura, é, de certa forma, mais importante que estas palavras. Ele se propaga e cresce juntamente com a prece, até o repouso sabático na iluminação enipostática. Vale dizer que, conforme os Padres, ele ilumina com esta luz o homem que ora assim.
56. Qual é a obra contínua do calor do coração. Este calor expulsa continuamente aquilo que impede a primeira prece, a prece pura, de ser cumprida à perfeição. Pois nosso Deus é um fogo, e um fogo que consome[356] o mal dos demônios e de nossas paixões. São Diádoco disse: “Quando, queimado por alguma dor, o coração recebe as marcas dos demônios, a alma que começa a se purificar odeia as paixões, porque aquele que é combatido teme, em suas penas, sofrer com as flechas do inimigo. Isto quer dizer que, se não experimentamos um grande sofrimento diante da impudência do pecado, não poderemos nos regozijar abundantemente diante da bondade da justiça. Aquele que pretende purificar seu próprio coração deve inflamá-lo diariamente com a lembrança de Jesus Cristo, não tendo outra coisa em si senão esta meditação e este trabalho incessante. Pois os que pretendem expulsar sua própria podridão não devem ora rezar, ora não rezar. É preciso que tragam incessantemente a oração sob a guarda do intelecto, mesmo que permaneçam no exterior das moradas da prece. Pois, do mesmo modo como aquele que quer purificar o ouro evita que o fogo se afaste do cadinho para a matéria purificada não endureça, aquele que às vezes se lembra de Deus e às vezes o esquece, perde, ao se deter, aquilo que pensou ter adquirido ao orar. É próprio de um homem que ama a virtude absorver constantemente a matéria terrestre do coração por meio da lembrança de Deus. Assim, com o mal pouco a pouco consumido pelo fogo da lembrança do bem, a alma alcançará perfeitamente seu esplendor natural, numa glória ainda maior[357]”. A partir daí, o intelecto que permanece livremente no coração rezará com toda pureza, livre de qualquer erro. Um santo disse: “A prece é verdadeira, livre de todo erro, quando o intelecto mantém o coração orando”. Santo Hesíquio escreve igualmente: “O verdadeiro monge é aquele que alcançou a sobriedade e a vigilância. E o monge verdadeiramente sóbrio é aquele que é monge em seu coração[358]”.
57. Do desejo e do eros que nascem do calor, da atenção e da prece. É neste calor, nesta prece atenta, ou seja, na prece pura, que se encontra o desejo, o eros divino que leva à lembrança permanente do Senhor Jesus Cristo. Então o amor nasce no coração, conforme está escrito: “As jovens me amaram e me atraíram[359]”. E: “Estou doente de amor[360]”. Também são Máximo diz: “Todas as virtudes trabalham com o intelecto em seu encaminhamento para o eros divino, mas, mais do que todas, a prece pura. Dele ela recebe as asas para voar para Deus, elevando-se para além de tudo[361]”.
58. Das lágrimas do coração. Do desejo e do eros divino. Quando de um coração assim correm as lágrimas em abundância, elas purificam e enriquecem aquele que se vê cumulado de amor. Elas jamais se esgotam e nunca secam. Pois aquilo que provém do temor a Deus,
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assim como aquilo que provém do eros divino, nasce do violento e irresistível desejo de amar o Senhor Jesus Cristo a quem lembramos. Fora de si, a alma proclama: “Cristo, você me atraiu por seu desejo, você me transformou por seu eros divino[362]”. E: “Salvador, você é todo mansidão, todo desejo e apelo, inteiramente inesgotável, inteiramente inconcebível beleza[363]”. Com Paulo, o predicador de Cristo, ela repete: “O amor a Deus nos pressiona[364]”. E: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a nudez, o perigo, a espada?[365]”. E mais: “Estou persuadido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem as potências, nem o presente, nem o futuro, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura poderá nos separar do amor a Deus que está em Jesus Cristo nosso Senhor[366]”.
59. Exortação a não buscar aquilo que ultrapassa a medida, e trazer sempre no coração a lembrança de nosso Senhor Jesus Cristo. Então, quem poderá ser considerado digno destas coisas e de tudo o que vem com elas? Não é oportuno falar disto agora. Foi dito: “Não busque antes do tempo aquilo que vem com o tempo[367]”. E: “O bem não é bom quando não vem a propósito”. Segundo são Marcos o Asceta, não convém conhecer o que vem depois sem ter antes feito o que vem primeiro, “pois a ciência infla, se não se traduzir em atos; mas a caridade edifica”, “ela suporta tudo[368]”. É preciso assumir as penas e combater sempre, se diz, para trazer continuamente na profundeza do coração a lembrança do Senhor Jesus Cristo, e não de modo exterior e superficial, como diz a respeito o bem-aventurado Marcos o Asceta: “Se, por meio de uma esperança total e espiritual, a prece não abrir o lugar de nosso coração, o lugar mais interior, secreto e puro, é certo que não seremos capazes de conhecer nem aquele que irá nele residir, nem saber se nossos sacrifícios de louvor foram ou não recebidos[369]”.
60. Do zelo ardente. Da aparição divina em nós, e da iluminação enipostática da graça. Assim podemos nos afastar com facilidade, não apenas das más obras, mas também dos pensamentos passionais e das más imaginações, conforme está escrito: “Caminhem segundo o espírito e não aceitem a concupiscência da carne[370]”. Pois quem queima de zelo ardente pela virtude e suprime dos sentidos e do intelecto toda má obra antes que ela aja, se afastará cada vez mais de toda imaginação e dos seus príncipes, os demônios, que se divertem com a infelicidade dos outros. Como diz santo Isaac: “Os demônios temem, mas Deus e seus anjos desejam aquele que em seu zelo divino desenraiza os espinhos que o inimigo colocou nele. Este homem, ao avançar, chegará à certeza que a iluminação enipostática da graça implanta nele, esta graça divina que virá habitar nele. Podemos dizer que, numa alegre corrida, ele sobe às alturas para a nobreza e a filiação espiritual que a graça do santo batismo estabelece em nós”. Santo Isaac diz ainda: “Esta é a Jerusalém, e este o Reino de Deus oculto em nós[371] segundo a palavra do Senhor. Este país é a nuvem da glória de Deus, na qual apenas os corações puros entrarão para contemplar a face de seu Mestre[372]. Mas que este homem não busque a aparição de Deus, a fim de não receber aquele que na verdade é feito de trevas e que imita a luz[373]”.
61. Da energia divina e da energia contrária. Quando seu intelecto, sem a procurar, vê a luz, ele não deve nem aceitá-la nem recusá-la, como diz são Marcos o Asceta: “A criança ignora o que é a energia da graça”. E: “Uma outra energia, a do mal, se faz semelhante à verdade. É melhor não ver estas coisas, devido à ilusão. Mas também não é bom estigmatiza-
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las, por causa da verdade. É preciso em tudo recorrer a Deus com esperança. Entre as duas, ele sabe qual será proveitosa para você[374]”. Mas interrogue quem tem a graça e o poder de ensinar e discernir por Deus.
62. Do mestre iluminado e infalível. Se você encontrar aquele que ensina não apenas o que aprendeu nas Sagradas Escrituras, mas também o que ele próprio experimentou em toda beatitude pela iluminação divina, dê graças a Deus. Senão, será melhor para ele não aceitá-lo, mas recorrer a Deus com humildade, considerando a si mesmo, com o coração sincero, indigno de tal dignidade e de tal contemplação. É o que dissemos, é o que diremos, é no que fomos iniciados, é o que, pela graça de Cristo, nos ensinaram as línguas verídicas que falam sob a ação do Espírito Santo, as Escrituras inspiradas de Deus e a experiência parcial. 63. Da verdadeira e da falsa iluminação, ou da luz divina e da luz má. Em alguns de seus escritos, nossos gloriosos Padres deram a entender quais são os sinais da luz que não engana, e quais os sinais da luz que é uma ilusão. É justamente o que o bem-aventurado Paulo de Latros[375] fez por três vezes, quando disse a seu discípulo que o havia questionado a respeito: “A luz da potência contrária tem a aparência de uma chama, ela é acompanhada de fumaça e se parece ao fogo sensível. Quando a alma sóbria e purificada a vê, ela se sente mal e experimenta um profundo desgosto. Mas o que é bom e provém de Deus é cheio de graça e sem mescla, investe e santifica, cumula a alma de luz, de alegria, de bom humor, a torna doce e a leva a amar os homens”. Outros dizem as mesmas coisas. Mas assim como de viva voz isto me foi confiado, também você o escutará no momento oportuno. Agora não é hora.
64. Da má e da boa imaginação. Como passar de uma à outra. Mencionamos há pouco a imaginação, e a má imaginação. Será útil, parece-nos, explicar brevemente e na medida do possível o que ela é, ou melhor, o que é a imaginação. Pois a maldita se opõe com toda força à prece pura, à prece do coração, à obra simples e direita do intelecto. É por isso que os Padres divinos falam dela e contra ela de muitas maneiras. Com efeito, assim como Dédalo, esta imaginação possui muitas formas, e como a hidra ela tem muitas cabeças. Ela é como uma ponte pela qual passam os demônios, como dizem os santos. Por ela atravessam e passam os assassinos infames que vêm se unir e se misturar à alma, que fazem dela uma casa de marimbondos, uma moradia para pensamentos estéreis e passionais. É preciso rejeitar completamente esta imaginação. A menos que você queira, pelo arrependimento, a contrição do luto, a humildade, e ainda pelo estudo e a contemplação dos seres, colocar de lado a má imaginação e substituí-la por uma imaginação boa. Misturando e opondo uma à outra, dominando a imaginação indecente e impudente, você obterá contra ela o prêmio da vitória. Agindo desta maneira, não apenas você não cometerá nenhum mal, como ainda receberá um grande benefício, porque levará sua vida com um discernimento sem falha e descartará toda má imaginação por imaginações boas. E você terá ferido de morte, terá ferido seus inimigos com as armas dos adversários, como outrora fez o divino Davi a Golias[376].
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65. Que na prece pura e na obra simples e una do intelecto os santos rejeitam tanto a imaginação ruim como a boa. Tal é o combate daqueles que ainda são crianças, ou seja, dos noviços. Mas os que progrediram ao longo do tempo rejeitam toda e qualquer imaginação, tanto a má quanto a boa. Eles se afastam delas. Como a cera derrete ao fogo[377], eles as reduzem a cinzas e as consomem por meio da prece pura, pelo desembaraço e o despojamento do intelecto em relação a qualquer imagem, porque eles tendem unicamente a Deus, e, se você quiser, porque eles o acolhem e se unem a ele na unidade além das formas. Santo Hesíquio disse: “Todo pensamento é no intelecto a imaginação de uma coisa sensível. O intelecto – que é o Assírio – não tem força para nos enganar se se servir do sensível que nos cerca e de nossos hábitos[378]”. E são Diádoco: “Todo pensamento entra no coração pela imaginação das coisas sensíveis. A partir daí, quando o coração permanece todo o tempo longe de tudo e desembaraçado das formas, a bemaventurada luz da Divindade brilha nele, pois seu esplendor, no vazio de todo e qualquer pensamento, se revela à inteligência pura[379]”. E o grande Basílio: “Assim como o Senhor não habita nos templos feitos pela mão do homem[380], também ele não habita nas representações e nas criações do intelecto. Estas se colocam diante da alma e a acediam. E a alma, alterada por elas, já não é capaz de inclinar-se puramente para a verdade, pois agora ela está ligada ao espelho e ao enigma[381]”. E o divino Evagro: “Diz-se que Deus habita onde é conhecido. É por isso que se diz que o Trono de Deus é a inteligência pura. O pensamento de Deus, com efeito, não se encontra nos pensamentos que impregnam o intelecto, mas nos pensamentos que não o impregnam. Aquele que ora deve se separar totalmente dos pensamentos que impregnam o intelecto. De outro modo o intelecto estará impregnado quando ele vir o Intelecto, e estará propenso quando na verdade não vê mais do que sua razão. Assim é que aprendemos como o conhecimento espiritual afasta o intelecto de suas representações: ele o desembaraça de toda imagem e o dirige para Deus[382]”. E são Máximo, em seus comentários sobre o grande Dionísio: “Uma coisa é a imaginação e outra a intelecção, ou seja, o pensamento. Pois elas provêm de potências diferentes e seus movimentos não são os mesmos. A intelecção é energia e criação. Mas a imaginação é paixão e representação ligada a alguma coisa sensível ou a algo semelhante. Os sentidos concebem os seres nas formas como os reúnem. Mas o intelecto capta, ou seja, concebe os seres de outra maneira, diferente dos sentidos. Quanto ao movimento corporal, ou ao movimento espiritual que dissemos dirigir também os sentidos, ele recebe as paixões e representa as formas. É preciso dar à alma e ao intelecto a faculdade de julgar e de conceber. A imaginação deve ser afastada por esta força de conceber que a alma possui. A faculdade de imaginar se divide em três partes: a primeira transforma as percepções em imagens e torna sensível o que percebemos. A segunda representa em nós as lembranças que permanecem das percepções, suas imagens não se apoiam sobre alguma coisa: é a imaginação propriamente dita. Na terceira, todo prazer, toda imaginação daquilo que nos parece bom ou mau cai na tristeza. É por isso que se diz que nenhuma imaginação tem lugar diante de Deus. Pois Deus, de uma vez por todas, está além de todo pensamento e acima de absolutamente tudo”. O grande Basílio diz também: “O intelecto que não se dispersa nas coisas exteriores, que não se espalha pelo mundo através dos sentidos, retorna sobre si mesmo e através de si meso se eleva ao pensamento de Deus. Cercado pela luz desta beleza chega a esquecer de sua própria natureza[383]”. Sabendo disso, esforce-se você também para estar a toda hora com Deus, livre de imaginações, de formas, de representações, e reze com todo o seu intelecto puro e com sua alma pura. É o que diz são Máximo.
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66. Do intelecto, da alma e do coração puros e perfeitos. Da inteligência pura “A inteligência pura é a inteligência que se separou da ignorância e que brilha na luz de Deus[384]”. Da alma pura “A alma pura é a alma que se libertou das paixões e que não cessa de se regozijar no amor de Deus[385]”. Do coração puro “O coração puro é o coração que dirige inteiramente para Deus sua memória, livre de qualquer figura, de qualquer forma, pronto para ser marcado pelos únicos sinais por meio dos quais ele se revela[386]”. Que ele se ligue a eles. Da inteligência perfeita “A inteligência perfeita é a inteligência que conheceu pela verdadeira fé o Mais-que-desconhecido, que contemplou o conjunto de suas criaturas, e que recebeu de Deus a ciência que inclui a providência e o julgamento a seu respeito. Mas eu falo como um homem[387]”. Da alma perfeita “A alma perfeita é a alma cuja potência passional está totalmente voltada para Deus[388]”. Do coração perfeito “Chamamos de coração perfeito o coração que não tem de modo algum nenhum movimento natural para o que quer que seja. Nele, como num pergaminho bem encerado pela extrema simplicidade, Deus vem escrever suas próprias leis[389]”. Do intelecto puro Purificar o intelecto, segundo são Diádoco, cabe apenas ao Espírito Santo[390]. Também fixar o intelecto, segundo João Clímaco, cabe apenas ao Espírito Santo[391]. São Nilo diz ainda: “Se quisermos ver a natureza profunda do intelecto, devemos nos afastar de todos os pensamentos. Então o veremos semelhante à cor da safira e à cor do céu.” E também: “A natureza profunda do intelecto é sua própria altura semelhante à cor do céu. Nele, no momento da prece, permanece a luz da santa Trindade”. E santo Isaac: “Quando intelecto se despojar do homem velho, quando estiver revestido do homem novo[392], ele verá sua própria pureza como a cor do céu. Ele se tornará aquilo que a assembleia dos filhos de Israel chamou de ‘lugar de Deus’, que eles viram sobre a montanha[393]”. Assim, se você fizer o que foi dito, se você orar com toda pureza além de toda imaginação, além de toda forma, você seguirá as pegadas dos santos. Senão, ao invés de hesiquiasta, você será um imaginativo. E em lugar de espigas, colherá espinhos. Mas que isto não aconteça!
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67. Como viam os profetas. Se alguém pensa conhecer pela imaginação e pela ordem natural as visões dos profetas, as imagens e revelações que estes contemplaram, estará se afastando do justo objetivo e da verdade. Pois naquilo que eles viram e imaginaram, não é por uma consequência e uma ordem natural que os profetas e os iniciados que existem entre nós viram e formaram essas imagens. Foi de forma divina e sobrenatural, pelo poder e a graça indizíveis do Espírito Santo, que seu espírito conheceu esses sinais e essas imagens, como disse o grande Basílio: “Uma potência inefável permitiu aos que têm o intelecto puro, longe de qualquer distração, ver nele as imagens, como se a palavra de Deus ressoasse neles”. E mais: “Os profetas viram a razão marcada pelo Espírito”. E Gregório o Teólogo: “Ele – o Espírito Santo – age primeiro nas potências angélicas e celestes”; e a seguir: “depois nos Padres e nos profetas. Dentre estes, alguns viram a imagem de Deus ou conheceram a Deus; outros, com a razão marcada pelo Espírito, previram o futuro; eles estavam como que presentes nas coisas futuras[394]".
68. Das imaginações e das numerosas e diferentes contemplações. Mas alguns, que receberam as imaginações e toda a variedade das contemplações, duvidam e se opõem a nós acreditando seguir os santos, porque Gregório o Teólogo disse que podemos figurar a Deus apenas pelo intelecto, não a partir do que ele é, mas daquilo que o cerca, quando uma imaginação estranha se parece com uma imagem da verdade; porque o divino Máximo disse também que o intelecto não pode se tornar impassível apenas em virtude da ação, se esta não for acompanhada de numerosas e diferentes contemplações[395]; e porque outros santos expuseram do mesmo modo coisas semelhantes. Saibam estes homens como e de que maneira chegaram a esses bem-aventurados as palavras referentes, não à obra que lhes foi transmitida lá onde se acha a graça – a graça do conhecimento e da contemplação que une o homem a Deus por meio desta experiência –, mas à obra que projetamos, ou seja, à contemplação que provém da sabedoria, da analogia e da harmonia dos seres e que insensivelmente conduz ao pensamento de Deus, a qual é permitida de uma vez por todas a muitos, senão a todos, buscar e conceber. Quem com pleno conhecimento provou dos exemplos dos santos sabe disto claramente, conforme está escrito: “É partindo da grandeza e da beleza das criaturas que, por analogia, se pode compreender o Criador[396]”, mas não partindo dos ensinamentos deste mundo profano e falador, artificial e vão. Pois este é como um servidor pouco digno. A ciência, os sofismas, as demonstrações o enchem de orgulho. Ele não está fundamentado na fé nem na humildade evangélicas, na verdadeira submissão. Ele se acha banido para longe das portas sagradas. Mas falemos agora da iluminação perfeita, a iluminação enipostática, por meio da qual os apóstolos escolhidos que estiveram com Jesus sobre o monte Tabor experimentaram inefavelmente a bela e verdadeiramente bem-aventurada mudança[397] que os transformou. Com seus olhos de carne transportados até o divino e tornados espirituais pela direita do Santíssimo Espírito, eles foram considerados dignos de ver o Reino e a Divindade que não se pode contemplar[398]. Assim como o Oriente está longe do Ocidente[399], como o céu está distante da terra, assim como a alma se eleva acima do corpo, também a obra e a graça que recebemos a transportam sobre a obra que projetamos. Pois esta, a obra que projetamos, permanece no exterior, conforme dissemos: ela classifica os seres, organiza-os e os agrupa. Mas quando a imaginação fora dela própria se agrupa assim numa imagem única da verdade, esta obra progredirá sempre, tendendo e se elevando para Deus na fé. A outra, a obra que recebemos, vem diretamente do próprio Deus e se comunica fundamentalmente com o interior do coração. Acontece às vezes dela se manifestar no exterior e transmitir visivelmente ao corpo, além de toda intelecção, seu próprio esplendor e a iluminação de Deus.
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O coração, segundo o sábio Máximo, experimenta sobrenaturalmente a deificação incriada, mas não a provoca. Com efeito, este santo disse: “Chamo de deificação incriada a iluminação enipostática específica da Divindade. Esta luz não tem origem. Mas, de maneira inconcebível, ela aparece naqueles que dela são dignos[400]”. O grande Dionísio fala no mesmo sentido: “É preciso saber que o nosso intelecto tem a faculdade de compreender, por meio da qual ele vê os inteligíveis, mas também que ele comporta igualmente a união que ultrapassa sua natureza, por meio da qual ele desfruta daquilo que está além dele[401]”. E santo Isaac: “Nossa alma tem dois olhos, como dizem os Padres. Mas ambos não possuem o mesmo uso da visão. Por um dos olhos nós vemos o que está oculto nas naturezas, ou seja, o poder de Deus, sua sabedoria e providência a nosso respeito, que compreendemos a partir da santidade com que nos dirige. Pelo outro olho contemplamos a glória de sua natureza santa, quando a Deus apetece nos fazer penetrar em seus mistérios espirituais[402]”. E o divino Diádoco: “Os carismas – a sabedoria, o conhecimento e todos os demais carismas divinos – provêm unicamente do Espírito Santo. Assim, cada qual possui sua energia própria. É por isso que o Apóstolo atesta que a um é dada a sabedoria, a outro o conhecimento, pelo mesmo Espírito[403]. Com efeito, o conhecimento, por sua própria experiência, une o homem a Deus sem levar a alma às razões das coisas. É por isso que alguns que cultivam a vida solitária têm seus sentidos iluminados por este conhecimento, mas não penetram nas razões divinas. Ao contrário, a sabedoria, quando concedida a alguém junto com o conhecimento e o temor – o que é raro – revela as próprias energias deste conhecimento. Pois uma ilumina naturalmente pela energia, o outro pela razão. Mas o conhecimento provém da oração e de uma grande hesíquia na total ausência de preocupações. A sabedoria provém da meditação desinteressada das palavras de Deus. E ambas provém, antes de tudo, da graça que é concedida por Deus[404]”. São Máximo diz, por outro lado, nos seus comentários: “O poço de Jacó[405] é a Escritura. A água é o conhecimento que está na Escritura. A profundidade é a contemplação dos enigmas da Escritura, que é difícil de atingir. O pote é o aprendizado da palavra de Deus através das letras. O Senhor não tinha necessidade disto, porque ele mesmo é a palavra. E não é pela instrução e o estudo que ele dá o conhecimento aos que creem. Mas é pela graça inesgotável do Espírito que ele concede aos que são dignos a sabedoria inesgotável que não acabará jamais. Pois o pote – ou seja, a instrução – não recebe senão uma parte mínima do conhecimento. Não lhe é permitido conter o todo. Mas o conhecimento que provém da graça traz sem necessidade de estudos a sabedoria possível aos homens e ela se derrama de diversas maneiras para satisfazer suas necessidades[406]”. E são Diádoco: “Nosso intelecto suporta com dificuldade o muito orar. Pois a virtude da oração é estreita e secreta. Mas ele se dedica com alegria à teologia, tão imensas e absolutas são as contemplações divinas. Portanto, não demos livre curso a seu desejo de falar muito, e não permitamos à alegria que se eleve com suas asas além de toda medida. Consagremo-la sobretudo à prece, à salmodia e à leitura das santas Escrituras. Não negligenciemos também as pesquisas dos homens de ciência cujas palavras revelam a fé. Ao fazer isto, não a deixemos misturar suas próprias palavras às palavras da graça, não nos deixemos atrair pela vaidade a que nos levam o entusiasmo e a falação. No momento da contemplação protejamo-la afastando dela toda imaginação, e vigiemos para que a maior parte dos pensamentos que lhe cheguem sejam como lágrimas. Aquele que, no momento da hesíquia, faz cessar tudo em si, que acima de tudo ama a doçura da prece, não apenas se subtrai aos perigos de que falamos, mas se renova cada vez mais aplicando-se com acuidade e sem esforço às contemplações divinas, avançando com muita humildade no conhecimento do discernimento. Mas isto só cabe àqueles que, com toda percepção e certeza, estão cheios da santa graça”.
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Entendeu? Ele disse que a prece está acima de toda extensão, e que ela só pertence àqueles que, com toda percepção e certeza – ou seja, do interior do coração – estão, de modo enipostático e sobrenatural, cheios da luz divina da graça[407]. Santo Isaac chama ainda a oração de memória desmembrada, ou seja, memória sem forma, sem imagens, simples. Outros Padres a definem de outras maneiras.
69. Das cinco potências da alma. Das imaginações próprias à alma e ao intelecto. Que na prece pura e no trabalho simples e uno do intelecto é preciso fugir totalmente da imaginação e das representações de formas, imagens e figuras. Não é apenas por intermédio dos demônios que a alma imagina, mas ela também pode se por a imaginar naturalmente, por si própria, através das cinco faculdades que ela possui – a inteligência, a reflexão, a opinião, a imaginação e a sensação – assim como o corpo possui cinco sentidos, a vista, o olfato, a audição, o paladar e o tato. A imaginação, como dissemos, é uma faculdade da alma. É por meio dela que a alma se representa as figuras. É preciso que alma que quiser dirigi-la e discernir bem o que lhe pertence dê asas sobretudo àquelas de suas faculdades que a unem a Deus no século presente e no século futuro, e que ela se apresse em se elevar somente a Deus. Quanto ao resto, ela deve vigiar tudo, utilizar-se de tudo e a tudo fazer como convém. É preciso pesquisar o que dizem os Padres a respeito, e como conservar o que é justo. São Máximo disse: “A alma, por si só, ou seja, por sua própria essência, é dotada de razão e de inteligência e está fundamentada em si mesma. Se ela está fundamentada em si mesma, ela agirá naturalmente por si própria, dentro de um corpo, compreendendo por natureza, refletindo e não se privando das faculdades intelectuais que estão naturalmente ligadas a ela. Pois aquilo que está ligado naturalmente a um ser, qualquer que seja, não lhe pode ser tirado enquanto ele se mantiver tal como é, enquanto ele permanecer sendo. Assim, a alma que é para sempre, por ser e existir por Deus que a criou assim, não cessa jamais de compreender, refletir e conhecer. E ela o faz por si mesma, dentro de um corpo, por si só e por sua própria natureza. Não existe nenhum motivo que possa separar a alma daquilo que lhe pertence naturalmente, mesmo depois da dissolução do corpo. Pois sabemos, por termos aprendido dos santos, que a inteligência e a reflexão se movem ao redor de Deus e trabalham com ele tanto no século presente como naquele por vir, mas que as outras faculdades só agem no século presente, porque são próprias dele. É preciso que a própria alma, como um piloto hábil, tendo naturalmente autoridade sobre elas e estando destinada a agir não apenas no século presente, mas sobretudo no século futuro, se esforce por todos os modos para dirigir para Deus e unir a ele a inteligência e a reflexão no momento da prece pura, no momento do trabalho intelectual uno e simples, separando a inteligência em geral da imaginação e das outras faculdades”. Segundo são Nilo, “o estado de prece é a condição impassível que, por uma extrema tensão de amor, transporta para as alturas a inteligência espiritual que ama a sabedoria[408]”. Com efeito, a alma que age assim protegerá aquilo que lhe é natural e sua preciosa dignidade.
70. Do intelecto. É assim que esta inteligência, este intelecto, essência indivisível e simples, absoluto, puro e luminoso, deve se proteger, se preservar e se separar da imaginação. Pois ele possui por si mesmo o poder natural de fazê-lo, e de se voltar irresistivelmente para si próprio, de se recolher e entrar em si mesmo. Este é o
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estado imóvel do intelecto, que lhe chega pela graça divina, como diz João Clímaco: “Imobilizar o intelecto só cabe ao Espírito Santo[409]”. Na medida em que o intelecto é uma faculdade da alma, ele é animado e comandado por ela, mas também é seu olho, e é assim que o chamamos. Ele é rico em uma faculdade particular natural, simples e perfeita, como dissemos. É por isso que quando está naturalmente em relação com a alma e suas potências o intelecto é por si próprio uma potência. É então que dizemos que o homem é psíquico[410]. Mas quando ele se reveste de sua própria condição natural, simples, essencial, e de seu esplendor indivisível, absoluto, independente, vale dizer, quando ele se desembaraça das relações e dos movimentos naturais do corpo e da alma e lhe é concedido passar de seu ser potencial à sua energia própria e progredir até o homem sobrenatural e espiritual, então o intelecto retorna sobre si mesmo na imobilidade e por meio dela se eleva irresistivelmente, totalmente, absolutamente até o pensamento sem forma, sem figura e simples de Deus, como disse o grande Basílio: “O intelecto que não se dispersa nas coisas exteriores, que não se dispersa pelo mundo por meio dos sentidos, retorna sobre si mesmo e se eleva por si só para o pensamento de Deus[411]”. Iluminado, cercado de luz tão bela, ele esquece a própria natureza. Assim o intelecto assume e salvaguarda enquanto inteligência seu ser feito à imagem e semelhança [412]. Ele se une por si só em espírito diretamente ao Intelecto divino, ou seja, a Deus, e permanece nele. Esta obra é o movimento circular, o retorno sobre si mesmo que tende para si e que se une a si, e depois por si próprio a Deus. Este movimento é verdadeiramente o único que nunca se perde nem se engana. Pois ele é irresistível e imediato. Ele é uma união mais alta que a obra da intelecção e uma visão mais elevada do que a visão. O grande Denis disse: “O movimento da alma é o movimento circular, centrado em si mesmo, longe das coisas exteriores, o enrodilhamento simples de suas faculdades intelectuais. Este movimento, como num círculo, permite à alma jamais se perder, a faz retornar das numerosas coisas exteriores e acima de tudo a recolhe em si mesma. Depois que ela readquiriu sua forma simples, ele a une às potências unificadas na unidade. Ele assim a conduz ao que é belo e bom, àquilo que ultrapassa todos os seres, em direção ao um, sempre o mesmo, sem começo nem fim. Mas a alma avança também em espiral, na medida em que ela recebe em si, como convém, a luz dos conhecimentos divinos, não em espírito e na unidade, mas a partir da dedução e da conduta do raciocínio, sob o impulso de energias compostas e móveis. Enfim, seu movimento é retilíneo quando ela já não entra em si mesma e não é mais animada pela obra unificante do intelecto, que é, como dissemos, própria do movimento circular. Ela vai ao encontro daquilo que a rodeia. E, das coisas exteriores, como símbolos variados e numerosos, ela sobe para as contemplações simples e unificadas[413]”. E são Máximo: “O intelecto que recebe a união imediata com Deus mantém na total inação a faculdade que ele possuía de compreender e de ser compreendido naturalmente. Quando ele libera esta faculdade concebendo aquilo que ele pode discernir da criação, ele rompe a união que ultrapassa toda intelecção, união por meio da qual ele estava unido a Deus, acima da natureza, na medida do possível, e se torna Deus por participação. Como uma montanha inamovível, ele desloca a lei de sua própria natureza[414]”. E ainda: “O intelecto puro que esta unido à sua própria causa penetra além de toda intelecção em um estado no qual, havendo detido o movimento e a relação natural e bastante diversificada de si mesmo com as coisas que seguem sua própria causa, e tendo atingido seu fim inefável, permanece em estado de nãoconhecimento, no silêncio bem-aventurado que ultrapassa a intelecção, que nem a palavra, nem o pensamento conseguem definir, mas que revela por si só a experiência de participação que recebem os que são considerados dignos da felicidade mais elevada do que o entendimento. Seu signo é bem conhecido e evidente para todos: é a total insensibilidade da alma em relação a qualquer pendor por este século e sua total separação em relação a ele. É por isso que o intelecto que não é assistido pela alma, ou seja, que não
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tende constantemente para Deus, e que não se esforça por fazer aquilo que lhe é próprio, que não retorna sobre si mesmo para assim subir irresistivelmente até o pensamento de Deus, não traz em si os frutos de nenhum dos movimentos, mas, unido à imaginação, se diversifica cada vez mais e se afasta de Deus.
71. Da prece pura. São Nilo disse: “Esforce-se por manter imóvel, surdo e mudo seu intelecto no momento da prece, e então você poderá orar[415]”. E também: “Eu direi o que sei e o que disse aos mais jovens: bem-aventurado o intelecto que, no momento da prece, consegue se desembaraçar de todas as formas[416]”. E são Filoteu: “É raro encontrar quem viva a hesíquia segundo a razão. Pois a hesíquia não pertence senão aos que se esforçam por ter sempre em si por este ato a alegria e a consolação divinas[417]”. E o grande Basílio: “A oração mais bela é a que torna claro à alma o pensamento de Deus. E este é o sinal de que Deus habita na alma[418]: ter a Deus fundado em si pela lembrança, quando a continuidade da lembrança não é rompida pelos cuidados terrestres e o intelecto não é perturbado por paixões súbitas. Aquele que ama a Deus foge destas coisas e parte para Deus apenas[419]”.
72. Que uma coisa é a impassibilidade do intelecto e outra a prece verdadeira, que é maior. É preciso saber também o seguinte, como diz são Máximo: “O intelecto não pode se tornar impassível apenas a partir da ação, se não lhe forem dadas numerosas e diferenciadas contemplações[420]”. E ainda, conforme o divino Nilo: “Mesmo aquele que se tornou impassível pode não orar verdadeiramente, mas se dispersar e de afastar de Deus[421]”. Este Padre diz, com efeito, deste homem: “Mesmo que o intelecto ultrapasse a contemplação corporal, ainda não viu com perfeição o lugar de Deus. Pois ele pode ter penetrado no conhecimento dos pensamentos, e se dispersar apesar deste conhecimento[422]”. E mais: “Aquele que chegou à impassibilidade ainda não ora verdadeiramente. Com efeito, ele pode permanecer nos pensamentos simples, distrair-se em suas buscas e permanecer longe de Deus[423]”. E: “Não é porque o intelecto deixou de se demorar nos pensamentos das coisas que ele atingiu o lugar da prece. Pois ele pode ter entrado na contemplação das coisas e ficar apenas no falatório. Neste caso, ele não passa das simples palavras, e estas impregnam o intelecto e se afastam de Deus, porque não passam da contemplação das coisas”. São João Clímaco diz também: “Aqueles cujo intelecto aprendeu a orar verdadeiramente conversam com o Senhor face a face[424], como os que falam ao ouvido do rei[425]”. Será considerando a estes e a seus semelhantes que você poderá ver com precisão a diferença dos dois modos de vida, e comparar as duas obras irreconciliáveis, a que recebemos e a que projetamos. Esta última consiste nas meditações e nas numerosas contemplações diversas. A outra é a verdadeira oração”. Ele também diz: “Uma coisa é a impassibilidade do intelecto, outra a verdadeira oração”. E: “Quem possui a verdadeira oração conforme os santos já alcançou por isso mesmo a impassibilidade do intelecto, mas quem tem o intelecto impassível não necessariamente adquiriu a verdadeira prece”. É tudo, por enquanto. Vamos agora retornar ao nosso tema. Dizíamos que a memória dos bens e de seus contrários prejudicava o intelecto, levando-o à imaginação. É isto que explicaremos agora.
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73. Das imaginações e das representações do intelecto. Dos sinais da ilusão e da verdade. Quais são os sinais da ilusão. Se você vive a hesíquia e pretende estar a sós com o Deus único, e se observar dentro ou fora de você algo de sensível ou de inteligível, ainda que seja aparentemente a imagem de Cristo, ou a forma de um anjo ou de um santo, ou uma imagem de luz que surge no seu intelecto, evite aderir a estas coisas, não lhes dê fé, sinta-se oprimido por esta coisa, mesmo que ela seja boa, até que você possa interrogar aqueles que têm mais experiência, conforme já dissemos. É o que há de mais útil e o que agrada a Deus. Guarde sempre seu intelecto longe de qualquer cor, forma, imagem, figura, qualidade ou quantidade. Vele apenas sobre as palavras da oração, medite e reflita no interior do movimento do coração, como diz João Clímaco: “O começo da oração consiste em expulsar pelo nome único de Deus as sugestões assim que elas aparecem. O meio consiste em ter a reflexão fixada nas palavras da oração e apenas nelas; e o fim consiste no arrebatamento no Senhor[426]”. São Nilo diz igualmente: “A prece preeminente, a prece dos perfeitos, consiste no arrebatamento do intelecto, no êxtase total para além das coisas submetidas aos sentidos, quando o Espírito, em gemidos inefáveis[427], intercede diante de Deus que vê o estado do coração aberto como um livro escrito, este estado que revela sua própria vontade em sinais silenciosos”. É assim que são Paulo foi arrebatado até o terceiro céu: se dentro ou fora de seu corpo, ele não o sabia. Assim Pedro, quando subiu ao terraço para rezar, teve a visão da toalha[428]. Depois da oração primeira, a segunda consiste em dizer as palavras com o intelecto seguindo compungido e sabendo a quem dirige a oração. Enfim, uma prece dita em meio às necessidades do corpo e misturada a elas afasta o orante do estado alcançado[429]. Portanto, se você está absorto por tais necessidades, não se encarregue de mais nada enquanto não houver acalmado as paixões, enquanto não houver interrogado os mais experientes, como dissemos. O que queremos dizer com estes e outros exemplos revela imediatamente aonde reside a ilusão. Mas considere também quais são os sinais da verdade: estes, os sinais do Espírito bom e vivificante, são o amor, a alegria, a paz, a paciência, a afabilidade, a bondade, a fé, a doçura, a temperança, tudo aquilo que o Apóstolo chama de frutos do Espírito divino[430]. Ele diz ainda: “Caminhem como filhos da luz. Pois o fruto do Espírito está em toda bondade, justiça e verdade[431]”. Tudo isto é o contrário daquilo que a ilusão traz. Um dos sábios divinos, interrogado por alguém, disse igualmente o seguinte: “Quanto ao caminho reto da salvação de que você fala, bem-amado, numerosas são as vias que conduzem à vida, e numerosas as que levam à morte”. E prosseguindo: “Você tem um caminho que conduz à vida: a observância dos mandamentos de Cristo. Nestes mandamentos você encontrará todas as formas de virtude e, por excelência, estas três: a humildade, o amor, a compaixão. Sem estas, ninguém verá o Senhor[432]”. E depois: “Estas três virtudes, a humildade, o amor e a compaixão, são armas invencíveis contra o diabo, que nos deu a Santíssima Trindade. Todo o enxame de demônios é incapaz de resistir a elas, pois neles não existe sequer traço de humildade. A autossuficiência os cobriu de trevas[433] e o fogo eterno os aguarda[434]. Onde encontrar neles sombra de amor ou de compaixão? Seu ódio à raça dos homens é implacável, eles não cessam de combatê-la. Cubramo-nos então com estas armas, que tornam impenetrável aos adversários quem delas se reveste”. E logo: “Esta corda de três fios tecida e trançada pela santa Trindade, lembremo-nos de que ela é tripla e que é também uma. Ela é tripla pelos nomes, e, se você quiser, pelas hipóstases. Mas ela é uma pela potência e pela energia, pela proximidade, o chamado e a experiência de Deus. É dela que disse o Mestre: ‘Meu jugo é doce e minha carga leve[435]’, e também o Apóstolo bem-amado: ‘Seus mandamentos não são pesados[436]’”. Depois: “A alma que se uniu a Deus se reveste de Deus pela pureza de vida, pela observância dos mandamentos e por estas três armas que são o próprio Deus. Ela se torna Deus por adoção, por intermédio da humildade, da compaixão e do amor. Ultrapassando a dualidade da matéria e elevando-se até o cume da lei[437], vale dizer, até o amor, ela se
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une à Trindade mais elevada do que o ser, que está na origem da vida, e descobre de maneira imediata a alegria contínua, a felicidade eterna”. Mas já dissemos o bastante. Assim como mencionamos parcialmente os frutos e os conhecimentos da ilusão e da verdade (pois é a partir deles, dos frutos, que, segundo o divino Paulo, conhecemos o espírito daqueles que os carregam), também devemos naturalmente explicar um pouco o que os Padres dizem da consolação de uma e outra, vale dizer, da graça divina, da verdadeira graça e de seu contrário, a falsidade. Eis, portanto, o que diz a respeito o divino Diádoco:
74. Da consolação divina e da falsa consolação. “Quando nosso intelecto começa a sentir a graça [a consolação] do Espírito Santo, então também Satanás consola a alma, permitindo-lhe perceber um rosto de doçura no repouso noturno, no momento em que ela está em sono ligeiro. Se então o intelecto, com uma lembrança fervorosa, agarra-se com toda força ao santo nome de Jesus Cristo e se serve deste nome santo e glorioso como de uma arma contra a ilusão, o enganador se retira com sua armadilha, mas daí para diante ele se agarrará à alma para lhe dar combate. A partir daí, o intelecto, que conhece precisamente a ilusão do maligno, progredirá na experiência do discernimento[438]”. “Se o corpo vela ou começa a entrar numa aparência de sonho[439], o bom consolo vem quando, como uma fervorosa lembrança de Deus, permanecemos como que ligados ao seu amor. Mas o consolo da ilusão vem sempre, como já disse, quando aquele que combate penetra num sono leve e se recorda moderadamente de Deus. Com efeito, o primeiro consolo, uma vez que provém de Deus, convida, numa grande efusão, as almas dos combatentes da piedade abertamente ao amor. Mas o outro, que costuma agitar a alma sob os ventos da ilusão, tenta roubar pelo sono do corpo a experiência do sentido do intelecto que guarda intacta a lembrança de Deus. Se, então, acontecer de o intelecto, como já disse, lembrar-se continuamente do Senhor Jesus, ele dissipa esta brisa do inimigo e seu semblante de doçura, e avança feliz para o combate, portando daí em diante, como uma arma destra, após a graça, a glória que provém da experiência[440]”. “Se, por um movimento desprovido de equívoco e imaginação, a alma se agarra ao amor a Deus, arrastando consigo o próprio corpo na profundidade deste amor indizível (esteja dormindo ou acordado aquele que recebe a santa graça, como já disse), e se, neste momento ela não concebe absolutamente nada além daquilo para o quê se dirige, é preciso saber que esta é a energia do Espírito Santo. Pois, cumulada por esta doçura inexprimível, ela não consegue pensar em outra coisa, pois regozija-se numa alegria indefectível. Mas, se o intelecto que recebe esta energia concebe a menor dúvida ou um pensamento sujo, ainda que ela se sirva do santo nome para se defender do mal e não mais somente pelo amor a Deus, é preciso compreender que este consolo vem do enganador, sob a aparência de alegria, e que esta alegria sem caráter e sem alcance é típica do inimigo que quer entrar, quando ele percebe o intelecto firme pela experiência de seu próprio sentido. Então o enganador atrai a alma com consolações de uma doçura aparente, como eu disse, a fim de que esta, dividida por este desejo poroso e fluído, não consiga desmanchar a mistura feita de engano. É assim que reconhecemos o Espírito de verdade e o espírito de ilusão[441]. É naturalmente impossível tanto sentir e provar a bondade divina quanto perceber e experimentar o amargor dos demônios, se não tivermos em nós a plena certeza de que a graça faz sua morada nas profundezas do intelecto e que os espíritos maus se ocupam ao redor dos membros do coração: é isto que os demônios tentam impedir que os homens creiam, por medo que o intelecto, sabendo-o, se arme contra eles com a lembrança de Deus[442]”. Mas agora você já sabe o bastante a este respeito. É melhor não ir além de Cádis. E: “Se você encontrar mel tome um pouco, não demais, para não vomitar[443]”.
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75. Do prazer divino que brota do coração. É mais oportuno e natural dizer: quem falará da doçura do mel a quem nunca experimentou? E mais incomparavelmente ainda: quem falará do prazer divino, da alegria que ultrapassa a natureza e distribui a vida, desta fonte que não cessa de jorrar da prece do coração, desta prece pura, da verdadeira prece? Como disse Jesus, o Deus-Homem: “Quem beber da água que eu ofereço não terá mais sede, pois a água que lhe darei se tornará nele uma fonte de água que brota da vida eterna[444]”. E ainda: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, diz a Escritura, de seu seio brotarão fontes de água viva [445]”. E o discípulo bem-amado acrescenta: “Ele falava do Espírito que receberão os que creram nele”. E o grande Paulo: “Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai[446]”.
76. Que este prazer espiritual tem muitos significados, mas não tem nome. Este prazer espiritual é chamado no mistério o esplendor enipostático sobrenatural de onde brota a vida, a treva mais que luminosa, a beleza maravilhosa, o mais alto cume do desejo, a vigilância, a visão de Deus e a deificação. De qualquer modo, ele permanece inexprimível ainda que o expressemos, desconhecido depois de ser conhecido, inconcebível depois de concebido. O grande Dionísio disse: “Assim oramos nós, para que venha a treva mais que luminosa, que nos seja concedido, pela cegueira e o desconhecimento, vê-la e conhece-la para além da visão e do conhecimento, que nos seja dado ver e conhecer o que não pode ser visto nem conhecido. Só então teremos realmente visto e conhecido. Será então que, subtraídos a todos os seres, poderemos celebrar para além deles Aquele que é mais que o ser[447]”. E ainda: “A treva divina é a luz inacessível. Diz-se que Deus habita aí. Ela é invisível, pois sua claridade é mais elevada do que o mundo. E ela é inacessível, pois a efusão da luz mais elevada que o ser ultrapassa toda medida. Qualquer um que seja considerado digno de conhecer e de ver a Deus cessará de ver e conhecer. Ele atingirá em verdade aquilo que ultrapassa a visão e o conhecimento. Ele saberá que Deus está além de todo o sensível e de todo o inteligível[448]”. E o grande Basílio: “Nada podemos dizer das fulgurações da bondade de Deus. Não as podemos explicar, elas escapam à razão e ultrapassam o entendimento. Tudo o que pudermos dizer da aurora do dia, da claridade da lua, da luz do sol, é bem pálido diante da glória e, em comparação com a verdadeira luz está mais distante dela do que a estão a noite profunda e as trevas sombrias da imensa pureza do meio-dia. Os olhos da carne não podem contemplar esta beleza. Somente a alma e a reflexão do intelecto podem captála. Quando esta beleza iluminou alguns santos, deixou neles o aguilhão insuportável do desejo. Pois eles sofriam por viver aqui em baixo. Eles diziam: ‘Meu exílio se prolonga’. E: ‘Minha alma tem sede do Deus poderoso, do Deus vivo. Quando chegarei a ver a face de meu Deus? [449]’. E: ‘O melhor é morrer e estar com Cristo[450]’. E: ‘Agora, Mestre, deixe ir em paz seu servidor, conforme sua palavra[451]’. Eles consideravam a vida aqui em baixo como uma prisão. Para contemplar sem jamais esgotar a beleza divina, eles oravam para que lhes fosse concedido levar por toda a vida eterna a visão do esplendor do Senhor[452]”. E o Teólogo: “Onde está o temor aí está a observância dos mandamentos. Onde está a observância está a purificação da carne, esta nuvem que esconde da alma o dia e não permite que ela veja com toda pureza a irradiação divina. Onde está a purificação, aí está a iluminação. E a iluminação cumpre o desejo daqueles que buscam as maiores coisas, ou a maior coisa, ou aquilo que é mais do que maior[453]”. E o divino Gregório de Nice: “Se você lavar as manchas com que os cuidados da existência cobriram seu coração, a beleza divina brilhará sobre você, como acontece com o ferro. Quando este se despoja da ferrugem pela ação da pedra de afiar, ele, que pouco antes estava sombrio se põe a brilhar com os reflexos
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do sol, e irradia claridade. Também o homem interior, que o Senhor chama de coração, desde que apague a venenosa ferrugem com que a podridão o cobriu, reencontrará sua semelhança com o modelo e se tornará bom. Pois um bem idêntico acompanha de todo modo aquilo que é bom”. E são Nilo: “Bem-aventurado aquele que traz em si o desconhecimento inseparável da oração[454]”. E João Clímaco: “O abismo do luto viu a consolação, e a pureza do coração recebeu a iluminação. A iluminação é a inefável energia contemplada no invisível e concebida na ignorância[455]”. Por isso será três vezes bem-aventurado os que, como antes Maria, escolheram a boa parte[456], a vida espiritual indefectível, e foram considerados dignos de receber e partilhar desta bondade semelhante a Deus. No grande êxtase da luz maravilhosa, ser-lhes-á possível ser transportados fora de si e dizer com o divino Paulo: “Quando aparecerem a bondade de Deus nosso Salvador e seu amor pelo homem, ele não se preocupará com as obras de justiça que tenhamos ou não praticado, mas em sua misericórdia nos salvará pelo banho do novo nascimento, renovando-nos no Espírito Santo que Jesus Cristo nosso Salvador derramou sobre nós em abundância. A fim de que, justificados pela graça de Cristo, obtenhamos esperançosamente a herança da vida eterna[457]”. E mais: “Ele nos deu a unção, nos marcou com seu selo, colocou em nossos corações os penhores do Espírito[458]”. E: “Transportamos em nós estes tesouros dentro de vasos de argila. Pois este poder transbordante pertence a Deus e não provém de nós[459]”. Assim foram estes homens. Que também a nós, por suas preces confiantes ao Senhor, nos seja permitido tomar parte naquilo que eles foram, na compaixão e na graça.
77. É preciso necessariamente que aquele que pretende viver com todo rigor a vida hesiquiasta seja doce em seu coração. Mas, meu filho, é preciso que agora você aprenda a tempo, antes das outras coisas e com as outras coisas, o seguinte: assim como quem quer aprender a atirar com o arco não o tensiona sem ter um alvo, também aquele que quer aprender a viver a hesíquia deve ter por alvo manter sempre um coração doce. Santo Isidoro disse: “Não basta se dedicar à virtude, é preciso também moderar a ascese. Se, ao conduzimos o combate pela doçura, o interrompermos com pensamentos violentos, estaremos tentando atingir a salvação sem fazer aquilo que permite que sejamos salvos”. Bem antes, o divino Davi havia dito: “Ele conduzirá os mansos ao julgamento e ensinará aos doces seus caminhos[460]”. E o Eclesiastes: “Os mistérios serão revelados aos mansos”. E o dulcíssimo Jesus: “Aprendam comigo, que sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão o repouso em suas almas[461]”. E: “Sobre quem velarei eu, senão sobre os mansos, os calmos, os que tremem às minhas palavras?[462]”. E: “Bem-aventurados os mansos, pois eles herdarão a terra[463]”, ou seja, o coração que carrega em si os frutos da graça, um trinta, outro sessenta, outro cem [464], conforme a ordem dos noviços, dos médios e dos perfeitos. Mas estas palavras não devem perturbar. Ela é movida pela piedade.
78. Como alcançar a doçura. Das três partes da alma: o ardor, o desejo e a razão. Você chegará até aí facilmente, se fizer convergir tudo para o amor e nele colocar sua alma, contendo-se o mais possível, alimentando-se moderadamente e orando sempre. Como dizem os Padres: “Refreie por intermédio do amor o ardor da alma, por meio da temperança esgote seu desejo, dê à sua razão as asas da prece. E a luz do intelecto não se obscurecerá jamais[465]”. E: “O freio do ardor é o silêncio oportuno. O freio do desejo desmesurado é a alimentação bem dosada. O freio do pensamento fogoso é a oração do nome único do Senhor”. E mais: “Existem três virtudes que cumulam de luz o intelecto de uma vez para sempre: ignorar a malícia de um homem, suportar sem se perturbar aquilo que nos acontece e fazer o bem
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a quem nos faz mal. Estas três virtudes engendram outras três ainda maiores: ignorar a malícia de um homem engendra o amor; suportar sem se perturbar aquilo que nos acontece engendra a mansidão; e fazer o bem aos que nos fazem mal engendra a paz”. E ainda: “Três condições gerais regem a ética dos monges. A primeira consiste em não pecar pela ação. A segunda, em não deixar inveterar na alma os pensamentos passionais. A terceira, em ver sem paixão, de maneira refletida, quando nos aparecem, as mulheres e aqueles que nos afligiram[466]”.
79. Que é preciso se arrepender rapidamente das transgressões e daí por diante permanecer em guarda sabiamente. Se lhe acontecer de se perturbar ou de cair em alguma falta e de desviar do seu dever, é preciso que você imediatamente se reconcilie com quem o afligiu ou a quem você afligiu, e que você se arrependa com toda sua alma. É preciso que você tome o luto, que chore e se envergonhe de si, e que daí por diante você fique atento, que se guarde com toda sabedoria, como nos ensina o Senhor Jesus: “Se você for levar sua oferenda ao altar e se lembrar de que seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe sua oferenda diante do altar e vá primeiro se reconciliar com seu irmão. Depois, coloque sua oferenda[467]”. E o apóstolo Paulo: “Que a amargura, a cólera, os gritos, os ultrajes desapareçam dentre vocês, e também toda malícia. Ao contrário, sejam bons, compassivos uns com os outros, perdoem-se mutuamente como Deus nos perdoou em Cristo[468]”. E: “Enraiveçam-se, mas não pequem”. E: “Que o sol não se ponha sobre sua cólera[469]”. E: “Não façam justiça por conta própria, bem-amados, mas deixem a ira de Deus agir[470]”. E: “Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem[471]”. Isto tudo, a respeito da reconciliação mútua.
80. Da queda e do arrependimento. Santo Isaac diz a respeito da queda: “Não é quando alguma coisa nos faz escorregar que devemos nos afligir, mas quando perseveramos na queda. Pois mesmo aos perfeitos acontece escorregar. Mas permanecer em queda é a morte total. Quanto à tristeza que ficamos quando nos afligimos por nossas próprias quedas, é preciso considerar que a graça faz dela a ocasião para uma obra pura. Mas aquele que se deixa cair uma segunda vez esperando se arrepender depois está tentando enganar a Deus. A morte o arrebatará sem que ele saiba, e jamais chegará o tempo em que ele imagina poder levar à perfeição as obras da virtude[472]”. Ele diz ainda: “É preciso que saibamos todo o tempo que devemos nos arrepender durante as vinte e quatro horas do dia e da noite. E o sentido do arrependimento, conforme nos ensinou a verdadeira ordem das coisas, é o seguinte: dirigirmo-nos para Deus, pedindo-lhe continuamente, a toda hora, numa prece cheia de compunção, que sejamos perdoados das faltas passadas. E nos afligirmos para sermos resguardados das faltas por vir[473]”. E mais: “Graça sobre a graça, o arrependimento é dado aos homens. O arrependimento é o novo nascimento, o segundo nascimento que vem de Deus. Pela fé recebemos sua garantia, e pelo arrependimento recebemos seu dom. O arrependimento é a porta para a piedade. Ela se abre àqueles que o procuram, e por esta porta penetramos na piedade divina. Se não entrarmos por esta porta, não encontraremos a piedade. Pois todos pecaram, diz a Escritura, mas foram justificados pelo puro dom de sua graça[474]. O arrependimento é a graça segunda, que nasce do coração pela fé e o temor. O temor é a vara paterna, que nos dirige até que tenhamos atingido o Paraíso espiritual. Quando o alcançarmos, ele nos deixa e regressa. O Paraíso é o amor de Deus, onde se encontram as delícias de todas as beatitudes[475]”.
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E também: “Assim como não é possível atravessar o oceano sem navio nem barco, sem o temor tampouco é possível alcançar o amor. Este mar nauseante que nos separa do Paraíso inteligível pode ser atravessado com o navio do arrependimento, quando este carrega em si os remadores do temor. Mas se os remadores do temor não dirigem o navio do arrependimento, com o qual vogamos sobre as águas deste mundo para alcançarmos a Deus, soçobraremos no mar nauseabundo[476]”.
81. Do arrependimento, do temor, do amor, do luto, das lágrimas e da vergonha de si. O arrependimento é o navio. O temor, o piloto. O amor, o porto divino. Assim é que o temor nos embarca no navio do arrependimento. Ele nos faz atravessar o oceano nauseante da existência e nos conduz ao porto divino que é o amor, aonde chegam, pelo arrependimento, aqueles que penam e se curvam sob a carga[477]. Ora, quando atingimos o amor, chegamos a Deus. Completamos nossa jornada: estamos na ilha que fica além do mundo, onde residem o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A respeito da tristeza conforme a Deus, o Salvador disse: “Bem-aventurados os aflitos, pois eles serão consolados[478]”. Sobre as lágrimas, santo Isaac escreveu: “As lágrimas que vertemos orando são um sinal da misericórdia de Deus, da qual a alma se tornou digna pelo arrependimento”. E: “Ela esperou, e eis que pelas lágrimas entrou na planície da pureza. Pois, se os pensamentos daquilo que passa não são dissipados, se não rejeitam de si a esperança do mundo, se não suscitam em si o desprezo pelo mundo, se não se armam com um bom viático para seu êxodo, se não se voltam na alma para o que acontecerá lá embaixo, os olhos não podem chorar. Pois as almas correm quando os pensamentos numerosos, constantes e direitos nos vêm sem mistura e sem distração, quando a menor coisa sobe da memória para a reflexão e aflige o coração que se recorda. Então as lágrimas se multiplicam e abundam[479]”. E João Clímaco: “Assim como o fogo consome o orvalho, também as lágrimas puras apagam toda mancha da carne e do espírito[480]”. E também: “Guardemos puras e sem malícia as lágrimas que nos vêm de nossa dissolução. Pois nelas não há truques nem orgulho, mas purificação, progresso no amor a Deus, absolvição do pecado, impassibilidade[481]”. E mais: “Não se fie nas fontes de suas lágrimas antes da purificação perfeita. O vinho ainda não é garantido quando acaba de sair da prensa para a cuba”. E: “As lágrimas vertidas por temor trazem em si aquilo que as resguarda. Mas as lágrimas do amor, antes do amor perfeito, secam depressa se no momento em que correm o fogo que existe em nossa memória não inflama o coração. Devemos nos admirar que o mais humilde seja também o mais garantido quando chega a hora[482]”. E ainda: “As lágrimas do êxodo engendram o temor. Mas quando o temor engendra sua própria ausência, chega a alegria. E quando a alegria incompreensível cessa, abre-se a flor do santo amor[483]”. A respeito de acusar a si mesmo, o grande Antônio disse: “Esta é a grande obra do homem. Tomar sobre si mesmo sua falta diante de Deus, e esperar pela tentação até seu último suspiro[484]”. A outro Padre foi colocada a questão: “O que você encontrou de maior nesta via?”. Ele respondeu: “Acusar a si mesmo por tudo”. Aquele que o interrogava aprovou esta resposta e lhe disse: “Não existe outra via senão esta[485]”. E o abade Poêmio: “É por intermédio dos gemidos que todas as virtudes chegam ao mundo. Retire uma virtude: sem ela, ao homem só resta o mal”. Perguntaram-lhe: “Qual é esta virtude?”; ele disse: “Que o homem não cesse de acusar a si mesmo[486]”. E completou: “Aquele que acusa a si mesmo, aconteça o que lhe acontecer – prejuízo, aflição, engano – ele presume merecer e não se perturba jamais[487]”.
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82. Da atenção. Como se por em guarda sabiamente. Também o glorioso Paulo escreve a respeito da atenção e da prudência: “Vigiem para se comportar não como insensatos, mas como sábios, resgatando o tempo, porque os dias estão ruins[488]”. E santo Isaac: “Ó sabedoria, como é admirável! E como prevê tudo antecipadamente! Feliz quem a encontrou, porque se livrou da indolência da juventude. Se alguém busca por uma pequena mudança – para adquiri-la – a cura das grandes paixões, faz bem. Pois este é o amor da sabedoria: este homem estará sempre sóbrio e vigilante no que lhe acontecer, até nas menores coisas. Ele ajunta, como se fosse um tesouro, um grande repouso, ele quase não dorme a fim de que nada de contrário lhe aconteça, ele corta as raízes antes que aconteça o mal. Nas pequenas coisas ele suporta uma aflição menor, a fim de afastar as maiores e seguir adiante. É por isso que o sábio diz: esteja desperto, seja sóbrio e vigilante, vele por sua vida. Pois o sono da reflexão parece e se identifica com a verdadeira morte”. Basílio o hierofante diz igualmente: “Quem é negligente consigo nas pequenas coisas, não creio que se distinguirá nas grandes[489]”.
83. Que o hesiquiasta deve se aplicar antes de tudo ao que foi dito. Que antes de tudo ele seja calmo e manso, e se mantenha invocando com pureza ao Senhor Jesus no interior do coração. Portanto, aplique-se a tudo o que foi dito, e em primeiro lugar em invocar com uma consciência pura, das profundezas do coração, na hesíquia e com doçura, ao Senhor Jesus Cristo. Pois é assim que, avançando no caminho, você terá a graça divina repousando em sua alma. João Clímaco disse: “Ninguém, se estiver perturbado pela cólera e pela presunção, pela hipocrisia e a inveja, poderá jamais ver em si o menor traço de hesíquia que permita descobrir o êxtase. Mas quem é puro destas coisas conhecerá o bem. Ao contrário, o primeiro, em minha opinião, não o conhecerá[490]”. Não apenas a graça repousará em sua alma, mas sua alma repousará inteiramente dos demônios e das paixões que antes a perturbavam. E mesmo que eles a perturbem ainda, não serão mais capazes de agir, pois ela não está mais ligada a eles, nem deseja receber deles o menor prazer.
84. Da beleza e do êxtase do eros. Da beatitude. Todo o desejo daquele homem, o êxtase do eros em seu coração, a total abertura para a beleza mais do que bela, busca algo mais feliz ainda, aquilo a que os Padres chamaram de “cume do desejável”. O grande Basílio disse: “Quando o amor da piedade se apodera da alma tudo o que a combate se torna derrisório, e todos os que a espancavam por causa Daquele que ela deseja mais a alegram do que a ferem”. E também: “O que há de mais maravilhoso do que a beleza divina? Que pensamento tem mais graça do que a grandeza de Deus? Que desejo da alma é tão agudo e revolucionário do que aquele que vem de Deus na alma purificada de toda malícia e que em verdade diz com todo seu ser: ‘Estou morta de amor[491]’?”.
85. Do combate. Daquilo que Deus permite para instruir. E do abandono, quando ele dá as costas. O homem é combatido a partir do momento em que Deus o permite, mas sem abandoná-lo dando-lhe as costas. Por quê? Para que seu intelecto não se orgulha daquilo que encontrou de bom. Cada vez que ele é combatido, cada vez que é castigado, ele se lembra da humildade. Pois é somente pela humildade que, não apenas ele vence os que o combatem por seu orgulho, como ainda se torna continuamente digno dos maiores dons. Entravado, oprimido pelos laços indissolúveis e o peso da carne, ele progride tanto quanto é possível à natureza humana e avança para a perfeição, para a impassibilidade de Cristo.
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São Diádoco diz: “O próprio Senhor disse que Satanás caiu dos céus como um raio[492], a fim de que o disforme não pudesse mais ver as moradas dos santos anjos. Como então aquele que não foi considerado digno da comunhão com os bons servidores poderá ter no intelecto humano uma morada comum com Deus? Dizemos que isto só acontece porque Deus o permite; nada mais há a dizer. Pois aquilo que Deus permite para instruir não priva absolutamente a alma a da luz divina. A graça, como eu disse, esconde apenas o mais forte de sua presença no intelecto. Este é então empurrado para frente, como a alma que, fugindo da amargura dos demônios, busca com todo temor e muita humildade o socorro de Deus e reconhece pouco a pouco a malícia de seu inimigo. É a mesma coisa que faz a mãe que afasta de seus braços por um momento seu filho que se recusa a tomar regularmente seu leite para que, atrapalhado por se ver cercado de homens sórdidos e de animais, com medo e chorando, ele retorne ao seio materno. Quando Deus dá as costas, aquilo que ele permite então atira ao cativeiro dos demônios a alma que não quer Deus. Mas nós não somos filhos vira-casaca[493]. Ao contrário, cremos ser filhos autênticos nutridos do leite da graça de Deus, que, para nos elevar, nos abandona um pouco e nos consola muito. E esperamos, pela bondade divina, chegarmos a ser homens perfeitos, do canteiro de Cristo[494]”. E ainda: “Aquilo que Deus permite para instruir traz consigo uma grande aflição, uma humildade, um desespero na medida da alma, a fim de que a porção vaidosa e temerária que há nela se torne humilde como convém. Isto conduz rapidamente o coração ao temor de Deus, às lágrimas da confissão, a um grande desejo pela beleza do silêncio. Mas quando dá as costas, Deus permite que a alma se encha de desespero, de infidelidade, de cólera, de torpor. Podemos assim ter a experiência destes dois caminhos que Deus nos concede, e nos dirigirmos a ele seguindo qualquer um deles. Pelo primeiro, ao mesmo tempo em que lhe prestamos conta de nossos atos, lhe damos graças por esta suspensão do consolo que poda tudo o que havia de intemperante em nosso pensamento, para que aprendamos dele, como de um bom Pai, a diferença que separa a virtude do vício. Pelo segundo, devemos confessar a ele nossos pecados sem descanso, chorando sempre, e retornar, a fim de que, aceitando as penas, possamos orar a Deus para que veja nossos corações como antes. Além disso, é preciso saber que, quando começa o verdadeiro combate entre a alma e Satanás, ou seja, quando Deus o permite para nossa instrução, a própria graça se retira, com eu disse. Mas sem se deixar conhecer ela assiste à alma, para mostrar que a vitória sobre os inimigos só a ela pertence[495]”. E santo Isaac: “Não é possível que fora das tentações que Deus permite o homem descubra a sabedoria nos combates espirituais, que ele conheça Aquele que vela por ele, que sinta seu Deus e que seja secretamente fortalecido em sua fé, senão pela força da provação que recebeu. Quando a graça percebe que aponta a menor presunção no pensamento de um homem, e que este começa a ter uma grande opinião sobre si mesmo, ela logo permite às tentações assaltá-lo com força cada vez maior, até que ele aprenda sua própria fraqueza, que ele fuja e se dirija a Deus com humildade. Só assim ele atinge a medida do homem perfeito[496], na fé e na esperança do Filho de Deus, e se eleva para o amor. Pois o amor de Deus pelo homem faz maravilhas quando este se encontra no meio das provações que quebram sua esperança. É aí, na salvação que ele concede ao homem, que Deus mostra seu poder. Com efeito, o homem jamais apreende o poder divino na indolência e na facilidade. Deus jamais permitiu sentir sua energia senão no país da hesíquia, no deserto, nos lugares aonde falta tudo o que nos acontece e nos perturba quando nos encontramos no meio dos homens[497]”.
86. Da impassibilidade. O que é a impassibilidade humana. Devemos agora falar especialmente da impassibilidade e da perfeição, e depois colocar um fim na presente obra.
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O grande Basílio disse: “Aquele que tende para Deus com todo seu amor e que buscar possuir, por pouco que seja, sua impassibilidade, a saúde espiritual, a serenidade, a calma, a mansidão, aquele que deseja provar da felicidade e da alegria que estas virtudes engendram, deve se dedicar a afastar de si os pensamentos de todas as paixões materiais que perturbam a alma. Com um olhar puro e sem sombras, ele considerará as coisas de Deus e se encherá da luz do além, e seu desejo será insaciável. Tendo exercitado a alma até atingir este estado, esta condição, com toda a semelhança que lhe é possível, ele se tornará familiar do Deus a quem ele ama e procura. Pois, uma vez que ele suportou o grande combate difícil de sustentar – a reflexão pura e livre de toda mistura com as paixões do corpo – ele poderá, a partir de sua compleição material, reencontrar a Deus”. Isto a respeito da impassibilidade. Sobre no que consiste a impassibilidade humana, santo Isaac escreve: “A impassibilidade não consiste em não sentir as paixões humanas, mas em não as acolher. Quando as virtudes adquiridas, visíveis e ocultas são diversas e numerosas, as paixões, de fato, se esgotam nelas. É difícil para elas se sublevarem contra a alma. A reflexão não precisa estar sempre atenta, pois durante todo o tempo ela está cheia de pensamentos que lhe chegam da meditação e da utilização dos melhores modos suscitados conscientemente no intelecto. Quando as paixões despertam e começam a se agitar, à sua aproximação a reflexão é imediatamente tirada de seu contato por uma consciência atenta que está no coração do intelecto. E as paixões estéreis são afastadas dela. Como diz o bem-aventurado Marcos: o intelecto que, pela graça de Deus, cumpre com as ações das virtudes e se aproxima do conhecimento, não sente grande coisa proveniente da parte má e insensata da alma. Pois seu conhecimento o arrebata para as alturas e o separa de tudo o que está no mundo. Pela castidade que existe neles, pela finura, a leveza, a penetração de sua inteligência, e também por sua ascese, o intelecto desses homens se purifica e se torna transparente. Pois eles dessecaram sua carne vivendo na hesíquia e permanecendo nela longamente. É por isso que a contemplação que está neles vem repousar sem pena e rapidamente sobre cada qual e os conduz ao maravilhamento que ela suscita. Eles crescem muito com estas contemplações. Nunca falta à reflexão de seu intelecto a matéria necessária para que compreenda. E eles jamais conduzem suas vidas fora daquilo que neles engendra o fruto do Espírito[498]. O longo hábito apaga de seus corações as lembranças que as paixões suscitavam na alma, bem como a força do poder do diabo. Pois, quando a alma resiste às paixões e não possui laços com elas, por estar firme e continuamente voltada para outros cuidados, a força das garras das paixões não consegue superar os sentidos espirituais[499]”. E o divino Diádoco: “A impassibilidade não consiste em não ser combatido pelos demônios (pois então teríamos que deixar o mundo, como diz o Apóstolo[500]), mas sim em que, combatido por eles, não mais sentir seus ataques. Os combatentes encouraçados de ferro recebem as flechas dos adversários, ouvem o ruído dos tiros, veem quase todas as flechas dirigidas contra eles, mas nenhuma os fere, pois suas vestes de combate são sólidas. Protegidos pelo ferro, eles são invulneráveis durante o combate. Também nós, por todos os bens que recebemos, cobertos com a armadura da santa luz e com o capacete da salvação, derrotamos as sombras das falanges dos demônios[501]. Pois não é apenas não fazer o mal que torna puro o homem, mas também ter a força de destruí-lo dedicando-se ao bem[502]”. São Máximo distingue quatro vias da impassibilidade, Ele diz: “Chamo de primeira impassibilidade o movimento irrepreensível que evita cometer qualquer pecado corporal. Chamo de segunda impassibilidade a rejeição total dos pensamentos passionais da alma; por meio desta rejeição se estiola o movimento das paixões que a primeira impassibilidade detinha, pois este movimento já não traz em si os pensamentos passionais que inflamavam a alma para leva-la ao ato. Chamo de terceira impassibilidade a perfeita imobilidade do desejo diante das paixões; é por meio dela, inclusive, que se alcançava a segunda impassibilidade, fundamentada na pureza dos pensamentos. Chamo de quarta impassibilidade a rejeição total de todas as imaginações sensíveis que atravessam a reflexão do intelecto; a terceira impassibilidade extraía daí sua origem, pois esta quarta impassibilidade é desembaraçada das imaginações do sensível
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capazes de suscitar nela as imagens das paixões[503]”. E mais: “A impassibilidade é o estado pacífico da alma, que nela torna difícil qualquer movimento de malícia[504]”.
87. Da impassibilidade e da perfeição. Santo Efrém explica deste modo a impassibilidade e a perfeição: “Os impassíveis, insaciavelmente voltados com todo o seu ser para o cume do desejável, fazem da perfeição um estado que não tem fim. Pois os bens eternos são infinitos”. E: “A impassibilidade é perfeita, se tomamos como medida o poder humano. Mas ela é inacabada, pois ela ultrapassa a si mesma com aquilo que ela acrescenta a cada dia, elevando-se continuamente para Deus”. Do mesmo modo são Nilo, a propósito da perfeição, diz o seguinte: “É preciso considerar que existem duas perfeições, uma temporal, outra eterna. É a respeito da última que o Apóstolo escreveu: ‘Quando vier o perfeito, o que é parcial desaparecerá[505]’. Quando vier o perfeito, significa aqui que não podemos trazer em nós a perfeição divina”. E também: “O maravilhoso Paulo conhecia duas perfeições. Ele afirmou que o homem é perfeito quanto à vida presente, mas imperfeito diante da verdadeira perfeição. É por isso que ele disse: ‘Não que eu já seja perfeito[506]’, acrescentando a seguir: “Isto é o que nós, os perfeitos, pensamos’[507]”.
88. Da paixão, da preguiça, do pendor e da impassibilidade. Santo Elias de Écdicos disse: “A matéria ruim do corpo é a paixão; a da alma, a preguiça; a do intelecto, o pendor. O tato denuncia a primeira; a segunda é denunciada pelos demais sentidos; e a terceira é denunciada pela disposição contrária[508]”. E mais: “Aquele que vive na preguiça está perto do passional. E quem se deixa levar por seus pendores está perto do que vive na preguiça. Longe de ambos está o impassível[509]”.
89. Quem é o homem passional, o que vive na preguiça, o que se deixa levar por seus pendores e o homem impassível. Da cura desses males. “O passional é o homem cuja tendência a falhar é mais forte do que o pensamento, mesmo se até então ele não tiver pecado exteriormente. Quem vive na preguiça é o homem cuja ação pecadora é mais fraca do que o pensamento, mesmo se ele a receber de fora. Quem se deixa levar por seus pendores é o homem que prefere estar solto a se sujeitar a situações medianas. Mas o impassível é o homem que ignora a diferença entre esses dois males[510]”. Quanto ao remédio para um e outro, ele diz claramente: “A paixão desaparece da alma pelo jejum e a oração. A preguiça, pela vigília e o silêncio. O pendor, pela hesíquia e a atenção. Quanto à impassibilidade, ela provém da lembrança de Deus[511]”.
90. Da fé, da esperança e do amor. Mas uma vez que o começo, o meio e o fim de todos os bens, ou, se assim o quisermos, as virtudes que dispensam e presidem são a fé, a esperança e o a mor, esta tripla corda trançada por Deus (e acima de todas o amor, porque “Deus é amor[512]” e é assim que o chamamos), seria injusto não terminarmos por elas aquilo que falta à presente obra. Ao contrário, como dizia santo Isaac, não recebemos a perfeição dos numerosos frutos do Espírito enquanto não formos considerados dignos do amor perfeito; assim, falemos dele um pouco[513].
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João Clímaco escreveu: “Agora, depois de tudo o que foi dito, permanecem estas três virtudes, que estreitam e mantêm os laços que unem todas as coisas: a fé, a esperança e o amor. Mas a maior das três é o amor[514], pois este é o nome de Deus. Quanto a mim, eu vejo uma como um raio, outra como luz, e o terceiro como um círculo. Vejo essas três virtudes como um mesmo esplendor, um mesmo flamejar. Uma tudo pode fazer, tudo criar; outra é cercada pela piedade de Deus e ninguém pode confundi-la; e a terceira jamais tomba, jamais se detém na corrida, nem dá repouso a quem ela devora com sua bem-aventurada loucura[515]”. E mais: “A razão do amor é conhecida dos anjos. E ela é revelada por eles na energia da irradiação: Deus é amor[516]. Quem pretende definir o amor é como o cego que mede os sedimentos de um abismo. Por sua qualidade própria o amor é a semelhança de Deus, na medida em que isto é permitido aos mortais. Por sua energia, ele é a embriaguez da alma. Por sua natureza, ele é a fonte da fé, abismo de paciência, mar de humildade. O amor é propriamente a rejeição de todo pensamento contrário, pois não leva em conta o mal[517]. O amor, a impassibilidade e a adoção filial não se distinguem senão pelo nome. Como a luz, o fogo e a chama não formam senão uma só energia, o mesmo acontece com essas três virtudes, em minha opinião[518]”. E São Diádoco: “Irmãos, toda contemplação espiritual deve ser guiada pela fé, a esperança e o amor. Mas daqui em diante pelo amor. As duas primeiras virtudes nos ensinam a desprezar os bens visíveis. Mas o amor une a própria alma às virtudes de Deus, descobrindo pelos sentidos intelectuais o Deus invisível[519]”. E também: “Um é o amor natural da alma outro o amor que lhe vem do Espírito Santo. Um tem sua fonte em nossa própria vontade, quando o desejamos, e é por isso que os maus espíritos se apoderam dele facilmente quando não temos força para dominar sua própria intenção. O outro queima a alma de tal maneira com o amor a Deus que une todas as partes desta alma à inefável doçura do desejo divino e nos põe num estado de simplicidade infinita. Como o intelecto, a alma é então fecundada pela energia espiritual. Ela faz brotar uma fonte de amor e alegria[520]”. E santo Isaac: “O amor ligado às coisas é como uma pequena lâmpada alimentada com óleo, que é a origem de sua luz; ou como uma corrente que escoa na chuva, e que cessa quando termina a matéria que a formou. Mas o amor que tem sua causa em Deus é como uma fonte que brota incessantemente e que não deixa jamais de correr. Pois somente Deus é a fonte deste amor, e sua matéria é inesgotável[521]”. Foi-lhe então perguntado: “Qual é a perfeição dos numerosos frutos do Espírito?”. Ele respondeu: “Quando a pessoa se torna digna do amor perfeito de Deus”. Perguntaram-lhe: “E como sabemos se chegamos a este amor?”. Ele disse: “Quando a lembrança de Deus se revela na reflexão de seu intelecto, logo seu coração bate em seu amor e seus olhos se enchem de lágrimas abundantes. Pois o amor costuma fazer jorrar lágrimas à lembrança dos bem-amados. Um homem que traz em si tal amor jamais cessa de ter lágrimas, pois tem sempre em si a matéria que o leva a esta lembrança de Deus. Mesmo em seu sono ele conversa com Deus. Isto é o que faz o amor. E, nesta vida, esta é a perfeição dos homens[522]”. E ainda: “O amor a Deus é ardente por natureza. Quando ele se funda sem medida em alguém, ele faz a alma sair de si. É por isso que o coração daquele que o sente não pode nem se separa dele, nem suportá-lo. Mas, segundo a capacidade e na medida do amor que lhe atinge, uma mudança inusitada se dá nele. Estes são os sinais sensíveis deste amor: o rosto do homem se torna como fogo e transborda de alegria. Seu corpo se aquece. O temor e a vergonha o deixam. Ele fica como que fora de si. A potência que coordena o intelecto o abandona. Ele parece louco. Ele considera a temida morte como uma felicidade. A contemplação de seu intelecto não deixa de portar o pensamento das coisas celestes. Presente em meio às outras pessoas, ele está ausente. Ninguém o vê. Seu conhecimento e sua visão natural são ultrapassados. Ele não sente de maneira sensível o movimento que o coloca em meio às coisas. Pois mesmo quando ele faz alguma coisa ele não a sente por inteiro, pois seu intelecto está suspenso na contemplação. E sua
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reflexão é sempre como um diálogo com alguém. Esta é a embriaguez espiritual que conheceram os apóstolos e os mártires. Os primeiros percorreram o mundo inteiro, entre penas e ultrajes. Os outros tiveram seus membros cortados e verteram sangue como água. Sofrendo as coisas mais terríveis, não tiveram medo e as suportaram nobremente. Eram sábios e foram considerados loucos. Outros perambularam pelos desertos, pelas montanhas, nas cavernas e nos antros da terra[523]. Em meio às desordens, permaneceram fiéis à ordem. Esta é a loucura que Deus lhes permitiu alcançar[524]”.
91. Da santa comunhão. Dos bens que recebemos quando comungamos com frequência com uma consciência pura. Nada concorre e contribui para a purificação de nossa alma, para a iluminação do intelecto, para a santificação do corpo, para a transfiguração de um e outro no divino, para a imortalidade e, certamente, para a rejeição das paixões e dos demônios, ou, mais exatamente, para a conjunção divina e sobrenatural que nos abre para Deus, como receber com um coração puro e pronto a contínua comunhão dos santos mistérios imortais que ninguém pode manchar e que dão a vida, vale dizer, o precioso Corpo e o precioso Sangue de nosso Senhor, de nosso Deus, de nosso Salvador Jesus. É por isso que é absolutamente necessário dar aqui uma explicação precisa, colocando-a por escrito, e com isto encerrar esta obra. Não apenas a coisa é clara a partir do que disseram os santos, mas é ainda mais clara a partir das palavras da própria Vida e da própria Verdade. Pois ele disse: “Eu sou o pão da vida[525]”. E: “Este é o pão descido do céu, para que seja comido e não mais se morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente”. E: “O pão que eu darei será minha carne; eu o darei pela vida do mundo[526]”. E: “Se vocês não comerem da carne do Filho do Homem, se não beberem de seu sangue, não terão a vida em vocês. Quem come de minha carne e bebe de meu sangue terá a vida eterna”. E mais: “Pois minha carne é verdadeiro alimento e meu sangue verdadeira bebida. Quem come de minha carne e bebe de meu sangue permanecerá em mim e eu nele. Assim como o Pai, o Vivo, me enviou, também eu vivo pelo Pai. E quem come a mim, também este viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu”. E: “Quem comer deste pão viverá por toda eternidade[527]”. Paulo, que trazia a Cristo em si, disse igualmente: “Irmãos, eu recebi do Senhor aquilo que lhes transmiti. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão, deu graças, partiu-o e disse: ‘Tomem e comam, isto é meu corpo partido por vocês. Façam isto em memória de mim’. Do mesmo modo, ao fim da ceia, tomou o cálice e disse: ‘Este é o cálice da nova aliança em meu sangue. Cada vez que vocês dele beberem, façam-no em memória de mim. Pois cada vez que vocês comerem deste pão e beberem deste cálice, estarão anunciando a morte do Senhor até que ele venha’. É por isso que quem comer deste pão ou beber do cálice do Senhor indignamente terá que responder pelo corpo e o sangue do Senhor. Que todo home teste a si mesmo, e que então coma do pão e beba do cálice. Pois quem come e bebe indignamente, sem discernir o corpo do Senhor, come bebe um julgamento contra si mesmo. É por isso que existem muitos doentes e enfermos entre vocês, e que alguns estão mortos. Se julgarmos a nós mesmos, não seremos julgados. Mas se formos julgados, seremos castigados pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo[528]”.
92. Que é necessário aprender o milagre do Santo Sacramento. Por que ele foi dado e ao quê ele serve. João Crisóstomo disse: “Precisamos aprender o que é o milagre do sacramento, por que ele nos foi dado e ao quê ele serve. Que os iniciados sigam estas palavras: somos um só corpo[529], os membros da carne e dos ossos de nosso Senhor Jesus Cristo[530]. Para que não apenas nos tornemos o Corpo de Cristo no amor, mas para que estejamos unidos a esta carne em ato, esta se torna o alimento que o Senhor nos deu,
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mostrando o desejo que existe em nós. Ele se uniu a nós e formou em nós seu Corpo, para que sejamos um como o corpo está ligado à cabeça: isto é próprio daqueles que têm um grande desejo. Jó havia deixado isto subentendido quando falou dos servidores que desejavam ser como ele ao mais alto grau, pois, para mostrar seu desejo, eles disseram: ‘Quem nos permitirá que nos saciemos com sua carne? [531]’. Ora, é isto que Cristo fez, confiando-nos as maiores coisas por amor a nós. Ele mostrou como era seu desejo por nós. Não apenas ele se deu a ver àqueles que o desejavam, mas a tocar, a comer. Ele permitiu que entrassem em sua carne, que se unissem a ele, que saciassem todo desejo[532]”. E mais: “Os que comungaram do santo Corpo e do Sangue precioso estão com os Anjos, os Arcanjos e as Potências do alto. Eles se envolveram com as vestes reais, as próprias vestes de Cristo. Eles possuem as armas espirituais. Mas eles nada disseram ainda. Pois eles revestiram o próprio Rei. Este mistério é grande, terrível e maravilhoso: se você chegar a ele com pureza você encontrará a salvação, mas se chegar com má consciência incorrerá na danação e no castigo. Pois quem come e bebe indignamente do Corpo e Sangue do Senhor come e bebe seu próprio julgamento[533]. Se, com efeito, aqueles que mancham a estola real são condenados como os que a rasgam, é natural que aqueles que recebem o Corpo com o espírito impuro sofram o mesmo castigo daqueles que o perfuraram com pregos. Considere como é terrível a condenação que nos mostra Paulo ao dizer que se alguém rejeita a lei de Moisés será lançado impiedosamente à morte sob o testemunho de dois ou três demônios. A quão pior castigo não estará sujeito aquele que pisotear o Filho de Deus e profanar o sangue da aliança no qual ele foi santificado [534]? Assim, quando comungamos do Corpo e provamos do Sangue, está claro que provamos Daquele que está no alto, que é adorado pelos Anjos, que está próximo da mais pura Potência. Nossa! Quantos caminhos nos levam à salvação! Ele fez de nós seu próprio Corpo, nos transmitiu seu próprio Corpo, e nada nos desvia do mal! Ó, a dureza! Ó, a insensibilidade![535]”. E mais: “Um admirável ancião me mostrou uma coisa que lhe foi concedido ver e ouvir: aqueles que estão a ponto de partir daqui, se comungarem do sacramento com uma consciência pura no momento da morte, serão acompanhados por Anjos em sua comunhão, e eles o carregarão consigo[536]”. E o divino João Damasceno: “Uma vez que somos duplos e compostos, é preciso que também nosso nascimento seja duplo, e que nosso alimento seja também composto. Assim é que o nascimento nos é dado pela água e o Espírito. E o alimento, o pão da vida, é nosso Senhor Jesus Cristo descido dos céus. E assim como, no batismo, os homens costumam ser lavados com água e untados de óleo, ele uniu ao óleo e à agua a graça do Espírito e fez desta união o banho de um novo nascimento, e, da mesma forma como os homens costumam comer pão, beber água e vinho, ele uniu a estas coisas sua Divindade e delas fez seu Corpo e seu Sangue, para que, por meio daquilo que nos é natural, alcancemos o que ultrapassa a natureza. O corpo nascido da santa Virgem é verdadeiramente um corpo unido à Divindade, não porque este corpo que ele tomou tenha descido do céu, mas porque este pão e este vinho se tornam o Corpo e o Sangue de Deus. Se você perguntar como isto foi possível, basta que você entenda que se trata de obra do Espírito Santo, assim como foi da Mãe de Deus e do Espírito Santo que nele o Senhor recebeu a carne em si. E nada mais sabemos, senão que o Verbo de Deus é verdadeiro, ativo, todo-poderoso, mas o modo como ele foi concebido é insondável. Assim é que ele conduz aqueles que comungam dignamente na fé a absolvição dos pecados à vida eterna e à guarda da alma e do corpo. Mas os que a recebem indignamente, na infidelidade, a este ele conduz à danação e ao castigo. É como na morte do Senhor”. “E o pão e o vinho não são imagens do Corpo e do Sangue de Cristo, longe disso. Eles são o próprio Corpo de Cristo, que foi visto, e seu próprio Sangue. ‘Pois minha carne, disse ele, é um verdadeiro alimento, e meu sangue uma verdadeira bebida[537]’. São o Corpo e o Sangue de Cristo. Eles contribuem para formar nossa alma e nosso corpo. Eles não são consumidos nem se alteram, não são evacuados, ao contrário, fundamentam e sustentam nosso ser. Eles representam a purificação de toda mácula. Mesmo que Cristo receba de nós ouro impuro, ele o purificará no fogo do julgamento, para que não sejamos
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condenados junto com o mundo no século futuro[538]. Purificados por ele, somos unidos ao Corpo de Cristo e a seu Espírito, e nos tornamos Corpo de Cristo. Este pão representa as primícias do pão futuro, o pão epiousios[539]. O pão epiousios significa, seja o pão futuro, o pão do século por vir, seja o pão que recebemos para sustentar nosso ser. A carne do Senhor é espírito vivificante, pois ela foi concebida a partir do Espírito vivificante. O que nasceu do Espírito é espírito[540]. E não digo isto para suprimir a natureza do corpo, mas porque quero mostrar o que existe nele de vivificante e divino. Assim, o pão e o vinho são chamados de imagens das coisas por vir, não porque não sejam verdadeiramente o Corpo e o Sangue de Cristo, mas porque agora é por intermédio deles que comungamos da Divindade de Cristo, e que então seremos unidos a ele apenas pela visão do intelecto[541]”. E o divino Macário: “Assim como o vinho se une aos membros daquele que o bebe, e que o vinho passa por ele e ele pelo o vinho, também para quem bebe o sangue de Cristo o Espírito da Divindade o embebe e se une à alma perfeita, e a alma perfeita se une a ele. Assim santificada, ela se torna digna do Senhor. Pois todos nós fomos embebidos de um só Espírito[542]. Pela eucaristia do pão é concedido aos que comungam em verdade participar do Espírito Santo. Assim as almas que são dignas dele podem viver na eternidade. E assim como a vida do corpo não vem dele, mas daquilo que lhe é exterior, da terra, também Deus quis que a alma não recebesse da natureza que lhe é própria, mas de sua Divindade, de seu próprio Espírito, de sua própria luz, o alimento, a bebida e as vestes que são a verdadeira vida da alma. Pois a natureza divina é o pão da vida, conforme ele disse: “Eu sou o pão da vida[543]”. Ela é também a água viva, o vinho que alegra[544], o óleo da felicidade[545]”. E santo Isidoro: “A participação nos mistérios divinos é chamada de comunhão, pois ela nos une a Cristo e nos faz comungar de seu Reino”. E são Nilo: “É impossível ao fiel ser salvo, receber a absolvição das faltas e alcançar o Reino dos céus se ele não comungar dos puros mistérios do Corpo e do Sangue de Cristo com fé, temor e desejo”. Da mesma forma o grande Basílio escreve em sua carta a Patrícia de Cesaréia: “É bom e útil comungar a cada dia, tomar parte do santo Corpo e do Sangue de Cristo, pois ele disse claramente: “Quem come de minha carne e bebe de meu sangue permanece em mim e eu nele, e ele terá a vida eterna[546]”. De fato, que pode duvidar que participar continuamente da vida não é outra coisa que viver de várias maneiras? Nós mesmos comungamos quatro vezes por semana, aos domingos, quartas e sextas-feiras e aos sábados, e também outros dias, quando se comemora o Santo[547]”. Penso que são nestes dias que se celebra o Santo, pois ele não poderia comungar todos os dias, por estar sempre muito atarefado. Santo Apolo diz também que o monge, se puder, deve comungar todo dia o sacramento de Cristo. Quem se afasta daí, se afasta de Deus. Mas quem não cessa de comungar, recebe sempre a carne de Cristo. Pois a voz salutar disse: “Quem come de minha carne e bebe de meu sangue permanece em mim e eu nele[548]”. É, portanto, aí que os monges que mantém continuamente a lembrança da Paixão do Salvador encontram seu bem. O monge deve estar pronto a cada dia e se manter tal que esteja sempre digno de receber o santo Sacramento. É assim que nos é dada a absolvição dos pecados. Também João Clímaco disse: “Se um corpo que toca outro corpo é transformado por esta ação, como não será transformado aquele que toca o corpo de Deus com mãos inocentes?”. Está escrito no Gérontikon: “João de Bostres, homem santo e que tinha poder sobre os espíritos impuros, interrogou os demônios que assolavam algumas jovens, agitando-as e maltratando-as. Ele lhes disse: ‘O que vocês temem nos cristão?’. Eles responderam: ‘Em verdade, vocês possuem três coisas: uma, que trazem ao pescoço; outra, por meio da qual somos lavados na Igreja; e outra, que vocês comem na Assembleia’. E como ele lhes perguntou qual das três era a mais temida, eles responderam: ‘Se vocês
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guardarem bem aquilo que recebem quando comungam, nenhum de nós será capaz de prejudicar um cristão’.” É isto que os inimigos temem acima de tudo: a cruz, o batismo e a comunhão.
93. Fim da exposição. Exortação particular ao que interrogou. Eis, bem-amado filho, que sua pergunta foi inteiramente respondida, graças a Deus. Se não respondemos precisamente ao seu pensamento e à sua intenção, pelo menos fizemos todo o possível. Aquilo que fazemos dando nosso melhor agrada a Deus. Vigie para que não se detenha aqui seu amor em aprender e também suas penas, mas para que se mostre sempre um trabalhador desejoso de saber e de zelo. São Tiago, o glorioso irmão de Cristo, disse: “Bem-amados irmãos, ponham em prática a palavra de Deus. Não sejam apenas ouvintes que enganam a si mesmos. Pois quem ouve a lei e não a põe em prática é semelhante a alguém que vê num espelho o rosto com que nasceu. Mal ele percebe que partiu e já esqueceu quem era. Mas quem se debruça sobre a lei perfeita, a lei da liberdade, e que a ela se liga não como ouvinte distraído, mas para colocá-la em prática, este será bem sucedido no que fizer[549]”.
94. Como escutar e guardar as palavras espirituais dos Padres. Mas antes de tudo você deve receber e entender fielmente, com a piedade necessária, as ordens divinas, as ordens espirituais dos Padres. Com efeito, são Macário diz: “Os que não têm experiência não podem tocar o espiritual. Somente a alma santa e fiel pode receber a comunhão do Espírito Santo. Os tesouros celestes do Espírito não se revelam a quem não tem experiência. E quem não foi iniciado nada pode compreender. Escute então essas coisas com piedade, até que lhe seja permitido alcança-las pela fé. Então você saberá pela experiência dos olhos da alma com quais bens, quais mistérios as almas dos cristãos podem comungar aqui mesmo. Pois se você fizer assim, você colherá rapidamente o fruto e o benefício de todas essas coisas que foram escritas e que você ouviu. À força de escutar e fazer, você progredirá até ser capaz de exortar e conduzir a outros, por sua própria experiência, para as coisas divinas nas quais a maior parte não foi iniciada”. Que seja assim para você. Possa você ser guiado e sustentado pela mão todo-poderosa do Senhor Jesus Cristo. Amém. Mas o abuso do discurso, tal como um alimento que excita o corpo, é nocivo ao entendimento. E: “Toda medida é excelente”. Devemos assim fugir, também nós, dos abusos e abraçar o comedimento como sendo melhor, calarmo-nos um pouco a respeito de nós mesmos, escrever uma breve recapitulação da presente obra e assim fixar uma âncora ao discurso.
95. Recapitulação. Como orar. Da verdadeira iluminação e do poder divino. Os Padres dizem: quem quer ser sóbrio e vigilante em suas palavras, faça sempre entrar o sopro pela inspiração até o interior do coração e se esforçar para orar com um espírito puro e sem distração, permanecendo atento às palavras da prece – Senhor Jesus Cristo Filho de Deus tenha piedade de mim – meditando e refletindo a respeito até que seu intelecto se ilumine dentro do coração, como diz o santo Diádoco: “Os que não cessam de dizer nas profundezas de seu coração o nome glorioso e muito desejado do Senhor Jesus poderão um dia ver a luz do intelecto[550]”. Quando a tivermos visto, indo a partir daí sob o impulso de Deus como numa luz pelo caminho que nos resta a percorrer – o caminho de nossa vida devotada a Deus – e mais do que isto, tornados filhos da luz, caminharemos sem erro, sem esbarrar em ninguém, como disse Jesus, o que nos dá a luz: “Quando vocês tiverem a luz, confiem-se a ela a fim de se
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tornar filhos da luz[551]”. E: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não caminhará nas trevas, mas terá a luz da vida[552]”. Também Davi disse ao Senhor: “É na luz que veremos a luz[553]”. E o divino Paulo: “Deus que disse: ‘Que nas trevas brilhe a luz’, é o mesmo que brilha em nossos corações[554]”. É por esta luz, de fato, como por meio de um candeeiro brilhante que jamais se extingue, que são conduzidos os que têm a verdadeira fé, é por ela que eles contemplam o que está além dos sentidos, e que lhes é aberta, como aos corações puros[555], a porta celeste de toda vida e de todo estado que nos tornam semelhantes aos anjos e nos levam às alturas. E mais: como um disco solar, a luz se eleva sobre eles, permitindo-lhes examinar, discernir, ver, prever e realizar outras ações semelhantes. Através dela, toda manifestação, toda revelação dos mistérios sagrados os ilumina. Eles são cumulados em espírito de poder sobrenatural e divino. Seus corpos de terra, tornados leves por tal poder sobrenatural, ou antes, sua carne pesada refinada e aliviada levita. É por este poder flamejante do Espírito Santo que alguns de nossos Pais, quando ainda estavam na carne, puderam, como se fossem seres imateriais e incorpóreos, atravessar a pé rios inacessíveis e mares nos quais nem os navios se aventuravam; que eles percorreram num instante caminhos que exigiriam muitos dias de marcha; e fizeram outras coisas extraordinárias, no céu, na terra, no sol, no mar, nos desertos, nas cidades, em todos os lugares e países, no meio de feras e serpentes, ou simplesmente no meio de toda a criação, no meio de todos os elementos. Em tudo eles foram glorificados. De pé em suas orações, eles se elevaram sobre a terra como se tivessem asas seus corpos santos e preciosos. E pelo fogo divino devorador, pelo fogo imaterial da graça, eles reduziram a cinzas a espessura e a pesandez do corpo. Eles se tornaram leves e se elevaram sobre a terra, ó milagre!, transformados em vista de um estado mais divino de ser, pela mão de Deus, esta mão de força e de graça que habitava neles. Mesmo depois do fim, os corpos veneráveis de alguns deles mostraram a incorruptibilidade e confirmaram claramente a graça e o poder sobrenaturais que neles habitavam, como em todos os que têm a certeza da fé. E depois da ressurreição comum e universal, como alados por este poder que os ilumina em espírito, eles serão transportados às nuvens ao encontro do Senhor no espaço, como disse o iniciado do inefável, o divino Paulo. Assim é que eles estarão sempre com o Senhor[556]. Davi, o profeta do Espírito, canta igualmente: “Senhor, eles caminharão sob a luz da sua face, eles se regozijarão em seu nome por todo o dia[557]”, ou seja, pelo dia eterno, eles se elevarão em sua justiça, pois você é a glória de seu poder. Nossa força se elevará na sua benevolência. E mais: “Os que têm sua força em Deus foram arrebatados da terra[558]”. Isaías, o grande profeta, afirma também: “Os que esperam o Senhor receberão asas, sua força será transfigurada[559]”. E são Macário: “Toda alma que, pela fé e o esforço de suas virtudes, foi considerada digna de revestir daí por diante a Cristo no poder e na certeza, e que se uniu à luz celeste da imagem incorruptível, receberá em sua hipóstase os mistérios do céu de todos os tempos. No dia da ressurreição, quando o corpo glorificado com a alma nesta imagem celeste de glória e arrebatado ao céu pelo Espírito, como está escrito, ao encontro do Senhor no espaço, será digno de tomar sua forma de corpo de glória, e então, numa alma e num corpo eles reinarão com Deus pela eternidade[560]”.
96. Outra recapitulação. A origem e a fonte desses novos estados situados além das possibilidades da razão está, como lembramos, numa total ausência de cuidados, a hesíquia, a atenção e a prece, as quais, como um fundamento sólido e uma muralha impenetrável, estão cheias do melhor cumprimento possível de todos os mandamentos deificantes.
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Como dissemos, é da ausência de cuidados, da hesíquia, da atenção e da prece que vêm o movimento e o calor do coração que queimam as paixões e os demônios e purificam o coração como num crisol. Deste calor o desejo e o eros sobem sem cessar para o Senhor Jesus Cristo. É então que escorrem como de uma fonte as lágrimas do coração, lágrimas doces que, pelo arrependimento, o amor, a eucaristia e a confissão purificam, qual hissopo, a alma e o corpo, e os alimentam. Estas coisas engendram a serenidade, ou a paz dos pensamentos, que não tem limite porque ultrapassa toda inteligência[561]. Elas engendram o flamejar luminoso como a neve, e enfim a impassibilidade dada ao homem, ou a ressurreição da alma antes da do corpo: a nova criação, o retorno à imagem e à semelhança, pela ação e a contemplação, pela fé, a esperança e o amor, ou ainda a inteira tensão em direção a Deus, a união imediata, o êxtase. A detenção e a imobilidade, pelo século presente como num espelho, num enigma[562], e em penhor, e pelo século futuro no face a face[563], a perfeição, a participação total, o gozo eterno em Deus.
97. Que esta é a vida conforme a Deus, infalível, verdadeira, transmitida pelos Padres: a hesíquia que vem da obediência, e a que os santos chamam com justiça de vida oculta em Cristo. Este é o caminho, a conduta espiritual conforma a Deus, a obra sagrada daqueles que são verdadeiramente cristãos. Esta é, sem nenhuma ilusão, sem nenhuma alteração, com toda clareza, a verdadeira vida, a vida oculta em Cristo[564]. É o caminho desta vida que o Deus-Homem, o doce Jesus abriu e ensinou. É o caminho que percorreram os divinos apóstolos. É por este caminho que caminharam os que vieram depois deles, que os seguiram corretamente, nossos guias e mestres gloriosos, eles que desde o início da primeira vinda de Cristo sobre a terra até agora brilham no mundo como flamas[565], com o brilho irradiante de suas palavras vivas, com o milagre de suas obras, eles que transmitiram aos homens de nossa raça e que transmitiram uns aos outros a boa semente, o levedo sagrado, as santas primícias, o depósito inviolável, a graça, o poder do alto, a pérola preciosa, a divina herança dos pais, o tesouro escondido no campo, as garantias do Espírito Santo, o sinal real, a água viva que jorra[566], o fogo divino, o sal venerável, o carisma, o selo, a luz e tudo o mais. Esta será também nossa parte na herança misteriosamente transmitida de geração em geração até a segunda vinda de Cristo sobre a terra. Aquele que o prometeu não mente[567]: “Eis que estarei com vocês todos os dias até o final dos tempos[568]”. Amém.
98. Ainda que existam outros caminhos de salvação, este é uma via eleita e real que leva à adoção. Outros caminhos, outras condutas e, se você quiser, outras obras são boas, levando à salvação e trazendo em si o repouso a quem o busca; da mesma forma, existem algumas que só conduzem à escravidão ou ao trabalho mercenário; foi dito que o Salvador prepara numerosas moradas junto ao Pai [569]. Mas este caminho é naturalmente a via real, a via eminente, que, assim como a alma ultrapassa o corpo, sobrepuja e ultrapassa todas as obras, uma vez que, a partir da terra e das cinzas[570], ela renova a criatura para lhe dar a filiação divina, e torna paradoxalmente o homem que a percorre como se fosse um Deus, sob a ação do Espírito. Como disse o grande Basílio: “Quando penetra na alma de um homem, o Espírito Santo dá a vida, a imortalidade, ele levanta aquele que jazia, tornando-o vivo, um santo animado pelo Espírito Santo com um movimento eterno. Quando o Espírito faz sua moradia nele, o homem recebe a dignidade de profeta, de apóstolo, de anjo de Deus, ele que antes não passava de terra e cinzas”.
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99. Que este modo de vida tem muitos nomes, tão grande é sua obra. É por isso que os Padres divinos honraram este caminho com inúmeros nomes, diversos e gloriosos. Eles o chamaram de caminho do conhecimento, ação digna de louvor e contemplação justa, oração mais elevada do que toda extensão, sobriedade do intelecto, trabalho intelectual, obra do século futuro, vida angélica, existência celeste, conduta divina, país dos vivos, visão mística, festim espiritual, paraíso dos milagres de Deus, céu, Reino celeste, Reino de Deus, treva mais do que luminosa, vida oculta em Cristo[571], visão de Deus e deificação, cume das maravilhas e outros nomes semelhantes. É de acordo com o que disseram estes Padres divinos que também nós, que vivemos em meio à argila e os tijolos[572], com pensamentos, palavras e obras maus e impuros, nos esforçamos, bem-amado, para responder à sua pergunta. Você nos perguntou e temíamos falar além de nossa capacidade, por causa do amor que lhe dedicamos e do mandamento do Pai, como dissemos no início. A porta para esta via angélica se torna aqui a nova e misteriosa economia do Verbo e Filho de Deus, sua encarnação no homem, a benevolência do pai que não tem começo, e a sinergia do Espírito Santo.
100. Que com a ajuda e a graça de Deus devemos, na medida do possível, nos esforçarmos e combatermos a fim de nos tornarmos dignos de tocar desde já esses imensos sons sobrenaturais e não lhes faltar por negligência alguma, coisas que agradam a Deus. Uma vez que nos são propostos bens tão imensos, bem-amados, não apenas em esperanças e promessas para o século futuro, mas desde já em verdade e de fato, apressemo-nos, aproximemo-nos enquanto é tempo. Corramos, lutemos. Possamos nós por um pequeno esforço temporário e com um pouco de penas, mas acima de tudo pelo dom e a graça de Deus, sermos considerados dignos destes bens. “Pois os sofrimentos dos tempos presentes nada são comparados com a glória que se revelará em nós[573]”, disse Paulo, o divino predicador. Ouçamo-lo. E esforcemo-nos por descobri-la, como ele, desde já, ao menos em parte, como primícias e em garantia[574]. Com efeito, se alguns, desde a baixeza em que os colocou a sorte, foram chamados ao parentesco e à comunhão de alguma casa real, e tudo fizeram por meio de suas obras, suas palavras e seus pensamentos para alcançar estas coisas inacessíveis, desprezando até a própria vida por uma glória e uma honra temporais que se escoam, que passam e que às vezes levam à ruína total e não ao que é bom, quanto mais não devemos nós trabalhar com zelo para entrar em comunhão com Deus, participar das bodas e nos unir a ele que nos chama, ele, o Rei dos reis, o Criador, o único incorruptível, que permanece na eternidade e dispensa aos seus uma glória e uma honra resplendentes e duradouras? E não apenas isto, mas ainda recebemos o poder de nos tornarmos filhos de Deus. Com efeito, foi dito que aqueles que o receberam, aos que creram em seu nome, ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus [575]. Ele deu um poder. Ele não nos atrai de forma tirânica e não nos constrange contra nossa intenção. Pois a tirania sempre arma o escravo contra o tirano, para curar o mal com o mal. Ao contrário, ele honrou assim nossa antiga dignidade, a liberdade, para que o bem que provém inteiramente de sua boa vontade e de sua graça seja também considerado uma obra direita de nosso esforço e de nossa atenção. Ele é Deus e Mestre. Tudo ele fez por si mesmo. Ele criou todos os seres e da mesma maneira morreu por todos, para salvá-los sem distinção. E ele nos deixou livres para nos aproximarmos dele, nos confiarmos a ele, nos unirmos a ele, servi-lo com temor, com fervor e com amor, a ele, o Mestre que ama os homens, que verdadeiramente amou a todos nós e que nos protegeu até sofrer a morte por nós, e uma morte infame, para nos libertar da tirania do diabo, do inimigo que está na origem de todo o mal, para nos reconcilias com Deus Pai e fazer de nós herdeiros de Deus, herdeiros com ele[576], coisa maravilhosa e bem-aventurada dentre todas as coisas.
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Por uma pequena negligência, por uma breve irresponsabilidade, por um falso prazer, não nos privemos de tantos bens imensos, de tantas recompensas, de tantas alegrias. Ao contrário, façamos de tudo, coloquemos tudo a trabalhar, nada desperdicemos por ele, mesmo nossa própria vida, como ele fez por nós embora fosse Deus, para nos tornar dignos tanto das coisas que podemos receber agora como de todos os dons e todas as coroas. Possamos todos nós chegar lá, pela benevolência e a graça do Senhor nosso Deus e nosso Salvador Jesus Cristo, boníssimo e compassivo, que tanto se rebaixou por nós, e que concede desde já a todos os que se rebaixam como ele, ativa e abundantemente, a graça sobrenatural e deificante. Pois a ele pertence toda a glória, honra e adoração, assim como a seu Pai puríssimo que não teve começo, e a seu Espírito Santíssimo eterno com ele, bom e vivificante, agora e para sempre até o infinito dos séculos dos séculos. Amém.
[1] Cf. João 6: 45, citando Isaías 54: 13. [2] Cf. II Coríntios 3: 2-3. [3] Cf. Romanos 8: 17. [4] Salmo 13 (14): 7. [5] Salmo 13 (14): 3. [6] Cf. Gênesis 6: 3. [7] Cf. João 5: 39. [8] Cf. Mateus 25: 25. [9] Cf. Números 22: 28. [10] Cf. Efésios 6: 19. [11] Cf. Êxodo 4: 10. [12] João 15: 5. [13] Salmo 126 (127): 1. [14] Cf. Colossenses 3: 9-10. [15] Gálatas 4: 20. [16] Gálatas 3: 27. [17] II Coríntios 3: 18. [18] João Crisósotomo, Homilia sobre II Coríntios, VII, 5. [19] Cf. II Coríntios 3: 18. [20] Cf. Atos 19: 12. [21] Cf. Atos 5: 15. [22] Atos 6: 15. [23] Cf. Êxodo 34: 30. [24] João Crisóstomo, A uma jovem viúva, citando Êxodo 34: 30 e Mateus 17: 2. [25] Gálatas 5: 16. [26] Cf. I João 4: 8. [27] Resposta ao que interrogaram sobre o batismo, 17, in Marcos o Monge, Tratados [28] Efésios 4: 13. [29] Romanos 11: 29.
espirituais, pg. 107.
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[30] Cf. I Coríntios 12: 7. [31] Salmo 118 (119): 105. [32] Salmo 18 (19): 128. [33] I João 3: 24. [34] I João 5: 3. [35] João 14: 21-24. [36] Cf. I Coríntios 12: 7. [37] João 15: 15. [38] I Timóteo 2: 8. [39] I João 4: 16. [40] Cf. Colossenses 3: 3. [41] Cf. Filipenses 4: 7 e Isaías [42] Cf. Mateus 22: 40. [43] Cf. I João 4: 8. [44] I Pedro 4: 8. [45] I Coríntios 13: 7-8. [46] João 14: 3. [47] João 16: 23-26. [48] Marcos 16: 17-18. [49] João 20: 30-31. [50] Filipenses 2: 10. [51] Atos 4: 8-10. [52] Atos 4: 12. [53] Mateus 28: 18. [54] João 14: 27. [55] João 16: 33. [56] João 15: 12. [57] João 13: 55. [58] João 15: 9-11. [59] João 20: 19. [60] João 21: 15ss [61] Cf. Eclesiástico 4: 12. [62] João 16: 7. [63] João 15: 26. [64] João 14: 26. [65] João 15: 5. [66] Cf. Filipenses 2: 9. [67] João 8: 12. [68] João 14: 6. [69] João 10: 7-9. [70] A escada santa IV, 8. [71] Filipenses 2: 8-9. [72] Lucas 2: 51. [73] Mateus 29: 8-9. [74] A escada santa XXVI, 55. [75] A escada santa IV, 5. [76] Cf. Lucas 10: 42. [77] Cf. Provérbios 22: 28. [78] Eclesiástico 4: 10. [79] Lucas 10: 16.
9: 7.
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[80] João Clímaco, A escada santa IV, 7, citando Romanos [81] Salmo 118 (119): 160. [82] Salmo 30 (31): 24. [83] João 14: 6. [84] I Coríntios 11: 16. [85] João Clímaco, A escada santa XXII, 6. [86] Salmo 31 (32): 5. [87] A escada santa IV, 12. [88] Ibid. IV, 115. [89] Cf. Êxodo 31: 2. [90] Hebreus 12: 14 e João Clímaco, A escada santa IV, 9. [91] Cf. Gênesis 3: 6. [92] João 12: 49-50. [93] Cf. Provérbios 11: 14. [94] Cf. Gálatas 6: 3. [95] Gálatas 2: 2. [96] João 6: 38. [97] João 16: 13. [98] Cf. Lucas 13:23. [99] I Coríntios 3: 13. [100] Salmo 61 (62): 13. [101] Cf. II Timóteo 2: 7. [102] Cf. Hebreus 5: 14. [103] Mateus 7: 8. [104] I Timóteo 6: 8. [105] Mateus 7: 21. [106] Tiago 2: 17-18. [107] Mateus 28: 19-20. [108] Cf. Salmo 72 (73): 28. [109] Cf. Mateus 21: 21. [110] Salmo 76 (77):11. [111] A escada santa XXVII, 74. [112] Salmo 115 (116): 1. [113] Hebreus 11: 1. [114] Romanos 1: 17, citando Habacuque 2: 4. [115] Lucas 17: 6. [116] Mateus 21: 22. [117] Mateus 9: 22. [118] João 14: 17 e 16: 13. [119] Isaac o Sírio, Obras espirituais, pg. 342-343. [120] Salmo 118 (119): 165. [121] Salmo118 (119): 7. [122] Salmo 33 (34): 15. [123] Hebreus 12: 14. [124] Romanos 12: 18. [125] Obras espirituais, pg. 61. [126] Citando Evagro, Esboço monástico 7. [127] Mateus 6: 25-28. [128] Mateus 6: 31-34. [129] Obras espirituais, pg. 111.
14: 23.
1100
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[130] A escada santa XXVII, 52-53, citando Hebreus 10: 23. [131] Obras espirituais, pg. 243. [132] Ibid., pg. 213. [133] Ibid., pg. 213. [134] Sentenças dos Padres do deserto, Arsênio 1. [135] Carta II, 2. [136] Obras espirituais, pg. 392. [137] Gênesis 4: 7. [138] Salmo 45 (46): 11. [139] A escada santa XXVII, 47. [140] Obras espirituais, pg. 215. [141] I Tessalonicenses 5: 18. [142] Obras espirituais, pg. 188. [143] Ibid., pg. 368 (ambas as citações) [144] Salmo 6: 3. [145] Salmo 21 (22): 7. [146] Obras espirituais, pg. 143. [147] Ibid. pg. 368. [148] Efésios 6: 12. [149] Hebreus 12: 8. [150] Hebreus 12: 6, citando Provérbios 3: 12. [151] Tiago, 1: 12. [152] Elias de Ecdicos, Florilégio... I, 1; citando Salmos 25: 2 e 17 [153] Marcos o Asceta, Dos que pensam ser justificados, 198-204. [154] Cf. Romanos 3: 19. [155] Obras espirituais, pg. 268-269. [156] Eclesiastes 2: 1. [157] Eclesiastes 2: 2. [158] I Coríntios 10: 13. [159] Romanos 3: 35. [160] Mateus 10: 22. [161] Lucas 21: 19. [162] Tiago 1: 2-4. [163] Tiago 1: 12. [164] Romanos 8: 18. [165] Salmo 39 (40): 4. [166] Provérbios 1: 7. [167] Salmo 33 (34): 12. [168] Provérbios 15: 27. [169] Gregório de Nazianze, Discurso XXXIX, 8. [170] Obras espirituais, pg. 59. [171] Salmo 111 (112): 1. [172] Salmo 127 (128): 1. [173] Salmo 33 (34): 10. [174] Salmo 127 (128): 4. [175] Salmo 18 (19): 10. [176] Cf. Salmo 39 (40): 3. [177] Salmo 18 (19): 10. [178] Pedro Damasceno, Livro II, Discurso 3. [179] Marcos 8: 35.
(36).
1101
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[180] João 11: 25-27. [181] João 3: 16. [182] João 10: 10. [183] Cf. Filipenses 3: 13. [184] Cf. Lucas 17: 21. [185] Nicéforo o Solitário, Sobre a sobriedade e a guarda [186] Nicéforo o Solitário, ibid. [187] Pseudo-Crisóstomo, Ad monachos. [188] A escada santa XXVII, 62. [189] Hesíquio de Bathos, Sobre a vigilância 182. [190] Carta II, 2. [191] Evagro, Sobre a prece, 149. [192] Salmo 33 (34): 12. [193] Hesíquio de Bathos, Sobre a vigilância 189. [194] A escada santa VII, 35. [195] Sentenças dos Padres do deserto, Poêmio 119.
do coração.
[196] Hora canônica que completa o ofício divino e vem antes das vésperas.
[197] [198] [199] [200] [201] [202] [203] [204] [205] [206] [207] [208] [209] [210] [211] [212] [213] [214] [215] [216] [217] [218] [219] [220] [221] [222] [223] [224] [225] [226] [227] [228] [229]
Elias de Ecdicos, Florilégio 93. A escada santa XV, 52. Cf. Êxodo 22: 29. Evagro, Sobre a prece 126; Nilo e Evagro são a mesma pessoa. Cf. Filipenses 4: 15. A escada santa XXXVII, 92. Cf. Hebreus 13: 15. Obras espirituais, pg. 241. Ibid., pg. 292. Ibid., pg. 188. Cf. I Tessalonicenses 5: 17. Daniel 6: 11ss. Todas as citações: João Crisóstomo, Sobre a prece I e II. Gregório de Nazianze, Discurso XXVII, 4. Obras espirituais, pg. 11. A escada santa XXVIII, 1. Ibid., XXVIII, 27. Evagro, Sobre a prece 37. Ibid., 36. Ibid., 3. Ibid., 101. Ezequiel 4: 10-11. Sentenças dos Padres do deserto, Longino 5. I Coríntios 9: 27. Salmo 108 (109): 24. Obras espirituais, pg. 297-298. Ibid., pg. 153. Ibid., pg. 151, citando Salmo 125 (126): 5. Ibid., pg. 248. Ibid., pg. 169-170. Ibid., pg. 290-291. Cf. Números 20: 17. Em torno do meio-dia.
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TII, VIII – CALIXTO E INÁCIO XANTHOPOULOI – Centúria Espiritual.
[230] [231] [232] [233] [234] [235] [236] [237] [238] [239] [240] [241] [242] [243] [244] [245] [246] [247] [248] [249] [250] [251] [252] [253] [254] [255] [256] [257] [258] [259] [260] [261] [262] [263] [264] [265] [266] [267] [268] [269]
A escada santa, VI, 15. Hesíquio de Bathos, Sobre a vigilância 165. Obras espirituais, pg. 248-249 (cinco últimas citações). Cf. Isaías 58: 8. Obras espirituais, pg. 423-424. Cf. Êxodo 13: 21-22. Obras espirituais, pg. 297. Cf. Efésios 4: 22. Obras espirituais, pg. 460. Ibid., pg. 153. Ibid., pg. 184 (três últimas citações) Cf. Mateus 23: 23. Obras espirituais, pg. 151. Provérbios 24: 3-4. Obras espirituais, pg. 294. Sobre o amor IV, 63; citando I Timóteo 4: 8. Gálatas 5: 17. II Coríntios 4: 16. Obras espirituais, pg. 251. Ibid., pg. 91. Cf. I Coríntios 9: 25. Lucas 14: 11. I Coríntios 10: 12. Tiago, 4: 6. Eclesiastes 10: 12. Salmo 118 (119): 51. Romanos 12: 16. Obras espirituais, pg. 158. Ibid., pg. 87. Cf. Filipenses 4: 13. Cf. Filipenses 3: 12. Cf. I Timóteo 5: 21. A escada santa XXV, 14. Correspondência, Carta 38. Ibid., Carta 272. Salmo 93 (94): 19. Mateus 11: 28. Romanos 8: 17-18. Sobre a Teologia V, 35. Gregório de Nazianze, Discurso XXXVIII, 7.
[270] Inerente à hipóstase, à pessoa. União de Deus enquanto Verbo com a pessoa humana de Jesus.
[271] [272] [273] [274] [275] [276] [277] [278] [279]
Obras espirituais, pg. 188-189. Cf. Efésios 4: 13. Cf. Lucas 12: 42-43. Sobre o abade Filemón. Obras espirituais. CF. Mateus 11: 12. Sobre a Teologia V, 33. Mateus 5: 19. Romanos 2: 13.
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[280] Salmo 33 (34): 15. [281] I Coríntios 2: 15. [282] João 12: 35. [283] Efésios 5: 14. [284] II Pedro 1: 19. [285] I Coríntios 2: 15. [286] Mateus 5: 14. [287] II Coríntios 4: 6. [288] Salmo 4: 7. [289] Salmo 35 (36):10. [290] João 8: 12. [291] Jó 37: 7. [292] II Coríntios 1: 9. [293] Os Euquitas ou Messalianos foram uma seita condenada como herética pela primeira vez em um sínodo realizado em 383 d.C. em Side, na Panfília, e cuja ata foi citada por Fócio. A palavra Messalianos vem do siríaco mṣallyānā, que significa "aquele que reza". A tradução para o grego, εὐχίτης, euchitēs, significa o mesmo. A condenação da seita por São João Damasceno e por Timóteo de Constantinopla expressou a visão de que a seita abraçava uma espécie de materialismo místico. Entre as crenças da seita estavam: que a substância (ousia) da Trindade poderia ser percebida pelos cinco sentidos; que o Deus triplo se transformou numa única hipóstase (existência) para que pudesse se unir com as almas dos perfeitos; que Deus tomou diferentes formas para poder se revelar aos sentidos; que apenas estas revelações de Deus pelos sentidos conferem a perfeição aos cristãos; que o estado de perfeição, liberdade do mundo e paixão é, portanto, atingido apenas pela oração e não pela igreja, nem pelo batismo e nem por nenhum dos sacramentos, que não teriam efeito nas paixões e na influência do mal sobre a alma. Daí o nome da seita, "Aqueles que rezam". Os messalianos ensinavam que uma vez que a pessoa tenha experimentado a substância de Deus, ela estaria livre das obrigações morais e da disciplina eclesiástica.
[294] [295] [296] [297] [298] [299] [300] [301] [302] [303] [304] [305] [306] [307] [308] [309] [310] [311] [312] [313] [314] [315] [316] [317] [318] [319] [320] [321] [322]
Todas as citações acima: Isaac o Sírio, Obras espirituais, pg. 270-274. Sobre a Teologia V, 96. Obras espirituais, pg. 189. Cf. Romanos 5: 5. Cf. Efésios 4: 13. Salmo 76 (77): 11. Salmo 115 (116): 2. I Coríntios 2: 9; citando Isaías 64: 3 e 52: 15. I Coríntios 2: 10. Obras espirituais, pg. 322. Ibid. pg. 249. A escada santa XXVII, 7. Ibid., XXVII, 18; citando Cânticos 5: 2. Ibid., XXVII, 19. Cf. Romanos 7: 17. Pseudo-Crisóstomo, Ad monachos. Cf. Romanos 2: 16. Cf. Salmo 122 (123): 2. Cf. I Coríntios 2: 8. Cf. Mateus 7: 14. Mateus 11: 12. Pseudo-Crisóstomo, Ad monachos. Romanos 10: 9-10. I Coríntios 12: 3. Ibid. Cf. Hebreus 12: 29. Cem Capítulos 59; citando Mateus 13: 45-46. Cf. Lucas 18: 1-8. Sobre a vigilância 149.
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[323] [324] [325] [326] [327] [328] [329] [330] [331] [332] [333] [334] [335] [336] [337] [338] [339] [340] [341]
A escada santa XX, 7. I Coríntios 12: 3. João 1: 17. I João 4: 2. Mateus16: 16. Cf. Mateus 18: 16. I Coríntios 12: 3. I João 4: 2. I Coríntios 12: 11. Cf. Eclesiástico 4: 12. Cf. João 6: 63. João 15: 5. João 14: 4. João 14: 3. Cf. Gálatas 5: 16. Cem Capítulos 57. Obras espirituais, pg. 243. Ibid., pg. 244. Correspondência, Carta 119.
[342] Aos monges da Índia 52, cit. II Coríntios. XIII,5.
Pseudo-Crisóstomo, Ad monachos. Sobre a vigilância 21. Ibid., 196. Salmo 38 (39): 4. Lucas 12: 49. Lucas 24: 32. Todas as citações: Obras espirituais, pg. 101. Ibid., pg. 111; citando Salmo 41 (42): 3. A escada santa XXVIII, 48. Cf. Lucas 12: 42. Ibid., 1: 46 Florilégio I, 105. Ibid., I, 106. Hebreus 12: 29. Cem Capítulos 97. Sobre a vigilância 159. Cânticos I, 3-4. Cânticos 2: 5. Sobre o amor I, 11. Tropário para a festa da Transfiguração. Tropário da liturgia bizantina cantado antes da comunhão. II Coríntios 5: 14. Romanos 8: 35. Romanos 8: 38-39. João Clímaco, A escada santa XXVI, 70. Sobre a lei espiritual 84; citando I Coríntios 8: 1 e 13: 7. Resposta aos que interrogam sobre o batismo, em Marcos o Monge, Tratados espirituais e teológicos, pg. 69. [370] Gálatas 5: 16. [371] Cf. Lucas 17: 21. [343] [344] [345] [346] [347] [348] [349] [350] [351] [352] [353] [354] [355] [356] [357] [358] [359] [360] [361] [362] [363] [364] [365] [366] [367] [368] [369]
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[372] Cf. Mateus 5: 8. [373] Cf. II Coríntios 11: 14. [374] Dos que pensam ser justificados, 28. [375] Monge bizantino (séc. X); o mosteiro de Latros fica na [376] Cf. I Samuel 17: 51. [377] Cf. Salmo 67 (68): 3. [378] Sobre a vigilância, 180. [379] Na realidade, Hesíquio, ibid. 89. [380] Cf. Atos 7: 48. [381] Cf. I Coríntios 13: 12. [382] Sobre o discernimento das paixões, 24. [383] Carta II, 2. [384] Máximo o Confessor, Sobre o amor I, 33. [385] Ibid., 34. [386] Máximo o Confessor, Sobre a Teologia II, 82. [387] Id., Sobre o amor, III, 99. [388] Ibid., 98. [389] Máximo o Confessor, Sobre a Teologia II, 81. [390] Cem Capítulos, 28. [391] A escada santa XXVIII, 17. [392] Cf. Colossenses 3: 9. [393] Obras espirituais, pg. 203. [394] Gregório de Nazianze, Discurso XLI, 11. [395] Máximo o Confessor, Sobre o amor II, 5. [396] Sabedoria 13: 5. [397] Salmo 76 (77): 11. [398] Cf. Mateus 17: 1-2. [399] Cf. Salmo 102 (103): 12. [400] Questões a Thalassius, 16. [401] Denis o Areopagita, Dos Nomes Divinos VII, 1. [402] Obras espirituais, pg. 365. [403] I Coríntios 12: 8. [404] Cem Capítulos, 9. [405] Cf. João 4: 6-7. [406] Sobre a Teologia IV, 29. [407] Cem Capítulos, 68. [408] Evagro, Sobre a oração, 53. [409] A escada santa XVIII, 17. [410] Cf. I Coríntios 2: 14. [411] Carta II, 2. [412] Cf. Gênesis 1: 26. [413] Dos Nomes Divinos IV, 9. [414] Questões a Thalassius, 33. [415] Evagro, Sobre a oração 11. [416] Ibid., 117. [417] Filoteu o Sinaíta, Quarenta capítulos népticos 3. [418] Cf. II Coríntios 6: 16. [419] Carta II, 4. [420] Sobre o amor II, 5. [421] Sobre a prece, 58.
Bitínia.
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[422] Ibid., 56. [423] Ibid., 57. [424] Cf. Êxodo 33: 11. [425] A escada santa XXVII, 22. [426] A escada santa XXVIII, 19. [427] Cf. II Coríntios 12: 2. [428] Atos 10: 11-16. [429] Da pobreza voluntária, 27-28. [430] Cf. Gálatas 5: 22. [431] Efésios 5: 8-9. [432] Cf. Hebreus 12: 14. [433] Cf. Judas 6. [434] Cf. Mateus 25: 41. [435] Mateus 11: 30. [436] I João 5:3. [437] Cf. Romanos 13: 10. [438] Diádoco de Foticeia, Cem Capítulos 31. [439] Um êxtase. [440] Ibid., 32. [441] I João 4, 6. [442] Diádoco de Foticéia, Cem capítulos 33. [443] Provérbios 25: 16. [444] João 4: 14. [445] João 7: 37-39. [446] Gálatas 4: 6. [447] Teólogo Místico II. [448] Carta V. [449] Salmo 41 (42): 3. [450] Filipenses 1: 23. [451] Lucas 2: 29. [452] Grande Regra, 2. [453] Gregório de Nazianze, Discurso XXXIX, 8. [454] Trata-se de Evagro, Kephalaya Gnostika III, [455] A escada santa VII, 60. [456] Cf. Lucas 10: 42. [457] Tito 3: 4-7. [458] II Coríntios 1: 21-22. [459] II Coríntios 4: 7. [460] Salmo 24 (25): 9. [461] Mateus 11: 29. [462] Isaías 66: 2. [463] Mateus 5: 5. [464] Cf. Marcos 4: 20. [465] Máximo o Confessor, Sobre o amor IV, 80. [466] Id., Sobre o amor II, 87. [467] Mateus 5:23-24. [468] Efésios 4: 31-32. [469] Efésios 4: 26; citando Salmo 4: 5. [470] Romanos 12: 19. [471] Romanos 12: 21.
88.
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[472] [473] [474] [475] [476] [477] [478] [479] [480] [481] [482] [483] [484] [485] [486] [487] [488] [489] [490] [491] [492] [493] [494] [495] [496] [497] [498] [499] [500] [501] [502] [503] [504] [505] [506] [507] [508] [509] [510] [511] [512] [513] [514] [515] [516] [517] [518] [519] [520] [521]
Obras espirituais, pg. 322. Ibid., pg. 276. Cf. Romanos 3: 23-24. Obras espirituais, pg. 365-366. Ibid., pg. 367. Cf. Mateus 11: 28. Mateus 5: 4. Obras espirituais, pg. 208-209. A escada santa VII, 35. Ibid., 37. Ibid., 75. Ibid., 61. Sentenças dos Padres do deserto, Antônio 4 e Poêmio 125. Ibid., Teófilo I. Ibid., Poêmio 134. Ibid., Poêmio 95 e 81. Efésios 5: 16. Obras espirituais, pg. 175; citando Basílio, Regras morais VIII, 2. A escada santa XXVII, 38. Grande Regra 2; citando Cânticos 2: 5. Cf. Lucas 10: 18. Cf. Hebreus 10: 39. Diádoco de Foticéia, Cem Capítulos 86. Última citação, cf. Efésios 4: 13. Id., Cem Capítulos 87. Cf. Efésios 4: 13. Obras espirituais, pg. 132-133. Cf. Gálatas 5: 22. Obras espirituais, pg. 399-400. Cf. I Coríntios 5: 10. Efésios 6: 11. 17. Cem capítulos, 98. Sobre a Teologia V, 52. Sobre o Amor I, 36. I Coríntios 13: 10. Filipenses 3: 12. Filipenses 3: 15. Florilégio I, 71. Ibid., 72. Elias de Écdicos, Florilégio I, 73. Ibid., 74. I João 4: 8. Obras espirituais, pg. 439. Cf. I Coríntios 13: 13. A escada santa XXX, 1-3. Cf. I João 4: 8. Cf. I Coríntios 13: 5. João Clímaco, A escada santa XXX, 5-9. Cem capítulos, 1. Cem capítulos, 34. Obras espirituais, pg. 206.
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[522] Ibid. [523] Cf. Hebreus 11: 38. [524] Obras espirituais, pg. 164-165. [525] João 6: 48. [526] João 6: 50-52. [527] João 6:53-59. [528] I Coríntios 11: 23-33. [529] Cf. Romanos 12: 5. [530] Cf. Efésios 5: 30. [531] Jó 31: 31. [532] João Crisóstomo, Homilias sobre são João. [533] Cf. I Coríntios 11: 29. [534] Cf. Hebreus 10: 29. [535] João Crisóstomo, Homilias sobre são João. [536] João Crisóstomo, Sobre o sacerdócio VI. [537] João 6: 55. [538] Cf. I Coríntios 11: 32. [539] Cf. I Mateus 6: 11. [540] Cf. João 3: 6. [541] A fé ortodoxa IV, 3. [542] Cf. I Coríntios 12: 13. [543] João 6: 48. [544] Cf. Salmo 103 (104): 15. [545] Cf. Salmo 44 (45): 8. [546] João 6: 54. 56. [547] Carta 93. [548] João 6: 56. [549] Tiago 1: 22-26. [550] Cem capítulos, 59. [551] João 12: 36. [552] João 8: 12. [553] Salmo 35 (36): 10. [554] II Coríntios 4: 6. [555] Cf. Mateus 5: 8. [556] Cf. I Tessalonicenses 4: 17. [557] Salmo 88 (89): 16-18. [558] Salmo 46 (47): 10. [559] Isaías 40: 31. [560] Macário o Egípcio, Paráfrase 140; cit. I Tessalonicenses 4: 17, Filipenses 3: 21. [561] Cf. Filipenses 4: 17. [562] Cf. I Coríntios 13: 12. [563] Ibid. [564] Cf. Colossenses 3: 3. [565] Cf. Filipenses 2: 15. [566] Cf. Mateus 13: 24; Mateus 13: 33; Romanos 11: 16; I Timóteo 6: 20; Lucas 24: 29;
Mateus 13: 46 e
44; II Coríntios 1: 22; João 4: 14. [567] Cf. Hebreus 10: 23. [568] Mateus 28: 20. [569] Cf. João 14: 2. [570] Cf. Gênesis 18: 27.
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TII, VIII – CALIXTO E INÁCIO XANTHOPOULOI – Centúria Espiritual.
[571] [572] [573] [574] [575] [576]
Cf. Colossenses 3: 3. Cf. Êxodo 1: 14. Romanos 8: 18. Cf. Romanos 8: 23; Efésios 1: 14. Cf. João 1: 12. Cf. Romanos 8: 17.
1110
TOMO II, VOLUME IV
1111
CALIXTO, O PATRIARCA
É possível, senão provável, que Calixto o Patriarca seja o mesmo Calixto Xanthopoulos, que foi patriarca de Constantinopla no final do século XIV. Mas nenhum documento o prova. Da leitura dos 83 capítulos que levam seu nome, uma coisa se depreende com certeza: o patriarca, cujo cargo o colocava à frente da Igreja, fala como o mais humilde e o último dos monges, e, sobretudo, como um testemunho e um profeta da interioridade e da atualidade do Reino de Deus. Ele percorre esses capítulos como uma jubilação do Reino de Deus. O feixe da experiência milenar dos hesiquiastas apresenta-se reunido aqui no testemunho pessoal de uma alma e de um coração que, no fundo, não têm a transmitir senão a alegria e a paz da deificação. “Plantar em nós o divino”, diz Calixto; isto implica fazer do paraíso a imagem do homem interior, “que tem como terra o coração e por árvores a contemplação”, a qual depende da humildade (“a humildade é o começo da contemplação, e a contemplação é a perfeição da humildade”). Entre o sensível e o inteligível, na contemplação hesiquiastas como na revelação bíblica, não existe divisão nem dominação, mas uma humilde osmose. “O contemplativo colhe o invisível na criação visível. Ele vê a beleza”. Assim, a criação não é ocultada pela chegada do Reino. Ela é transportada com amor pelo louvor da alma. Mas há ainda mais: o contemplativo, diz Calixto, “dirige-se para o incriado”. A partir daí, a vida cristã é concebida sob o duplo signo da adoração de Deus em espírito e verdade, e a prece contínua, a “prece que vive”, a “prece que respira”, “a prece que faz subir do coração um fluxo incessante”, mergulhando “o amor que nos conduz para a beleza visível de Deus” no “êxtase do eros divino”. Mas este amor tem uma condição: o contemplativo “deve, em primeiro lugar, participar do Espírito vivificante”. O amor louco não é jamais outra coisa que o fruto maduro da compaixão de Cristo, no coração do mistério da Igreja. Ele é em primeiro lugar o modo de agir de Deus. O homem não deve sua salvação senão à compaixão de Cristo e ao mistério da Igreja, a qual, como a função patriarcal, permanece aqui como o não dito implícito: o lugar da eucaristia, o lugar da deificação, o lugar da comunhão e do reconhecimento onde todo fiel – afirma Calixto – é como que um “segundo Cristo” Ao longo dos capítulos, sentimos assim brotar da fonte a experiência do homem deificado que, a partir da revelação bíblica, atesta toda a tradição hesiquiastas. O lugar de passagem obrigatório da deificação permanece sendo a noéra aisthesis, o sentido intelectual, o sexto sentido que permite, a um só tempo no corpo e sem auxílio dos sentidos corporais, a visão do invisível, pela mediação do intelecto que ora: a chave da mensagem filocálica, uma mensagem que aqui é levada à incandescência pela conjunção do monge e do patriarca numa mesma pessoa testemunhando como nunca que a Igreja, totalmente aberta à via do mundo, está ao mesmo tempo absorvida pelo mistério da segunda vinda de Cristo. 1112
TII, IV – CALIXTO, O PATRIARCA – Capítulos sobre a oração.
CAPÍTULOS SOBRE A ORAÇÃO 1. Se você quer aprender a verdade, imite o exemplo do tocador de cítara. Ele mantém sua cabeça inclinada para baixo, com o ouvido atento ao canto e maneja a palheta. Ao mesmo tempo em que as cordas são vibradas umas após outras, a cítara espalha sua melodia e o citarista exulta com esta doçura de mel. 2. O trabalhador da vinha, que ama penar, que este exemplo lhe seja claro, e creia. A partir de agora, sóbrio e vigilante como o citarista, você encontrará facilmente na profundidade do coração aquilo que procura. Pois a alma tomada de alto a baixo pelo amor divino não pode voltar atrás. “Minha alma, diz o divino Davi, está ligada a você[1]”. 3. Penso que a cítara, bem-amado, é o coração. As cordas são os sentidos. A palheta é a reflexão do intelecto. Este, por meio da razão, anima continuamente a palheta, que é a lembrança de Deus, de onde vem na alma um prazer inefável que reflete no intelecto puro o flamejar da luz divina. 4. Se não fechamos os sentidos do corpo, a água transbordante não pode correr em nós, esta água que o Senhor deu à samaritana. Ela buscava a água sensível, mas encontrou a água da vida que brotava dentro dela[2]. Com efeito, assim como a terra guarda por natureza a água e a distribui, também a terra do coração possui por natureza esta água que jorra e corre da fonte, assim como a luz do Pai que Adão perdeu por sua desobediência. 5. Assim como a água corre de uma fonte inesgotável, também a água da vida, a água transbordante[3], brota da alma. É esta água que residia na alma de Inácio o Teóforo e que o levou a dizer: “Não existe em mim um fogo para amar a matéria, mas uma água que age e que fala[4]”. 6. Esta bem-aventurada, ou melhor, três vezes feliz sobriedade, quero dizer, a sobriedade e a vigilância intelectuais da alma, é semelhante a uma água que jorra da profundeza do coração. A água que se espalha da fonte enche a fonte. A que jorra do coração é por assim dizer continuamente animada pelo Espírito e cumula de orvalho divino e de Espírito o homem interior e incendeia o homem exterior. 7. O intelecto purificado das coisas exteriores, que submeteu totalmente os sentidos pela virtude ativa, permanece imóvel como o eixo do céu. Ele contempla o centro: a profundidade do coração. Ele dirige a cabeça e olha além. Seus raios são como relâmpagos luminosos da reflexão que atraem das profundezas os pensamentos divinos. E ele submete todos os sentidos do corpo. 8. Que ninguém, ao ouvir falar em coisas proibidas, nelas toque antes do tempo, se não for iniciado nelas ou se ainda tiver necessidade de leite[5]. Os divinos Padres, ao ver tais homens buscando antes da hora coisas que só vêm a seu tempo, esforçando-se por entrar no porto da impassibilidade sem ter os meios para tanto, consideravam que este era um gesto sem sentido, nada mais do que isto. Pois é impossível a quem não conhece as letras estudar em um livro. 9. Aquilo que o Espírito Santo coloca em movimento na alma que começa a combater enche de serenidade o coração que grita: “Abba, Pai![6]”. Em si mesmo este movimento não possui figura nem forma. Mas ele transfigura pelo esplendor da luz divina e dá forma naturalmente sob o efeito do ardor do Espírito de Deus. Ele nos transforma, nos torna outros, como só Deus, com seu poder, sabe. 10. O intelecto purificado pela sobriedade e a vigilância se cobre facilmente de trevas, se não der as costas totalmente às coisas exteriores pela lembrança contínua de Jesus. Mas quem uniu a prática à contemplação
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e à guarda do intelecto não rejeita os ruídos. Sejam ou não uma linguagem, ele não os descarta. A alma ferida pelo desejo de amor que esta lembrança lhe traz segue a Cristo como a seu bem-amado. 11. Os que vivem no mundo podem até imobilizar as paixões e a rebeldia da carne, ou mesmo se deterem pela razão, como diz a Escritura: “Detenham-se e conhecerão[7]”. Mas eles jamais conseguirão apagar as paixões ou fazê-las desaparecer. Somente a vida eremítica consegue desenraizá-las. 12. Quanto à água que jorra, primeiro seu movimento é mais vivo, depois ele se acalma e se torna mais lento. Em seu primeiro movimento, a água não pode se turvar facilmente, pois corre depressa. Mesmo se se turvar um pouco, seu movimento é tal que logo ela se purifica. Mas quando a corrente de água perde sua força e se torna mais lenta, não apenas a água se turva, como ela se torna quase imóvel. É preciso então purificar-se totalmente e reencontrar por assim dizer o movimento nesta renovação. 13. Para os noviços e os que vivem da ética e da ação, o demônio se manifesta por ruídos, sejam estes uma linguagem ou não. Mas nos que miram a contemplação, ele suscita imaginações: o espaço parece se colorir com se fosse um efeito da luz. Às vezes ele chega a mostrar estas imaginações na forma de fogo, para enganar, desviando-os de seu caminho, os que combatem por Cristo. 14. Se você quer aprender como orar, considere qual a finalidade da atenção e da prece e não engane a si próprio. Esta finalidade, bem-amado, é a compunção contínua, a contrição do coração, o amor ao próximo. E o contrário é evidente: são os pensamentos da concupiscência, a maledicência, a aversão ao próximo e tudo o que se assemelha a isso.
OUTROS CAPÍTULOS. O PARAÍSO É UMA IMAGEM DO HOMEM. 15. Assim como o corpo visível do homem é uma imagem na qual transparece aquilo que é visível nele, também o Paraíso de todas as belezas que Deus, em sua sabedoria, plantou no Éden a Oriente[8], é uma imagem do homem interior que tem como terra seu próprio coração e por árvores (estas árvores que seu intelecto criado à imagem de Deus deve plantar com toda sua vontade) as numerosas e diferentes contemplações de Deus, os pensamentos e especialmente as manifestações divinas. Estas contemplações comportam uma variedade de formas e de odores espirituais. Eu acrescentarei que elas constituem um alimento, uma alegria e, certamente, um prazer. As coisas do Éden simbolizam aquilo que é o coração que delas se nutre naturalmente e que encontra claramente no divino seu prazer e sua alegria. O paraíso sensível está a leste do sol sensível. Mas o paraíso inteligível está dentro do homem, sob a luz do conhecimento do sol inteligível. Pois, segundo os Padres, é impossível ao coração que não possui a luz do conhecimento ter pensamentos, visões e manifestações de Deus e ser inteiramente preenchido pelas representações divinas, das mais simples às mais complexas, como acontece num paraíso além do mundo. Mas não existe paraíso sem águas. Pois aquele que o descobriu deve enchê-lo de plantas fecundas e de frutos. No meio do Éden vemos uma fonte que se divide em quatro correntes que regam a superfície da terra, conforme está escrito[9]. No homem, a fonte de água viva é o movimento vivificante do Espírito Santo, de quem o Senhor disse: “A água que lhe darei será para ele uma fonte de água viva [10]”, que jorra do coração, como a que brota maravilhosamente do Éden. Esta fonte se divide em prudência, modéstia, justiça e coragem, as quatro correntes de onde jorram como rios as virtudes que nos assemelham a Deus. É por isso que foi dito que logo a água, ou seja, a energia, regou a superfície da terra, ou, se você preferir, a superfície do coração, para o crescimento, a maturação e a colheita dos frutos eleitos das virtudes divinas.
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É uma coisa maravilhosa, doce e cheia de graça compreender o que acontece então e que reside na fonte, a qual representa, jorrando do meio do coração, como explicamos, o movimento e a energia sobrenaturais do Espírito vivificante. A fonte não é da mesma natureza das plantas nem da terra, pois estas são outra coisa. A água é suficiente para todas as inumeráveis plantas. Ela, que é uma, as rega, as assiste sem medida, embora elas difiram umas das outras a ponto de possuírem temperamentos opostos, sendo umas secas, outras úmidas, outras quentes, outras frias. A fonte, como eu disse, corre por entre toda esta variedade de plantas. Ela derrama sua água única e simples, que é seu maior auxílio; dividindo-se em quatro correntes, ela faz assim o que é melhor para cada planta. Ela não é da mesma natureza das coisas que existem em nós, sejam as virtudes, o conhecimento ou a contemplação ligada a ele. E ela também não é da mesma natureza que o coração. Ela é a divina irradiação sobrenatural d’Aquele que criou a vida, seu movimento e sua energia irrefreáveis. Ela é dada aos fiéis pela graça. Ela sobe continuamente de dentro do coração e corre na direção do que está fora. Ela se divide em quatro virtudes, como eu disse, que são as quatro virtudes que ela ampara acima de todas. Ela é sucessivamente a mesma água para todas. Pelo Espírito ela ampara primeiro a prudência, e através do conhecimento ajuda aos que fazem a obra da justiça. Enfim, chamada “a que dá sabedoria” e poder, esta água revela depois de muito tempo sua energia amparando a castidade e a coragem. Deste amor, desta sabedoria são testemunhos seguras Paulo e Isaías. Um diz claramente: “O amor de Deus se derrama nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado[11]”. E Isaías conta o espírito da sabedoria dentre as sete energias do Espírito[12]. Ora, não apenas o Espírito ampara o amor, mas se torna um espírito de zelo face ao amor, a ponto deste anular uma série de pecados, como está escrito[13]. O zelo leva à condenação, e às vezes à morte. Diz-se que Elias, o grande profeta e amigo de Deus matou pela espada muitos sacerdotes infames[14]. Antes, Finéas esfaqueou o Medianita com a Israelita[15]. E antes deles, o próprio Moisés, o santo legislador do Antigo Testamento, por zelo e com a mão dos homens de sua raça entregou à morte inúmeros homens. Quando se trata de ação, o melhor é o conhecimento. E quando se trata de contemplação, o melhor é a ignorância que ultrapassa o conhecimento. Mas é impossível que tal aconteça convenientemente numa alma que não possui o espírito de verdade nem o espírito do conhecimento. Tanto a alegria do coração como a tristeza que se opõe a esta alegria são manifestamente efeitos do Espírito. Ouça a Escritura que diz: “O fruto do Espírito é a alegria[16]”; e: “Deus concede a alguns um espírito de compunção[17]”. Em uma palavra, de acordo com os Padres, o Espírito Santo e vivificante intervém em todas as coisas da virtude e também nesses estados que, aparentemente, como eu disse, se opõem mutuamente e que a Escritura chama de fogo e água, coisas totalmente contrárias, pois ele auxilia a tudo o que, na alma, é bom e belo e ele suscita nela a energia que dá a vida e a força. É por isso que a Escritura fala dele no singular e no plural: o Salvador o chama de fonte e de rios. É assim que ele se divide em quatro correntes e assume todas as virtudes. Uma alma se torna nova em tudo a partir do momento em que a água dá a vida sobrenaturalmente à alma que está em comunhão com o Espírito, que a transporta a tudo o que lhe convém e acontece, e faz tudo como deve. Assim eu penso que a pedra em que Moisés o legislador[18] bateu com sua vara fazendo com que jorrasse água sobrenaturalmente como de rios, é o coração petrificado pelo endurecimento. Quando Deus, em lugar da vara, bate oportunamente com suas palavras este coração e o penetra com a compunção, o poder do Espírito alegremente suscitado jorra deste coração de maneira sobrenatural como se fossem correntes de água vivificante, e traz a tudo uma ajuda imensa. E como dizê-lo? Ela, que é uma só e mesma água por natureza, dá a vida a todos os seres que a recebem, numerosos e infinitos, na medida de cada um. É verdadeiramente maravilhoso que esta pedra levada sobre um único carro[19] pode jorrar água que daria para encher miríades de carros até o infinito. Mas de onde lhe veio isto? De onde tirava ela tanta água? De que fonte? Porém, maior maravilhamento deve atingir aqueles que consideram o quanto o cálice do coração, carregado com tanta leveza por um corpo tão ínfimo, não cessa de derramar um fluxo de miríades
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de espíritos e de corpos tão infinito quanto a vida. De onde veio isto ao coração, que está além de todo número? O Espírito, como disse Aquele que é a própria verdade, sopra onde quer. Você ouve a sua voz, mas não sabe de onde vem nem para onde vai[20]. E no entanto ele sopra o tempo todo. Assim, se recebemos de Deus tamanha dignidade, de plantar em nós o divino à imitação de Deus, aí estará o paraíso, claro que não o paraíso que os sentidos exteriores podem captar, mas um paraíso inteligível, como dissemos, bem mais elevado em toda sua beatitude, e além do entendimento de quem ainda não experimentou a dignidade sagrada. Entreguemo-nos por inteiro, com toda a piedade, com a retidão que leva à fé, ao fundamento da hesíquia e por intermédio dos mandamentos, a Cristo Deus na Trindade. Perseverando deste modo numa contemplação que recolhe as visões e os pensamentos divinos de que falamos – e eu acrescentarei as reflexões teológicas que ela planta no coração em Deus – com toda nossa resolução roguemos por ela como se deve para que habite em nós e faça jorrar em nossos corações seus pensamentos mais elevados do que o mundo. O Espírito Santo, podemos dizer, são os rios. Pois “quem crê em mim, como diz a Escritura, de seu coração brotarão rios de água viva [21]”. E o Apóstolo bem-amado acrescenta que ele dizia isto do Espírito que os que nele creram deviam receber[22]. A glória, pelos séculos dos séculos, a ele que dá aquilo que ultrapassa a inteligência. DO DOM ESPIRITUAL. Veja os dons de Deus que não volta atrás, e as graças de Deus que nada pode superar. E regozije-se com o milagre que chega agora divinamente, se você considerar as coisas que Deus fez a Adão, a primeira criatura, e as coisas mais elevadas ainda que ele fará por nós a seguir. Ele insuflou em Adão um sopro de vida, a graça do Espírito vivificante, e assim Adão se tornou um homem perfeito. Ele se tornou uma alma viva[23], não apenas uma alma. Com efeito, a alma do homem não é o Espírito de Deus, mas se tornou no Espírito uma alma viva. Pois o Espírito Santo e vivificante de Deus se torna em verdade, para a alma que vive como se deve, uma alma dotada de razão à imagem de Deus. Mas o Espírito de Deus não faz corpo com a alma. Ora, esta caiu, perdeu a imagem de Deus e tudo o que era preciso para a vida a uma alma racional. A bestialidade, e mesmo a ferocidade, infelizmente a invadiu. Sem Deus, disse o Salvador, nada, absolutamente nada podemos fazer[24] daquilo que devemos realizar no Espírito e em Cristo. É por isso que o homem foi criado sem falha, isto é, total. Adão não se tornou simplesmente uma alma, mas uma alma viva. Pois Deus insuflou nele um sopro que é a vida para as almas dotadas de razão. Portanto, o sopro de Deus insuflado em Adão deu a este, na medida do possível, uma glória bem real. Ele oferece uma glória semelhante a Deus a quem participar aplicando-se às coisas pela visão e a profecia e se tornar assim verdadeiramente criador junto com Deus e um segundo Deus pela graça, por intermédio das visões divinas e das profecias luminosas, como quis o Criador do universo, o Criador mais do que sábio. Mas o homem dobrou o joelho e em sua queda submeteu-se ao grande mal da desobediência. Ora, ele caiu do Espírito Santo vivificante que nos ilumina, não foi capaz de guardar a imensidão de tamanha honra, foi verdadeiramente reduzido ao estado dos animais sem inteligência, assemelhando-se a eles[25]. E, com toda sua ignorância e obscurecimento, ele se afastou do objetivo divino, incapaz de levantar a cabeça nestas trevas horríveis, manifestamente privado do dom divino, do dom sobrenatural deste sopro que Deus lhe havia insuflado. Mas chegou o tempo das compaixões de Deus, e Deus enviou seu Verbo para nos curar de nossa corrupção[26]. Ora, o Verbo traz em si o Espírito que o acompanha naturalmente, que ilumina e esclarece sua divindade – podemos dizer: seu poder – de que falou o profeta, quando deu graças a Deus por toda a humanidade: “Você enviou sua luz e sua verdade. Elas me conduziram, me levaram à montanha santa, ao seu conhecimento único e supremo, nas moradas e nas contemplações de sua glória[27]”. É para lá que,
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levada por Deus, se eleva o intelecto e é lá que ele reside. Ele está acima das coisas visíveis, de certo modo aproximando-se do Deus Altíssimo. A partir do momento que veio o Verbo legítimo de nosso Deus, trazendo consigo naturalmente, enquanto santo Verbo de Deus, o santo Espírito de Deus, todos os que receberam com fé o santo Verbo de Deus receberam imediatamente o Espírito Santo de Deus, que acompanha sempre e indubitavelmente o Verbo. E eles não apenas o receberam de Deus Pai face a face, como na origem o fez Adão e mais tarde os discípulos de Cristo quando este soprou sobre eles[28], mas recebendo subitamente o invisível como um sopro – ou seja, o Espírito, que lhes insuflou claramente a graça que lhe é própria - os que participam do fundo do coração podem ver em seu intelecto o Espírito que derrama as águas sempre nascentes como de uma fonte, que imediatamente os ilumina e permite ao intelecto ver as coisas maravilhosas do novo nascimento e as coisas acessíveis da glória divina. Em uma palavra, pela participação sobrenatural ao Espírito por meio da graça, o intelecto de põe a contemplar misticamente e recebe abundantemente grandes benesses. Progredindo na paciente concepção da graça, ele chega às visões e às presciências pela iluminação do Espírito, e se eleva ao nível de Deus. Ele vê a união hipostática que ultrapassa o entendimento, esta união da natureza divina com a natureza hipostática do homem. Ele vê a efusão do Espírito em tudo, esta efusão que Adão não viu assim, porque não comungava da natureza divina, nem recebeu de fato a adoção de Deus.
DA ENERGIA DIVINA NO HOMEM E, PORTANTO, DA PAZ. 17. Consideremos que está em nosso poder a energia que está no coração do Espírito Santo, e veremos depois as coisas que ela realiza. Consideremos ainda a energia que nos é natural e as coisas que lhe são próprias. Veremos que nos é praticamente impossível, com nossas energias naturais, encontrar a paz. Pois está aí, juntamente com o amor e a alegria, o verdadeiro fruto da energia do Espírito: ser paciente, ser doce, cheio de bondade, partilhar nossos bens com os que nos são próximos. No imediato nenhuma energia que nos é natural se distingue do impulso da alma, a qual é manifestamente da ordem do ardor. Mas esta energia não vem a nós sem a vontade. A vontade do monge ativo está ligada ao desejo, como a do contemplativo está ligada mais à tensão. É por isso que é impossível às nossas energias naturais extinguir totalmente o desejo e o ardor por cujo intermédio nos colocamos normalmente em ação. Porém a energia do Espírito Santo no coração é sobrenatural, sua gênese não reside em nada da natureza, mas ela se manifesta de forma inconcebível naqueles que receberam a piedade: ela é claramente suscitada apesar dela, ou, numa palavra, ela irradia luz. Pois ninguém pode lhe dizer o que leva à energia, ao flamejamento e à manifestação do Espírito, senão quem já recebeu naturalmente o dom de vê-la e de se regozijar com ela em seu coração. A energia divina não tem nenhuma necessidade da vontade nem do impulso natural para se desenvolver. É claro que o desejo e o ardor não operam aqui, nem fazem nada. Numa palavra, a parte passional da alma cai no ostracismo e perde a ação quando do coração sobe naturalmente a respiração do Espírito vivificante. Mas o intelecto exulta e vive. A partir daí também a alma encontra a paz, na calma e na absoluta e necessária impassibilidade. Ela contempla a Deus. Maravilhosamente, sua relação com Deus, sua iluminação, sua tensão se tornam o Espírito que ela recebeu de Deus. Assim ela vê que alcançou o conhecimento do inexprimível esplendor mais que luminoso da beleza divina, e ela ama abundantemente ao Deus mais do que belo. Ela se regozija em conhecer o Pai do Senhor, que, na medida em que se pode expressar, é infinito, ilimitado, incompreensível, ela se regozija por conhecer sua herança e a si mesma daí por diante dentro da inefável compaixão divina, e então atinge uma paz maravilhosa, pois percebe que não lhe falta mais nada, pela graça da extrema beleza que ultrapassa o intelecto.
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Como dissemos, quando o ardor natural é suplantado em sua ação pela energia do Consolador, que se desenvolve por si só, a paciência e a doçura, unidas à maior bondade, se ligam à vida da alma. Elas são frutos do Espírito Santo[29], com o qual comungam os que receberam a piedade de Deus. Mas o espírito de ilusão e mentira, mesmo que pareça agir sobre a alma independente da vontade e do impulso de quem o recebe, não apazigua o estado passional – ao contrário, provoca-o – não realiza nem o amor a Deus, nem a alegria, nem a paz. Pois a mentira é desordenada, ela é inconsequente, estranha à paz e à calma que vêm de Deus. 18. Eu fico maravilhado, Senhor, diante da benfazeja luz da paz admirável, luz tão repousante, bemamada, naturalmente transbordante, cheia de graça e imensamente transbordante. Ela, e só ela, é toda a vida do intelecto. Eu fico maravilhado, Todo-Poderoso, Mestre Santo, que uma vez tocados pelas efervescências inefáveis de sua bondade infinita, esta possa viver totalmente por si mesma e não por você[30], que está acima do ser. Pois você é a vida que criou as vidas, e a fonte de toda bondade e de toda beleza. Se, com efeito, a mulher não fez mais do que tocá-lo, e sequer a você, mas apenas às suas vestes, ó Salvador, e ainda sequer às suas vestes, mas apenas às franjas do tecido, e secretamente, e mesmo assim ela foi imediatamente curada de toda uma vida de enfermidade e devolvida à saúde contra todas as expectativas[31], que pensar, ó Rei, do que deve experimentar naturalmente, e da vida que deve levar, e por que, aquele que, em sua bondade, você tocou com a inefável efervescência divina, e a quem você concedeu clara e maravilhosamente sua compaixão? Sabemos que você tomou pela mão a sogra de Pedro. E que a febre a deixou de imediato. Ela recuperou a saúde, levantou-se e o serviu[32] cheia de admiração e ardor. Ora, esta mulher não foi tocada senão uma vez, e de fora: pois você a tomou pela mão. Se então, de acordo com as palavras do Evangelho, ela foi inteiramente curada no mesmo instante, o que será daqueles a quem você toca inefavelmente, não uma vez, mas continuamente, noite e dia, e não em qualquer parte de fora do corpo, mas no mais profundo do coração, você que tanto ama suas almas, claramente auxiliandoos com sua força naquilo que lhes acontece, consolando-os nas infelicidades e fazendo por eles miríades de coisas boas e belas? Como então, ó Altíssimo, poderão estes homens viver para si mesmos, e não inteiramente para você, como é natural? Ou melhor, agora que eles vivem apenas por você, como não se considerarão infelizes, como não se prosternarão humildemente, se se virem, por qualquer satisfação efêmera, afastados do tão grande e extraordinário socorro de sua graça? Glória a você, verdadeiramente glorificado, que glorifica os humildes. E quando eles são glorificados, você os torna ainda mais humildes, pois, com seus dons inefáveis, eles se tornam devedores de tantos bens imensos. Quando você concede a graça aos humildes, você se enraíza maravilhosamente em seus corações e eles são verdadeiramente glorificados. Você disse claramente no livro de Salomão que a sabedoria de Deus se enraíza num povo glorificado, além de toda imaginação. “É por isso que eu me elevei no coração como um cedro do Líbano[33], eu que superei as coisas de baixo, as coisas da terra. Chegado ao cume dos pensamentos divinos, atingi as alturas, a montanha de Deus. Como o terebinto estendi meus ramos. Naqueles em quem eu me enraízo por meio da graça espiritual, meus galhos são os ramos da glória e da graça[34]”. Senhor, você é a própria verdade. O que eu digo é inteiramente verdadeiro. É por isso que a alma pura, a alma que o recebeu como uma esposa, tanto desejou permanecer à sua sombra, por difícil que tenha sido. Ela mostra assim que seu fruto enche de doçura, e não simplesmente isto, como ele se torna doce na boca. Pois a doçura do Senhor normalmente não passa em todos pelos seus sentidos, como quando se diz: “Como o cinamomo e os bálsamo eu dei meu perfume, e como a mirra escolhida eu espalhei o bom odor[35]”, ela não faz isto a todos. É o que também Paulo que dizer: “O perfume único e mesmo foi para alguns um odor de vida que conduz à vida, para outros um odor de morte que leva à morte[36]”. É assim que acontece superabundantemente, se podemos dizê-lo, com a doçura divina e a glória de Deus que se revela concomitantemente. Não são todos, mas apenas alguns que as percebem por meio dos sentidos intelectuais: os que se dedicam à hesíquia e que receberam a bem-aventurança divina pela comunhão com
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o Espírito que dispensa a vida e a luz, em suma, os que têm o coração puro, na medida em que é possível tê-lo. Se uma vida tumultuada, impura, manifestamente privada da comunhão com o Espírito, fosse digna, ela sentiria naturalmente em sua alma a glória de Deus, seu perfume e sua doçura. Mas isto não é possível, não pode ser. É preciso a fuga do mundo, a solidão, a hesíquia, a clausura, a vida devotada aos deveres da virtude, da sobriedade e da vigilância, da prece e da atenção, e a tudo o que trazem consigo os que se arrependem, a fim de lugar à insuperável bondade da misericórdia divina. Por amor ao homem esta se inclina e permanece na alma que a busca penosamente: é a piedade maravilhosa. Deus – ó, quanta graça! – se torna com a alma um só espírito enraizado na profundidade do coração, irradiando uma luz estrangeira, que cresce e se eleva em altura, estendendo-se nos ramos do intelecto e trazendo os frutos espirituais: o amor, a alegria, a paz, a paciência, a bondade, a nobreza[37] e miríades de coisas boas e belas, estes frutos que recebe aquele que deles se alimenta. Se você julgar corretamente o que acontece aqui, você poderá ter uma ideia de que sensação de glória, de perfume, de doçura, passa da boca à alma, quando se recebe com toda a pureza os frutos do Espírito que dispensa a vida e a luz. É por isso que são verdadeiramente bem-aventurados os corações puros que possuem a ciência das virtudes. Pois eles verão a Deus[38] na vida futura mais completamente, mais claramente. E desde agora eles o veem como que em penhor[39], segundo as Escrituras: segundo estas, não apenas eles o veem e verão, como ainda poderão provar das coisas sobrenaturais na medida em que agora as experimentam parcialmente e delas usufruem em Cristo.
DA VIDA CONTEMPLATIVA. DE QUÊ O CONTEMPLATIVO PRECISA. QUE A PRECE É CARACTERÍSTICA DA PARTE CONTEMPLATIVA DA ALMA, E QUE A CONTEMPLAÇÃO É ASSIMILADA PELOS PADRES À ORAÇÃO. 19. A vida contemplativa reside na santa prece. Ela é sua companheira constante. Uma e outra são sementes dadas por Deus, sementes deificantes da vida intelectual da alma. Elas são as obras inseparáveis da alma que Deus carrega e realiza com sua lei. Para a tradição, contemplação e prece estão de tal modo unidas que os Padres falam delas no singular: eles as chamam de ação do intelecto e contemplação. São Isaac disse: “O ato do intelecto se acha na pura obra deste, no intercâmbio divino, na prece perseverante e em tudo o que se lhe segue. Ele se realiza na parte da alma que deseja e se chama contemplação [40]”. Veja que existe aí mais um símbolo de unidade do que a união das duas coisas, da prece e da contemplação. Ele acrescenta ainda que “esta contemplação purifica a energia do amor da alma, que é um desejo natural, que ilumina o que há de inteligência na alma[41]”. Compreenda que existe uma única energia da parte contemplativa da alma, a saber, a prece e a contemplação. É o que também nos mostra são Máximo, quando diz: “O intelecto não pode se purificar sem o encontro e a contemplação de Deus”. E ainda: “A anacorese, a contemplação e a prece reduzem o desejo e até o suprimento”, e “a alma é conduzida conforme à razão, quando ambas vão a Deus pela contemplação espiritual e a oração”. E mais: “Dê à razão as asas da leitura, da contemplação e da prece[42]”. Assim, em tudo a contemplação é necessária à prece e a acompanha. As duas constituem uma mesma energia do intelecto, ou da razão, e são inseparáveis uma da outra. Esta energia é suscitada pelo intelecto, contemplação e prece sustentando-se mutuamente quando a razão é forte e se dedica à hesíquia com todo conhecimento. É por isso que os Padres dizem que o intelecto que ora sem o poder da contemplação é como um pássaro sem asas, uma vez que ele não se eleva a Deus seguindo suas próprias disposições nem se distancia sem falhas das coisas terrestres e que não consegue se aproximar das coisas do céu com toda a força da alma. Segundo são Máximo, a contemplação purifica o intelecto, e o estado de oração o leva nu até Deus. Não é preciso dizer que o intelecto que não tende para a contemplação não será purificado, como diz a lei de
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Deus. Ele afirma que a pureza do intelecto está na revelação dos mistérios, pois a pureza do intelecto é a perfeição que faz retornar a contemplação celeste suscitada fora dos sentidos pelo poder espiritual do mundo de cima, o mundo das maravilhas inumeráveis. O contemplativo ora numa altura tal que a ciência da contemplação purifica nele a reflexão do intelecto. Esta pureza lhe permite ver a Deus com os olhos fechados, na medida em que isto é possível. Aquele que ora se rende verdadeiramente à beatitude. SOBRE “DEUS É ESPÍRITO, E OS QUE O ADORAM DEVEM ADORÁ-LO EM ESPÍRITO E VERDADE”. 20. Diz-se que Deus é Espírito, e que os que o adoram devem fazê-lo em espírito e verdade[43]. É dito “os que o adoram” no plural, e não “o que o adora”, no singular. Isto é bem natural, uma vez que ele quer salvar a todos os seres e conduzi-los ao conhecimento da verdade[44], ele que preparou incontáveis e diferentes moradas[45] para a fruição eterna dos que serão justificados, ele, o anjo do grande conselho[46], o salvador que, da altura de seu amor pelo homem, estende suas mãos para chamar aqueles cuja reflexão é sábia, ou tola, fraca ou doente. Um mesmo caminho de salvação é assim oferecido a todos os homens de uma vez por todas. Eles são aí levados por múltiplos caminhos e o tomam de diferentes maneiras, conforme o estado e a resolução de cada um; e eu acrescentarei segundo sua força e certamente segundo o ensinamento daquele que o levou a Deus e que escolheu adorar a Deus, como foi dito. Pois pode acontecer que não estejamos seguros a respeito de quem nos ensina ou que duvidemos que sua natureza seja boa. Mas então falhamos com o objetivo perfeito, que está em Deus. Outros podem ter tido um mestre experimentado nas coisas divinas, mas, por sua inaptidão, viram-se impedidos de atingir a perfeição. Mas uns e outros, e no fundo todos, se o quiserem, podem adorar a Deus em espírito e verdade, seja conforme a ordem própria a cada um, seja, é preciso dizê-lo, segundo sua força, seja segundo o dom que recebeu do Deus do universo. Assim, um homem simples que caminha observando os mandamentos e vive a fé, se seguir humildemente outros homens considerados, torna-se claramente um adorador de Deus em espírito e verdade[47]. Pois a fé que fala claramente de Deus e das coisas divinas e invisíveis não pode ser outra coisa que o Espírito. De fato, o Senhor afirma: “As palavras que eu lhes digo são espírito e vida [48]”. Quanto aos maravilhosos mandamentos deificantes daquele que é a própria verdade, não imagino que alguém possa ser tão fraco de inteligência para querer se separar da verdade. De modo que aquele que, pela fé, segue a Deus em espírito e verdade, assim como aquele que ensina as disposições desta fé, é chamado de monge ativo e contemplativo. Mas quem se liga ao conhecimento dos seres ou da Sagrada Escritura, como é natural a uns e outros, que continue a se recolher em Deus, a passar do visível, do conhecido e da carne para as coisas do intelecto. É evidente que, elevando-se para o Espírito, e daí em linha reta para aquilo que ultrapassa a inteligência, ou seja, para a verdade além de toda verdade, para Deus, ele estará adorando claramente a Deus em espírito e verdade. Do mesmo modo os que salmodiam e os que oram, se compreendem o poder das palavras que cantam e o poder da prece, e se recolhem estas palavras em si tanto quanto possível, adoram totalmente a Deus em espírito e verdade. Pois é evidente que de espírito e verdade são também as santas palavras dos salmos e das orações. E certamente aquele que se dobra sobre si mesmo na comunhão visível e sob o impulso do Espírito, aquele que, em sua forma simples e com os olhos fechados vê a Deus pela luz do conhecimento, também este, da maneira mais elevada, adora a Deus em espírito e verdade. Enfim, aquele que vê como em um espelho a luz da glória e da economia de Cristo, na medida em que isto é possível, e a efusão do Espírito que vem do Pai por intermédio de Cristo, animando e consolando os fiéis, também este adora verdadeiramente a Deus em espírito e verdade, em Jesus Cristo.
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DA PRECE 21. É Deus quem ensina o conhecimento ao homem[49], conforme está escrito. Mas como ele ensina? Ele dá a prece o santo impulso que transmite luminosamente ao que ora a respiração contínua do Espírito. Esta prece sagrada é verdadeiramente a morada, a grande morada da graça mais do que boa. Ela é um mestre para aquele que a recebe. Ela é manifestamente um espelho da alma: nela o intelecto vê claramente suas próprias tendências, seus desvios, suas alienações, suas acídias, suas fraudes. Mas não apenas isto. Ela é também o espaço da pureza, o esplendor da contemplação, o espírito da tensão da obra divina em direção a Deus, a chama do fogo dos desejos ardentes por Deus, a simplicidade do intelecto desembaraçado de formas, o silêncio longe de tudo e a imensa alegria do maravilhamento. Numa palavra, o intelecto vê e conhece infalivelmente por meio da prece aquilo que são os estados e as paixões da alma. Ele é iniciado luminosamente nas causas primeiras dos princípios que dão à alma seu movimento. Ela por sua vez serve às primeiras e se liga aos últimos, tanto quanto possível, sucessivamente, a partir do momento em que se tornam dignos de amor ou de solicitude. Levar a vida de monge dedicado à ciência implica assim não apenas que se conheça por meio da ascese, correta e perfeitamente, o uso conveniente do intelecto e da palavra, da reflexão e dos sentidos, como também que se saiba discernir o que se deve conceder ao ardor e ao desejo, que se aprenda sabiamente, por meio da ação e da contemplação, a formar em si mesmo, graças ao conhecimento natural da reflexão, a bela harmonia ordenada das potências da alma, e a cantar a melodia intelectual, na medida em que seja esta também infinitamente doce. Assim, a paz de Deus, a bem-amada paz, e a alegria que ela produz, virão repousar no monge iniciado na verdadeira prece e ornado com os frutos do Espírito. Portanto, aquele que decidiu que deve por todos os meios e de todos os modos orar continuamente, como manda o Apóstolo[50], e que desta prece faz o próprio coração de suas ações, este será contado dentre os discípulos de Cristo. E seguindo seus conselhos relativos à sagrada oração, ele se tornará filho da graça em Cristo.
O QUE É NECESSÁRIO PARA A PRECE, E NO QUE ELA É DIGNA DE HONRA. 22. Se a santa prece não fosse mais do que o mestre que ensina e mostra os deveres da virtude, já não seria ela digna destas grandes coisas? E se ela não é apenas um mestre que ensina e mostra, mas também um consolador que conduz a tudo o que é naturalmente da ordem dos bens, de quantas oferendas sagradas não estaria ela acima, de quantos louvores não estaria além? E no entanto o ensino e a consolação de pouco ou nada servem, se o ensinado e o consolado forem fracos. É preciso um poder que estimule seu desejo. Se você procurar, você encontrará de uma vez por todas a oração, e nela descobrirá a energia que conforta a alma no Espírito. É grande assim o poder da oração naqueles que se dedicam à virtude. E está certo. Pois a prece que respira, e por assim dizer a prece que vive, faz subir do coração um fluxo contínuo. E ela é assim manifestamente pela comunhão e a energia do Espírito vivificante. Três coisas são, portanto, as mais necessárias: o ensino daquilo que convém aos espirituais, o consolo nos combates das obras e, acima de tudo, o poder que alivia os atos e as dificuldades. Nosso Senhor, que nos deu o Espírito, disse: “Vocês receberão o poder do Espírito Santo que virá sobre vocês[51]”. E a este poder ele chamou de Consolador e Mestre que ensina, quando disse: “O Consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome lhes ensinará tudo e os lembrará daquilo que eu disse[52]”. É assim que por meio da oração é concedida a cada um, para seu bem, a manifestação do Espírito. A um é dado um espírito de sabedoria, a outro um espírito de conhecimento, a outro um espírito de cura[53] e todas as coisas que foram mencionadas pelo Apóstolo,
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que são animadas pelo único e mesmo Espírito, que se distribui em cada um conforme quer[54]. É o que o ensinamento de são Paulo nos revela claramente. A quem de algum modo participa dos dons do Espírito três coisas estão ligadas necessariamente: o poder mais alto do que a natureza, o ensono mais elevado do que o mundo e a consolação divina revelada nas santas palavras do Senhor, conforme dissemos. Aliás, quando o Senhor diz: “Sem mim vocês nada podem[55]”, ele mostra indubitavelmente que tudo o que tende a agir tem obrigatoriamente necessidade do poder divino. E quando ele diz: “Não chamem ninguém na terra de ‘mestre’, porque vocês não têm senão um mestre e guia, que é Cristo[56]”, ele quer dizer que o homem tem necessidade do ensinamento divino para compreender o que deve fazer e o que lhe vem da parte de Deus. Enfim, quando ele afirma: “Eu pedirei ao Pai e ele lhes enviará um Consolador, o Espírito da verdade, para que ele permaneça sempre com vocês[57]”, ele lembra que a consolação é necessária e inseparável da graça. A distinção entre os carismas se estabelece assim por si só. Com efeito, uma coisa é a sabedoria e outra coisa (em espécie) o conhecimento. A profecia não se assemelha a ambos. E os carismas das curas são ainda outra coisa. Cada um dos dons do Espírito enumerados pelo Apóstolo[58] se distingue dos demais. Porém, qualquer que seja a graça, ela é adornada pelas três energias do Espírito de que falamos. Com efeito, como o intelecto criado preso dentro de um corpo poderia estar unido aos seus próprios bens e à virtude, se não lhe fosse dado participar do poder mais alto do que o céu, que nem os anjos possuem? E coo encontraria ele um meio de participar do mistério mais elevado do que o mundo, sem a iniciação do Espírito? Vale dizer, ele seria tomado de vertigem ao alcançar esta altura a que é levado pelo grande dom de Deus e pela firme tensão da virtude se não descobrir também a santa consolação do Deus bom. Que devemos pensar então da prece feita sob a impulsão do Espírito, esta prece que dispensa à alma todo dom espiritual e traz em si o poder, o ensinamento e a consolação do Espírito Santo? De quantos louvores não será ela mais do que digna? Quanto não devem honrá-la os que a receberam pela graça? E quanto não devem buscá-la aqueles que ainda não a possuem, a ela que, pela santa união, liga o intelecto a Deus em Jesus Cristo, o Filho de Deus na verdade?
DA ORAÇÃO. 23. Quando, pela graça, o estudo regular das coisas que cercam a Deus e o socorro do sopro do Espírito vivificante propiciam ao intelecto um claro pensamento de Deus, que este veja a si mesmo e considere sua própria fraqueza, e que ele considere o quanto a negligência, o esquecimento dos deveres e o trabalho realizado pela ignorância o afastaram daquilo que ele devia fazer. Assim, você que se esforça por condenar a si próprio e se humilhar diante do que é justo e verdadeiro, dirija-se continuamente a Deus pela prece, com um espírito humilde, na certeza e na esperança do incompreensível amor que Deus dedica ao homem por inefável bondade. Este amor transbordante nos permite aproximar com segurança do trono da graça[59], como nos ensina são Paulo. Pois não é seguindo nossos caminhos que Deus costuma agir em nós, mas é conforme sua infinita compaixão. Não tentemos colocar em nós mesmos nosso olhar durante a prece, mas olhemos para a força da pureza e da grande compaixão que existe em nosso Deus, nosso Pai mais do que bom, a fim de que tenhamos em nós, sem mal, seu amor verdadeiramente salutar. SOBRE “DEUS DISSE A ABRAHÃO: DEIXE SUA TERRA”. CONTEMPLAÇÃO.
E DA
24. Deus disse a Abrahão, ou seja, ao emigrante: “Deixe sua terra, sua família, a casa do seu pai e vá para a terra que eu lhe mostrarei, uma terra onde correm o leite e o mel[60]”.
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É isto que ele diz ainda agora, e mais alto, ao intelecto que emigra e que passa do sensível ao inteligível: “Deixe os sentidos e as coisas sensíveis – e, no fundo, a totalidade do mundo visível – e venha para a terra que lhe mostrarei”. Estas palavras devem ser associadas ao que disse o Senhor: “Venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres e tome sua cruz – ou seja, crucifique-se para o mundo, para os sentidos e para as coisas sensíveis – e venha me seguir[61]”, a mim que subo para o Pai, juntamente com o Espírito que a tudo dirige[62]. Foi dito: “Deus disse a Abrahão”. Deus é o Pai que fala pelo Verbo, o Filho. E continuando: “Venha para a terra que lhe mostrarei”. Este é o gesto habitual do dedo, para apontar. Ora, o Espírito de Deus é chamado de “dedo de Deus”. Pois a expressão “eu expulso os demônios com o dedo de Deus [63]” também aparece como “pelo Espírito de Deus[64]” em outra parte. Os sábios egípcios diziam: “É o dedo de Deus[65]”, designando assim a energia espiritual. “Para a terra que lhe mostrarei”, é como se ele dissesse: “para a terra à qual o conduzirei por meu Verbo e meu Espírito”. “Para a terra onde correm o leite e o mel” equivale a dizer para a compreensão do próprio Deus, para o conhecimento daquilo que ele é por natureza. Neste conhecimento é impossível que o intelecto seja aquilo que ele deve ser se não for iluminado e esclarecido pela chama do Espírito vivificante, esta chama que contemplamos por intermédio do Filho. Com efeito, a partir daí o Deus que ama o homem convida o intelecto e se engajar e partir como um novo Abrahão, para além das agressões dos espíritos do mal, passando das coisas sensíveis às coisas inteligíveis, às coisas do além, onde se alcança em sua simplicidade a visão e a contemplação da Divindade nas três Pessoas. Ela é, por causa deste convite, revelada pelo tríplice poder e pela tríplice energia da Origem única. Pois Deus Pai é propriamente a terra prometida que os mansos devem herdar [66], bem como os de coração reto. Temos a promessa disto pelo Espírito divino. Os herdeiros terão o ardor da esperança: a terra onde correm o leite e o mel, as luzes da manhã, os raios gêmeos, a vida, as delícias, a purificação do mundo inteiro, até que invoquem Aquele que nasceu do Pai, seu Filho inseparável, quando ele se encarnará no homem como um raio de mel e quando a raça humana será cumulada de doçura e de maravilhosa alegria pelos ensinamentos e as graças transbordantes e pelas miríades de coisas boas e belas. O leite é o Espírito Santo. Ele é simples. Ele não é engendrado, mas ele procede. E sua branca luz fornece alimento divino aos seres de razão que são os filhos chamados a entrar no Reino dos céus, como disse o Senhor. É assim natural ver na terra onde correm o leite e o mel o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É para esta terra que se transporta o intelecto e para ela que ele emigra, como foi dito, sob a condução e pelo poder e a energia da Divindade em três Pessoas. Pois, assim como ninguém pode dizer “Senhor Jesus” – segundo Paulo – senão no Espírito Santo[67], também ninguém pode levar o intelecto de sua alma para a glória e a grandeza da unidade simples das três Pessoas, e vê-las, senão pelo poder e a graça da Trindade, na deposição das coisas sensíveis pelos sentidos, e até das coisas inteligíveis reveladas pela Escritura e o mundo sensível, no distanciamento daquilo que é mensurável. Assim, é na sua luz, na luz de Deus, ou seja na unidade de sua irradiação, que veremos a luz [68], que o veremos, a você que ilumina nossos corações e nosso intelecto. E possamos reconhecer, para contemplálo, aquilo que lhe pertence e o que vem de você, a fim de que nenhuma carne se glorifique de si mesma[69]. É por isso que aquele que antes era Abrão, que quer dizer o emigrado, depois de ter partido e de ter deixado tudo como lhe fora ordenado, dirigindo-se para a terra onde correm o mel e o leite, recebeu o nome de Abrahão, ou seja, o pai de numerosas nações. Também o intelecto digno de ser chamado de emigrante, desde o momento em que parte do sensível, dos sentidos e do mundo todo pelo poder e a energia da Divindade em três Pessoas, dirigindo-se para a irradiação simples da Trindade, para a contemplação e a visão, engendra e suscita, como se fossem numerosas nações, inúmeros grandes pensamentos, inefáveis e misteriosos. Ele está feliz, se regozija e exulta diante das coisas extraordinárias
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que lhe são reveladas e que nascem para ele, como um pai faz diante dos seus filhos, e possui a paz que está em Cristo.
DA HUMILDADE E DA CONTEMPLAÇÃO 25. Suas obras são admiráveis, Senhor, e minha alma está arrebatada por conhecê-las. A mesma causa que eleva o intelecto suscita também a extrema humildade. O que conduz a alma às alturas infinitas é também aquilo que mais a rebaixa. A humidade é o começo da contemplação, e a contemplação é a perfeição da humildade. Ainda que tivéssemos toda a sabedoria deste mundo seria impossível alcançar a contemplação sem a humildade. Quero dizer: a contemplação que nos eleva. Pois os Gregos tinham uma contemplação que não elevava. Sem a contemplação que eleva e sem inclinar o próprio pescoço como um cordeiro[70] é impossível ao homem ser humilde. Oh sabedoria inefável d’Aquele que nos criou tão sabiamente! Mas quem a conhecerá jamais, sem tê-la experimentado primeiro, a partir da humildade, a mais alta elevação, e depois, a partir das alturas, a extrema humildade? E se dizemos a propósito do intelecto semelhante a Deus, que o que desce é o mesmo que sobe, devemos acrescentar que o que sobe é também o que desce[71]. Pois quando o intelecto que conhece a arte da humildade recebeu pela graça as delícias das alturas e se regozija por trazer em si as coisas que ultrapassam a razão, ele se coloca, pela humildade, abaixo de tudo. Davi disse: “Senhor, meu coração não se dilatou, meus olhos não se elevaram, eu não alcancei as coisas grandes e maravilhosas que me ultrapassavam, sem primeiro ter me humilhado[72]”. Entretanto, o intelecto, não sem razão, pode dizer o contrário: “Senhor, eu não me humilhei, não me dei ao trabalho, não disse de mim mesmo ser terra e cinzas, sem que antes meu coração não se tenha dilatado, que meus olhos não se tenham elevado, que eu não tenha alcançado as coisas grandes e maravilhosas que me ultrapassam”. Oh Rei, admirável Criador! Você leva o êxtase ao meu coração, em mim que compreendo a obra de sua sabedoria: o intelecto que sua providência criou sábio. 26. O intelecto que retorna a Deus pelas mãos da graça conhece em primeiro lugar um estado de condenação. Por isso o homem que traz em si este intelecto se lamenta no luto e sofre com lágrimas. Ele parte seu coração tanto quanto possível. A cada dia ele purifica o que nele existe de passional. Ele se humilha naturalmente sem a menor tristeza. Mas quando, pelo dom de Cristo, ele chega à purificação que traz a hesíquia, quando ele se opõe em espírito às agressões inteligíveis, quando ele se eleva para Deus e para sua glória e permanece tendendo à contemplação, ele descobre, depois daquela primeira, uma segunda condenação, que provém do intelecto, e esta condenação é imensa, dura um longo tempo e é sem saída. Dela, ele adquire uma humildade mais firme, real e clara, a tal ponto, que se ele pudesse dizer que todos os homens são bem-aventurados, ele próprio se veria como o pior dos seres, ou antes, não somente ele se veria como o pior dos seres, mas, em verdade e pelos sentidos da alma, ele se veria pior até do que aquilo que não tem ser. Pois aquilo que não é, tampouco pode pecar, mas ele próprio está em constante estado de pecado. Daí provém sua humildade. No entanto, ele se regozija e se glorifica de muitas coisas, embora nunca de si mesmo – pois ele nunca cessa de se condenar por seu pecado. Porém ele se entrega ao Deus compassivo, que o aproxima de seu sopro, ou, para falar mais claramente, que suscita e espalha dentro de seu coração fluxos de luz celeste e rios das maravilhas do Espírito eterno, e que ilumina o intelecto e diz de seu conhecimento: “Eu estou com você[73]”. Deus revela a ele seus mistérios como a um amigo e o cumula de alegria. A ele respondemos com as palavras de Davi: “Ele não trata segundo nossas faltas, nem nos retribui segundo nossos pecados[74]”. E segundo Paulo: “É pela graça que somos salvos[75]”, ainda que tenhamos cumprido na medida do possível com todos os mandamentos divinos, ainda que tenhamos
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rejeitado todo caminho injusto[76] na medida de nossa capacidade, e ainda que nos tenhamos esforçado por não perder nada – se possível fora – daquilo que leva à salvação. Aquele que não vê a si mesmo sentindo estas coisas e que não conhece a si mesmo experimentando-as ainda não tocou a verdadeira contemplação. Ele não chorou o bastante. Ele não considerou a unidade da fé e o conhecimento da verdade[77]. Ele não viu a glória divina nas coisas que acontecem, nem aquilo que está além dos afazeres humanos. Resumindo, ele não alcançou a ciência das razões divinas e humanas.
DA CONTEMPLAÇÂO 27. A criação que traz em si o inteligível e a Escritura que traz em si o espiritual testemunham a glória, o Reino, a sabedoria, o poder, enfim, a grandeza de Deus. Mas o que traz cada uma destas coisas? Seu testemunho é nada? É pouco, como uma gota no oceano? Não. Pois foi contemplando a si mesmo e, por assim dizer, liberando aquilo que nele é sábio, poderoso, glorioso ou grande, que Deus fez tudo o que fez. Ele nos permitiu ver as coisas grandes e gloriosas, cheias de sabedoria e de poder. Ele próprio não tem necessidade de nada. Mas ele transborda de bondade. Assim como ele resolveu, e na medida em que resolveu, ele, com muita harmonia e avaliação e para seu próprio bem conduziu o homem a estar, viver e passar seu tempo na terra, e velou para ligá-lo a si e por lhe conceder o gozo que lhe convinha. Ele criou o Adão único, mas considerando a multitude dos homens. Então ele permitiu que se visse que sua paciência nada negligenciara, e que nada faltaria a nenhum dos homens que viesse a habitar no mundo. A terra guardou o que a faz corresponder às coisas de baixo; o céu, o sol, o ar e o mar estão em correspondência com a terra. Assim, cada qual corresponde ao outro, e traz em si esta analogia que trouxe de Deus, que conhece todas as coisas previamente e que a tudo criou com uma ordem e um poder que exprimem a analogia e a harmonia. Pois se o Criador não houvesse suscitado a gênese dos seres tendo em vista o uso do mundo, mas em vista somente de sua natureza potente e sábia, gloriosa e grande, teríamos miríades de mundos ao invés de um único, e não mundos como o que conhecemos, mas mundos estranhos, sobrenaturais, que ultrapassariam o entendimento. A alma não poderia suportar facilmente a glória e o esplendor de sua beleza e de sua sábia diversidade, e em seu arrebatamento ela quereria fugir para fora do corpo. Deus quis fazer do homem uma obra única, o rei das coisas da terra, um outro Deus das coisas de Deus, e de bom grado lhe deu o usufruto de todas as coisas deste mundo. Bem disse o profeta: “Ele formou a terra do nada[78]”. E um outro: “Ele estendeu o céu acima das alturas como um manto[79]”. E fazer tremer a terra apenas por contemplá-la[80], que transbordamento de poder! Assim é que ele entregou ao ser por sua simples palavra todas as coisas visíveis, mas guardou para o século futuro as coisas mais gloriosas e melhores que ele reformou com sua morte depois de as ter fundido no túmulo, para que a alma as possa ver. E o homem se tornou uma nova criatura devotada a novos bens, novas delícias, novas visões. Quanto aos homens que vemos agora, eles não passam de sombras ou de um longo sonho, podemos dizer. Se você quiser se assegurar disso, considere tanto quanto puder a ordem dos anjos intelectualmente, sua sabedoria, seu poder, que nos são não apenas inefáveis como incompreensíveis. Embora o mundo por vir não dependa senão apenas do pensamento de Deus, tamanha variedade e todas as coisas do além são maravilhosas. Se estas coisas dependem de um único pensamento, porque elas jamais existiram, uma vez que era possível que se pusessem em movimento pela vontade, a sabedoria e o poder de Deus? Mas se este pensamento é acessível, como é possível conceber que ele seja infinito? Com efeito, o infinito não tem limites e, onde não existem limites tampouco existe movimento, mas o escoamento da energia a partir do poder que vem da essência, para explicarmos a coisa em parte. O que a criação ou a Escritura revelam de Deus, se isto pode se comparar ao poder de Deus, é algo bem obscuro, uma pequena gota num oceano sem fundo nem fim. No entanto, possamos nós, digo eu, descobrir e conhecer esta gota espiritual. Assim,
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quando tivermos estendido o intelecto pelo infinito, depois de termos contemplado como uma gota a beleza, a glória e as delícias, e quando tivermos celebrado por analogia, na medida em que nos é permitido, Aquele que é para o infinito infinitamente mais que o infinito, possamos nós, intelectos simples e infinitos à imitação dos anjos, nos tornarmos Deus fora de todos os limites, nos unirmos a ele numa punica forma, num estado que nos leve para além do mundo, numa regozijo inefável, numa alegria e num transbordamento do coração, pela energia e a graça do Espírito. Amém. DO MONGE ATIVO E DO MONGE CONTEMPLATIVO 28. O monge ativo que se aplica em ser manso e vigilante como deve sê-lo um ativo não deve deixar de salmodiar. Mas o monge contemplativo não está em estado de poder salmodiar. Ele não deve desejá-lo. Ele não o pode, uma vez que ele próprio se encontra assumido pela energia da graça divina, levado em silêncio ao cume das delícias espirituais, na alegria de um coração calmo que nada mais atinge. E ele não deve deseja-lo, uma vez que ele não contempla senão uma coisa, e que ele coloca em ação a faculdade intelectual da alma por meio de pensamentos imutáveis e pacíficos, numa profunda serenidade. É por isso que a obra da visão de Deus passa necessariamente pelo silêncio da contemplação. No entanto a visão pode lhe ser concedida mesmo quando ele lê. Ele não deve se espantar. Devemos ver aí as mutações do intelecto e o caráter composto e mutante de nossa natureza. Mas é preciso saber que depois da leitura esta obra da contemplação pela graça ainda é o ponto mais baixo da obra da contemplação. Tanto por si mesmo como por seu próprio desenvolvimento, o intelecto não pode, apenas graças à leitura, considerar o indivisível. Mas na liberdade intelectual, que se cumpre misteriosamente no coração do silêncio, vemos no mais das vezes a unidade que supera a divisão. O que vemos das coisas sensíveis não ultrapassa o que ouvimos delas? Os olhos, com efeito, são mais fiéis que os ouvidos, como todos concordam. Tanto nas coisas sensíveis como nas inteligíveis, ver, ou seja, contemplar alguma coisa dos inteligíveis, é bem melhor do que ouvir, o que ocorre quando lemos. Pois, assim como no caso da mulher samaritana que, depois de falar com o Verbo verdadeiro, foi pregar sua divindade aos seus concidadãos, mas quando o Verbo, no transbordamento de sua extrema bondade, foi ele próprio à cidade e falou aos seus habitantes, estes disseram que não precisavam mais do testemunho da mulher para estabelecer a divindade do Verbo[81]; do mesmo modo, quando a reflexão se encontra fora da alma e de suas potências, ela testemunha da divindade pelas palavras da linguagem com as quais ela fala. Mas quando a alma e tudo o que há nela vê pela graça a divindade do Verbo, já não é mais o tempo em que ela tinha necessidade do testemunho de fora. Quem escuta deve, com efeito, ver o que escuta. Quem vê não precisa que lhe sejam ensinadas as coisas que ele vê, uma vez que ele é contado entre os que veem, entre os que têm olhos. É o que podemos observar em Tomé, que ouviu e não foi persuadido, mas disse: “Se eu não vir, não acreditarei”. Mas quando ele viu, ele gritou: “Meu Senhor e meu Deus[82]”. Naquilo em que ele não acreditava antes de ter visto, ele próprio reconheceu a verdade; aquilo que ele não possuía quando apenas escutara – ou seja, a fé – ele adquiriu no momento em que viu. É preciso, portanto, distinguir a contemplação da ação, do mesmo modo como distinguimos o intelecto dos sentidos. 29. As criancinhas e os homens na flor da idade precisam de leite. Mas para uns o leite é um alimento, para outros um prazer. O mesmo acontece aos monges ativo e contemplativo quando eles leem os salmos. Um o faz para confortar e afirmar sua alma, o outro – o contemplativo – o faz por prazer, e sobretudo para deixar repousar o fogo de seu coração, sua tensão para Deus e o fluxo de suas lágrimas. Pois o Espírito abalança-se nele, o cumula de alegrias nos esplendores da beleza de Deus, o transfigura de glória em glória[83] e o faz crescer. Mas a compleição da carne a argila do coração são fracas. Assim, o monge ativo passa seu tempo nas palavras divinas para o conhecimento, o ensinamento e a ciência que elas fornecem. Mas o contemplativo recolhe em silêncio o conhecimento das palavras de Deus. Nenhum discurso é capaz
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de expressar o que ele aprende inefavelmente e o que ele vê em sua contemplação. A Escritura diz que o ouvido escutará as maravilhas da hesíquia[84]. Ela diz: “maravilhas” Mas ela não pode dizer quais são estas maravilhas. Ela não tenta expressar o que não é exprimível nas coisas que ultrapassam a razão. É por isso que eu quero chamar de bem-aventurados os monges ativos a quem a palavra divina glorificou por terem acreditado antes de ver[85]. Mas eu considero que os contemplativos são ainda mais que bem-aventurados. Pois se o monge ativo, embora sem ver, recebeu apenas por sua fé a bem-aventurança, tudo o que diz respeito ao contemplativo é inconcebível, pois ele caminha numa fé bem mais elevada do que a do monge ativo. Pois ele vê as coisas grandes e maravilhosas, ele experimenta as elevações em seu coração [86], ele está naturalmente todos os dias em estado de contemplação. 30. O Criador e Ordenador do universo concedeu o desfrute aos dois componentes do homem que se correspondem e assim deu à vida um só e mesmo nome. Ao homem exterior ele ofereceu toda a criação visível. Ao homem interior, que é a alma, ele ofereceu o que há de inteligível na criação sensível. Pois assim como no homem o inteligível está unido aos sentidos, também em toda a criação visível a beleza inteligível pode ser percebida no coração de cada coisa. Não há nada nas coisas sensíveis – é o mínimo que podemos dizer – que esteja privado de conexão com o intelecto. E é bastante natural. Pois nada, de tudo o que foi feito para o homem pela palavra divina d’Aquele que domina o universo, pode existir sem razão. Ora, é isto que aconteceria se a criação sensível não estivesse penetrada pelo intelecto. Como o corpo se contenta com a sinergia do visível, a alma cristã permaneceria vazia. O corpo seria melhor do que a alma, o que é absurdo. E de onde a alma tiraria a vida que lhe é própria? De Deus? Mas então uma criação sem razão irá contra a ordem d’Aquele que a tudo criou pelo Verbo. Pois as substâncias separadas que são as dos seres compostos seriam inferiores, se esta criação nos coubesse sem mediação, uma vez que tais substâncias se dirigiriam por si mesmas a Deus. Seria preciso ao contrário se elevar a partir dos simples inteligíveis e descobrir as delícias da visão? Mas se acontecesse que inteligências materiais, ultrapassando sua natureza, rivalizassem com as inteligências imateriais para tender para o bem, só isto já nos permitiria alcançar uma ordem semelhante à dos anjos. Pois estes possuem suas vidas em si mesmos e tendem à beleza primeira. A partir de si mesmos eles desfrutam das auroras da luz única de Deus. Mas nós que, por nossa natureza, estamos abaixo deles e somos segundos depois dos anjos e das ordens que por assim vêm depois deles, em nosso nível nos recolhemos em Deus e em sua beleza, sem colocarmos na frente as substâncias separadas, ou as coisas simplesmente inteligíveis. Pois esta é a obra angélica, a obra dos que descobrem por si próprios a tensão divina. Mas avançando pela razão a partir dos seres compostos e chegando às criaturas simples, passamos ao incriado como as coisas da natureza, conforme eu já disse. Nós nos recolhemos na simplicidade em nós mesmos e em Deus. É por isso que, a fim de que possamos desfrutar, viver e nos elevarmos a Deus em nosso intelecto, nos é necessário contemplar o inteligível espalhado por todo o sensível e unido às coisas visíveis, este inteligível que o monge ativo não pode ou não quer ver. Ele não pode, se não tiver um homem, ou a Escritura, para lhe mostrar. E ele não quer, mesmo que lhe seja dado, quando, por presunção ou malícia, ele desconfia de seu próximo, não crê senão em si mesmo, jamais provou do ensinamento dessas coisas e considera que as indicações da Escritura são para ele um guia suficiente. Ele se contenta em colocar a criação a serviço de seu corpo, pensando que é nisto que reside a piedade. Isto lhe basta, e ele não busca nada além. O contemplativo, ao contrário, recolheu o invisível na criação visível, descobriu aquilo que na Escritura concorda com o Espírito, e com passo alegre partiu para as substâncias separadas. Ele vê a beleza de seu esplendor, ele se regozija em atravessá-las pela graça e ele se dirige para o incriado inteligível de Deus. Dedicado às delícias do infinito e da contemplação, na medida do possível, ele está, na simplicidade e no sobrenatural, inefavelmente suspenso no raio da beleza divina. Num maravilhamento mais alto do que o mundo, num estado de unidade e de simplicidade, ele desfruta naturalmente da beleza inexprimível e deste esplendor luminoso. Ele está cumulado de alegria e de admiração. Assim ele recebe o fluxo sem fim do regozijo divino, e em sua generosidade ele mostra ao monge ativo, por suas palavras e seus escritos, o caminho que conduz à verdade.
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DA COMUNHÃO COM O ESPÍRITO SANTO 31. Você sabe quem se difunde no coração dos fiéis e qual é o signo desta efusão? É acima de tudo o Espírito Santo quer procede do Pai pelo Filho, e que preenche o mundo. Ele está inteiro em tudo, e se difunde inteiro em cada um dos fiéis. Ele se distribui impassivelmente e se dá numa comunhão irresistível. O sinal de sua comunhão, ou de sua efusão em nós, é o desejo pela humilde pobreza, as lágrimas que não cessam de correr sem dificuldade, o amor verdadeiro, o amor total por Deus e o próximo, a alegria do coração, o regozijo em Deus, a paciência nos deveres, a mansidão para com todos, e simplesmente a bondade, a união do intelecto, a contemplação, a luz, o ardente poder da prece contínua, enfim, a ausência de cuidados com as coisas temporais e a memória do eterno. “Como são maravilhosas suas obras, Senhor![87]”. “Da cidade de Deus se disseram coisas verdadeiramente gloriosas[88]”; a cidade de Deus é aqui o coração fiel. 32. Se depois que ele se fez ouvir você compreendeu o grande Conselho de nosso Deus, conselho inconcebível em sua bem-aventurança, que nos foi revelado pelo amor sobrenatural do Pai pelo homem e que Jesus nos trouxe e transmitiu, ele que na bondade transbordante de sua santidade que ultrapassa o entendimento e em seu amor pela raça se fez por nós o Anjo deste grande conselho[89] que recolhe todas as razões das coisas visíveis numa única razão concisa que Deus prometeu nos dar[90], se você compreender você nunca deixará de estar maravilhado, alegre e em paz. 33. Se você conheceu o objetivo que nos foi assinalado pela grandeza de Deus, e o que por este objetivo acontece entre nós e Deus, e se você compreendeu o que Deus quer para nós, como ele cumpre o que é nosso e o quanto nos falta daquilo que lhe pertence, sua obra será cheia da tristeza amada por Deus e de uma humildade total e verdadeira.
DA CONTEMPLAÇÃO 34. Quem medita a respeito de tudo o que o amor de Deus lhe permite experimentar nas visões intelectuais, verá sem dúvida se erguer em sua alma três coisas que as Escrituras e os Livros santos sublinharam com fervor – que se fosse preciso que os homens as adquirissem por todos os meios – ou seja, a fé, a esperança e o amor[91], que são o cumprimento, ou antes o fundamento, de todas as virtudes da ação e da contemplação. Esta é verdadeiramente a trindade santa que está em nós e que pode nos unir à Santíssima Trindade, se a levarmos como se fôssemos anjos. 35. O intelecto são contempla geralmente ao redor de Deus três ordens de sistemas, que são por sua vez trinitários: a ordem pessoal, a ordem natural e a ordem que se segue à natural. A primeira trindade se revela ao intelecto principalmente pelas Santas Letras. A trindade natural é descoberta a partir da contemplação dos seres. Quanto à trindade que se segue à natural, ela provém da verdade da razão. Portanto, quando o intelecto penetra na primeira ordem trinitária, ou mais precisamente quando ele tende para ela, ele encontra o inacessível, mas ele ainda não se tornou simples. Quando ele atinge a segunda ordem, maravilhado, ele descobre a alegria da sabedoria. Mas quando ele penetra na terceira trindade, ele entra verdadeiramente na treva, aonde está Deus. Ele se torna totalmente simples, infinito, para além de todo limite, num estado no qual não existem nele nem figura nem forma. Quando enfim ele considera, ou melhor, quando ele tenta ver estas três ordens como uma décima ordem na qual os pregadores da verdade dizem que toda a plenitude da divindade reside num corpo[92], então ele enxerga verdadeiramente a paz que o ultrapassa, na natureza perfeita da graça da contemplação. 36. Se ele subdividir novamente, o intelecto contemplará então no dom apaziguador de Cristo três estados que organizam no mistério a graça espiritual: o que está além do mundo, o que abarca o mundo e o que
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está em si. Nesta unidade trinitária, ou no dez, ou na perfeição da contemplação, o intelecto, pela bondade da graça, celebra na alma os aguilhões do amor de Deus e os mistérios deste amor. Ele brilha ao redor deles, ele se torna radioso, ele irradia uma luz de felicidade. Ele próprio não vive senão em espírito. Ele volta para Deus o amor da alma. Tanto quanto possível, ele o transporta para o eros divino. A partir de então ele começa a amar a Deus, e com razão. Ele se eleva e avança ao redor deste amor, ele se liga aos mandamentos, ele os contempla, corre para eles tanto quanto pode. Ele se esforça continuamente para desabrochar pela graça, na medida em que isto lhe seja permitido, e para realizar ciosamente em si mesmo o amor divino. Então Deus e o intelecto se tornam maravilhosamente um só Espírito. Do mesmo modo como Deus está espiritualmente no intelecto que o recebe, o intelecto está em Deus que o penetra. Considere aqui com clareza o que diz Paulo: “Aquele que se liga ao Senhor se torna um com ele em Espírito[93]”. A partir daí Deus se torna para o intelecto irradiação, luz, eros, amor. E o intelecto se regozija em Deus com maravilhosa alegria, exultando nu esplendor único da tripla luz. Ele se acalma e repousa naturalmente em Cristo com arrebatamento. 37. Quer as expresse, quer as conceba ou as veja, possa o intelecto contemplativo preferir dizer naturalmente diante de Jesus encarnado estas cinco palavras[94] referentes à glória, ao amor, à graça, à paz e ao repouso. Primeiro a palavra de glória: o Verbo se reflete na criação do visível e do inteligível. Pois “tudo foi criado por ele e nada do que foi feito foi feito sem ele[95]”; os séculos e o que está na eternidade, ou seja, a ordem do mundo mais alto do que o céu e, com mais forte razão, o mundo temporal. Mais ainda, ele é da mesma natureza e está sobre o mesmo trono que Deus Pai e o Espírito. Ele é a imagem do Deus invisível[96] e a irradiação de sua glória[97]. Dele é naturalmente tudo o que o Pai tem[98]. É por isso que ele está no Pai e o Pai está nele[99]. Depois vem a palavra de amor: pois o Verbo se fez carne a partir de nós e habitou entre nós[100]. A palavra da graça: pela efusão e o dom do Espírito vivificante em nós, pois todos recebemos de sua plenitude, e graça por graça[101]. A seguir a palavra de paz, esta paz cuja boa nova o Verbo anunciou aos que estavam próximos ou distantes dele[102]; ele fundou a paz[103] e reconciliou o que está sobre a terra com o que está nos céus[104]. É por isso que o Pai nos ressuscitou e nos estabeleceu com ele nos lugares celestes em Cristo[105]. Enfim, a palavra de repouso: pois por ela nos tornamos incontestavelmente herdeiros de Deus. Não apenas nada é mais forte do que Deus, mas ninguém se iguala Àquele que, além de toda medida, é maior do que o infinito. A partir de então aquele que é conduzido em espírito e verdade por estas cinco palavras contempla na Trindade única as três palavras conjuntas em vista do extraordinário cumprimento do único objetivo secreto. Assim, pelo amor e a temperança, pela vigília, a leitura e a oração, na humildade fundamental e na justiça ativa, na medida do possível, ele progride simultaneamente para as contemplações de Deus e as contemplações divinas, e ele vive só com Deus, não dando a menor atenção a si mesmo, nem se abandonando ao medo que se agarra a ele. Desde então ele usufrui inefavelmente dos numerosos e luminosos carismas do Espírito, no santo amor, na alegria do coração, na paz sobrenatural, nos bens que acompanham a verdade. E ele se torna um templo de Deus, um novo herdeiro. A graça o faz herdeiro de Deus por adoção de uma vez por todas.
SOBRE O QUE DEUS DISSE A ABRAHÃO: “EU MULTIPLICAREI A SUA SEMENTE.” 38. A partir daí, quando, pelo poder do Espírito que dá a vida e a luz, eu contemplo o Senhor, o DeusHomem, com o olhar apaziguado da alma, e quando eu lembro claramente das cinco palavras a seu respeito, eu vejo maravilhosamente cumprir-se a promessa que o Verbo encarnado fez um dia a Abrahão quando lhe anunciou: “Eu multiplicarei sua semente como as estrelas do céu e como as areias à beira-
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mar[106]”. Da mesma forma, quando ele diz: “Todas as nações serão benditas na sua semente[107]”, esta semente, para são Paulo, significa Jesus. A semente multiplicada de Abrahão é, por conseguinte, o Senhor Jesus, que, pela união e a energia da divindade, é o único capaz de suscitar a superabundância. Sua grandeza é infinita, sua amplitude insondável, sua verdade multiplicada como as estrelas do céu ou a areia à beira-mar, pois ele é o Deus das graças. É precisamente dele que provém a raça de Abrahão. Deus não fala aqui de Ismael, pois este não era filho de uma mulher livre[108]. Está escrito: “É de Isaac que lhe virá um filho[109]”. Ele também não fala de Israel, pois não é tanto de uma multitude que abarcaria todos os homens da terra, mas do Senhor, do Cristo assumido, a partir da semente de Abrahão, por Deus o Verbo: uma pessoa única, homem e Deus. Somente sua paz não tem fronteiras[110], seus julgamentos são um abismo[111] e seus caminhos são insondáveis[112]. Seu poder, sua sabedoria e todo o divino que o cerca são no infinito infinitamente infinitos. Nele as nações invisíveis foram abençoadas[113] contra toda espera, e tal multiplicação se cumpre através daquilo que havia sido previsto. Mas não era conveniente nem necessário a Deus prometer ao patriarca que lhe concederia a graça de multiplicar o povo com sua semente. Pois regozijar-se destas coisas é no mínimo pagão e grosseiro. Mas um homem devotado ao melhor, como Abrahão, e amado por Deus como o era este patriarca, não podia senão amar e se regozijar com toda sua alma pelo conhecimento e a contemplação de Deus que se abriam para ele, uma vez que daí ele recebeu uma superabundância de pensamentos, de contemplações e de iluminações divinas, que se multiplicavam cada vez mais, como convém a Deus. Assim é que Moisés soube admiravelmente suplicar, a fim de ver claramente a Deus que lhe aparecera[114]. E quando ele o viu, ele foi considerado tão justo que se multiplicou. E dele veio tamanha soma de conhecimentos divinos que nem se pode mencionar. Também Salomão recebeu de Deus uma profusão e uma soma de sabedoria e de ciência dos seres igual à areia das praias[115]. E ele se multiplicou mais do que todos os seus contemporâneos. Se refletirmos a respeito disto descobriremos facilmente como Deus multiplica o homem ou a semente do homem que recebeu a graça. Com efeito, Deus não se regozija simplesmente com a multitude de um povo. Ele se regozija com a sabedoria, a ciência espiritual da alma e com as outras virtudes divinas que estão além de todo número. O Senhor Jesus, que possui todas estas virtudes em superabundância, é ele próprio o cumprimento da sabedoria de Abrahão, ele, em cujo corpo habitou toda a plenitude da divindade[116] que ultrapassa infinitamente toda ordem de grandeza. É dela que provém toda a superabundância e os tesouros do conhecimento e da sabedoria ocultos em Cristo[117]. E este é verdadeiramente o dom que convém a Deus, este dom eminente prometido com toda justiça ao eminente amigo de Deus, Abrahão. Veja assim em Jesus Cristo a divina multiplicação, como que infinita, das cinco palavras de que falei. Em primeiro lugar a irradiação da natureza divina é revelada pela glória que envolve Cristo. Pois ele é verdadeiro Deus. As meditações teológicas dos Padres sobre a grandeza são infinitas, e são insondáveis aquelas sobre a abundância da multiplicação. Pois tudo o que diz respeito à filiação do Pai, a justa doutrina da consubstancialidade, as coisas da comunhão do Espírito, a efusão dos dons dos quais participam miríades de homens – talvez a terra inteira – e que jamais diminuíram, e ainda as coisas da economia da encarnação, e tudo o que daí decorre, tudo isto é inefável e sem número. Ora, tudo isto, para resumir, o que provém da glória, o que provém do amor, da graça, da paz, de nosso repouso, tende a se multiplicar secretamente, na medida em que é permitido, mais do que o número das estrelas do céu e do que os grãos de areia das praias, em Jesus Cristo, a semente de Abrahão. Esforcemo-nos para louvar e glorificar tão alta promessa, maravilhosa e secreta, digna somente de Deus, a fonte das graças, feita a um amigo fiel eleito entre todos, para a imensa felicidade comum da raça humana, em especial dos crentes. Glória Àquele que quis que assim se multiplicasse a semente. Amém.
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SOBRE “LOUVE A MINHA ALMA AO SENHOR”. 39. Louve minha alma ao Senhor[118] pelo céu dos céus, este céu cujo ser é a luz. Louve-o acima dos céus, por seus anjos e suas potências. Profundamente louvados sejam seu poder e sua sabedoria. Bendito seja seu santo nome. Louve ao Senhor. Louve-o pelas águas que estão abaixo do firmamento e pela luz que está acima das águas. Louve-o pelo firmamento do céu, por sua ordem e seu giro maravilhoso. Louve-o pelo azul que a tudo inflama. Louve-o pelo sol, a lua, as estrelas, por sua glória e beleza, por sua diversidade, sua posição e seu movimento, por seu estado flamejante e sua ardente existência de fogo sem matéria, esta coisa inteiramente terrível. Louve-o pela luz do dia, e pela sua mudança quando se extingue, esta mudança por meio da qual com toda sabedoria ela cobre por igual tudo o que há no mundo. Louve minha alma ao Senhor pela paz e o equilíbrio maravilhosos nos quais se enfrentam os elementos irredutíveis, os quatro grandes elementos do todo: a água, o fogo, o ar e a terra. Louve-o pela imensa proliferação e pela diversidade dos pássaros, pela providência que dirige sua vida e seus movimentos. Louve-o pelo mar e sua enorme potência que é quebrada pela coisa mais frágil de suas margens, a areia. Louve-o por todos os seres inumeráveis que vivem nas águas, com tamanha diversidade de formas, de grandeza, de qualidade, de condutas, de hábitos, de costumes, de força e de energia. Na paz e no arrebatamento, louve ainda ao Senhor por tudo o que o mar pode reunir tão depressa e que contribui para as necessidades da vida do homem. Com alegria louve ao Senhor pela terra, os animais e as serpentes sem número que se deslocam sobre ela, tão diferentes e variados. Louve-o igualmente, é certo, pelas árvores que crescem e que, paradoxalmente, dentro de uma mesma família, dão frutos ou não os dão, numa diversidade incomparável. Louve-o pelas ervas, os frutos, os cereais, os legumes, que estão ligados aos perfumes, ao calor, ao frio, à umidade e à secura, e que diferem por muitas razões que ultrapassam a razão. Louve-o pelas águas que se dividem e se repartem, pelas chuvas, a neve e a geada, pelas tempestades e pelos raios. Por estas coisas e por outras semelhantes louve, minha alma, e bendiga ao Senhor, por seu poder incompreensível, sua sabedoria inefável, sua glória inexplicável. Pois todas as coisas visíveis lhe foram dadas por este Criador no indizível amor que ele tem por você, desde que no meio de todas essas coisas luminosas e gloriosas você veja em sua intimidade e em sua razão, que você reflita a glória, a sabedoria e o poder de seu Criador que nos amou a ponto de nos dar seu filho único[119], que se fez homem, coisa nova e maravilhosa que ultrapassa a inteligência.
DA CONTEMPLAÇÃO 40. É preciso que se diga: o que concebeu fazer o poder de seu poder, que ultrapassa todo poder, Mestre supra-essencial, mais alto do que o ser? E o que quis você por meio deste poder, Rei mais do que sábio? Que quis você em sua incompreensível benevolência, Deus mais do que bom? E o que fez você, Senhor mais do que glorioso que domina o universo, em seu amor infinito, na inefável providência de sua bondade por nós? Glória à sua infinita bondade com que, sem limites, nos cumulou em sua previdência, sua sabedoria e seu poder que não compreendemos, você que em tudo é totalmente inacessível. Possa eu dizer, também eu, com o bem-aventurado Davi: “Como são grandes as suas obras, Senhor, e profundos os seus pensamentos[120]”. Pois eu vejo pelo intelecto, tanto em verdade como em espírito: eis que a casa do Senhor está cheia de glória[121]. Mas da mesma maneira, ao mesmo tempo em que eu recebo esta visão, eu me vejo, também eu, na morada da glória do Senhor, repleto de glória e de graça, cumulado do repouso inefável e da indizível paz eterna. Eu estou, e não sem razão, totalmente fora de mim, atingido, ferido pelo aguilhão do amor divino, e queimo com o ardor do desejo do amor, na alegria espiritual, na felicidade e no mais alto regozijo, acima do mundo. Pelo dom de Deus eu estou até o fundo do coração cheio da santa luz
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do Espírito, esta lâmpada que jamais se extingue, se podemos nos expressar assim. Assim eu penetro nas razões dos seres, reunidos numa única razão secreta com todas as razões do universo, e vejo todas as coisas da Escritura convergir para esta razão. Mistérios me são revelados, conduzindo a esta razão única, manifestando-se por ela apenas aos que veem em espírito em espírito e em verdade. Esta razão é o grande Conselho de Deus. É por ela que Davi cantava quando a viu: “O Conselho do Senhor reside na eternidade, e os pensamentos de seu coração de geração em geração[122]”. Pois ninguém jamais poderá impedir o Conselho do Senhor[123]. Este Conselho se vê e se transmite não por um ensinamento, mas por uma graça espiritual anipostática iluminando verdadeiramente o intelecto e dispondo-o a enxergar o que está além do mundo. “Quem conhece o poder de sua cólera, Senhor? E quem considera seu ardor e o teme?[124]”, diz a sagrada Escritura. Mas a sabedoria espiritual em mim diz também: quem conhece o poder do seu amor? Quem pode medir seu eros a partir de seus atos? Maravilhosas são as obras de seu amor, Senhor, minha alma sabe-o bem. O conhecimento do seu eros é um maravilhamento[125]. Mas quem pode tender inteiramente para ele? Este conhecimento, que se estende infinitamente até o infinito, não está apenas acima de tudo pela qualidade, mas também pela diversidade. Não podemos falar dela, porque ela provém de uma e outra fonte, numa sabedoria sem limite e na correspondente potência, ó Senhor inefável. Pela natureza, o poder, a energia, você é a Unidade. Pelas hipóstases, pelas propriedades pessoais, é a Trindade. Seja bendito, você que nos abençoou com a benção espiritual[126] total na Pessoa de nosso Cristo Jesus, por meio de quem você nos revelou e nos estabeleceu nos pousos celestes[127] acima de todo princípio, de todo poder, de toda potestade, de toda dominação, de todo nome pronunciado neste século ou no século futuro[128], você que nos fez herdeiros com ele[129], herdeiros seus em tudo, herdeiros da Trindade do Deus único, e que maravilhosamente nos deu o poder sobre tudo o que há no céu e na terra. Pois é nele, em Jesus Cristo, que nós, os terrestres, fomos justificados pela razão e pela graça. Você, Deus da Trindade, que transborda de amor divino e do maravilhoso eros! Por seu intermédio participamos do dom de Deus o Verbo. Você é verdadeiramente glorificado, Senhor que nos contemplou assim com a sua glória, acima de todo entendimento, você que é verdadeiramente inefável, e que faz o que é incompreensível, e que mantém oculto o eros que, além de toda medida, lhe traz até nós. 41. Bem-aventurado o homem cujo sentido intelectual refloresceu graças à admirável hesíquia e que retornou por assim dizer a si mesmo e que vive pela inspiração e pela impulsão do Espírito. Redirecionando as disposições da alma, despertando o intelecto e transformando sem dificuldade o coração, este sentido é pela graça o fruto de uma reflexão sã, quando esta voa na direção do divino. Mas ela não pode retornar a si sem a experiência da hesíquia e a pureza que a graça dá ao intelecto. Isto é tão impossível a um homem quanto nadar no ar. Com o sentido intelectual, sua lembrança e sua contemplação de Deus são eficazes e úteis; sem ele é como se houvesse um esquecimento de Deus, e sua lembrança é mais ignorância e ceticismo do que contemplação e conhecimento. Aquele que pela graça encontrou este sentido divino é como se tivesse encontrado a Deus: ele não tem necessidade de palavras; ele se mantém próximo a Deus. Ele foi escolhido para celebrar a liturgia divina. Ele abraça o silêncio, ou melhor, ele se cala ainda que não queira. O Espírito de Deus permanece nele. O amor, a paz, a alegria espiritual se erguem nele. A vida que ele vive não é a mesma vida habitual e comum, pois ele se regozija em Deus e seus olhos veem a luz intelectual, pois eles próprios são olhos do intelecto. Seu coração guarda o fogo. A simplicidade, a imutabilidade, o infinito, a ausência de limites e de começo, o eterno se unem maravilhosamente nele para arrebata-lo. As lágrimas não cessam de correr de seus olhos. Ele tem em seu coração nada menos do que a fonte de água viva, a água espiritual. Ele encontra a unidade e a totalidade ao se unir ao inteligível. Ele se cerca da luz do único. Ele desfruta das delícias que estão acima do mundo. Ele é arrebatado pelo êxtase, ele brilha de alegria, maravilhado, fora de si, absorvido por Deus.
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Quem experimentou isto compreenderá e celebrará com justeza ao Deus Altíssimo, além de toda imagem, de toda qualidade, de toda geração, de toda quantidade, simples, sem forma, inexplicável, sem começo, eterno, incriado, incorruptível, incompreensível, insondável, mais alto que o ser, mais que poderoso, mais que bom, mais que belo. A ele o louvor e a glória pelos séculos dos séculos.
DA ILUMINAÇÃO DIVINA 42. Senhor, aos insensatos a sabedoria diz: “Venham, comam meu pão e bebam o vinho que preparei para vocês[130]”. Assim eu me confiei ao seu inefável amor pelo homem, Senhor, e chego a você, verdadeiramente insensato que sou por ser pecador em todas as minhas ações. Assim eu imploro, ó compassivo, eu lhe imploro, conceda-me o dom do alimento espiritual e da bebida de seu Espírito, este Espírito que é também incontestavelmente a própria luz. Pois os seus o dizem: os que trazem o Espírito trazem também a luz. Assim, quando a luz surgir inefavelmente, eu saberei que ela está em mim de um modo que ultrapassa a natureza. Pois você será para mim minha vestimenta, minha vida santa e bemaventurada. Os que trazem a luz como a possuem os seus, de você se revestem [131], aurora luminosa da glória do Pai, vida verdadeira e sem mistura. Tais homens, como seus santos, revestiram-se do Pai. Assim são eles claramente as mansões, as moradas, os templos da Divindade três vezes luminosa, a Divindade celebrada acima de tudo. Eles deixaram o visível, separaram-se do inteligível, eles repousam espiritualmente em você, a Divindade mais que divina.
DE ONDE VEM O EROS DIVINO NA ALMA 43. O eros divino vem habitar na alma por meio dos mandamentos e dos dogmas de Deus, quando o Espírito vivificante volta a se iluminar no coração. Então ele se inflama com um fogo ardente. Este amor é como uma alma cheia da divina oração pura, eterna, sempre transbordante: ele é um movimento, uma energia, ele unifica e agrega, é êxtase e visão, a alegria verdadeiramente sagrada que provém da iluminação. Ele é o caminho reto da união perfeita e maravilhosa que vem de Deus, é a fonte incontestável da luz supranatural, esta luz intelectual anipostática de que falam os Padres. Ele é a fonte dos dons da deificação, da segurança da futura herança dos santos, das garantias da glória de Cristo, da vestimenta mais que celeste da alegria que paira acima do mundo, do selo da santa adoção, numa palavra, do esplendor de Cristo, que torna semelhantes a ele os que o recebem[132] e lhes permite participar de sua inefável deificação. Eles serão chamados de irmãos, de herdeiros de Deus, herdeiros com ele[133]: isto é uma coisa absolutamente maravilhosa. Por isso é bem-aventurado aquele que, votando-se ardentemente ao que dissemos, pode adquirir o eros inefável de Deus e se dedicou à santa oração levando uma vida voltada para a hesíquia. Pois ele estará verdadeiramente ligado a Deus e transformado pela mudança deificante que ultrapassa o intelecto. Sofrer por Cristo será para ele uma alegria[134], ele se consagrará inteiramente aos seus mandamentos[135]. A ele a glória por todos os séculos dos séculos. Amém.
DO EROS DIVINO 44. Deus está naturalmente no infinito infinitamente acima de toda contemplação, mesmo a dos querubins. Mas de certa forma podemos contemplar seu eros, que provém de uma infinita bondade. É por meio dele, pela força do eros, que o criado é feito inteligível e que o visível se torna inteligível através das razões inteligíveis das criaturas. É por isso que o eros divino, desde sua primeira efusão, se manifesta nos seres inteligíveis, ou seja nos anjos e nas almas que estão mais próximos de Deus e são com ele aparentados.
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São principalmente as naturezas inteligíveis que têm como característica a divindade. Pois por meio delas Deus cria também as outras naturezas em seu amor e grandeza de alma, ou mais precisamente na grandeza intelectual que é sua, como já revelamos. Assim é possível àqueles que contemplam em plena luz, de um modo ou de outro, o eros d’Aquele que em si é totalmente invisível, verdadeiramente verem através das coisas visíveis, como nos templos, o inteligível que está acima dos mundos. Entre Deus que ama o homem e o homem que é amado, muitas coisas provêm profundamente do eros divino quando ele atrai das muitas maneiras que lhe são naturais e, sobretudo, quando o intelecto faz do coração iluminado sua morada, trazendo em seu espírito a visão que o inflama. É então que a alma recebe pela graça no coração as garantias da vida espiritual. É dado a ela sentir a energia do intelecto: ela começa a contemplar sobrenaturalmente na luz divina, sem erro e com toda segurança, os dons d’Aquele que a ama. A partir daí, ela se sente chamada a se lembrar dele e busca continuamente voltar aos seus dons. Com alegria ela representa para si o rosto d’Aquele que a ama e se maravilha desmesuradamente, se consome de amor por Deus e já não se permite sentir ou conceber outra coisa senão isto. No transbordamento da contemplação ela já não sabe, ela ignora que ela é. Assim engajada, ela se torna radiosa, ela exulta, ela se regozija, ela transborda de felicidade, ela ama a Deus, ela alcança a fervura do eros, é conduzida aos mistérios de Deus, é levada ao fogo do coração pelo Santíssimo Espírito vivificante. Existe aí um círculo sagrado todo feito de doçura: o círculo do amor. Este círculo é maravilhosamente animado pelo eros divino que revela a aparição das criaturas, este eros por meio do qual Deus, tomado de amor por nós, indica manifestamente o caminho que faz de nós seres tomados de amor por ele. Assim é que Deus se faz amado por nós e nós, que proviemos de Deus no princípio, a ele retornamos. Quando chegamos à semelhança divina em imagem, pela doçura e o regozijo do eros que recebemos de Deus, tornamo-nos bons e sábios, ou seja, somos ativos e contemplativos, somos amados por Deus e amamos a Deus, experimentando os mistérios da união vivificante e do êxtase, numa palavra, a paixão bemaventurada da luz radiosa do conhecimento, em Cristo nosso Senhor.
DO TEMOR NO AMOR 45. Vocês que escolheram o amor de Deus e o repouso espiritual do eros místico, vocês que com toda sua sensibilidade carregam o cálice divino, que com ele estão inefavelmente radiosos e felizes, vocês que contemplam as profundidades dos mistérios que estão acima do mundo, que desfrutam do indizível e repousam na mais profunda paz, temam ainda e orem, atentos a Deus, votados à humildade de todas as maneiras, e ouvindo aquilo que o divino Davi disse abertamente a Deus: “Você é minha alegria, livre-me daqueles que me encarceraram[136]”; e também o que ele ensina em sua natural nobreza, por ser portador do Espírito: “Sirvam ao Senhor com temor e regozijem-se nele com tremores[137]”; vejam igualmente a Paulo, o vaso de eleição[138], que foi arrebatado até o terceiro céu, que entrou no paraíso sagrado e que ouviu as palavras inefáveis que nenhum homem pode dizer[139], e que depois de tão grandes coisas ainda temia ensinar aos outros sem ter ele mesmo aprendido o bastante[140]. Do mesmo modo, se o divino Davi, o mestre da terra inteira, diz: “Vocês que amam ao Senhor, execrem o que é mau[141]”, é como se ele ensinasse abertamente: “Vocês que amam ao Senhor, temam”. Ele via que a malícia tentava se opor invejosamente ao amor a Deus e se misturar naturalmente à alma. É por isso que ele também disse, àqueles que amam ao Senhor, que chegaram a este estado, que estão atentos em execrar a malícia: “Se vocês aprenderam que devemos execrar a malícia, mesmo assim ainda devem temer”. Pois se não houvesse nada mais a temer, o profeta não ordenaria execrar àqueles que amam a Cristo. Pois se regozijar-se e exultar em Deus contemplando os mistérios naturais consiste num estado elevado, num estado elevado verdadeiramente cumulado de graça, ainda assim nossa alma é naturalmente mutável
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e muito próxima da matéria terrestre e do corpo que esta cultiva. Ela deve se cobrir rapidamente do temor na luta que a faz tender ao eterno, mas ela espantosamente se une à matéria. Quer queira, quer não, ela respira com ela, sofre com ela, muda naturalmente de forma, como se, podemos dizê-lo, não tivesse nenhum poder. A matéria se opõe a ela implacavelmente e a comanda de muitas maneiras levando-a à ruína. Assim é que se torna necessária a prece suscitada pelo temor. A alma que tende para Deus tem necessidade tanto do temor quanto do tremor. E eu peço aos mais nobres dentre os que me ouvem para que se esforcem para ver e discernir o que são esta atenção e esta prece, a partir do momento em que a alma contempla estas coisas pela graça luminosa do Espírito e experimenta ardentemente o amor a Deus. Se Adão tivesse tido naturalmente o temor, uma vez que ele recebeu tanto dom profético, do qual ele usufruía e que o levou a imitar a Deus, ele não teria sido vencido tão pouco nobremente. Mesmo Sansão, nascido da promessa[142], mesmo Davi que trazia a Deus em si, e tantos outros, dos quais o mais admirável foi Salomão. Se tais homens foram vencidos, é porque eles tinham necessidade do temor, da luta, da atenção e da prece. Que pensar então dos que ainda não alcançaram o dom e a energia sobrenaturais do Espírito? E dos que ainda não se elevaram no êxtase do eros divino, neste amor louco que nos conduz à beleza visível de Deus? De quanto temor, quanto tremor, quanta atenção e quanta prece não necessitam estes em Jesus Cristo, com o coração humilde e constantemente?
DAS TRÊS FORMAS DO AMOR 46. A experiência mostra que o princípio do amor é triplo e que analogamente as coisas primeiras são triplas; assim sendo, as razões do amor são triplas. Existe o amor sensível, ou seja, o amor dos sentidos, voltado para as coisas sensíveis; este amor consiste num desejo passional por aquilo que se quer. É assim que, na maior parte dos casos, amam os animais desprovidos de razão. Existe outro amor que consiste num impulso da alma, um impulso da razão em direção ao que pensamos ser o bem, e para que recebamos os benefícios que nos traz o bem. O terceiro amor é o amor do intelecto. Mas este provém do Espírito vivificante. Um encantamento sobrenatural empurra a beleza para dentro do coração sem que se queira, inflamando e ativando a contemplação do bem supremo, ou seja, de Deus. Pois não é por sua vontade, mas por natureza, que a alma considera que Deus é belo, e que ele é infinitamente mais belo do que tudo. Assim, seu eros não se inflama sob a ação da vontade. Pois ele é sempre suscitado pela energia natural do Espírito vivificante que age no coração, na mesma medida em que este está longe de ser animado pela vontade. Ao contrário, é ela suscita naturalmente a vontade. O consolo divino, como é natural e conforme foi dito, é assim a energia de Deus levada à alma pelo sopro e vinda do Espírito. Ela é a relação da alma com Deus que nos dá a vida. A consolação que ela traz é maravilhosa: ela é a união e a compaixão. Ela leva todo o intelecto a se unir com toda força, com todas as potências da alma, à beleza divina no desejo intelectual do belo. Segue-se daí que a consolação não é propriamente nada do que foi dito: nem o apetite do sensível, nem o desejo do bem. Só é chamado consolação o amor da beleza intelectual percebida pela contemplação, este amor que provém da energia pela qual o impulso do Espírito Santo é suscitado pelo coração de maneira sensível. E o Espírito Santo que coloca em ação esta energia é chamado de Consolador. É esta energia que é verdadeiramente o amor; as duas outras formas de amor não passam de ídolos. O amor da alma que busca pelo raciocínio o bem para o bem é naturalmente um ídolo do amor divino e espiritual. Quanto ao amor sensível, ele é uma consequência do amor psíquico.
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É praticamente impossível conhecer racionalmente as coisas do amor, a doçura e a consolação, e menos ainda o que é a pureza do coração, se este não for animado, de modo contínuo e manifesto, pelo poder vivificante do Espírito Santo. Pois o raciocínio não é capaz de modo algum de colocá-lo em movimento do interior da sede das potências da alma, vale dizer, o coração. Ele só consegue fazê-lo desde o exterior. O mesmo acontece com os sentidos, com mais forte razão. É por isso que por meio do raciocínio e dos sentidos só é possível amar de modo parcial, idólatra e tenebroso. Mas o poder e a energia do Espírito Santo vivificante, penetrando até o fundo e o interior toda a morada da alma, e suscitando e conduzindo, em seguida, com seu encantamento, as potências da alma na contemplação intelectual da extrema beleza, arrebata a alma ao mais alto ponto em direção à beleza divina, pelo amor verdadeiro e o encanto que estão acima do mundo. Portanto, somente aquele que traz a Deus em si e que está divinamente animado por este poder que mencionamos, é capaz de compreender com toda certeza, no secreto de sua alma, o que é o amor verdadeiro e o que é sua fruição, e como nenhum homem pode amar de verdade coisa alguma, nem amar ao próprio Deus, antes de tomar parte no Espírito vivificante, ainda que ele seja capaz de amar de modo geral. Pois ele não sabe o que é verdadeiramente o amor e o inefável prazer que este traz em Jesus Cristo nosso Senhor, a ele toda a glória pelos séculos dos séculos.
QUE O INTELECTO ALCANÇA A CONTEMPLAÇÃO DE DEUS DE TRÊS MANEIRAS 47. Assim como o movimento do corpo necessita de outro elemento dentro de sua própria ordem, a saber, os olhos, e de mais outro elemento que esteja acima de sua natureza – a luz –, também o movimento do intelecto tem necessidade de outros elementos: em sua própria ordem, os olhos, e acima de sua natureza, a luz. É por isso que nem todos os movimentos da alma são convenientes. A ela só convém aquele que é suscitado pela graça dos olhos e da luz. Os olhos do intelecto são a porta do coração que se abre pela fé. A luz é o próprio Deus que age pelo Espírito no coração. E assim como a luz sensível não produz nada de justo sem os olhos, por lhe faltar aquilo que a vê, também a luz inteligível, Deus, não anima o intelecto de quem não abriu a porta do coração. Mas nem os olhos podem fazer nada sem a luz, nem a abertura do coração serve sem Deus. Ou antes, é impossível ao coração se abrir se Deus não agir nele, e sem que ele, o coração, veja.
COMO PARTICIPAR DA VISÃO 48. Quando o coração se une ao intelecto por meio da graça, este, sem erro, vê através da luz espiritual e tende para aquilo que deseja, que lhe é próprio e que é Deus. Ele está inteiramente fora dos sentidos, ou seja, fora de qualquer cor, qualidade ou imaginação: ele descansa das imaginações do sensível. Nosso intelecto é como um vaso divino que recebe tanto quanto lhe é possível o inacessível esplendor da beleza de Deus. Trata-se de um vaso maravilhoso, que se dilata sob a abundância do Espírito divino quando este o penetra. Quanto mais o Espírito aflui, maior se torna o vaso. Se o Espírito penetra pouco, o vaso diminui, e se torna mais frágil quanto menor o fluxo. Se o Espírito o penetra com força, o vaso o acolhe em si e guarda sem perda aquilo que recebeu. Mas se ele recebe pouco, ele se torna frágil e inapto, e já não consegue reter o que foi vertido. Ele se torna mais leve quanto mais recebe. Mas se torna mais pesado e mais ligado à terra quando permanece vazio daquilo que lhe convém. A ele é mais fácil conter mais do que menos: ele é o contrário dos vasos sensíveis, que são mais aptos a conter menos do que mais. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus[143]”. Pela imensidão destas palavras dilata-se o intelecto que as escuta. Levando a ele a mais alta luz, Deus abre ao intelecto as mais vastas imensidões. Pela amplidão que sua voz emprestou à contemplação de Deus, tornou firme o intelecto
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permitindo-lhe alçar-se por si só e se tornar apto à elevação, contendo ao extremo a sabedoria divina. E quando Jesus, falando de Paulo, disse a Ananias: “Ele é para mim um vaso de eleição[144]”, devemos entender isto como no sentido do homem interior: arrebatado ao terceiro céu, como ele próprio escreveu, Paulo recebeu palavras inefáveis, que não é permitido ao homem dizer[145].
DA CONTEMPLAÇÃO 50[146].Em que lugar está nosso intelecto quando recebe o esplendor da manifestação de Deus? Ele possui uma propriedade maravilhosa de que iremos falar e que o opõe ao lugar corporal. Pois este recebe mais na medida em que mais cresce, enquanto que com o intelecto acontece o contrário. Quanto mais ele se recolhe e se fecha, mais consegue acolher. E quando ele chega a reduzir a zero todo movimento da razão e da inteligência, bem como todo e qualquer movimento, ele consegue ver o que é grande e maior do que tudo: ele vê a Deus. Ele o vê na mesma medida em que a graça do Santíssimo Espírito Santo lhe concede, e que a natureza material e criada lhe permite ver Aquele que está além das coisas visíveis. Ele não imagina no vazio, nem repassa sempre o mesmo pensamento, como em um sonho. Mas pelo poder inefável do Espírito divino na luz do coração, operando e experimentando a transformação que ultrapassa a natureza e que ele recebe pela graça, ele repousa em calma e seu coração vigia[147]. E antes ignorar quem se é do que ignorar esta energia divina e espiritual. Pois neste momento acontece um movimento contínuo do coração, um movimento espiritual feito de calor e transbordamento de vida que na maior parte das vezes vem acompanhado de doces lágrimas. Este movimento coloca em paz o coração não apenas em si mesmo, mas com todos os homens. Ele engendra a pureza, a bem-aventurança, as súplicas silenciosas, a abertura do coração, a alegria, o prazer inefável. O homem que descobriu este movimento por ter ouvido falar dele foge verdadeiramente, e não apenas em aparência, de todo prazer corporal, toda alegria mundana, toda riqueza, toda glória das coisas exteriores, que são abolidas. Quem recebeu todas essas coisas carrega-as de fato, divina e espiritualmente, com o coração e o intelecto, e não apenas pelo simples raciocínio. E não é com esta luz sensível que ele se regozija, pois se deixando distrair pelos sentidos ele torna menos vívida a luz divina, a luz verdadeiramente doce do intelecto. É por isso que, desde que ele se dedica a esta, por pouco que seja, parece-lhe ser possível confortar um pouco o homem exterior: ele suporta tudo, ele aguenta tudo[148], ele se torna forte em tudo por sua atitude interior feliz no amor divino e na contemplação. Já nenhuma aflição, para não dizer nenhum pecado, lhe pesa. É por este lugar, ou seja, pelo intelecto amoroso, que Davi tanto penou, que ele ensinou o desejo e confortou sua fadiga, quando ele disse não ter concedido o sono a seus olhos, nem descanso às suas pálpebras, nem repouso à sua face até que tivesse encontrado um lugar para o Senhor[149]. E o sábio Salomão prescreveu: “Se o espírito do rei se levantar contra seu coração, não deixe seu posto [150]”. Também o Salvador ordenou a seus discípulos: “Levantem-se, vamo-nos daqui[151]”. É deste lugar que ele falava, quando celebrou a Páscoa ritual numa sala no andar de cima[152]. É por isso que, quando chamamos de bem-aventurados aos pobres de espírito[153], penso que esta pobreza de espírito significa a retirada do intelecto para fora de todas as coisas, por assim dizer, seu desnudamento e seu recolhimento em si mesmo. Pois então o intelecto não apenas vê o Reino de Deus, mas também o experimenta: ele adquiriu a paz no regozijo imortal.
DO ATIVO E DO CONTEMPLATIVO 51. O contemplativo recolhe os frutos do prazer da melhor parte, que é a verdadeira contemplação, quando se dedica ao silêncio e contempla a Jesus. O monge ativo ignora este prazer que ainda não experimentou: ele se inquieta e se agita com muitas coisas[154] – ele canta, ele lê, ele esgota seu corpo e despreza, como
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preguiçosos que não fazem seus deveres, aqueles que voltaram suas faculdades intelectuais para as coisas inteligíveis que não aparecem aos sentidos, mas que produzem um prazer inefável aos que a elas se dedicam e uma alegria inexprimível aos que nelas repousam. Sequer ocorre ao seu espírito, ao que parece, que diante do verdadeiro Verbo de Deus que de nada necessita em seu grande amor pelo homem cessa todo regozijo pessoal. O regozijo passa a nascer então da contemplação divina, pois Deus é perfeito e não precisa do repouso que nos é próprio. É por isso que ele louva e acolhe a Maria sentada a seus pés [155], nutrindo-se da contemplação de suas palavras e despertando em si o homem interior para melhor compreendê-las. Mas ele não louva do mesmo modo a Marta, embora ela se inquiete e se agite por muitas coisas, como está escrito. Não apenas ele as exorta à melhor parte, como ele ensina, com elas a todos os homens a não acusarem de ociosidade aos que desejam contemplar e consagrar sua vida ao repouso, mas sim a louvá-los e imitá-los tanto quanto possível.
COMO CONTEMPLAM OS CONTEMPLATIVOS 52. Nas coisas presentes que já vieram ao mundo os contemplativos contemplam como num espelho e em enigmas[156] o estado das coisas futuras que estão para nascer. Mas assim como o espelho não mostra em si nada que tenha uma consistência real, embora aquilo que ele mostra exista – pois qualquer um que ame a verdade reconhecerá que o que se contempla num espelho é a clara imagem de uma realidade – também as coisas que existem e que virão não possuem outra consistência e outra substância do que a que mostram, mas revelam ao menos as imagens incontestáveis de realidades verdadeiras. Elas receberam a faculdade de contemplar e conduzem certamente à própria verdade. Assim, quando você ouve Paulo dizer que caminhamos pela fé e não pela visão[157], não pense que ele fala da fé que provém de se ouvir dizer. Senão, como poderia ele dizer: “Eu agora conheço em parte, mas então eu conhecerei como sou conhecido[158]”, e: “Quando chegar o que é perfeito, o que é parcial desaparecerá[159]”? Percebe que este conhecimento das coisas presentes leva a contemplar o que ele será no século futuro, e que a única coisa que separa o conhecimento do século futuro do conhecimento do século presente é como aquilo que separa o imperfeito da perfeição em sua forma única? Quem afirma caminhar pela fé e não pela visão diz também: “Assim eu corro, mas não ao azar, e luto, mas não como quem combate o ar[160]”, tão certo e verdadeiro era seu conhecimento das coisas do século futuro. Ele não é inconsequente consigo mesmo quando diz essas coisas, longe disto, mas parece sê-lo devido ao duplo sentido da fé, como é duplo o sentido da visão. Pois existe uma fé que precisa de provas, porque nascida de uma simples asserção, e existe uma fé que não necessita nenhuma prova, pois algumas evidências convencem suficientemente aquele que crê: esta é aquela a que chamamos de fé anipostática. Você compreenderá mais claramente o que quero dizer por meio de um exemplo. Suponha que eu lhe diga que vi um homem tecendo um pano bordado e capaz de inserir no tecido animais alados, formas de leões, de abutres, de cavalos, carros, combates e outras coisas semelhantes. Se você não viu com seus próprios olhos este tecido, é preciso que você tenha fé na simples asserção para aceitar sua existência. Mas se você viu não o tecelão mas o tecido, você saberá por isso mesmo, sem necessidade de alguém que lhe diga, que se trata de obra de um homem; pois não acontece na natureza que um tecido se faça sozinho, ou que possa ser tecido por algum outro ser semelhante a ele. A partir daí é outra fé, diferente da primeira, que preenche sua alma. É assim que o sentido da forma visível, como dissemos, é descoberto pela fé. Por exemplo, você viu um homem com cabelos louros, ou morenos, eventualmente longos; tudo nele é harmonioso, os olhos, a tez, o nariz, os lábios, todos os traços pelos quais se revela a forma de um rosto: esta forma que você viu é anipostática. Se lhe perguntarem como é este tecelão que você não viu, você poderá demonstrar de modo geral e com toda certeza, por haver visto o tecido, que aquele que o criou é um homem. Mas você dirá que ignora a forma anipostática deste homem, porque você não o viu com seus próprios olhos. Você não
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negará que se trata de um homem, não se recusará a reconhecer que quem teceu o pano bordado tenha uma forma humana: mas esta forma é vista de modo impessoal. Embora ela não tenha sido contemplada, ela é recebida sem hesitar de uma maneira geral, quase como se você o tivesse visto realmente. Existe assim, repetimos, uma fé que trazemos em virtude de uma simples asserção e por ouvirmos falar. E existe uma fé anipostática que provém do fato de estarmos claramente persuadidos. Assim, existe uma forma que pertence a alguém, que é contemplada em sua realidade fundamental[161] e à qual chamamos de anipostática; e existe uma forma que não pertence a uma pessoa, mas que é contemplada de forma geral e não se expressa nas numerosas diferenças deste gênero. Todos os contemplativos possuem em si a fé anipostática. Mas em geral eles veem uma forma que não é anipostática. Pois se Deus não é uma forma inteligível, como pode ele ser chamado de beleza? A beleza de Deus contemplada pelo intelecto fora de sua pessoa simboliza esta forma inteligível, eminente, profundamente admirável e gloriosa, que suscita o arrebatamento da alma, que cumula e ilumina o intelecto com luz intelectual, banhando-o num esplendor abundante e diversificado, e abrindo-o ao sentido de Deus. Depois de sua visão, Manué disse: “Estamos perdidos, mulher, porque vimos a Deus[162]”. Quem quer que tenha visto esta forma confessa que ela é uma aparição de Deus. É também nesta forma que Moisés viu a Deus, conforme está escrito: “Deus apareceu a Moisés em uma forma, não num enigma[163]”. Mas se Deus fosse inteiramente desprovido de forma divina, ele seria totalmente invisível. E, como a beleza se amolda à forma, tampouco a ela veríamos. Se, ao falarmos de Deus, deixássemos de dizer que a forma cabe à divindade, o mesmo ocorreria com a beleza, e com mais forte razão com a face, que exprime a forma e a beleza. Ora, vimos que foi dito pelos Profetas que ele próprio não possuía nem forma, nem beleza, que lhe faltava a forma[164]. Mas o Profeta dizia isto do Verbo, a partir do momento em que este pendia do madeiro como um dos malfeitores[165], sem demonstrar em si mais nenhum sinal da natureza divina. Quanto à natureza humana, com efeito, mesmo que ela não tivesse mais nenhuma beleza devido à morte, é evidente que ela tinha no mínimo a forma de um morto. Davi celebra isto ao dizer que ele é belo com toda beleza[166], mas não em sua natureza humana. Pois ele acrescenta: “A graça se espalha em seus lábios[167]”, o que manifestamente se aplica à divindade, à qual a beleza está ligada. Davi menciona frequentemente a face de Deus. Ora ele diz: “Você retirou sua face, e eu caí[168]”, ora ele clama: “Não retire de mim sua face[169]”, ou: “Afaste sua face de meus pecados[170]”. Assim, se ele não recusa dizer que a face e a beleza são atributos de Deus, fora de toda imagem e de toda realidade fundamental, é justo dizer a mesma coisa da forma, que é face e beleza. É a mesma coisa que pensava Paulo ao dizer: “Eu corro, mas não ao acaso; eu luto, mas não como quem combate o ar[171]”. Pois não podemos ver a Deus em si mesmo, nem tomar parte do que ele é em si mesmo. Mas podemos vê-lo de outra maneira. O Incompreensível se deixa compreender. É também por isso que Davi nos aconselha a buscar sempre a face do Senhor[172], a fim de que, penetrando na visão de sua divindade, possamos descobrir a graça imensa e inefável, o regozijo e o prazer divinos. Ele fala assim a Deus, a respeito de si mesmo: “Eu serei cumulado por ver a sua glória[173]” Pois a glória do esplendor da face divina se ergue, abundante e infinita, sobre aqueles que contemplam a Deus em espírito e em verdade. O regozijo e as delícias da glória são inesgotáveis, e por assim dizer insuportáveis em sua superabundância para aqueles que o experimentam. Mas para os que não o viram nem provaram elas são indescritíveis e inconcebíveis. De fato, se nenhuma palavra pode descrever a doçura do mel a quem nunca o experimentou, como se poderia mostrar as coisas da luz que ultrapassa o intelecto aos que nunca a viram, que jamais receberam o regozijo e o prazer divino que estas coisas trazem? Não diremos mais nada. São Paulo, que tinha a fé anipostática em Deus e a forma de Deus eminente, mais do que bela mas não hipostática, dizia caminhar segundo a fé, e naturalmente pela fé anipostática, não pela forma contemplada em sua realidade fundamental, pois a fé não suscita sozinha a deificação incriada. De
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fato, diz são Máximo: “Eu chamo de deificação incriada à iluminação da divindade em sua forma anipostática[174]”. Esta iluminação não tem origem, mas se manifesta de maneira inconcebível naqueles que são dignos dela. E no entanto é através da forma que podemos ver a beleza, esta beleza da qual o grande Basílio disse: “Que existe de mais digno de amor do que a beleza de Deus? [175]”. E também: “A verdadeira beleza, a mais digna de amor, que somente o homem de intelecto puro pode contemplar, envolve a divina e bem-aventurada natureza[176]”. É neste sentido que Paulo pode dizer de si mesmo que era ignorante na arte de falar, mas não no conhecimento[177]. Pois é grande quem chegou a este conhecimento por meio do qual conhece em parte, em sua forma inteligível, a Deus que ultrapassa o entendimento. É este conhecimento parcial que teve também Moisés vendo a Deus. Ao considerar a forma divina e a beleza que não podemos ver na realidade fundamental, ele disse: “Se tenho achado graça aos teus olhos, rogo-te que me faças saber o teu caminho, e conhecer-te-ei, para que ache graça aos teus olhos[178]”. Uma vez que já lhe haviam sido reveladas a manifestação divina e a glória da beleza, mas não na realidade fundamental de Deus, ele pedia o que é o mais perfeito. Mas Deus não lhe concedeu aquilo que sequer o olhar dos anjos – como de toda alma dotada de inteligência – pode ver, e que ultrapassa os limites de todo conhecimento. Pois Moisés era vidente: ele vira a Deus nas trevas, não na hipóstase, mas na forma e na beleza inteligíveis fora da realidade fundamental. Assim Deus se deixou ver. É o que disseram Moisés e Elias, e de modo geral os diversos profetas que viram a Deus. Nós caminhamos pela fé anipostática nascida da contemplação de Deus, confirmada pela glória irradiante da beleza de sua face, atestada pela visão de sua luz que ultrapassa todo esplendor, e não pela fé que provém da simples afirmação daquilo que ouvimos dizer. Caminhamos pela fé anipostática, não pela visão[179] da realidade fundamental. Não é no século futuro que teremos necessidade da fé. É aqui que está a fé anipostática. Então veremos mais claramente a inteira beleza da glória divina. Agora a vemos primeiro como sombra. Como dizia Gregório o Teólogo: “Quando uma visão chega a uma aparência de verdade, ela está fora de si mesma”. É o que está simbolizado pelo que vemos na sombra. Pois então a coisa será face a face[180]. O parcial desaparecerá e o perfeito será revelado. Mas agora, como disse santo Agostinho: “A visão parcial de Deus é o que arrebata toda alma dotada de razão no ardente desejo de sua glória”. Com efeito, é nisto que a alma se torna simples e em sua simplicidade vê uma única coisa: o segredo de Deus que ultrapassa tudo. Nesta forma, nesta beleza, nesta face, toda inteligência se cobre de alegria, de beleza e de luz. Ela é alegre, bela e luminosa no Espírito, e está para além do mundo. É por meio delas que ela estende, se eleva, transporta até o arrebatamento sua faculdade contemplativa. É por meio delas que a alma é misteriosamente iluminada, que ela é cumulada de regozijo e prazer divinos. Numa palavra, é por meio delas que são glorificados e deificados aqueles que amam contemplar e ouvir a divina Origem, e que se tornam seus amigos, seus discípulos, os iniciados de Deus, mesmo que ainda estejam ligados à carne. É por meio delas enfim que eles veem e refletem como num espelho, pelo sentido do intelecto, a fruição dos bens futuros e, em parte, a condição do século por vir, que o olho não viu, o ouvido não ouviu, nem o coração do homem realizou[181]. SOBRE: “JERUSALÉM CONSTRUÍDA COMO UMA CIDADE CUJOS HABITANTES VIVEM JUNTOS. PARA LÁ SOBEM AS TRIBOS, AS TRIBOS DO SENHOR EM TESTEMUNHO DE ISRAEL[182]”. 53. Jerusalém se traduz como “lugar de paz”. Ela é o símbolo do lugar de Deus, ou seja, da alma que carrega a paz em Cristo. No entanto, não é a qualquer alma que é dado possuir a paz em Cristo e inscrever em si mesma o nome da paz, mas à alma construída como uma cidade, a alma que possui a pedra angular[183], a pedra venerável que Deus colocou a Sião como promessa. Sião é o lugar de observação, lugar alto de Jerusalém, o símbolo do intelecto contemplativo da alma de paz. Mesmo que procuremos,
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não vamos encontrar em nenhuma outra parte o intelecto que se eleva, que observa das alturas e contempla a verdade. Ele só pode ser encontrado dentro de um coração que teve a experiência da paz em Cristo e que foi transformado para atingir um estado de vida que dissemina a paz. A alma que carrega a paz divina possui assim a pedra venerável, a pedra angular e as pedras preciosas envoltas nas Letras sagradas com as quais são lapidadas as feras que tentam atingir a montanha de Deus[184]. Ela possui também o betume, ou seja, a humildade suscitada pelo Espírito Santo, que queima sob o fogo de Deus[185] o coração endurecido como a pedra e aplaina o ser até fazer dele um espírito quebrantado[186] e humilde. Ela possui as águas das chuvas que o Salvador concede para que com elas corram rios do nosso coração[187]. Ela também porta a madeira imputrescível – os pensamentos da ação verdadeira – que permitem a união. Ela traz os pregos e a dura verruma do temor diante dos mandamentos de Deus. Ela tem o Verbo divino como arquiteto, e também os que vêm logo abaixo, vale dizer, aqueles que, com sua ciência, edificam as potências da alma. Ela possui os móveis, que são simplesmente obras de marchetaria, o jejum, a vigília, a salmodia, a leitura e as demais coisas, em uma palavra, aquilo que a razão orgânica nos transmitiu tendo em vista o modo da virtude. Ela possui o cordão vermelho [188], as leis sagradas de Deus que estão nas Escrituras. Ela possui a luz mais que irradiante, o sol do intelecto, que se reflete na vida da alma. Em suma, a alma que possui divina e espiritualmente todas as coisas que recebeu de maneira sensível para a construção da cidadela, esta alma é a Jerusalém inteligível, e ela é construída como uma cidade para ser a moradia do Deus do universo, da Trindade vivificante que não tem começo. Cristo disse: “Eu e o Pai viremos – espiritualmente – e nele faremos nossa morada[189]”. É como se ele dissesse: “Faremos nele uma cidade, uma cidade verdadeiramente maravilhosa que se estenda até o infinito”. É por isto que se diz: “Jerusalém que se constrói” e não “Jerusalém que foi construída”. Com efeito, uma vez que Aquele que nela habita não tem limites, é natural que também ela se estenda até o infinito. É por isso que não se diz “a cidade que é construída”, mas “ela é construída como uma cidade”. Pois ela se constrói por si mesma. A convergência dos numerosos e variados trabalhos tende a um cumprimento comum numa mesma obra construída em altura, comprimento e largura. Deste modo a cidade pode ser chamada com razão de “Moradia do Reino que não tem começo”. Mas uma vez que o infinito habita nele, não se pode pensar que o edifício possa ter um fim, coisa que não acontece com as cidades que são construídas. É por este motivo que nas Letras sagradas ela é chamada não de “cidade que foi construída”, mas daquilo que é “construído como uma cidade”. E este é o sinal evidente de que ela é Jerusalém e que ela é construída como uma cidade: seus habitantes, ou seja, suas potências têm uma vida comum, elas não estão divididas, elas não erram, não giram no vazio. Mas elas possuem uma mesma e única vida e trazem sem perturbação a paz que está em Cristo. Outro símbolo representa que este possa concluir com sucesso o edifício que permite aos habitantes da cidade ter uma vida comum. De fato, foi dito: “para lá sobem as tribos, as tribos do Senhor, em testemunho de Israel[190]”. Aqueles que mais acima foram chamados de habitantes da alma são agora chamados de tribos. Pois as potências da alma que lhe são estranhas não lhe pertencem. As potências que antes eram simplesmente as tribos da alma se tornam as tribos do Senhor. Elas se elevaram na alma de paz sobre os degraus divinos acima do mundo. Todas constituem em Israel – o intelecto que vê a Deus[191] – um testemunho e uma confirmação, e todas colaboram para a obra única de Deus: o conhecimento de Deus. E todas essas tribos inteligíveis se esforçam em conjunto para construir a cidade santa e pacífica de Deus que domina o universo. Pois é verdadeiramente então que as potências da alma galgam os degraus e permitem ao intelecto que vê a Deus tê-lo em si e compreendê-lo. Quando as tribos ou as potências da alma dispersa e submetida à alienação e à divisão não levam uma vida comum, é impossível que se ergam e edifiquem a alma. Pois não existe aí nem um lugar de paz, nem Jerusalém que se construa, para que se possa ver o signo do intelecto. Mas quando as potências se reúnem, é impossível que elas não subam ao alto para o Senhor galgando os degraus intelectuais que conduzem às grandes coisas, defendendo e
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salvando o intelecto que contempla a Deus. Assim, quando, num estado pacífico e calmo, a alma se constrói no Espírito como uma cidade cujos habitantes – suas próprias potências – vivem em comunidade, as potências intelectuais se elevam nos degraus do Senhor. Elas permanecem na unidade e na solidão, trazendo sua aliança ao intelecto que contempla a Deus. Então, cante: “Jerusalém, construída como uma cidade cujos habitantes vivem juntos. Pois para lá subiram as tribos, as tribos do Senhor, em testemunho de Israel”, em Jesus Cristo nosso Senhor. 54. Sem pretender ir demasiado longe, podemos acrescentar ainda ao que foi dito: procure saber se a luz divina, a luz que provém da paz, começou a cobrir com sua sombra a sua alma. Descubra se sua alma se tornou como Jerusalém, construída como uma cidade. Veja se seus habitantes vivem juntos, se todos os seus pensamentos e suas potências estão unificados e reunidos em seu desejo de construir uma cidade, não separadamente, mas em conjunto; e se a esta Jerusalém, construída como uma cidade, sobem as tribos do Senhor que sejam as potências genéricas da alma, as potências divinas que se elevam juntas em espírito. Se você perceber estas coisas acontecendo em você, não cesse de construir assim. Mas lembre-se da torre de Babel[192], de sua construção e da divisão das línguas, e saiba que nem toda construção é boa, mesmo que pareça assim vista do exterior. Os que têm olhos veem dois modos de construir e de erguer em geral. Um, que é fundamentado sobre o bem e permite que Deus venha a habitar em nós; esta cidade pode ser reconhecida pelo fato de que seus habitantes vivem juntos e que as tribos que sobem para ela são as tribos do Senhor, anunciando as grandes coisas que cumulam a alma de maravilhas, de paz, de amor, de santificação, e que a edificam. O outro está fundado no mal e leva à ruína da alma; ele pode ser reconhecido infalivelmente pela divisão das línguas inteligíveis, pela malfadada confusão, pelas paixões que acabam por habitar em nós como a lacraia na torre de Babel. Compreenda, portanto, o sentido de uma e outras destas construções, e não peque ao escolher a melhor das duas. Mas se de tempos em tempos a paz, a união dos pensamentos, a luz intelectual não cumulam as profundezas de seu coração, se a contemplação de Deus não faz subir ao seu coração um prazer inefável; se a energia anipostática do Espírito e seu fogo que reanima não escoam continuamente do lugar mais inferior do seu coração, a ponto de parecer esgotá-lo quando o coração traz o regozijo, a alegria intelectual, a visão profunda e mística nos membros superiores do corpo; se sua alma não experimenta em espírito os mistérios inefáveis; se uma alegria indizível e um arrebatamento inconcebível não agem de modo conjunto e uniforme sobre você; se você não recebe em seu interior a santificação de Cristo quando ela se levanta; saiba que sua alma não é Jerusalém, que ela não se constrói como uma cidade, que seus habitantes – os pensamentos – não estão unidos num único ser; que as tribos, as potências universais, não se tornaram tribos de Jesus e não se elevaram até o alto na alma para levar até aí o extraordinário, para iniciar o intelecto e pregar-lhe o que o olho não viu, que o ouvido não escutou, o que não subiu ao coração do homem[193] que não recebeu o Espírito de Deus. Cuide para não construir em si uma torre de Babel do intelecto, esta torre cujo fim é a queda, a divisão e a confusão das línguas inteligíveis, e a perdição final, como foi dito. Eu queria ainda lembrar por que razão alguns tem sua alma construída como a cidade de Jerusalém e quais são a causa, a construção e a ruína da torre de Babel. Eu queria ainda dizer por que os habitantes da primeira vivem juntos, e por que a torre de Babel conheceu de tantas maneiras a divisão das línguas. Mas eu me deterei aqui, velando pela brevidade o bom entendimento daqueles que me escutam. SOBRE “ELES ERAM NOBRES ENTRE OS FILHOS DO ORIENTE[194]”. 55. Nobres dentre os filhos do Oriente são aqueles que, pela contemplação e a visão de Deus, o Oriente – a luz e o esplendor do Sol espiritual e da justiça[195] – tornou livres e melhores em seus pensamentos; os que não nasceram nem do sangue nem da vontade do homem, nem da vontade da carne, mas de Deus [196];
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aqueles cujo coração e cujo intelecto amam permanecer nos templos divinos que estão nos céus; os que receberam os mistérios divinos, os mistérios inefáveis do Reino; os que se tornaram o Corpo de Cristo Filho de Deus, e seus membros, cada um de sua parte[197]; os que formam com ele um mesmo corpo, uma mesma herança, uma mesma comunhão[198]; os que dele herdaram e que tem por Pai ao Deus altíssimo, acima dos céus; os que, acima de toda razão, tem parte na natureza divina[199]; os que receberam o selo do Espírito Santo vivificante[200], com o qual comungam, no qual vivem, pelo qual veem. Eles estão cobertos de vestes brancas[201], que receberam do Espírito, e túnicas bordadas de ouro, cerzidas de pedras preciosas e de pérolas, sua touca e sua coroa são feitas de rubis, de diamantes, de toda espécie de pedras escolhidas, e eles comem e bebem à mesa do Rei. Aí o alimento é inesgotável e o néctar abundante. Pois aí todas as coisas estão em espírito, e eles as recebem em espírito. Nestas moradias reais acontecem inumeráveis coisas maravilhosas. O fogo que refresca e reanima, e os aguilhões do amor atravessam o coração. Uma água viva canta e espalha ondas de vida eterna. O ar é carregado de sopros perfumados, o Espírito dispensa a vida e a luz de esplendor único é aí três vezes luminosa, simples, mais alta do que o ser. Esses homens conheceram estas contemplações e estas delícias. A partir daí eles se separaram das coisas de baixo e se uniram às coisas do alto. Eles superaram o visível e se voltaram inteiramente para o inteligível. Eles ultrapassaram as coisas que passam e se deitaram com as que permanecem. Eles jazem em baixo e circulam em cima. Seus corpos os ligam e atraem para baixo, mas o Espírito os chama e desliga os laços consumidos pelo fogo. Então seus corpos se libertam ao mesmo tempo em que eles se elevam, rapidamente e em arrebatamento, aos céus. Eles se tornam simples pela própria simplicidade de sua tensão para Deus. Eles se separaram de tudo pela contemplação única de Deus, eles são transportados da glória do Espírito a glórias ainda maiores[202], passam de uma riqueza a outra mais abundante e desfrutam das delícias do inefável. Eles dizem a si mesmos: “Maravilhosa é a riqueza da glória e das delícias”. Depois eles são arrebatados por verem coisas ainda maiores do que as primeiras. E como que despojados de tudo, tornam-se cada vez mais empobrecidos. Eles mergulham no êxtase, ou melhor, eles se abrem ao êxtase e cumulam de alegria seu coração. Eles seguem o Rei das Potências, partilham de sua vida, penetram no coração dos anjos, maravilhados pela efusão de tão grande graça, profundamente gozosos desta herança indizível, deste inefável amor pelo homem. Tais são, tanto quanto eu saiba, os nobres dentre os filhos do Oriente[203], em Jesus Cristo nosso Senhor, a ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém[204]. Quando o intelecto viu em Cristo a verdade divina em toda sua simplicidade, é tempo de se calar [205]. É tempo de beber o néctar de Deus, a bem-aventurança e o regozijo espiritual. É o tempo das visões místicas, de usufruir das coisas sobrenaturais. Pois o intelecto vê então manifestamente na mão do Senhor a copa cheia de uma mistura de puro vinho[206]. Ele vê na luz este vinho que se derrama de uma borda à outra, e sabe com toda evidência que é inesgotável. Pois o fundo da copa que a bondade divina nos concede dividir e por assim dizer a profundidade da riqueza e o cumprimento da graça ainda não são visivelmente consumidos na vida presente, por maiores que sejam a elevação a Deus e a deificação. O cumprimento e a perfeição ainda estão guardados para o igual usufruto de todos no século futuro. Segundo o discípulo bem-amado: “Aquilo que seremos ainda não foi revelado[207]”. E conforme Paulo, agora nós conhecemos em parte[208], mas então virá a perfeição, quando todos os pecadores beberão com os justos da copa mística de Deus e descobrirão o fim, os espelhos abolidos e a verdade claramente revelada, por terem alcançado a perfeição do mistério que por ora se mantém secretamente velado. Os justos conhecerão uma felicidade ainda mais perfeita: eles receberão a recompensa de sua esperança em Deus e trarão os frutos das obras virtuosas, conforme está escrito: “Estarão embriagados pela beleza de sua casa, e você os embebedará com as torrentes de suas delícias[209]”. É deles que o Senhor disse que abrirá o Reino do Pai e os servirá[210]. E é com eles que ele prometeu que beberá a nova copa e se regozijará em seu Reino[211]. Mas os pecadores beberão a bile da amargura e do luto eterno. E beberão até que saibam de que se privaram para sua infelicidade ao recusarem o néctar dulcíssimo que o divino Davi pediu e ordenou que se
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beba neste século presente, quando disse: “Provem e vejam que o Senhor é bom[212]”. Ora, os pecadores não alcançam este néctar. Mas os que o alcançam, os que se deixam persuadir pelo mandamento, veem a copa e observam o vinho transbordar de uma borda à outra[213]. Na bondade da graça, eles o bebem e experimentam da borda da qual ele entorna, cumulam de doçura os sentidos da alma, e cantam naturalmente a Deus odes de ação de graças. Eles dizem: “Sua copa que nos embriaga nos enche de delícias[214]. E a partir daí sua inconcebível piedade, como o vinho, como o que permanece no fundo do cálice, nos seguirá por todos os dias de nossa verdadeira vida[215], a vida imutável e imortal do século futuro”. Trazendo sempre em nós estes divinos bens futuros, estaremos de fato neles, certamente provaremos da libação de parte e de outra da copa nova e vivificante que está na mão do Senhor. Pois os que bebem desta copa todos os dias compreendem verdadeiramente o que está oculto naquilo que vêem. Eles descobrem o fundamental no que está disperso, e se tornam parcialmente, como em garantia, o século futuro. É claro que os justos terão no além uma parte mais abundante e mais total daquilo que eles já têm em parte, mesmo estando ainda ligados ao peso da carne e às trevas inferiores. Também é claro que Davi não disse que todos beberão, sejam justos ou pecadores. Ao contrário, ele considerava duvidoso que os pecadores bebam. E ele deixou subentendido que certamente os justos beberão. Com efeito, podemos nos perguntar se os pecadores beberão, mas não se os justos beberão. Pois para os justos isto é evidente, tão saciados estão eles desde já pela libação, a ponto de se regozijarem e dizer: “Você me cumulou de alegria, Senhor, pelo que me fez, e eu me regozijo pelas obras de suas mãos[216]”. Como “obras de suas mãos”, ele quer dizer que Deus segura e oferece a copa cheia de uma mistura de vinho puro; que em seu grande amor pelo homem ele a inclina de uma borda à outra[217]; e que ele guarda para o século futuro o vinho que ela contém. Mas desde já eles cantam a Deus em sua embriaguez: “Seu cálice que nos embriaga faz delícias em nós[218], em Jesus Cristo”. A você que me criou eu cantarei e louvarei, Altíssimo que por sua graça distribui sobre mim suas compaixões. Rei mais do que bom que ama as almas, seu dedo sagrado toca no mais profundo de meu coração, como você sabe, você, o único que faz maravilhas e prodígios[219]. Você conduz aquele a quem você levantou a ver naturalmente as letras que sua santa mão escreveu no livro da vida por intermédio de seu Espírito divino, e a contemplar com seu próprio sentido do intelecto a beleza que ultrapassa todo arrebatamento, a beleza de sua mão, e tudo o que enche de regozijo e de alegria mística em Jesus Cristo nosso Senhor. Existe uma paz, mais aparente do que real, que quando o corpo vive o prazer, provoca na alma muita perturbação, chegando a imitar a serenidade por algum tempo. E existe uma paz dos sentidos que buscam a fuga de tudo e a hesíquia. Mas esta, embora seja incomparavelmente melhor do que a primeira, dura pouco. Pois uma vez que a alma é perturbada pelo pensamento, o corpo e o homem inteiro sofrem e são naturalmente perturbados. Mas existe uma terceira paz, uma paz mais elevada dos sentidos e da alma. Uma conduta e um esforço sutis a suscitam na hesíquia das potências da alma e de todo o homem interior, quando se alcança a prece pura, as mais doces lágrimas e o acolhimento prazeroso das palavras de Deus. Mas mesmo esta ainda não é a perfeição da paz. Com efeito, é impossível que o flautista ou o citarista tocarem continuamente as árias mais maravilhosas, pois eles suportam nas mãos a privação e a pena, e uma vez que lhes advém a fraqueza e a dor eles rapidamente cessam de tocar; do mesmo modo, quando a alma dispõe as harmonias fundamentais de suas próprias potências, o imutável não permanece todo o tempo com ela, mas relaxa pouco a pouco; por si ou por força o ardor diminui, ou a agitação e a acídia própria das criaturas se aliam ao peso e à rudeza do corpo contra a perseverança. Mas quando a alma recebeu pela graça a vinda do Incriado que criou o universo, quando ela comungou com o Espírito imutável e vivificante, ela se torna maravilhada e cheia de uma outra vida, ela é trazida
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naturalmente à vida pelo sopor vivificante do Espírito, ela desfruta daí por diante de uma vida sobrenatural e verdadeiramente imutável. E, assim como ela vive pelo poder vivificante, ela vê que o criou a vida é a luz, e se regozija em contemplar as obras sobrenaturais d’Aquele que está acima da natureza, ela se enche de uma paz que ultrapassa toda inteligência[220], pela incompreensível ação vivificante d’Aquele que criou a vida além do entendimento, pela iluminação, pela visão, pela alegria daquilo que ela enxerga dentro do mistério. Ela já não se altera, não relaxa, não se preocupa com as armadilhas e as mentiras do inimigo. Ao contrário, sempre em movimento para Deus, elas contemplam as coisas que cercam a Deus, não por sua própria vontade, mas pelo poder e a impulsão, direi mais: pela vontade do infatigável Espírito divino que, por sua energia e sua hipóstase, age no coração, não como imaginamos, mas como só o próprio Espírito sabe, ele que sonda e conhece as profundezas de Deus e que inicia os sentidos da alma que o recebem. Portanto, quanto maior for o tempo que guardarmos atentamente iluminada sobre nós mesmos a graça do Espírito e quanto mais vigiarmos para que ela não se extinga, vivendo sempre na hesíquia, tanto mais seremos cumulados com a santidade e a paz inefável e sobrenatural, em Deus, na Trindade, e traremos então verdadeiramente sem esforço, com humildade, amor e oração, a paz do corpo, do espírito e da alma, conforme dissemos. Pois a paz que vem com esforço ainda não é a paz perfeita, mas esta a suscita. A paz perfeita, segundo o que nos foi transmitido, vem sem o menor esforço corporal na calma e na perfeita celebração do sábado, e no repouso que existe em Cristo. Você que entendeu que não era nada, que aprendeu com facilidade a conhecer Aquele que o criou e formou, que discerniu em sua imobilidade o movimento que foi a causa de sua passagem ao ser, você que, em seu desejo de amor, com toda sua disposição e de todo o seu ser, se ofereceu ao dulcíssimo Jesus, seu Criador que o formou, você que não age senão para contemplar sua face, você que, graças aos numerosos carismas de Deus, vive este movimento pela ação e a contemplação, você que é criatura se tornará Deus, espiritual, em tudo semelhante ao Criador, e se regozijará eternamente com seu Senhor e Pai na calma do desejo de Deus, no repouso que está em Deus, por Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos, pois você estará além das coisas visíveis. Amém. 56. Quando eu vi, ou seja, quando eu aprendi a conhecer pela visão do intelecto de onde eu vim para chegar aqui de modo tão maravilhoso, e como eu me dirijo ao meu fim, em terceiro lugar eu imagino Aquele que me conduz, me carrega, me realiza, eu penso no Pai inefável, nem por um momento ignoro seu amor, e vejo assim de toda maneira o mistério do fim que me envolve. Eu me regozijo com estas três coisas, mais do que posso expressar. Mas a tamanho regozijo às vezes se segue uma tristeza não menor, quando eu compreendo que levo uma vida incontestavelmente indigna de minha vocação. Pois quando eu vejo, pela criação, como você me mostra sua glória inacessível, quando eu considero o modo como, pela encarnação de seu Filho único, você me revelou seu inefável amor por mim, quando eu conheço a inefável união sobrenatural que você me oferece permitindo-me tomar parte indizivelmente da contínua efusão do Espírito, eu admiro profundamente sua glória, me maravilho com a nova compaixão que você tem por mim, pois você me permitiu escapar a todas as coisas visíveis, elevou-me a todas as coisas inteligíveis e me fez repousar e me regozijar inefavelmente em você, santa Trindade mais alta que o ser. Pretendendo Deus em sua grande sabedoria fazer do homem um novo anjo sobre a terra, em ente celeste que a ele se assemelhasse, nele colocou uma alma dotada de intelecto e capaz de compreender o conhecimento e a ciência divina. É por isso que ele disse: “Eu afirmo: vocês são deuses e filhos do Altíssimo[221] pela graça” Vale dizer: vocês são como anjos segundos, que contemplam a Deus em silêncio e se elevam amorosamente para ele na luz espiritual. Mas é impossível que o homem nascido sobre a terra possa se elevar até o estado angélico, pois claramente ele não é puro espírito como os anjos. É pela fé que o crente, por meio de Deus Todo-Poderoso que doa infinitamente, se torna espírito, como que transformado em criatura divina e mística. O Salvador nos revelou isto ao dizer que o que nasce do Espírito é espírito[222]. E o fiel João testemunha que nascem em espírito aqueles cuja alma se presta a isto, quando diz: “Ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus aos que crêem em seu nome, que nasceram
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não do sangue do homem, nem da vontade da carne, mas de Deus[223]”, para se tornarem o homem interior, ou seja, o homem à imagem do Deus que o criou. É este nascimento, não segundo a natureza, mas segundo a graça, que estão ligados aqueles que nascem do Espírito, segundo a doutrina segura que recebemos. É por isso que o intelecto que participa da graça se torna naturalmente o trono do Espírito Santo. Da mesma forma, com efeito, que o ferro aquecido ao fogo se torna ele próprio fogo – não que ele se transforme naturalmente em fogo, mas ele participa do fogo por transmissão até que ele se assimile ao fogo, que ele se torne o trono do fogo e que o fogo repouse nele – também o intelecto, ao nascer do Espírito, ao se unir a ele ou ao se comunicar com ele, se torna Espírito e trono do Espírito: claramente, Deus o envolve. Ele se assenta e repousa sobre ele como num trono. Isto representa para a alma o maravilhoso início do progresso, embora ela não penetre na ordem dos anjos – da qual se diz ser a mais baixa das potências celestes – mas ela penetra na ordem do Deus Altíssimo. A seguir ela penetra na ordem dos tronos, depois na dos querubins, depois na dos serafins, até receber na totalidade a propriedade da ordem angélica, portanto da ordem mais baixa, anunciando aos que estão próximos em Espírito os gloriosos mistérios de Deus. Pois se, de acordo com os sábios divinos, a participação deve preceder a transmissão, é claro que primeiramente é preciso participar do Espírito, na medida em que o intelecto é seu trono, e assim transmitir as coisas espirituais – como acontece com os querubins – no Espírito que revela a efusão e a amplitude da sabedoria espiritual, para então desejar passar a sabedoria a outros, e assim realizar-se com os serafins pelo conhecimento da sabedoria, e, graças ao cálice e à bebida que são dados por este conhecimento, alcançar os ardentes amores de Deus que nos despertam. É isto que nos mostra a ordem dos serafins. Poderemos então transmitir a outros seres o calor dos amores divinos, reanimando seu próprio fogo e atingindo a ordem que permite ensinar aos que são próximos: a ordem dos anjos. É por isso que, antes de se tornar Deus no Espírito e tronos de Deus, querubins e serafins, aqueles que passam pelas ordens espirituais inferiores não estão certos de se tornarem anjos, nem de servirem a Deus e ensinar em espírito e verdade as coisas, como exige o verdadeiro progresso da alma, que recebe seu início da participação do Deus Altíssimo e, conforme foi dito, se dirige a nosso Senhor Jesus Cristo. Eu o confessarei, Senhor, inefável Trindade, não segundo o quanto lhe cabe, Mestre, mas segundo a minha medida, tanto quanto me é possível. Com o que lhe pertence, Deus indizível; é, com efeito, Senhor, e se estende infinitamente acima de toda palavra e de todo intelecto que pretenda compreende-lo ou falar-lhe. Você me criou do nada pela grandeza de sua vontade, você me formou com suas mãos como um outro nada, e me fez à sua imagem e semelhança[224]. Mas eu sou vão diante de tais coisas preciosas e glorificadas. Falta-me miseravelmente o reconhecimento para com seus mandamentos cheios de santidade, de alegria verdadeira e de criação divina. Pois é maravilhoso que antes mesmo de ter me concedido ser você tenha, por mim, pela minha vida, para que eu possa vê-lo, conhecê-lo e experimentar o extremo prazer espiritual das coisas que o cercam, criado um mundo de tamanha grandeza de beleza e de glória, de tamanho poder, tamanha sabedoria criadora, um mundo coberto de coisas tão abundantes e diversas sem as quais eu não poderia viver sequer uma hora, e com as quais eu vivo feliz em meu corpo, das quais usufruo e com as quais me alimento. É por intermédio delas, quando eu as contemplo em minha alma, que eu compreendo e admiro o oceano de sua providência e de seu amor feito de sabedoria e poder. Mas, Deus inefável, até agora eu levei uma vida de desordem, contra seus mandamentos verdadeiramente doces e amados pelos sábios. Oh, minha alma, quão grandes são minha insensibilidade e meu endurecimento! Você não compreende, homem impuro, que para viver apenas em seu corpo e para viver essas coisas perecíveis, o pobre servidor depende do rico e deve se submeter sem tardança aos mandamentos de seu Senhor, por pesados que sejam às vezes. Pois a origem dessas coisas não está em quem age, mas manifestamente n’Aquele que ordena. Homem sem inteligência, como você recusa vilmente os mandamentos de tal Criador, de tamanho benfeitor, tamanho provedor, quando eles foram feitos para você e para sua glória imortal? Como, ao contrário, você se volta contra eles? Quanta insolência, e que mal eterno você atrai para si!
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Quando eu me aproximei do Senhor, Deus mais que bom, na direção da inefável felicidade, oh Senhor que ama as almas, eu disse à sua criatura, à minha pobre alma verdadeiramente pecadora: “Minha alma, você possui muitas coisas espirituais, coma, beba, regozije-se[225]”. E quando o pecador se levantou contra mim, eu fui maltratado e humilhado[226]. Mas oh!, riqueza da sua bondade, Deus benfazejo! Quando perigosamente eu me desviei do caminho reto e belo, você me concedeu seus dons sem medida, e logo me fez retornar. Eu comi e bebi verdadeiramente e me regozijei naturalmente no Espírito por sua compaixão. Mas novamente fui banido, deixei-me perder pela mentira maléfica de um demônio ou por minha desatenção, não sei, ou sem dúvida por ambas as coisas. Talvez ainda tenha sido seu julgamento mais profundo que me levou aos abandonos, às faltas e aos castigos. De novo e sempre eu afundo no lodo do abismo sem nada que me segure[227], e sofro, me inclino até que em mim penetre o espinho[228] ou o aguilhão do pecado que traz a morte, em suma, todas as coisas más que o inimigo tramou grosseiramente contra minha alma por causa de minha triste negligência e de minha lamentável loucura. Porém você jamais me abandonou totalmente. Meu Deus mais do que bom, você me chamou com sua voz espiritual no mais secreto de meu coração e disse à minha alma esvaziada: “Eu sou a sua salvação[229]. Não tenha medo. Volte a repousar. Não se perca”. Assim você me consolou, Jesus paciente, você se tornou para mim o sustentáculo da salvação. Você me recebeu com toda sua força, como a direita do Pai, como a direita do Senhor, e seu castigo me restabeleceu novamente[230], como tantas vezes, na enorme alegria dos segredos inefáveis. Então venha, Verbo de Deus, como um selo certo em meu coração, pela inefável contemplação de sua beleza sobrenatural. Venha para meus braços, pela ação de seus santos mandamentos vivificantes. Venha, Jesus Cristo, Rei mais alto do que o céu. Venha para que em você eu viva eternamente. Aproxime-se invisivelmente de mim que a você retorno com toda minha alma. Felicidade além do mundo, alegria daqueles em quem você vive inefavelmente, envie seu brilho, Deus infinitamente sábio, para que minha alma dotada de inteligência retorne a si, para que ela se volte para você e se percam e se dispersem os que em vão me combatem[231], os que me perseguem por nada, os que me fazem mal impiedosamente. Guardeme continuamente. Senhor, eu lhe peço, como a menina dos olhos[232], a fim de que eu o contemple eternamente, Mestre inefável, glorioso acima de tudo. 57. Que sou eu, terra e cinzas[233]? E quando eu passo como uma sombra[234], um sonho rápido, que vale meu tempo diante de você, Senhor incriado que não teve começo, a cujos olhos mil anos são com o dia de ontem que passou e como uma vigília noturna[235]? E o que é minha consciência diante de você, que com toda consciência criou os céus e a terra[236], que com sabedoria fundou num instante o universo em sua abundância, para que eu me mantenha íntegro diante de você que tanto ama as almas? Não, Mestre, não, eu lhe peço, eu lhe suplico, os pais não julgam o que fazem os recém-nascidos, nem lhes pedem nenhuma obra, mas, de um modo ou de outro, provêm simplesmente, com toda misericórdia e zelo o que lhes cabe, alimentam-nos e cuidam deles tanto quanto possível. É por isso, Deus santo que é verdadeiramente nosso Pai eterno profundamente amoroso, o Criador que tirou do nada tudo o que somos, que eu lhe peço que não se irrite com minhas altas e injustiças; você que ama o homem, não exija de mim obras análogas à sua graça. Mas como convém às criancinhas, e até mais, seja indulgente diante daquilo que eu faço, e aumente em mim seu puro dom, em mim que peço seu socorro, pois me falta a sabedoria. Sim, você me criou, você me conformou e você me formou de novo [237] em vista a um objetivo infinitamente bom, Deus cantado acima de tudo, a fim de que, depois de me haver criado para o melhor e de me haver paramentado com as belezas da criação divina, como uma imagem fiel, você me glorifique nas coisas mais puras e mais altas, pois você veio não para me julgar, mas para salvar o mundo[238]. Amém. 58. Eu condeno a mim mesmo. Você vê, Senhor que conhece o que está dentro dos corações, Deus mais do que sábio. Eu não preciso de nenhum juiz. Quanto às coisas incertas, Deus mais do que bom, o
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julgamento se faz com justiça. Quem a ele se opõe não faz senão se condenar previamente. Na verdade ele vê e confessa não ser simplesmente pecador, mas ainda que peca a cada dia e a cada hora. Senhor que ama o homem, proteja-me do castigo. Fonte abundante de piedade e de graça, eu imploro sua piedade e peço sua graça. Você quis se tornar homem por mim. Em sua transbordante bondade, você nada nos faz seguindo nossas faltas. Em seu imenso amor por nós, você nada nos devolve segundo nossos pecados [239]. Antes você se deixa vencer por seu amor, e, tão distante quanto está o oriente do ocidente, você afasta de nós nossas iniquidades[240]. Eu lhe suplico então, Jesus Cristo, Senhor paciente, Mestre misericordioso, eu lhe imploro. Embora eu seja indigno, esqueça toda minha injustiça e todo meu pecado, coloque em meu coração o selo perfeito do seu Espírito Santo, conceda-me o dom verdadeiramente santo, em seu poder e sabedoria, a fim de que, pelo poder de sua graça, na sabedoria e na contemplação espiritual, eu faça aquilo que lhe agrada, tanto quanto estiver ao meu alcance, para que novamente o fluxo espiritual de sua pura sabedoria escorra de meu coração, no conhecimento da verdade e na luz que a acompanha, e para que eu me encontre a partir daí em comunhão com você e com o que lhe pertence, iluminado pelos séculos dos séculos e desde já por sua luz mais do que gloriosa, na incomparável compaixão de sua graça inefável. Amém. 59. Não podemos saber com toda clareza se uma mentira, ou aquilo que podemos chamar de “sugestão”, é fundamentalmente diabólica, a menos que tenhamos fugido dos demônios e escapado a seus ataques. E ninguém foge dos demônios nem deles se livra, como eu disse, se não tiver recebido na solidão de seu coração o impulso fundamental e contínuo da respiração divina. É isto que a fé ativa unida à humildade, ao amor a Deus e aos homens, engendra por meio da vida voltada à hesíquia e à vigília, e pela leitura consagrada à prática e à contemplação, enfim, à teologia acompanhada da oração. Quanto ao amor ativo, podemos dizê-lo com razão, ele é o cumprimento dos santos mandamentos de Deus, na medida do possível. Não apenas este amor torna a compreensão mais pura e mais clara, como ele propicia daí por diante um conhecimento exato e um discernimento mais seguro das mentiras dos demônios e de sua irrupção na alma. Porém a inveja dos demônios ultrapassa todos os limites, eles combatem cada vez mais, rivalizando no ardor da luta e comportando-se furiosamente, sem tomar fôlego e com a maior selvageria, usando de tudo o que pode prejudicar a alma devotada a Deus. E se Cristo, o verdadeiro Salvador de seu povo, não vier, em seu amor pelo homem, tomar a defesa dos fiéis, nenhum homem será salvo, quem quer que seja, mesmo que santo. 60. Com toda evidência eu o reconheço e confesso, Senhor: por minha desatenção, minha ingratidão, minha conduta absurda, eu, que era dotado de razão, desgraçadamente me coloquei abaixo das feras sem razão, pois estas mantêm sua natureza e vivem segundo ela, enquanto que eu sequer conheço, seja por um instante, a pura e verdadeira energia de minha natureza, por estar marcado pela sujeira das más paixões, por minha tendência às transgressões e à confusão que elas provocam. Assim é que eu perco a inteligência e deixo de saber em verdade, como deveria, qual é minha natureza. Em minha malícia eu ultrapassei a própria tribo dos demônios e carrego em minhas intenções todos os seus vícios. Pois se eu pudesse viver como eles vivem, desembaraçados de toda doença, morte ou necessidade, não há dúvida que eu transbordaria de vícios, miserável de mim, incapaz de reter meus impulsos doentios. Não somente eu não sou imortal, mas ainda permaneço por longo tempo enfermo e mesmo assim eu transgrido, me exponho aos pecados e me regozijo com isto. O pior é que eu não tendo para um dado vício deixando os outros de lado, como faz cada demônio. Pois o demônio do amor ao Cada um trabalha uma paixão diferente, ou melhor, faz-se amigo e colaborador daqueles a quem convence que se dedique a esta ou àquela paixão. Somente eu amo e coloco em ação todas as paixões ao mesmo tempo e de todas as maneiras, com tanto ardor que, mesmo sem que os demônios se aproximem ou me assaltem do exterior eu me dirijo para elas, e nelas caio lamentavelmente. E mesmo as faltas que não cometo não é por ter delas fugido por minha vontade ou por tê-las rejeitado voluntariamente, mas, no fundo, apenas porque não tive possibilidade.
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Assim é que eu tenho secretamente mais vícios do que estes seres imortais insensíveis às doenças e às carências da vida, e no entanto cada um deles não carrega mais do que uma única espécie de pecado. Mas eu, cujos dias não são apenas curtos mas, como já disse, ainda submetidos às doenças, à fraqueza, à malícia, eu que sou atraído por todos os pecados e que estou pronto a cometê-los o mais depressa possível, eu estou na realidade bem pior do que os próprios demônios. Mas Senhor, Senhor, nada está acima da compaixão com a qual você nos salva, pois sem nenhum ressentimento você a concede mesmo aos demônios arrependidos. Dê-me a força, a sabedoria e tudo o que devo fazer para que eu me arrependa como devo pelos pecados que cometi e para que sua santa Face me acalme, Mestre, suprema vida, vida benfazeja, regozijo contínuo dos justos para além do mundo, impensável amor absoluto, amor pelo homem e misericórdia inefável. Cumule com sua grande e maravilhosa compaixão minha alma que diz: “Tenha piedade, você que perdoa”, a fim de que fique claramente demonstrado aos que sabem que mesmo os demônios que retornaram e que, como tais, disseram: “Tenha piedade” à sua infinita bondade, não foram abandonados por você para longe de sua compaixão, nem deles você se afastou, fonte das graças. Pois se você tem piedade de mim que sou pior do que eles e pior do que as feras sem razão, não existe em verdade nenhum homem nem demônio culpado de pecado que, prosternando-se diante de você e dizendo: “Tenha piedade”, não tenha se encontrado imediatamente junto de você, na eminência de sua bondade infinita e além de toda esperança, da mais rica e mais maravilhosa compaixão. Tenha piedade de mim, Jesus, que é nosso Pai e fonte de toda compaixão. 61. Muitas coisas me vieram ao espírito, Senhor, sobre as quais refleti. Mas nenhuma que eu tenha realmente compreendido e sobre a qual possua uma certeza definitiva. Nada existe que, de um modo ou de outro, deixe de escapar ao meu conhecimento. Com toda evidência, eu sou incapaz de conhecer de forma simples e total, e isto é bem natural. Eu vejo o céu e, é claro, a terra. Mas o que eles são, sobre o quê estão fundamentados, de que modo todas essas coisas giram umas ao redor das outras, qual é sua natureza, tudo isso eu ignoro, mesmo sendo fácil apontar o ar, a água e o fogo a quem quiser ver. Mas quem poderá saber a natureza de cada um, e por que a água desce e o fogo sobe, e por que o ar se espalha por toda parte? Posso murmurar sem sequer abrir a boca; mas renuncio a falar do conhecimento dessas coisas. Sequer um cabelo, a coisa aparentemente mais comum, quase não toca nossos sentidos. Como poderia? Alguns vêm com o tempo, progressivamente. Mas que sei eu dos cabelos em sua própria natureza? É por isso que eu lhe peço, Mestre, que me livre da presunção que me faz julgar e condenar o próximo e não importa quem. Segure-me com seu braço poderoso, pois eu não possuo nem a inteligência nem a força para adquirir essa sabedoria. Quem conhece a medida dos céus, o volume e o peso da terra, o curso do sol, tão rápido e infatigável, maravilhosamente pontual e regrado? Quem jamais compreenderá o poder que essas coisas carregam em tamanha sabedoria? Como é possível conhecê-las, se não somos capazes de entender sequer o que é um mosquito? Eu não tenho nenhuma inteligência, perdi o poder da sabedoria, mas pela graça eu me confio a clamar pela deificação em você, pela união sobrenatural com Deus, que provém da ação divina que lhe é própria e da intelecção que está suspensa em você. 62. Somente aqueles que, pela visão que vem com a graça, conhecem o sentido espiritual, podem assistir aos que não adquiriram este sentido e se deixam levar, no plano psíquico, por sinais visíveis, ou ao menos pelos mais manifestos. Segundo o divino Paulo este homem, com efeito, discerne tudo, enquanto que ele próprio não é julgado por nenhum outro[241], enquanto que os outros não apenas não veem quem é desprovido do Espírito de Deus, como ainda em sua loucura chegam a chamar de bem-aventurados aqueles na verdade lamentam não ter recebido da graça o sentido espiritual e de serem levados pelo espírito do mundo, estes a quem a palavra divina chama de psíquicos[242]. Pois os espirituais que, por terem tocado o divino, conhecem tal sentido, não julgam absolutamente nada, nem com precipitação, nem conforme as aparências, como o faz a maioria. Eles julgam de acordo com a verdade imutável e eterna que está neles, pois eles são iniciados em tudo pelo Espírito vivificante que os ilumina, lhes concede uma vida
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sobrenatural inteiramente diversa da vida habitual e lhes dá a luz e o conhecimento aos olhos da maioria, aos quais ele se revela assim manifestamente. Assim foi Jacó o patriarca, que se mudou para permanecer num único lugar, que viu com seu olhar penetrante muitas coisas e que pronunciou palavras admiráveis a seus filhos[243]. Também assim foi Isaías, esta grande voz dentre os profetas que, vendo Jesus ser levado à imolação como um cordeiro[244], não se sentiu oprimido por este sofrimento, nem ferido por este rebaixamento e por suas consequências, mas contemplou misticamente, com o olho espiritual, a glória que naturalmente se ocultava nestas coisas. Ele viu que Jesus não mais possuía forma nem beleza[245], e tudo o que ele sofreu além disso; e, no entanto, foi nisto que ele reconheceu a sua divindade. Numa palavra, assim foram todos os profetas que, pela iluminação do Espírito, se ligaram com todo o intelecto às coisas inteligíveis. Quanto aos que trazem o espírito do mundo, ou, para dizer mais exatamente, que são levados pelo espírito do mundo, quem quiser reconhecê-los com facilidade deve se lembrar da raça dos escribas e dos fariseus nos Evangelhos, lembrar-se como eles só se ocupavam com as aparências, como só viviam para serem vistos, e como, pretendendo se fazer chamar doutores de Israel pela sua maneira de ser, pela gravidade de sua postura e de seu caminhar, não viam outra coisa do que esta pose, e com belas palavras simulavam a vida virtuosa[246]. Foi assim – ó cegueira! – que, pela inveja causada pelo espírito do mundo, eles condenaram cruelmente Jesus Cristo à morte, a ele que era o Filho verdadeiro do Deus do universo, a vida divina, a verdadeira vida. Pois se, como está escrito, o Espirito Santo não nos fala por inveja[247], é evidente que o espírito do mundo o faz, e também julga na iniquidade e nas trevas. É por isso que eles se lamentarão[248], conforme está escrito, quando vier o Juízo final de Deus, e se atormentarão a si próprios, pois verão Aquele que eles trespassaram [249], e então eles se perguntarão, dizendo: “Não é este aquele a quem consideramos como nada e cuja vida pensamos ser uma loucura? Como é possível que ele tenha sido contado entre os filhos de Deus? [250]”. Enganados pelas trevas da presunção às quais foram levados pelo espírito do mundo, eles não conheceram a verdade, nem se deixaram levar a ela, para onde vão os que possuem a prontidão no Espírito, o qual os guia e atrai. Quanto aos espirituais, Paulo diz: “Não sabem vocês que nós julgaremos os anjos? E como mais razão ainda as coisas da vida?[251]”. É assim que julga todo aquele que traz em si o Espírito[252], este Espírito que o mundo, como diz o Senhor, não pode conceber nem contemplar[253]. Portanto, aqueles que, pelo verdadeiro sentido da alma, não se revestiram do Espírito Santo mais do que celeste e tampouco conheceram Aquele que cumpre o inefável e diz o inexprimível dentro do mistério, possuem apenas o espírito do mundo. Mas, diz São Paulo, “vocês não estão na carne, mas no Espírito, se o Espírito de Deus habitar em vocês. Ora, se alguém não possui o Espírito de Cristo, este não é de Cristo[254]”. Veem como aqueles que têm em si mesmos o Espírito não são carnais? E como aqueles que, miseravelmente, são privados do Espírito, não apenas são incapazes de fazer um juízo correto a respeito das coisas divinas, mas sequer podem ser de Cristo? O Apóstolo mostra ainda mais claramente em outra parte como se opõem o espírito do mundo e o Espírito Santo quando diz: “Nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, a fim de conhecer aquilo que, pela sua graça, Deus nos deu[255]”. Compreendem que só os que receberam o Espírito de Deus podem conhecer o divino e a verdade? É o que diz o Senhor quando afirma: “Quando vier o Espírito da verdade, ele os conduzirá a toda a verdade[256]”. Você percebe de onde emerge naturalmente a verdade total? Não é quando o julgamento é justo e livre de todo e qualquer erro? É por isso que o Espírito Santo é chamado de Espírito de aconselhamento, Espírito de ciência, de inteligência, de sabedoria[257], Espírito condutor[258], Espírito de prontidão[259], Espírito de verdade[260]. O Espírito também é chamado em Isaías de Espírito de Julgamento[261]. Pois é nele que a alma se comporta resolutamente naquilo que dissemos. É por meio dele que ela é julgada, quando opera
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em si essas virtudes e as recebe. Sem ele, tudo é cheio de trevas e falta de verdade. Quem não possui o Espírito de verdade e logo se esforça por discernir o que é falso naquilo que lhe dizem não pode alcançar a verdade. “Ninguém, já foi dito, conhece o que há no outro, senão o Espírito que nele habita[262]”. Pois o Espírito sonda tudo[263]. Se fosse permitido descobrir a verdade sem ele, jamais o Espírito poderia ser chamado de Espírito Santo de verdade e de Espírito de julgamento, ele jamais teria estes nomes pelos quais o chamamos. Se aquele que julga fala sem o Espírito de verdade, ele se tornará o advogado da mentira sem saber; numa palavra, ele terá decaído da verdade (pois o Espírito da verdade e o do julgamento são o mesmo), ele estará se exilando para longe de Deus e da glória de Deus, ele estará dividido. Julgando e se explicando precipitadamente na falta da verdade, em sua ignorância e sua grosseria ele entregará o justo, como um novo Judas. Ora, este último, o três vezes miserável, foi condenado por ter traído displicentemente, em detrimento de seu dever, nosso Senhor Jesus Cristo, a quem o Pai nos enviara, e que era, ele próprio, a justiça[264] e a verdade[265], conforme ele mesmo nos disse. Fariseu miserável, cego, indo e vindo sem possuir o Espírito que ilumina os olhos espirituais da alma, julgando pelas aparências, apressada e falsamente o que há no homem como se o contemplasse com olhos espirituais, se você visse as ressurreições paradoxais e os milhares de milagres divinos que Jesus fazia por si só, por seu verdadeiro Deus, você deveria venerá-lo, celebrá-lo e crer nele, ao invés de se irritar e se aborrecer por que ele, com imensa sabedoria e amor pelo homem, rompia o sábado e porque seus discípulos, os discípulos do Esposo, não jejuavam[266] nem lavavam as mãos[267]. Fariseu sem Inteligência nem coração, podemos dizê-lo, e cheio de trevas, você pretendia dirigir a fonte da sabedoria e de tantas graças maravilhosas e inefáveis? Mas se você despreza as obras mais simples de um tão grande poder, estas obras cuja razão é inconcebível para você, como pretende você ainda enxergar? Você é muito ignorante, ingrato e insensível. Ademais, você se ilude a um ponto que a ninguém é permitido, podemos dizer. Por acaso você admirou as obras extraordinárias, as maiores que ele realizou, você o glorificou tanto quanto possível e celebrou Aquele que as realizou, dirigiu-se a ele humildemente e com a retidão dos que, em sua opinião, negligenciaram a tradição, você pediu a ele que lhe explicasse a razão pela qual ele rompeu o sábado? Mas a presunção, com a malícia que a acompanha, é aparentemente a coisa mais nefasta e mais penosa, e tanto mais tenebrosa na medida em que pretende saber. E tanto lhe falta a inteligência, que ela ignora sua própria ignorância. Além disso, fariseu cego que não procura saber se o interior do cálice está limpo, mas que se preocupa em deixar brilhando o exterior do prato[268] para que seja visto, você não ouviu o que Cristo, a verdadeira sabedoria, ordenou a respeito do julgamento quando disse: “Não julguem segundo as aparências, mas segundo a justiça[269]”? Não compreende que é impossível julgar com justiça e tomar as decisões corretas se nos fiamos apenas nas aparências? Com efeito, a aparência representa aqui aquilo que qualquer um pode ver. Como, insensato, o mesmo que não teme a ordem do Pai, nem compreende, ao que parece, que o homem verdadeiro não julga o visível a partir do visível, como não sente ele vergonha? Como não esconde ele a sua face? É o que você deveria fazer, uma vez que, privado da verdadeira vida, você próprio vive longe da luz, da sabedoria, da verdade, do conhecimento dado pela verdade, e de tantos outros bens que o Espírito Santo dispensa e distribui, e sem os quais não apenas é impossível que você possa julgar infalivelmente as coisas que lhe são estranhas, como também não é capaz de ver em que espécie de mal você está enredado. Se você quiser acreditar em mim, retire a trave de seu olho, ou seja, retire de seu intelecto a ostentação e a presunção. Então você verá racionalmente se pode retirar a palha[270] e eventualmente captar o pecado, secretamente aliviando o olho do seu próximo. Mas enquanto seu olho interior não vir a luz inteligível, é evidente que a trave colocada nele o encherá de trevas. Portanto, antes de buscar por si mesmo, antes de rejeitar para longe de você todo o mal, não pretenda combater as ofensas do demônio nem as provas da ignorância. Isto só p podem fazer os que receberam a luz. Pois a empresa é fortemente aleatória e os impulsos são perigosos. Que só falem e, no fundo, só julguem – conforme o conselho do bem-aventurado Davi – aqueles a quem o Senhor libertou das mãos dos inimigos – os inimigos inteligíveis – e a quem ele reuniu longe dos locais hostis[271] – os estados passionais, estranhos,
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divididos – unindo-os a si mesmos e à sua glória. Que assim falem e julguem, libertos e salvos, os que foram reunidos, unificados, iluminados pela luz. Mas se você não se encheu de luz espiritual, como foi dito, fortifique-se pelo silêncio e não tema aprender primeiro e confessar que você ignora se o que lhe acontece lhe traz a salvação ou a perdição. Como não o faz refletir as palavras de Cristo: “Eu não julgo ninguém[272]”? Mas você, o que diz? “Eu julgo todo mundo”. Quanta ignorância, para não dizer: quanta inconsciência! Foi dito: “O Pai entregou todo julgamento ao Filho[273]”. O Filho recebeu do Pai o poder de julgar. E você, de onde tirou aquilo que não lhe foi dado? A Trindade habita tão claramente assim em você? Ela caminha[274] em você visivelmente como diz a promessa? Você se vê em Deus o Verbo e vê o Deus Verbo em você? Você está em Deus? As águas do rio do Espírito Santo correm ou jorram claramente em luzes inacessíveis no interior de seu coração? Você recebeu todas as outras graças pelas quais Deus age manifestamente nos seus santos? Ou você não tem necessidade de mediador? Proteja, portanto, sua língua do mal. Guarde seus lábios para que não digam mentiras. Procure, interrogue os outros com prudência, instrua-se, mas não ensine, deixe-se questionar pelos homens, e quanto a você, não julgue nada. [275]É ingênuo e cego quem crê poder ler as palavras nos livros. Mais tolo ainda é aquele que, sem possuir o Espírito vivo, pretende conhecer o que há dentro do próximo. Pois onde as coisas não são aprofundadas, não podemos saber sequer o que há em nós, nem tampouco as armadilhas e os obstáculos que o demônio invejoso e maligno que desdenha do bem opõe ostensivamente a nós que, por presunção, caímos no mal e, contra nosso dever, nos deixamos persuadir e começamos a julgar. E assim, por não nos deixarmos instruir nós nos iludimos, desgraçadamente não alcançamos a verdade e, ao invés de avançar e aprender, não servimos para nada. E ao mesmo tempo em que prejudicamos a nós mesmos, nos tornamos causa de escândalo e de males para aqueles que nos são próximos e nos tornamos passíveis do enorme julgamento de Deus. Mas se discernirmos as intrigas do demônio, se obedecermos à ordem que nos deu o grande Paulo no sentido de não julgarmos nada nem ninguém antes do tempo[276], até que venha a nós em Espírito o Senhor que nos ilumina, que nos revela abundantemente as profundezas, que nos ensina com toda certeza os conhecimentos e as revelações das visões divinas e dos bens místicos, e que faz de nós sem falta seres verdadeiramente espirituais, portadores de Deus – ou antes, que faz de nós deuses – então ele nos desculpará. Ele nos restabelecerá em sua glória quando tivermos recebido a graça do discernimento, quando com pureza soubermos a que mal nos conduzem os julgamentos que fazemos sem que tenhamos o dom de Cristo. Somente então poderemos julgar corretamente sem o risco de cairmos. 63. Desde o princípio Deus assistiu a Israel em muitas coisas. Ele o cercou de uma grande e maravilhosa solicitude, e dentre todos os homens fez dele partícipe de sua herança[277]. Mas Deus também cumulou os fiéis em Cristo com esta assistência e esta solicitude, por meio de grandes e extraordinárias obras, que ultrapassam aquelas que fez por Israel, assim como a alma ultrapassa o corpo. Elas as cobrem, assim como o sol cobre as estrelas. As coisas dos cristãos superam as de Israel como o corpo supera a sombra. Pois, se bem compreendermos, os feitos de Israel são realmente a sombra dos nossos. Para eles o Faraó foi um senhor amargo e impiedoso, e cavaleiros selvagens[278] foram a imagem de Satanás e dos seus, não porque pudessem fazer grande mal aos corpos, mas porque se esforçavam para atormentar impiedosamente as almas. Para eles foi Moisés quem conduziu o povo de Deus[279]. Mas nós temos em nós mesmos – e como isto nos eleva! – o Filho verdadeiro de Deus, o Verbo em pessoa[280], que supera infinitamente a letra da Lei. Lá havia o bastão[281], aqui a cruz[282]. A madeira, mudando paradoxalmente de aspecto, devorou as serpentes[283]. Mas a cruz se transformou de instrumento do mal em signo de bondade, destruindo os demônios. Eles roubaram o ouro, a prata, os ornatos das vestes[284] do Egito. Mas nós fazemos secretamente em espírito a mesma coisa, mas sabemos que o subtraindo ao pecado conduzimos a Deus a beleza sensível. Lá, uma coluna de nuvens e de fogo conduziu Israel ao mar[285]. Aqui, a visão de Deus e de seu amor abrasador permite ao intelecto fiel e contemplativo chegar às lágrimas nas quais se perdem e
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morrem todas as coisas do ódio, quando este intelecto se afasta dele, do mesmo modo como antes o Faraó e os egípcios se perderam no mar[286] milagrosamente enquanto os judeus conseguiam atravessar. Resumindo, se quisermos considerar e, por conseguinte, contemplar, tudo o que os judeus realizaram então, encontraremos a sombra e a imagem daquilo que seria cumprido daí por diante pelos verdadeiros cristãos. Assim, se quisermos saber do modo mais global e mais claro o que nos diferencia dos judeus, devemos pensar no que anunciava a Lei antiga e no que anuncia a nova Lei que os cristãos trazem. Deste modo podemos discernir sem erro. Pois a primeira predicação diz das criaturas, e das criaturas visíveis, que elas vieram de Deus, ao afirmar: “No princípio Deus fez o céu e a terra[287]”, etc. Quanto à predicação dos cristãos, ela não fala apenas das criaturas sensíveis, mas das criaturas inteligíveis. De fato, é ao inteligível que ela se refere, quando diz: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus[288]”. A predicação dos judeus afirma: “Deus disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança[289]”. Mas a dos cristãos diz: “O Verbo se fez carne e habitou entra nós[290]”. Uma diz: “Que ele domine sobre os peixes do mar, os pássaros do céu e sobre os animais, por toda a terra[291]”. A outra diz: “Nós recebemos tudo de sua plenitude[292]”. Uma afirma: “Deus disse: Faça-se a luz[293]”. E a outra: “O mesmo Deus que disse: ‘A luz brilhará no meio das trevas’, brilhou ele próprio em nossos corações[294]”. Portanto, aquele que está indeciso entre uma e outra dessas duas predicações de que falamos, pode constatar com clareza: a experiência que os cristãos têm de Deus supera os bens dos judeus e os ultrapassa de longe. Ele dirá que tais bens não passam da sombra e da imagem de uma verdade sobrenatural, a verdade que os cristãos carregam, ou a verdade de Cristo. E ele celebrará e glorificará a abundância da graça e da providência divinas que, pela compaixão supra-essencial das coisas mais elevadas do que o mundo, eleva lentamente a humanidade das sombras e das imagens até Jesus Cristo nosso Senhor.
QUE DEUS, POR SEU AMOR PELO HOMEM, SE TORNA ACESSÍVEL A TODOS OS SENTIDOS DOTADOS DE INTELIGÊNCIA. 64. Ó santíssimo Verbo enipostático, Sabedoria e Poder de Deus! Como poderei eu, Senhor, louvar sua essência, ou sua glória inacessível? Como poderei celebrar a sua bondade, que é infinita? Eu não passo de um homem, e minha inteligência é limitada. Mas eu o louvarei e celebrarei aquilo que eu puder alcançar. Pois me foi permitido de todas as maneiras sentir sua glória e sua bondade e minha alma a você se ligará com toda sua força[295] e o seguirá. Assim, quando eu o ouvir, eu temerei como é natural, e a partir de então serei arrebatado por tudo o que está em você, conforme o profeta que disse: “Eu ouvi, Senhor, o que me anunciou, e eu temi. Compreendi suas obras, e fui arrebatado[296]”. Altíssimo, Verbo incompreensível, que bateu à porta, ou seja, aos ouvidos da Esposa do Cântico dos Cânticos, cujo coração foi então revolucionado. Ela estava fora de si e procurava vê-lo com todo ardor, dizendo: “Mostre-me seu rosto, faça-me ouvir sua voz. Pois seu rosto é belo, e sua voz é doce[297]”. Também gosto do que disse Jacó: “Primeiro eu ouvi falar do Senhor, mas agora meu olho o viu[298]”. Pois assim como você é Verbo e Sabedoria, é também a verdadeira luz que ilumina todos os homens que vieram ao mundo [299]. Você é a luz que ilumina e se revela por toda parte desde a origem. Pois tal como, em Espírito, o Sol de Justiça[300], você é a luz deslumbrante que dá a visão a quem, em toda a beatitude e pela graça das virtudes, contempla os mistérios divinos e sobrenaturais do Deus púnico, e a natureza inefável das coisas ligadas ao eros divino e que ultrapassam o mundo. É o que João proclama claramente: “Nós vimos sua glória, a glória do Filho único provindo do Pai, cheio de graça e de verdade[301]”. Pois assim como você é o verdadeiro Deus, é também verdadeira luz, conforme João testemunha. A partir daí, aqueles que, por um intermédio de um
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dom indizível receberam de sua plenitude, Deus inefável, dizem abertamente: “O mesmo Deus que disse: ‘A luz brilhará no meio das trevas’, brilhou ele próprio em nossos corações[302]”. Você irradia inefavelmente, ilumina com toda sua luz, a fim de nos permitir ver as coisas da graça e da verdade mais altas do que o céu, as coisas que ultrapassam a natureza e o mundo, e a fim de nos oferecer delas o maravilhoso regozijo. É por isso que em seu amor pelo homem você não apenas se tornou acessível ao ouvido e à vista, mas também ao tato. Disse o discípulo bem-amado: “Aquilo que ouvimos, o que vimos, o que contemplamos, o que nossas mãos tocaram do Verbo da vida[303]”. Se você revestiu os fiéis, dando o repouso de uma vez por todas aos seus, é claro, bom Deus, que você se deixou tocar por eles em espírito e milagrosamente. Segundo Paulo, o santo predicador da verdade, os que por felicidade foram batizados no Senhor e na fé que nele possuíam, dele se revestiram com mais felicidade ainda [304], do Deus que nos cumula de dons. Assim é que Isaías, a trombeta profética, a grande voz, se regozijou com toda sua alma em Deus, o Pai e o Senhor. Pois o Pai lhe permitiu que de você ele se revestisse maravilhosamente, Senhor, como de um manto de salvação e uma túnica de alegria[305], e com você ele se cobriu além de toda inteligência. Vê-lo ao redor dele, abraçando-o como a luz inacessível e maravilhosa, deu ao inspirado de Deus tamanho regozijo, tanta alegria, e tanto mais na medida em que ele compreendeu que ali estava a salvação, pois você é a própria salvação. Assim é que na infinita abundância de seu amor, você mais uma vez se deixou sentir pelas narinas inteligíveis que tiveram a santa fé, e com isto você concedeu maravilhosamente o repouso aos que o celebram e louvam, cantando que seu nome é um perfume que se espalha[306] e anunciando isto aos seus próximos. “Pois meu bem-amado é um fruto bonito de se ver, bom em sentir e doce para provar. E seu perfume espalha o bom odor de sua mirra[307]”. É por isso que Paulo, que lhe tinha em si, dizia que nós somos o bom odor de Cristo[308]. Mas você também de comer e de beber aos seus fiéis. Você é o verdadeiro alimento e a verdadeira bebida da alma[309]. Você maravilhosamente vivifica e nutre, faz crescer progressivamente e misteriosamente alegra aquele que o recebe. É isto que Davi, o santo profeta, dizia aos seus próximos quando sentiu que o provara ao trazer Deus em si: “Provem e vejam que o Senhor é bom [310]”. Pois você não somente se revelou como um fruto, mas ainda os pobres em espírito[311], os humildes, aqueles a quem tudo falta, o comem como a um bom alimento e são saciados, e os que o procuram incansavelmente no desejo de encontrá-lo e comê-lo o louvarão[312], Senhor, pela imensa doçura que experimentarão ao prová-lo. Pois àquele que é reconfortado pelo seu poder que dá a vida, são oferecidos um santo alimento e uma bebida santa. Os corações dos que o comem viverão pelos séculos dos séculos[313]. Você é eterno e incorruptível e torna incorruptíveis aos que o comem. Por sua transbordante ação natural, você os transporta para a eternidade. É por isso que, em sua infinita bondade que suscita tanta beleza e bem-aventurança, você chama e clama aos seres providos de razão, dizendo: “Venham, comam do meu pão e bebam do vinho que preparei para vocês[314]”. Ora, é a si próprio em sua santidade que você chama assim. Pois você diz também: “Eu sou o pão da vida[315]”, e “Eu me entreguei como a fonte da vida[316]”. Assim você nos propõe que comamos seu santo corpo e seu sagrado sangue[317]. Assim, nutrindo-os pelos sentidos intelectuais, você alegra os seus, Senhor que tanto ama as almas, você para eles se torna a luz e a vida, como os cumula de toda alegria, das coisas boas e belas acima do ser. Bendito seja Jesus, maná espiritual, celeste, alimento infinito. Glória, Mestre, ao indizível amor com que você nos envolve, glória à sua inefável misericórdia e à sua paciência. Amém.
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QUE O ESPÍRITO DE DEUS HABITA NOS FIÉIS 65. É uma coisa maravilhosa para o sentido intelectual, ou a respiração, a efusão do Espírito vivificante proveniente de Deus Pai nos corações carnais que santamente acolheram a fé em economia do Verbo encarnado. Que o dom se espalha, que o poder divino, a energia da Divindade incriada mais elevada que o ser se espalha, é maravilhoso, dissemos. Mas que a energia se uma ao coração e no coração se torne um movimento perpétuo, isto é sobrenatural e pede que sintamos temor. 66. Outra coisa maravilhosa: que o Pai, no Espírito e pelo Verbo divino de Deus tenha criado por seu intermédio tudo o que existe de sensível e inteligível[318], e que esta Trindade possa conjuntamente habitar, caminhar[319] e claramente fazer sua moradia na reflexão humana. É um grande milagre que para todo fiel votado à piedade, a Divindade em três Pessoas envie um anjo. Mas que a própria Trindade, infinitamente poderosa e vivificante, queira o bem do homem e lhe comunique a força e a energia espiritual de Deus, isto ultrapassa todo milagre. 67. É uma coisa verdadeiramente maravilhosa que o coração seja capaz de portar o santo raio do Deus Altíssimo que domina o universo, e confiar-se a ele continuamente. Num momento, do exterior, pelas santas Escrituras, Deus ilumina o intelecto, o torna doce e solícito, e o cumula de amor pelos homens e pelos milagres; noutro, a luz – ó alegria! – se entrega real e verdadeiramente ao fiel, de dentro do coração, não de fora, e sempre, sem fenecer. Isto está acima de toda admiração e ultrapassa o entendimento. 68. Mais uma coisa maravilhosa: o coração do fiel transporta em si também Àquele a quem os serafins e as potências celestes carregam miraculosamente. Isto é admirável. Porém além de transportar, unir-se a ele, tornando-se com ele um só corpo, como não seria isto além de toda admiração? 69. É verdadeiramente um milagre além de toda medida que, pela graça, a alma possa ser o trono, o leito, o carro de Deus infinitamente sábio e infinitamente poderoso, cujo trono é o céu. Mas que a alma seja a tal ponto amada por ele que possa se tornar um único sopro com ele, que ela comungue das coisas mais altas do céu e que lhe sejam confiados os maiores mistérios, quem jamais poderá admirar-se disto na medida justa? 70. É uma coisa realmente maravilhosa e estupidificante: Deus, que não tem sequer um lugar para repousar[320], repousa divinamente no coração. Um rei terrestre, que tem seus limites, se adota alguém por amor, se o sustenta com sua mão generosa, busca plenamente e concede justamente àquele a quem adota ou sustenta, como dissemos, a glória e a honra, e com ela o regozijo e a alegria. Mas não se trata de um rei terrestre de quem falamos aqui, mas do Deus sem começo, do Deus incriado, do Criador e do Senhor do universo, a quem miríades e miríades e milhares e milhares de anjos servem com temor[321], é deste Deus mesmo que, longe de simplesmente sustentar de quem se compadece, o toca no interior do coração e nele vem habitar, não por um tempo, mas pela eternidade, unindo-se assim àquele que o acolheu e recebeu sua graça, glorificando-o imensamente, deificando-o maravilhosamente e cumulando-o de miríades de bens misteriosos. Que glória inefável, que honra, que regozijo, que felicidade, quantas coisas maravilhosas ele lhe concede sempre! Senhor, Trindade, tenha piedade! 71. É uma coisa maravilhosa: Deus, que criou o universo, e que o contém em si, se deixa conter de modo incompreensível, e não obstante claro e contínuo, pelo coração do fiel. Um rei mortal, cujo poder é bem pequeno, se bate à porta de alguém, se entra em sua casa, se come e bebe à sua mesa e compartilha de sua vida, cumula naturalmente de glória, de honra, de alegria, de prazer e de um grande reconforto a quem o recebeu. Mas que o Rei eterno, o Senhor do universo, o Criador das coisas sensíveis e inteligíveis, entre discretamente, não na casa, mas no coração daquele de quem se compadece, e não para usufruir dos bens que estão em seu coração, mas para lhe dispensar a força do céu, a consolação mais alta que o mundo e a
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glória sobrenatural e durável, que pensa disto aquele que recebeu tal graça? Qual não será sua alegria? Quanta felicidade, quanto prazer não sentirá ele? Numa palavra, quanta beatitude? Ela será imensa e benfazeja. Pois é verdadeiramente uma maravilha incomparável que Aquele que a tudo preenche e que se encontra acima de tudo faça do coração do homem sua morada e seu templo eterno. 72. Deus que disse: “A luz brilhará no meio das trevas[322]” brilha de alegre luz no coração dos fiéis. O amor de Deus se espalha nos corações pelo Espírito Santo a quem ele foi dado[323]. Pois Deus envia aos corações o Espírito de seu Filho, que clama: “Abba, Pai[324]”. Ligados assim ao Senhor – ó união maravilhosa! – os fiéis se tornam com Deus um só e mesmo Espírito[325]. Que outra coisa, dentre tudo o que dissemos, nos fará sentir tão de perto a graça? 73. É claro que os fiéis são herdeiros de Deus, herdeiros com Cristo[326]. Eles são como Cristos segundos, comungando com a natureza divina[327] como filhos de Deus e deuses por adoção e por graça, coisa que ultrapassa toda inteligência e transborda o pensamento. Eles contemplam e experimentam sobrenaturalmente o que está acima do mundo, ou melhor, eles o desfrutam. Eles desfrutam daquilo que o olho não viu, que o ouvido não escutou, daquilo que não chega naturalmente ao coração do homem [328]. Glória ao amor incompreensível de Deus Pai que nos ama verdadeiramente. Glória ao amor da Trindade, em sua extrema e inefável bondade, mais alta do que o céu.
QUE TODO FIEL É EMINENTEMENTE HONRADO POR DEUS 74. Quem nasce do Espírito é Espírito[329], declarou Cristo. Ó incomensurável graça! Ó dom inefável! Deus criou o homem com numerosas graças verdadeiramente maravilhosas. Desde que foi criado, o homem é naturalmente uma criatura. Mas em sua transbordante generosidade, o Senhor todo compassivo, a Trindade mais alta que o ser e que criou o universo concedeu no limite à criatura – ó felicidade! – a graça do Espírito incriado. Coisa jamais concebível, ele próprio se uniu ao homem, o deificou, fez dele seu filho e lhe concedeu tornar-se Espírito. De fato, ele disse: “Eu disse: Vocês todos são deuses, filhos do Altíssimo[330]”. A respeito de Deus está escrito: “Eu dei uma ordem, e esta ordem não passará[331]”. E: “Tudo o que quis, o Senhor fez[332]”. E: “A vontade do Senhor permanece pela eternidade, e os pensamentos de seu coração por todos os séculos[333]”. Pois sua natureza é verdadeiramente inalienável e imutável. E seu Verbo em pessoa veio nos trazer sua palavra, sua ordem, sua vontade, seu conselho. Ele foi o anjo deste grande e maravilhoso conselho sobrenatural[334]. E ele deu o sopro do Espírito aos seus discípulos[335], e assim os fez renascerem espiritualmente. Ele os incorporou misteriosamente ao Espírito e fez deles filhos de Deus. Pois os que são conduzidos pelo Espírito de Deus se tornam filhos de Deus [336]. Ora, se eles são filhos de Deus, é claro que são também deuses. O filho carrega necessariamente o ser daquele que o engendrou. É por isso que o Salvador ensinou aos discípulos a chamarem a Deus de Pai [337], uma vez que eles possuíam a comunhão do Espírito. A Santíssima Trindade tornou assim deuses, Filho e Espírito, os fiéis, mas escondeu ao extremo todos os dons maravilhosos que até agora só o pensamento pode captar. Amém. SOBRE: “ELE ESTENDEU SUAS ASAS, RECOLHEU OS SEUS E OS COLOCOU SOBRE SEU DORSO[338].” 75. Compreenda pelo sentido intelectual o que vou dizer agora. Saiba que você ficará maravilhado, cheio da alegria do Espírito e indubitavelmente penetrado pelo prazer divino. O Espírito Santo falou pela boca de Davi: “Revele-se, ó você que assenta sobre os querubins[339]”. E também: “Aquele que vê os abismos, que assenta sobre os querubins[340]”. E ainda: “Ele está sobre os
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querubins[341]”. Porque então vem ele sobre os fiéis? Que coisa excepcional, além de toda medida, sucedeu no intervalo? Pois não apenas Deus se coloca sobre nós como a galinha que protege a vida de seus pintinhos e os aquece, maravilhosamente guardando-nos e alegrando-nos, como ainda – ó arrebatamento da ordem do amor divino! – nos colocando sobre si e, tornando-se para nós como que um carro novo que na abundância de seu amor divino ultrapassa todo entendimento, nos guarda em toda segurança e nos conduz inefavelmente para as coisas da vida mais elevada que o céu, as coisas indizíveis que estão além do mundo. Ele nos dispõe para viver acima do ser nas delícias, na paz, no repouso, inefavelmente, para nos regozijarmos em espírito na alegria divina e conhecer sua doçura. O bem-aventurado Moisés disse com efeito no Espírito: “Ele – ou seja, Deus – abriu suas asas, recolheu os seus e os levou sobre seu dorso[342]”. Ó amor inefável! Ora, que ele tenha estendido suas asas, que tenha recolhido os fiéis, que tenha tornado a si mesmo aquele que os carrega, isto realmente vai além da honra dos querubins, e em verdade cumula de uma alegria imensa e inefável. Que ele receba a carga destes fiéis, que os receba sobre seu dorso, que os cubra com sua sombra, esta é uma coisa que, segundo o divino Davi, mesmo o intelecto dos querubins não é capaz de ver e celebrar dignamente. Assim como sua grandeza, sua compaixão é incomparável[343], ó Santíssima Trindade, a você a glória! 76. O hábito dos monges, as promessas que o acompanham e a vida monástica exigem um intelecto votado à solidão. Pois somente Deus anima este intelecto e nele age com toda atenção possível e com toda justiça. Ele o anima transmitindo-lhe a graça vivificante. Age nele permitindo-lhe contemplar a unicidade e a simplicidade de sua glória e de seu Reino que domina o universo. Pois só ele é o Altíssimo, de uma outra ordem do que a de todos os seres, diferente deles por sua incomparável preeminência. Só ele é soberanamente poderoso, e ele comunica a todas as coisas uma parte de seu poder. Só ele é verdadeiramente sábio, e dispensa aos sábios toda a sabedoria. Só ele é, real e eternamente, e de todas as maneiras o Pai e o Criador de todos os seres. Assim, é com toda a justiça e mérito que foi dito: “Todas as coisas vêm dele e são por ele e nele. A ele a glória por todos os séculos[344]”. Se assim é, numa palavra, todas as coisas boas e belas recebem de Deus sua existência de uma vez por todas, nele se guardam e se protegem, tendem para ele e nele encontram seu fim. Estas coisas unem e ligam a Deus como a seu Pai todos os que delas vivem como convém. São a bondade, o amor, a prudência, a sabedoria, o conhecimento, a contemplação e a ação correspondente, a deificação, o prazer divino e a santa alegria que ele proporciona, a paz acima do céu, o temor religioso, a força, o conselho, a via de piedade, a ciência, tudo o que é próprio à natureza dotada de razão, tudo o que encanta, dá glória, alegra, identifica a Deus e deifica. Se tudo o que de bom e belo de que falamos provém de Deus e dele apenas quem ama estas coisas belas e boas ama em vão, por estar dividido e separado de Deus, a raiz e a fonte de toda beleza e de todo bem. Pois ao dar as costas tão pouco nobremente àquele que a tudo criou, manteve e fundou tantas boas e belas coisas, ele jamais terá em si mesmo aquilo que por natureza é belo e bom. E o que ele imagina possuir de belo e bom jamais será verdadeiramente belo e bom: tudo não passará de engano e cruel desilusão. É de Deus, e somente de Deus, que poderemos esperar com todo coração, se nos aplicarmos com ardor e nos ligarmos fortemente à sua lei, e apenas a ela. Somente assim, com efeito, descobriremos a glória sem mescla, o prazer inalterado, a inalienável riqueza infinita, e traremos em nós plenamente a série de coisas belas e boas de que falamos, e também, ó milagre, o próprio Deus que habita e caminha com elas [345], e desfrutaremos destas coisas que estão além do mundo e que os sentidos exteriores não podem ver nem ouvir. É assim que viveremos com toda simplicidade, em toda solidão, em Jesus Cristo nosso Senhor. 77. Quando o coração que traz em si o Espírito leva humildemente uma vida votada à hesíquia e se deixa animar pela graça, o intelecto alegremente concorde com a verdade de Deus se põe a contemplar um grande número de visões divinas, inicia-se nas coisas inefáveis que estão além do mundo, considera a si mesmo como um novato, como um estrangeiro entre os seres. Ele vive entre delícias, desfruta com clareza
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em espírito das coisas que ultrapassam a inteligência e que estão além de todo pensamento. Numa palavra, muitas vezes ele vê a Deus de maneira diversa, experimenta os arrebatamentos extáticos que o unem a ele, se lança pelo silêncio e a visão para a deificação, na medida em que esta é um estado feliz, e se eleva acima de si mesmo ao receber o eros, sob o impulso e o ardor do Espírito que dá a vida e a luz em Jesus Cristo nosso Senhor. Amém. 78. Aquele que, conforme a providência, leva sua vida permanecendo apenas em Deus, e que vê a Deus em espírito claramente caminhar e habitar em si, manifestamente cumpriu com o mandamento divino do Senhor Jesus que disse: “Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês[346]”. Este se uniu a Deus, como um estranho no mundo, e com ele morreu maravilhosamente e em toda felicidade, tornando-se assim para o Salvador o operário seguro de todos os mandamentos. Pois aquele que permanece em mim e eu nele, disse o Salvador, traz em si muitos frutos[347], ou seja, muitas virtudes. Que ele se apresse, se quiser, no amor divino, pela contemplação, a prece e a vida mais divina, portar as virtudes, habitar e perseverar em Deus tanto quanto possível. Então Deus, vendo o combate sagrado da alma, inclinará os céus, ó milagre, contra toda expectativa. Ele caminhará e permanecerá nesta alma para conceder àquele que o recebe a fruição de toda sorte de coisas boas e belas e a satisfação dos santos mandamentos. Pois foi ele que disse: “Sem mim vocês nada podem[348]”, pensem vocês fazer o que quiserem. 79. Se, por amor e no interesse de todos não se deve esconder um tesouro, nem a sabedoria, é claro que tampouco se deve guardar no intelecto, sem colocar por escrito, a obra intelectual votada a Deus, a contemplação e a tensão, mas, ao contrário, por amor e no interesse de todos, devemos transmiti-la por escrito e por sinais visíveis. Pois o homem é um animal dotado de razão, que recebeu o intelecto e a ciência. É por isso que, quando ele pensa em Deus e considera os frutos da fé em si mesmo, ele recolhe o intelecto divino que lhe é próprio e penetra com ciência e coragem no lugar dos santos mandamentos. Mas para chegar até aí, ele tem necessidade da ajuda e do socorro de Deus, ou mais exatamente de sua proteção. Ele reza muito, pedindo com suas lágrimas a compaixão de Deus através dos mandamentos. Mas quando quer ter compaixão por aquele que ora, como um pai tem compaixão por seu filho, ó milagre, Deus logo espalha sobre ele seu Espírito em seu coração. Ele traz assim maravilhosamente ao estado de amor ardente aquele que o recebeu. E, não é preciso dizê-lo, como pode um pai fazer a seu filho, ele lhe concede toda sua confiança, como uma garantia vivificante, pela efusão e a energia do Espírito, e o cumula de transbordante doçura e bondade. Ele lhe concede a humildade, mas pela união ele de outro modo o eleva para a glória e a honra, e o leva de tal modo ao fogo do eros que tudo o que ele vê ao redor de Deus, e do modo como o vê, lhe aparece verdadeiramente como seu próprio ser. Pois, numa palavra, as moradas do Pai, a riqueza, a glória, a força, a beleza, a sabedoria, o poder, o conhecimento total, todas as coisas boas e belas, são naturalmente a glória e o louvor, as delícias, a honra e a felicidade do filho. Assim, quando a alma, nas contemplações naturais, participa do Espírito, ou seja, quando ela contempla a Trindade em Deus, como reporta o grande Basílio, ela é em verdade tomada de um imenso amor, ela vê a Deus verdadeiramente como seu próprio Pai e vê as coisas de Deus como seu próprio ser, conforme dissemos. Basta-lhe simplesmente ver a Deus e nada mais. Sua felicidade é imensa, e ela exulta em Jesus Cristo nosso Senhor.
O QUE É O PRAZER NO SENTIDO PRÓPRIO 80. Eu penso que ninguém, quando se vê com conhecimento de causa diante destas coisas que se referem ao que podemos chamar de prazer no sentido próprio, ignora que, na sua ação mais elevada, elas não são condenadas nem pela natureza nem pela razão. Elas enchem o coração de alegria e regozijo, assim que são realizadas. Pois elas estão muito longe daquilo que chamamos e prazer da carne, que é o prazer idólatra e não o prazer em sentido próprio. Quem deseja o prazer puro, o indissolúvel prazer espiritual do intelecto,
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deve busca-lo não pecando mas fazendo passar das coisas da terra às coisas do céu aquilo que ele considera seu ser, e depois toda a sua alma. Com efeito, este é o prazer verdadeiro, o imutável prazer do coração que a alma dotada de razão tem em si inato, que permanece eterno, luminoso, que jorra sempre e que ninguém condena, desejável, que conduz à beatitude porque habita com os santos desde a origem dos séculos, silencioso, pacífico, bom, aberto, radioso, sorridente, divinamente sábio, transparente, consolador, cheio de alegria, ativo e tudo o mais. Se você conheceu por experiência este prazer, intelectual e espiritualmente, você concordará com tudo o que escrevemos. Caso contrário, guarde com fé essas palavras.
DO PRAZER DA CARNE 81. Quanto ao prazer que não é do intelecto e do espírito, mas da carne, é incorreto chama-lo de prazer. Pois, uma vez obtido, ele traz consigo a amargura e o arrependimento. Com toda evidência, é falso chamalo prazer. Ele é alterado, distante da alma racional, ele próprio desprovido de razão, baixo, irresponsável. Ele se delicia nas trevas, perturba, atormenta, passa e murcha depressa. Ele se vai contra sua vontade e envergonhado quando o corpo envelhece. Ele condena a si próprio, torna a vida penosa e difícil, é prisioneiro de si mesmo, cheio de infâmia e não pensando senão na corrupção, ele é desleixado, sem rosto, sem esperança e não se deixa ver. Uma vez obtido, ele cobre de tristeza tenebrosa aquele que se entregou em ato. Se você conheceu este prazer, saiba ao menos que é verdade o que dizemos. E se, graças a Deus, você se guardou, persuadido de que minhas palavras são a expressão da verdade, saiba colher os frutos gloriosos da vida. 82. Eu possuo a irradiação contínua da luz espiritual, a vida mais elevada que o mundo, o alimento e as delícias divinas, a tensão e o desejo, a união e a fruição da Divindade em três Pessoas, eu possuo o amor inefável e maravilhoso que me liga a Jesus Cristo, o Senhor do universo. Mas, ó minha miséria e minha loucura, ó mal de minha irracionalidade, minha inteligência que foi elevada pela graça acima do céu se deixa enganar, inclina-se para o que a faz cair, para as coisas terrestres, para a composteira, enchendo-se de mau odor. Quem não se espantaria com minha infelicidade e não choraria por mim, pedindo em sua piedade a Deus, que ama o homem inefavelmente, para que me conceda um maior poder divino por meio do Espírito vivificante que espalha a luz, para que eu escape mais facilmente ao diabo ardiloso e ao inimigo maligno, para que eu siga em minha vida santa e maravilhosa? Todos os sábios anjos e todas as almas dos justos, rezem por mim a Deus, por mim que vivo na insensibilidade do intelecto e na baixeza. 83. Meu Deus, meu Deus, nada á maior do que você, que não tem limites. Você carrega em si o todo, pois é o Criador do universo. Você está infinitamente acima de tudo, por ser mais alto do que o ser. Senhor, meu Senhor, santa união indizível, sopro inefável concedido aos cristãos de quem você tem piedade, eu lhe dou glória. Como, Mestre, vendo-o eu brilhar em meu coração dia e noite, não fico todo o tempo fora de mim sob o transbordamento da graça? Como posso ser negligente e insensível diante da imensidão de tal dom, Deus todo-poderoso? Oh, quão pecador eu sou! Se você soubesse quem foi que me consagrou, e por quem e a quem minha vida foi consagrada, em seu arrebatamento você celebraria a obra do Deus mais alto que o ser, rendendo-lhe graças no mais alto grau pelas coisas gloriosas que ele fez em sua bondade, além de toda medida. Porém, se, antes mesmo de declarar seu maravilhamento, você compreendeu o quanto eu estou longe do verdadeiro mistério que existe em Cristo, você conhecerá minha irresponsabilidade, minha pesandez, minha negligência, para não dizer minha insensibilidade e minha manifesta loucura. Naquele tempo, Jesus disse: “Eu o louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque você escondeu estas coisas aos sábios e aos inteligentes, mas as revelou às crianças. Ouve, Pai, eu o louvo porque você quis
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assim[349]”. Ore, peça que nos seja concedido nada experimentar que vá contra o amor pela sabedoria. Tanto nas aflições da vida como nas coisas de Deus, e para nada fazer que seja indigno dos dois. E me perdoe.
[1] Salmo 62 (63): 9 [2] Cf. João 4: 14. [3] João 4: 14. [4] Inácio de Antioquia, Cartas, Aos Romanos VII, 2. [5] Cf. I Coríntios 3: 2. [6] Cf. Gálatas 4: 6. [7] Salmo 45 (46): 11. [8] Cf. Gênesis 2: 8. [9] Cf. Gênesis 2: 6. [10] João 4: 14. [11] Romanos 5: 5. [12] Cf. Isaías 11: 2. [13] Cf. I Pedro 4: 8. [14] Cf. I Reis 18: 40. [15] Cf. Números 25: 8. [16] Gálatas 5: 22. [17] Romanos 11: 8. [18] Cf. Êxodo 17: 6. [19] Cf. I Coríntios 10: 4. [20] Cf. João 3: 8. [21] João 7: 38. [22] João 7: 39. [23] Cf. Gênesis 2: 7. [24] Cf. João 15: 5. [25] Cf. Salmo 48 (49): 13. [26] Cf. Salmo 106 (107): 10. [27] Salmo 42 (43): 3. [28] Cf. João 20: 22. [29] Cf. Gálatas 5: 22. [30] Cf. II Coríntios 5: 15. [31] Cf. Mateus 9: 20s. [32] Cf. Marcos 1: 30s. [33] Cf. Eclesiastes 24: 12-13. [34] Eclesiastes 24: 16. [35] Eclesiastes 24: 15. [36] II Coríntios 2: 16. [37] Cf. Gálatas 5: 22. [38] Cf. Mateus 5: 8.
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[39] Cf. Efésios 1: 14. [40] Isaac o Sírio, Obras espirituais, pg. 91. [41] Ibid. [42] Máximo o Confessor, Sobre o Amor II, 3; II, 47; IV, 15, 80 e 86. [43] Cf. João 4: 24. [44] Cf. I Timóteo 2: 4. [45] Cf. João 14: 2. [46] Cf. Isaías 9: 5. [47] Cf. João 4: 24. [48] João 6: 33. [49] Cf. Salmo 93 (94): 10. [50] Cf. I Tessalonicenses 5: 17. [51] Atos 1: 8. [52] João 14: 26. [53] Cf. I Coríntios 12: 8-9. [54] Cf. I Coríntios 12: 11. [55] João 15: 5. [56] Mateus 23: 8-10. [57] João 14: 16. [58] Cf. I Coríntios 12: 8-9. [59] Hebreus 4: 16. [60] Gênesis 12: 1. [61] Marcos 10: 21. [62] Cf. Salmo 50 (51): 14. [63] Lucas 11: 20. [64] Mateus 12: 28. [65] Êxodo 8: 15. [66] Cf. Mateus 5: 5; Salmo 36 (37): 11. [67] Cf. I Coríntios 12: 3. [68] Cf. Salmo 35 (36): 10. [69] Cf. I Coríntios 1: 29. [70] Cf. Isaías 58: 5. [71] Cf. Efésios 4: 10. [72] Salmo 130 (131): 1-2. [73] Jeremias 1: 8. [74] Salmo 102 (103): 10. [75] Efésios 2: 5. [76] Cf. Salmo 118 (119): 128. [77] Efésios 4: 13. [78] Cf. Isaías 40:23; 26: 7. [79] Salmo 103 (104): 2. [80] Cf. Salmo 103 (104): 32. [81] João 4: 42. [82] João 20: 25. 28. [83] Cf. II Coríntios 3: 18. [84] Cf. Jó 4: 12. [85] Cf. João 20: 29. [86] Cf. Salmo 83 (84): 6. [87] Salmo 103 (104): 24. [88] Salmo 86 (87): 3.
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[89] Cf. Isaías 9: 6. [90] Cf. Isaías 10: 23. [91] I Coríntios 13: 13. [92] “É em Cristo que habita, em forma corporal, toda a plenitude da divindade.” (Colossenses 2: 9) [93] I Coríntios 6: 17. [94] Cf. I Coríntios 14: 19. [95] Cf. João 1: 3. [96] Cf. Colossenses 1: 15. [97] Cf. Hebreus 1: 3. [98] Cf. João 16: 15. [99] Cf. João 14: 10. [100] Cf. João 1: 14. [101] Cf. João 1: 16. [102] Cf. Efésios 2: 17. [103] Cf. Efésios 2: 15. [104] Cf. Colossenses 1: 20. [105] Cf. Efésios 2: 6. [106] Gênesis 22: 17. [107] Gálatas 3: 7. [108] Cf. Gênesis 16: 1-2; Gálatas 4: 22. [109] Gênesis 21: 12; cf. Hebreus 11: 18. [110] Cf. Isaías 9: 6. [111] Cf. Salmo 35 (36): 7. [112] Cf. Romanos 11: 33. [113] Cf. Gênesis 12: 3. [114] Cf. Êxodo 33: 18s. [115] Cf. I Reis 5: 9. [116] Cf. Colossenses 2: 9. [117] Cf. I Colossenses 2: 3. [118] Salmo 145: 1. [119] Cf. João 3: 16. [120] Salmo 91 (92): 6. [121] Cf. Isaías 6: 1. [122] Salmo 32 (33): 11. [123] Cf. Isaías 14: 26-27. [124] Salmo 89 (90): 11. [125] Cf. Salmo 138 (139): 6. [126] Cf. Efésios 1: 3. [127] Cf. Efésios 2: 6. [128] Cf. Efésios 1: 21. [129] Romanos 8: 17. [130] Provérbios 9: 4-5. [131] Cf. Gálatas 3: 27. [132] Cf. Romanos 8: 29; Filipenses 3: 21. [133] Cf. Romanos 8: 17. [134] Cf. Colossenses 1: 24. [135] Cf. Salmo 111 (112): 1. [136] Salmo 31 (32): 7. [137] Salmo 2: 11. [138] Cf. Atos 9: 15.
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[139] Cf. II Coríntios 12: 2-4. [140] Cf. I Coríntios. [141] Salmo 96 (97): 10. [142] Cf. Juízes 3: 3. [143] João 1: 1. [144] Atos 9: 15. [145] Cf. II Coríntios 12: 4. [146] No original falta o capítulo 49.
[147] Cf. Cânticos 5: 2. [148] Cf. I Coríntios 13: 7. [149] Cf. Salmo 131 (132): 4-5. [150] Eclesiastes 10: 4. [151] Marcos 14: 15. [152] Cf. João 14: 31.
[153] Cf. Mateus 5: 3. [154] Cf. Lucas 10: 41. [155] Cf. Lucas 10: 42. [156] Cf. I Coríntios 13: 12. [157] Cf. II Coríntios 5: 7. [158] I Coríntios 13: 12. [159] I Coríntios 13: 10. [160] I Coríntios 9: 26. [161] Realidade fundamental (hypokeimenon): designa o que é inerente à hipóstase, ao fundamento
do criado, à pessoa.
[162] Juízes 13: 22. [163] Números 12: 8. [164] “Ele cresceu como broto na presença de Javé, como raiz em terra seca. Ele não tinha aparência nem beleza para atrair o nosso olhar, nem simpatia para que pudéssemos apreciá-lo.” (Isaías 53, 2-3)
[165] Cf. Lucas 22: 33. [166] Cf. Salmo 44 (45):3. [167] Ibid. [168] Salmo 29 (30): 8. [169] Salmo 26 (27): 9. [170] Salmo 50 (51): 11. [171] I Coríntios 9: 26. [172] Cf. Salmo 104 (105): 4. [173] Salmo 16 (17): 15 [174] Questões a Thalassius, 16. [175] São Basílio, Grande Regra, 2 [176] Homilia sobre o Salmo 44. [177] Cf. II Coríntios 10: 6. [178] Êxodo 33: 13. [179] Cf. II Coríntios 5: 7. [180] Cf. I Coríntios 13: 10. [181] Cf. I Coríntios 2: 9. [182] Salmo 121 (122): 3-4. [183] Cf. Isaías 28: 16. [184] Cf. Êxodo 19: 13. [185] Cf. II Macabeus 1: 20s. [186] Cf. Salmo 50 (51): 19. [187] Cf. João 7: 38. [188] Cf. Josué 2: 18.
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TII, IV – CALIXTO, O PATRIARCA – Capítulos sobre a oração.
[189] João 14: 23. [190] Salmo 121 (122): 4. [191] Cf. Orígenes, Tratado dos Princípios IV, 3, 8; Nicolas Cabasilas, A vida em Cristo III, 24. [192] Cf. Gênesis 11: 1-9. [193] Cf. I Coríntios 2: 9. [194] Jó 1: 3. [195] Cf. Malaquias 3: 20. [196] Cf. João 1: 13. [197] Cf. I Coríntios 12: 27. [198] Cf. Efésios 3: 6. [199] Cf. II Pedro 1: 4. [200] Cf. Efésios 1: 13. [201] Cf. Apocalipse 4: 4. [202] Cf. II Coríntios 3: 18. [203] Cf. Jó 1: 3. [204] I Pedro 4: 11. [205] Cf. Eclesiastes 3: 7. [206] Salmo 74 (75): 9. [207] Cf. I João 3: 2. [208] Cf. I Coríntios 13: 9. [209] Salmo 35 (36): 9. [210] Cf. Lucas 12: 37. [211] Cf. Mateus 26: 29. [212] Salmo 33 (34): 9. [213] Salmo 74 (75: 9. [214] Salmo 22 (23): 5. [215] Salmo 22 (23): 6. [216] Salmo 91 (92): 5. [217] Salmo 74 (75): 9. [218] Cf. Salmo 22 (23): 5. [219] Salmo 71 (72): 18. [220] Cf. Filipenses 4: 7. [221] Salmo 81 (82): 6. [222] João 3: 6. [223] João 1: 13. [224] Cf. Gênesis 1: 26. [225] Cf. Lucas 12: 19. [226] Cf. Salmo 37 (38): 9. [227] Cf. Salmo 68 (69): 3. [228] Cf. Salmo 31 (32): 4. [229] Salmo 34 (35): 3. [230] Cf. Salmo 17 (18): 36. [231] Cf. Salmo 3: 8. [232] Cf. Salmo 16 (17): 8. [233] Cf. Gênesis 18: 27. [234] Salmo 143 (144): 4. [235] Salmo 89 (90): 4. [236] Salmo 135 (136): 5. [237] O batismo (anaplasis) [238] Cf. João 3: 17.
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TII, IV – CALIXTO, O PATRIARCA – Capítulos sobre a oração.
[239] Cf. Salmo 102 (103): 10. [240] Cf. Salmo 102 (103): 12. [241] Cf. I Coríntios 2: 15. [242] Cf. I Coríntios 2: 14. [243] Cf. Gênesis 49: 1ss. [244] Cf. Isaías 53: 7. [245] Cf. Isaías 53: 2. [246] Cf. Mateus 23: 3-7. [247] Cf. Tiago 4: 5. [248] Cf. Apocalipse 1: 7. [249] Cf. Zacarias 12: 10. [250] Sabedoria 5: 4-5. [251] I Coríntios 6: 3. [252] Cf. I Coríntios 2: 15. [253] Cf. João 14: 17. [254] Romanos 8: 9. [255] I Coríntios 2: 12. [256] João 16: 13. [257] Cf. Isaías 11: 2. [258] Cf. Salmo 50 (51): 14. [259] Cf. Salmo 50 (51): 12. [260] Cf. João 14: 17. [261] Cf. Isaías 4: 4. [262] I Coríntios 2: 11. [263] Cf. I Coríntios 2: 10. [264] Cf. I Coríntios 1: 30. [265] Cf. João 14: 6. [266] Cf. Mateus 9: 15. [267] Cf. Marcos 7: 2 [268] Cf. Mateus 23: 26. [269] João 7: 24. [270] Cf. Mateus 7: 5. [271] Cf. Salmo 105 (106): 2s. [272] João 8: 15. [273] João 5: 22. [274] Cf. II Coríntios 6: 16. [275] Cf. Salmo 33 (34): 14. [276] Cf. I Coríntios 4: 5. [277] Cf. Deuteronômio 32: 9. [278] Cf. Êxodo 1: 8-11. [279] Cf. Êxodo 3: 10. [280] Cf. João 1: 14. [281] Cf. Êxodo 7: 9-20 e 8: 2s. [282] Cf. Mateus 27: 32. [283] Cf. Êxodo, 7: 12. [284] Cf. Êxodo,12: 35-36. [285] Cf. Êxodo,13: 21. [286] Cf. Êxodo,14: 28. [287] Gênesis 1: 1. [288] João 1: 1.
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TII, IV – CALIXTO, O PATRIARCA – Capítulos sobre a oração.
[289] Gênesis 1: 26. [290] João 1: 14. [291] Gênesis 1: 26. [292] João 1: 16. [293] Gênesis 1: 3. [294] II Coríntios 4: 6. [295] Salmo 62 (63): 9. [296] Habacuque 3: 1-2. [297] Cânticos 2: 14. [298] Jó 42: 5. [299] Cf. João 1: 6. [300] Cf. Malaquias 3: 20. [301] João 1: 14. [302] II Coríntios 4: 6. [303] I João 1: 1. [304] Cf. Gálatas 3: 27. [305] Cf. Isaías 61: 10. [306] Cf. Cânticos 1: 3. [307] Cânticos 1: 12. [308] Cf. II Coríntios 2: 15. [309] Cf. João 6: 55. [310] Salmo 33 (34): 9. [311] Cf. Mateus 5: 3. [312] Cf. Salmo 21 (22): 27. [313] Salmo 21 (22): 27. [314] Provérbios 9: 5. [315] João 6: 35. [316] Jeremias 2: 13. [317] Cf. Mateus 26: 26s. [318] Cf. Colossenses 1: 16. [319] Cf. II Coríntios 6: 16; citando Levítico 26: 11s. [320] Cf. Isaías 66: 1. [321] Cf. Daniel 7: 10. [322] II Coríntios 4: 6. [323] Cf. Romanos 5: 5. [324] Cf. Gálatas 4: 6. [325] Cf. I Coríntios 6: 17. [326] Cf. Romanos 5: 5. [327] Cf. II Pedro 1: 4. [328] Cf. I Coríntios 2: 9. [329] João 3: 6. [330] Salmo 81 (82): 6. [331] Salmo 148: 6. [332] Salmo 134 (135): 6. [333] Salmo 32 (33): 11. [334] Cf. Isaías 9: 6. [335] Cf. João 20: 22. [336] Cf. Romanos 8: 14. [337] Cf. Mateus 6: 9. [338] Deuteronômio 32: 11.
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TII, IV – CALIXTO, O PATRIARCA – Capítulos sobre a oração.
[339] Salmo 79 (80): 2. [340] Salmo 98 (99): 1. [341] Salmo 17 (18): 11. [342] Deuteronômio 32: 11. [343] Cf. Eclesiastes 2: 18. [344] Romanos 11: 36. [345] Cf. II Coríntios 6: 16. [346] João 15: 4. [347] Cf. João 15: 5. [348] João 15: 5. [349] Mateus 11: 25-26.
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CALIXTO TELIKOUDES Calixto Telikoudes (cujo nome significa “realização”), também chamado de Angelikoudes (o “angélico”), é conhecido por haver vivido durante a segunda metade do século XIV num pequeno mosteiro da Macedônia, talvez sob a autoridade de Gregório o Sinaíta – com certeza, sob a de Nicéforo. Este curto texto sobre a prática hesiquiastas, retirado de seus Trinta Discursos, revela-o como um testemunho de última hora, fiel, embora apagado, aberto ao porvir absoluto, que transmite como nunca o inventário condensado da experiência monástica. Calixto Telikoudes começa por explicar o duplo movimento que preside a vida do monge: em primeiro lugar, o retiro, que conduz à purificação, por meio do arrependimento, da anacorese e da hesíquia; depois a obra aberta e pacífica, por meio da qual o intelecto, desfrutando “da beleza mais alta que o mundo” se torna “o lugar do amor de Deus”. Enfim, ele sublinha a permanência obrigatória deste duplo movimento. O estado monástico – estado de solidão ofertada à comunhão – implica a um tempo a humildade e a confiança, a ascese da hesíquia (as privações, a salmodia, a leitura, o trabalho manual), alimentando sem descanso e protegendo da acídia isto que Calixto denomina “o outro cume”: a prece do coração. “Que em tudo o que você fizer em nome de Deus, de aurora a aurora, esteja em primeiro lugar a prece”. Calixto lembra então as condições e as modalidades desta oração (o coração manso e humilde e o amor de Cristo, o “paraíso de amor”), de que este texto simples, de pura transparência, que não retira nem acrescenta nada à milenar tradição hesiquiasta, oferece uma última imagem sucinta e clara.
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TII, IV – CALIXTO TELIKOUDES –Sobre a prática hesiquiasta.
SOBRE A PRÁTICA HESIQUIASTA Não é possível arrepender-se sem a hesíquia. Também não é possível alcançar a pureza sem a anacorese. Não podemos ao, mesmo tempo, encontrar e conviver com os homens e sermos julgados dignos de encontrar e de contemplar a Deus. Assim, é aos que desejam se arrepender de suas faltas e se purificar das paixões, que é concedido desfrutar do encontro e da contemplação de Deus. Estes são o fim e o objetivo dos que levam sua vida em Deus, e tais são, se posso dizê-lo, as garantias da herança eterna de Deus, que recém aqueles que, por todos os meios, buscam a hesíquia. Eles são, para seu próprio bem, levados a se retirar para a solidão e a fugir dos homens. Isto é tudo o que lhes pede seu estado de alma. O começo dessas coisas se dá através do luto e da tristeza, da vergonha e da condenação de si mesmo, assumida através da hesíquia, a fim de alcançar a pureza. Depois vêm as vigílias, as horas passadas em pé em oração, a temperança, as penas corporais, que finalmente conduzem às lágrimas, que correm dos olhos devotados à humildade, na compunção do coração. Assim é que a purificação se aproxima. É por meio destas ações que chegamos a ela, que levamos enfim a paz aos nossos pensamentos, enquanto as lágrimas correm, conforme foi dito. E é então que o intelecto começa por si próprio a examinar a natureza dos seres, a buscar a arte de Deus, a conceber pensamentos divinos, a contemplar o poder, a sabedoria, a glória, a bondade e os demais atributos de Deus. Ele começa a trabalhar e se aproxima dos segredos da Escritura. Ele prova dos bens espirituais. Ele desfruta da beleza que está acima do mundo. Ele se torna o lugar do amor de Deus. Ele é arrebatado. Ele se regozija e exulta por se elevar ao cume das virtudes, ao amor do Criador do universo. Daí por diante ele cessa de trazer em si ou de temer o erro: ele pode escorregar eventualmente ou sofrer os impulsos pecadores e as desordens que lhe são impostos por diferentes razões, por que permanece sujeito à mudança. Nestes momentos, ele deve retornar sobre si mesmo e se manter longe do desespero. Ele deve se elevar em direção ao divino que dispensa o amor ao homem, sobre as asas da esperança, deve se entregar às lágrimas, à oração e aos outros bens de que falamos, e, na medida em que lhe for possível, desfrutar das delícias do divino Paraíso do amor; e não ver mais nada, nem imagem, nem volume, nem forma, nada além das lágrimas, da paz dos pensamentos e do amor a Deus. É assim que é possível se guardar de todo erro e adquirir a salvação da alma. Pois então a alma se torna modesta, sóbria e vigilante, e orante em Jesus Cristo nosso Senhor. Quando você estiver sentado em sua cela, que seu intelecto se confie a Deus com toda humildade. Que ele se mostre humilde, por conta de sua baixeza, de sua vacuidade. Mas que tenha confiança, por causa do amor e da paciência incomensuráveis de Deus pelo homem. Pois é assim que a alma honra a Deus: embora sabendo-se pecadora, ela se confia ao amor que Deus tem pelo homem e se agarra a ele. É por isso que são Paulo ordenou: “Aproximemo-nos com confiança do Trono da graça[1]”. A confiança em Deus é verdadeiramente o fulcro da oração, como que suas asas, como que uma segunda natureza. Mas não se deve pensar que nos confiamos a Deus por sermos bons: afastemos de nós tal disposição. É pelo pensamento do amor e da paciência de Deus, de seu inefável amor pelo homem, que subimos com sobre asas em direção à esperança divina. Portanto, ore com um coração humilde, oferecendo sua vida com toda confiança, nutrido da boa esperança em Deus, como dissemos, em nosso Senhor Jesus Cristo. É preciso procurar sempre e atentamente as coisas que acalmam o corpo e que livram o intelecto da perturbação. Ou seja: comer moderadamente, beber pouco, não dormir demais, permanecer acordado tanto quanti possível, ajoelhar-se quando puder, manter-se humilde, vestir-se com simplicidade, falar sobriamente e somente se necessário, dormir no chão duro e outras coisas que submetem o corpo. Também é bom buscar as coisas que despertam o intelecto e que contribuem para nossa ligação com Deus: a leitura refletida das Escrituras e dos Santos que as interpretaram, a salmodia compreendida, o estudo das
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TII, IV – CALIXTO TELIKOUDES –Sobre a prática hesiquiasta.
palavras da Escritura e das maravilhas que podemos contemplar na criação, enfim, a oração que nossa boca pronuncia até que a santa graça do Espírito a faça subir ao coração. A partir daí virá o tempo de uma nova festa, o tempo de uma nova celebração, não mais dita pela boca, mas realizada pelo coração, no Espírito. Veja agora como buscar essas coisas: ajoelhe-se sempre que puder e permaneça em oração. Quando você sentir a acídia depois de muito orar, dedique um tempo à leitura, e depois retorne à oração. Se a acídia voltar, levante-se, salmodie um pouco e depois volte a rezar. Se ela mais uma vez ressurgir, consagre-se ao estudo como dissemos, e em seguida retorne à oração. Enfim, para impedir toda forma de acídia, santo irmão, você deverá trabalhar um pouco com as mãos, conforme ensinaram os Padres. Que em tudo o que você fizer em nome de Deus, de aurora a aurora, a prece seja a primeira. Todo o resto só tem como função remediar a acídia que acompanha a oração. Mas quando a piedade de Deus socorre a alma e a graça do Espírito faz jorrar a prece do coração como de uma fonte, então o intelecto já não se consagra mais senão à prece e à contemplação, ele se desliga de tudo e sua única delícia consiste na prece e na contemplação no paraíso do amor de Deus. A prece tem poder sobre todas as boas obras. É ela que engendra as lágrimas do arrependimento. Não considerando senão a Deus, que é a paz suprema, ela contribui grandemente para a paz do pensamento. É ela que faz nascer em nós o amor a Deus. Somente ela purifica a razão da alma, contemplando a Deus que suscita a purificação dos próprios anjos. Ela guarda puro o desejo que conduz a alma a Deus. Confiandose a Deus infinita e sobrenaturalmente belo e bom, entretendo-se apenas com ele, ela se liga a ele com todo seu desejo. Enfim, ela acalma de tal maneira o ardor que este cai, invoca e clama por Deus, e leva a alma à humildade prosternando-se diante dele. Pois ninguém que ore e invoque a Deus pode ter um coração orgulhoso e irascível. É por isso que, numa palavra, a santa prece purifica e corrige todas as potências da alma, todas as energias da ação e da reflexão, em especial quando, através de uma vida dedicada à hesíquia e uma conduta como a que mencionamos, a alma se une à contemplação de Deus e ao eros divino que a acompanha. Que seu pensamento, voltando-se para seu interior, fixe sua meditação e sua visão no lugar do coração de onde provêm as lágrimas, quando você orar tanto quanto quando respirar o ar, e que lá ele permaneça sempre que possível. Isto constitui um grande auxílio e uma fonte de lágrimas abundantes e contínuas, libertando o intelecto de seu cativeiro, dispensando a paz, suscitando a prece intelectual e contribuindo, com Deus, à descoberta da prece do coração, pela graça do Espírito vivificante em nosso Senhor Jesus Cristo. É importante saber. Assim como o contemplativo, aquele que vê o que está oculto e que desfruta disto tem duas naturezas (ele é ao mesmo tempo Deus e homem), da mesma forma como, falando no geral ou em particular, ele tem dois modos (as aflições, seguidas das lágrimas). Aflições e lágrimas diferem muito entre si, mesmo sendo boas as duas, dadas por Deus e portadoras da bem-aventurança divina e da herança por ela concedida. As primeiras têm sua origem no temor a Deus e nos sinais do luto; as outras, no amor divino e no próprio Deus. As primeiras não conduzem diretamente ao regozijo, mas as últimas suscitam uma alegria imensa. As primeiras ocorrem aos noviços, as segundas àqueles que pela graça alcançaram a perfeição. A hesíquia é feita de cinco obras: a prece (ou seja, a lembrança contínua de Jesus, introduzida no coração por meio da respiração, na ausência de qualquer pensamento) à qual chegamos por meio da mais ampla temperança, a do ventre, do sono e de todos os sentidos, permanecendo humildemente em nossa cela; a salmodia parcial, a leitura dos Evangelhos e dos Padres divinos, de seus capítulos sobre a oração, em especial os do Novo Teólogo, de Hesíquio e de Nicéforo; a meditação sobre o Juízo de Deus, ou a lembrança da morte e daquilo que está implicado nela; algum trabalho manual; depois dobrar-se novamente à oração, por mais obrigado que pareça, até que o intelecto, pela lembrança do Senhor e a descida contínua ao esforço do coração, se habitue a rejeitar por si próprio toda agitação. Tal é a obra dos
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TII, IV – CALIXTO TELIKOUDES –Sobre a prática hesiquiasta.
monges noviços que desejam viver na hesíquia, e por isso estes monges não devem sair muito de suas celas, mas evitar entreter-se com outros, mesmo vê-los, salvo se absolutamente necessário, e mesmo assim com atenção e prudência, e raramente. Pois estas coisas provocam dispersão não apenas entre os noviços, mas inclusive entre os mais avançados. A prece se liga à atenção, que deve cortar todo pensamento. Ao dizer “Senhor Jesus Cristo Filho de Deus” o intelecto se volta para o Senhor lembrando-se dele de maneira imaterial e silenciosa. Ao dizer “tenha piedade de mim” ele se volta para si mesmo. O intelecto não pode deixar de pedir por si mesmo. Tendo avançado no amor, ele tende para o próprio Senhor, na união, por experiência; depois do segundo apelo ele recebe a plena certeza. É por isso que os Padres nem sempre nos transmitem aparentemente a oração inteira. Um nos dá a prece inteira, como João Crisóstomo. Outro diz simplesmente “Senhor Jesus”, como Paulo, que acrescentava: “no Espírito Santo[2]”. Com efeito, o coração ora quando recebe a energia do Espírito Santo. Isto é próprio dos mais avançados, mas ainda não é o cume, que é a iluminação. João Clímaco disse: “Flagele os adversários com o nome de Jesus. Pois o nome de Jesus está ligado à sua respiração[3]”. Ele não acrescenta nada mais. Mesmo aos noviços é permitido seja dizer todas as palavras da oração, seja não dizer mais do que uma parte em espírito, como mencionamos. Mas não se deve mudar constantemente, para não cair na divisão. É preciso manter-se ligado ao método que descrevemos: o caminho da prece pura. Se os pensamentos e as presunções que impedem a oração não a desviam, aquele que combate alcança um estado de ser em que consegue orar com toda liberdade, mantendo o intelecto no coração. No momento da inspiração o intelecto não força sua entrada no coração para logo sair: ele aí permanece como se estivesse em casa, e aí ele ora. É a prece do coração, e por isso é assim chamada. Ela é precedida no coração por um certo calor, que expulsa tudo o que poderia impedir a prece pura de se realizar completamente. Assim o intelecto permanece e ora livremente dentro do coração. É no seio deste calor e por meio desta prece que o amor pelo Senhor Jesus – de quem nos lembramos – nasce no coração, de onde correm as doces lágrimas que fazem jorrar em abundância o desejo de Jesus, quando o guardamos na memória. Mas para que um homem seja considerado digno de todas essas coisas e de outras que as acompanham (das quais não falaremos agora) ele precisa se esforçar, com a lembrança de Jesus, mantendo diante dos olhos o temor a Deus dentro de seu coração e não simplesmente fora, a fim de escapar sem esforço não apenas às más obras, mas aos pensamentos passionais, chegando assim à plena certeza de que Deus o ama. Mas que ele não busque a manifestação de Deus, a fim de não receber aquele que é feito de trevas e se disfarça de luz. Com efeito, quando, sem procurar, seu intelecto encontra uma luz, que não a acolha nem a recuse, mas interrogue aquele que tem o poder de lhe ensinar. E que assim aprenda a verdade. Se ele encontrou a quem o ensine, não apenas por ter aprendido nas Escrituras, mas por ter recebido pessoalmente a luz em toda beatitude, graças sejam dadas a Deus. Caso contrário, é melhor não receber a visão, mas recorrer a Deus humildemente, considerando a si próprio como indigno de tal contemplação, como fizeram os Padres e no-lo ensinaram. Em diversos escritos eles falaram dos sinais da iluminação real e da iluminação ilusória. Mas assim como é preciso ter escutado de viva voz todas as coisas que dissemos, também é preciso ouvir estas últimas coisas a seu tempo. E aqui não é o momento. Ao mesmo tempo que destas coisas e antes de tudo, é preciso agora instruir-se a respeito do seguinte: assim como alguém que quer aprender a atirar com arco não o estira sem ter um alvo, também o que pretende viver na hesíquia deve ter como alvo ser sempre manso de coração. Ele próprio jamais irá se preocupar com nada, nem nada irá preocupá-lo, senão aquilo que diz respeito à piedade. Esta é uma coisa fácil de alcançar se nos separamos de tudo e se nos calamos com mais frequência. E se mesmo então cometermos alguma falta, devemos nos arrepender imediatamente, condenando-nos, e nos colocarmos atentos para invocar antes de tudo a Jesus na hesíquia e com uma consciência pura, conforme já dissemos, para obtermos avançando no caminho sua graça divina que repousa na alma, e não apenas isto, mas ainda
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TII, IV – CALIXTO TELIKOUDES –Sobre a prática hesiquiasta.
termos a alma em repouso longe dos demônios e das paixões que antes a perturbavam, e que ela se regozije com uma alegria inefável. Pois ainda que ela venha a se turbar, os demônios não poderão agir: ela não está mais ligada a eles, nem deseja o prazer que eles oferecem. Todo o desejo do homem que alcançou este estado está voltado para o Senhor que lhe concede sua graça. Assim é que o Senhor já não o abandona, embora permita que ele seja combatido. Por que? Para que seu intelecto não se encha de orgulho com aquilo que encontrou de bom. Ser combatido o mantém constantemente humilde. E somente a humildade não apenas lhe permite vencer os orgulhosos que o combatem, como ainda ser sempre considerado digno dos maiores dons, que também nós recebemos de Cristo que se rebaixou por nós[4] e que dispensa aos humildes sua graça em abundância[5], agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém.
[1] Hebreus 4: 16. [2] I Coríntios 12: 3. [3] Cf. A escada santa XX, 7 e XVII, 62. [4] Cf. Filipenses 2: 8. [5] Cf. Tiago 4: 6.
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TII, IV – CALIXTO TELIKOUDES –Sobre a prece e a atenção.
SOBRE A PRECE E A ATENÇÃO Estes extratos dos Padres, publicados sem nome de autor, são talvez devidos ao mesmo Calixto Telikoudes. Em todo caso, no corpo da antologia, eles estão na sequência da “prática hesiquiasta”. À primeira vista é a mesma demonstração e a mesma exortação: impossível “voltar o olho livremente para a luz” sem a dupla ascese do corpo e do intelecto. Uma só necessidade: pela temperança, pela vigilância, revestir o homem interior, “viver para Deus”, fazer do corpo a “moradia da alma”, aí “recolher o intelecto” e alcançar assim o “céu do coração onde habita Cristo”. Donde, por meio da prece, uma atenção em todos os instantes: “sempre observar o presente para nele encontrar a beleza”. A inteligência, desembaraçada do sensível, se torna “semelhante a uma safira celeste”. Do despojamento das paixões à visão da luz eterna temos aqui como que uma ilustração do testemunho de Calixto Telikoudes: um breve resumo, fiel e incisivo, da via hesiquiasta.
Sobre a prece e a atenção. Todo o esforço da ascese deve focar este ponto: quer a altura da alma não seja derrubada pela revolta dos prazeres. Pois como uma alma que se liga ao que está embaixo pelo prazer da carne poderá lançar um olhar livre para a luz inteligível à qual é aparentada? É por isso que, antes de tudo, é preciso ser temperante: a temperança guarda em lugar seguro a castidade. O intelecto que nos guia não deve se deixar absorver por pensamentos impuros. É, assim necessária a vigilância do homem interior, se quisermos que o intelecto não se perca em divagações, mas que se mantenha firme no objetivo da glória de Deus, a fim de escapar ao julgamento do Senhor que disse: “Infelizes de vocês, por que se assemelham a sepulcros caiados, que por fora parecem belos mas que por dentro estão cheios de ossos dos mortos e de todo tipo de impureza. Por fora vocês parecem justos perante os homens, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e iniquidade[1]”. É por isso que, pelo coração, a palavra e a ação, devemos conduzir um grande e justo combate, a fim de não recebermos em vão a graça de Deus[2]. Mas, assim como a cera é modelada pela arte do escultor, também nosso homem interior é modelado pelos ensinamentos de nosso Senhor Jesus Cristo. Então podemos realizar com nossas ações a palavra de Paulo, que disse: “Vocês se despojaram do homem velho e de suas obras e se revestiram do homem novo, que se renova no conhecimento, à imagem de seu Criador[3]”. Ele chama de homem velho a todos os nossos pecados e manchas. Devemos nos revestir do homem interior, como sinal de vida nova[4], até a morte, para que possamos dizer em verdade: “já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim[5]”. Portanto, é preciso muita atenção, muita vigilância para não faltar com nenhum dos deveres de que falamos, quando cumprimos os mandamentos. Pois senão não apenas seríamos privados de tamanha recompensa, como ainda tombaríamos sob o golpe de temíveis ameaças. Quando o diabo espalha suas armadilhas e, com grande violência, envia como se fossem flechas incendiárias[6] os pensamentos que ele secreta de si mesmo contra a alma que vive na hesíquia e na calma, quando ele se abrasa subitamente, quando ele prolonga indefinidamente e torna insolúvel a lembrança daquilo que algum dia foi lançado em nosso espírito, é preciso escapar a estas armadilhas por meio de uma sobriedade e de uma atenção ainda mais intensas, como um atleta que, com a defesa precisa e a velocidade de seu corpo consegue iludir os desígnios de seus adversários. Enfim, por meio da prece e da invocação da aliança do alto, é preciso deter a guerra e desviar as flechas. É o que Paulo nos ensinou quando disse: “Tomem sobre vocês o escudo da fé...[7]”.
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TII, IV – CALIXTO TELIKOUDES –Sobre a prece e a atenção.
Quando a alma relaxa o rigor e o ardor da reflexão e começa a rememorar ao acaso tudo o que já lhe aconteceu, então o pensamento, longe de qualquer educação ou ciência em relação às coisas das quais ela se lembra, é absorvido por elas e, divagando mais e mais, acaba por cair em pensamentos infames e absurdos. É preciso corrigir esta negligência e este despedaçamento da alma por meio de uma tensão mais rigorosa e mais vigilante da reflexão, é preciso fazer com que a alma retorne sobre si mesma, e lhe dar sempre o presente para considerar, para que nele ela veja a beleza. Quer esteja numa praça pública, quer participe de uma festa, quer esteja sobre uma montanha, ou no campo, ou no meio de uma multidão, o filósofo justo faz de seu corpo o lugar de sua meditação e permanece seguro em sua alma, ele se mantém fundamentado em si mesmo como em seu mosteiro natural, recolhendo aí seu intelecto e pensando com toda sabedoria naquilo que lhe convém. Pois pode acontecer que aquele que permanece sentado em sua cela, mas que é negligente, deixe seus pensamentos errando por aí, e que o que está na praça pública, mas é sóbrio e vigilante, esteja como que no deserto, voltado para si e apenas para Deus, com os sentidos trancados às perturbações que, por intermédio das coisas sensíveis, assaltam sua alma. Assim, é preciso que aquele que se aproxima do Corpo e do Sangue de Cristo em sua memória[8], em memória dele que morreu por nós e que ressuscitou[9], se purifique de toda mancha da carne e do espírito[10], para não comer e beber de sua própria condenação[11]. E ainda será preciso claramente que ele seja o signo do julgamento Daquele que morreu por nós e ressuscitou, não apenas purificando-se de todo pecado, mas morrendo para o pecado, para o mundo e para si mesmo, e vivendo apenas para Deus[12]. Dentre os maus pensamentos, alguns não chegam a atingir a alma, se nos protegermos. Outros nascem e germinam em mós, quando somos negligentes: se nos prevenimos, eles logo se afogam e desaparecem. Outros enfim, quando perseveramos na negligência, nascem e crescem, nos conduzem às más ações e alteram toda a saúde da nossa alma. A beatitude consiste em não receber nenhum mau pensamento; depois, em rejeitar os pensamentos logo que eles entram e não aceitar que permaneçam em nós daí para frente, a fim de que eles cessem de produzir o mal. Mas ainda que sejamos sempre negligentes, o amor que Deus tem pelo homem pode corrigir esta negligência. Sua inefável bondade pode preparar inúmeros remédios para essas feridas. Assim é que eu lhe peço, enquanto você viver num corpo, não relaxe seu coração. Com efeito, assim como o cultivador não pode jamais estar certo dos frutos que surgirão no seu campo, por que ele não sabe o que poderá acontecer com este fruto antes que ele o guarde no celeiro, também o homem não pode relaxar seu coração enquanto houver um sopro em suas narinas. E assim como nenhum homem, até seu último suspiro, conhece os sofrimentos pelos quais poderá passar, também o monge, enquanto respirar, não pode relaxar seu coração. Ele deve clamar a Deus continuamente, pedindo seu Reino e sua piedade. Ora, o maligno sabe muito bem que que ora a Deus sem cessar poderá realizar grandes coisas. Então, ele se esforça, pelas vias da razão ou da loucura, para desviar o intelecto. E cabe a nós, uma vez que temos consciência disto, nos opormos ao nosso inimigo. Quando permanecemos em oração, quando dobramos os joelhos, não deixemos que entre em nosso coração nenhum pensamento, nem branco, nem preto, nem direito, nem esquerdo, que tenha sido escrito ou que jamais tenha sido escrito. Não deixemos entrar senão a súplica a Deus, a iluminação, a irradiação solar que vem do céu iluminar a razão. É preciso ter conduzido um grande combate, ter passado muito tempo em oração, para descobrir a serenidade da reflexão, tal como um novo céu, o céu do coração onde habita Cristo, como disse o Apóstolo: “Não reconhecem vocês que Cristo habita em vocês?[13]”. Se quisermos atingir este estado da inteligência, guardemo-nos de todo pensamento. Então o intelecto verá a si mesmo semelhante a uma safira celeste. Pois se o intelecto não estiver acima de todos os pensamentos que o ligam às coisas, jamais ele verá em si próprio o lugar de Deus. E jamais ele estará no alto, se não se despojar das paixões que, através dos pensamentos, o ligam às coisas sensíveis. Ele ultrapassará as paixões por meio das virtudes; os pensamentos simples pela contemplação espiritual; e a própria contemplação, quando lhe aparecer a luz.
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TII, IV – CALIXTO TELIKOUDES –Sobre a prece e a atenção.
[1] Mateus 23: 27-28. [2] Cf. II Coríntios 6: 1. [3] Colossenses 3: 9-10. [4] Romanos 6: 1. [5] Gálatas 2: 20. [6] Cf. Efésios 6: 16. [7] Efésios 6: 16. [8] Cf. Lucas 22: 19. [9] Cf. II Coríntios 5: 15. [10] Cf. I Coríntios 11: 29. [11] Cf. II Coríntios 7: 11. [12] Cf. Romanos 6: 11. [13] II Coríntios 13: 5.
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TII, IV – CALIXTO TELIKOUDES – Extratos dos Santos Padres.
EXTRATOS DOS SANTOS PADRES
SOBRE A PRECE E A ATENÇÃO
Estes extratos dos Padres, publicados sem nome de autor, são talvez devidos ao mesmo Calixto Telikoudes. Em todo caso, no corpo da antologia, eles estão na sequência da “prática hesiquiasta”. À primeira vista é a mesma demonstração e a mesma exortação: impossível “voltar o olho livremente para a luz” sem a dupla ascese do corpo e do intelecto. Uma só necessidade: pela temperança, pela vigilância, revestir o homem interior, “viver para Deus”, fazer do corpo a “moradia da alma”, aí “recolher o intelecto” e alcançar assim o “céu do coração onde habita Cristo”. Donde, por meio da prece, uma atenção em todos os instantes: “sempre observar o presente para nele encontrar a beleza”. A inteligência, desembaraçada do sensível, se torna “semelhante a uma safira celeste”. Do despojamento das paixões à visão da luz eterna temos aqui como que uma ilustração do testemunho de Calixto Telikoudes: um breve resumo, fiel e incisivo, da via hesiquiasta.
Sobre a prece e a atenção. Todo o esforço da ascese deve focar este ponto: quer a altura da alma não seja derrubada pela revolta dos prazeres. Pois como uma alma que se liga ao que está embaixo pelo prazer da carne poderá lançar um olhar livre para a luz inteligível à qual é aparentada? É por isso que, antes de tudo, é preciso ser temperante: a temperança guarda em lugar seguro a castidade. O intelecto que nos guia não deve se deixar absorver por pensamentos impuros. É, assim necessária a vigilância do homem interior, se quisermos que o intelecto não se perca em divagações, mas que se mantenha firme no objetivo da glória de Deus, a fim de escapar ao julgamento do Senhor que disse: “Infelizes de vocês, por que se assemelham a sepulcros caiados, que por fora parecem belos mas que por dentro estão cheios de ossos dos mortos e de todo tipo de impureza. Por fora vocês parecem justos perante os homens, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e iniquidade[1]”. É por isso que, pelo coração, a palavra e a ação, devemos conduzir um grande e justo combate, a fim de não recebermos em vão a graça de Deus[2]. Mas, assim como a cera é modelada pela arte do escultor, também nosso homem interior é modelado pelos ensinamentos de nosso Senhor Jesus Cristo. Então podemos realizar com nossas ações a palavra de Paulo, que disse: “Vocês se despojaram do homem velho e de suas obras e se revestiram do homem novo, que se renova no conhecimento, à imagem de seu Criador[3]”. Ele chama de homem velho a todos os nossos pecados e manchas. Devemos nos revestir do homem interior, como sinal de vida nova[4], até a morte, para que possamos dizer em verdade: “já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim[5]”. Portanto, é preciso muita atenção, muita vigilância para não faltar com nenhum dos deveres de que falamos, quando cumprimos os mandamentos. Pois senão não apenas seríamos privados de tamanha recompensa, como ainda tombaríamos sob o golpe de temíveis ameaças. Quando o diabo espalha suas armadilhas e, com grande violência, envia como se fossem flechas incendiárias[6] os pensamentos que ele secreta de si mesmo contra a alma que vive na hesíquia e na calma, quando ele se abrasa subitamente, quando ele prolonga indefinidamente e torna insolúvel a lembrança daquilo que algum dia foi lançado em
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nosso espírito, é preciso escapar a estas armadilhas por meio de uma sobriedade e de uma atenção ainda mais intensas, como um atleta que, com a defesa precisa e a velocidade de seu corpo consegue iludir os desígnios de seus adversários. Enfim, por meio da prece e da invocação da aliança do alto, é preciso deter a guerra e desviar as flechas. É o que Paulo nos ensinou quando disse: “Tomem sobre vocês o escudo da fé...[7]”. Quando a alma relaxa o rigor e o ardor da reflexão e começa a rememorar ao acaso tudo o que já lhe aconteceu, então o pensamento, longe de qualquer educação ou ciência em relação às coisas das quais ela se lembra, é absorvido por elas e, divagando mais e mais, acaba por cair em pensamentos infames e absurdos. É preciso corrigir esta negligência e este despedaçamento da alma por meio de uma tensão mais rigorosa e mais vigilante da reflexão, é preciso fazer com que a alma retorne sobre si mesma, e lhe dar sempre o presente para considerar, para que nele ela veja a beleza. Quer esteja numa praça pública, quer participe de uma festa, quer esteja sobre uma montanha, ou no campo, ou no meio de uma multidão, o filósofo justo faz de seu corpo o lugar de sua meditação e permanece seguro em sua alma, ele se mantém fundamentado em si mesmo como em seu mosteiro natural, recolhendo aí seu intelecto e pensando com toda sabedoria naquilo que lhe convém. Pois pode acontecer que aquele que permanece sentado em sua cela, mas que é negligente, deixe seus pensamentos errando por aí, e que o que está na praça pública, mas é sóbrio e vigilante, esteja como que no deserto, voltado para si e apenas para Deus, com os sentidos trancados às perturbações que, por intermédio das coisas sensíveis, assaltam sua alma. Assim, é preciso que aquele que se aproxima do Corpo e do Sangue de Cristo em sua memória [8], em memória dele que morreu por nós e que ressuscitou[9], se purifique de toda mancha da carne e do espírito[10], para não comer e beber de sua própria condenação[11]. E ainda será preciso claramente que ele seja o signo do julgamento Daquele que morreu por nós e ressuscitou, não apenas purificando-se de todo pecado, mas morrendo para o pecado, para o mundo e para si mesmo, e vivendo apenas para Deus[12]. Dentre os maus pensamentos, alguns não chegam a atingir a alma, se nos protegermos. Outros nascem e germinam em mós, quando somos negligentes: se nos prevenimos, eles logo se afogam e desaparecem. Outros enfim, quando perseveramos na negligência, nascem e crescem, nos conduzem às más ações e alteram toda a saúde da nossa alma. A beatitude consiste em não receber nenhum mau pensamento; depois, em rejeitar os pensamentos logo que eles entram e não aceitar que permaneçam em nós daí para frente, a fim de que eles cessem de produzir o mal. Mas ainda que sejamos sempre negligentes, o amor que Deus tem pelo homem pode corrigir esta negligência. Sua inefável bondade pode preparar inúmeros remédios para essas feridas. Assim é que eu lhe peço, enquanto você viver num corpo, não relaxe seu coração. Com efeito, assim como o cultivador não pode jamais estar certo dos frutos que surgirão no seu campo, por que ele não sabe o que poderá acontecer com este fruto antes que ele o guarde no celeiro, também o homem não pode relaxar seu coração enquanto houver um sopro em suas narinas. E assim como nenhum homem, até seu último suspiro, conhece os sofrimentos pelos quais poderá passar, também o monge, enquanto respirar, não pode relaxar seu coração. Ele deve clamar a Deus continuamente, pedindo seu Reino e sua piedade. Ora, o maligno sabe muito bem que que ora a Deus sem cessar poderá realizar grandes coisas. Então, ele se esforça, pelas vias da razão ou da loucura, para desviar o intelecto. E cabe a nós, uma vez que temos consciência disto, nos opormos ao nosso inimigo. Quando permanecemos em oração, quando dobramos os joelhos, não deixemos que entre em nosso coração nenhum pensamento, nem branco, nem preto, nem direito, nem esquerdo, que tenha sido escrito ou que jamais tenha sido escrito. Não deixemos entrar senão a súplica a Deus, a iluminação, a irradiação solar que vem do céu iluminar a razão. É preciso ter conduzido um grande combate, ter passado muito tempo em oração, para descobrir a serenidade da reflexão, tal como um novo céu, o céu do coração onde habita Cristo, como disse o
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TII, IV – CALIXTO TELIKOUDES – Extratos dos Santos Padres.
Apóstolo: “Não reconhecem vocês que Cristo habita em vocês?[13]”. Se quisermos atingir este estado da inteligência, guardemo-nos de todo pensamento. Então o intelecto verá a si mesmo semelhante a uma safira celeste. Pois se o intelecto não estiver acima de todos os pensamentos que o ligam às coisas, jamais ele verá em si próprio o lugar de Deus. E jamais ele estará no alto, se não se despojar das paixões que, através dos pensamentos, o ligam às coisas sensíveis. Ele ultrapassará as paixões por meio das virtudes; os pensamentos simples pela contemplação espiritual; e a própria contemplação, quando lhe aparecer a luz.
[1] Mateus 23: 27-28. [2] Cf. II Coríntios 6: 1. [3] Colossenses 3: 9-10. [4] Romanos 6: 1. [5] Gálatas 2: 20. [6] Cf. Efésios 6: 16. [7] Efésios 6: 16. [8] Cf. Lucas 22: 19. [9] Cf. II Coríntios 5: 15. [10] Cf. I Coríntios 11: 29. [11] Cf. II Coríntios 7: 11. [12] Cf. Romanos 6: 11. [13] II Coríntios 13: 5.
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CALIXTO CATAPHYGIOTES Nosso bem-aventurado Padre Calixto, chamado de Cataphygiotes (talvez do nome de uma igreja da Mãe de Deus, também chamada de Cataphyges, ou seja, o refúgio), não deixou registro nos anais a respeito de quem ele foi, qual era sua pátria ou onde teria ele levado sua vida anacorética. Mas pelo testemunho dos presentes capítulos, ele foi um homem versado no conhecimento das coisas exteriores e das coisas interiores e, sobretudo, capaz de além de todos na altura, na profundidade, no comprimento e na largura inteligíveis das contemplações. O bem-aventurado estava voltado para aquilo que é mais do que o mundo, para o Um oculto, para o Deus Trinitário mais alto que o ser, a ponto de, liberto de uma vez por todas, obteve a visão imediata de Deus, a união imediata, o silêncio do intelecto e o desconhecimento mais que desconhecido, na superabundância da pureza, ao mesmo tempo em que caminhava sobre a terra na verdade, conforme nos foi reportado, como se fosse um anjo ou um deus pela graça. Alguns, por certos indícios, disseram que este Calixto seria Calixto de Xanthopoulos, o Patriarca de Constantinopla que escreveu outros cem capítulos. Pois a maior parte daqueles, dizem, falam de ação, enquanto estes falam apenas da contemplação e da vida contemplativa. Como ação e contemplação estão unidas uma à outra, o intérprete das duas seria naturalmente a mesma pessoa. Eles afirmam ainda que diversos capítulos daquela centúria lembram os presentes capítulos, pois se referem à intervenção e ao recolhimento do intelecto, à união divina, à energia e à iluminação do coração. Outros dizem que as duas centúrias não se assemelham devido às diferenças de texturas entre as frases de uma e de outra. Quanto a nós, pensamos que se deve estar de acordo com os primeiros, uma vez que não concordamos com estas diferenças de texturas. Pois é possível, e mesmo fácil, para os sábios, adaptar a escrita das frases aos diferentes temas tratados, exprimindo em termos elementares o que é elementar e em termos sublimes o que é elevado. Mas é verdadeiramente lamentável que nesta centúria na qual, na medida em que podemos conjecturar, os presentes capítulos pedem outros, em especial aqueles que explicam a vida contemplativa – que a meu ver são os mais sublimes e mais completos no que se refere ao sentido, ao sublime das frases, à beleza da língua e ao rigor do raciocínio – sejam os únicos do manuscrito que temos em mãos conservados até aqui.
* O nome de Calixto Cataphygiotes significa “aquele que se refugia”, que vive na solidão, e designa assim um monge, cuja identidade histórica ignoramos, mas que talvez seja o mesmo que se exprime nos escritos de Calixto o Patriarca. Ou seja, Calixto Cataphygiotes, Calixto o Patriarca e Calixto Xanthopoulos seriam a mesma pessoa? Isto não é impossível, dado que suas obras, escritas todas no final do século XIV, logo 1179
antes da desaparição do Império Bizantino, constituem com toda evidência a chave de abóboda do memorial hesiquiasta, sendo que em todas se encontram esparsas expressões e referências que indicam uma mesma tensão em direção à última. Mas nada disto é certo. Cada qual a seu modo, eles lembram Simeão o Novo Teólogo, Denis o Areopagita e anunciam os místicos renanos, enquanto os escritos de Calixto Cataphygiotes são atípicos, como que saídos de uma história milenar em cujo decurso a continuidade do movimento monástico se identificava com a transmissão eclesial do Evangelho. Aqui o hesiquiasmo é colocado sobretudo naquilo que ele é: um movimento do intelecto que, diz Calixto, “abandona o criado para buscar sua própria causa” e assim “adquirir a paz, penetrar no infinito e no incriado”, onde se encontra, “acima do mundo, Deus, que é o Um”, não o Um imanente e abstrato dos neoplatônicos, mas o Um transcendente, vivo, que representa a essência e as energias das três Pessoas divinas, como a irradiação do amor criador transmitida aos fiéis para que eles sejam um. Entrementes, a ascese é rigorosa: o intelecto não pode alcançar a semelhante divina se não parar de se dispersar nas coisas do mundo e se não se encontrar “fora das paixões e da divisão”, em plena liberdade evangélica, a qual, diz Calixto, é “o sinal evidente da adoção divina”. Exige-se do intelecto livre que não volte atrás, que não se detenha no sensível, mas que vá em direção ao inteligível, para aquilo que não pode ser ´percebido senão pela noera aisthesis, o sentido intelectual: o Reino de Deus no coração do mundo. A mensagem filocálica é aqui conduzida à sua ponta mais aguda. Dos três componentes platônicos da alma – o desejo, o ardor e a razão – somente a razão encontra a graça e faz corpo com o intelecto “retornado”, ele próprio conduzido à unidade e à simplicidade originais. Este intelecto em estado puro não pode senão amar a beleza de Deus. Ele está votado ao “eros divino”, ele se torna “filocálico”, diz Calixto. A perspectiva é perfeitamente cristã, mas o amor está de tal forma voltado para a beleza de Deus, o magnetismo desta é tão forte, que o discurso é como que absorvido pelo ponto de fuga (a visão beatífica) e se anula nele. A partir daí, resta a chave não mencionada: Cristo ressuscitado, o corpo glorioso. Retomando as palavras do Eclesiastes, Calixto afirma que o monge contemplativo é de algum modo dividido entre o tempo de se calar, que é o arrebatamento do intelecto, e o tempo de falar, que é o combate espiritual e a transmissão da experiência. Mas a conclusão é imperativa: “reencontrar o estado de infância”, para alcançar a condição extrema, a contemplação silenciosa do Um oculto, “que a natureza, o espaço e o tempo não podem conter”. Este último grande texto da mensagem filocálica – certamente um dos mais belos e difíceis – permanece sendo sempre uma apologia do êxtase e do silêncio.
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TII, IV – CALIXTO CATAPHYGIOTES –Sobre a união divina e a vida contemplativa.
SOBRE A UNIÃO DIVINA E A VIDA CONTEMPLATIVA 1. Tudo o que vive está naturalmente submetido à energia que o domina, e recebe desta o repouso e o prazer que a acompanham. Assim se é cumulado de alegria, consagrando-se a isto de todo seu coração. Assim o homem, uma vez que possui um intelecto e que compreende naturalmente a vida, se alegra plenamente e recebe sua parte em repouso quando concebe as coisas mais elevadas e aquelas que lhe dizem respeito, boas ou belas, segundo o nome que se quiser dar a elas. É isto que lhe acontece em verdade, quando conserva a Deus em seu intelecto e considera as virtudes Daquele que está verdadeiramente acima de tudo, que é inteligível além de toda inteligência, que além de toda inteligência ama o homem até o fim, e que além de toda inteligência prepara aos que vão a ele uma herança de bondade e beleza. E esta herança é eterna. 2. Todo nascimento concede ao nascido uma semelhança com aquele que o engendrou. O Senhor disse: “O que nasce da carne é carne, e o que nasce do Espírito é Espírito[1]”. Portanto, se o que nasce do Espírito é Espírito, isto quer dizer que ele será Deus, segundo o Espírito que o engendrou, uma vez que é Deus o Espírito do qual nasceu pela graça aquele que tem parte no Espírito. Mas se este homem é Deus, ele será manifesta e naturalmente contemplativo. Com efeito, é por “contemplar” (theorien) que Deus é chamado de “Deus” (Theos). Assim, aquele que não contempla, não contempla por que o nascimento espiritual ainda não lhe foi concedido e ele ainda não recebeu o Espírito, ou por que, tendo-o recebido, perdeu por ignorância seu poder de contemplar e em sua inexperiência se desviou dos raios inteligíveis de Deus que envolvem o Sol inteligível da justiça[2]. Ele teve sua parte no poder contemplativo, mas permaneceu infelizmente privado desta energia, ainda que tenha até se votado para a santidade. 3. Todos os seres receberam Daquele que os criou pela palavra seu próprio movimento e sua própria natureza. O mesmo acontece com o intelecto. Mas o movimento do intelecto é a eternidade, e esta não possui fim nem limite. Será, portanto, ao encontro de sua própria condição e de sua própria natureza que o intelecto poderá ser detido ou limitado em seu movimento. Esta será a sua lei, se ele se mover em meio às coisas finitas e limitadas. Pois não é possível que as coisas sejam finitas e limitadas e que ao mesmo tempo o movimento do intelecto que as percorre ou as envolve vá até o infinito. O movimento eterno do intelecto tem necessidade de um ser que seja sem fim e sem limite, para o qual ele se encaminhe sempre e sempre, por que isto está em conformidade com a sua razão e lhe é natural. Mas nada é verdadeiramente sem limite senão Deus, que é um por natureza e em seu próprio ser. O intelecto deve assim voltar-se, mirar e se pôr em movimento em direção a Deus, para a unidade propriamente infinita. De fato, esta é a sua natureza. 4. Aquilo que contemplamos e que envolve a Deus não tem fim nem limite. No entanto, o intelecto que busca a Deus de quem vêm estas coisas não pode desfrutar delas plenamente. Pois cada ser recebe naturalmente sua alegria daquilo que lhe é semelhante. Ora, o intelecto é um por natureza, ainda que sejam múltiplos seus pensamentos, desde que ele esteja voltado para Deus e num movimento em sua direção, em direção a Deus, cuja natureza é uma e cuja energia é múltipla. E é impossível ao intelecto usufruir disto plenamente antes que alcance o Um naturalmente sem limites, como que passando através do múltiplo. O intelecto não pode usufruir de modo natural e pleno senão apenas de Deus. Cada ser encontra sua maior alegria em sua própria natureza. Assim, a natureza própria do intelecto consiste em se mover para, em votar-se para, em regozijar-se plenamente apenas no Deus simples e infinitamente uno. 5. Todo movimento de uma criatura, qualquer que seja ela, todo movimento do próprio intelecto, tende para a detenção e a calma, a imobilidade, a paz. O fim da criatura é forçosamente o repouso. Mas o intelecto, que é uma dentre as criaturas, não pode, por seu próprio movimento, participar da detenção e da calma em meio ao criado. Com efeito, se o criado está destinado a terminar – uma vez que teve um
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TII, IV – CALIXTO CATAPHYGIOTES –Sobre a união divina e a vida contemplativa.
começo – é claro que o movimento eterno do intelecto deverá abandoná-lo para buscar sua própria causa. Assim, na medida em que permanecer encerrado nas coisas finitas e limitadas, o intelecto não poderá conhecer a paz, nem descobrirá sua própria finalidade, nem terá em si o movimento de que falamos. Aqui estamos longe de sua natureza própria, que é manifestamente o movimento eterno. E não é possível que o intelecto encontre a paz e se detenha, se ele permanecer entre as criaturas. Onde então poderá o intelecto assumir aquilo que lhe é próprio, vale dizer, deter por si só seu movimento e obter assim a calma, estar em paz e receber com toda certeza a sensação de repouso, se não penetrar no infinito e no incriado, onde se encontra essencialmente e acima do mundo, o Deus que é a própria unidade? É preciso, portanto, que, por meio do movimento, o intelecto alcance esta unidade e este infinito, descobrindo naturalmente no repouso intelectual a calma que é característica de sua natureza. De fato, esta é a detenção suscitada pelo Espírito, o repouso apátrida, o termo infinito de todas as coisas. No coração desta unidade, o movimento permanece em toda a inteligência que descobriu aquilo que não possui nem fronteira nem limites, o que não tem fim, o que não possui figura nem forma, o que é absolutamente simples, que é o Um de que falamos, ou seja, Deus. 6. Se Deus, segundo Davi, fez de seus anjos espíritos[3], e se dos homens gerados pelo Espírito ele os torna espíritos[4], como disse o Senhor, o homem assim nascido se torna anjo por sua clara participação no Espírito de Deus. Mas a obra dos anjos consiste em contemplar sempre a face de nosso Pai que está nos céus[5], conforme também disse o Senhor. Então é preciso que aquele que possui claramente o Espírito Santo esteja, como é natural, voltado para a contemplação da face de Deus. É o que ensina Davi quando diz: “Busquem o Senhor e sua força. Busquem sempre a sua face[6]”. Portanto, quem participa do Espírito vivificante, que concede a luz e executa a obra do amor, quem atingiu a experiência do nascimento inefável que provém do Espírito, quem se elevou até o estado angélico e que depois, por causa de uma piedade presunçosa, impede em si mesmo que o sentido espiritual perceba a Deus e recusa voltar-se para Deus e para o que é divino, este não guarda aquilo que deveria se tornar natural nele. Pois o Salvador manda que permaneçamos nele, para que ele permaneça em nós[7]. E Davi disse: “Vão ao seu encontro e irradiarão a luz[8]”. Na verdade, se fizermos o que devemos fazer e insistirmos até o final, veremos na luz a Deus o Pai, vale dizer, o Espírito Santo, a luz que está ao redor de Deus, ou seja, a verdade divina. Caso contrário, estaremos escolhendo, em nossa própria ignorância, não retornarmos para os raios divinos. 7. O intelecto se eleva por três caminhos à contemplação de Deus: por seu próprio movimento, por um movimento exterior e por um movimento que é a um tempo seu e estranho a si. O caminho do movimento próprio pertence unicamente à natureza do intelecto. Ele apela para a vontade deste, passa pela imaginação e se realiza na contemplação das coisas que cercam a Deus. De certa forma, é o que fizeram os Gregos. O segundo caminho é sobrenatural: ele se abre apenas pela vontade e a iluminação de Deus. Assim, ele está inteiramente sob o comando de Deus, ele é arrebatado nas revelações divinas, ele prova dos mistérios inefáveis, ele vê a realização das coisas por vir. O caminho médio compartilha dos dois caminhos. Como ele trabalha pela vontade e a imaginação, ele está em acordo com o movimento próprio do intelecto. Mas ele comunga do movimento exterior ao intelecto, uma vez que se une a ele sob a iluminação divina e vê a Deus inefavelmente, para além de sua própria união intelectual. Ele está assim fora de tudo o que podemos ver e dizer das coisas que cercam a Deus. Ele não vê nem a bondade original, nem a deificação, nem, a sabedoria ou o poder criativo, a providência ou qualquer das outras coisas divinas. Mas ele está repleto, no mais alto grau, da luz intelectual misturada à alegria que é suscitada pelo amor do fogo divino. 8. O intelecto que se serve de sua própria imaginação para contemplar o invisível é conduzido pela fé. Quando a graça o ilumina, ele se vê confirmado pela esperança. Mas quando ele é arrebatado pela luz divina, ele se torna um tesouro de amor pelos homens, e mais ainda de amor a Deus. Assim, a ordem tripla do intelecto, seu movimento na fé, na esperança e no amor, é perfeito e deificante, seguro e firme. Uma vez atingido este vasto lugar na acrópole, o intelecto se encontra seguro na cidadela do amor. É o que
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disse Paulo: “O amor cobre tudo, suporta tudo[9]”, pela graça da fé e da esperança. “O amor, disse ainda ele, não tomba jamais[10]”, por sua ardente união com Deus e sua inefável conjunção. 10. A mentira é dividida, mas a verdade é uma. Portanto, o intelecto que, no Espírito, volta-se para o Um, para o que está além do mundo, para o que está acima de tudo, para o que é a origem do múltiplo, volta-se para a própria verdade. Uma vez que o intelecto não pode se livrar das paixões senão for liberto pela verdade[11], ele precisará, para tanto, se voltar e se dirigir unicamente para o Um que está acima do mundo. A liberdade conduz o intelecto ao mais alto ponto, à impassibilidade, à semelhança divina e à filiação espiritual. Mas jamais à servidão. Pois foi dito que o escravo não sabe o que seu mestre faz [12]: a ignorância é própria do escravo. Mas é claro que aquele que participa da liberdade conhece os mistérios do Pai. Foi-lhe concedido elevar-se contra tudo e contra todos até alcançar o que é belo e bom, a dignidade da adoção. Com efeito, assim como a ignorância é o contrário do conhecimento, também o status do escravo é oposto ao status filial. Portanto, se quem não sabe é escravo, quem sabe não é escravo, mas livre: a bem dizer, ele é filho. Pois o Espírito de verdade liberta. Ele próprio torna filhos de Deus aqueles em quem penetra. De fato, foi dito: “Os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, estes são os filhos de Deus[13]”. Portanto, se dirigir-se ao Deus que está acima do ser é próprio da própria verdade, a verdade concede a liberdade ao intelecto, e a liberdade é o sinal evidente da filiação divina. Nada é maior do que este dom da adoção. E nada convém mais à natureza dotada de razão. Esta é uma coisa mais do que necessária, e é preciso muito refletir sobre ela: que o intelecto conduzido pelo Espírito se volte, para contemplá-lo e nele se recolher, tanto quanto lhe for possível, para o Um que está acima do mundo, ou seja, para Deus. 11. O Espírito Santo diz: “O Senhor seu Deus, o Senhor é um[14]”. É assim que é ordenado ao intelecto elevar-se pela divindade do Espírito em direção ao Um que está acima do mundo. Portanto, não é permitido pregar o Um e ao mesmo tempo negar o retorno e a contemplação do intelecto. Pois o desejo do intelecto é de entender o que diz o Espírito Santo, e ele deve se voltar para aquilo que compreende. E de fato, quando falha o retorno do intelecto para o inteligível, aí falha igualmente a compreensão dele. E falharão necessariamente a predicação do Um conforme mencionamos, e também a fé suscitada por esta predicação. Se isto é absurdo, absurdo é que a inteligência que regresse e se volte para o Um não o compreenda. 12. A natureza conduz os seres nascidos de uma causa, em especial os seres racionais, a se voltar e buscar por sua causa, regressando sobre si mesmos. A causa de tudo é Deus, de quem provém também o intelecto. Ora, Deus é o Um supremo, o Um absoluto. Portanto, a natureza conduz o intelecto a se voltar e buscar o Um supremo e absoluto, desde que se coloque de regresso à sua causa. 13. Se tudo provém dele, existe por ele e para ele[15], e se o intelecto é a unidade do todo, o intelecto provém dele e existe por ele. Mais precisamente, ele provém de Deus e existe por ele, por que se assemelha a ele. Assim ele deve em primeiro lugar voltar-se para ele. E quando dizemos para ele, isto significa que, regressando sobre si mesmo, ele deverá contemplar a manifestação do Um que está acima do mundo. É assim que o intelecto deve contemplar o Um. 14. O múltiplo provém do Um, mas não o contrário. Ora, se a criação é múltipla, claramente ela procede do Um. E o Um, que é o Criador e Ordenador, está acima da criação. A contemplação daquele que observa a criação como se deve se realizará necessariamente voltando-se para o Um acima do mundo. Pois as criaturas trazem em si numerosos ecos do Criador, por meio dos quais conhecemos Aquele que criou tudo com sua providência e ao seu bel prazer, com arte e sabedoria, poder e bondade. É por isso que Isaías disse no Espírito: “Ergam os olhos e vejam quem lhes mostrou todas essas coisas[16]”. Ele disse “todas essas coisas” por causa das numerosas criaturas, e “quem” elevando sua inteligência em direção Daquele de quem estas coisas provêm, o Um absoluto por natureza.
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15. A criatura se encontra reunida na unidade, mas numa unidade composta, múltipla. Ela também não é sem começo, por que ela foi criada. O Um criador, ele não é um apenas por estabelecer harmonicamente as coisas múltiplas e diferentes com apenas um sopro que a tudo abarcou com o intuito de criar. Ele é ainda incriado, como causa anterior à fundação do mundo. É assim necessário que o intelecto que emerge a partir do Criador alcance a Unidade original, que fundamenta e comanda a ordem visível dos seres, sua gênese, sua harmonia e sua respiração comum no Um. Caso contrário, ele se dirigiria ao infinito, o que é absurdo. Pois todas as coisas que se movem e que nasceram nem sempre existiram: houve um tempo em que elas não haviam. Elas não existiam, e começaram a existir. E se começaram, é porque foram postas em movimento. É preciso buscar aquilo que lhes concedeu o movimento e as conduziu ao nascimento. Ora, o que incita o movimento não pode ser senão imóvel. Caso contrário, qual seria a causa do movimento, algo que não estivesse sujeito a nenhuma outra origem, por ser ela mesma sem origem? Ora, se ela é imóvel, é também imutável. E se ela é assim, ela tem que ser simples, a fim de que o ser composto não possa alterar aquilo que a nós aparece como imutável. Pois é a mistura dos elementos que implica a detenção. E o fim do movimento implica a dissolução. Portanto, na causa não pode existir nenhuma mistura de elementos, para que aí não haja detença, e para que, não havendo detença, não haja dissolução. Não havendo dissolução, não haverá tampouco mudança nem movimento no imutável e imóvel, que concede o movimento mas não o recebe, e que conduz ao nascimento mas não é ele próprio nascido nem submetido ao devir. Portanto, se a causa é imutável e imóvel, ela está necessariamente fora de toda mistura, e por isso ela é completamente simples, o Um absoluto que está acima do mundo. O intelecto que assim se volta para o Um se coloca de todas as maneiras fora de tudo, pelo olhar que ele dirige para aquilo que é mais do que belo, e pelo impulso que o empurra para junto do que está acima de tudo, ou melhor, para perto do lugar de onde provém tudo, e para o qual tendem naturalmente todas as coisas. Se esta tensão em direção ao Um se faz corretamente, o intelecto se coloca fora das paixões: desenvolvendo-se e se estabelecendo acima até do que há de mais belo, ele permanecerá em repouso, e sentirá vergonha das paixões. Por isso você não deverá adorar senão a ele[17], ou seja, ao Um, diz a Lei santa. Devemos, então, nos voltarmos para o Um supremo, se quisermos cumprir a Lei de Deus e nos colocarmos acima das paixões. 16. Foi dito que só o Senhor os conduziu, e que entre eles não haviam deuses estrangeiros[18]. Vê você aqui o poder do Um e do Único? Vê que não havia com eles nenhum deus estrangeiro, por que só o Senhor os conduzia? Ora, o Senhor conduz os que o seguem, não os que o rejeitam. E quem segue, se volta para aquele a quem segue. Então, se não quisermos ter conosco deuses estrangeiros, demônios ou paixões, sigamos o Um e Único através do regresso do intelecto, para que de nós também seja dito com razão: somente o Senhor os conduz, com eles não há deuses estrangeiros. 17. Se o múltiplo provém do Um, dele provém por diferentes vias. Pois o modo pelo qual os seres provêm da Unidade primeira não é o mesmo para todos. Dentre eles, uns têm um começo e são criados, enquanto outros são incriado e escapam ao modo de origem temporal. Para todos, de qualquer maneira, a causa é o Um mais alto que o ser. Agora, uns estão ligados à causa por serem criados, enquanto outros estão ligados naturalmente. E não podemos nos aproximar deles, de uns como de outros, nem nos ligarmos a eles da mesma maneira. Dos seres que estão submetidos a um começo e à criação é preciso se aproximar passando por um outro ser e não pelo que eles são em si mesmos; é como quando nos aproximamos de um espelho através daquilo que está figurado ou revelado nele. Com efeito, a criação não é capaz de aproximar do melhor senão pela revelação do Um absoluto nela. Mas quando nos voltamos para os seres que não têm começo e que estão naturalmente ligados à causa, nos dirigimos a eles sem passar por outro ser. E passamos por eles para descobrir a Origem, pois eles dela se aproximam em verdade por si próprios. E o Um supremo habita neles de maneira imediata e natural. Na verdade, eles fazem corpo com o Um supremo e absoluto, direta e naturalmente, como dissemos. E devemos não apenas nos aproximar deles como nos ligarmos a eles e nos esforçarmos por receber a marca divina, imitando por intermédio deles a beleza primeira, a única beleza, a fim de alcançar assim a sinergia e o socorro da graça, a dignidade da
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glória de Deus, à sua imagem e semelhança[19]. Portanto, através dos seres que têm sua causa na criação, se bem os observar e considerar, o intelecto se elevará pela contemplação em direção à visão do Um, e se unirá pura e simplesmente à concepção única do Um mais alto do que o mundo. Mas através dos seres que são naturalmente ligados à causa também é possível ao intelecto, animado por esta causa e identificandose com estes seres, consiga se unir ao próprio Um. Portanto, a partir de todos estes seres nascido de uma causa, naturalmente ligados a ela ou criados, o intelecto pode se recolher normalmente na Origem única e absoluta, seja pela natureza, pela ação ou a contemplação. Porém, se o intelecto que se consagra ao Um – ou às numerosas criaturas, ou aos seres naturalmente primeiros – não o faz para alcançar o Um, nem para se voltar para o Um original e envolvente para compreendê-lo por inteiro, simples e unicamente, na santa comunhão e no impulso do Espírito que ilumina, isto lhe será imputado como pecado, mesmo que esta consagração lhe pareça um bem. O que provém do Um conduz ao Um aqueles que se consagram como devido. Ao se desenvolver, toda manifestação da luz gerada pelo Pai e que vem habitar em nós por um puro dom de sua bondade, diz o grande Denis, nos cumula uma vez mais, com efeito, por sua tensão como um poder unificante, e retorna à unidade do Pai que nos reúne e também à simplicidade deificante. Pois tudo provém dele e a ele retorna[20]. Mas se o intelecto não se eleva para este objetivo, ele fracassa e seu exercício se desvia do caminho natural. 18. Existe uma ação que precede a contemplação, e uma ação que se segue à vida contemplativa. Uma é realizada pelo corpo. Nos que refrearam os impulsos do corpo e se prepararam para ser conduzidos pouco a pouco à boa ordem, ela concede à inteligência que avance livremente naquilo que lhe é próprio, ou seja, para dentro do próprio intelecto, para aí trabalhar para seu benefício. A segunda, que parte do próprio intelecto e da compreensão em espírito, se recolhe no que existe de mais alto que a inteligência, ou seja, Deus. Uma vez que se aproxime de Deus, o intelecto se dirige para o Um, pois Deus é o Um. Ele se une assim a si próprio em vista do Um e se torna indivisível. Pois o Um suscita a unidade e se deixa contemplar pela simplicidade semelhante a Deus. Que o intelecto contemple o Um mas não possua em si próprio a simplicidade no Um, estas são coisas impossíveis de conciliar. Ele se divide e se diversifica por que vê as coisas divididas e compostas. Já o Um absoluto é aquele que é simples por si só. Aquilo que o intelecto é está sujeito a alterações em sua energia, embora ele próprio permaneça simples; assim, é preciso que ele seja igualmente o Um em sua energia quando ver o Um. Ora, se ele vê o Um mas ainda está dividido em dois, o que pode fazer por si própria a parte separada daquela que vê o Um? De fato, ou bem ela verá outra coisa, ou bem não verá nada, e isto por duas razões: ou por que não quer, ou por que está embotada por outra força de ação que não a visão. Se supusermos que ela vê outra coisa, temos que considerar então que o intelecto não está vendo o Um absoluto, mas duas coisas, o que é contrário à razão. Por que, vendo duas coisas, ele não pode ser o Um, mas permanece dividido naquilo que contempla, como demonstramos. E se ele não vê, é impossível que seja por não querer ver, pois o intelecto dotado de razão não pode sofrer, por pouco que seja, de inação, nem ser reduzido assim à insignificância. Tampouco ele pode ser parte agudo e parte embotado, ou coisa assim, pois então ele será feito de partes dessemelhantes e será, portanto, composto e não simples. Ora, é o que aconteceria se, por um lado, ele visse e, por outro, se consagrasse a qualquer outra forma de energia: ele seria feito de uma mistura de elementos e não poderíamos dizer que a inteligência é simples. É por isso que a unidade e a simplicidade do intelecto, uma vez que ele considera o Um absoluto, se identifica ao Um pela energia. E se ela for pura e simplesmente o Um, ela contemplará o Um absoluto. Portanto, toda ação, ou toda contemplação, deve se voltar necessariamente para o Um que ultrapassa a inteligência. Senão o intelecto não chegará a lugar algum, e tudo o que fizer ou contemplar terá sido em vão. Pois, submetido à divisão ele provocará paixões, por não ser conduzido por nenhuma percepção da alma em direção à sua união com o Um que de maneira única ultrapassa o entendimento. Com efeito, esta união é capaz de iluminar e purificar a contemplação do intelecto, quando esta contemplação se eleva e se volta para o Um, cheia de amor em relação Àquele de quem, por quem e em quem todas as coisas têm seu ser[21], e em vista de quem elas se vieram a ser, existem e permanecem.
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19. A união entre Deus e a alma, esta união que ultrapassa a inteligência, é o cume de todos os desejos. Mas para chegar à união divina, é preciso primeiro assemelhar-se a Deus. E para atingir a semelhança divina, é preciso agir segundo o intelecto, ou seja, é preciso contemplar. Uma tal contemplação é da ordem do divino: por isso lhe damos o nome de Deus. Com efeito, a contemplação se eleva diretamente para o pensamento de Deus. Pois de todas as partes e em todas as coisas Deus envia como que raios ao intelecto contemplativo. O intelecto que contempla tem a Deus diante de si. Ora, Deus é o Um que está acima do mundo. E a natureza do intelecto pode, em sua energia, se tornar semelhante àquilo que ele vê. É o que afirma o Teólogo, o divino Gregório, quando diz que viu e experimentou o esplendor de Deus. Pois o que o intelecto vê ele também experimenta, ou ainda, ele se torna como ele. O intelecto, diz ainda Pedro Damasceno, toma a cor daquilo que contempla[22]. Assim como, observando as coisas divididas ele se diversifica e se divide no múltiplo, também quando ele se eleva na contemplação do Um absoluto mais alto que o mundo ele se torna Um, como eu disse antes. E quando ele penetra no Um, ele vê aquilo que não tem começo nem fim, o que é simples e sem forma. Pois assim é o Um. É por isso que o intelecto, quanto à sua energia, é restabelecido no seu estado original, sem começo nem fim, simples e sem forma. Ao experimentar isto, ao se ver assim transformado, ele se encontra na semelhança do divino, na medida em que isto é possível. Daí para diante ele se lança para o cume de todos os desejos: a união divina e inefável que o ultrapassa. O objetivo supremo, o objetivo divino. Por isso o intelecto deve se esforçar por todos os meios e voltar-se e mirar no Espírito para atingir a contemplação e a consideração do Um que está acima do mundo. 20. Quando o intelecto se dispersa no múltiplo, ainda que apenas na dualidade, é claro que ele não contempla o Um absoluto. Ele então está limitado, encerrado, obscuro. Esta é, com efeito, a parte daquilo que não é absolutamente simples. Mas quando ele entra em contato intangível com o Um verdadeiro, através da contemplação intelectual no Espírito, ele se volta para ele com os olhos fechados e se torna sem começo nem fim, sem limites, forma ou figura, e se reveste de silêncio calando-se num arrebatamento, enchendo-se de delícias e saboreando o inefável. Mas não se diga que ele se tornou sem começo, sem fim e sem limites em sua essência, por que isto se dá em sua energia: a transformação do intelecto não é própria da sua essência, mas de sua energia. Pois se ele se transformasse segundo a essência, vendo e experimentando a deificação, ou seja, tornando-se deificado ao contemplar a Deus, o intelecto seria Deus em sua essência. Isto ele não é, assim como não o são os anjos tampouco. Apenas Deus, em seu absoluto e sua unidade, é Deus em essência. Assim, se a afirmação de que a deificação do intelecto em essência é absurda, resta dizer que ele experimenta a deificação pelo fato de ver. Pois ele não possui uma natureza que o permita mudar em sua essência, mas ele muda segundo sua energia. De resto, se o intelecto se transforma naturalmente, como dissemos, conforme aquilo que ele contempla, ele não contempla a essência divina, mas a energia. Então, ele próprio não se transformará segundo a essência, mas segundo a energia. 21. Todas as coisas, depois de brotar luminosamente do Um que está acima do mundo, não se afastam do lugar onde tiveram sua gênese, mas permanecem aí contidas e se realizam tal como nasceram. Não existe nada no universo que não testemunhe a irradiação e como que do perfume deste Um criador, deste Um verdadeiro. As coisas que participam do ser não podem deixar de expressá-lo desde que ele se revele, não como o Um acima do mundo (por que este está fundamentado acima de toda contemplação e de toda intelecção), mas como um raio do Um mais alto do que o mundo. Assim, desde que o Um é expressado por todas as coisas e que todas as coisas tendem para o Um, e que o Um acima do mundo se revela por si só ao intelecto através de todos os seres, é necessário que o intelecto seja conduzido, levado e guiado em direção ao Um acima do mundo. Seja por ser forçado a ir pela persuasão de tantos seres, seja por que o Um criador – já falamos disto – na superabundância de sua bondade quer ser contemplado pelo intelecto, a fim de que este, nesta contemplação, experimente a vida, como já o disse o Um eterno: “Eu sou a vida[23]”. E: “A vida eterna consiste em conhecê-lo, o único e verdadeiro Deus[24]”. E em outra parte: “Busque ao Senhor e sua alma viverá[25]”. Pois da busca vem a visão e da visão vem a vida, a fim de que a inteligência
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exulte, se ilumine e se regozije, como disse Davi: “Em você está a morada de todos os que se regozijam[26]”. E: “Na sua luz vemos a luz[27]”. Senão, como teria ele criado a inteligência contemplativa, como teria semeado em todos os seres aquilo que a ele pertence e por meio do qual, como que através de uma janela, revelando-se ao intelecto em seu flamejamento intelectual, ele o chama para si, pleno de luz? 22. Tudo o que fez o Deus bom, o Deus único em três Pessoas, ele o fez por sua vontade. E o que Deus quer é profundamente bom, pois a bondade é a sua natureza. Assim, ele criou a inteligência para que o contemple, ou contemple aquilo que dele provém. E ele é capaz de reunir esta inteligência quando ela contempla o Um. Então, é a vontade de Deus que a inteligência contempla – e isto é bom, profundamente bom. Ora, Deus é propriamente o Um absoluto. Assim, tender para o Um e se recolher simplesmente nele é profundamente bom, como demonstramos. 23. Se o eros absoluto é um em seu recolhimento, como afirmam os sábios de Deus, o ser amado será também um. Pois se os seres amados fossem dois (no mínimo), ou bem haveria dois eros, ou bem o eros único seria dividido, e não se poderia dizer que ele é um em seu recolhimento. Mas se afirmamos que na realidade o eros absoluto é um em seu recolhimento, daí decorre que o ser amado srá igualmente um. Mas o ser amado existe antes do amor que lhe é dedicado, e não é possível que haja amor antes de que o tenha recebido o ser amado. O eros é o amor dirigido que a lei natural e a lei escrita de Deus exigem que tenhamos por Deus. A primeira, ao persuadir profundamente a inteligência filocálica, a faz conceber o melhor, que é Deus. A segunda diz: “Você amará o Senhor seu Deus com toda sua alma, todo seu coração, todo seu pensamento. O Senhor seu Deus, o Senhor é um[28]”. Um é portanto o ser amado: é a unidade das três Pessoas, que existe antes do amor que o intelecto lhe dedica. É preciso, assim, que o intelecto deseje se dirigir para o Um mais alto do que o mundo. Pois assim, por sua descoberta e sua contemplação, o eros brilhará ao redor do Um e o homem terá o poder de realizar a lei e os mandamentos, amando, como foi dito, ao Senhor seu Deus. 24. Uma vez tendo se elevado até o Um que ultrapassa todo entendimento, é impossível que o intelecto não seja amado por ele. Pois a beleza inefável e incompreensível que provém dele nos é dada como uma raiz que fundamenta o universo. O intelecto se encontra diante dos esplendores divinos como a rede que está prestes a se romper sob o peso dos inumeráveis peixes que ele descobriu e atraiu [29], e está arrebatado na contemplação da beleza que o ultrapassa. Ele se embriaga como de vinho. Fica fora de si, como um louco. Prova do maravilhamento que ultrapassa todo pensamento. E já não consegue suportar a visão mais do que bela da incomensurável beleza. Ele se torna preso pelos laços do amor e é consumido como se pela sede. Pois o Um que ele contempla está além do seu entendimento. Mas ele foi pregado para todos, como sendo a causa primeira de todas as coisas, como o começo, como o fim, como a continuidade de tudo. Pelo transbordamento do poder que criou o belo e o bom, ele gerou a beleza e a bondade de todas as coisas belas e boas. Pois ele é o Ser único incomparavelmente acima do mundo, e fundamentado infinitamente ao infinito acima de toda beleza e de toda bondade. Ele é o único que ama naturalmente acima de todos os que amam, por que ele é o único propriamente belo e bom que está acima de toda bondade e de toda beleza, o único que é verdadeiramente amado em virtude da lei da natureza e da ordem, por que ele é a causa de tudo. Ele ama a tal ponto e de tal maneira é amado que, pelo transbordamento da beleza e da bondade ele ultrapassa todos os seres amados e todos os que amam. O Um mais alto do que o mundo é verdadeiramente como o único Ser que existe, o único Ser que criou todos os seres. Portanto, é preciso – e com a graça de Deus, como foi dito – retornar no Espírito à descoberta e ao conhecimento do único Um, de onde provém a origem de todas as coisas, e para onde segue o fim de todas as coisas. A porta do amor divino se abrirá por si só diante de nós pela graça de Cristo e nós entraremos no repouso de nosso Senhor[30], nós nos regozijaremos, exultaremos, conheceremos a alegria do Um e provaremos das delícias divinas, nos tornaremos um e já não seremos mais divididos e partidos, como pediu o Salvador a seu Pai quando disse: “Que eles sejam um, como nós somos Um[31]”. Então poderemos cumprir exatamente o mandamento que nos ordena: “Você amará o Senhor seu Deus com toda sua alma[32], e seu próximo como
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a si mesmo[33]”. Então teremos recebido a perfeição de que o homem é capaz. Pois o fim da lei é o amor[34], do qual dependem não apenas toda Lei e os Profetas[35], mas todos os que atingem a perfeição em Deus e em Cristo. 25. Para todo ser que alcance a unidade no Espírito, a divisão representa um relaxamento. Assim é que o intelecto, ao se dividir em sua energia, fica de fora daquilo que a graça lhe concede. E é o que lhe acontece quando se volta para o múltiplo, pois não lhe é possível ter em si o indivisível ao mesmo tempo em que considera a diversidade. Com efeito, se isto fosse possível, não seria fácil explicar por que o intelecto que se dedica à hesíquia é tão posto àquele que mira a confusão: isto equivaleria a demonstrar que o intelecto daqueles que se voltam para Deus é semelhante ao intelecto perturbado pela desordem das paixões, o que é absurdo. Pois este último, seja lá o que for que possa ver potencialmente, vê na verdade as coisas composta e acaba por modificar a si próprio. Ele se afasta da simplicidade e já não pode conter em si o indivisível. Ora, quem está sob os golpes da divisão nunca pode se dizer puro do pecado. É assim que esta divisão foi considerada por aqueles que puderam discernir as coisas. Com efeito, se o intelecto voltado para a visão do Um supremo e mais alto do que o mundo deve, em primeiro lugar, provar, por meio do sentido intelectual, a beleza que ultrapassa a natureza, é a graça que o faz escapar à divisão. É preciso assim conservarmo-nos junto ao Um mais alto do que o mundo e nos voltarmos para ele com toda nossa alma, unicamente e apenas para ele, se quisermos escapar da alienação e da divisão. Se o intelecto não se debruça sobre o Um, mas sobre o criado, é impossível que ele não seja dividido, por que não se pode dizer que o criado seja simples: ele é finito, composto, limitado. Por isso nunca podemos chamá-lo de Um absoluto. Ao se voltar para ele, o intelecto deixa de ter em sua própria energia toda e qualquer simplicidade, toda e qualquer unidade. Sua visão estará cercada e limitada, pois o criado é comporto. O que ele contemplar será sempre limitado, e ele terá decaído da graça divina que o fizera simples, sem começo e sem limite ou restrição. Ele estará fora do Um oculto, deste Um que ultrapassa todo entendimento, e será privado de sua própria glória, que consiste na fruição de sua identidade original e sem começo, no ilimitado e na simplicidade, no fato de ser absolutamente independente de qualquer forma. Nestas condições, ele será incapaz de imaginar a beleza sobrenatural e inefável. É preciso, assim, que o intelecto se volte e se dirija para aquilo que não tem começo, para o simples, o ilimitado e o verdadeiramente Um, e que então ele se abra para a luz, que ele se uma à unidade que comanda o recolhimento e que por meio deste se una a si próprio, a fim de não apenas ser amado pelo melhor – por ter se tornado semelhante a ele, na medida do possível, na simplicidade, ilimitado, sem forma nem figura – mas ainda que ele possa amar a beleza divina mais do que bela e sobrenatural, elevando-se em direção à semelhança, como foi dito. Com efeito, se o estado amoroso encaminha naturalmente os seres para os seus iguais, é claro que o intelecto amará a Deus assim como por ele será amado. Pois o mesmo é semelhante ao mesmo. E assim como a similaridade implica sua recíproca, o amor terá sempre como resposta o amor. Nada, mais do que o amor, une a alma a Deus. 26. O intelecto ultrapassa sua própria natureza quando se eleva acima de si próprio, fora de toda imagem e figura, quando se torna todo divinamente sem forma, sem começo nem fim, e por assim dizer acima da união que lhe é própria. Mas quando ele traz consigo seu próprio pensamento, mesmo que se consagre ao divino e ao inteligível, dizemos que ele se move e age naturalmente, e que se mantém dentro de sua natureza. Ora, o sobrenatural ultrapassa em muito o natural: ele está muito acima deste. É preciso, assim, amar intensamente aquilo que ultrapassa a natureza, pois é aí que reside o melhor, conforme o mandamento que nos ordena buscar os melhores carismas[36]. Vale dizer que está em Deus o intelecto que se encontra no sobrenatural. Pois Deus está fora e além de toda natureza, por ser mais antigo e por ser o Um absoluto. É preciso, portanto, que o intelecto se volte, mire e se eleve ardentemente para aquilo que é mais antigo e que é o Um absoluto, a fim de que, elevado ao Um mais alto do que a natureza acima de sua própria energia natural, ele possa descobrir o que é melhor para si, ao invés de permanecer naquilo que ele já possui segundo a natureza.
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27. Cada ser se regozija e repousa naturalmente naquilo que lhe é próprio e que preexiste inteiramente na origem mais antiga, que é a causa única. O intelecto entrará naturalmente nas grandes alegrias e terá em si uma longa felicidade, encontrando o maior repouso quando, depois de haver atravessado tudo e a tudo abandonado, se consagrar por meio do regresso intelectual a esta causa original e primeira da qual nasceram o universo e todas as coisas, por ser ela o começo, o meio e o fim; esta causa na qual tudo existe e se conserva, por meio da qual aquilo que é realizado é conduzido ao seu fim próprio, pela qual é feliz aquele que vive no bem, pela qual foi fundado o próprio intelecto tal como ele é. De certa forma, o intelecto é chamado a regressar sobre si mesmo a partir do instante em que ele retorna a esta causa soberana de todas as coisas, que é seu verdadeiro modelo. Todo ser que ama verdadeiramente a si mesmo – e esta é uma coisa que o intelecto experimenta realmente – como uma imagem da maravilhosa beleza do Um mais do que belo além do entendimento, é tomado de um grande amor ao retornar e contemplar sua própria origem. Pois, como foi dito, ao ver a si mesmo, ele vê o além e ama infinitamente. Aliás, esta é a afeição plena de amor que sentem naturalmente os nascidos em relação aos autores de seu nascimento, assim como, reciprocamente, os pais são tomados de amor por seus filhos. É por isso que aquele que regressa à origem de tudo, ao Um, recebe um grande e inefável prazer. Pois ele regressa para sua causa e para si próprio, como foi dito. Tudo aqui preexiste em razão da causa. E, particular o intelecto, por ser a unidade de tudo, existe no Um que ultrapassa o entendimento, como em sua origem e modelo. 28. Assim como todo ser provém do Ser que está além do ser, que toda natureza provém do Ser acima da natureza, que o temporal e o composto provém do intemporal e do simples, e que, enfim, o criado extrai sua existência do incriado, também toda forma tem sua origem no que não tem forma e a multitude das coisas visíveis tem sua origem no Um que está acima do mundo. Portanto, quem não se consagra ao Um que está além da forma, que não o contempla e que não está como que suspenso nele, mas que olha para qualquer outra coisa que se possa ver numa forma e na criação, este coloca aquilo que está incomparavelmente abaixo antes do que está acima, e se aproxima assim dos idólatras. Por que ele busca o que o ocupa e o que enxerga, e o que ele procura o domina. E o que o domina o sujeita [37]. Assim é que este homem adora a criatura ao invés do Criador[38]. Com efeito, o intelecto de cada um se sujeita àquilo que ele vê e com o que se ocupa. A isto ele adora e ama. Mas se por um lado o fato de se ocupar e de enxergar para longe do Um absoluto e sem forma provoca tal queda, por outro não podemos dirigir para o Um absoluto e sem forma nosso esforço e nossa busca senão por meio de um retorno sobre nós mesmos e pela tensão intelectual, a fim de que os tesouros de todo conhecimento[39], onde quer que se encontrem, constituam o repouso e o fim de toda contemplação, a detenção do pensamento, o silêncio que ultrapassa a inteligência e o regozijo inefável num imenso maravilhamento. 29. Todos os seres buscam o ser. Mas em todos este ser tem sua causa no Um que está acima do ser. Portanto, todos os seres, e, em especial os dotados de razão e que caminham sobre a via reta, ao buscarem o ser, buscam pelo Um que está acima do ser. Assim sendo, o intelecto que não se volta para o Um acima do ser e que não o busca, dirige-se em verdade para a desordem e a perdição, e perde a dignidade que lhe é própria: o conhecimento do Um acima do ser, a divindade e a simplicidade da união e do amor que para além de si mesmo ele descobre no Um. 30. As causas condizem ao mais alto grau a beleza dos efeitos que elas produzem. Ora, a causa de todas as coisas, e o que elas têm em comum, é o Um além do ser. Portanto, se o intelecto se liga a alguma das coisas que seguem o Um além do ser e considera que esta coisa é bela e de algum modo digna de atraí-lo, é claro que ele se perde de seu objetivo. Pois assim ele ama a beleza sem ser levado ao Um acima do ser, para o Um primeiro e soberano, de onde todas as coisas belas extraem sua beleza. Deixando-se levar pela negligência e a ignorância, ele se volta para as coisa que não fazem mais do que participar da beleza do Um. Quanto ao intelecto que alcança a visão última, este volta para o Um acima do ser os olhos de seu pensamento. Ele sabe com clareza que seu desejo será atendido além de toda medida, por estar na contemplação espiritual considerada como sua origem. E ele sabe que ninguém, salvo o Um além do ser,
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pode lhe dispensar a beleza que lhe é própria – ou qualquer beleza que seja. Alguns seres podem ter aparentemente a faculdade de dispensar o que lhes é próprio. Mas estas coisas não permanecem eternamente no intelecto amoroso. Somente o Espírito Santo as realiza, como e onde quer. Pois ele é o Senhor, uma das três pessoas da Unidade, e sua natureza é soberana. É preciso assim que o intelecto retorne para o Um acima do ser, onde se encontra não apenas a fonte de todos os seres, mas ainda a indefectível distribuição dos carismas. 31. Todos os seres buscam naturalmente o bem. Mas o verdadeiro bem é único, ainda que sejam numerosos os nomes do bem. Pois você não encontrará nada nas numerosas formas do bem que seja simplesmente bom e como que perfeito. Aquilo a que chamamos de bem o é sempre por uma certa participação no bem. Ele participa do bem do Um que está acima do ser, mas não possui o bem por si mesmo. Com efeito, somente este bem Absoluto, único, acima do ser, é mais do que bom e fonte de toda bondade. Somente ele dispensa o que lhe pertence, toda essência, toda existência, todo estado, todo poder, todo movimento, toda energia, toda propriedade, toda beleza, toda bondade, e ele retorna naturalmente sobre si mesmo. Simplesmente todos os seres e tudo o que vemos ao redor deles receberam do Um acima do ser sua manifestação, por que este os criou. É por isso que o movimento do intelecto se perde quando se volta para qualquer outra coisa e não para o Um absoluto além do ser. Talvez este intelecto se volte para o bem, mas não para o bem absoluto em si, para aquilo que o pode cumular de bondade pelo transbordamento da efusão benfazeja, para aquilo que concede o melhor a quem precisa receber o bom e o melhor. 32. O intelecto da maioria está dedicado à ignorância por causa da divisão. Ele está como que espedaçado entre numerosos bens, mas ignora o bem real, o Um absoluto. Nem o busca, por que não se consagra a ele. É destes bens que fala o Espírito em Davi: “Muitos dizem: quem nos mostrará os bens? [40]”. Mas não o bem, justamente. Eles se inquietam e se agitam por muitas coisas, enquanto que só uma coisa é necessária. Esta parte, a boa parte[41], que nos foi revelada pela santa palavra de Deus, ou a ignoraram passando ao largo, ou a negligenciaram e a perderam. Não lhes ocorreu ao espírito buscar o que vale a pena ser buscado mais do que toda outra coisa. Os que foram ensinados por Davi, que resolveram seguir suas pegadas, disseram: “Sobre nós se revelou a luz de sua face, Senhor[42]”. Vale dizer: o conhecimento de sua glória única se manifestou a nós como em um espelho. Assim a maior parte dos homens se regozija por possuir muitos bens. Mas os que vivem no Espírito recebem acima deste mundo a luz do conhecimento do bem único, o bem absoluto. 33. Assim como a impetuosidade de um curso d’água é tanto maior na medida em que este corre num só leito do que quando se divide e se separa em muitos ramos, também a contemplação do intelecto, o movimento e o impulso que lhe são próprios serão mais fortes se não o obrigam a se dividir e se modificar, mas se concentram num só ponto sem se dividir. É o que acontece naturalmente quando o intelecto, com toda sua contemplação, se volta e mira o Um absoluto acima do mundo. Pois o Um absoluto acima do mundo se lhe assemelha verdadeiramente. É impossível que o intelecto ao qual foi concedido ver o Um não receba naturalmente sua forma, como uma imagem, e não realize a unidade da ordem única, não se torne simples, sem cor e sem figura, inqualificável, intangível, invisível, sem limite nem forma, tal como o Um absoluto acima do mundo, iluminado pelos raios do eros divino que está acima de tudo, coroado pela revelação do conhecimento místico, pelo silêncio e pela incompreensibilidade que ultrapassam a razão e o entendimento, nas delícias do regozijo espiritual e da felicidade celeste. Pois ele conheceu a mudança que conduz ao mais divino, ele se revestiu da forma divina, ele adquiriu em espírito a simplicidade, a ausência de forma e de figura, a unidade e as demais qualidades que mencionamos. Mas se ele não chegar a este ponto, se não experimentar esta mudança divina, ser-lhe-á impossível tocar e ver o Um mais alto do que o mundo. Pois Deus é a Unidade que unifica, a Inteligência que ultrapassa o entendimento. A partir deste momento o intelecto vê a Deus, mais alto do que o mundo, quando, junto
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com tudo o que mencionamos, ele se torna o Um que ultrapassa todo o entendimento e experimenta a visão divina. 34. As três Pessoas da Divindade acima do ser estão reunidas sobrenaturalmente na Unidade. Pois Deus é a Unidade das três Pessoas. Assim, não é possível que a alma se torne uma imagem à semelhança de Deus se ela própria não for tripla e não tenha chegado sobrenaturalmente a se tornar o Um em si mesma. Digo que a alma é tripla, não por que ela esteja dividida em razão, ardor e desejo. Não é propriamente nisto que a alma é tripla. Por que a alma racional não tem por que se dedicar ao desejo e ao ardor, que são privados de razão, que pertencem à vida presente, à vida animal, e que são por si mesmos selvagens e tenebrosos. A alma está dedicada à razão, e sua natureza é cheia da luz intelectual. É preciso dizer aqui que ela possui por si só as coisas sem as quais ela não poderia pôr a trabalhar sua própria energia. Mas ela age bem sem o ardor e o desejo. Na verdade, é quando ela age sem estes que ela age realmente. Eles não fazem propriamente parte dela, mas, como foi dito, constituem nela potências de ordem animal e inferior. Pois a alma racional contempla pelo intelecto as coisas do alto, ela olha o inteligível, ela se coloca além de si mesma, ela rejeita para longe como meras bravatas o desejo e o ardor, e não tem o que fazer com eles. Como foi dito, ela se lança para o lugar onde estão a simplicidade, a ausência de imagens, de figura, de cor e de forma, e todas estas coisas que exigem uma inteligência livre e totalmente simples. É nesta própria simplicidade que a alma é tripla. Pois ela pé a inteligência que, pela razão e o espírito, executa o que lhe é próprio e que não prejudica absolutamente esta simplicidade. Com efeito, o fato de que seja simples a Origem única, a Divindade de quem a alma é a imagem semelhante não impede que ela seja uma e simples. A Divindade é justamente o Um absoluto acima do ser, mas nem por isso deixa de ser, e é certamente, a Trindade. O mesmo acontece com a alma. O intelecto (pois a alma é o intelecto, e o é totalmente), a razão e o espírito são sobrenaturalmente um. A alma nos permite que nos assemelhemos à Divindade única em três Pessoas. E isto não lhe vem aliás senão da consideração e da contemplação da Unidade sobrenatural das três Pessoas. É esta unidade que fez da alma esta imagem, e a tornou esta imagem antes da queda. E sem a consideração e a contemplação da unidade, é impossível que a alma se unifique. Se não chegamos a ver a unidade, se não reencontramos a semelhança, permaneceremos sempre imperfeitos. Assim, tudo o que nos permitir alcançar a contemplação e a verdade será digno de nossa atenção. Sem essas coisas nos será impossível alcançar o estado de impassibilidade. Pois assim como precisamos da ação para nos voltarmos para o bem, a fim de nos colocarmos entre os impassíveis, também precisamos da contemplação para descobrir a verdade, a fim de nos tornarmos semelhantes a Deus, e adorarmos a Deus que domina o universo, buscando tornarmo-nos deuses por adoção, na medida em que nos é permitido nos assemelharmos ao modelo. É então necessário que nos tornemos um, pela semelhança com o modelo, que é o Um acima do mundo. Esta é a obra da consideração e da contemplação deste Um, da tensão, do retorno do intelecto, do olhar voltado diretamente para ele. Assim é que é preciso nos esforçarmos por todos os modos para nos voltarmos para o Um acima do mundo e de todo entendimento, para a ele nos ligarmos inteiramente com todo fervor, de todo coração e com toda nossa alma, nutrindo em nós o eros voltado para o Um – e somente para ele – o Um que está acima do mundo e que se debruça sobre tudo, como se este eros que trazemos em nós nos desse asas santas para nos elevarmos até ele através do intelecto. Assim como no espaço, num estado de simplicidade além de toda forma, estaremos sempre juntos do Senhor[43], do Um verdadeiro. Pelo intelecto e a razão levaremos em espírito a tripla celebração à Trindade. Abertos naturalmente para ela, arrebatados, estaremos na simplicidade unidos ao Um por nossa própria união além de toda união. 35. A unidade sensível é o princípio de toda multitude possível de enumerar. E a unidade mais alta do que o mundo é o princípio de toda multitude visível e invisível e de todo ser. Assim, do mesmo modo como todo número extrai da unidade sua origem, também todo ser provém do Um mais alto que o mundo, no qual tem sua causa natural ou criadora. Mas o lugar da unidade numérica, dado que esta unidade é sensível, decorre de sua própria natureza. Pois ela é a origem de tudo o que está submetido ao número. E na ordem sensível dos números, ela é o primeiro. Mas quanto ao Um acima do mundo ocorre o contrário,
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por que ele está além da inteligência. Ele é por natureza a unidade original de todas as coisas, e o intelecto o coloca depois de todas as coisas. Pois nenhuma inteligência pode tomar como como origem o Um mais alto do que o mundo, e daí se dirigir para o múltiplo. Ao contrário, é do múltiplo que ele se eleva até o Um e nele se recolhe. Por um lado, o um numérico é necessário aos sentidos para progredir no múltiplo: de outro modo, nenhum ser poderia contar ou avançar como desejasse. Por outro lado, o múltiplo é necessário ao intelecto para que, através dele, este se eleve até o Um mais alto que o mundo e nele se recolha, por que não há outro ponto de partida para que ele se eleve por meio da contemplação deste Um acima do mundo. Portanto, o intelecto, segundo sua ordem e sua via próprias, começa pelo múltiplo e tem seu fim no Um supremo acima do mundo. Pois o um numérico, tal como o concebem os sentidos é fácil de conceber e definir: os sentidos o colocam naturalmente em primeiro lugar, como pede sua natureza. Mas a unidade que a inteligência busca, a que está acima do mundo, por ser sobrenatural e não se deixar compreender, está longe do lugar que é seu por natureza, um lugar tal que a inteligência pudesse partir dele. Ao contrário, o intelecto o encontra não como uma origem sobrenatural, mais alta do que a natureza, mas como um final que se segue à passagem, e por assim dizer depois da total enumeração do múltiplo. Com efeito, uma vez que a natureza do intelecto é de compreender, e que o Um acima do mundo é em si incompreensível e inacessível, a atividade do intelecto se inclina contra sua vontade para o múltiplo. O intelecto não pode passar sem compreender, mas também não tem força para captar o Um supremo mais alto do que o mundo. Quando ele observa o múltiplo, ele vê assim em cada coisa aquilo que é inteligível, não o que faz desta coisa um ser, mas aquilo que o liga a uma unidade. Recolhendo a seguir de cada coisa que ele vê tudo o que lhe parece inteligível, e considerando que os seres correspondem e não se opõem entre si, sendo como as flores de uma mesma raiz e de uma mesma planta, ele vai do múltiplo ao Um supremo, que permite à multidão de todos os seres se reunir naturalmente e passar do estado de natureza à ordem sobrenatural. Então ele contempla o Um acima da natureza e do ser, uma vez que ele agora se coloca em sua natureza de ver simplesmente o sobrenatural a partir das coisas naturais. Então o intelecto, que teve sob seus olhos, inefavelmente, o jorro da fonte, o transbordamento criador de todas as bondades e de todas as belezas, e que se deliciou no Um mais alto do que o ser, já não retorna por si mesmo para o múltiplo, ainda que aí os seres sejam belos e tragam em si a boa parte. Pois ele ama naturalmente a beleza a ponto de não mais se afastar voluntariamente Daquele que está acima de tudo, a menos que alguma circunstância o obrigue. Mas uma vez que os seres não se apresentam todos da mesma maneira, o intelecto tem uma visão intelectual diferente de cada um deles, e, por intermédio deles, ele retorna diferentemente ao Um sobrenatural acima do mundo. A meu ver, é preciso ter se esforçado um pouco em caminhar sobre a via que conduz do múltiplo ao Um acima do mundo, para além do ser, para que o intelecto, elevando-se como que por degraus, afirme bem seu movimento próprio, saiba se este movimento não se apresenta defeituoso, se ele segue bem por onde deve andar, ainda que por algum tempo tenha se deliciado no Um, e saiba também qual foi o seu erro, na medida em que se afastou desta beleza e desta revelação, deste banquete divino, e como lhe será possível retornar para o lugar de onde caiu. Então ele conhecerá a bruma das paixões, a claridade do coração puro e a descoberta da verdade. Por que ele terá visto no espelho o que ele é. E tomará parte das contemplações celestes, e trará em si o sentido divino, e não voltará atrás, quer cresça quer decline na ciência destas coisas admiráveis. E ele compreenderá qual é o objetivo da hesíquia e do enclausuramento. É justamente isto que dizemos aqui. Todos os seres estão distribuídos em seres criados e sensíveis, seres criados e inteligíveis e seres incriados e inteligíveis. O incriado que ultrapassa a inteligência é o Um mais alto do que o ser. No entanto, o olho da alma – ou seja, o intelecto – que se volta para o Um e o vê distintamente, caso escolha viver na hesíquia e na ascese, se elevará como que de um primeiro degrau desde a ação que o levará a fazer solitariamente aquilo que lhe é natural, até a contemplação que lhe permitirá permanecer no Um verdadeiro, onde receberá as delícias do celestial, onde se cercará e se regozijará com os raios da verdade, onde se enriquecerá infinitamente com o eterno, e dele se cumulará maravilhosamente de encanto e doçura. Pela sinergia da graça, quando chegar o tempo, quando a luz
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intelectual nele se firmar de modo contínuo, o intelecto poderá se elevar da terra. Tomado por Aquele que está além dele, e vendo Aquele que está incomparavelmente além de toda beleza, ele já não sentirá as coisas daqui. Esta escada sagrada possui cinco degraus e se eleva de degrau em degrau até o objetivo extremo. Mas a distância entre os degraus não é espacial. A diferença, aquilo que separa um degrau do outro, é da ordem da qualidade ou da especificidade. Assim é que os seres podem ser criados e sensíveis ou criados e inteligíveis. Mas os segundos superam em larga medida os primeiros, assim como o intelecto, por sua beleza própria, supera os sentidos. Da mesma forma os seres incriado e inteligíveis superam em muito os criados e inteligíveis. Mas cada qual tem seu lugar na ordem dos seres. Os seres incriados e inteligíveis estão eles também submetidos ao Um, ao incriado que ultrapassa a inteligência. A partir daí a coisa é clara: o que permite ao intelecto que se desenvolve a partir da ação alcançar Aquele que o conduzirá acima de todos os seres e alçar-se ao cume do segredo que habita além de todo o sensível e de todo o inteligível, é sua visão e sua contemplação ao mesmo tempo mais altas e mais humildes no seio das criaturas sensíveis e, sobretudo, na vida ativa. Será preciso, então, uma vez que o intelecto ama a beleza por natureza, buscar aquilo que é o melhor de todas as maneiras, para não apenas usufruir, mas ter a experiência da maior mudança, aquela que naturalmente o ultrapassará. Pois, como foi dito, na medida em que vê ou que desfruta daquilo que vê, o intelecto recebe esta transformação. Porém, uma vez que o movimento giratório ligado à natureza do intelecto não terminará por si próprio enquanto durar este dia[44], e, como foi dito, até que desapareçam as sombras[45], ou seja, até que tenhamos partido desta vida presente, que nos mostra num espelho e num enigma[46] a verdade como uma sombra, é preciso que, inclinando-nos a partir da contemplação e da visão do incriado, do Um que ultrapassa a inteligência, aproximando-nos assim dos seres inteligíveis e incriados, façamos todo o possível para retornarmos a este incriado, ao Um que está acima da inteligência. Quando se dissipar a bruma espessa que entenebrece toda compreensão e espalha a acídia que impede o intelecto de contemplar, devemos nos voltar, por meio da ação e com um coração humilde, para as orações. E quando, pelo poder da prece e as lágrimas, as trevas se forem, quando a luz do intelecto, pela energia anipostática do Espírito, ocupar o primeiro lugar no coração, ou seja, quando o intelecto for o primeiro a possuir o coração, deveremos regressar como criaturas sensíveis ao grau fundamental, ao poder da vida ativa sustentada pela ciência. Então intelecto se elevará naturalmente, como ao cume de uma montanha ou uma torre de observação, e contemplará não somente aquilo que a maioria não vê, mas ainda o que buscam sem compreender, aquilo sem o que ninguém pode enxergar a si próprio, e muito menos a Deus[47]. Falaremos agora rapidamente desta vida ativa, sem nos afastarmos de nosso objetivo. 36. A alma possui dentro de si três faculdades ativas: a razão, o desejo e o ardor. E três faculdades fora dela: a busca pela glória, pelo prazer e pela abundância. A alma que, com conhecimento de causa, vê estas duas tríades, na vida encarnada que Cristo viveu, através das suas quatro virtudes gerais – a sabedoria, a justiça, a coragem e a castidade – se cura pela graça do Senhor Jesus e permite ao seu próprio intelecto elevar-se para fora das trevas, ver o divino ao seu redor e contemplar a Deus. Com efeito, quando o Senhor Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto para combater o diabo[48], ele curou o desejo por meio do jejum, a razão por meio da vigília e a prece na hesíquia, e o ardor pela refutação. Ele não procurou nem o amor pelos prazeres, nem o amor pela vanglória, nem o amor pelo dinheiro, ainda que tivesse fome e o diabo lhe propusesse transformar as pedras em pão; ele tampouco se atirou do pináculo do templo para ser glorificado pela multidão quando a queda não lhe causasse nenhum ferimento; e ele se recusou a se prosternar diante da promessa de receber a riqueza de todos os reinos. Sua ardente refutação foi sábia e justa, casta e corajosa. Ele rejeitou Satanás, nos ensinando a vencê-lo cada vez que ele atacar. As mesmas coisas veremos nós, e poderemos conhecê-las pela cruz do Salvador. Orava o Salvador, no tempo devido, afastando-se dos seus discípulos[49]? Esta é a cura da razão. Permanecia ele vigilante,
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velava, sofria a sede na cruz[50]? É o remédio contra o desejo. Ele não contestava, não disputava, não gritava[51]. Injuriado, não orava ele pelos que o ultrajavam[52]? Esta é a justa medida do ardor: refutar o diabo, responder com o silêncio, a paciência, aos homens que nos ultrajam, pois eles próprios sofrem o ultraje de Satanás, e orar por eles. Não recebeu ele os escarros e as bofetadas, não suportou a zombaria e os gracejos da multidão[53]? Este é o tratamento que previne o amor à vanglória. Não foi ele servido de vinagre, alimentado com bílis, crucificado, perfurado com a lança[54]? Esta é a cura do amor aos prazeres. Não foi ele suspenso à cruz, em pleno ar, nu, ao desabrigo, à vista de todos, como um pobre e um indigente? É isto que destrói todo pendor pelo amor ao dinheiro. Assim o Salvador nos mostrou por duas vezes a cura das paixões de dentro e de fora: quando ele começou a se revelar ao mundo em seu corpo, e no momento em que deixou o mundo. É por isso que quem o vê, quem vê seu ensinamento e sua cruz, e que o imita tanto quanto possível, com a sabedoria e a justiça, a castidade e a coragem que ele próprio possuía, abolirá a energia dessas paixões que conduzem ao mal, e através destas a energia de todas as paixões, e as tratará como devem ser tratadas, e depois delas a todas as demais paixões. Este se tornará um homem que age segundo a verdade, pronto a contemplar e ver a Deus, e a se consagrar a esta tensão do intelecto. Assim é que o intelecto, que começou pela multitude dos seres que ele pode sentir – os seres criados –, viu realizar-se sua obra de beleza, daí compreendeu os seres criados e inteligíveis e em seguida se dirigiu aos seres inteligíveis e incriados, passou por quatro degraus, como numa escada. A partir deste momento já não se fala mais nada, vêm o silêncio e o arrebatamento divinos que ultrapassam a inteligência, numa palavra, a consideração e a contemplação do Um mais alto do que o mundo, a união que ultrapassa o entendimento, o coroamento da hesíquia, o objetivo extremo, o cumprimento perfeito do desejo – na medida em que este pode ser atingido na vida presente – a realização da verdade, o fruto da fé, o claro esplendor da glória esperada, o fundamento do amor, a realização da inteligência, a detenção de seu movimento contínuo, o fim do incompreensível, o estado de simplicidade, a obra que nos garante os penhores do século futuro, a causa da felicidade inimaginável, o tesouro da paz, a extinção dos cuidados da carne, o afastamento do século presente, a tensão em direção ao século futuro, o abandono da vida passional, a aquisição natural da impassibilidade, o alegre regozijo da alma, o recolhimento, o repouso e a guarda de seus movimentos e seus poderes, enfim, para resumir em poucas palavras, o conhecimento divino e a impassibilidade. O intelecto que recolhe sua boa vontade, ou seja lá qual for a circunstância exterior, deve então considerar que terá que retornar à sua beleza própria, a beleza da contemplação, desembaraçando-se da paixão que o entrava e o afasta de seu objetivo. Ele deve considerar o quanto está distante de atingir o objetivo extremo de seu desejo e o porquê disto, ainda que lhe tenha sido dado contemplar os seres sensíveis e criados, os seres inteligíveis e criados ou os seres inteligíveis e incriados, ou ainda que esteja separado da Um acima do mundo, o único verdadeiro e além de toda unidade, por pensamentos vãos ou qualquer outra necessidade. Ele deverá afastar os obstáculos entre ele e este Um, a fim de retornar simplesmente, como o pede sua própria ordem, à contemplação e à consideração do Um acima do mundo. Pois o intelecto que se encontra fora deste Um, fora do Um incriado que o ultrapassa, está submetido à divisão e já não se encontra no seio da verdadeira beleza, ainda que se conduza bem. Esta beleza suprema é, com efeito, o Um mais alto do que o ser, simples e incriado, além de toda inteligência. É ela que oferece em verdade ao intelecto sua extrema realização. Assim, o intelecto que sabe se conduzir de modo são, se vê elevado por tudo o que dissemos e conhece a união que o ultrapassa. Devemos perseguir o quanto pudermos o infinito, buscar aquilo que ultrapassa a inteligência, contemplar o Um sem forma, e compreender desde o princípio o incompreensível, a fim de descobrir em sua simplicidade a herança do Deus Altíssimo, a herança do Um, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo e do Espírito vivificante, que nos concedem o esplendor da contemplação e o dom de Deus: pela adoção, nos tornarmos maravilhosamente deuses.
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37. O intelecto que se eleva até o lugar onde Deus se oculta permanece naturalmente silencioso. A simplicidade o unificou. Na unidade e na comunhão do Espírito, ele se torna iluminado pelo Um que ultrapassa o entendimento. Com efeito, que poderá ele dizer, uma vez que se encontra acima de sua própria faculdade, colocado fora de todo e qualquer pensamento, inteiramente nu, acima da própria meditação? Pois se ainda lhe restasse uma palavra, por assim dizer, é sinal de que ele ainda se manteria pensando, pois toda palavra segue um pensamento. E, se ele ainda se mantivesse pensando, como poderia ter penetrado no lugar daquilo que é oculto? Com efeito, nada está propriamente oculto se o intelecto o puder ver, ainda que mais ninguém o veja. Se não fosse assim, existiriam muitas coisas ocultas. Pois a maior parte das coisas, e mesmo, por assim dizer, todas as coisas que vê o intelecto, ele as vê ainda que mais ninguém saiba o que ele está vendo. As coisas ocultas seriam então em número infinito, o que é absurdo. Pois o que é realmente secreto é o Um. E é em direção a ele que se eleva o intelecto depois de todas as coisas, como para a origem de tudo o que é visível ou inteligível. Evidentemente, ao se elevar para o que está além de tudo o que pode ser visto, dito e pensado, ele terá ultrapassado a visão, a palavra e o pensamento. Mas ele não terá alcançado ainda este ponto, nem terá penetrado no mistério de Deus enquanto puder falar. Pois ainda estará pensando, e o segredo é impensável, estando assim além de toda palavra. E o intelecto que se elevou até o lugar do segredo divino e a ele se uniu, se cala, voluntária e naturalmente, simplesmente, iluminado pelo Um que ultrapassa o entendimento. 38. Se as palavras fazem o intelecto avançar e progredir, também elas se elevarão e progredirão até o ponto em que já não existirão mais palavras, ou seja, na realidade, no silêncio perfeito. Mas se as palavras estão sempre ligadas ao intelecto, se a alma tem sempre necessidade delas, não vejo todavia qual progresso intelectual se pode obter falando. Pois, é claro, falar é útil, não apenas para agir como também, e não menos, para contemplar. Entretanto, a partir das palavras que representam os seres, o intelecto se eleva parcialmente em direção ao Um simples, sem forma, absoluto, que ultrapassa o entendimento. Ora, aí toda palavra parece deslocada, ou se torna, a bem dizer, um obstáculo. Pois as palavras geralmente passam de um pensamento a outro pensamento. Mas aquilo que é simples, absoluto, sem limite e sem forma, numa palavra, o Um que está além de qualquer palavra, como teria ele necessidade de palavras, e para ir aonde? Como o poderíamos compreender? Pois a palavra normalmente busca a compreensão, e o incompreensível não possui limite nem forma. E, se a palavra não é capaz de se adaptar ao Um que ultrapassa o intelecto, ela sempre poderá se adaptar ao silêncio. Os que progrediram falando devem ao final se calar, a partir do momento em que se dirigiram à pura contemplação, fora de toda figura e de toda forma. 39. As palavras estão ligadas ao conhecido, e o que é oculto é desconhecido. Portanto, o que está oculto está fora de qualquer palavra. Pois se a ignorância do que é oculto é mais alta do que o conhecimento, aquilo que está além do conhecimento não tem necessidade do conhecimento, nem precisará de palavras. O intelecto que se elevou até o Um absoluto, o Um oculto, se cala naturalmente. Mas se ele se calar sem que isto lhe seja natural e sem se dedicar ao silêncio, ele não terá ainda alcançado o Um oculto que se desenvolve acima de tudo. 40. Assim como acontece eventualmente aos homens que vivem na hesíquia sair de suas celas e, por meio desta experiência, conhecer a diferença entre se manter imóvel e sair, também os que, por meio da contemplação, se ligam à glória de Deus, que vivem no silêncio, mas que se põem a falar num dado momento, sabem por que, no estado em que se encontram, o silêncio lhes vem naturalmente e não por intenção, e por que se permitem falar mesmo possuindo em si este silêncio. Eles oram. Senão, mantendose em seu estado, eles jamais chegariam a abrir a boca. Por que eles estão na terra dos anjos: com os olhos fechados, em toda a unidade e toda a simplicidade, fora de qualquer figura ou forma, numa palavra, unidos à verdade nas visões imutáveis do intelecto, a sós consigo mesmos, eles se maravilham e se admiram sem pensar em nada, apenas se atirando de olhos fechados nos flamejamento divinos que não têm começo. Mas quando o intelecto, que tem a faculdade de mudar, retorna do êxtase, eles acabam por falar e se
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transportar pelo pensamento de um estado a outro, passando assim várias vezes e de diversas maneiras do silêncio à palavra. Depois, para retornar ao estado de silêncio – que é bem melhor do que a palavra – eles abraçam a hesíquia, se protegem de seus sentidos e de todo o sensível, e, ao mesmo tempo em que cessam de falar, se esforçam por todos os meios para não pensar, a fim de poder dizer com Davi: “Eu permaneci mudo, eu me humilhei, eu estou calado, longe dos bens[55]”. Falar dos bens está, portanto, abaixo do silêncio que acompanha a palavra. 41. O divino não é nem totalmente aparente nem totalmente oculto. É claro que ele existe, que ele é, mas aquilo que ele é permanece oculto. E é grande a diferença entre saber o que ele é e saber que ele existe. Uma coisa é revelada pela energia, mas a outra – aquilo que ele é – pertence à essência, aquilo que mesmo os anjos não podem saber de Deus. Pois Deus é ao infinito infinitamente mais alto do que todo ser, do que toda inteligência e do que todo pensamento. Quando ele se configura àquilo que revela o que é Deus, o intelecto tem muito a dizer e pouco a filosofar. Nestes casos, o filósofo pode também ser chamado de teólogo. Mas quando ele vai mais longe e mais alto, graças ao fato de que o segredo de Deus o envolve, ele é levado pela visão daquilo que é. A graça lhe concede ser sem forma naturalmente, sem contato, sem rosto. Toda palavra que pudesse dizer qualquer coisa de Deus se cala. O intelecto, reunido à unidade, permanece imóvel, e penetra no incompreensível. Ele se entrega inteiramente àquilo que está além de tudo, lá onde já não existe palavra, nem pensamento, nem nenhuma reflexão mutante, mas a simplicidade, a incompreensibilidade, o silêncio e o arrebatamento. Ele vê o Infinito, aquilo que não tem forma nem limite. Ele vê o invisível. Mas sua visão é estranha aos sentidos, por estar diretamente ligada à forma que não tem forma. O próprio intelecto se torna absoluto, fora de qualquer figura. Conforme o que ele houver contemplado no invisível e recebido de olhos fechados, numa palavra, ele se tingirá da divina beleza sobrenatural, e glorificará a Deus que criou semelhante beleza. 42. Não é apenas por ser Deus simples, além de toda composição, que ele é chamado de Um, mas por que ele é o único que em verdade é o Ser entre todos aqueles a quem chamamos seres, mas que extraem seu ser dele. Pois aquele que não é pura e simplesmente o Ser tampouco é pura e simplesmente o Um. Deus é, de maneira absolutamente incompreensível, Aquele que é. Ele é o único que difere de tudo e que existe puramente independente de tudo. Ele é eterno, nunca teve começo e jamais terá fim. Ele faz brilhar sobre todas as coisas igualmente e com a mesma pureza o raio divino de sua providência, ainda que nem todas as coisas recebam igualmente este raio. Em verdade, ele se revela absolutamente a todos como o Intelecto simples, sem forma, sem figura, sem cor, sem contato com qualquer ser que seja, absolutamente absoluto, sobrepujando ao infinito, fora de qualquer limite, o tempo, a lugar, a natureza e as coisas que envolvem a natureza, exigindo apenas ser contemplado na simplicidade, acima da união intelectual. 43. Quando, além de todo pensamento, tem lugar a união entre Deus e o intelecto, dizemos então que o intelecto que, por meio do sentido intelectual, vê absolutamente o sobrenatural oculto, atinge o que está acima de sua própria natureza. O intelecto se torna ele próprio aquilo que ele mesmo experimenta em sua natureza purificada pela graça. Pois o pensamento está para o intelecto aquilo que a visão é para o olho. Então, assim como aquele que vê nas trevas não enxerga nada senão estas trevas, como uma só e mesma coisa, e ele vê e não vê, pois, se fechasse os olhos, poderia pensar que a luz e outras coisas estivessem ao seu redor, mas agora ele olha e vê claramente que ele não vê: ultrapassar nas trevas a faculdade de ver e conhecer o que está oculto está, com efeito, acima da natureza do olho, que não é a de ver o que não se vê; da mesma forma, o intelecto que se elevou até o lugar oculto de Deus e se encontra além de todo pensamento, não contempla nada. Como? Ele contempla aquilo que não contempla, e o que ele não contempla é uma só e mesma coisa oculta como que por uma treva, donde se origina todo ser qualquer que seja, visível ou inteligível, contado entre a criação ou eternamente incriado. E, se ele não contemplasse, ele não se veria infinitamente estendido além de si mesmo. Mas na realidade ele contempla. E contempla com toda clareza que não contempla, por que está acima da contemplação. Pois lhe é impossível contemplar o que não contempla.
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Penetrar e contemplar no interior do lugar de Deus, o lugar único e oculto que está acima de si, ultrapassa a natureza do intelecto. Mas considerar a treva divina deste lugar oculto, ver nela a unidade inefável que domina todas as coisas num mistério indizível, e contemplar que nada contempla no interior da treva divina, isto é próprio do intelecto puro que contempla no Espírito. Com efeito, quando o intelecto contempla que nada contempla senão a unidade divina absoluta que reside no lugar oculto, a visão intelectual não se fecha, tapada e inerte. Isto é apenas o signo de sua ignorância. Quando ela contempla com clareza, então ela se eleva para aquilo que a ultrapassa e, considerando o lugar oculto, o lugar do Um contempla claramente que o Um é a origem de tudo o que é oculto. Mas não contempla aquilo que ele é. Foi dito que o intelecto alcança neste momento aquilo que ultrapassa sua própria natureza. Pois ele considera o lugar de Deus, o lugar que é infinitamente simples e oculto. Mas chegar até lá não é natural para o intelecto, a menos que ele tenha se tornado puro. Sua natureza, então, passa a ser a de chegar de olhos fechados àquilo que está acima da natureza, ou seja, de se dirigir inconcebivelmente para o lugar de Deus, o lugar único e oculto que se estende infinitamente além dele. Pois então ele cessa de possuir em si seja lá qual forma de conhecimento for. Ele não conhece senão o Um indivisível. Tendo chegado a este ponto por seu próprio movimento, ele se detém na imobilidade e no repouso. Não falo da imobilidade desprovida de contemplação, pois isto é a demência. Falo da imobilidade e do repouso nos quais parramos de passar de um pensamento a outro, o que nos permite contemplar. Pois o intelecto que chegou até aí, que atingiu a incompreensibilidade do lugar de Deus, o lugar oculto e invisível, e que se encontra em plena luz intelectual, no coração de um espaço infinito que não tem limites, por assim dizer se abandona e permanece imóvel, não experimentando outra coisa que o arrebatamento que o cumula de alegria radiosa. Ele não sai de si, mas é animado pela energia da luz intelectual. Ele contempla imóvel o lugar oculto que está acima do ser. Na unidade e na simplicidade, ele está privado de todo conhecimento, mas se vê cumulado de beleza pela interioridade inacessível do indivisível flamejamento. A contemplação não o deixa inerte. Senão, como poderia ele provar do arrebatamento e a alegria radiosa? Mas quando o intelecto chega a este ponto dizemos que ele permanece imóvel. Ele contempla, ele descobre o Um sem ter que se agitar, ele se dirige para o esplendor do Um que o cumula de alegria e luz, e permanece imóvel. Mas ele próprio não deixa de usufruir da contemplação. Pois evitar esta experiência é algo condenável, cheia das trevas da ignorância: estaríamos, neste caso, completamente fora da contemplação. A detenção do intelecto acontece diante de um flamejamento inacessível de luz. A contemplação, aqui, não busca a mudança, a passagem de um estado ao outro, mas o repouso e a detenção. Pois este Um sobrenatural que permanece acima do ser e se revela no lugar oculto, é infinito. Nenhuma inteligência pode chegar até aí. No entanto, não convém que o intelecto contemplativo contemple em outro lugar, desde que ele tenha recebido a purificação que lhe é própria e a elevação divina. Ele não descerá desta contemplação divina, deste esplendor que está acima de toda beleza e deste infinito, a menos que seja atraído pelas paixões, pela avidez ou pela versatilidade natural de que costuma sofrer. 44. A natureza do intelecto é o pensamento, e o pensamento reside na mudança e no movimento. Mas, uma vez que o intelecto que penetrou em Deus se encontra acima do pensamento e do movimento, podemos dizer com razão que, ao contemplar a Deus, ele ultrapassou completamente sua natureza. Pois está claro que todo pensamento tem sua origem em alguma coisa. Onde não existe nada para ver, nenhum pensamento pode nascer nem se encontrar aí. Deus, que de forma alguma pode ser visto em sua realidade, se revela naturalmente ao intelecto por meio daquilo que o cerca ou seja, por aquilo que ele anima com sua energia. Com efeito, todas as coisas são lugares de uma potência proveniente de um ser potente. Assim, a partir do momento em que o intelecto se habitua a contemplar as potências que acompanham os seres potentes, ele se volta para conhecer a Deus. Mas ele não consegue, por que isto está além da natureza de toda e qualquer inteligência criada. Ele contempla aquilo que está ao redor de Deus, e, com os olhos fechados, como dissemos, ele representa Deus para si colocando sobre ele, simples e em recolhimento, toda a sua atenção. Assim ele alcança o céu da hesíquia, ganha a bem-aventurança divina e,
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por meio da energia do Espírito de Deus, do Espírito de adoração que age sobre ele, se torna continuamente arrebatado para longe de todo pensamento, num estado simples, fora de qualquer figura e de toda propriedade. O poder sobrenatural do Espírito o faz penetrar no interior do coração rapidamente. Aí ele permanece imóvel na visão de Deus, e já não pensa em mais nada. Ele está além do pensamento. Do pensamento das coisas que estão ao redor de Deus ele se eleva à visão divina e se restabelece na simplicidade. É neste momento que se diz que ele ultrapassou sua própria natureza, por que atinge um ponto que está além de todos os pensamentos. 45. Tudo o que dizemos ser oculto deve se revelar de algum modo. Por isso estas coisas são chamadas de ocultas: senão elas estariam mais próximas do mero nada. De fato, podemos pensar: aquilo que não se dá inteiramente a conhecer, de uma maneira ou de outra, é semelhante àquilo que absolutamente não existe. O segredo de Deus não deixa de incluir pequenas revelações por meio das quais o intelecto que segue estas pegadas consegue pressentir este lugar oculto, elevando-se em direção à incompreensibilidade por meio daquilo que é compreensível em Deus. É então que ele se dá conta de que existe precisamente algo que escapa à sua compreensão natural, que é muito elevado para que ele possa perceber, por que este lugar oculto é sobre natural. Causa, começo e fim de toda a natureza, de todo ser e de toda existência, ele é em si mais alto dos que a natureza e do que o ser, infinitamente além de toda existência. Ele está fora de todo nascimento, de todo começo, de todo limite. A natureza, o espaço, o tempo simplesmente não o podem conter. Assim é o Um oculto que ultrapassa a inteligência. E é dele que provém naturalmente a compreensão divina, que é tão abundante que nos conduz novamente para ela nas alturas e que, guiando-nos em espírito, chamando-nos a retornar e nos atraindo para si, nos une ao Um original e oculto, mais alto do que a natureza. E ele nos une de tal forma a si que sabemos que ele existe e é, e que ele é o Um, mas também que nos é absolutamente impossível conhecer este Um oculto. O que está acima da inteligência e que escapa ao pensamento, que se pode falar dele? Aquilo que é inteligível e do qual não se pode falar, o intelecto o contempla na unidade, em silêncio, indizivelmente, inefavelmente, além de todo pensamento, como segredo, regozijando-se aí como da causa e da providência, e disto se maravilha como do ser mais que luminoso, mais do que bom, mais do que sábio, mais do que poderoso, dele recebendo uma alegria divina, como através de todos os seres que que não têm fim nem limite, que revelam o Um oculto que está acima do ser, e, certamente, a continuidade da natureza dotada de razão. Não é normal que o intelecto que experimenta estas coisas as mencione ou que delas fale ao passar de um estado para outro. Portanto, se ele não se cala e se põe a falar, é por que ainda não atingiu seu estado extremo. Pois é assim o estado extremo, como o testemunham aqueles que nada colocam diante da verdade: quando o intelecto alcança o ponto mais alto de sua energia, o estado supremo consiste na contemplação deste ponto mais alto, a qual, como foi dito, se exerce bem abaixo, com os olhos fechados e em silêncio. 46. Quando o intelecto se dirige ao lugar de Deus com seus olhos fechados, para o cume do lugar oculto, único e além de todo o conhecimento, a própria percepção que ele tem disto é cega. Esta percepção lhe vem de além, marcada de simplicidade e de unidade, e cheia de esplendor inefável, acima de toda beleza e de toda luz. No silêncio ela chama para um abismo de admiração e arrebatamento. Ela investe o coração de energia espiritual e doce alegria. Ela se torna assim, no intelecto, a iluminação intelectual, flamejante, a imagem do eros divino, regozijo radioso. Ela tem sua fonte em Deus, de onde provém todo dom de bondade[56], por intermédio da pureza do intelecto. E ela extrai sua matéria, se podemos dizer assim, das revelações divinas reveladas pouco a pouco nas Escrituras e nos seres correta e sabiamente contemplados na hesíquia e na prece. Pois a visão do Um oculto no interior do divino, além de todo pensamento, não é fortuita. Vemos o Um no esplendor que provém do lugar oculto, esplendor simples que cumula para além de tudo a consideração e a contemplação intelectuais. Quem não experimentou isto na razão e no conhecimento sobe de modo exterior para o Um oculto, simples e sobrenatural, mas não tem em si a energia do coração nem a luz do intelecto.
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47. A claríssima, pura e simples contemplação do intelecto em Deus, a contemplação voltada para o lugar de Deus, o lugar único e oculto, e para o esplendor que irradia deste lugar, a contemplação que recebeu o divino flamejamento da efusão luminosa sem começo nem fim, exige não somente o silêncio da boca mas também do intelecto. Quando a boca se cala ainda é possível que o intelecto siga trabalhando no interior, entregando-se aos pensamentos e às reflexões mais diversas, como se a palavra se encontrasse no interior. Mas neste caso o intelecto estará longe de se elevar até o lugar oculto da unidade divina, este lugar que se estende para além de toda figura. Com efeito, a contemplação do intelecto é uma coisa, e seu trabalho, seu pensamento que procede da palavra interior, é outra. O intelecto que penetrou nas coisas criadas e compostas, ou simplesmente diversas, começa por contemplar, depois ele próprio se diversifica e se põe a pensar. Muitas vezes ele encontra numa mesma coisa inúmeros pensamentos. Mas no lugar de Deus, no lugar interior oculto, único e simples, ele volta e derrama o olhar de sua contemplação e é iluminado pela simplicidade da irradiação divina. Ele quase não se dispõe a pensar, pois a simplicidade do Um escapa a toda mudança e dispersão do intelecto. E o lugar secreto está fora de toda palavra que pudesse explicar o pensamento por um discurso interior e pela boca, É por isso que o homem que se elevou em espírito até o lugar de Deus, o lugar oculto, o lugar único da maior glória, silencia naturalmente em sua boca e em seu intelecto. 48. Quando o intelecto se converte inteiramente a Deus, quando sua contemplação é absorvida pelos raios perfeitamente luminosos da beleza divina, quando ele se eleva além de toda figura, a simplicidade e no ilimitado do Um oculto que não tem forma, quando ele se torna em si mesmo o Um por sua própria tensão em direção a este e a admiração de seu olhar no sopro do Espírito, então esta busca do coração encontra claramente o estado de infância. O intelecto prova do Reino de Deus, inefável e sobrenatural, como disse o Senhor: “Se vocês não se converterem e não se tornarem como crianças, vocês não entrarão no Reino dos céus[57]”. Com efeito, o intelecto que ultrapassou os limites, que se voltou para o indizível desconhecido acima dele, vê-se inteiramente restabelecido em sua liberdade e em sua independência perante todo começo, todo pensamento, toda composição, toda diversidade. É com naturalidade que ele silencia. Seu estado não apenas se encontra acima de toda e qualquer palavra, como está acima de sua própria energia. Pois ao mesmo tempo em que aborda o lugar oculto onde já não existe forma, ele traz em si o sobrenatural, a graça e a doçura que culminam no regozijo intelectual. 49. É numa forma sobrenatural além de toda forma, numa beleza imaterial que não é composta, e na mais simples figura que os contemplativos contemplam a Deus, o Um em sua unicidade, coroado de bens infinitos, adornado de belas luzes inumeráveis, envolvendo todo o intelecto com as belezas luminosas de sua irradiação, como uma beatitude inefável e indizível, uma abundância incontida de coisas belas e boas que jorram da fonte infinitamente, um imenso tesouro de glória, insondável, inesgotável, que cumula as inteligências cegas com tantas delícias, alegrias, graça e o mais puro regozijo que brota sempre misteriosamente desta unidade divina sobrenatural mais alta do que tudo, oculta no segredo inacessível. Deste local oculto se espalha. Tão imenso que ninguém pode ver seus rastros, um oceano de inefável bondade, de amor inexplicável, de providência incompreensível, no coração de um poder que não tem limite e que é de uma sabedoria indizível: estas coisas que os próprios anjos e serafins não conseguem conceber, por que elas estão além de toda inteligência. Uma razão inefável nos permite tê-las em nós ainda no século presente, mas é no século futuro que elas serão reestabelecidas e como que geradas e realizadas, e elas maravilharão o intelecto dos querubins, que até então as compreendeu apenas obscuramente. Ó bondade e vontade de Deus, amor e doçura, sabedoria e providência divinas! Verdadeiramente bemaventurados são aqueles cujas faltas foram apagadas e os pecados perdoados[58]! Bendito o homem que o Senhor instrui e ao qual ele concede o ensinamento de sua Lei e do Espírito[59]! 50. É em espírito e verdade[60] que se revelam as coisas invisíveis aos habitantes do mundo que não podem receber o Espírito Santo[61], conforme nos mostrou o Senhor. Alguns no entanto imaginaram que seria melhor partir, morar longe do mundo e daqueles que vivem no mundo. Pela graça divina, a luz da
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inteligência, o Oriente altíssimo[62], o Oriente do sol inteligível, iluminou os olhos de seus corações. Eles receberam o socorro que vem de Deus, e as revelações estão em seus corações[63]. A irradiação das visões divinas os ilumina. Eles veem de forma natural e clara inúmeras coisas que vêm de Deus, que são oferecidas ao intelecto e que são dignas da contemplação espiritual. Aqueles que assim levaram uma vida santa estão ainda prometidos ao restabelecimento futuro, eterno, imutável, que não apenas não será sensível como ainda ultrapassará o intelecto. Com efeito, todos os que tiverem alcançado o estado mais alto do que a inteligência, que tenham alcançado a vida e as delícias que ultrapassam o entendimento, serão inteiramente transformados. Eles serão como que deuses por adoção, transbordando de alegria diante Daquele que é naturalmente Deus, e se regozijarão dos bens sobrenaturais que o Deus supremo lhes dispensará, ele, o Deus único por natureza. Eles estarão ao redor dele. Sua vida, em toda santidade, em toda pureza, será no mais alto ponto do cume divino, cume que ultrapassa o intelecto. Eles dividirão com todas as ordens inteligíveis dos anjos a única alegria regozijante, a única celebração das delícias bemaventuradas. Imenso é o fluxo da pura alegria das belezas últimas, é impossível se fazer uma ideia do que seja. Pois se a beleza sensível que, por intermédio dos sentidos, toca o intelecto, esta beleza que é limitada e que passa, que não é ímpia nem incriada, suscita na alma delícias que não são da graça, e se os que têm inteligência e consideram a analogia não estão longe de ver e de compreender, que podem se tornar os que atingem as coisas inteligíveis, das que ultrapassam a inteligência, que não têm limites, que não escoam, mas que têm sua origem em Deus de onde vêm todas as coisas belas e boas? Pois estas não são criadas, elas jamais tiveram começo, elas são feitas para o regozijo, para a alegria, para a vida divina, de maneira digna do século futuro e deste estado. 51. O intelecto que expressou sua alegria diante das expansões do tempo e do espaço e diante das propriedades que definem as naturezas, e que depois ultrapassou estas coisas, se torna em verdade despido na simplicidade única e na vida despojada de toda arte e de toda forma. Sem mais véu algum, sem qualquer vestimenta, fora de todo começo e de toda compreensibilidade, de todo fim e de todo limite, ele cessa de pensar e de falar, penetra sobrenaturalmente no poder e na irradiação divina, poder e irradiação que o Espírito anima e que, o infinito, se estende aparentemente à própria contemplação do intelecto. Então a paz de Deus se eleva sobre a alma, e a alegria inefável, o indizível regozijo do Espírito Santo se espalha sobre ela. O arrebatamento que ultrapassa o conhecimento a leva a cantar. Ninguém a verá. Mas o Deus dos deuses se revela em Sião[64], no intelecto que se eleva e contempla a altura. Senhor Deus dos Exércitos, bem-aventurado o homem que se confia a você[65]! 52. Quando o intelecto que se encontra entre Deus e as coisas divinas é iluminado no arrebatamento daquilo que ele não consegue nem pensar nem dizer, ele devora o quanto pode dos verdadeiros frutos do conhecimento espiritual, ele é deificado, ele se regozija, ele progride no eros divino. Ele já não fala nem disserta, nem consigo mesmo, nem em seu interior. Ele cessa de pensar. Ele vê em si próprio, na unidade, na luz da verdade e do Espírito, e daquilo que ele vê ele faz suas imutáveis delícias. 53. Quando o rosto do intelecto que se debruça para o interior do coração vê brotar de si como um jorro contínuo o flamejamento do Espírito, este é o momento de se calar[66]. 54. Quando todo o rosto do intelecto vê a Deus, quando todo o intelecto penetrou em Deus e, por assim dizer, quando Deus penetrou todo o intelecto, este é plenamente, e daí por diante, o tempo de se calar[67]. 55. Quando o intelecto que, na comunhão com o Espírito, recebeu a permissão de entrar em contemplação diante de Deus, usufrui, na medida em que lhe é possível, da glória e do esplendor que irradiam da face de Deus, é naturalmente necessário se calar e contemplar na hesíquia, na ausência de qualquer ruído. Mas se, suscitado por uma palavra como um fogo luminoso e abrasador, alguma coisa da perturbação das trevas vier, de um modo ou de outro, se insinuar entre o intelecto e Deus, é preciso rejeitar imediatamente esta palavra das trevas, que pode até ter uma aparência divina, a fim de, afastando o mais depressa possível as
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trevas por meio da luz, as brumas por meio do calor, iluminando e aquecendo desta maneira o intelecto, poder novamente compreender a Deus como antes, contemplar sua beleza, usufruir naturalmente dele, revestir-se de glória, numa palavra, experimentar as coisa que, vindas de Deus, se derramam sobre a inteligência quando recebemos o Espírito vivificante; é preciso retornar à simplicidade e estar em Deus em espírito e verdade, desembaraçado de todas as coisas, inclusive daquelas que envolvem a Deus. É isto que é natural, e que convém ao contemplativo. Aquele que se dedica apenas à ação deve também se ligar a este estado. Pois ele ainda não se acha unido a si mesmo, e por si mesmo a Deus. É assim normal que este homem cante, que fale muito e muitas vezes das coisas de Deus, de várias maneiras. Suas palavras são como flechas que ele não cessa de lançar, atemorizando e expulsando os que nos oprimem com sua maldade e nos combatem. Pois também para ele, que espera, chegará o tempo. O sopro do Espírito irá chegar quando a cintilação de tantas odes, cantos e palavras divinas, como uma luz flamejante, se reunir num mesmo fogo, quando ele impor ao inimigo um golpe mortal, abrasador, dissipando – ou melhor, destruindo – as trevas, iluminando a si próprio no fogo, aquecendo-se e se elevando o mais possível em direção ao eros divino, levando ao próprio Deus o hino do seu coração no silêncio e no arrebatamento, representando para si mesmo o quão extraordinários são os milagres dos mistérios. Pois não é sem razão que são chamados de bem-aventurados os que esperam o Senhor, ou que, ao chegar o tempo, como mansos herdarão a terra prometida[68], a terra inteligível, em Cristo nosso Senhor. 56. Quando o intelecto, iluminado por todas as efusões luminosas do Espírito, experimenta a vertigem, perde o pé e se vê transformado, cada vez mais para longe de si próprio em direção ao infinito, para o ilimitado, este é o tempo de calar[69]. 57. Mas quando o intelecto se sente esgotado pelo excesso de claridade que vê, quando sente que quer se desembaraçar para encontrar algum repouso depois de relaxar a tensão, então este é o tempo natural para falar[70], ainda que brevemente, daquilo que concerne a iluminação divina. 58. Quando o intelecto, fugindo em meio às águas do Faraó inteligível, atravessa sua noite à luz do fogo e seu dia sob a cobertura da nuvem[71], então é chegado o tempo do justo silêncio e da hesíquia, o começo, para a alma, de sua purificação. Mas quando ela é combatida pelo temível Amalec espiritual e pelas nações que o seguem, impedindo-lhe a passagem para a terra prometida[72], então o tempo é de falar[73]. Mas ela é sustentada perante Deus pela ação espiritual e pela justa contemplação, como outrora teve Moisés as mãos sustentadas por Aarão e Hur[74]. 59. Quando o poder espiritual que se derrama do coração vem do abismo da divina contemplação do intelecto, esta inspiração que jorra da fonte, chega naturalmente o tempo de calar[75]. Com efeito, é neste momento que se celebra inefavelmente o culto de Deus, sua adoração pelo intelecto em espírito e verdade[76], por intermédio do verdadeiro sentido intelectual. 60. Quando, à custa de mirar a Deus por intermédio do intelecto, a razão da alma se enche inteiramente do arrebatamento divino, quando sua inteligência se enche com a visão, quando a própria alma se enche de alegria, este é incontestavelmente o momento de se calar. Pois em seu recolhimento e em sua sensibilidade o intelecto vê em espírito a verdade, venera a Deus que ali brilha e o adora em seu arrebatamento. 61. Aqueles que, como convém, adoram e servem naturalmente a Deus, em espírito e verdade, não apenas não o adoram e servem num dado lugar, como não o podem adorar e servir pela expressão da palavra. Com efeito, assim como o sentido intelectual que se elevou retamente não pode adorar num dado lugar Àquele que nada pode conter e que não tem lugar onde repousar[77], também quando ele guarda o que lhe é necessário e alcança a verdade, ele naturalmente não pode sofrer por adorar e depois servir por uma
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diversidade de palavras e definições de linguagem Àquele que é infinito, que não tem limite, nem começo, nem forma, que é perfeitamente simples e que, por assim dizer, ultrapassa o intelecto, uma vez que chegou para o intelecto, pela impulsão e o sopro do Espírito, o tempo de brilhar na simplicidade e no conhecimento da verdade divina[78]. Assim, quando chegado o tempo, o intelecto se desembaraça de tudo e sai de si mesmo, não apenas ele deixa de falar, mas deixa de pensar, ele se dedica com alegria e arrebatamento àquilo que a luz intelectual concede de melhor à própria razão e a si mesmo, e ele o contempla, imóvel e imutável, fora de toda arte, numa atenção cega e na união que o ultrapassa. 62. É preciso que o intelecto, cuidadosamente atento a si mesmo, organize seu próprio estado espiritual com prudência, sabedoria e justiça. A partir do momento em que ele sente que contempla os mistérios da teologia, os mistérios simples, isentos de qualquer figura, é preciso que ele permaneça em silêncio na hesíquia e no maravilhamento, sem se afastar de seu próprio coração que recebe a energia e a luz do Espírito. Pois então é chegado o tempo, não apenas para todos os sentidos do ser em estado de hesíquia, longe das coisas sensíveis, mas para a palavra, que deve cessar todo discurso e se calar. E, sobretudo para os que possuem o conhecimento, é preciso dizê-lo, é chegado o tempo de repousar de toda ocupação intelectual na hesíquia e de deixar de ver. Pois é preciso que ele se aplique a permanecer perfeitamente imóvel nos sentidos, nas palavras, nos pensamentos, a fim de que o intelecto, totalmente isolado – como é justo e devido – em sua pura contemplação do Deus uno e único em três Pessoas, possa com toda liberdade e na medida em que lhe for permitido, ver o que não tem começo, fim ou limite, e as demais coisas divinas, numa palavra, as coisas imutáveis e absolutas, e se unir a elas, transformado e simplificado pela contemplação, e, com alegria e maravilhamento, tornado, pela graça divina, totalmente semelhante a Deus. E, querendo o intelecto, se fosse possível, permanecer neste estado – embora ele não possa, por que ele é mutável, ele vive com as coisas que mudam e está conforme o corpo e as circunstância – ele deve em conhecimento de causa, não se afastar, não decair da contemplação simples, e não falar em excesso. Ele pode falar um pouco, e falar das iluminações divinas, a fim de não apenas retornar o mais depressa possível à união com Deus que o ultrapassa, mas de sentir em si esta união a um tempo mais evidente e mais contínua. Quanto mais o intelecto guarda aquilo que recolheu em si e não deixa que escorra para fora, mais depressa ele se nutre da união divina, mais ele se une com clareza aos flamejamentos da luz, e mais fecundos se tornam seus flamejamentos no contínuo habituar-se ao divino. 63. Quando o intelecto que prova a revelação da pura e simples luz divina se vê transformado pela visão intelectual e iluminado em todo o seu redor pelo desconhecido além de todo conhecimento, ele é restabelecido em sua natureza indivisível, simples, ilimitado, e se torna iluminado tanto na luz como nas trevas. Em sua simplicidade transbordante ele contempla a beleza infinita, a beleza sem figura acima de toda figura, a beleza sem começo que ultrapassa todo começo, que não tem limites e que é infinita, por que preenche num transbordamento de plenitude todos os bens que nela se encontram, os limites e a extensão de todas as coisas, quaisquer que sejam elas. Numa palavra: quando, acima de todos os seres, ele contempla a todos na visão do Um pela razão inefável de uma potência intelectual que ultrapassa o entendimento, este é o momento de se calar, simultaneamente imerso no mistério e além do mundo, ou, por assim dizer, o tempo de experimentar sem ver e sem falar o puro e simples regozijo que concede uma iniciação mais divina à verdade. Mas quando tudo isto a que nos referimos deserta do intelecto e ao redor dele surge a divisão, é o momento de falar, mas apenas para dizer coisas dignas da elevação que conduzem ao silêncio. O silêncio que ultrapassa a palavra e que, se podemos dizê-lo, vem a seu tempo e naturalmente, é, com efeito, bem melhor do que qualquer palavra. Salomão colocou o silêncio em primeiro lugar quando disse: “Existe um tempo para calar e um tempo para falar[79]”. O melhor é colocar em primeiro lugar o silêncio que vem em seu tempo. Mas se este silêncio ainda não chegou, se o intelecto ainda não se voltou unicamente para aquilo que ultrapassa a palavra, que entrementes a palavra em seu tempo seja secundária a fim de que falar seja como calar e esteja próxima do silêncio. Falemos quando for o tempo, mas apressemo-nos em
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retornar ao silêncio, falando das coisas de Deus e nele pensando continuamente, contemplando a criação, nela vendo seu Criador como num espelho, do qual ela nos conta maravilhas. Nisto consiste em falar a seu tempo. E é assim que deve ser compreendido o que definimos. 64. Quando o intelecto que ultrapassou todas as coisas daqui e que se elevou naturalmente acima dele próprio cala em sua alegria, é chegado para ele o tempo de usufruir das coisas inefáveis mais altas do que o mundo. É o tempo do flamejamento e da luz intelectual, da união do intelecto e da contemplação, da simplicidade, do ilimitado, do infinito e do conhecimento mais do que luminoso. Numa palavra, é o tempo da percepção e da comunhão da sabedoria espiritual, que permite ao intelecto atingir o repouso e o silêncio, depois que ele recebeu a inexprimível alegria do arrebatamento. 65. Quando a alma que recebeu a verdade, que bebeu do cálice da graça como o melhor de todos, se sente embriagada e fora de si, é claro que chegou para ela o tempo de calar. 66. Quando o homem interior chega num estado em que clama: “Senhor, numerosos são os que me atormentam, numerosos os que se levantam contra mim[80]”, é então o tempo de falar, mas de falar naturalmente, sem dizer qualquer coisa, e de opor aos inimigos, como se deve, a linguagem comedida conveniente. 67. Quando a luz da face do Senhor se imprime na alma[81], quando esta se vê cumulada de sua beleza e esplendor, e sobre ela se espalha uma efusão de alegria divina: este é o tempo de calar. 68. Mas quando ela vê levantarem-se contra ela os testemunhos injustos que dela exigem o que ela não conhece[82] e a perturbam, então é tempo de falar, e mesmo de contender. 69. O cume, se podemos dizê-lo, o ponto extremo, a mais alta ponta do belo e bom é Deus, em todos os seres inteligíveis como em todos os seres visíveis. Em sua natureza o homem é um ser bem melhor, sem dúvida incomparavelmente maior do que si mesmo, e, pela graça, verdadeiramente maior do que os próprios anjos. Portanto, o intelecto contemplativo, que dentre tantas coisas que existem entre Deus e os homens, se aproxima daquilo que ultrapassa o entendimento, se vê restabelecido no arrebatamento mesmo que ainda não tenha experimentado da abundância da graça que ilumina. Mas quando ele a prova, pelo poder ativo do Espírito que reside no coração, se posso dizê-lo, ele se eleva ao cimo do belo e do bom, em direção a Deus, e, por intermédio de um dom mais do que divino, nele penetra. Ele enxerga o coração da unidade e é arrebatado, permanecendo em silêncio no abismo que o ultrapassa. Aí estão, se podemos dizêlo, os penhores do primeiro repouso sabático, cuja imagem é o repouso de Deus após a criação dos seres[83]. Mas o intelecto contemplativo desfruta manifestamente de outro repouso sabático, maior e diferente, cujo exempli iniludível nos foi dado pelo povo de Deus[84] que se voltou para si próprio, para longe de Deus, abandonando o sábado. É então que o intelecto conhece a si mesmo como a imagem que segue o modelo, é então eu ele conhece por completo as coisas que estão entre Deus e os homens. Não apenas ela toma o caminho do modo que convém, num arrebatamento maravilhado, em direção ao que é mais alto do que si próprio e que ultrapassa o pensamento, mas ainda, para além de tudo o que se pode descrever ele se enche de alegria e regozijo espiritual, irradia em silêncio sob os flamejamentos e os milagres das visões de Deus que o abrem para além de si mesmo. E ele se une a esta unidade da Divindade sobrenatural, em Jesus Cristo. 70. Quando aquilo que verdadeiramente é apaga como se fossem nada todas as coisas criadas que lhe estão submetidas, então o intelecto que contempla em espírito e verdade, na infinita eminência indizivelmente, acima da energia e da união de que é capaz. Ele se torna simples, ou ele se torna Um, por assim dizer, inefavelmente possuído pelo silêncio. Ele já não está apenas cheio de amor e de alegria, mas das coisa que provêm da energia do Espírito, das delícias dos anjos.
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71. Assim como, Senhor, você é absolutamente incompreensível em sua essência, e que ninguém – nenhuma natureza dotada de razão e de intelecto, nenhum conhecimento criado, ainda que aquele dos querubins – pode compreendê-lo, por ser infinitamente ao infinito mais alto do que todo o conhecimento, também as coisas que estão ao seu redor, Mestre, são totalmente sem fim e sem limites. É isto o que, numa insuperável solicitude, você ordenou a Moisés, o legislador do Antigo Testamento, no sentido de pregar que você é e de falar de você. E é também o que você, que não mente, que é o único, a mais alta verdade, disse de alguns dos seus. De fato, você lhes apareceu, e, no entanto, não revelou seu nome. Por que ele está incomparavelmente acima de todo nome[85], não apenas dos nomes dos seres que vivem sobre a terra, mas ainda dos nomes dos seres que estão nos céus. Os que estão cheios de luz revelam a sua essência, mas não aquilo que você é fundamentalmente. Por que a inteligência que temos de você não tem nada de fundamental. Assim é que você se revelou mais alto do que o ser, para se dar a conhecer claramente além do entendimento, infinitamente desconhecido, infinitamente mais alto do que todos os que têm o poder de se dar a conhecer. Você se revelou mais alto do que o tempo, sem começo, por que você é a própria vida. Você não tem limites, você escapa por completo a todo pensamento espacial, você que está sobejamente presente em toda parte e que está acima de tudo, como criador do mundo inteiro. Você é verdadeiramente o único a abarcar as naturezas intelectuais, e você é o lugar inacessível. Você ultrapassa prontamente o intelecto e prevê seu pensamento, por que você está acima de tudo, você é a mão que inexplicavelmente sustenta o universo. E você não está submetido, se isto fosse possível, aos limites da natureza, por que você não tem limites. Não apenas você é como que sobrenaturalmente incompreensível na própria natureza, como ainda é incompreensível nos seres naturais que o cercam, por que você é a sabedoria mais do que sábia, a potência mais do que potente, o amor a bondade que ultrapassam todo pensamento de amor e de bondade. Que dizer do que é você? A luz, da qual se diz ser inacessível? Mas você está acima da luz. Que dizer do que é você? O juiz para quem nada é desconhecido antes mesmo do nascimento? E isto lá é próprio de algum juiz? Você é muito mais do que um juiz. E que tipo de criador podemos dizer ser você, que deifica num único e mesmo impulso de sua vontade a multitude e a diversidade das coisas imateriais? Ó profundidade da eminência! Com uma única impulsão do Espírito, por assim dizer, sua natureza única suscita tantos e tantos seres espirituais quão diferentes são as condições e as pessoas. Esta é uma coisa maravilhosa e que ultrapassa do pensamento. Mas é isto próprio de um criador? Absolutamente. Existe aqui mais do que criador. Pois podemos chama-lo de criador do mesmo modo como chamamos um pedreiro ou um artesão? Que pedreiro constrói sem uma fundação, sem nenhuma base, e, rapidamente, como você, Mestre que fundou a terra sobre o nada[86] – com todas as suas montanhas, suas pedras e todos os demais elementos da matéria – e que a fundou tão firmemente? Ou qual artesão criou a partir do nada tão grandes coisas geradas num único instante pela palavra, como você criou? Se dissermos que sua criatura foi feita por um pedreiro ou um artesão, será justo o que dizemos? Na verdade, jamais. Por que você é Deus, você está infinitamente acima de um pedreiro ou um artesão. Poderia jamais alguém conhecer, ou aprender, ou refazer um amor tal como o que sua bondade maravilhosa nos mostrou em condições tão extraordinárias, quando, para além de toda esperança, em seu grande amor pelo homem, você assumiu nossa natureza? Os que são capazes de sem dúvida contemplar estas coisas só o podem fazer por intermédio da graça, quando retamente se dirigem para a imensidão, para o oceano de um amor e de uma providência que lhes são estranhos. Mas a violência do eros os coloca fora de si, e eles já não sabem como nomear as coisas que a eles chegam vindas de você. As condições de sua encarnação no homem, ó Deus mais do que bom, ultrapassam com efeito, de longe, a inteligência e a razão, tudo o que podemos entender e pensar. É você o Pai de todos, podemos chamá-lo assim? Mas você está inefavelmente acima de qualquer paternidade, de toda causa e de todo poder, de toda providência e de toda instrução, de toda paciência, de toda constância. Podemos chama-lo de rei? Mas sua realeza não se resume ao presente, e menos ainda ao futuro, e absolutamente ao passado. Mas como? Maravilhosamente, absoluta e independentemente. Seu
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Reino é, com efeito, ao mesmo tempo o Reino de todos os séculos, ele pertence igualmente ao presente, ao passado e ao futuro. E sua soberania se estende de idade em idade[87]. Assim, em tudo e por tudo, de uma vez por todas, você está absoluta, incomensurável e simplesmente acima de toda inteligência, Senhor incompreensível, você e as coisas que estão ao seu redor. O intelecto que contempla estas coisas é arrebatado por algo que ele não pode ver de você, ele mergulha por inteiro no sopro do Espírito, ele penetra como que numa treva mística, por que ele não pode vê-lo perfeitamente devido à natureza infinita e inacessível da glória. É assim que, na calma que sobrepuja o mundo, você concede inefavelmente o repouso aos que, maravilhosamente, o contemplam e o amam, e você nada faz sem que eles o vejam. Você lhes concede novamente o repouso divino e sobrenatural, Deus inefável, incompreensível, indefinível, ilimitado, numa palavra: infinito. Você lhes concede o repouso da essência e da energia. Amém. 72. Quando o intelecto que se confiava às coisas contraditórias e aos pensamentos divididos se afasta de toda atividade distrativa, quando ele se encontra acima de sua própria dispersão, na respiração e na participação do Espírito Santo que unifica e não cessa de soprar e de se derramar no coração, quando ele ama permanecer todo o tempo nos lugares divinos pela graça das visões de Deus, a partir do momento em que ele se alimenta da contemplação inefável, na unidade e no desejo do amor, como de um só e mesmo olhar espiritual, das grandes coisas que estão à volta de Deus, então ele penetra claramente no repouso divino, ele desfruta da paz profunda de Deus, do santo e calmíssimo repouso do coração, em nosso Senhor Jesus Cristo. 73. Quando o intelecto se volta para Deus e ora, como um filho, com todo seu ser, e se entrega ao seu pai afetuosíssimo, quando ele se regozija por ver inefavelmente a luz de Jesus, quando ele é arrebatado em seu grande desejo de amor, quando ele sente clara e sobrenaturalmente em seu coração o eros divino e a energia do Espírito Santo, quando ele deseja se elevar no mistério mais alto do que o mundo, acima mesmo das manifestações e das realizações divinas, ele repousa de todas as suas obras[88], acima de toda meditação, ele ultrapassa o pensamento, ele se regozija maravilhosamente e repousa verdadeiramente na paz do Espírito vivificante de Cristo. 74. Deus repousou de todos os trabalhos que havia feito[89], mas depois de se ter cumprido a criação no Verbo e no Espírito. Da mesma forma, o intelecto semelhante a Deus repousa de todas as obras que realizou desde o começo para realizar o mundo inteligível voltado para a virtude, mas não repousa senão depois de haver, no Verbo de Deus e no Espírito vivificante, considerado e refeito em si, continuamente, o mundo inteiro e as coisas vivificantes que ele contém, e não sem antes ter, desde aí, subido, no Verbo e no Espírito, àquelas coisas que dissemos se seguirem às naturais, e de se ter debruçado sobre as visões místicas da teologia, simples e absolutas. Então ele se verá de fato em repouso e desfrutará na verdade intelectual de uma grande paz. Ele será deificado pela luz do conhecimento e pela participação do Espírito vivificante, em nosso Senhor Jesus Cristo. 75. Assim como Deus repousou não de todas as suas obras, mas apenas daquelas que havia começado, e não repousou das obras incriadas que não têm começo e que lhe eram como que naturais, também o intelecto que, à imitação de Deus, conseguiu, pelo Verbo divino e o Espírito vivificante, superar e ultrapassar sobejamente a criação visível, não repousa de todas as obras que lhe são naturais, que não têm começo e que não terão fim, mas repousa apenas das obras visíveis que possuem um começo e que terminarão. A partir do momento em que, pela imobilidade, o repouso do corpo obedece ao que está repousado, é, ao contrário, ao estado do intelecto que ele obedece. Pois se o intelecto não está constantemente em movimento sob o sopro vivificante e contínuo do Espírito no conhecimento daquilo que ele vê, tampouco ele saberá se ele entrou no repouso intelectual, girando na unidade e num movimento contínuo em direção a Deus apenas, e contemplando Aquele que se entregou a ele no indizível e inefável repouso de Cristo.
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76. “Não se apresse, disse Salomão, em falar diante da face do Senhor. Pois Deus está no céu altíssimo, e você está aqui em baixo sobre a terra[90]”. Ele indica e expõe com clareza e exatidão qual é o tempo de calar. Ele o diz abertamente: uma vez que você que está aqui em baixo sobre a terra foi levado até diante da face do Senhor que está nos altos céus, e que você foi tornado digno de uma graça tal que lhe permite desde baixo contemplar e meditar as coisas do alto[91], e, dirigindo-se a elas por intermédio do intelecto, erguer-se diante da face do Senhor, não se apresse em dizer palavra. Pois este é o tempo de calar. Não fale quando, na unidade e à imagem de Deus, seu intelecto é animado pela energia da verdade. Nisto consiste o ser em face do Senhor: voltando-se única e simplesmente para Deus, o intelecto o contempla em sua unidade a multidão dos seres que estão ao redor de Deus. Se você fizer esta experiência, se você se encontrar diante da face do Senhor, não se apresse em falar. Do contrário, ou você, voluntariamente e sem o saber, estará recuando e descendo de volta a si mesmo, ou ser-lhe-á necessário explicar o sentido de suas palavras. A natureza humana era tal como era. Ela era pura, e com toda justiça estava distante do mal e próxima a Deus. Ela contemplava a Deus. Em Adão o Ancestral, com alegria e maravilhamento, ela desfrutava da glória da beleza de sua face. Suas delícias eram imateriais, intelectuais, celestes, incorruptíveis. Uma graça imensa envolvia, com sua efusão, a alma do primeiro homem. No coração do paraíso terrestre, seu intelecto semelhante a Deus se banhava numa multitude de tensões voltadas para Deus e de contemplações que lhe concediam todo o conhecimento. Assim, ele desfrutava do paraíso intelectual. Eu diria que sua vida era bem-aventurada. Ele estava unido a si próprio e permanecia em si mesmo próximo a Deus, ligado naturalmente a Deus pela simplicidade e divindade de seu estado, e com toda justiça, por que fora criado à imagem de Deus. Numa palavra, esses bens que provinham de Deus estavam por toda parte ao nosso redor. Ora, isto é uma coisa que o maldito demônio, devorado pela inveja, hostil à nossa felicidade e à nossa glória, não podia suportar. Como? Este ser profundamente malfeitor, por meio de seus pretensos conselhos, iludiu e suspendeu nossa esperança. Atiçando o desejo que tínhamos por uma deificação ainda mais alta, o primeiro operário do mal nos desviou do caminho reto do mandamento de Deus[92].Então sofremos impiedosamente a perdição a que nos levou a mentira e fomos exilados para longe de Deus e para longe das delícias divinas[93], tombamos fora da vida espiritual simples à qual se dedicava o intelecto, decaímos do poder que tínhamos de contemplar a face de Deus e sermos glorificados, transfigurados pelo raio da beleza divina. Fomos divididos e submetidos a inúmeras divisões. E – coisa jamais deveríamos ter feito – gostamos destas vidas divididas e destas alienações. Nos afastamos até o ponto de venerar, em lugar do Deus único em três Pessoas, numerosos deuses que, na verdade, sequer deuses eram, mas demônios enganadores, corruptores e malfeitores; perdemos o Um em si, a vida e a ordem simples, dividimos nosso ser numa multitude de partes diferentes e nossa força intelectual, a tensão – ou, mais exatamente, a energia que nos elevava – acabou por nos faltar. Fomos dar nas profundezas de um mal extremo[94], em direção às coisas mais baixas. Nós que éramos a imagem de Deus[95], que éramos dignos da vida do alto, escolhemos a loucura[96]. Mas nossa natureza não é nem imutável, nem imóvel. Da mesma forma como fomos miseravelmente decaídos desta glória imensa até a mais baixa desonra, nos é felizmente possível retornar, voltar e rever a face santíssima de Deus. Claro, não mais a podemos como antes. Mas nos é concedido experimentar de longe o esplendor de sua beleza. Assim foi com o divino Moisés, com o conjunto de todos os profetas e com aqueles que vieram antes deles, com Abrahão e seus filhos: todos viram a face de Deus na medida em que lhes foi permitido. E a viram claramente. Desfrutaram suficientemente da luz desta beleza e foram arrebatados por sua glória inacessível. Alguns disseram: “Pobre de mim![97]” Outros, diz-se, consideraram que não passavam de terra e cinzas[98]. E outros nada puderam dizer sob o transbordamento da glória Daquele que contemplavam. Eles consideraram que sua voz era fraca e que sua língua muda [99]. E eles atravessaram gloriosamente muitas outras provas bem-aventuradas.
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O maravilhoso Davi, queimando de desejo de ver o esplendor de beleza da face de Deus, clama por Deus e implora: “Quando poderei ver a face de meu Deus?[100]”. Querendo mostrar em que estado de alma é possível ver a face do Senhor, ele disse: “Os corações retos permanecerão com a sua face[101]”. E quando sabiamente ele mostrou a força concedida à alma pela contemplação da face de Deus, disse: “Você me rejeitou sua face e eu estou perturbado[102]”. Mas se a perturbação vem quando a face de divina nos é rejeitada, a paz espiritual se segue à sua presença e visão na alma. O dom é tão grande que depois do amor divino e da alegria aparecem as coisas do Espírito – podemos chama-las de carismas ou de frutos – e os que vivem na santidade e na beatitude caminham à luz da face do Senhor. Foi dito: “Senhor, eles caminharão à luz de sua face e se regozijarão todo dia com seu nome[103]”. Este dia é o dia espiritual, a partir do momento em que o Sol inteligível, o Sol inefável, envia seus puros raios vivificantes apo homem interior e que a percepção das coisas mais altas que o mundo se acende no intelecto, ao mesmo tempo em que toda memória da alma é erguida da terra e levada ao céu. Quem pode dizer até que ponto o homem é bem-aventurado, e exulta, canta os hinos naturalmente e se regozija na alegria, nas delícias e na felicidade? Ele está radiante e seu coração está em festa, cumulado pelo esplendor da face do Senhor. De resto, é por isso que ele suplica a Deus. Ele diz: “Não afaste de mim sua face, ou eu serei como aqueles que descem à cova[104]”. Pois a causa das trevas é o afastamento da face de Deus. Mas seu retorno nos enche de toda luz do intelecto, bem como, justamente, de alegria espiritual, como Davi diz de si mesmo: “A luz de sua face se levantou sobre mim[105]”. E ele acrescenta: “Ela trouxe alegria ao meu coração[106]”. Ele deu testemunho novamente do dom espiritual que lhe concedeu a graça divina cumulando-o com a luz da face do Senhor. Ele disse que os que se mantêm perto da face do Senhor e o invocam são os ricos do povo de Deus[107], os ricos em espírito. Pois se são numerosos os santos e os homens de Deus, seria sem mais permitido a todos que vissem a face de Deus, levando uma vida angélica enquanto ainda estão na terra? Faltaria muito. Só o podem os que, com sabedoria e conhecimento de Deus, consideram seu dever servir e adorar o divino em espírito e verdade[108]. Assim, é com justiça que eles são chamados os ricos do povo de Deus, os que iluminam os mistérios de tantas contemplações. Pois sua riqueza consiste na profundeza de uma imensa sabedoria e de um conhecimento divino e espiritual que, segundo Paulo, não é dada a todos[109]. É por isso que o maravilhoso Davi disse a Deus: “Os ricos da terra implorarão sua face[110]”. Do mesmo modo, Salomão, que possuía o conhecimento mais do que todos, que mais do que todos estava cheio da sabedoria divina[111] e que ensinou com grande felicidade as coisas mais altas, disse: “Não se apresse em falar diante da face do Senhor. Pois Deus está nos altos céus, e você está sobre a terra aqui em baixo[112]”. Quando, por um dom de Deus, chegamos a estar diante da face do Senhor, quando vemos sua imagem divina e simples, ou seja, quando nos elevamos à contemplação do intelecto, é o tempo de calar. Não se apresse em dizer a menor palavra, seguindo seu hábito de tomar a palavra ao acaso, pois ainda não é tempo de falar. Você se tornou Deus, você também, enquanto ainda está sobre a terra, contemplando, à imitação dos anjos, a face de Deus que está nos céus. Pois os anjos, como disse nosso Salvador, veem continuamente a face de nosso Pai que está nos céus[113]. Então, quando você ouvir, como disse Salomão algures, que a luz brilha sempre sobre os justos[114], considere que estes experimentam naturalmente esta luz pela própria irradicação da face do Senhor, por que eles veem por intermédio da graça divina, à maneira dos anjos, esta face de onde a luz se derrama como de uma fonte. Pois o homem se torna e se constitui sobre a terra como um anjo, para não dizer Deus. Portanto, se você retornar ao dom da graça do Senhor, ao dom que o faz ver sua imagem, considere que aquilo que é Deus no alto o é também você sobre a terra, ou seja, Deus. Mas não fale desta maravilha, sequer pense nela. Caso contrário, você estará dividido em sua inteligência. Aplique-se com toda simplicidade, contemple como Deus na treva, imóvel, numa visão simples e única, e desfrute do esplendor inacessível que flameja e irradia da face do Senhor.
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Esta é, digna de ser imitada, a alta condição daqueles cujo intelecto é sábio e voltado para Deus: a flor, por assim dizer, da pureza intelectual, a unidade desejada da fé[115] realizada na comunhão do Espírito, o fruto glorioso da sabedoria divina e deificante, o fundamento da paz espiritual, a morada da alegria inimaginável, a porta do amor de Deus, o germe do flamejamento, a fonte de onde se derramam as águas inesgotáveis do Espírito, o verdadeiro alimento simbolizado pelo maná, as delícias, o crescimento e a transformação da alma, o começo dos mistérios e das revelações inefáveis de Deus, a realização da única verdade primigênia, a desaparição de todo pensamento, o fim de todas as reflexões, o conhecimento mais alto do que toda compreensão, a origem do arrebatamento, a renovação da inteligência, a renovação que a ultrapassa, e sua mudança em vista daquilo que é simples, sem limites, infinito, incompreensível, sem figura e sem forma, puro, invariável, intangível, mais alto do que o mundo: em tudo o restabelecimento que conduz à imagem de Deus. Uma vez que você atingiu este estado, e que a graça, em seu amor pelo homem, o fez conhecer o milagre de Deus, não se apresse, por ignorância, em dizer a menor palavra diante da face do Senhor [116]. Pois a ele cabe a glória única e simples pelos séculos dos séculos. 77. O intelecto que pretende contemplar os inteligíveis que o ultrapassam não vê senão coisas incertas, obscuras, confusas, se, por intermédio da graça de Deus, não obtiver o auxílio de seu coração para alcançar esta contemplação. É por isso que ela precisa conhecer o prazer que lhe é próprio, mesmo que, por ignorância, ele imagine provar deste prazer antes de tê-lo realmente provado, assim como alguém que come pão sem fermento imagina ter um certo prazer, enquanto que, não tendo jamais provado do verdadeiro pão, ainda necessita conhecer o prazer que dá o verdadeiro pão. 78. Depois de ter se unido ao coração por intermédio da graça, o intelecto contempla sem erro a luz espiritual e se volta para o objetivo de seu próprio desejo, que é Deus. Ele se encontra totalmente fora dos sentidos. Para além de toda cor, de toda qualidade, de toda imaginação, ele cessa de ver o sensível. 79. O intelecto que, por intermédio da graça, foi conduzido à contemplação, come sempre em verdade do maná espiritual. Pois o maná sensível de que Israel se alimentava e que nutria os corpos tinha o poder de fornecer um prazer real, mas ninguém sabia do que ele era feito. O próprio nome “maná” – que significa: “O que é isto?” – significa este desconhecimento: a palavra o diz. Os Hebreus comiam o que estavam vendo, mas, ignorando do que era feito aquilo que comiam, interrogavam-se, dizendo: “O que é isto?[117]”. O contemplativo se maravilha, ele também, em seu intelecto, e diz a si mesmo: “O que é isto?”. Aquilo que ele contempla alegra e alimenta o intelecto que se alimenta em espírito. Isto, de fato, ultrapassa todo pensamento. Pois é uma coisa divina, sobrenatural, paradoxalmente alimentando e dessedentando a inteligência, e que escapa ao estado desta, não apenas por ser incompreensível em sua essência, como por ser infinita e não possuir limites. 80. Três coisas dão testemunho da verdade, posso dizê-lo com toda certeza: a criação, a Escritura e a visão no Espírito. Com efeito, é a partir da Escritura, da criação e daquilo que vemos em Espírito, que podemos contemplar a verdade simples que é única, e a verdade composta que dela deriva. Se, por intermédio destas três coisas que mencionamos, chegarmos a estas duas verdades, e se aí nos mantivermos, teremos encontrado, pela graça de Cristo, o caminho direito. Pois a verdade simples nos permite atingir a altura e a profundidade inteligíveis, assim como a largura infinita pelas quais celebramos com arrebatamento e temor. E além destas coisas, a verdade composta nos permite descobrir a paz, o amor e a alegria do coração. Maravilhados, cantamos amorosamente. Mas ao homem é preciso muito tempo, esforço e paciência para, de um modo ou de outro, rejeitar os sentidos, separar o intelecto do sensível e permanecer no inteligível. Só então a contemplação da verdade resplandece na alma. Não digo que a verdade seja necessária para descobrir essas coisas, uma vez que
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demanda tempo, esforço e paciência para as compreender. O que afirmo é que é o homem que as deve encontrar. Pois a verdade é coisa uma e simples, ainda que sua contemplação a revele como dupla. E ela se dirige a todos, para dar testemunho diante daqueles que a querem ver. Mas o homem é composto, ele está ligado aos sentidos, submetido às mudanças e à evolução, ele acaba saindo de si de um modo ou de outro, alienado pela malícia e a presunção e pela doença da descrença. Pois estas três coisas – a presunção, a malícia e a descrença – o fazem decair miseravelmente dos três testemunhos da verdade, ou seja, da Escritura, da criação e do Espírito. É por isso que devemos rejeitar a má presunção, ao mesmo tempo em que rejeitamos as demais coisas de que já falamos, a fim de que o intelecto, retornando à humildade, possa crer com toda simplicidade para em seguida ser capaz, por meio da Escritura e da criação, de conhecer claramente no Espírito não apenas a verdade simples, como também a verdade composta que dela é derivada. Acrescentarei ainda que estes males afastam a inteligência da contemplação e a impedem de desfrutar desta. A verdade primeira é assim uma só e mesma coisa simples. Depois, para nós que somos compostos, vem a verdade composta que se segue à verdade simples. Tal é a última e melhor garantia de nosso intelecto, para a qual os que são conduzidos ao objetivo do Espírito entregam toda conduta e toda ascese, a fim de que o intelecto posto a nu possa ver o esplendor que provém da única verdade primigênia e desta verdade composta, e delas possa desfrutar maravilhosamente. Ora, isto não pode ser feito senão por meio da humildade e da simplicidade na fé, pelo testemunho da Escritura e da criação, no Espírito. Quando o intelecto vê a verdade no espelho destas três potências, pelo triplo testemunho de que falamos, ele retorna naturalmente a si mesmo, tornando-se ainda mais humilde, mais simples, e reencontra a fé com toda a certeza. A partir daí, com os pés alegres, como se diz, ele se eleva para a contemplação desta verdade que brilha com toda luz de seus raios, que o farão retornar a si mesmo através da grandeza da glória que contempla, arrebatando-o e investindo-o na fé. Assim, regressando e voltando a si, percorrendo como um círculo divino, elevando-se por meio da humildade, a simplicidade e a fé, contemplando a verdade, fazendo-se a cada dia mais humilde na luz da verdade e mais e mais simples na fé, ele não mais cessa de caminhar por esta via, na medida em que lhe for possível dizer: “hoje[118]”. Com humildade, simplicidade e fé, pelo testemunho da Escritura e da criação, no Espírito, ele contempla a verdade e depois retorna para o ponto de onde partiu. Assim deificado a cada dia pela graça, brilhando com uma luz que o ultrapassa, levando uma vida cheia de graça em nosso Senhor Jesus Cristo, ele recebeu como penhor o gosto da fruição dos bens eternos por vir. 81. A integridade e a invulnerabilidade da vida contemplativa são asseguradas por estas três coisas, a saber: a fé, a clara comunhão do Espírito Santo e a sabedoria do conhecimento. Com efeito, por definição, a contemplação é o conhecimento do inteligível no seio do sensível. Em alguns casos, naqueles que progridem, ela é o conhecimento do inteligível puro, fora dos sentidos. Mas aqui a fé é necessária. Pois foi dito: “Se vocês não crerem, vocês não compreenderão[119]”. E também é necessário o Espírito, uma vez que o Espírito sonda tudo, mesmo as profundidades de Deus[120]. O divino Jó disse: “O sopro de Deus que domina o universo me ensinou[121]”. Depois a energia divina que brota fervente no coração, se posso me expressar assim, embora viva e vivifique para além do mundo, se recolhe naturalmente em si mesma, reúne inefavelmente o intelecto, afasta-o de toda distração e, com serenidade, profunda alegria, consolação e amor divino, lhe concede ver sem dificuldade as coisas de Deus, se voltar para elas, contemplar a Deus com toda novidade e se regozijar abundantemente nele no coração deste novo eros ainda maior e da alegria que dele recebe. Mas, como eu disse, também é necessária a sabedoria. Pois a sabedoria, diz a Escritura, ilumina a face do homem[122]. Ela a ilumina para nos fazer passar alegremente dos sentidos à intelecção, para nos elevar das coisas sensíveis às visões inteligíveis de Deus, para nos dar a ver as coisas inefáveis da revelação intelectual. Ela a ilumina para que possamos contemplar no mistério e ver na unidade a Deus mais alto do
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que o ser. “Bendito é o home a quem você instrui, Senhor, e a quem você ensina com a sua lei[123]”. Pois é verdadeiramente sábio aquele que, pela instrução, atinge a fé, e que, pelo ensinamento do Espírito, aprende os segredos de Deus. É uma grande coisa, em verdade, um sábio que, pela fé, caminha na união e na comunhão sobrenaturais do Espírito. Como já foi dito, existem três coisas que ninguém pode dominar: Deus, o anjo e o home que ama a sabedoria. O sábio é uma espécie de anjo, estranho sobre a terra. Em tudo ele vela sobre a criação visível. Ele é o fiel iniciados das processões incriadas de Deus, vale dizer, de seus dons, e ele traz em si, por uma atenção concentrada, à imitação dos anjos, o conhecimento deste Deus invisível. Tal é, em poucas palavras, o homem que, no Espírito Santo, pela fé, é sábio e bem-aventurado, ainda que, sem nenhuma dúvida, para encerrar me baste citar aquilo que Lucas explica nos Evangelhos a propósito de Jesus nosso Senhor, ao contar o poder e os louvores da sabedoria e da graça. Foi ele, de fato, que escreveu que Jesus progredia em sabedoria, idade e graça[124], e ainda que ele crescia e se fortalecia em espírito, cheio de sabedoria[125]. Ainda tentando expressar mais claramente o que precede, acrescentarei o que Salomão disse a Deus: “Quem poderia ter descoberto o que há no céu e quem saberia qual é a sua vontade, se você não concedesse a sabedoria e não houvesse enviado do alto seu Espírito Santo? Assim foram guardados os caminhos dos que estão sobre a terra. Assim os homens aprenderam o que lhe agrada, e foram salvos pela sua sabedoria[126]”. Vê quanto poder alcança a sabedoria, quando unida ao Espírito? E o quanto se afasta da salvação aquele que não possui nem a sabedoria nem o Espírito que vêm de Deus, e que não tem como se socorrer do sábio e daquele que participa do Espírito? Se estas coisas foram escritas sobre o Salvador em quem reside toda a plenitude da divindade[127], segue-se daí, numa palavra, que a toda a raça dos homens foi dado saber o quanto é necessária a sabedoria sob a impulsão do Espírito, e o quanto o sábio espiritual – que sonda o que há nos céus e caminha para o conhecimento da vontade do Altíssimo – pelar compaixão, maravilhosamente recebe o poder e o progresso deste Deus que ama aos homens. Devemos falar agora longamente da vida contemplativa e da contemplação, fazer progredir em parte e nutrir a razão de quem nos escuta atentamente, podemos dizer, sem nenhuma hesitação. Pois Deus ordena de uma vez por todas aos seres racionais: eles devem transmitir abundantemente aos que estão em baixo as coisas inteligíveis e acessíveis da irradiação divina, recebê-las do alto com piedade e, num espírito de comunhão e bondade, falar a seus semelhantes dos inteligíveis e de Deus. Assim, não apenas a retidão e a constância radiosas do Deus vivo poderá brilhar na Igreja, como a santidade do amor e a extrema beleza da face conhecida pelos discípulos de Cristo poderão resplender continuamente nos corações, derramadas sobre nós pelo Espírito Santo, no puro e perfeito amor aos homens. Assim poderemos levar sobre a terra, em meio às maiores delícias, uma vida angélica e verdadeiramente bem-aventurada, pois nos teremos ligado ao duplo amor divino e deificante do qual dependem toda a Lei e os profetas[128]. Nada é mais doce à alma do que este amor, em especial quando ele não cessa de irradiar profusamente da contemplação e do conhecimento de Deus e das coisas divinas, ou seja, da graça que nos ilumina. Portanto, aquele que tem este objetivo, que se esforçou por elevar sua obra a Deus para se unir a ele, por assim ser deificado, para ser salvo – pois se o intelecto não for deificado é impossível que o homem seja salvo, como revelaram os pregadores de Deus – este avança na contemplação permitida dos seres e das aparências, colocando em prática na medida do possível os mandamentos do Senhor. Sua ação não é cega, uma vez que ela não se separa da contemplação. E sua contemplação não é inerte, uma vez que ela acontece conjuntamente com a ação. Assim, com a sabedoria e a santa ciência da Escritura conformes à razão e à inteligência, ele começa com um bom impulso, como foi dito, a contemplar feliz, como a prova do Criador infinitamente poderoso e infinitamente sábio, o mundo das coisas sensíveis submetidas à razão, depois contempla no infinito o poder e toda a diferença, na medida em que se coloca diante delas com toda a sua atenção e que delas desfruta. Em segredo, por tudo o que é oculto, ele nutre então fartamente o intelecto, e assim, chegado o
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tempo, ele conduz uma vida calma na hesíquia, filosofando apenas com as coisas de Deus através da Escritura e do mundo visível. Em todas as suas obras, ele busca na medida do possível contemplar em espírito a criação pela Escritura, e os símbolos pela verdade, numa visão mais unificadora. A partir daí, com a benevolência do Espírito de adoração e da energia que dele provém, o intelecto passa a se elevar na visão e na ciência da santa verdade, como disse o grande Denis: “Ele atinge o grau sagrado da contemplação, que é geralmente o segundo, ou seja, o das visões e dos pensamentos divinos, independente de todo véu e de toda imagem[129]”. Assim é que o intelecto nu, aplicando-se às coisas intelectuais nuas, considerando que as manifestações divinas trazem nele, através de sua própria pureza e de sua tensão em direção a Deus, como num espelho limpo, os raios mais brilhantes do que o Sol, e novamente nutrido pela graça com aquilo que lhe foi concedido e que lhe é possível, avança para um terceiro grau, nestas numerosas visões bem-aventuradas e nestas processões divinas, cada vez com mais unidade. Em recolhimento e atenção, ele se eleva das numerosas diferenças ao inefável amor da unidade imutável e secreta. Ele se vê transformado pelo sentido intelectual. Assim, aquele que contempla em verdade e reminiscência se vê, pelo Espírito que ilumina, transformado em fogo e em eros do coração, em amor maravilhoso por Deus, em amor sem fim. Esta é, segundo o grande Denis, a divina participação no Um simples, na medida do possível. Sobre estes degraus de uma única participação, o intelecto que traz em si a Deus e pensa em Deus se eleva na tripla beatitude e, desfrutando manifesta e visivelmente dos insuportáveis aguilhões do delírio divino e do amor louco que está no coração deste delírio, ele se vê ferido de amor[130] e como que consumido pelo que lhe acontece. Ele se vê transportado em Deus e sai verdadeiramente de si mesmo. Ele penetrou, com o rosto radioso, nos mistérios apofáticos [131] da teologia. Com toda sua atenção cegada, ele fez sua morada naquilo que não possui começo nem fim, no que é incompreensível, totalmente inefável e impalpável. Ele contempla como um oceano o infinito e a inacessibilidade da essência de Deus que ultrapassa todo pensamento de Deus e de natureza, segundo nosso teólogo. Tal é, ainda conforme Denis, o festim, a visão atenta que nutre o espírito e deifica todo o ser que a ela se consagra, começando pela contemplação e o conhecimento dos seres, no além, onde o próprio Hierofante purifica os símbolos sagrados da hierarquia terrestre[132]. É o que o grande Basílio explica quando diz: “Quando alguém que, por meio da contemplação, ultrapassa a beleza que está nas coisas sensíveis, é levado diante do próprio Deus cuja visão não é concedida senão aos corações puros, depois de haver progredido até o cume da teologia, então ele pode se tronar contemplativo”. E ainda: “Pela manhã irei diante de você e o verei[133]”. Assim falou no Espírito o grande Davi. Quando eu for em sua direção, disse ele, e quando, por intermédio do intelecto eu me aproximar da contemplação de sua face, então receberei a energia da visão por meio da iluminação do conhecimento. Podemos ouvir as mesmas coisas de são Máximo, que diz e mostra o grande progresso que realizam a contemplação e o conhecimento de Deus por meio da Escritura e da criação. Com efeito, é de lá que costuma vir a iluminação do conhecimento, enquanto que a deificação bem-aventurada, quando chega a ocorrer, é uma coisa rara e difícil para os que vivem na hesíquia, caso lhes falte o Mestre que ensina por sua própria experiência o que lhe foi concedido no tempo da graça, como disse santo Isaac o Sírio, este guia eminente dos caminhos da hesíquia, no discurso em que falou do sentido espiritual e o poder contemplativo. Assim é que são Máximo afirma: “Dizemos que os ensinamentos dos santos são luzes da obra divina, pois eles suscitam a luz do conhecimento e deificam aqueles que obedecem”. Nisto ele acompanha são Denis, que disse: “A tradição secreta de nossos guias divinos nos forneceu por suas palavras a revelação de outras luzes da obra divina, estas luzes nas quais nós mesmos fomos iniciados[134]”. Em outra parte ele diz: “O conhecimento de Deus eleva aqueles que para ele se dirigem tanto quanto é dado, e os unifica em sua união que os torna simples”. E ainda: “Todo progresso da manifestação luminosa que provém do Pai e permanece em nós como um dom de bondade, nos simplifica desenvolvendo-se para o alto como uma
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potência unificante, e retorna à unidade e à simplicidade deificante do Pai que a tudo reúne. Pois todas as coisas vêm dele e nele são[135]”. Compreenda, então, que quem sabiamente encontrou a simplicidade desenvolvendo-se para o alto pelo retorno a Deus, ou seja, pela atenção divina, se une a Deus e é deificado se, em sua elevação, contemplar a Deus a partir dos seres e se contemplá-lo a partir da Escritura, seja de forma simbólica, seja divinamente. Como tal homem não seria chamado de Deus? Pois tudo aquilo que se voltou totalmente, tanto quanto possível, para a união com o segredo da obra divina que reside nas Inteligências espirituais, tende de uma maneira incompreensível, tanto quanto possível, para os esplendores divinos desta união, imitando a Deus com todo seu poder, se podemos nos exprimir assim, e se torna digno do nome divino[136]. É isto que diz também a língua teológica de Gregório: “O homem é um vivente que tem seu destino aqui em baixo e que depois é transportado para outra parte, para enfim ser deificado ante o chamado do mistério que conduz a Deus”. E são Máximo: “A forma intelectual da Escritura divina muda por meio da sabedoria os que têm o conhecimento. Ela os conduz à deificação transfigurando a palavra que está neles e, com o rosto descoberto, eles refletem a glória do Senhor”[137]. Mas esta vida contemplativa necessita, como eu disse, destas três coisas: a fé, a comunhão espiritual e a sabedoria do conhecimento, em nosso Senhor Jesus Cristo. 82. A vida contemplativa aberta ao Espírito vivificante enche de inúmeras e admiráveis maravilhas inteligíveis aquele que contempla no segredo. Ela não o cumula nem imediatamente nem de uma vez, mas com o tempo e através do longo amor pela sabedoria, progressivamente e como que por degraus. Agora, escute este contemplativo, quando a eminência da hesíquia e sua fuga para longe de tudo – salvo Deus – o fazem dizer: “Eu me manterei solitário até que eu passe[138]”. Em outra parte, quando ele se volta para os seres para conhecê-los: “Quão grandes são suas obras, Senhor, tudo você fez com sabedoria[139]”. E: “O odor das suas vestes é como o odor de um campo fértil que você abençoou, Senhor [140]”. E quando ele chega mais alto e se eleva aos degraus inteligíveis, ele confia a Deus: “Eu corro atrás de você, ao odor de seu perfume[141]”. E: “Eu o exaltarei, ó Deus, meu Rei, eu bendirei seu nome pela eternidade, pelos séculos dos séculos[142]”. E: “O Senhor é grande e grande é seu louvor. Sua grandeza não tem medidas[143]”. E: “Seu conhecimento me deixou maravilhado: ele é tão alto que não consigo atingi-lo[144]”. E também: “Você, ó Senhor, é o Altíssimo por toda a eternidade. Sua memória dura por todas as eras[145]”. Aqueles que veem, voltados para aquilo que na visão é mais alto do que o ser, são convidados pela vida contemplativa a cantar: você se elevou acima de todos os deuses! Outras vezes eles são levados a declarar abertamente: “Nada se parece com você dentre os deuses, Senhor. E nada é como suas obras[146]”. Aos que contemplam em espírito a montanha do conhecimento e o santo lugar de Deus, ela mostra onde se elevam e onde moram os que têm as mãos inocentes e o coração puro, ao mesmo tempo em que lhes permite ver as elevações até os céus e as descidas até os abismos, ou seja, a altura e a profundidade dos mistérios do Espírito. Ora ela se aplica admiravelmente em discernir o que lhe concede ver as Pessoas da Trindade; ora se ocupa, em arrebatamento, em se fixar sobre a contemplação de Jesus, da economia de sua encarnação e dos mistérios sobrenaturais que advêm disto. Enfim, após tantas visões bem-aventuradas, ela não mais abandona aquele que contempla, mas o encaminha por uma nova via – e, ó graça! – no próprio seio de Deus, iluminado numa verdadeira detença, num repouso inefável, nas delícias sobrenaturais do Espírito, para não dizer na embriaguez dos bens de Deus e num êxtase mais e mais divino. Pois este seio mais do que bendito possui a grande profundidade dos segredos divinos, e ele permite aproximar suficientemente o senti da supra-essencialidade de Deus. É este seio que Abrahão herdou do alto, quando o próprio Deus se fez herança de Abrahão ao dizer: “Eu sou o Deus de Abrahão[147]”. Deus é, assim, por excelência, o Deus de Abrahão. O seio de Deus é, por conseguinte, também o seio de Abrahão[148]. Portanto, é no seio de Deus – que também podemos chamar de seio de Abrahão - que, ao se elevar, a vida contemplativa, a vida
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no espírito, permite penetrar com toda simplicidade, deifica no coração com uma imensa alegria de amor e conduz à beatitude, no regozijo das delícias inefáveis, ao intelecto que comunga da sabedoria e que coloca toda a sua atenção em voltar para o alto seu olhar, em Jesus Cristo nosso Senhor. 83. A partir do momento em que a criação e a Escritura se desenvolveram pela palavra de Deus, aquilo que se pode contemplar em espírito confirma o intelecto e todas as suas potências na visão e na compreensão de Deus, desde que o coração esteja previamente animado e posto em movimento pela energia do Espírito. Ensina-o o bem-aventurado Davi, com a maior sabedoria, ao dizer: “As inteligências – que ele aqui denomina ‘céus’ – foram fundadas pela palavra do Senhor, e todo o seu poder pelo sopro de sua boca[149]”. E em outra parte: “A terra inteligível – ou seja, nosso coração – está cheia da piedade do Senhor[150]”, vale dizer, do poder, da energia e do movimento do Espírito, de maneira sensível e manifesta. Mas enquanto o intelecto não sentir no coração a energia, o poder e o movimento, não apenas ler em espírito a criação e a santa Escritura pela contemplação como recolher numa só razão o que nelas existe, não o confortarão, e devemos temer a possibilidade de que ele se perca em ilusões. Portanto, se devemos nos consagrar à contemplação de Deus a partir da Escritura e da criação, reunindo em sua unidade e sua simplicidade, numa só razão e num só sopro, as numerosas razões dos seres e tudo o que neles vemos, e nos abrindo, além de todo limite, de todo fim e de todo começo, à contemplação única e simples, independente de toda forma, busquemos em primeiro lugar descobrir o tesouro que existe dentro de nosso coração e supliquemos ao Deus santo que encha de piedade nossa terra. Então, se pudermos, elevemos com toda liberdade nosso intelecto à contemplação de Deus, único, como foi dito, puro e simples, eterno, além de toda forma, de todo fim, de todo limite, na contemplação e no socorro do Verbo e do Espírito. 84. Quando, pela retidão e a simplicidade da alma, o homem, à custa das virtudes, com a humildade, a paciência e a esperança que são dadas pela fé, chega ao fim do caminho virtuoso; quando o poder e a energia vivificantes que jorram sempre e sempre do Espírito Santo fazem sua morada no coração, iluminando as potências da alma, chamando e apressando com seu movimento natural manifesto e pela invocação o intelecto ativo, e se unindo inefavelmente a este, de tal maneira que o intelecto e a graça se tornam verdadeira e indubitavelmente um só Espírito; então o intelecto, levado pelo sopro da graça, dirige-se por si só à contemplação, com seu movimento giratório e sua desorientação indizivelmente detidos pela energia e a luz do Santo Espírito vivificante. Ele vai e vem nas revelações dos mistérios espirituais de Deus. Por todas as formas do silêncio, pela calma de seu próprio olhar, ele consegue penetrar no sobrenatural inefável. E tanto mais ele contempla, e tanto mais é inspirado por Deus, e tanto mais se volta para a visão do próprio Deus, na ciência das coisas divinas, esta ciência que provém das leituras sagradas, que, animado por Deus no Espírito Santo, ele obtém propriamente, por analogia, a humildade e a prece. Ele já não está por fora do conhecimento teológico, mas se torna precisa e realmente teólogo, e já não suporta não se dedicar continuamente ao conhecimento teológico. Entretanto, sem o dom celeste de que falamos, sem o Espírito sempre claramente em movimento e soprando no coração, o intelecto jamais vê o que imagina, e o que ele pode dizer de Deus não passa de palavras atiradas ao ar inconsideradamente, que não revelam o sentido da alma convenientemente. Por que ele age por ouvir dizer e sob o efeito de palavras que provêm do exterior. É por este motivo que a terrível desorientação dos inteligíveis corrompe o próprio caminho por onde passa a teologia, por que esta não vem do coração nem é conduzida pelo Espírito que ilumina. O mesmo acontece com a verdade única dos inteligíveis, assim como com a verdade imutável da teologia, quando nele – de modo geral mas especialmente no coração – o poder e a energia vivificantes e irradiantes do Espírito não assistem de maneira manifesta e sempre transbordante aquele que as recebe, quer digamos que o Espírito sopra, quer digamos que jorra. Não existe aí nenhuma união intelectual, antes existe a divisão: nenhum poder, nenhuma estabilidade, mas fraqueza e versatilidade; tampouco alguma luz, nenhuma visão da verdade, apenas trevas, ficções arbitrárias da imaginação; em tudo, a via da irracionalidade e do erro.
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Para os Padres, com efeito, o intelecto pode passar por três ordens, ou três vias: a via natural, a via sobrenatural e a via contra a natureza. Quando o intelecto contempla em sua matéria uma coisa inteligível, ele vê segundo a natureza, mas com a energia sobrenatural do Espírito. Quando ele vê a coisa de maneira fundamental, e não na matéria, ele pode ver um demônio ou um anjo. Se ele se une na paz, e se a iluminação do Espírito se faz mais e mais forte, ele vê sobrenaturalmente, e é claro que vê sem erro. Mas se, ao contemplar o visível, ele se divide e se entenebrece, se a potência vivificante se extingue, ele está vendo contra a natureza e esta visão é da ordem da ilusão. É por isso que não convém que o intelecto se eleve de maneira fundamental até a visão espiritual, nem que ele deposite confiança nesta visão, quando o coração ainda não se encontra animado e transportado pelo poder do Espírito Santo, se é verdade que devemos ter um intelecto são e sábio. 85. Alguns, que fazem tudo corretamente, tentam curar as queimaduras de suas paixões com o orvalho celeste da graça. Á a respeito destes que foi escrito: “O orvalho que procede de você será para nós um remédio[151]”. Em outros, este mesmo orvalho se une de alguma maneira a um socorro divino ainda maior e se transforma em maná, como se, pela contrição da humildade do coração, pela água das lágrimas e pelo fogo do conhecimento espiritual, ele se tornasse pão de trigo, num estado digno e justo, transformado num alimento semelhante ao dos anjos. É de tais seres que foi dito com razão: “O homem comeu o pão dos anjos[152]”. Outros há enfim, mais altos ainda, que se tornaram como cordeiros. Sua própria natureza se revela como maná. Os Evangelhos dizem deles: “Aquele que nasce do Espírito é Espírito [153]”. A primeira ordem é a dos sábios hesiquiastas. A ordem seguinte é a dos que vivem no silêncio e trazem consigo o conhecimento divino. A terceira ordem é a dos que se tornaram inteiramente simples e que foram transformados em Jesus Cristo nosso Senhor. 86. Quando, pela graça, como é natural, o intelecto foge em espírito do Faraó, do Egito e das coisas duras e penosas que aí ele encontrou, esta vida na carne sacudida pelas ondas passionais da amargura e do mal desagradável, quando ele penetra no deserto inteligível, num estado desembaraçado dos pensamentos faraonitas, numa palavra, quando em espírito ele se liberta das paixões, estes males que então fustigavam os Hebreus em seus sentidos, ele passa a comer doravante, pelo sentidos da alma, com toda certeza, o maná inteligível, cuja imagem foi Israel, quando comia outrora o maná sensível[154]. Mas pode acontecer ao intelecto, e não sem perigo ou risco de queda, de se lembrar em espírito dos sacrifícios egípcios e desejá-los, como os Hebreus se lembravam e desejavam a carne sensível[155]. Neste momento o intelecto experimentará o abandono de Deus, até que, pela prece do arrependimento, ela retorne e ele se reconcilie com o divino. Mas se, na hesíquia, ele se saciar do maná sem jamais relaxar, quando chegar o tempo, quando a graça lhe conceder a impulsão e a força, ele verá manifesta e claramente sua carne inteligível se transformar, por assim dizer, na própria natureza do maná. Mas um intelecto como este que come o maná possui uma balança com pratos graças à qual, tomando seu peso de maná, ele não estoca mais do que o alimento cotidiano, a fim de que nada se perca, cheio de vermes e apodrecendo[156] por ter tomado mais do que a medida, e também ele não perde a si mesmo por comer demais, por não observar aquela mesma medida. Fica assim claro que o intelecto que se alimenta do maná, uma vez que não coma nada além disto, leva manifestamente uma vida melhor do que todo intelecto que coma, mesmo em espírito, não importa o que e não importa como. O sinal de que ele próprio, pela faculdade que adquiriu de se alimentar, se transformou naquilo que dá qualidade ao maná, é que ele não tem mais apetite pelas muitas coisas estranhas que ele desejava antes. Quando ele come o maná em todas as coisas e se torna como criança, ligado ao amor de Deus, não é de se estranhar que este intelecto se transforme no estado que ele experimenta continuamente e que o sacia desde há muito; a transformação do intelecto em estado de maná jamais se dá contra a natureza. O alimento, quando tomado contínua e ininterruptamente, costuma se transformar naturalmente naquele mesmo que é alimentado.
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A partir daí, não apenas o intelecto se aproxima claramente da ordem angélica, como passa a tomar parte da filiação divina. Ele se torna digno de ser transportado de glória spiritual em glória espiritual [157]. Não apenas ele tende para o Um, como se torna ele mesmo Um, vivendo por ele, dele fazendo suas delícias, desfrutando por assim dizer dos mistérios inefáveis, levado pelo Espírito Santo pela semelhança divina e o amor a Deus, e se tornando assim de certa forma à imagem das coisas visíveis e celebradas, na medida em que ele próprio se vê em estado de maná. Esta ordem é bem mais elevada e mais venerável do que a do intelecto que conhece a si próprio por haver comido o maná, mas não por ter se transformado em estado de maná. O primeiro conhecimento é o do intelecto que começa a se recolher sob si mesmo na união inteligível. O segundo é a clara evidência de uma união mais visível, de uma revelação dos mistérios do conhecimento, da libertação última além de todas as coisas, e da intelectualidade transcendente. 87. O intelecto é simples por natureza. Pois aquilo de que ele é imagem é também simples, vale dizer: o divino. Portanto, se ele é simples, ele ama agir na simplicidade. De fato, ele ama tudo o que traz em si esta natureza simples. E no entanto ele se diversifica, não por si mesmo, mas pelos sentidos e pelo sensível, através dos quais ele recebe os inteligíveis. Mas quando ele permite à sua própria razão discernir e julgar com todo conhecimento, na medida do possível, entre ele próprio e os sentidos dedicados ao sensível, sem podar os sentidos que não devem ser podados, sem suprimir por negligência ou emular por preguiça a beleza do sensível, não submetendo a ela seu poder, por indiferença, mas atribuindo sabiamente a cada coisa o que lhe é devido, então o intelecto logo se restabelece na unidade e na simplicidade que é seu natural, e se afasta das coisas divididas. Ele retoma naturalmente seu amor pelo Um, pela simplicidade, pela ação una e simples que ele busca com seu amor. E é nesta busca que ele assegura seu próprio voo acima de tudo o que existe de composto, até descobrir aquilo que é em si verdadeiramente uno e simples – que é Deus – enquanto se regozija nas delícias, coberto agora apenas pelas asas divinas, e novamente erguido às alturas por estas mesmas asas, como é natural que se regozije uma inteligência guardada e carregada por Deus. 88. O que provém das paixões cobre o discernimento da alma como uma bruma espessa que toma o lugar da verdadeira visão. Mas quando, pela prece frequente, pela realização dos mandamentos, pela tensão em direção à contemplação de Deus, o intelecto recebe a graça de dissipar esta espessa bruma, ele percebe claramente e por si só que ele enxerga a Deus, sem precisar para tanto de nenhum intérprete, do mesmo modo como alguém que vê o mundo sensível não necessita de ninguém que lhe ensina, se nada vier turbar ou velar as pupilas de seus olhos. Com efeito, assim como o sensível está naturalmente ligado aos sentidos, desde que estes sejam sãos, também o inteligível está unido aos pensamentos purificados da nuvem das paixões. E, assim como a compreensão do sensível provém da percepção dos sentidos, também a visão dos inteligíveis provém normalmente do olhar do intelecto. Depois segue-se a contemplação de Deus, simples, fora de qualquer forma, propriedade ou imaginação, que retém a inteligência e a desembaraça de todo sensível e de todo inteligível, guardando-a no coração de um abismo de infinito, de incompreensibilidade, de ausência de limites, num arrebatamento e num maravilhamento que nenhuma palavra é capaz de descrever. 89. Ó Mestre que domina o universo, que é a origem de todo o visível e de todo o inteligível, Incriado que tem por início o que não tem começo, Infinito que tem por limites o que não tem limites, Incompreensível que tem por natureza o que está além da natureza, Não-gerado que tem como ser o que está além do ser, Invisível que tem como imagem o que não possui imagem, Incorruptível que tem como propriedade o que não tem propriedades, Inencontrável que tem como forma o que não possui forma, Ilimitado que ocupa um lugar que não se pode definir, Insondável que tem como compreensão o que não se pode compreender, Inacessível e Incompreensível que tem como conhecimento e contemplação o invisível e o desconhecido, Inexplicável que tem como palavra o indizível, Indizível que tem como explicação o inexplicável, Inconcebível que tem como pensamento o que não pode ser pensado, Mais-do-que-Deus que em tudo tem como morada o retiro acima de tudo, você que está inteiro em todos, maravilha, serenidade, coragem,
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amor, doçura, regozijo, confiança, verdadeira ausência de inquietação, alegria, você, a única glória, o único reino, a única sabedoria, a única potência anipostática. Por isso é você natural e indizivelmente o êxtase além de todo o visível, a realização além de todo inteligível e o repouso maravilhoso que recebem os que o contemplam e que participam do Espírito Santo, ó Deus inefável. 90. Aquilo que admiramos – ou seja, o divino – também desejamos. E o que desejamos nos purifica, diz a voz teológica de Gregório. Ora, o que purifica torna os seres semelhantes a Deus, e a estes seres se liga daí por diante, como o faz aos seus[158]. Não apenas Deus é assim. Aqueles que foram purificados aqui descobrem como seus, em espírito e verdade, o divino e Deus. O Teólogo acrescenta: “Deus está unido aos deuses e é conhecido dos deuses[159]”. Vê você a natureza maravilhosa da união? De fato, foi dito: “Deus está unido aos deuses”. Mas se a união se dá entre os mesmos, é claro que as disposições e a fruição desta união são forçosamente as mesmas. É por isso que também foi dito: “Ele é conhecido”. Realmente, assim como os que são semelhantes a Deus e são deuses pela graça encontram e conhecem como seus o divino e Deus, também Deus contempla e encontra para unir-se àqueles que, como dissemos, são semelhantes a Deus e são divinos. Então o grande Gregório acrescenta, não sem razão, para explicar: “Deus é conhecido pelos seres puros que são deuses, na medida em que ele já os conhece, na medida em que Aquele que é Deus por natureza conhece os deuses por adoção[160]”. Quão grande é você capaz de representar para si a similitude, quando pensa nela? Bem-aventurados são os que, como se deve, tensionam sua alma com toda força e toda a ciência espiritual, nas visões e nas contemplações de Deus, quando, através da ausência de começo e de limites, a incompreensibilidade, a eternidade e o infinito absolutos o envolvem, são vistos na natureza impalpável de Deus todos os que receberam a maravilha mais do que maravilhosa e tamanho arrebatamento. A partir de então sua alma se dedica a seguir a Deus com todo seu amor[161]. Consumidos pela contemplação da face divina e da admirável beleza que nela reside, eles experimentam com alegria um desejo difícil de suportar. Então eles são purificados, até que em sua obra divina se tornem semelhantes a Deus e a ele se unam com todo o conhecimento. Aquele que, pela eminência que cumula os deificados, e seguindo-se ao dom sobrenatural de sua deificação, alcança o conhecimento da união divina, capta maravilhosamente em sua beleza mais do que bela todo o sentido intelectual e todo o desejo, e os atrai ao redor de si como se fossem anjos que cantam sem descanso e com toda justeza: “Deus está na assembleia dos deuses e julga em meio aos deuses[162]”. E: “O Deus dos deuses, o Senhor, falou. Ele chamou a terra, os filhos da terra, do nascente ao poente[163]”. É por isso que os príncipes dos povos se juntaram ao Deus de Abrahão[164]. Eles se colocaram ao redor de Deus[165], como os serafins que o cercam, recebendo os esplendores divinos dos mistérios mais altos do que o mundo e ligando-se sem ruptura ao Deus que é infinitamente ao infinito separado de tudo. Assim, se os corações puros, segundo declarou o Senhor, são bem-aventurados por que verão a Deus[166], como não seriam manifestamente bem-aventurados os contemplativos purificados pelo maravilhamento do conhecimento de Deus e que, ao avançar, se elevam até a dignidade divina? É preciso, assim, que os que desejam experimentar a beatitude e a deificação, e assim se manter na imobilidade como os querubins ao redor de Deus, se liguem com toda sua força à ciência e à ação contemplativas em nosso Senhor Jesus Cristo. 91. Eu quero vê-lo e por isso mesmo celebrá-lo, a você que criou a vida, a você que é a vida dos que o veem, Senhor meu Deus. Mas eu não posso dizer nada por mim mesmo que seja digno. Na verdade, eu nada sei e sofro. Como pode o intelecto se unir a você, Mestre, Criador sapientíssimo? Aquele que não vê senão a Deus desfruta da paz e do repouso que lhe são naturais. Pois o intelecto, quando se liberta da rotação exterior das aparências e se detém sobre si mesmo, deseja meditar e compreender, com sua natural prontidão, as coisas mais altas, e se ligar por intermédio das coisas mais fortes ao devir de sua imaterialidade. Ele se encaminha naturalmente e como que por si mesmo para aquilo que está acima de
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tudo, para aquilo que é mais alto do que toda a imaterialidade. E assim ele recebe, como é natural, seu socorro pela fé, sob o impulso do Espírito Santo, e assim ele se dirige para você. Ou antes, a inteligência, atraída pelos seres intelectuais que o cercam como aparentados seus, deseja fortemente vê-lo com toda a resolução de sua alma. E assim ela experimenta naturalmente as coisas maravilhosas e bem-aventuradas. A partir do momento em que sua natureza, que é intelectual, como eu já disse, mais leve e mais rápida do que todas as criaturas, o transporta com todo seu desejo em direção aos inteligíveis, ele deve pensar, assim como comem os animais sensíveis. Pois pensar é, para a inteligência, aquilo que comer é para os animais sensíveis. É pelo pensamento, com efeito, que a vida própria, o crescimento, a alegria e as delícias são concedidas ao intelecto, como o são aos animais sensíveis pelo alimento sólido. É isto que o intelecto experimenta agindo assim, ou seja, pensando além de toda medida, e principalmente quando seu desejo misturado à atração de sua glória inefável chega, por sua bondade espiritual, àquilo que nasce indizivelmente em você. Com que finalidade, de fato, aquele que tem em si seu próprio desejo poderia experimentar naturalmente o que lhe vem Daquele que o atrai, e sobretudo de um ser como você, e isto por sua providência, em vista de um ser tão desejado quanto você? Pois é você, ó Rei sábio, todopoderoso, Senhor mais do que bom, você que tornou vivificante a inteligência inteligível, é você que a criou tal que ela possa se alegrar com o que é seu e entrar indizivelmente na posse do seu eros divino em estado de arrebatamento, é você que a criou de forma a que ela possa se entregar loucamente a você num transporte divino. O intelecto, criado assim, filocálico ao extremo, é então, por natureza, inteiramente filocálico. Ele tem em si, graças à providência, a tensão que o conduz a pensar o melhor, a deseja r sempre adiante as coisas mais altas e a se regozijar com o melhor em tudo o que lhe acontece. É aí que ele se manifesta, para que você o capture com toda sabedoria, atraído que ele é pelo eros no coração de sua contemplação e arrebatado de uma vez por todas para longe de tudo, com exceção apenas de você, na resolução da alma. Pois você não se revela, ó dulcíssimo, nem apenas diverso, nem apenas simples, nem apenas compreensível, nem apenas incompreensível, nem apenas terrível, nem apenas clemente. Você é tanto isto como aquilo, a fim de que o movimento e, portanto, a transformação do intelecto, vindo daqui e dali, não se debruce para alguma das coisas que estão fora de você, por causa da aparente diversidade, ou da simplicidade, ou do desejo da incompreensibilidade, ou do desejo da compreensão, ou por causa do terrível, ou por causa da clemência. Numa palavra, você é a única bondade, a única beleza englobante, a origem mais do que boa e mais do que bela, criadora de toda bondade e de toda beleza. O intelecto não pode absolutamente contemplar, permanecer e se alegrar, de muitas maneiras e frequentemente, em nada senão em você. Pois você contém em si o universo, do qual é a causa, e você é mais alto do que todas as coisas, por que é infinitamente ao infinito o Criador mais do que bom. Assim, ó Deus, você é Um. Suas energias, em sua multitude, revelam de inúmeras maneiras a sua essência. E você é imenso, por sua própria grandeza. E o mais admirável, maravilhoso, é que você resida naqueles mesmos a quem se deu a compreender. Pois você é totalmente incompreensível em sua essência e em suas energias, e ninguém pode compreender o seu poder. Quem jamais descobriu a medida de seu poder? Quem conheceu sua sabedoria? Quem sondou o oceano de sua bondade? Quem jamais chegou ao fundo de qualquer coisa sua[167], embora, de algum modo e por outra via, seja possível compreendê-lo? Portanto, o intelecto que, por intermédio do inteligível no coração do mundo sensível, começa a contemplar, se eleva em seguida à unidade e à incompreensibilidade que o cercam, ó Salvador. Pela doçura e as delícias perfeitas daquilo que compreende, e por ser filocálico, ele se apressa com grande ardor e se esforça de todas as maneiras para passar além tanto quanto lhe é possível. Mas enquanto ele não consegue ir mais longe, considerando aquilo que lhe escapa indubitavelmente, que está acima dele e que o transporta, ele se mantém presa do eros, irresistivelmente transportado de amor louco por você, e acende
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na alma um desejo intenso, inflamado pelo amor divino a partir do que consegue compreender do incompreensível, e fazendo da privação um modo de adquirir o eros, menos pelo encanto com que você o toca do que pela queimação daquilo que lhe escapa e que o dispõe, pela natureza inacessível de seu conhecimento, a se maravilhar ao mais alto grau, a desejar antes de tudo, e acrescentarei, a se persuadir a não buscar o que você é em sua essência, coisa que além disso é totalmente impossível. Mas a natureza do poder e da energia da essência divina é incompreensível, como a dos seres inteligíveis que contemplamos ao seu redor e que são infinitos em grandeza e insondáveis em sua multitude. Desde que estes seres são infinitos, é de fato impossível alcançá-los. Mas é possível, aproximando-se de você pela purificação e voltando-se para a sua beleza, atingir visões mais claras e mais luminosas dos seres que o cercam, e ser por conseguinte deificado. Você queima com a ferida do eros o intelecto que aguarda, iluminando-o pouco a pouco, e assim introduzindo-o nas maravilhas que ele contempla, inacessíveis, místicas, mais altas do que o céu. Ó Unidade infinitamente celebrada, Trindade infinitamente venerada, Abismo sem fundo de poder e sabedoria! Como, a partir deste ponto ou desta linha de partida, qualquer que seja o nome que lhe dermos, fará você penetrar na divina treva que está em você o intelecto que se elevou como quer a Lei, conduzindo-o de glória em glória[168] e lhe concedendo tantas vezes habitar no próprio interior da treva mais do que luminosa? Eu não sei, como você sabe, se outrora Moisés penetrou nesta treva[169], se ele chegou a ser a imagem desta treva, ou se a treva foi sua imagem. Eu só sei de uma coisa: esta treva é manifestamente inteligível, e nela são celebrados divinamente, sobrenaturalmente, inefavelmente, no secreto da alma, os mistérios da união e do amor espirituais. Os que são introduzidos nesta treva com a chama do Espírito que ilumina se encontram na mais intensa luz. 92. Quem, vendo-o, Senhor, Trindade, não se regozija por descobrir em você o rei, o mestre que jamais nos deixa, o dispensador de todas as coisas belas e boas, quaisquer que sejam, e a fonte de sua alegria? E quem, antes de ver seu poder que domina o universo, pode conhecer a verdadeira felicidade? É evidente que ninguém é capaz. É por isso que são verdadeiramente bem-aventurados os corações puros[170], pois eles o vêem com os olhos da alma, a você que é justamente e antes de tudo a alegria espiritual. Eles se regozijam, radiosos, com o coração profundamente feliz, e são cumulados de insuportáveis desejos de amor, ainda que sejam massacrados pelas vicissitudes do corpo e pelos ataques dos demônios. Pois a luz espiritual da beleza de sua face, Senhor, é infinitamente ao infinito mais alta do que toda submissão à tristeza do mundo, para aqueles que podem ser iluminados pela graça. É por isso que quando você avança, você é todo doçura, inteiro desejo, santa tensão, eros inefável. Então seu amor restabelece os que foram feridos pelos aguilhões sobrenaturais insuportáveis e que, de certo modo, o vêem em seu intelecto. Indo atrás de você, seguindo o odor de seu perfume[171], as almas daqueles aos quais você se revela, Deus inefável, correm com todas as suas forças, sem descanso, e se esforçam por todos os meios para atraí-lo para si mesmos, vencidos e esgotados que estão por seu desejo. Elevados à altura de sua beleza sobrenatural, eles o guardam em seu intelecto sem jamais esquecê-lo. Ou antes, é primeiro você quem guarda contínua e espiritualmente seus corações dia e noite. E o sono se vai de suas pálpebras (...)[172]. Eles repousam então, mas seu coração vigia[173], alegres em seus leitos[174], como disse o Profeta. Eles veem em abundância, sentem-se oprimidos e não suportam o que lhes acontece. Eles nada sabem, eles são arrebatados por que recebem o esplendor inefável de sua face, pela grandeza da glória de sua santidade, por suas elevações que vão mais alto do que o mundo e que eles trazem em si, pelas revelações místicas e pelas miríades de dos misteriosos e inefáveis, belos e bons, Pai, que o cercam (...)[175]. Possa você afirmar aqueles que, retamente, permanecem diante de sua face[176].
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[1] João 3: 6./ [2] Cf. Malaquias 3: 20. [3] Cf. Salmo 103 (104): 4. [4] Cf. João 3: 6. [5] Cf. Mateus 18: 10. [6] Salmo 104 (105): 4. [7] Cf. João 15: 4. [8] Salmo 33 (34): 6. [9] I Coríntios 13: 7. [10] I Coríntios 13: 8. [11] Cf. João 8: 32. [12] Cf. João 15: 15. [13] Romanos 8: 14. [14] Deuteronômio 6: 4. [15] Cf. Romanos 11: 36. [16] Isaías 48: 26. [17] Deuteronômio 6: 13. [18] Cf. Deuteronômio 32: 12. [19] Cf. Gênesis 1: 26. [20] Cf. Romanos 11: 36. [21] Cf. Romanos 11: 36. [22] Cf. Pedro Damasceno, Livro II, Discurso 9. [23] João 11: 25. [24] João17: 3. [25] Salmo 68 (69): 33. [26] Salmo 86 (87): 7. [27] Salmo 35 (36): 10. [28] Deuteronômio 6: 4.5. [29] Cf. Lucas 5: 6. [30] Cf. Hebreus 4: 3. [31] João 17: 22. [32] Deuteronômio 6: 5. [33] Levítico 19: 18. [34] Cf. Romanos 13: 10. [35] Cf. Mateus 22: 40. [36] Cf. I Coríntios 12: 31. [37] Cf. II Pedro 2: 19. [38] Cf. Romanos 1: 25. [39] Cf. Colossenses 2: 3. [40] Salmo 4: 7. [41] Cf. Lucas 10: 42. [42] Salmo 4: 7.
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[43] Cf. I Tessalonicenses 4: 17. [44] Cf. Hebreus 3: 12. [45] Cf. Cânticos 2: 17. [46] Cf. I Coríntios 13: 12. [47] Cf. Hebreus 12: 14. [48] Cf. Mateus 4: 1 ss. [49] Mateus 26: 36. [50] Cf. João 19: 28. [51] Cf. Isaías 42: 2; Mateus 12: 19. [52] Cf. Lucas 23: 34. [53] Cf. Mateus 26: 67 e paralelos. [54] Cf. Mateus 29: 34 e 48; João 19: 20-30.34. [55] Salmo 38 (39): 3. [56] Cf. Tiago 1: 17. [57] Mateus 18: 3. [58] Cf. Salmo 31 (32): 1. [59] Cf. Salmo 93 (94): 12. [60] Cf. João 4: 23-24. [61] Cf. João 14: 17. [62] Cf. Lucas 1: 78. [63] Cf. Salmo 83 (84): 6. [64] Salmo 83 (84): 8. [65] Salmo 83 (84): 13 [66] Cf. Eclesiastes 3: 7. [67] Ibid. [68] Cf. Mateus 5: 5. [69] Cf. Eclesiastes 3: 7. [70] Cf. Eclesiastes 3: 7. [71] Cf. Êxodo 13: 21. [72] Cf. Êxodo 17: 8. [73] Cf. Eclesiastes 3: 7. [74] Cf. Êxodo 17: 12. [75] Cf. Eclesiastes 3:7. [76] Cf. João 4: 24. [77] Isaías 66: 1. [78] Cf. I Timóteo 2: 4. [79] Eclesiastes 3: 7. [80] Salmo 3: 2. [81] Cf. Salmo 4: 7. [82] Cf. Salmo 34 (35): 11. [83] Cf. Gênesis 2: 2-3. [84] Cf. Hebreus 4: 9. [85] Cf. Filipenses 2: 9. [86] Cf. Jó 26: 7. [87] Cf. Salmo 144 (145): 13. [88] Cf. Gênesis 2: 3. [89] Cf. Gênesis 2: 3. [90] Eclesiastes 5: 1. [91] Cf. Colossenses 3: 2. [92] Cf. Gênesis 3: 4-5.
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TII, IV – CALIXTO CATAPHYGIOTES –Sobre a união divina e a vida contemplativa.
[93] Cf. Gênesis 3: 23-24. [94] Cf. Provérbios 18: 3. [95] Cf. Gênesis 1: 27. [96] Cf. Colossenses 3: 2. [97] Isaías 6: 5. [98] Cf. Gênesis 18: 27. [99] Cf. Êxodo 4: 10. [100] Salmo 41 (42): 3. [101] Salmo 139(140): 14. [102] Salmo 29 (30): 8. [103] Salmo 88 (89): 16-17. [104] Salmo 142 (143): 7. [105] Salmo 4: 7. [106] Salmo 4: 8. [107] Cf. Salmo 44 (45): 13. [108] Cf. João 4: 24. [109] Cf. I Coríntios 8: 7. [110] Salmo 44 (45): 13. [111] Cf. I Reis 3: 12. [112] Eclesiastes 5: 1. [113] Cf. Mateus 18: 10. [114] Cf. Provérbios 13: 9. [115] Cf. Efésios 4: 13. [116] Cf. Eclesiastes 5: 1. [117] Cf. Êxodo 16: 15. [118] Cf. Hebreus 3: 13. [119] Isaías 7: 9. [120] Cf. I Coríntios 2:10. [121] Jó 33: 4. [122] Cf. Eclesiastes 8: 1. [123] Salmo 93 (94): 12. [124] Lucas 2: 52. [125] Lucas 2: 40. [126] Sabedoria 9:16-19. [127] Cf. Colossenses 1: 19. [128] Cf. Mateus 22: 40. [129] Cf. Carta IX, 1. [130] Cf. Cânticos 2: 5. [131] Aproximação de Deus por negações sucessivas. [132] Cf. Hierarquia eclesiástica I, 3. [133] Salmo 5: 4. [134] Nomes divinos I, 4. [135] Romanos 11: 36; Hierarquia celeste I, 1. [136] Hierarquia celeste XII, 3. [137] Cf. II Coríntios 3: 18; Máximo o Confessor, Centúrias sobre a Teologia I, 97. [138] Salmo 140 (141): 10 (Ofício de Vésperas). [139] Salmo 103 (104): 24 (Ofício de Vésperas). [140] Gênesis 27: 27. [141] Cânticos 1: 4. [142] Salmo 144 (145): 1.
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TII, IV – CALIXTO CATAPHYGIOTES –Sobre a união divina e a vida contemplativa.
[143] Salmo 144 (145): 3. [144] Salmo 138 (139): 6. [145] Salmo 101 (102): 12. [146] Salmo 85 (86): 8. [147] Gênesis 26: 24. [148] Cf. Lucas 16: 22. [149] Cf. Salmo 32 (33): 6. [150] Cf. Salmo 32 (33): 5. [151] Isaías 26: 19. [152] Salmo 77 (78): 25. [153] João 3: 6. [154] Cf. Êxodo 16: 35. [155] Cf. Êxodo 12: 8. [156] Cf. Êxodo 16: 18-20. [157] Cf. II Coríntios 3: 18. [158] Gregório de Nazianze, Discurso XXXVIII, 7. [159] Ibid. [160] Ibid. [161] Cf. Salmo 62 (63): 9. [162] Salmo 81 (82): 1. [163] Salmo 49 (50): 1. [164] Salmo 46 (47): 10. [165] Cf. Isaías 6: 2. [166] Cf. Mateus 5: 8. [167] Cf. Sabedoria 9: 17; Isaías 40: 13. [168] Cf. II Coríntios 3: 18. [169] Cf. Êxodo 20: 21. [170] Cf. Mateus 5: 8. [171] Cf. Cânticos 1: 3. [172] Lacuna no texto. [173] Cf. Cânticos 5: 2. [174] Cf. Salmo 149: 5. [175] Lacuna no texto. [176] Cf. Salmo 139 (140): 14.
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SIMEÃO DE TESSALÔNICA
Simeão de Tessalônica foi Arcebispo desta cidade no princípio do século XV, no momento em que a desaparição do Império Bizantino iria, ao redor do mar Egeu, impor a todos os cristãos, e não apenas aos monges, interiorizar mais do que nunca a revelação bíblica e a predicação da Igreja. Nestes dois curtos capítulos extraídos de suas obras, ele pede aos leigos para caminhar sobre a via traçada e perpetuada pelos monges durante um milênio: condensar na prece do coração (a invocação contínua do “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”) e salvaguardar assim na mais pura simplicidade e na mais imediata humildade, com a compaixão de Deus, a irredutível identidade do fiel. Simeão faz bondosamente a apologia da prece do coração. O primeiro capítulo enumera as virtudes desta prece, que ele chama de “prece divina”: o viático que permite a passagem da criação à redenção, até a transfiguração do mundo na luz eterna, em nome e pela graça do Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus. A via cristã é assim reconduzida inteiramente a sua origem e ao seu fim, da invocação à confissão, da confissão à iluminação: “a salvação e a vida”, conclui Simeão. O segundo capítulo exorta a dizer continuamente esta prece comum. Perpetuando a todo momento, no próprio curso do mundo, os sacramentos da Igreja, identificando, definindo e reunindo “no secreto” todos os cristãos, a prece do coração funda e verifica, na sua fé e nas suas obras, o homem, quem quer que seja, monge, sacerdote ou leigo, que se lembra de Cristo e traz a Cristo em si: tendido entre a humildade e a deificação, aberta sobre o devir absoluto, a vocação mesma do cristão.
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TII, IV – SIMEÃO DE TESSALÔNICA – Sobre a santa prece Deificante.
SOBRE A SANTA PRECE DEIFICANTE Capítulo 236 Esta prece divina, a invocação de nosso Senhor – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim” – é ao mesmo tempo apelo, invocação e confissão de fé. Ela suscita o Espírito Santo, é a morada de Jesus Cristo, é a fonte da reflexão espiritual e dos pensamentos divinos, ela liberta dos pecados, cura as almas e os corpos, concede a iluminação divina, distribui a piedade de Deus, concede na iluminação as revelações e as iniciações divinas, e traz em si a única via de salvação: o nome salutar de nosso Deus, vale dizer, o nome único de Jesus Cristo Filho de Deus invocado em nós, que em nenhum outro reside a salvação[1], como disse o Apóstolo. Assim é que a prece é apelo, pois nela pedimos a piedade de Deus. Ela é invocação, por que ao invocarmos oferecemos a nós mesmos a Cristo. Ela é confissão, por que, por haver confessado o nome divino, Pedro foi chamado de bem-aventurado[2]. Ela suscita o Espírito, pois ninguém pode dizer “Senhor Jesus” senão no Espírito Santo[3]. Ela dispensa os dons de Deus, pois por meio dela eu lhe darei as chaves do Reino dos céus, disse Cristo a Pedro[4]. Ela purifica o coração, pois ela vê a chama por Deus, e purifica aquele que vê. Ela expulsa os demônios, pois todos os demônios são expulsos em nome de Jesus Cristo. Ela é a morada de Cristo, pois Cristo está em nós quando nos lembramos dele, ele permanece em nós em nossa lembrança e nos enche de alegria. De fato, foi dito: “Eu me lembrei de Deus e me alegrei [5]”. Ele é a fonte da reflexão espiritual e dos pensamentos divinos, pois Cristo é o tesouro de toda sabedoria e de todo conhecimento[6], e ele concede estas coisas àqueles nos quais ele habita. Ele é a libertação dos pecados, pois foi dito: “Aquilo que você desatar por seu intermédio será desatado no céu[7]”. Ela cura as almas e os corpos, por que foi dito: “Em nome de Jesus Cristo, levante-se e ande[8]”, e também: “Enéas, Jesus Cristo o curou[9]”. Ela concede a iluminação divina, por que Cristo é a verdadeira luz[10], e ele transmite aos que o invocam o esplendor de sua graça. Foi dito: “Venha sobre nós o esplendor do Senhor nosso Deus[11]”. E também: “Aquele que me segue terá a luz da vida[12]”. Ela espalha a piedade de Deus, pois nós pedimos esta piedade e: “O Senhor é compassivo, ele tem compaixão por aqueles que o invocam [13]”, e: “Ele faz justiça rapidamente aos que chama para junto de si[14]”. Ele concede aos humildes revelações e iniciações divinas, pois estas foram dadas a Pedro o pecador por uma revelação do Pai que está nos céus [15], e Paulo foi arrebatado em Cristo e ouviu as revelações[16]. Seus efeitos são sempre os mesmos. E ela é a única via de salvação, pois “em nenhum outro temos a salvação[17]”, disse o Apóstolo, e também: “Ele é o Salvador do mundo, o Cristo[18]”. É por isso que no último dia toda língua, queira ou não, confessará e cantará que Jesus Cristo é o Senhor, na glória de Deus Pai[19]. Este é o sinal de nossa fé, pois somos cristãos e trazemos este nome. E ele testemunha que somos de Deus. Pois, como já lembramos, foi dito: “Todo espírito que confessa que Jesus Cristo é o Senhor vindo na carne é de Deus. E quem não o confessa não é de Deus[20]”. Mas “este é o espírito do Anticristo, que não confessa Jesus Cristo[21]”. É preciso assim que todos os fiéis não cessem de confessar este nome, para proclamar sua fé e por amos a nosso Senhor Jesus Cristo, do qual ninguém jamais nos poderá separar[22], e pela graça que seu nome derrama. E pela absolvição, a redenção, a cura, a santificação, a iluminação, e acima de tudo a salvação. Pois foi neste nome divino que os apóstolos fizeram maravilhas e ensinaram. O divino Evangelista disse: “Estas coisas foram escritas para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus [23]”; esta é a fé. “E para que, crendo, vocês tenham a vida em seu nome[24]”. Tais são a salvação e a vida.
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TII, IV – SIMEÃO DE TESSALÔNICA – Sobre a santa prece Deificante.
Capítulo 237 Que todo fiel diga continuamente em seu intelecto e com sua língua esta prece do nome de Jesus. Imóvel ou caminhando, sentado ou deitado[25] o que quer que diga ou faça, que não cesse de se dedicar à prece. Então ele encontrará uma grande serenidade, uma enorme alegria, como sabem por experiência todos os que agem assim. Esta obra ultrapassa os homens que são absorvidos pelas coisas desta vida, e os próprios monges, quando se encontram em meio às perturbações do mundo. Entretanto, é preciso que aquilo que diz respeito a esta obra esteja distribuído a cada qual, e que todos, sacerdotes, monges ou leigos, tenham diante de si o modelo desta prece, a fim de praticá-la tanto quanto possível. Em primeiro lugar os monges, por que esta é a sua ordem, e por que a têm por obrigação. Ainda que estejam no vaivém dos serviços para os quais são chamados, que se esforcem sempre em se aplicar à invocação, pois eles se devem à prece e devem orar continuamente ao Senhor[26], mesmo que estejam distraídos e ocupados, mesmo que seu intelecto esteja cativo, como se diz, para que não se tornem negligentes e sejam capturados pelo inimigo, eles devem retornar à prece e se alegrar por este retorno. Também os sacerdotes devem orar, por que foram consagrado s a esta obra apostólica que realiza a predicação divina e os gestos de Deus, e que revela o amor de Cristo. Enfim, devem praticá-la tanto quanto puderem aqueles que estão no mundo, por que ela se constitui num selo sobre eles e num signo de sua fé, ela os santifica e expulsa deles toda tentação. É preciso, portanto, que todos, sacerdotes, leigos ou monges, a partir do momento em que despertam do sono, tenham em primeiro lugar a Cristo no espírito, e que se lembrem sempre primeiro de Cristo. Todos devem oferecer a prece a Cristo como as primícias e o sacrifício de todo pensamento, lembrar-se, antes de cada pensamento, de Cristo, que nos salvou e que tanto nos amou. Pois nós somos cristãos, e trazemos o nome de Cristo. Nós nos revestimos dele pelo batismo divino[27] e dele recebemos o selo pela unção. E comungamos e seguimos comungando sua Carne santa e seu Sangue. Somos seus membros[28], somos seu Templo[29]. Nós dele nos revestimos[30] e ele permanece em nós. Por isso devemos amá-lo e sempre nos lembrarmos dele. Que cada um tome para si como um dever consagrar-se à prece tanto quanto puder por um determinado tempo, e de dizer um certo número de vezes esta oração. Mas já dissemos o bastante. Os que se interrogam a respeito da oração encontrarão benefícios naquilo que ensinamos aqui.
[1] Atos 4: 12. [2] Cf. Mateus 16: 17. [3] Cf. I Coríntios 12: 30. [4] Cf. Mateus 16: 19. [5] Salmo 76 (77): 3. [6] Cf. Colossenses 2: 3. [7] Mateus 16: 19 e 18: 18. [8] Atos 3: 3. [9] Atos 9: 34. [10] João 1: 9. [11] Salmo 89 (90): 17.
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TII, IV – SIMEÃO DE TESSALÔNICA – Sobre a santa prece Deificante.
[12] João 8: 12. [13] Salmo 85 (86): 6; Salmo 144: 18. [14] Lucas 18: 7. [15] Cf. Mateus 16: 17. [16] Cf. II Coríntios 12: 2. [17] Atos 4: 12. [18] João 4: 42. [19] Filipenses 2: 11. [20] I João 4: 2. [21] I João 4: 3. [22] Cf. Romanos 8: 35. [23] João 20: 31. [24] Ibid. [25] Cf. Deuteronômio 6: 6-7. [26] I Tessalonicenses 5: 17. [27] Gálatas 3: 27. [28] I Coríntios 12: 27. [29] Cf. II Coríntios 6: 16. [30] Cf. Gálatas 3: 27.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO.
OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO
No final da Filocalia foram inseridos alguns opúsculos ou extratos de obras de Padres traduzidos (provavelmente pelos próprios compiladores, Macário e Nicodemo) em grego demótico, o grego moderno falado, com o objetivo de torna-los acessíveis a todos os cristãos, em razão de sua utilidade. Alguns destes textos já se encontram em um ou outro dos autores publicados; as concordâncias encontrar-se-ão assinaladas.
Sobre as palavras da prece divina; Interpretação do Kyrie eleison; De São Simeão o Novo Teólogo: Discurso sobre a fé e o ensinamento; Sobre os três modos da prece; De são Gregório o Sinaíta; Como cada um deve orar; Da vida de são Máximo o Capsocalyvita; Da vida de são Gregório de Tessalônica;
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Sobre as palavras da prece divina.
SOBRE AS PALAVRAS DA PRECE DIVINA O “Discurso sobre as palavras da prece divina” é o primeiro dos sete textos em língua demótica que aparecem como o testamento da Filocalia, pois as dificuldades dos tempos pediam, para os editores de 1782, uma interiorização e uma realização da vida monástica na oração permanente de todos os cristãos. Este discurso, atribuído pela Filocalia a um “santo anônimo”, é de fato a paráfrase de um texto das primeiras décadas do século XV, devido a Marcos Eugênicos, arcebispo de Éfeso, morto em 1429. Ele se segue naturalmente aos capítulos de Simeão de Tessalônica. Mas Simeão apresentava e exortava, enquanto Marcos de Éfeso aprofunda e explica. Ele esclarece que a “prece divina” – a prece do coração – tem sua origem na Sagrada Escritura, que ela perpetua e realiza lembrando continuamente estes dois polos: o nome e a graça de Deus. O próprio nome – “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus” – nos foi confiado pelos três testemunhos-chave do Novo Testamento, Paulo, João e Pedro. E o apelo à graça – “tenha piedade de mim” – nos foi transmitido pelo cego que, no Evangelho, implora pela compaixão de Jesus. A prece do coração integra assim os dados fundamentais da revelação evangélica (o Senhor é Jesus, Jesus é o Cristo, o Cristo é o Filho de Deus) e estabelece o fiel, por meio da piedade e a graça, no coração da redenção. Ela é assim a própria ortodoxia da fé cristã. Ela explicita a natureza humana e a natureza divina de Cristo, ao mesmo tempo que a união e a distinção das duas naturezas numa mesma hipóstase: a resposta, pura e simples, lapidar e luminosa, a todas as heresias, e sobretudo o fruto que a ascese hesiquiasta colhe e prova sobre aquilo que a Filocalia chama de a “grande e bela árvore” da revelação bíblica.
De um santo anônimo Discurso admirável sobre as palavras da prece divina “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”. Que poder tem a prece “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”? E de quais graça ela cumula os que a praticam? E a que estado de dignidade os conduz? Não nos é possível dizer e revelar tais coisas, por que isto nos ultrapassa. Diremos apenas de onde vem esta oração, e quem foram os primeiros a pronunciar suas palavras. Esta oração tem sua origem na Sagrada Escritura. E foram os três grandes apóstolos de Cristo, Paulo, João e Pedro, que disseram as suas palavras. Foi deles que as recebemos, como uma herança transmitida pelos Padres. Elas são oráculos divinos, revelações do Espírito Santo, vozes de Deus. Com efeito, nós cremos que todos os ditos e escritos dos divinos apóstolos que traziam em si o Espírito são palavras de Cristo, que as disse por suas bocas. Pois nosso Senhor, no santo Evangelho, prometeu a eles que ele próprio, o Filho, o Pai e o Espírito Santo viriam fazer neles sua morada[1], e não apenas neles, os apóstolos, mas em todo cristão que observe seus mandamentos. Foi assim que o divino Paulo, que foi considerado digno de ser elevado até o terceiro céu, disse do Senhor Jesus: “Ninguém pode dizer ‘Senhor Jesus’ se não for no Espírito Santo [2]”. Ao afirmar que ninguém pode dizer este nome do Senhor Jesus fora do Espírito Santo, o apóstolo Paulo revelou de maneira admirável que este nome é muito mais alto do que todos os outros nomes, e que ele os domina: é por isso que é impossível pronunciá-lo fora do Espírito Santo. Quanto a João o Teólogo, que revelou como um trovão as coisas do Espírito e da teologia, ele tomou o final das palavras de Paulo para delas fazer o início. Ele disse: “Todo espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne é de Deus[3]”. Ao afirmar que todo espírito
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Sobre as palavras da prece divina.
que confessa o nome de Jesus Cristo é de Deus, este apóstolo divino mostra com suas palavras que o nome e a confissão de Jesus Cristo são da ordem da graça divina e espiritual, que esta não é uma coisa simples e fortuita. Da mesma forma Pedro, o príncipe dos apóstolos, tomou o final das palavras de João – ou seja, “Cristo” – e dela fez outro início. A nosso Senhor que perguntou aos seus discípulos: “Quem vocês dizem que sou?”, Pedro respondeu: “Você é o Cristo, o Filho de Deus[4]”, palavras que Deus Pai lhe revelou do céu, como testemunha nosso Senhor no Evangelho[5]. Considere como em suas palavras divinas estes três santos apóstolos de Cristo se apoiam um no outro para formar um círculo. Cada qual recebeu do outro as palavras divinas, de modo a colocar no começo a palavra que o anterior havia colocado no final, e assim realizaram a oração. Paulo disse “Senhor Jesus”, João disse “Jesus Cristo” e Pedro disse “Cristo, Filho de Deus”. Existe aí um círculo admirável. O final “Filho de Deus” se une ao começo “Senhor”. Pois é a mesma coisa dizer “Senhor” e “Filho de Deus”, por que as duas coisas manifestam a divindade do Filho único de Deus. É assim que os bem-aventurados apóstolos nos ensinaram a dizer no Espírito Santo e a confessar “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”. O fato de que eram três os torna dignos de fé. Pois toda palavra deve ser assegurada e confirmada por três testemunhas[6].
Mesmo a ordem segundo a qual os apóstolos disseram estas palavras não é sem razão, mas tem sua explicação. O primeiro a dizê-las foi Paulo, depois João e enfim Pedro. A tradição mística da prece “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus” começou por Paulo, que foi o último dos discípulos de Cristo, depois através de João ela chegou a Pedro, que foi o primeiro, e nele ela se realizou. Ora, existe aí, penso eu, um sinal da ordem segundo a qual nós progredimos para nos unir a Deus pela ação, a contemplação e o amor. Pois Paulo significa a ação, como ele próprio disse: “Eu trabalhei mais do que todos [7]”. João representa a contemplação, como indica seu nome de Teólogo. E Pedro representa o amor, como nosso Senhor testemunhou ao dizer-lhe: “Pedro, você me ama? Apascenta minhas ovelhas[8]”. Assim, aquele que se dedica à prece progride primeiro na virtude ativa, depois se eleva da ação à contemplação e enfim adquire o amor de Cristo e se une a ele. Mas estas palavras divinas da oração não significam apenas isso. Elas revelam igualmente a justa doutrina de nossa fé e derrubam todas as heresias. Com efeito, “Senhor” manifesta a natureza divina de Cristo e derruba a heresia dos que afirmam que ele foi apenas um homem e que não é Deus. “Jesus” manifesta a natureza humana de Cristo e derruba a heresia dos que dizem que ele é somente Deus e que ele não foi
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Sobre as palavras da prece divina.
homem, ou que ele foi homem apenas na aparência. “Cristo” manifesta as duas naturezas, a divina e a humana, as duas numa só pessoas, numa só hipóstase, e derruba a heresia dos que dizem que em Cristo existem duas hipóstases separadas uma da outra. Por fim, “Filho de Deus” manifesta que, em Cristo, a natureza divina, depois de se ter unido à natureza humana, não se confunde com ela, e que, da mesma forma, a natureza humana não se confunde com a natureza divina. “Filho de Deus” derruba assim a heresia dos que dizem que a natureza divina e a natureza humana em Cristo se confundem e estão misturadas uma à outra. Essas quatro palavras, que são palavras divinas e punhais espirituais, derrubam e refutam dois pares de heresias que se opõem entre si na malícia e na divisão, mas que se unem e concordam na impiedade.
Isto é o que nos transmitiram nossos Padres, estes homens perfeitos que possuíam a sabedoria de Deus, que traziam em si o Espírito, que imprimiram em seus corações e amaram desmesuradamente, como nos ensinaram os apóstolos, cada uma das palavras divinas “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus”, e, em especial, o nome dulcíssimo de “Jesus”. Eles fizeram deste único nome uma prece perfeita e total. Continuamente, durante toda sua vida, eles se esforçaram por se saciar da doçura de Jesus. Eles sentiam todo o tempo fome e sede de Jesus, ainda que estivessem cheios de alegria espiritual inefável, ainda que houvessem recebido os carismas de Deus e estivessem doravante livres da carne e deste mundo, como anjos terrestres ou homens celestes, tão grande era a altura da virtude à qual se elevaram por meio deste doce nome de Jesus. Entretanto, a nós, os noviços e imperfeitos, eles ensinaram ainda a dizer: “Tenha piedade de mim”. Ou seja, “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”. E isto para permitir que conheçamos nossa medida e nosso estado, que saibamos que temos necessidade do enorme e rico amor do Deus Santo e que somos como aquele cego de que fala o Evangelho, e que, desejando ver a luz com seus olhos, clamou no momento em que nosso Senhor passava, dizendo: “Jesus, tenha piedade de mim![9]”. Da mesma forma, nós, que somos cegos na alma, pedimos a Deus que nos revele seu amor e que nos abra os olhos da alma, para que possamos ver com o intelecto. É por isso que nos foi ainda prescrito dizer: “tenha piedade de mim”. Alguns, querendo colocar aí também o amor ao próximo, dizem assim a oração: “Senhor Jesus Cristo, nosso Deus, tenha piedade de nós”. Assim eles oram por todos os irmãos. Pois eles sabem que o amor é a realização da Lei e dos Profetas[10], que ele consiste numa virtude que contém em si todos os mandamentos e todas as obras espirituais. Assim eles unem à sua prece o amor ao próximo. Eles pedem a Deus que tenha piedade deles e de seus irmãos. Eles pedem assim sobre estes em primeiro lugar o amor de 1230
TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Sobre as palavras da prece divina.
Deus. Pois eles mencionam a Deus pensando nos outros. Eles chamam nosso Deus para todos, e lhe pedem para dispensar a mesma piedade a todos os irmãos. Enfim, o amor do Deus boníssimo vem regularmente a nós quando este vê que mantemos a fé correta nos dogmas e a perfeição dos mandamentos nas obras, estas duas coisas que contém em si o curto verso da prece: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de nós”. Se quisermos ainda examinar o tempo em que foram pronunciados originalmente estes nomes divinos “Senhor Jesus Cristo”, encontrá-los-emos novamente na mesma ordem em que os dizemos. Com efeito, dizemos primeiro “Senhor”, depois “Jesus” e enfim “Cristo”. Por toda parte no Antigo Testamento, tanto antes como depois da Lei, o Filho e Verbo de Deus é chamado de “Senhor”. No tempo de Ló, foi dito: “O Senhor fez chover o fogo que veio do Senhor[11]”. E nos Salmos Davi afirma: “O Senhor disse ao meu Senhor[12]”. Também no Evangelho, no momento em que Gabriel anunciou à Mãe de Deus que o Verbo de Deus iria se tornar homem, ele disse a Maria: “Você o chamará pelo nome de Jesus [13]”. Pois o Filho e Verbo de Deus, sendo Senhor, Mestre do universo e Deus, quis, em sua bondade e misericórdia extremas, tornar-se homem para salvar o homem. E ele foi chamado de Jesus, nome que quer dizer Salvador e Redentor do homem. Enfim, “Cristo” manifesta a deificação da natureza humana que nosso Senhor tomou quando se encarnou e se tornou homem. Antes de sua Paixão e morte, ele proibia seus discípulos de chamá-lo de Cristo. Mas depois de sua Paixão e de sua Ressurreição, foi com toda liberdade que o apóstolo Pedro, diante do povo judeu, o chamou de Cristo, dizendo: “Que toda a casa de Israel saiba que Deus o tornou ele próprio Senhor e Cristo[14]”. Pois a natureza humana que o Filho e Verbo de Deus tomou recebeu a unção de sua divindade e foi semelhante a Deus, a partir do momento em que Cristo foi crucificado, ressuscitou dos mortos, subiu aos céus e sentou-se à direita do Pai. Foi, portanto, depois da Ascenção, que chegou o tempo em que foi revelado este nome de Cristo. Então os apóstolo anunciaram que Jesus era o Cristo, Filho de Deus e Deus. É assim que o chamamos em primeiro lugar “Senhor”, depois “Jesus” e enfim “Cristo” e “Filho de Deus”, tal como aparece na oração “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”, oração que, em sua sabedoria divina, nossos Padres receberam dos santos apóstolos como uma herança ancestral, e que eles nos transmitiram. Nós mesmos, tanto quanto podemos, dizemos as palavras desta prece, como colhemos as flores de uma grande e bela árvore. Agora, onde se encontram os frutos que amadurecem em si as palavras divinas, que outros o digam, aqueles que, com tempo e experiência, progrediram nesta obra da oração, que provaram da doçura deste fruto e que alcançaram a perfeição.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Interpretação do Kyrie Eleison.
INTERPRETAÇÃO DO KYRIE ELEISON Sucedendo a dois textos apologéticos sobre a prece do coração (uma simples apresentação e uma explicação bíblica), esta breve interpretação anônima do “Kyrie eleison” aparece sobretudo como uma advertência e uma defesa. Ela relembra as origens bíblicas a apostólicas da prece do coração (em especial o “Kyrie eleison”, ou “Senhor, tenha piedade” dos salmos), mas explica ainda que pedir a piedade do Senhor não faz sentido a menos que saibamos com certeza e consciência o que estamos invocando quando dizemos “Senhor”. Esta observação toca num dos pontos mais delicados da vida espiritual, já sublinhado no Evangelho: orar não pode ser nem um hábito, nem uma ostentação. Orar implica sempre uma dupla consciência que a um tempo quebranta e abre o coração: a consciência da perdição do homem e a consciência da compaixão do Senhor, sendo que a piedade aqui não é outra coisa do que, como é afirmado, “a graça do Espírito Santo”, ou seja, o dom da deificação. Vale dizer, este é o alcance máximo da prece do coração, e isto mostra a importância deste pequeno texto
De um santo anônimo 1. A oração “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”, e mais resumidamente “Senhor, tenha piedade” (“Kyrie eleison”) foi dada aos cristãos desde a época dos apóstolos, e lhes foi prescrito que a dissessem continuamente. Mas o que significa este “Kyrie eleison”? Muito poucos o sabem hoje em dia. É por pura perda de tempo, ou mesmo por nada, que se diz “Senhor, tenha piedade”. Não se recebe assim a piedade de Deus, porque não se sabe o que está sendo pedido. É preciso saber que o Filho e Verbo de Deus se tornou Senhor e Mestre da natureza humana a partir do momento em que se encarnou, ou em que ele se fez homem, quando ele sofreu tormentos, quando foi crucificado e quando, espalhando seu santíssimo sangue, resgatou os homens das mãos do diabo. Pois antes de se encarnar, ele era o Senhor de todas as criaturas visíveis e invisíveis: ele era seu Criador. Quanto aos homens e aos demônios que não quiseram de boa vontade tê-lo como Senhor e Mestre, o Senhor do mundo inteiro não se tornou seu Senhor. Pois o Deus boníssimo, tendo feito os anjos e os homens livres e tendo lhes dado a razão para que eles tivessem o conhecimento e o discernimento, não quis, sendo justo e verdadeiro, lhes retirar a liberdade nem dominálos à força e contra sua vontade. Mas ele é o Senhor e Mestre apenas dos que querem se submeter ao poder e ao governo de Deus. Quanto aos que não o querem, ele os deixa fazer sua vontade, pois eles são livres. 2. Assim é que quando Adão, seduzido pelo diabo rebelde, se revoltou contra Deus e se recusou a obedecer seu mandamento, Deus lhe deu a liberdade e não quis dominá-lo à força. Mas o diabo invejoso, que havia enganado a Adão no começo, não parou de enganá-lo até conseguir torná-lo semelhante em irracionalidade aos animais desprovidos de inteligência, e ele passou a viver daí em diante como um animal privado de razão e de intelecto. Deus, em sua grande compaixão, teve por fim piedade dele. Ele inclinou os céus e desceu à terra, e se fez homem para o homem. Com seu sangue puríssimo ele o libertou da escravidão do pecado. Pelo santo Evangelho, ele o conduziu pelo caminho de uma vida agradável a Deus e, segundo João o Teólogo, ele nos deu o poder de nos tornarmos filhos de Deus. Ele nos regenerou pelo batismo divino. Ele nos tornou novas criaturas. Pelos sacramentos, ele alimentou a cada dia e vivificou nossas almas. Numa palavra, em sua extrema sabedoria, ele abriu a via que o tornou para sempre inseparável de nós, como nós dele, para que o diabo não mais tivesse lugar em nós. 3. Aqueles cristãos que, depois de receber de Cristo seu Mestre tantas graças e tantas benesses, se deixaram novamente enganar pelo diabo, que se afastaram de Deus por causa do mundo e da carne e que
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Interpretação do Kyrie Eleison.
foram dominados pelo diabo cuja vontade cumprem, mas que não são insensíveis a ponto de não perceberem o mal que sofreram, que compreendem sua falta e reconhecem a escravidão em que se encontram, mas que não podem sozinhos se libertar e pedem socorro a Deus, estes dizem “Senhor, tenha piedade”, para que o Senhor, em seu grande amor, os cumule com sua misericórdia e compaixão, para recebê-los como filhos pródigos, para dar-lhes outra vez a graça divina, a fim de que sejam libertados do pecado pela graça, para que se afastem dos demônios, para que recuperem sua liberdade, e que assim possam viver agradando a Deus e cumprindo seus mandamentos. Estes cristãos, que dizem Kyrie eleison com tal finalidade querem com isto descobrir a compaixão do Deus boníssimo, querem receber sua graça, a fim de se libertarem do pecado e ser salvos. 4. Mas os que não têm a consciência total disto que dissemos não sabem, para sua infelicidade, que estão subjugados às vontades da carne e às coisas deste mundo e não têm tempo para pensar na escravidão em que se encontram. Este não é seu objetivo. E se eles dizem Kyrie eleison é, acima de tudo, pelo costume de dizê-lo. Como poderão eles receber a compaixão de Deus, uma compaixão tão maravilhosa e infinita? Melhor seria não receber a compaixão de Deus, do que recebê-la e novamente a perder, pois então a falta será dupla, como se colocassem uma pedra preciosa nas mãos de uma criança ou de alguém que não soubesse seu valor. Se estes recebem a pedra e a perdem, é evidente que a culpa não é deles, mas de quem a deu para eles. 5. Para melhor compreensão daquilo que estamos dizendo, considere que aquele que é pobre e indigente neste mundo e que deseja receber a esmola de um rico, vai ao seu encontro e diz: “Tenha piedade de mim”, ou seja: “Tenha compaixão de minha pobreza e me dê algo para viver”. Do mesmo modo, quem tem uma dívida e deseja que seu credor o perdoe, vai à sua procura e lhe diz: “Tenha piedade de mim”, ou seja: “Tenha compaixão de minha indigência e me perdoe a dívida que eu tenho para consigo”. Também o que cometeu uma falta, se quer que o ofendido o perdoe, vai encontrá-lo e lhe diz: “Tenha piedade de mim”, vale dizer: “Perdoe a ofensa que lhe fiz”. Mas o pecador diz a Deus: “Tenha piedade de mim” e não sabe nem o que diz, nem por que o diz, nem em que lhe será boa esta piedade que pede. É apenas por costume que ele diz “Senhor, tenha piedade”. Assim é que ele não sabe nada. A partir daí, como poderá Deus lhe conceder uma piedade que ele próprio desconhece, que ele desdenha, que ele vai logo por a perder para pecar novamente? 6. A piedade de Deus não é outra coisa que a graça do Espírito Santo, esta graça que nós, os pecadores, devemos pedir a Deus dizendo continuamente o Kyrie eleison, ou seja: “Meu Senhor, tenha piedade de mim pecador, nesta miséria em que me encontro, e receba-me de novo em sua graça. Dê-me um espírito de poder para que eu tenha a força de resistir às tentações do diabo e aos maus hábitos do pecado. Dê-me um espírito de sabedoria para que eu me torne sábio, para que eu perceba a mim mesmo e me corrija. Dême um espírito de temor, para que eu o reverencie e guarde seus mandamentos. Dê-me um espírito de amor, para que eu o ame e não mais me afaste de você. Dê-me um espírito de paz, para que eu mantenha minha alma tranquila, para que eu recolha todos os meus pensamentos e permaneça calmo e sereno. Dême um espírito de pureza, para que eu me guarde puro de toda mancha. Dê-me um espírito de doçura, para que eu seja afável com meus irmãos cristãos e me abstenha de toda cólera. Dê-me um espírito de humildade, para que eu não me veja nas alturas e não me torne orgulhoso”. 7. Aquele que conhece a necessidade que tem de todas essas coisas e que as pede a Deus em seu grande amor, dizendo Kyrie eleison, este receberá certamente aquilo que pede e obterá do Senhor sua piedade e sua divina graça. Mas aquele que nada sabe daquilo que dissemos, e que diz Kyrie eleison apenas por costume, não é possível que receba a piedade de Deus. Pois no começo ele recebeu de Deus muitas graças, mas não as reconheceu e não agradeceu a Deus por tê-las concedido. Ele recebeu a piedade de Deus quando foi criado, quando foi feito homem; ele recebeu a piedade de Deus quando foi recriado pelo santo batismo, quando se tornou cristão ortodoxo. Ele recebeu a piedade de Deus quando foi libertado de tantos
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Interpretação do Kyrie Eleison.
perigos da alma e do corpo que experimentou durante sua vida. Ele recebeu a piedade de Deus todas as vezes que lhe foi concedido comungar os santos sacramentos. Ele recebeu a piedade de Deus todas as vezes em que pecou contra Deus e o feriu com suas faltas, e no entanto não foi destruído nem castigado como merecia. Ele recebeu a piedade de Deus quando, de um modo ou de outro, foi beneficiado pela graça divina sem que a tenha reconhecido. Ele esqueceu tudo isso e não se ligou na sua salvação. Assim, como poderá este cristão receber a piedade de Deus, uma vez que ele não o sente, não reconhece esta graça que recebeu de Deus como dissemos, e que ele não sabe o que diz, dizendo Kyrie eleison sem objetivo nem finalidade, apenas pela força do hábito?
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Discurso sobre a fé e o ensinamento (Simeão, o novo teólogo).
SIMEÃO, O NOVO TEÓLOGO
DISCURSO SOBRE A FÉ E O ENSINAMENTO Situado no centro da demonstração e da exortação finais dos editores da Filocalia, este “Discurso sobre a fé e o ensinamento” de Simeão o Novo Teólogo é uma transcrição de sua Catequese XXII, parcial e parafraseada, embora fiel quanto à essência. Simeão coloca nos lábios de uma terceira pessoa, ao modo de são Paulo, a confissão de uma experiência pessoal da luz incriada, este êxtase que, com pudor e prudência, aproximam e selam a maior parte dos textos da antologia, em especial os últimos, e que Simeão apresenta aqui em preto no branco, na linha reta das teofanias bíblicas: “De todas as partes ele não via senão a luz, diz ele. Ele esqueceu do mundo inteiro. Ele era um com a luz divina, e lhe parecia que ele próprio havia se tornado luz”. Toda a mensagem filocálica se abre e se coloca nesta atestação extrema dos vetores e das visadas de uma fé que não está apenas projetada num devir absoluto, nem apenas mergulhada nos abismos da interioridade, mas vivida ao mesmo tempo na atualidade da história e a vinda próxima. Na fina ponta incandescente da mensagem, a ascese hesiquiasta (para Simeão, o primado da consciência, a necessidade do pai espiritual, a referência à tradição dos monges) não conduz senão a manter no fogo da fé e a levar ao estado de graça, à força de orações, independentemente de lugar, de tempo e de situações, o primeiro mandamento: amar a Deus, totalmente. O “Discurso sobre os três modos da fé”, que a Filocalia grega lhe atribui igualmente, seria na verdade obra de Nicéforo o Solitário, e deveria assim datar do final do século XIV. Existe aí, de qualquer modo, uma última colocação, onde encontramos apontados os princípios e os desfechos da longa experiência do estado de oração, tal como aparece destilada no florilégio. Importante texto, portanto, que mistura a apologia e a análise crítica, e que coloca a oração em seu verdadeiro lugar: um encaminhamento atento entre o estado de perdição e o estado de graça. Pois ninguém seria capaz de orar em verdade sem estar atento ao conteúdo e ao alcance da oração. Donde, por toda a tradição hesiquiasta, a estreita conexão, que de início relembra o Discurso, entre prece e atenção (favorecida em grego pela similitude das palavras proseuché e prosoché). A atenção precede e permite a oração, que se desenvolve segundo três modos complementares. O primeiro prepara o segundo, e este o terceiro, formando os três modos um conjunto indissociável. Se os dois primeiros se fecham sobre si mesmos e deixam de visar o terceiro, eles conduzem à perdição. O primeiro modo é a manifestação da graça. A compreensão das Escrituras, o desejo do amor de Deus, tudo aí é manifesto. Mas este não é senão um trampolim visível para o estado de graça. Se ele tomar a si próprio como o estado de graça, ele arrisca perder-se na ilusão. O segundo modo é a guarda dos sentidos. É o combate que o intelecto em oração conduz para se libertar das coisas do mundo. Mas o combate não pode ser um fim em si. Por si só ele não é capaz de realizar a vida espiritual. A suficiência do asceta aparece aqui como um impasse. O combate, conforme está dito, arrisca então tornar-se mera vaidade. O terceiro modo é a guarda do coração, que permite ao intelecto que ora “ver este espaço que existe no interior do coração, e ver a si mesmo inteiramente luminoso”. O monge cessa de considerar que ele está em primeira linha na busca da graça e do combate espiritual. Ele se confia a um pai espiritual como se fosse a Deus, e em tudo implora o socorro. Uma única obrigação: “Você deve guardar sua consciência
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Discurso sobre a fé e o ensinamento (Simeão, o novo teólogo).
pura, para Deus, para seu pai espiritual, para os outros homens, para as coisas do mundo”. O modo final permite assim aos dois primeiros saírem humildemente de si mesmos, pela absorção pura e simples de toda ostentação e de todo combate no espaço do coração: a própria liberdade do estado de graça.
1 DISCURSO SOBRE A FÉ E O ENSINAMENTO Para aqueles que dizem que não é possível a quem vive no mundo submetido às suas necessidades, alcançar a perfeição da virtude. Para começar, um relato muito útil.
Irmãos e Padres bem-amados, é coisa muito boa, e útil à alma, pregar comumente a todos a grande e infinita piedade de nosso Deus boníssimo e cheio de compaixão, e revelar a todos os nossos irmãos cristãos o oceano insondável da misericórdia e da bondade que Deus tem para conosco. Ora, eu, como meus irmãos podem ver e o sabem muito bem, nunca tive como ações minhas, nem jejuns numerosos e excessivos, nem vigílias, não dormi no chão duro, jamais mortifiquei meu corpo além da conta, mas conheci minha indignidade, refleti sobre meus pecados, condenei a mim mesmo, humilhei-me, e o Senhor misericordioso e boníssimo me salvou, como disse o divino Davi: “Eu me humilhei, e ele me salvou [15]”. Numa palavra, não fiz mais do que acreditar nas palavras de Deus, e o Senhor meu Deus me recebeu com esta fé. Pois quem adquire a humildade encontra diante de si muitos obstáculos. Mas a quem descobre a fé e crê nas palavras de Deus nada é capaz de se opor. Se, com efeito, desejamos com toda nossa alma encontrar a fé, depressa e sem pena a encontraremos, uma vez que a fé é uma graça do Deus boníssimo, que a coloca naturalmente à nossa disposição, apenas a queiramos possuir. É por isso que vemos que os bárbaros e os pagãos possuem uma fé natural, cada um crendo nas palavras do outro e tendo mútua confiança em seu meio. Mas, para provar a vocês o que eu digo, com fatos e não apenas com palavras, escutem este relato: Um homem chamado Jorge, na flor da idade – por volta de uns vinte anos – morava em Constantinopla, em nosso tempo. Ele era muito bonito, e seus movimentos eram tão estudados, que muitos levantavam suspeitas a seu respeito, principalmente aqueles que tinham por hábito não ver senão o exterior das pessoas e que, sem conhecer os segredos de cada um, condenam e julgam sem consideração aos demais. Este jovem soube de um monge que morava em um mosteiro de Constantinopla. Tendo revelado a ele todos os segredos de seu coração, ele acrescentou que desejava a salvação de sua alma e que tinha um grande desejo de abandonar o mundo e se tornar monge. O venerável ancião louvou o seu desejo, deu-lhe os conselhos necessários e confiou a ele o livro de são Marcos o Asceta[16], para que nele pudesse ler o que o santo dizia da lei espiritual. O jovem recebeu o livro com tanto amor e piedade como se viesse do próprio Deus, com a confiança e a esperança de extrair grandes benefícios dali. Voltando à sua casa, pôsse a ler o resto do dia com muita atenção. Depois releu, piedosamente, umas três ou quatro vezes. E, como esperava, sentiu-se grandemente confortado. Mas ele reteve principalmente três capítulos, que deixou impressos em seu coração, e tomou a decisão de coloca-los em prática e observá-los atentamente. O primeiro capítulo dizia o seguinte: “Se você busca a cura de sua alma, cuide para que sua consciência não tenha do que acusá-lo. Tudo o que ela lhe mandar fazer faça, e você obterá disto um grande benefício [17]”. O segundo dizia: “Quem procura adquirir os carismas do Espírito Santo antes de praticar os mandamentos de Deus é semelhante ao escravo que, no mesmo instante em que é adquirido por seu senhor, reclama sua liberdade[18]”. O terceiro dizia: “Quem reza apenas com a boca e ainda não adquiriu o conhecimento
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Discurso sobre a fé e o ensinamento (Simeão, o novo teólogo).
espiritual nem sabe orar com seu intelecto é semelhante ao cego que clamava: ‘Filho de Davi, tenha piedade de mim[19]’. Mas quem adquiriu o conhecimento espiritual, que ora com seu intelecto e que abriu os olhos de sua alma, é semelhante a este mesmo cego depois que o Senhor o curou de sua cegueira: ele recebeu a luz em seus olhos e viu o Senhor, de maneira que já não diz ‘Filho de Davi’, mas ‘Filho de Deus’, e ele o adora como convém[20]”. Estes três capítulos agradaram muito ao jovem. Ele ficou maravilhado, e recebeu uma certeza plena em sua alma, e acreditou sem sombra de dúvida que ele obteria um grande benefício em obedecer à sua consciência, como dizia são Marcos, que ele desfrutaria dos carismas do Espírito Santo e de sua energia, se ele observasse os mandamentos de Deus, e que, enfim, pela graça do Espírito Santo, ele se tornaria digno de abrir os olhos da alma e de ver o Senhor com olhos de seu intelecto. Ele esperava contemplar esta indizível beleza do Senhor e foi ferido de tanto amor quanto desejava. Entretanto, ele não fez nada além, como me afirmou mais tarde sob juramento, do que rezar e se prosternar toda noite, antes de ir para cama dormir, conforme o que lhe havia sido recomendado pelo ancião. Algum tempo depois, numa noite em que ele seguia a regra ditada pelo ancião e sempre atento à sua consciência, ela lhe ordenou que continuasse a rezar e a se prosternar, dizendo: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”, por tanto tempo quanto pudesse. De bom coração ele obedeceu e logo se pôs, sem a menor hesitação, a fazer o que lhe ordenava sua consciência, persuadido de que era o próprio Deus quem lhe pedia que agisse assim. A partir daí, ele nunca mais se deitou para dormir sem primeiro fazer o que lhe ordenara sua consciência. E, como ele não cessava de escutá-la e ela não cessava de lhe pedir sempre mais, em pouco tempo sua oração da noite se alongou grandemente. De fato, durante o dia ele dirigia a casa de um patrício, ocupando-se de muitos negócios, ia cotidianamente ao Palácio, e quase não lhe restava tempo para orar. Mas à noite, antes de se recolher, ele orava como dissemos. Sem coração se enchia de calor e compunção, e as lágrimas escorriam de seus olhos. Ele multiplicava as prosternações e, gemendo e chorando, rezava também à Mãe de Deus. Parecia-lhe que o Senhor estava em pessoa diante dele, e ele se prosternava a seus pés e lhe pedia que tivesse compaixão de si, como o cego de que fala o Evangelho, e que desse luz aos olhos de sua alma. Assim, a prece que ele fazia alongava-se cada dia mais. Enquanto rezava, ele se mantinha reto como uma coluna, sem mexer os pés ou qualquer membro de seu corpo e sem voltar os olhos para olhar aqui ou ali, e permanecia imóvel, com grande temor e tremor. Assim, numa noite em que ele orava e dizia em seu intelecto: “Deus, tenha compaixão de mim, pecador”, um esplendor divino brilhou subitamente sobre ele e encheu de luz o quarto. O jovem, extasiado, perdeu a consciência de si mesmo e até esqueceu que estava em uma casa. Pois de todos os lados ele não via senão luz e já não sabia se tinha os pés no chão ou se planava no ar, e em seu intelecto não havia a menor preocupação com seu corpo. Ele esqueceu o mundo inteiro. Ele era uma coisa só com a luz divina, e parecia-lhe ter ele próprio se tornado luz. Ele encheu-se de lágrimas e de uma alegria indizíveis. Então seu intelecto se elevou aos céus e lá ele viu uma luz ainda mais radiante e, junto a esta luz, apareceu-lhe o santo ancião que lhe havia dado o livro do abade Marcos e a regra. Quando eu ouvi o relato do jovem, eu pensei que a intercessão do ancião foi de um grande auxílio para ele, e que deste modo a providência de Deus lhe tinha mostrado em que altura de virtude se encontrava este santo, permitindo a ele vê-lo junto a tamanha luz. Passada a contemplação o jovem voltou a si, cheio de alegria e maravilhado. Ele chorou do fundo de seu coração e suas lágrimas foram acompanhadas de uma doçura extrema. Finalmente ele caiu sobre seu leito, e no mesmo instante o galo cantou. Pouco depois, as igrejas soaram as matinais, e ele se levantou para salmodiar conforme seu costume. Durante toda a noite ele não havia dormido, nem sequer cochilado um pouco.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Discurso sobre a fé e o ensinamento (Simeão, o novo teólogo).
Eis o que aconteceu ao jovem. Como ele próprio me afirmou, ele não fez nada além daquilo que vocês ouviram. Simplesmente – e foi por isto que lhe foi concedida esta contemplação – ele teve uma fé e uma esperança resolutas. E que ninguém diga que ele fez isto para tentar uma experiência, pois conforme me relatou isto jamais lhe passou pela cabeça. Ele não teve mais do que a resolução de sua fé. Ele apenas rejeitou de seu pensamento toda ideia relativa à carne e ao mundo, e tomou tanto cuidado em guardar sua consciência e de seguir bem aquilo que ela lhe dizia, que estava como que insensível a todas as coisas desta vida. Comer e beber lhe eram indiferentes, e muitas vezes ele permanecia em jejum. Entenderam, irmãos bem-amados, o que a fé pode fazer, e o poder que ela tem quando é confirmada pelas obras? Compreenderam que nossa juventude não nos prejudica, e que nossa velhice não nos adianta se nos faltar o temor a Deus? Aprenderam agora que nem o mundo, nem a vida na cidade nos impedem de praticar os mandamentos de Deus se estivermos atentos, e que a anacorese e o deserto de nada servem se somos preguiçosos e negligentes? Todos nós ouvimos falar de Davi que, em meio às suas ocupações reais, conservava seu intelecto consagrado a Deus; nós nos admiramos e dizemos que só houve um Davi, que nunca houve outro? E eis que naquele jovem existiu mais do que um Davi. Pois Davi havia recebido o testemunho do próprio Deus, foi ungido profeta e rei e foi cumulado da graça do Espírito Santo. Se, depois de ter faltado com Deus, de ter perdido a graça do Espírito Santo e a dignidade de profeta, e de ter se distanciado da presença de Deus, ele retomou sua consciência, lembrou-se dos bens que teve e que perdeu, e outra vez buscou recuperá-los, o que há nisto de admirável? Mas que um jovem de vinte anos totalmente ligado às coisas passageiras deste mundo, sem que seu intelecto jamais tenha pensado em nada mais elevado do que estas coisas, que com muito custo entendeu o pouco que lhe disse o ancião e leu os três capítulos do abade Marcos, tenha podido acreditar imediatamente e sem hesitação, pondo-se ao trabalho com a esperança de que aquilo permitiria ao seu intelecto elevar-se até o céu, que ele receberia para si a compaixão e a intercessão da Mãe de Deus, que assim ele iria se reconciliar com Deus, a ponto deste lhe enviar do céu a iluminação e a graça do Espírito Santo, permitindo-lhe atingir o céu e desfrutar desta luz que muitos desejaram e poucos descobriram, isto sim é admirável e digno de louvor. Foi assim que este jovem, que, durante muitos anos, não havia jejuado, nem velado, nem travado os combates da ascese, nem dormido sobre o chão duro, nem levado o cilício, que não se tornou monge, que não havia deixado o mundo, conseguiu se tornar, velando um pouco e orando um pouco, anjo terrestre e homem celeste, homem na realidade sensível e incorpóreo na realidade inteligível, próximo e inatingível, visto por todos mas a sós com o Deus único e onisciente. Foi-lhe dado ver esta dulcíssima luz do sol inteligível da justiça. E merecidamente. Pois o amor a o desejo que ele tinha por Deus o fizeram deixar o mundo em espírito, permitiram a ele esquecer a carne e todas as coisas vãs desta vida, e o ligaram inteiramente a Deus. Ele se tornou inteiramente espiritual, inteiramente luz. Ele conheceu esta contemplação e esta alegria, mesmo vivendo na cidade, mesmo passando a maior parte do tempo no palácio real, com seus encargos senhoriais e múltiplos servidores, sempre ocupado com suas tarefas. Mas já dissemos o bastante, tanto para louvar a este jovem quanto para engajá-los em seguir seu amor e imitá-lo, para que se tornem dignos de receber de Deus semelhante graça. Ou vocês preferem que eu lhes diga coisas ainda maiores? Mas o que existe de maior do que o temor a Deus, como dizia Gregório o Teólogo[21], uma vez que “o começo da sabedoria é o temor a Deus[22]”? Pois aonde está o temor a Deus, ali está a guarda dos mandamentos; onde está a guarda dos mandamentos está a purificação da carne, que é uma nuvem que cobre a alma e a impede de ver em sua pureza o esplendor da luz divina; aonde está a purificação da carne está o esplendor divino; e onde está o esplendor divino, aí estará o cumprimento do desejo de Deus. Ora, aonde estiver o esplendor divino e a iluminação do Espírito Santo estará o fim infinito de toda virtude. Quem alcançou este fim chegou até o limite do sensível e penetrou no conhecimento do espiritual.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Discurso sobre a fé e o ensinamento (Simeão, o novo teólogo).
Tais são, irmãos, as maravilhas de Deus. É assim que Deus manifesta seus santos que se escondem, ou bem para que outros os imitem e mudem sua condita, ou bem para que não tenham desculpa, caso não os imitem. Pois aqueles que vivem no meio da confusão, se se conduzirem como se deve, serão salvos e receberão de Deus grandes bens, apenas por sua fé. Assim, tenham piedade de suas almas, e confiem a si mesmos ao Senhor e às suas palavras de todo o coração. Tenham aversão e desprezem as coisas do mundo, mentirosas e passageiras. Caminhem em direção a Deus e agarrem-se a ele[23]. Pois, sem Deus, nada existe no mundo. As coisas são nada, se Deus falta. É por isso que eu choro, lamento-me e me aflijo quando penso que temos um mestre generoso que nos a ponto de nos conceder as graças que vimos se mostrarmos que temos fé em suas palavras e em suas promessas, enquanto que nós, como animais irracionais, preferimos a terra e as coisas corruptíveis que, em sua misericórdia, ele nos dá em abundância para as necessidades do corpo, a fim de que este utilize moderadamente o necessário à sua vida e que a alma não seja entravada, mas que faça sua própria busca e se conduza como prescrito, vivendo do alimento inteligível da graça do Espírito Santo. É para isto que o homem foi criado: para encontrar nas coisas do mundo uma razão para glorificar a Deus que lhe deu tudo, para conhecer Aquele que lhe manifesta suas benfeitorias e sua benevolência, para deseja-lo, render-lhe graças em palavras e atos, para ser considerado digno de receber dele outros bens ainda maiores na eternidade. Mas nós nem suspeitamos os bens futuros, ligados que estamos apenas aos bens presentes, sem nenhuma atenção ou reconhecimento por Aquele que no-los deu. Somos assim semelhantes aos demônios, ou mesmo piores, para dizer a verdade, e é por isso que merecemos ser castigados por eles. Pois fomos cumulados das maiores benfeitorias desde que nos tornamos cristãos, que recebemos tantos mistérios e tantos carismas, que cremos em um só Deus que se fez homem por nós, que sofreu tantos tormentos e morreu finalmente na cruz para nos libertar dos erros do diabo e do pecado. Ora, em tudo isso cremos por palavras, mas negamos com nossas obras. Não é o nome de Cristo anunciado todos os dias em toda parte, nas cidades, nas vilas, nos mosteiros e nos desertos? Entretanto, se quiserem, examinem de que modo os cristãos aprendem a guardar seus mandamentos: com dificuldade encontrarão um que seja verdadeiramente cristão em palavras e obras. Não disse o Senhor no Evangelho: “Quem crê em mim fará também as obras que eu faço, e ainda maiores[24]”? Mas quem, hoje em dia, ousará dizer: “Eu faço as obras de Cristo, e nele creio com uma fé reta”? Vejam, irmãos, que arriscamos ser considerados sem fé no dia terrível do Juízo, e sermos castigados mais duramente do que aqueles que não conhecem a Cristo e não creem nele. Pois então será preciso, ou que sejamos condenados como incrédulos, ou que Cristo seja convencido com nossas mentiras, o que é impossível. Escrevi isso, irmãos, não para interditar aos cristãos a anacorese e a hesíquia, dando preferência à vida no mundo – longe disto! – mas para fazer saber a todos os que lerem este relato que aquele que quiser e desejar fazer o bem com toda sua alma e todo seu coração, receberá do Senhor poder fazê-lo em qualquer lugar e será cumulado de carismas espirituais e de contemplações divinas, como o jovem que conheci, que foi meu amigo e me contou o que escrevi. É por isso que eu lhes peço, meus irmãos em Cristo, que tenhamos nós também em nossos corações o desejo de fazer o bem e que nos esforcemos por cumprir os mandamentos de Deus, na resolução da fé e da esperança. Nosso Senhor é fiel e não mente[25]. Nossos rostos não serão confundidos[26]. Estejamos certos de que podemos fazer o bem aonde quer que estejamos, nas cidades, vilas, mosteiros ou desertos. Pois, em sua bondade e segundo sua promessa, Deus abre as portas de seu Reino a qualquer um que não cesse de bater[27], e concede graça do Espírito Santo a quem pedir[28]. Não é possível que quem procura com toda sua alma não encontre[29] a riqueza dos carismas de Deus. A ele a glória, por todos os séculos dos séculos. Amém.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Sobre os três modos da prece (Simeão, o novo teólogo).
2 SOBRE OS TRÊS MODOS DA PRECE
Existem três modos de atenção e de oração, por meio dos quais ou a alma se eleva e progride, ou tomba e se perde. Se ela utilizar estes três modos no tempo oportuno e como se deve, ele progride; se usar desconsiderada e inoportunamente, ela cai. A atenção deve estar inseparavelmente ligada à oração, como o corpo está inseparavelmente ligado à alma. A atenção deve ir adiante e aguardar os inimigos como uma sentinela. É ela que deve em primeiro lugar conhecer o pecado e se opor aos maus pensamentos que penetram na alma. Então chega a oração, que destrói e faz perecer no mesmo instante todos esses maus pensamentos, contra os quais a atenção lutou previamente. Pois a oração não pode matá-los sozinha. Ora, é deste combate da atenção e da prece que dependem a vida e a morte da alma. Pois se por meio da atenção mantivermos pura a prece, progrediremos. Mas se negligenciarmos de guardar a pureza da prece, se não velarmos por ela, se a deixarmos manchada pelos maus pensamentos, teremos sido inúteis e não progrediremos nada. Existem, portanto, três modos de atenção e de oração. Diremos agora quais são as propriedades de cada qual. Assim, aquele que ama sua salvação poderá escolher o melhor e não o pior. Do primeiro modo de atenção e oração São as seguintes as propriedades do primeiro modo. Quando alguém se mantém em oração, eleva ao céu seus braços, suas mãos e seu intelecto. Representa para si mesmo pensamentos divinos, os bens celestes, as ordens dos anjos e as moradas dos santos. Reúne e colhe em seu intelecto tudo o que compreendeu das divinas Escrituras. Assim, ele conduz sua alma a amar e desejar a Deus. Às vezes e exulta, às vezes chora. Mas então seu coração se orgulha, sem que ele o perceba. Parece-lhe que o que faz vem da graça divina, para consolá-lo, e ele pede a Deus que o torne sempre digno de agir como o faz agora. Esta é a marca do erro. Pois o bem não é bem quando não é feito no bom caminho e da maneira correta. Ainda que vivesse numa extrema hesíquia, seria impossível a este homem não perder seu bom senso e enlouquecer. E mesmo que não chegue a tanto, ele não alcançará o conhecimento, nem será capaz de manter em si as virtudes da impassibilidade. É assim que muitos se perderam, por verem uma luz e um brilho com os olhos de seu corpo, por sentirem um perfume com seu olfato, por terem ouvido vozes com seus ouvidos, ou por terem experimentado outras coisas desta ordem. Alguns foram possuídos por demônios, outros vagaram de lugar em lugar, fora de si. Outros acolheram em si as contrafações do demônio: ele lhes apareceu como um anjo de luz e assim eles se desviaram do caminho tornando-se incorrigíveis, jamais ouvindo os conselhos de seus irmãos. Outros foram levados pelo diabo a se matar: atiraram-se de precipícios, enforcaram-se. Quem poderia descrever todas as ilusões por meios das quais o diabo os faz se perderem? É quase impossível. Mas depois do que dissemos qualquer homem sensato pode compreender os danos a que se expõe adotando este primeiro modo de atenção e prece. E, mesmo que aconteça a alguém que utiliza este modo não sofrer nenhum mal, por se achar em companhia de outros irmãos (pois são principalmente os anacoretas que conhecem estes males), ainda assim, por toda a sua vida, ele não progredirá. Do segundo modo É o seguinte o segundo modo de atenção e oração. Quando alguém recolhe seu intelecto em si mesmo, separando-o do sensível, quando guarda seus sentidos e reúne todos os seus pensamentos para que eles não se dirijam às coisas vãs deste mundo, quando num momento examina sua consciência e em outro se mantém atento às palavras da oração, quando, em determinados momentos ele corre atrás dos pensamentos que o diabo capturou e que o conduzem ao mal e à vaidade, e em outros, depois de ser
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Sobre os três modos da prece (Simeão, o novo teólogo).
dominado e vencido pela paixão, volta a si, é impossível que este homem, que tem em si o combate, esteja em paz, ou que encontre tempo para trabalhar pelas virtudes e receba a coroa da justiça[30]. Pois ele é semelhante a alguém que combate à noite, na escuridão. Ele ouve as vozes e recebe os golpes, mas não consegue ver claramente quem são, nem de onde vêm os golpes, como e porque eles o atingem, pois está devastado pelas trevas de sua inteligência e os tormentos de seus pensamentos. É impossível a ele livrar-se de seus inimigos, os demônios que o ferem. O infeliz pena em vão e perde seu salário, pois está dominado pela vaidade. Ele não compreende. Pensa estar atento. Muitas vezes, em seu orgulho, ele despreza e acusa os outros. Ele imagina que pode conduzi-los e se tornar seu pastor. Ele é semelhante ao cego que pretende conduzir os outros cegos[31]. É preciso a quem quiser ser salvo, que saiba o prejuízo que este segundo modo pode causar à alma, e que preste muita atenção. Mesmo assim, este segundo modo é melhor do que o primeiro, assim como uma noite enluarada é melhor do que uma noite escura. Do terceiro modo O terceiro modo é verdadeiramente algo paradoxal e difícil de explicar. Não apenas os que não o conhecem têm dificuldade em entendê-lo, como lhes parece coisa impossível. Eles não creem que tal coisa possa existir, pois, hoje em dia, este modo não é utilizado por muitos, mas por pouquíssimos. Parece-me que tamanho bem nos deixou, tanto quanto a obediência. Pois é a obediência ao pai espiritual que permite a cada um não se preocupar com nada, uma vez que seus cuidados são remetidos a seu pai, que ele se distancia das tendências deste mundo e que ele se torna um operário zeloso e diligente deste modo. E é preciso que ele encontre um mestre e um pai espiritual verdadeiro, livre de todo erro. Pois a quem se consagrou a Deus e a seu pai espiritual com uma verdadeira obediência, a quem não vive sua própria vida nem mais faz sua própria vontade, estando morto para as tendências do mundo e para seu próprio corpo, que coisa passageira poderá vencer e dominar? Que cuidados ou inquietações poderá ter este homem? Assim, é por meio deste modo e pela obediência que se dissipam e desaparecem todos os artifícios dos demônios e todas as armadilhas que eles tramam para arrastar o intelecto em toda espécie de pensamentos. É assim que o intelecto deste homem está livre de tudo. É com total liberdade que ele examina os pensamentos que lhe são sugeridos pelo demônio, com real aptidão que ele os expulsa, e com um coração puro que ele oferece suas orações a Deus. Este é o começo da verdadeira via. Os que não se consagram a este início penam em vão, sem que o saibam. Ora, o começo deste modo não consiste em olhar para o alto, erguer as mãos, por seu intelecto nos céus e implorar por socorro. Estas, como dissemos, são as marcas do primeiro modo, características da ilusão. Tampouco consiste em vigiar os sentidos com o intelecto, de só estar atento a isto sem perceber na alma a guerra que lhe travam os inimigos e sem prestar atenção a ela. Estas são as marcas do segundo modo. Quem as traz é ferido pelos demônios mas não consegue feri-los. É morto e não se dá conta. É reduzido à escravidão, subjugado e não consegue se vingar daqueles que fazem dele um escravo; os inimigos não cessam de combatê-lo aberta ou secretamente, e o tornam vaidoso e orgulhoso. Mas você, meu bem-amado, se quiser sua salvação, deverá a partir de agora se consagrar ao começo deste terceiro modo. Depois de prestar total obediência ao seu pai espiritual, como dissemos, você deverá fazer tudo com uma consciência pura, como se estivesse diante da face de Deus. Pois sem obediência a consciência jamais é pura. E você deve mantê-la pura por três razões: primeiro, por Deus; segundo, por seu pai espiritual; terceiro, para os outros homens e as coisas do mundo. Você deve manter a sua consciência pura. Por Deus, significa não fazer o que não lhe agradar. Por seu pai espiritual: fazer tudo o que ele lhe ordenar, nem mais nem menos, mas caminhar segundo sua intenção e sua vontade, Para os outros homens: não fazer a eles o que você não gosta nem gostaria que lhe
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Sobre os três modos da prece (Simeão, o novo teólogo).
fizessem[32]. Para as coisas do mundo: guardar-se dos abusos, ou, dito de outro modo, usar as coisas como se deve, tanto a comida como a bebida e as vestimentas. Em uma palavra, você deve fazer tudo como se estivesse na presença de Deus, a fim de que sua consciência não possa reprová-lo em nada, faça você o que fizer, e para que ela não possa açoitá-lo pelo que você fez de errado. Siga assim este caminho verídico e seguro do terceiro modo da atenção e da prece, como descrito aqui. Que seu intelecto guarde o coração no momento da prece. Que ele não cesse de rodear o coração. E que do fundo do coração ele encaminhe a Deus suas preces. Quando ele provar que o Senhor é bom[33] e assim for cumulado de doçura, ele já não se afastará do lugar do coração, e dirá as mesmas palavras do apóstolo Pedro: “É bom estar aqui[34]”. Ele não mais deixará de velar sobre o coração e girar ao seu redor, afastando e expulsando todos os pensamentos que o diabo, o inimigo, semeia. Àqueles que não fazem ideia do que é isto e que não conhecem este estado, esta obra salutar parece penosa e incômoda. Mas os que provaram de sua doçura e desfrutaram do prazer que ela proporciona ao fundo do coração dizem, com o divino Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo?[35]”. Pois nossos pais, tendo ouvido o Senhor dizer no santo Evangelho que é do coração que saem os maus pensamentos, os assassinatos, as prostituições, os adultérios, os roubos, os falsos testemunhos, as blasfêmias, e que é aí que se encontra aquilo que mancha o homem[36], ouviram também o Evangelho ordenar que purificássemos o interior do cálice, para que também o exterior se torne puro [37], e assim deixaram quaisquer outras obras espirituais e se dedicaram totalmente a este combate, ou seja, à guarda do coração, persuadidos de que, por meio desta obra, eles poderiam obter todas as demais virtudes, uma vez que não há meio de uma virtude perdurar senão assim. Alguns de nossos pais denominaram a esta obra hesíquia do coração, outros a chamaram de atenção, outros de sobriedade e vigilância, ou refutação, outros de exame dos pensamentos e guarda do intelecto. Foi sobre ela que todos trabalharam e foi por meio dela que foram tornados dignos dos carismas divinos. É por isso que o Eclesiastes diz: “Alegre-se, jovem, com sua juventude, e caminhe sobre as vias de seu coração, íntegro[38] e puro, e afaste de seu coração os pensamentos”. O autor dos Provérbios diz a mesma coisa, se a sugestão do diabo assaltá-lo: “Não o deixe entrar em seu lugar[39]”. Como lugar, ele entende o coração. E nosso Senhor diz no santo Evangelho: “Não se deixem levar[40]”, ou seja, não dispersem o intelecto aqui e acolá. Ele diz também: “Bem-aventurados os pobres de espírito[41]”, ou seja: bem-aventurados aqueles que não possuem no coração nenhuma ideia deste mundo, e que são pobres, desprovidos que qualquer pensamento mundano. Todos os nossos Padres disseram coisas semelhantes. Quem quiser pode ler o que escreveram Marcos o Asceta, João Clímaco, Hesíquio e Filoteu o Sinaíta, o abade Isaías, o grande Barsanulfo e tantos outros. Numa palavra, quem não estiver atento em guardar seu intelecto não poderá tornar puro seu coração, para ser considerado digno de ver a Deus[42]. Quem não está atento não pode se tornar pobre de espírito[43], nem afligir-se e chorar[44], nem se tornar manso[45] e pacífico, nem ter fome e sede de justiça[46]. Resumindo, não é possível obter as outras virtudes senão por meio desta atenção. Assim, é a ela que você deve se aplicar antes de mais nada, a fim de compreender pela experiência aquilo de que lhe falei. E se você quiser saber como fazê-lo, eu lhe direi agora, na medida do possível. Esteja atento. Antes de tudo, é preciso guardar três coisas. Em primeiro lugar, não se preocupar com nada, tanto com o que é racional como o que é irracional e vão, ou seja, morrer para tudo. Em segundo lugar, ter uma consciência pura, que não tenha nada que reprova-lo. Em terceiro lugar, não ter nenhum pendor: que seu pensamento não se volte para nada do que é deste mundo. Então se sente num lugar retirado, permaneça calmo, só, feche a porta, recolha seu intelecto para longe de tudo o que for passageiro e vão. Descanse o queixo sobre seu peito, mantenha-se atento a si mesmo com seu intelecto e seus olhos sensíveis. Retenha por um momento a respiração, dando um tempo para que seu intelecto encontre o lugar do coração e nele permaneça por inteiro. De início, tudo lhe parecerá tenebroso e duro. Mas depois que você trabalhar sem descanso, noite e dia, nesta obra de atenção, oh! milagre, você descobrirá em si uma alegria contínua. Pois
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Sobre os três modos da prece (Simeão, o novo teólogo).
o intelecto combatente terá encontrado o lugar do coração, e verá lá dentro aquilo que jamais havia visto antes e ignorava por completo. Ele verá este espaço que existe no interior do coração e verá a si mesmo inteiramente luminoso, pleno de sabedoria e de discernimento. Daí em diante, de qualquer lado que surja um pensamento, e antes mesmo que este penetre, seja concebido e se forme, o intelecto o expulsará e o fará desaparecer em nome de Jesus, ou seja, com a invocação: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. É então que ele começará a ter aversão pelos demônios, travando contra eles um combate sem trégua, opondo a eles seu ardor natural, expulsando-os, surrando-os, forçando-os a desaparecer. O que virá a seguir, com a ajuda de Deus, é algo que você aprenderá sozinho, pela experiência, graças à atenção do intelecto, e guardando a Jesus em seu coração, ou seja, a prece “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. De fato, um Padre disse: “Permaneça em sua cela, e ela lhe ensinará tudo[47]”. Questão: Porque o primeiro e o segundo modo de que falamos não podem conduzir com sucesso o trabalho pelo bem? Resposta: Porque não os utilizamos como se deve. São João Clímaco compara estes modos a uma escada de quatro degraus, e diz: “Há os que se humilham e reduzem as paixões; outros que salmodiam, isto é, oram com a boca; outros, que se dedicam à prece intelectual; e outros, que chegam à contemplação [48]”. Assim, quem quer subir os quatro degraus não começam pelo alto para se dirigir para baixo, mas vão de baixo para cima. Eles se erguem do primeiro degrau, depois do segundo, do terceiro e do quarto. É desta maneira que eles podem se elevar da terra e alcançar o céu. Primeiramente, no começo, devemos nos esforçar para deter e reduzir as paixões; depois, devemos nos dedicar à salmodia, orando com a boca, pois, quando as paixões estão reduzidas, a prece dá naturalmente à língua prazer e doçura, e agrada a Deus; em terceiro lugar, devemos orar com a inteligência e, em quarto, nos elevarmos à contemplação. O primeiro grau é o dos noviços, o segundo se abre aos que progridem, o terceiro aos que chegam ao cume do progresso, e o quarto, o dos perfeitos. Portanto, o começo não é outra coisa do que a redução das paixões, que não se retiram da alma a não ser pela guarda e atenção do coração. Pois é do coração, como diz nosso Mestre, que vêm os maus pensamentos que mancham o homem[49], e é aí que são necessárias a guarda e a atenção. Uma vez que as paixões foram detidas e reduzidas a nada pela guerra que contra elas travou o coração e pela aversão que este lhes dedica, o intelecto pode desejar e buscar a reconciliação com Deus. Ele incrementa a oração, e atinge seu objetivo. Por meio da oração, ele castiga e expulsa os pensamentos que giram ao redor do coração para nele penetrar. Esta é a guerra. Os demônios se excitam, se opõem, e, por meio das paixões, suscitam no interior do coração a confusão e a vertigem. Mas diante do nome de Jesus Cristo eles desaparecem e derretem como a cera de uma vela. Expulsos do coração, eles já não têm paz e continuam a perturbar o intelecto, mas agora do exterior, por meio dos sentidos. É por isso que o intelecto percebe rapidamente as primícias da serenidade e da hesíquia, pois os demônios já não têm o poder de perturbá-lo em profundidade, mas apenas desde o exterior, na superfície. Entretanto, é impossível livrar-se da guerra e não mais ser combatido pelos maus espíritos. Isto só cabe aos perfeitos, àqueles que se retiraram completamente de tudo e que se dedicam continuamente à atenção do coração. Portanto, aquele que se utilizar desses três modos em ordem, cada qual a seu tempo, poderá ao longo do tempo, depois de ter purificado seu coração das paixões, dedicar-se inteiramente à salmodia, combater os pensamentos, erguer aos céus seus olhos sensíveis (se sentir necessidade), contemplá-lo com o olhar da alma e se consagrar à prece pura, em verdade, como convém. Porém, não devemos nos voltar em demasia para o céu, para evitar os maus espíritos que habitam o espaço e são chamados de espíritos aéreos, pois eles suscitam muitas ilusões, e é preciso estar atento. Deus só nos pede uma coisa: que nosso coração seja purificado pela guarda e a atenção. Se a raiz é santa, como diz o Apóstolo, claro que os galhos e os frutos serão sãos[50]. Fora deste caminho, quem eleva seus olhos e seu
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Sobre os três modos da prece (Simeão, o novo teólogo).
intelecto para o céu e pretende se representar os inteligíveis não vê mais do que imaginações, coisas enganosas e não verdadeiras, pois seu coração é impuro. Como dissemos, o primeiro e o segundo modos não levam o homem a progredir. Quando queremos construir uma casa, não começamos pelo teto para depois fazer as fundações, pois isto não é possível. Primeiro colocamos as fundações, depois erguemos a casa e finalmente fazemos o telhado. É assim que devemos agir quanto ao espiritual. Primeiro, colocar as fundações, ou seja, guardar o coração e dele retirar pouco a pouco as paixões. Depois, construir a casa espiritual: expulsar a perturbação dos maus espíritos que nos combatem pelos sentidos, e fugir o mais depressa possível da guerra que contra nós eles travam. Então fazer o telhado: retirarmo-nos de todas as coisas, pacificarmo-nos como se deve, darmo-nos totalmente a Deus. É assim que completaremos a m orada espiritual, em Jesus Cristo nosso Senhor. A ele a glória, pelos séculos dos séculos. Amém.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Como cada um deve orar (Gregório, o sinaíta)
GREGÓRIO O SINAÍTA
O quinto dos textos parafraseados é constituído de diversos capítulos de Gregório o Sinaíta já inseridos na antologia propriamente dita. Prova, se preciso fosse, de que estes últimos textos estão destacados da transmissão inerente à instituição monástica e são endereçados a outros leitores, qualquer que seja a vida que levam no mundo, e feitos para engajá-los, como a monges, sobre os caminhos da prece perpétua. Daí procede a retomada dos conselhos prodigados aos monges por Gregório. Primeiro sobre a maneira hesiquiasta de orar apenas usando o intelecto, no silêncio do “lugar do coração”. Depois sobre o modo de conservar o intelecto no coração, com o auxílio da graça do Espírito Santo, que impede a dispersão, suscita a prece pura e permite a noera aisthesis, o “sentido intelectual”, a aproximação filocálica do perfeito. Enfim, sobre o modo de expulsar do coração todo pensamento que não participa da ação de graças, deixando todo o espaço para o intelecto em oração. Segue-se uma série de capítulos sobre as modalidades práticas (em especial a alternância entre a prece pura e a salmodia) e as condições fundamentais (a paciência e a humildade) capazes de abrir a todos o próprio santuário da vida monástica: a hesíquia do coração. Mas a hesíquia faz causa comum coma prece perpétua. Ninguém conseguiria atingi-la no alvo, nem nela se manter sem o estado de graça. Um capítulo preconiza assim a salmodia como caminho de aproximação, ou como linha auxiliar, e sublinha a necessidade da alternância, que permite à tensão relaxar e se renovar. Da mesma forma, em matéria de alimentação, tanto quanto a dura ascese dos monges, é recomendado a todos o equilíbrio entre o excesso e a falta: “Jamais ultrapassar a medida”, diz Gregório. Enfim, no último capítulo citado, um rigoroso aviso, também endereçado a todos, assim como aos monges. A prece do coração não pode ser “utilizada” ostensivamente. Ela é antes de mais nada o reconhecimento e amor a Cristo, e humilde socorro. Como nos mosteiros, a vida espiritual nas condições do século implica um discernimento preciso e o banimento de toda presunção: uma busca ativa das âncoras da experiência.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Como cada um deve orar (Gregório, o sinaíta)
COMO CADA UM DEVE ORAR Sente-se, seja sobre um banco para fazer esforço, seja sobre um leito pata relaxar e aliviar seu corpo, e permaneça pacientemente nesta posição, tanto quanto puder, a fim de cumprir o mandamento do divino Paulo, que ordena permanecer por longo tempo em oração de “perseverar na oração[51]”, de não se apressar em se livrar do esforço e se levantar, mas de manter a paciência, permanecer com a cabeça inclinada, recolher o intelecto no coração e pedir a ajuda do Senhor, dizendo: “Senhor Jesus Cristo, tenha piedade de mim”. Mesmo que com o tempo suas espáduas e sua cabeça lhe doam, persevere nestas penas e, com todo o seu amor e todo o seu desejo, busque o Senhor em seu coração. Pois o Reino dos céus é daqueles que violentam a si próprios. São os violentos que dele se apoderam[52], como disse o Senhor, que com isto quis mostrar que tipo de violência, quanto ardor, que tipo de esforços exige a oração. A perseverança em todas as coisas: eis o que suscita as penas da alma e do corpo. Como dizer a oração Os Padres diferem em suas recomendações sobre o modo como devemos orar. Um manda dizer a prece inteira: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”. Outro recomenda dizer apenas a metade: “Jesus, Filho de Deus, tenha piedade de mim”, o que resulta mais fácil para a fraqueza do intelecto. Pois o intelecto sozinho não é capaz de dizer pura e ´perfeitamente “Senhor Jesus”, senão pelo Espírito Santo[53]. Mas não se deve mudar constantemente as palavras, dizendo-as negligentemente ora de uma maneira, ora de outra. Podemos mudar de tempos em tempos, para não relaxar devido à repetição. Da mesma forma, existem os que ensinam a dizer a prece com a boca, enquanto outros ordenam dizê-la com o intelecto. Eu digo que devemos fazê-la com os dois. Com efeito, às vezes o intelecto relaxa e fica incapaz de dizer a oração sozinho, ora é a boca que fica preguiçosa. É por isso que devemos orar com a boca e o intelecto, tanto com uma quanto com outro. Porém, quando dizemos a oração c om a boca, devemos pronunciá-la calmamente, humildemente, sem perturbação, para que a voz não venha a agitar e entravar a atenção do intelecto, até que este se habitue com a duração e o progresso nesta obra da prece, recebendo da graça do Espírito Santo o poder de orar só. A partir de então já não será necessário falar com a boca. Nem isto será mais possível. Pois, com gratidão e alegria, diremos a prece apenas com o intelecto. Como manter o intelecto desperto Saiba que ninguém consegue por si só dominar o intelecto, se antes não tiver sido dirigido pela graça do Espírito. Pois o intelecto não se deixa dominar, não por sua natureza, por que está sempre em movimento e é incapaz de se deter naturalmente, mas por que ele se dissipa na negligência, dispersando-se daqui e dali desde a origem. Pois, ao transgredir os mandamentos de Deus, nós nos afastamos dele, nos separamos dele e perdemos o sentido do intelecto e já não sabemos quando estamos com Deus e quando formos cortados de sua presença. A partir de então, nosso intelecto, separado de Deus, é atraído de todos os lados, servilmente. É por isso que ele não se deixa dominar e não consegue permanecer em repouso a não ser remetendo-se novamente a Deus, submetendo-se inteiramente aos seus mandamentos, pedindo sempre a ele e a ele confiando todas as nossas faltas. Ora, estamos em falta todo o tempo. Mas ele nos perdoa instantaneamente, se lhe pedimos com humildade e coração contrito, e se invocamos constantemente seu santo nome, Quando o intelecto se aproxima de Deus desta maneira e assim o reencontra com enorme alegria, então ele se torna capaz de ser dirigido por Deus e não mais se dispersar em todas as direções. Também o sopro da respiração, quando retido na boca, ajuda naturalmente a dominar o intelecto. Entretanto, o intelecto não permanece assim por muito tempo, e então volta a se dispersar. Mas quando a prece age no coração, é ela que passa a resguardar o intelecto, que o alegra, e que o impede de se dispersar. Porém, pode acontecer que, no momento em que o intelecto está imerso no coração e orando, o pensamento se perca e se ocupe de outras coisas. Somente os que são perfeitos no Senhor são capazes de
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Como cada um deve orar (Gregório, o sinaíta)
dominar o pensamento, somente os que, em Cristo Jesus, alcançaram esta graça, quando seu intelecto não mais se dispersa e não mais se separa de Deus.
Como expulsar os pensamentos Jamais um noviço expulsará um pensamento que Deus já não tenha expulsado. Cabe aos fortes combater e expulsar os pensamentos. E mesmo eles não os expulsam por si sós. É com Deus que eles os combatem e os expulsam. Quanto a você, quando estes chegarem, apele para o Senhor, repita a prece sem descansar, e eles fugirão. Pois eles são suportam o calor que vem da prece para o coração, e fogem como se queimados pelo fogo. “Fustigue os que o combatem, diz João Clímaco, com o nome de Jesus[54]”. Pois nosso Deus é um fogo que consome[55] a perversidade. O Senhor apressa-se em auxiliar, e logo faz justiça aos que, com toda alma e todo coração, o chamam dia e noite[56], como disse o divino Lucas na parábola do juiz iníquo. O noviço, cuja oração é ainda impotente, deve se manter em pé, pedir a ajuda de Deus, e o Senhor expulsará os pensamentos. Depois ele deve se sentar novamente e voltar a orar. Mas mesmo aquele cuja oração é forte, todas as vezes que for combatido por pensamentos de relaxamento e de prostituição deve também se por de pé, erguer as mãos e pedir o socorro de Deus. Mas ele deve temer a ilusão e não fazer isto por muito tempo, para que o diabo não lhe mostre no ar figuras imaginárias para enganá-lo. Pois manter a inteligência ao mesmo tempo em cima e em baixo, no coração e em nas coisas em geral, e mantê-la infalível e a salvo, é apanágio apenas dos perfeitos.
Da hesíquia Quem busca a hesíquia deve ter como fundamento, em primeiro lugar, estas cinco virtudes: o silêncio, a temperança, a vigília, a humildade e a paciência; a seguir, as três obras agradáveis a Deus: a salmodia, ou seja, a prece com a boca, a leitura, a prece intelectual – e um pouco de trabalho manual, se for fraco. Pois as virtudes que mencionamos contêm todas as demais e trabalham juntas. Desde a primeira hora do dia, o hesiquiasta deve começar pela oração “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim”, e se consagrar à lembrança de Deus com atenção e a hesíquia do coração, durante uma hora; na segunda hora, ele deve se dedicar à leitura; na terceira, orar com a boca; na quarta, dizer a prece do coração; na quinta, fazer a leitura; na sexta, salmodiar, dizer a oração com a boca; na sétima, dizer a prece do coração; na oitava, ler; na nona, salmodiar; na décima, alimentar-se, na décima-primeira, dormir, se necessário; na décima-segunda, salmodiar as vésperas. Fazer desta maneira a jornada agrada a Deus. Da mesma forma, se você quiser passar facilmente o período da noite; escute. A vigília noturna tem três modos: o dos noviços, o dos médios e o dos perfeitos. O primeiro modo consiste em dormir a metade da noite e velar a segunda metade, seja do por-do-sol até a meia noite, seja da meia noite à aurora, e passar esta metade tanto salmodiando como orando. O segundo modo consiste em velar após o crepúsculo por uma hora ou duas, depois dormir por quatro horas, e por fim se levantar para as matinas, salmodiando e orando por seis horas. O terceiro modo consiste em passar a noite toda de pé velando. Antes de mais nada, a hesíquia exige que tenhamos fé, paciência, amor e esperança, com todo nosso coração e toda nossa força. Pois àquele que crê, mesmo que não encontre nesta vida o que deseja – por negligência ou por qualquer outra causa – é impossível que não receba na hora da morte a certeza dos frutos de sua fé e de seu esforço, e que não veja a liberdade, que é Jesus Cristo. Mas quem não tem fé será julgado no momento de sua morte. Pois quem está sujeitado aos prazeres da carne e busca a glória dos homens, e não a de Deus, este, conforme foi dito, não crê, ainda que pareça crer nas palavras, pela simples confissão da fé. Este homem se ilude, se engana, sem saber. Pois ele escutará do Senhor: “Por que você
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Como cada um deve orar (Gregório, o sinaíta)
me desprezou e não me recebeu em seu coração, mas dele me expulsou, também eu o expulsarei de junto de mim”. É preciso que o fiel creia que todas as palavras de Deus são verdadeiras, que é possível trabalhálas, e que ele confesse sua própria fraqueza, a fim de não incorrer na dupla condenação, caso não as cumpra e nelas não creia. Nada deixa mais o coração contrito e humilhado[57] do que o silêncio e a hesíquia, quando esta é vivida com discernimento. E nada devasta a hesíquia tanto quanto estas seis paixões: a liberdade de linguagem, a gula, o falatório, as distrações, o orgulho e a presunção. O infeliz que se habitua com elas é tomado de uma vertigem, e, com o tempo, se torna insensível. Porém, se ele se arrepender, se recomeçar com fé e fervor, ele reencontrará o que antes desejava, sobretudo se for humilde e se dirigir com amor aos que possuem experiência. Mas se ele for dominado por alguma das paixões que mencionamos, os demais males o assaltarão com a descrença, o despojamento de todo bem, a locupletação das demais paixões e o abandono à vertigem e à perturbação pelos demônios. O infeliz se tornará irascível e inimigo dos hesiquiastas, que ele acusará voltando contra eles sua língua como uma espada de dois gumes. Da mesma forma, se não nos entregarmos ao luto como uma forma de tristeza, será impossível suportarmos as provas da hesíquia. Pois quem toma o luto e medita nas coisas terríveis que precedem e sucedem à morte, este adquire a paciência e a humildade, os dois fundamentos da hesíquia. Mas quem busca a hesíquia sem estas duas virtudes terá sempre em si a presunção e a negligência. Ora, estes dois males não fazem senão aumentar a dispersão do intelecto, conduzindo ao relaxamento e à preguiça. Então a intemperança, esta filha da negligência, amolecerá e relaxará o corpo, entenebrecendo e endurecendo o intelecto, fazendo que com nosso Senhor Jesus Cristo se vá daí, ao mesmo tempo em que a multidão dos pensamentos e das ideias invade o lugar da reflexão. Nada torna a alma tão relaxada, preguiçosa, dura e sem inteligência, como o egoísmo, ou seja, o amor irracional por si mesmo, que é a mãe, a causa e a nutriz das paixões. Pois o egoísmo prefere o repouso do corpo aos esforços da virtude, e pensa que é possível se comportar convenientemente sem se dedicar às obras virtuosas, e, em especial, àquelas que exigem os esforços racionais exigidos pelos mandamentos. O egoísmo suscita assim a preguiça e a impotência da alma do hesiquiasta e faz crescer em meio às obras da ascese um relaxamento tal, que a torna irremediavelmente perdida.
Como salmodiar Uns dizem que se deve salmodiar de tempos em tempos (ou seja, cantar os salmos, os tropários e outras orações), outros, com muita frequência, outros nunca. Quanto a você, não salmodie muito, para não ficar confuso: logo viria o relaxamento. Imite aqueles que salmodiam de tempos em tempos, pois toda medida é excelente. A salmódia frequente é própria dos ativos, que fazem isto para compreender aquilo que cantam e para manter seu esforço. Mas ela não convém aos hesiquiasta, aos quais basta orar a Deus apenas no coração e se afastar dos pensamentos. A hesíquia, segundo João Clímaco, consiste de fato na rejeição de todo e qualquer pensamento que venham dos sentidos e do intelecto[58]. Se esgotar toda sua força na salmódia frequente, o intelecto ficará fraco para orar com intensidade e perseverança. “Durante a noite, diz João Clímaco, dedique muito tempo à prece e pouco à salmódia[59]”. É o que você deve fazer. Quando, estando sentado, você perceber a oração agir e não cessar de se mover no coração, não a deixe para se levantar e salmodiar, até que ela o deixe por si só. Pois então você terá abandonado a Deus em seu coração, onde orava, levantando-se para lhe falar desde fora, com a boca, por meio da salmódia. Você terá descido do alto para o baixo, criando a confusão. Você perturbará seu intelecto, expulsando-o da hesíquia e da calma. Pois Deus é paz[60], longe de toda confusão e de todo barulho. Nosso louvor deve ser angélico, sem confusão, como angélica é nossa maneira de viver, desde que a prece da
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Como cada um deve orar (Gregório, o sinaíta)
boca, o apelo sensível, aponte e vise o apelo ao intelecto. E no entanto, a salmódia nos foi prescrita, para nos elevarmos do sensível ao inteligível e verdadeiro. Pois foi aos que desconhecem a prece intelectual que foi concedido salmodiar bastante, e com uma grande diversidade, além de toda medida, sem jamais cessar, até esgotá-los por meio desta penosa ação, e que possam assim se aproximar da contemplação, descobrindo a prece intelectual que trabalha em seus corações. Pois uma é a ação dos hesiquiastas, e outra a da comunidade. Porém cada qual, se perseverar na via para a qual foi chamado, será salvo [61], segundo o Apóstolo. É por isso que eu temo estar escrevendo apenas aos fracos, quando o vejo viver entre eles. Pois quem se dedica à prece intelectual por ouvir falar ou por que aprendeu nos livros, deve ficar muito atento ao que está escrito, para não se perder. Quem provou do mel de Deus está obrigado a salmodiar comedidamente e a se consagrar a maior parte do tempo à prece. Mas quando sobrevém a indolência, ele deve salmodiar ou fazer uma leitura sobre a Vida dos padres, para aprender como estes venceram e foram salvos. Se alguns dizem que muitos Padres permaneciam de pé por toda a noite, que salmodiavam e que não se dedicavam à prece intelectual, responderemos com base nas Escrituras que nem todas as obras dos Padres eram perfeitas, e que as pequenas virtudes não são pequenas para os grandes, pois estes são fortes e as usam como melhor desejam, enquanto que as grandes virtudes não são grandes nem perfeitas para os pequenos, que, por serem fracos, não as sabem utilizar devidamente. Pois antigamente, como hoje, nem todos os Padres eram ativos, nem todos contemplativos. E nem todos os ativos se dedicavam integralmente à ação: muitos se elevaram através da contemplação, abandonaram a ação, se separaram de tudo e se regozijaram na pura contemplação de Deus, saciados daí por diante com o alimento divino. Eles já não podiam nem salmodiar, nem meditar em outras coisas, uma vez que se encontravam no êxtase da contemplação de Deus, até alcançar, nesta vida, a fruição daquilo que desejavam – mas parcialmente, como se eles tocassem os penhores. Outros se consagraram até o fim apenas à ação e foram salvos: estes esperaram para receber em outra vida a recompensa. Alguns só obtiveram a certeza na hora da morte, ou mesmo após a morte, quando se preservaram suas santas relíquias: então tiveram a certeza de terem sido salvos. Todos haviam recebido a graça no momento do batismo, mas, por diversas razões, nem todos provaram o mel da graça durante sua vida presente, como muitos outros. Alguns ainda houve que se consagraram aos dois modos, à salmódia e à prece, e assim passaram suas vidas sem jamais encontrar obstáculos. Outros mantiveram até o fim a hesíquia, sabiamente, sozinhos e apenas com o Deus único, e foram justificados. Como dissemos, os perfeitos tudo podem em Cristo que lhes dá a força.
Como se alimentar Quanto ao ventre que reina sobre as paixões, que posso dizer? Se você puder paralisá-lo e torná-lo meio morto, não economize esforços. Pois muitas vezes ele me dominou. Como um escravo, eu o servi e fiz o que ele exigiu. Ele próprio trabalha com os demônios e é a morada das paixões quando se entrega à desordem. É ele que nos faz cair, mas é também ele, quando reencontra a boa ordem, que nos levanta e nos endireita. É ele que nos faz perder a graça e a dignidade que havíamos recebido, primeiro no paraíso e depois no batismo. Pois negligenciamos os mandamentos de Deus, que guardam e aumentam a graça naqueles que se aplicam e se dedicam ao progresso da alma, enquanto que nós nos orgulhamos, julgamos estar unidos a Deus e decaímos de sua graça. Os Padres dizem que existem grandes diferenças no modo como se nutrem os corpos. Um necessita de pouco, outro de muito, para sustentar suas forças naturais. Cada qual, segundo sua força e seu estado, demanda assim sua alimentação. Entretanto, aquele que se dedica continuamente à hesíquia não deve jamais estar saciado, mas deve sempre ter fome ao se levantar da mesa. Por que quando seu estômago está pesado com os alimentos, seu intelecto fica perturbado e já não consegue orar com a devida pureza. Ele se entorpece sob os vapores dos numerosos alimentos e procura dormir o quanto antes. Então, no sono, ele se torna presa de sonhos e imaginações infames.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Como cada um deve orar (Gregório, o sinaíta)
Quem pretende encontrar a salvação e violentar a si mesmo pelo Senhor a fim de viver a hesíquia deve, na minha opinião, se satisfazer a cada dia com uma libra de pão e três a quatro copos de água ou vinho, comer pouco e de todos os alimentos que lhe forem apresentados, mas evitando a saciedade para poder assim escapar ao orgulho, deve comer de tudo sem nada desprezar (pois tudo é criação de Deus, que é boníssimo) e em tudo dando graças a Deus. Este é o discernimento dos sábios. Quanto aos que são fracos na alma e na fé, os que não têm firmeza, é melhor para eles que se abstenham de determinados alimentos. O divino Paulo recomenda que não comam senão legumes[62], uma vez que eles não conseguem acreditar que são guardados por Deus, cuja providência se estende sobre todas as criaturas. Quanto a você que é velho e que procura uma regra em matéria de alimentação, que posso lhe dizer? Existem jovens que são incapazes de tomar sua sopa pesando-a comedidamente. Como o poderá você, que é velho? É por isso que você deve permanecer livre em tudo. Se você for vencido por ter comido demais, aflija-se, arrependa-se, condene-se por ter sido intemperante e retome sua obra. Nunca deixe de fazer assim, caindo, levantando e condenado a si mesmo e nunca a outro: assim você encontrará o repouso. Você vencerá através de suas quedas, desde que condene a si próprio, entregando-se ao arrependimento e à humildade. Não transgrida a regra de que falamos, e isto lhe será suficiente. Pois nada fortifica tanto o corpo como comer pão e beber água. É por isso que o profeta dizia: “Filho do homem, coma seu pão e beba sua água comedidamente[63]”. A alimentação possui três medidas, a saber: a temperança, o contentamento e a saciedade. A temperança consiste em ainda ter fome depois da refeição. O contentamento consiste em comer o suficiente, sem ficar faminto nem saciado. A saciedade consiste em ficar com o estômago um pouco pesado depois de ter comido. Mas comer após estar saciado equivale a abrir a porta para a gula, e com ela entrará a prostituição. Portanto, escolha o melhor, na medida em que puder. Não ultrapasse a medida, nem para mais, nem para menos. Ter fome e estar saciado, ser forte em tudo e não ser lesado, isto é próprio dos perfeitos.
Do erro, e de outros assuntos É preciso que você saiba exatamente o que é o erro, para se proteger dele, para estar atento e não perder sua alma. Pois os pendores do homem, e em especial os do noviço e do monge independente [64], os levam facilmente a viver com os demônios que, por meio dos pensamentos e das imaginações, não cessam de girar ao redor deles, colocando armadilhas e cavando poços para fazê-los cair. Não devemos nos espantar em ver que muitos se perderam, que dizem ou fazem uma coisa por outra, perturbam numerosos cristãos que não têm conhecimento de tais coisas e cobrem de opróbrio e de vergonha os hesiquiastas. Pois não há nada de espantoso em que um noviço ou um monge independente se engane, mesmo depois de uma dura ascese. Isto acontece com muitos, tanto hoje em dia como antigamente. A lembrança do nome de Deus, que é aprece intelectual, por ser a mais elevada de todas as ações e o cume de todas as virtudes, como o é o amor a Deus, o primeiro de todos os mandamentos[65], requer muita atenção, piedade e temor. Aquele que, com impudência, temeridade e impiedade, pretende se utilizar desta obra admirável da prece intelectual, e que busca sem temor dizer por si mesmo o nome de Deus e de Deus se aproximar enfrentando-o, certamente (se Deus o permitir) afogar-se-á na ilusão e será destruído pelos demônios. Pois, em seu orgulho e presunção, ele tenta alcançar o que está além de sua força e de seu estado. Ele tem a audácia, antes de chegado o tempo, de chamar a Deus em si por meio da prece intelectual. Ora, frequentemente, vendo em nós tal audácia nas coisas elevadas, o Senhor compassivo não permite que sejamos tentados pelos demônios e nos concede que tomemos consciência de nosso estado e de nosso orgulho, permite que nos arrependamos, que voltemos atrás e nos endireitemos, antes que nos tornemos o opróbrio dos demônios e o riso dos homens. É por isso que quem pretende se dedicar a esta obra
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Como cada um deve orar (Gregório, o sinaíta)
maravilhosa deve interrogar os que têm experiência, para com eles aprender como agir, mostrando-se submisso e obediente a estes, e que ele se engaje com temor a Deus e humildade e que dê provas de paciência; assim ele não colherá espinhos em lugar do trigo, nem encontrará a perdição em lugar da salvação. Quanto a você, meu irmão, se você vive na hesíquia, se se dedica a esta obra como se deve, e se espera unir-se a Deus por intermédio da prece intelectual, preste muita atenção em jamais aceitar seja lá o que for de sensível ou de inteligível que lhe apareça do exterior ou que venha até você, bem como não imagine nem modele em seu intelecto a figura de Cristo, de um anjo ou de um santo, pois o intelecto possui, por si só, a faculdade de imaginar, e pode facilmente dar forma a qualquer coisa que queira, e assim fazer um grande mal aos que não estão atentos. A simples lembrança do que é bom e do que é mau já suscita normalmente a imaginação no intelecto, pois o homem é levado a imaginar as coisas que lhe vêm à memória. Quem as recebe se torna assim imaginativo, mas não hesiquiasta. É por isso que você não deve se fiar numa coisa, ainda que pareça boa, nem acolhê-la, antes de examiná-la e de interrogar os que possuem experiência, para não se prejudicar. Quando estas coisas chegarem a você, não as receba facilmente, mas mantenha-se à distância, e guarde atentamente seu intelecto longe de toda figura, forma ou cor. Pois muitas vezes, para pôr à prova os que combatem e para ver para que lado pende sua resolução, Deus lhes envia essas coisas. E mesmo vindo a coisa de Deus, aquele que a viu em seu intelecto ou com seus olhos, recebendo-a sem examiná-la e sem interrogar os mais experientes, será facilmente enganado pelo diabo, por ser crédulo. Cada qual, especialmente o noviço, deve se aplicar a dizer a prece intelectual em seu coração, pois aí ele não poderá se enganar, e ele não deve admitir outra coisa até que se acalmem as paixões. Deus não reprova aquele que, para não se enganar, permanece estritamente atento a si mesmo, e que, por causa disso, não acolhe nada, nem aquilo que vem de Deus, sem antes examinar e interrogar os mais experientes. Este é louvado por ele, por ser atento e refletido. No entanto, não se deve interrogar qualquer um, mas somente um homem virtuoso, espiritual, testado, que vele por outros irmãos, e que tenha experiência. Pois ninguém é capaz de guiar a outros se não tiver o carisma do discernimento e não souber distinguir o bem do mal. Cada qual, pelo que fez e pelo que aprendeu, possui um conhecimento e um discernimento naturais, mas nem todos têm o discernimento do Espírito Santo. Não é fácil encontrar este homem certo, dotado de tal discernimento, em suas obras, suas palavras, seus pensamentos, e conseguir tomá-lo como guia espiritual. Por este sinal é possível saber que ele é a pessoa certa: tudo o que ele diz, faz e pensa é atestado pela divina Escritura. Assim, é preciso que ele seja comedido em tudo. Pois o diabo costuma dar a seu erro a aparência de verdade, sobretudo entre os noviços, disfarçando seus próprios vícios para fazê-los parecer virtudes espirituais. É por isso que quem deseja alcançar a prece pura deve passar sua vida na hesíquia, no temor, na tristeza do luto, sob a condução dos que têm experiência, interrogando-os amiúde. Ele deve se afligir todo o tempo, chorar por seus pecados, tremer, temer ser condenado e separado de Deus, aqui como na outra vida. Pois o diabo, ao ver alguém que passa sua vida em luto e aflição, não suporta ficar ao seu lado. Ele é queimado pela humildade gerada pela aflição e foge, levando seu orgulho consigo. Mas ele se aproxima daquele que, em sua presunção, imagina atingir as coisas elevadas, e que, impudentemente, tenta alcançar o que ultrapassa suas forças. Deste ele se aproxima como se ele lhe pertencesse, e o prende facilmente em sua rede. A arma suprema consiste em ter sempre consigo a prece e o luto, a fim de não cair da alegria da prece na presunção, e de permanecer sempre humilde para ser salvo. Pois a verdadeira prece é este calor no coração que se encontra na invocação Senhor Jesus Cristo, que veio, como diz o Evangelho, lançar fogo sobre a
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Como cada um deve orar (Gregório, o sinaíta)
terra[66] de nosso coração, para queimar nossas paixões e suscitar em nossa alma a alegria e a mansidão. Também você, irmão, deseje esta prece, a fim de encontrá-la e de a possuir em seu coração, guardando sempre seu intelecto desprovido de toda imaginação e de todo pensamento. E não tema. Pois o Deus que procuramos está conosco e não cessa de nos proteger. Se alguns se perderam, considere que eles chegaram a este ponto por causa de seu orgulho e de sua independência, desde que se deixaram levar por sua própria vontade e não pelos conselhos dos mais experientes. Pois aquele que, com humildade e obediência, sempre interrogando, se dedica à prece e busca a Deus, jamais fará mal, pela graça de Cristo que veio salvar todos os homens [67]. Se sobrevém uma tentação, ela é como que uma prova e uma coroa. Pelos caminhos que só ele conhece, Deus nos traz logo sua ajuda. Como dizem os Padres, as maquinações dos demônios não podem prejudicar a quem vive retamente, que não busca agradar aos homens e que evita o orgulho. Mas os que vivem sua vida com presunção e por sua própria vontade se perdem facilmente e acabam por prejudicar a si próprios. Existem assim três virtudes que devemos guardar, examinando a todo momento se as temos conosco: a temperança, o silêncio e a autocondenação, ou seja, a humildade. Elas se contêm e se guardam mutuamente. É por intermédio delas que a prece nasce e cresce continuamente. A graça aparece de diferentes maneiras nos que se dedicam à obra da prece. Em uns, ela vem com o temor e o tremor que arrasam as montanhas das paixões e quebram os corações petrificados, reduzindo ao silêncio e mortificando o sentimento de sua carne. Em outros, ela se manifesta na alegria e no regozijo do coração, aquilo que os Padres chamam de sobressalto. Em outros, enfim, sobretudo nos que progrediram, Deus suscita a graça na paz, na doçura, na calma, a partir do instante em que Cristo faz sua morada no coração, segundo o divino Paulo. É por isso que Deus disse ao profeta Elias que o Senhor não está nem no vento violento, nem no tremor de terra, ou seja, ele não está nos efeitos da graça que se manifestam de início nos noviços, no temor a Deus e na alegria do coração, mas que ele é uma brisa leve[68], luminosa e pacífica. Com isto ele mostrou onde está a perfeição. Que fazer quando o demônio se transforma em anjo de luz[69] e engana o homem? Quem presencia isto não deve recebê-lo de imediato, mas deve primeiro provar e discernir o bem e o mal, e somente depois crer. Pois aquilo que a graça pode fazer e que o demônio é incapaz de fazer, é evidente. O demônio (ainda que apareça como um anjo de luz) não consegue provocar no homem nem doçura, nem luz, nem desdém pelo mundo, nem a detenção das paixões e dos prazeres; isto é obra da graça. O que ele provoca é o orgulho, a preguiça, a presunção e outras malícias do gênero. Pelo modo como ela opera, você pode saber se a luz que brilha na sua alma vem de Deus ou de Satanás. A alface lembra uma salada amarga, e o vinagre se assemelha ao vinho. Mas quando você os prova, você sabe a diferença. O mesmo acontece com a alma do homem. Se ele tiver o discernimento, ele reconhecerá os carismas do Espírito Santo e os fantasmas de Satanás. Entretanto, é preciso saber que o erro tem três causas: o orgulho, a inveja dos demônios e a concessão de Deus que permite o castigo. O orgulho provém da inconsequência do intelecto. A inveja dos demônios provém do progresso. A concessão de Deus provém do pecado. O erro proveniente do orgulho e da inveja dos demônios é fácil de curar, quando o homem se humilha. Mas aquele que provém de Deus dura às vezes até a morte. Também é preciso saber que o demônio do orgulho vem primeiro sobre aqueles que não estão atentos ao coração. Você, irmão, esteja sempre pronto para conduzir o combate contra os demônios. Se lhe vier uma imaginação, não se perturbe. Ainda que você veja uma espada que vai trespassá-lo, ou um fogo brilhante
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Como cada um deve orar (Gregório, o sinaíta)
que vai queimá-lo, ou uma figura selvagem e feia, ou um dragão, ou seja lá o que for, não tenha medo nem recue. Resista, confesse o Senhor Jesus Cristo, e você verá facilmente a vitória chegar, com a fuga e a dispersão dos seus inimigos. Conheça ainda esta armadilha que os demônios empregam muitas vezes. Eles se dividem em dois. Uns o assaltam, aparentemente para tentá-lo. Se você parece pedir por socorro, chegam outros como anjos, e aparentemente expulsam os primeiros, que fingem estar temerosos e fogem, para enganá-lo e fazê-lo adorar como se fossem santos anjos aqueles que aparentemente expulsaram os demônios. Muitas vezes ainda eles irão lhe sugerir belos pensamentos e o incitarão a rezar contra os que parecem tentá-lo, ou o incitarão a resistir. Se você fizer isto, eles fingirão ter sido vencidos por você e fugirão, para que você se orgulhe e pense que progrediu e que agora é capaz de vencer os pensamentos e expulsar os demônios.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Da vida de São Máximo o Capsocalyvita.
MÁXIMO, O CAPSOCALYVITA Máximo o Capsocalyvita – o “queimador de cabanas” – foi um destes monges do Monte Athos que, pelos frutos de sua humildade e de sua contemplação, contribuíram para fundar a renovação hesiquiasta dos séculos XIII e XIV. Ele próprio não deixou nada escrito. Mas seu exemplo extremo – incendiando suas sucessivas moradias, como para chamar sobre si o Juízo final – impressionou seus contemporâneos a ponto de um deles, Teófano de Vatopedi, escrever um relato de sua vida, de onde foi extraído o diálogo que a Filocalia grega inseriu na sua conclusão. Diálogo admirável, entre Máximo e um dos Padres da renovação hesiquiasta, Gregório o Sinaíta, e que não deixa de lembrar o relato de Filemon, no século VI, quando o movimento hesiquiasta estava se iniciando no deserto do Egito. Gregório coloca em primeiro lugar a questão crucial do carisma do Espírito Santo: a passagem da prece contínua ao arrebatamento do intelecto, ao êxtase, que ele chama de “transformação divina”. Máximo afirma peremptoriamente, contra os que negam o sobrenatural, a realidade desta passagem. Mas ele ao mesmo tempo recusa, não sem humor, toda ostentação do carisma. A ilusão tem seus sinais, e a graça os seus. O discernimento destes sinais é fundamental, pois somente ele permite a santidade sacrificial. Isto manifesta e confirma o testemunho discreto de Máximo, ao final e no próprio coração da perspectiva hesiquiasta: a atualidade desta.
DA VIDA DE NOSSO SANTO PAI MÁXIMO CAPSOCALYVITA O divino Gregório o Sinaíta encontrou um dia a são Máximo e conversou com ele. Entre outras coisas, disse-lhe: “Ó venerável Padre, diga-me, eu lhe peço: você tem consigo a prece intelectual?”. Este sorriu e lhe respondeu: “Não lhe esconderei, venerável Padre, o milagre que a Mãe de Deus operou por mim. Eu sempre tive, desde a minha juventude, uma grande confiança na Mãe de Deus. Eu pedia a ela, chorando, que me concedesse a graça da prece intelectual. Um dia em que, conforme meu costume, tinha eu ido à igreja que lhe era consagrada, pedi-lhe mais uma vez com todo meu coração. E, no instante em que me abraçava ao seu santo ícone, senti no meu peito um calor, como uma chama que provinha do ícone, mas que não me queimava, mas me cobria como um orvalho, me enchia de doçura e colocava toda minha alma numa imensa mansuetude. Foi a partir deste momento, Padre, que meu coração começou a dizer de dentro de si próprio a prece, e que meu intelecto conheceu a doçura de se lembrar continuamente de Jesus e da Mãe de Deus. A partir de então, a prece nunca mais deixou meu coração. Perdoe-me”. O divino Gregório lhe falou: “Diga-me, no momento em que você dizia a prece ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’, você sentiu alguma vez uma transformação divina, ou um êxtase, ou qualquer outro fruto do Espírito Santo?”. O divino Máximo lhe respondeu: “Ó Padre, se eu me retirei para um lugar deserto, se sempre desejei a hesíquia, foi justamente para poder desfrutar daí em diante do fruto da prece, que é um imenso amor a Deus e um arrebatamento do intelecto no Senhor”. São Gregório lhe disse: “Eu lhe peço, Padre, diga-me. Você tem consigo aquilo de que me fala?”. O divino Máximo sorriu outra vez e falou: “Dê-me de comer... não se inquiete com a ilusão”.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Da vida de São Máximo o Capsocalyvita.
O divino Gregório falou-lhe então: “Possa eu ter em mim esta ilusão, como a sua. Mas eu lhe peço que me diga o que seu intelecto vê com seus próprios olhos quando está arrebatado em Deus; e se então lhe é possível elevar a prece simultaneamente ao coração”. São Máximo lhe respondeu: “Não, ele não pode. Quando, por meio da prece, a graça do Espírito Santo chega ao homem, a prece cessa. Pois o intelecto está inteiramente dominado pela graça do Espírito Santo. Ele já não pode fazer nada por si mesmo, ele não é capaz de agir. Ele não se submete senão ao Espírito Santo, e vai para onde este deseja: para o espaço imaterial da luz de Deus, ou para alguma outra contemplação impossível de descrever, ou, muitas vezes, para escutar as palavras divinas. O Consolador, o Espírito Santo, conforta assim seus servidores, conforme lhe apraz. Ele concede sua graça segundo o que convém a cada um”. “Podemos ver claramente o que eu digo se considerarmos os profetas e os apóstolos aos quais foi dado ter tais contemplações, mesmo que os homens se rissem deles e os considerassem como perdidos e bêbados[70]. O profeta Isaías viu o Senhor sobre um trono elevado, e os serafins que o rodeavam [71]. Estevão, o primeiro mártir, viu os céus abertos e Jesus à direita do Pai[72]. Do mesmo modo, hoje em dia ainda é concedido aos servidores de Cristo ter estas visões. Alguns não acreditam nisto, e lhe negam qualquer realidade: acham que tudo não passa de ilusão, e consideram que quem tem estas visões está perdido. Eu fico admirado o quanto estes homens são endurecidos. Com a alma cegada, eles não creem naquilo que o próprio Deus, que não pode mentir, prometeu, pela boca do profeta Joel, conceder, quando disse: “Eu derramarei a graça de meu Espírito sobre todos os fiéis, sobre meus servos e servas[73]”. É esta graça que nos veio trazer nosso Senhor, que ele concede ainda hoje, e que concederá até o fim do mundo aos seus servidores fiéis, conforme prometido. Então, quando esta graça do Espírito Santo chega a alguém, ela não lhe mostra o que ele está acostumado a ver, ela não lhe mostra as coisas sensíveis deste mundo, mas lhe revela o que ele jamais viu, o que jamais imaginou. Então o intelecto deste homem recebe do Espírito Santo o ensinamento dos mais altos mistérios, dos mistérios ocultos que o olho corporal do homem não é capaz de ver, nem sua inteligência compreender por si própria, como disse o divino Paulo[74]”. “Para compreender o modo pelo qual o intelecto pode ver os mistérios, considere o que vou lhe dizer. Enquanto está distante do fogo, a cera é sólida e pode ser segurada. Mas se você a coloca no fogo, ela se ilumina e queima numa chama, torna-se luz e se consome inteiramente no fogo. Ela não pode não se fundir no fogo, nem deixar de liquefazer. Da mesma forma, enquanto o intelecto do homem está só e não encontrou a Deus, ele só concebe aquilo que está em seu poder. Mas se ele se aproxima do fogo da Divindade e do Espírito Santo, daí por diante ele está totalmente sob o domínio da luz de Deus, tornandose ele próprio luz, queimando na chama do Espírito Santo e fundindo-se sob os pensamentos divinos. Daí por diante lhe é impossível, no fogo da Divindade, conceber por si mesmo o que lhe é próprio e o que deseja conceber”. O divino Gregório lhe disse então: “Existem coisas aparentadas a estas, mas que seriam da ordem da ilusão?”. E o grande Máximo lhe respondeu: “Uns são os sinais da ilusão, outros os da graça. Pois o espírito maligno, o espírito da mentira, quando se aproxima do homem, perturba e exacerba o intelecto. Ele endurece e entenebrece o coração. Ele provoca a preguiça, o medo e o orgulho. Ele apavora os olhos. Ele faz ferver o cérebro e faz o corpo tremer. Ele revela em imaginação aos olhos do corpo uma luz que não é clara nem pura, mas vermelha. Ele coloca o intelecto fora de si e o torna demoníaco. Ele o força a dizer pela boca palavras blasfemas e maledicentes. Aquele que vê este espírito de ilusão passa a ficar a maior parte do tempo num espírito de irritação, cheio de cólera, ignorando a humildade, o verdadeiro luto e as lágrimas, vangloriando-se sempre daquilo que sabe, vaidoso. Sem a menor reserva, sem temor a Deus, ele
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Da vida de São Máximo o Capsocalyvita.
vive continuamente com suas paixões. Acaba por sair totalmente de si e se perder por completo. Que o Senhor, por nossas orações, nos livre de tal ilusão!”. “Quanto aos sinais da graça, ei-los aqui: quando a graça do Espírito Santo vem ao homem, ela reúne seu intelecto, concede que ele seja atento e humilde, traz consigo a lembrança da morte e dos pecados cometidos, do julgamento que virá e do castigo eterno. Ela enche sua alma de compunção. Ela o faz chorar e vestir luto. Ela torna seus olhos mansos e cheios de lágrimas. Quanto mais ela se aproxima do homem, mais ela apazigua sua alma, consolando-a com os santos sofrimentos de nosso Senhor Jesus Cristo e com seu infinito amor pelo homem. Ela suscita em seu intelecto as mais altas contemplações, as verdadeiras contemplações. Primeiramente, a contemplação do poder incompreensível de Deus: como, por uma só palavra, ele criou todo o universo e o levou do nada à existência. Depois, a contemplação do poder infinito por meio do qual ele mantém e governa tudo, colocando a tudo sob sua providência. Enfim, a contemplação do mistério da Santa Trindade e do insondável oceano do Ser divino. Quando o intelecto do homem é assim arrebatado pela luz divina, iluminado pelo esplendor do conhecimento de Deus, então seu coração se torna sereno e doce, ele traz os frutos do Espírito Santo, a alegria, a paz, a paciência, a bondade, a compaixão, o amor e a humildade[75]. E sua alma exulta, inefavelmente regozijada”. São Gregório o Sinaíta, maravilhado, admirou o que tinha escutado e que lhe dissera o divino Máximo. E já não dizia que este era um homem, mas um anjo terrestre.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Da vida de São Gregório de Tessalônica.
GREGÓRIO DE TESSALÔNICA Este texto composto – tirado em particular dos escritos do patriarca Filoteu e de Simeão Metafraste – expõe em plena luz o desígnio dos editores da Filocalia grega, no final do século XVIII: deixar claro que a invocação do nome de Jesus – a prece contínua – é inerente à identidade cristã e diz respeito a todos os fiéis, independentemente de seu engajamento ou de seus encargos na Igreja. Acontece com a mensagem filocálica a mesma coisa que com o Evangelho: ela não pode ser reservada a alguns. Ela foi feita para todos. É o que afirma aqui Gregório de Tessalônica (Gregório Palamas) ao velho Jó. E é o que confirma também a Vida de Constantino, o pai de Gregório, reportada pelo Patriarca Filoteu, e a Vida de Eudócimo, contada por Simeão Metafraste. Assim a prece contínua verifica e orienta a vocação dos fiéis a recolher o intelecto no abismo do coração, e a unir sem confusão da vida que levam no século e a exigência evangélica: fechar as portas dos sentidos e pedir em segredo a graça do Pai das luzes. A abertura para o mundo é aí também tão completa quanto a consagração à interioridade orante. Este ultimíssimo texto constitui com toda justiça o “endereçamento” da antologia filocálica.
DA VIDA DE SÃO GREGÓRIO, ARCEBISPO DE TESSALÔNICA Que todos os Cristãos devem orar continuamente Não se deve pensar, irmãos cristãos, que somente os sacerdotes e os monges têm o dever de orar continuamente, mas não os leigos. Não, não. Todos os cristãos têm em comum o dever de estar todo o tempo em oração. O Patriarca de Constantinopla Filoteu escreveu na Vida de são Gregório de Tessalônica, que este tinha um amigo muito querido chamado Jó, um homem muito simples e muito virtuoso. Num dia em que o santo estava conversando com ele, falou-lhe da prece, dizendo que todo cristão devia simplesmente sempre se esforçar por orar, e orar continuamente, como ordenou o apóstolo Paulo a todos: “Orai sem cessar[76]”, e como disse o profeta Davi, embora tenha sido rei e encarregado de todos os negócios de seu reino: “Eu tenho sempre o Senhor diante de mim[77]”, ou seja: por meio da oração, em meu intelecto, eu vejo todo o tempo o Senhor diante de mim. Da mesma forma, Gregório o Teólogo ensinava a todos os cristãos que é preciso, na prece, lembrar-se do nome de Deus mais frequentemente do que se respira[78]. O santo falava destas coisas e de muitas outras a seu amigo Jó. E acrescentava que devemos obedecer às recomendações dos santos, e que não apenas devemos orar, nós mesmos, continuamente, como devemos ainda ensinar os demais, monges e leigos, sábios e ignorantes, homens, mulheres e crianças, e exortá-los a orar sempre. A coisa pareceu novidade ao velho Jó, e ele se pôs a contestar. Ele disse ao santo que a prece contínua era própria só aos ascetas e aos monges que viviam fora do mundo e de suas distrações, mas que era impossível que orassem sem cessar os que viviam no mundo e tinham tantos cuidados e afazeres. O santo lhe forneceu ainda outros testemunhos e provas irrefutáveis, mas o velho Jó não se deixou persuadir.
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Da vida de São Gregório de Tessalônica.
Então o divino Gregório, para fugir da querela e da discussão, calou-se. Em seguida, cada qual entrou de volta para sua cela. Mais tarde, quando Jó orava sozinho em sua cela, um anjo do Senhor lhe apareceu, enviado por Deus que quer a salvação de todos os homens. O anjo reprovou-lhe haver contestado o que lhe dissera são Gregório e haver se oposto a ele em coisas que eram com toda evidência a fonte de salvação dos cristãos. Ordenou a ele em nome do Deus santo que daí por diante fosse mais atento e que evitasse dizer coisas contra uma obra tão útil à alma, pois ele estaria se opondo à própria vontade de Deus. Ele o proibiu de aceitar em si doravante qualquer pensamento contrário, e lhe pediu que considerasse as coisas conforme o que lhe havia dito o divino Gregório. Então o velho Jó, este homem simples, correu logo a ver o santo. Ele caiu a seus pés e lhe pediu perdão por ter se oposto a ele e por haver contestado suas palavras. E lhe revelou o que lhe havia dito o anjo do Senhor. Veem, irmãos, que todos os cristãos, do menor ao maior, têm em comum o dever de orar continuamente, de dizer a prece intelectual ‘Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim’, e de acostumar seu intelecto e seu coração a dizê-la sem cessar? Considerem o quanto esta prece agrada a Deus e quanto benefício ela nos traz, uma vez que, em sua extrema misericórdia, ele enviou um anjo celeste para no-la revelar, para que não tivéssemos mais a respeito nenhuma dúvida? Mas que dizem os homens que vivem no mundo? “Estamos nomeio de tantos cuidados e afazeres... Como é possível orar sem cessar?”. Eu lhes respondo: Deus não nos pede nada impossível. Ele só nos ordenou aquilo que sempre esteve em nosso poder executar. Todo homem que, esforçando-se, busca a salvação de sua alma, é capaz de atingir a prece contínua. Pois se a coisa fosse impossível, ela o seria para todos os leigos, e não encontraríamos no mundo tantos homens que a obtiveram. O pai de são Gregório é apenas um exemplo entre muitos. Este homem admirável, chamado Constantino, trabalhava no palácio do rei. Ele era chamado de pai e mestre do rei Andrônico. Ele se ocupava diariamente dos negócios reais, sem falar dos assuntos de sua própria casa, pois era muito rico, tinha muitas propriedades e servidores, além de sua esposa e filhos. Apesar de tudo, ele jamais se separava de Deus. Ele permanecia tão voltado para a prece intelectual contínua que muitas vezes esquecia o que lhe dissera o rei e os ministros do palácio a propósito dos assuntos do reino, e era obrigado a perguntar reiteradamente sobre os mesmos assuntos. Alguns ministros, que ignoravam a causa deste comportamento, ficavam contrariados e lhe reprovavam por esquecer tão depressa e por perturbar o rei repetindo as questões. Mas o rei, que conheci a causa, o defendia dizendo: “Constantino, este homem feliz, tem seus próprios pensamentos. E eles o impedem de estar atento aos assuntos provisórios e vãos de que falamos nós. Mas sua inteligência está ligada ao que é verdadeiro, às coisas do céu, e assim ele esquece das coisas terrestres. Pois toda a sua atenção está na prece, e voltada para Deus”. Como nos conta o santo Patriarca Filoteu, Constantino era assim venerado e amado pelo rei e por todos os grandes e os ministros do reino, assim como era amado por Deus a ponto de lhe ter sido concedido fazer alguns milagres. São Filoteu, na vida de são Gregório, o filho de Constantino, conta que um dia este embarcara com toda sua família para ir a Gálata ver um anacoreta que lá vivia em estado de hesíquia, e receber sua bênção. Já em viagem, ele perguntou aos seus servidores se haviam trazido algum alimento para oferecer ao abade. Estes responderam-lhe que, na pressa, haviam se esquecido e que não trouxeram nada. Este homem bendito ficou um pouco entristecido, mas não disse nada. Ele simplesmente foi até aproa do barco, colocou a mão na água e, em sua prece intelectual silenciosa, pediu a Deus, o mestre do mar, que lhe enviasse um peixe. E pouco depois – ó obras maravilhosas, Cristo Rei, pelas quais, paradoxalmente, você glorifica seus servidores! – ele retirou a mão do mar, trazendo um grande peixe que atirou ao barco diante de seus servidores, dizendo: “O Senhor pensou em nós e em seu servidor, o abade, e lhe enviou algo para comer.” Veem, irmãos, com quanto glória Jesus Cristo glorifica seus servidores que estão sempre com ele e que invocam continuamente seu nome santo e dulcíssimo?
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TII, IV – OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – Da vida de São Gregório de Tessalônica.
Da mesma forma Eudócimo, este homem justo e santo, não morava também ele em Constantinopla? Não vivia ele no palácio do rei, misturado aos negócios do reino? Não participava ele da comitiva do rei e dos ministros do palácio, no meio dos assuntos e das discussões? Malgrado tudo, a prece intelectual jamais o abandonava, como nos reporta Simeão Metafrastre no relato de sua vida. Assim, ainda que se encontrasse no mundo e em meio às coisas do mundo, o três vezes bem-aventurado levava verdadeiramente uma vida angélica acima do mundo, e o Deus que recompensa lhe concedeu ter um fim divino. Muitos outros ainda, inumeráveis, viveram da mesma maneira suas vidas no mundo e conseguiram se dedicar a esta prece intelectual salutar, como podemos ver nos relatos de suas vidas. Irmãos cristãos, eu lhes peço então, com o divino Crisóstomo, pela salvação de suas almas, não negligenciem esta obra da prece. Imitem aqueles de quem lhes falei. E, tanto quanto possível, sigam-nos. Se a coisa lhes parecer difícil no começo, estejam seguros e certos, como se viesse do próprio Deus que domina o universo, que o próprio nome de nosso Senhor Jesus Cristo, invocado por nós a cada dia e continuamente, aplainará todas as dificuldades, e que, com o tempo, quando nos tenhamos acostumado com este nome, quando formos cumulados de doçura nele, saberemos por experiência que sua invocação contínua não é nem impossível nem difícil, mas possível e fácil. É por isso que o divino Paulo, que, melhor do que nós, sabia o grande bem que proporciona esta prece, nos exortou a orar sem cessar[79]. Ora, ele não quis nos recomendar uma coisa difícil e impossível, que não pudéssemos fazer; nós o teríamos necessariamente desobedecido e transgredido sua ordem, e assim estaríamos condenados. Mas o objetivo do Apóstolo, ao dizer “Orem sem cessar” era de que oremos com nosso intelecto, coisa que é sempre possível fazer. Quando trabalhamos com as mãos, quando caminhamos, quando nos sentamos, quando comemos ou bebemos, sempre podemos orar com nosso intelecto e trazer conosco uma prece que seja verdadeira e que agrade a Deus. Podemos trabalhar com o corpo e orar com a alma. O homem exterior pode cumprir com todas as tarefas corporais enquanto o homem interior está inteiramente consagrado à adoração a Deus, trazendo consigo sempre esta obra espiritual da prece do intelecto. É o que nos pede Jesus, o Deus Homem, quando diz no Evangelho: “Quando você orar, entre em sua câmara, feche a porta e ore a seu Pai em segredo[80].” A câmara da alma é o corpo. As portas de nosso ser são os cinco sentidos. A alma penetra em sua câmara quando o intelecto cessa de ir e vir nas coisas do mundo e se coloca no centro de nosso coração. E os sentidos permanecem fechados quando não os deixamos ligados às coisas sensíveis e visíveis. Assim, nosso intelecto se vê liberado de toda atividade do mundo. Por meio da prece intelectual secreta, ele se une a Deus, seu Pai. O mesmo Cristo disse também: “E seu Pai que está no secreto lhe concederá a recompensa[81]”. Deus, que conhece os segredos dos corações, vê a prece intelectual e a recompensa concedendo grandes carismas visíveis. Pois esta prece intelectual é a verdadeira prece, a prece perfeita. Ela enche a alma da graça divina e dos carismas o Espírito, como o perfume cujo odor, num vidro, é tanto mais forte quanto mais fechado. O mesmo acontece com a oração. Quanto mais você a encerrar em seu coração, mais ela encherá o coração de graça divina. Bem-aventurados os que se dedicam a esta obra celeste. Pois por meio dela eles superam todas as tentações dos demônios malignos, como Davi venceu o orgulhoso Golias[82]; por meio dela eles extinguiram os desejos desordenados da carne, como as três crianças que extinguiram as chamas da fornalha[83]; com ela eles apaziguaram as paixões, como Daniel acalmou os leões selvagens[84]; por meio dela eles fizeram descer o orvalho do Espírito Santo aos corações, como Elias fez descer a chuva sobre o Carmelo[85]. É esta prece intelectual que sobe até o trono de Deus e é guardada em cálices de ouro, de onde se eleva seu perfume até o Senhor, como diz João o Teólogo no Apocalipse: “Os vinte e quatro anciãos se prosternavam diante do Cordeiro com suas cítaras e com cálices de ouro cheios de perfume, que são as preces dos santos[86]”. Esta prece intelectual é uma luz que ilumina sempre a alma do homem e aquece seu coração nas chamas do amor a Deus. Ela é uma corrente que une Deus ao homem.
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Ó graça incomparável da prece intelectual! Ela permite ao homem estar sempre em diálogo com Deus. Ó coisa verdadeiramente maravilhosa! Você está com os homens por meio do corpo, e com Deus por intermédio do intelecto. Os anjos não possuem uma voz material, mas eles não cessam de glorificar a Deus em seu intelecto. Esta é a sua obra, e a ela eles se consagram por toda sua vida. Também você, irmão, quando penetrar na câmara e fechar a porta, ou seja, quando seu intelecto não se dispersar mais aqui e ali, mas entrar em seu coração, quando seus sentidos permanecerem fechados e não mais se ligarem às coisas do mundo, quando você puder assim orar sempre com sua inteligência, você se tornará semelhante aos santos anjos, e seu Pai, que vê a prece escondida que você lhe oferece no segredo de seu coração lhe concederá a recompensa de grandes carismas espirituais. E o que pode você querer mais do que estar sempre unido a Deus pelo intelecto, como dissemos, e continuamente conversar com ele, sem o que, nem aqui nem em outra vida, homem algum jamais poderá ser bem-aventurado? Portanto, irmão, seja você quem for, quando você tomar em suas mãos este livro e o ler pelo bem de sua alma, eu lhe rogo, lembre-se de invocar a Deus, de dizer “Kyrie eleison” pela alma pecadora daquele que se esforçou por compor este livro e daquele que o publicou. Eles têm grande necessidade de sua oração, para que a piedade divina venha sobre suas almas, como sobre a sua também. Assim seja.
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COM ESTE TEXTO ENCERRA-SE A COLETÂNEA DA FILOCALIA GREGA
Que a paz de Cristo esteja sobre o leitor.
[1] Cf. João 14: 29. [2] I Coríntios 12: 3. [3] I João 4: 2. [4] Mateus 16: 15-16. [5] Cf. Mateus 16: 17. [6] Cf. Mateus 18: 16. [7] I Coríntios 15: 10. [8] João 21: 16. [9] Cf. Marcos 10: 47. [10] Cf. Mateus 22: 40; Romanos 13: 10. [11] Gênesis 19: 24. [12] Salmo 109 (110): 1. [13] Lucas 1: 31. [14] Atos 2: 36 [15] Salmo 114 (115): 6.
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[16] Ver Marcos o Monge, Tratados espirituais e teológicos, SO 41. [17] Marcos o Asceta, Sobre a lei espiritual 69. [18] Dos que pensam ser justificados 64. [19] Cf. Mateus 10: 47. [20] Cf. João 9: 38; Sobre a lei espiritual 13-14. [21] Gregório de Nazianze, Discurso XXXIX, 8. [22] Provérbios 1: 7. [23] Cf. Salmo 33 (34): 6. [24] João 14: 12. [25] Cf. II Tessalonicenses 3: 3. [26] Cf. Salmo 33 (34): 6. [27] Cf. Mateus 7: 8. [28] Cf. Lucas 11: 13. [29] Cf. Mateus 7: 9. [30] Cf. II Timóteo 4: 8. [31] Cf. Mateus 15: 14. [32] Cf. Mateus 7: 12. [33] Cf. Salmo 33 (34): 9. [34] Mateus 17: 4. [35] Romanos 8: 35. [36] Cf. Mateus 15: 19-20. [37] Cf. Mateus 23: 26. [38] Eclesiastes 10: 4. [39] Na realidade trata-se de Eclesiastes 10: 4. [40] Lucas 12: 29. [41] Mateus 5: 3. [42] Cf. Mateus 5: 8. [43] Cf. Mateus 5: 3. [44] Cf. Mateus 5: 4. [45] Cf. Mateus 5: 5. [46] Cf. Mateus 5: 6. [47] Sentenças dos Padres do Deserto, Moisés 6. [48] A escada santa, XXVIII, 35. [49] Cf. Mateus 15: 19. [50] Cf. Romanos 11: 16. [51] Cf. Romanos 12: 12. [52] Cf. Mateus 10: 12. [53] Cf. I Coríntios 12: 3. [54] João Clímaco, A escada santa XX, 7. [55] Cf. Deuteronômio 4: 24. [56] Cf. Lucas 18: 7. [57] Cf. Salmo 50 (51): 19. [58] João Clímaco, A escada santa XXVII, 52. [59] João Clímaco, A escada santa XXVII, 92. [60] Cf. Efésios 2: 14. [61] Cf. I Coríntios 7: 24. [62] Cf. Romanos 14: 2. [63] Ezequiel 4: 16. [64] O monge independente, ou idiorritmo, é aquele que não tem guia espiritual e que age segundo sua própria conveniência.
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[65] Cf. Mateus 22: 38. [66] Cf. Lucas 12: 49. [67] Cf. I Timóteo 2: 4. [68] Cf. I Reis 19: 11-12. [69] Cf. II Coríntios 11: 14. [70] Cf. Atos 2: 13. [71] Cf. Isaías 6: 2. [72] Cf. Atos 7: 56. [73] Joel 3: 2. [74] Cf. I Coríntios 2: 9. [75] Cf. Gálatas 5: 22. [76] 1 Tessalonicenses 5: 17. [77] Salmo 15 (16): 8. [78] Gregório de Nazianze, Discurso XXVII, 4. [79] Cf. 1 Tessalonicenses 5: 17. [80] Mateus 6: 6. [81] Ibid. [82] Cf. I Samuel 17: 51. [83] Cf. Daniel 3: 24-25. [84] Cf. Daniel 6: 18-19. [85] Cf. I Reis 18: 45. [86] Apocalipse 5: 8.
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TOMO I VOLUME I ANTÔNIO, O GRANDE – P 13. • Exortações sobre o comportamento dos homens e a vida virtuosa – P 15. ISAÍAS, O ANACORETA – P 33. • Capítulos sobre a guarda do Intelecto – P 35. EVÁGRIO, O PÔNTICO – P 40. • Esboço monástico que ensina exercer a ascese e a hesíquia – P 42. • Capítulo sobre o discernimento das paixões e dos pensamentos - P 47. • Capítulos Népticos – P 58. NILO, O ASCETA – P 53. • Capítulos sobre a prece – P 55. JOÃO CASSIANO, O ROMANO – P 76. • Ao bispo de castor sobre os oito pensamentos de malícia – P 70. • Discurso cheio de benefício espiritual sobre os pe. de Sceta e o discernimento – P 96. MARCOS, O ASCETA – P 107. • Duzentos capítulos sobre a lei espiritual – P 109. • Duzentos e vinte e seis capítulos sobre os que pensam ser justificados por suas obras – P 129. • Carta ao monge Nícolas – P 155.
VOLUME II HESÍQUIO DE BATHOS – P 167. • Discurso, em forma de capítulos, sobre a sobriedade, a vigilância e a virtude para o bem da alma e sua salvação – P 169. NILO, O ASCETA – P 200. • Discurso Ascético – P 202. • Decadência do monaquismo – P 205. • Qualidades e deveres do mestre espiritual – P 216. • Renúncia e Ascese – P 227. • Exortação ao desligamento total – P 237. DIÁDOCO DE FOTICÉIA – P 245. • Definições – P 247. • Cem capítulos práticos sobre o conhecimento e discernimento espiritual – P 248. TEODORO DE EDESSA – P 279. • Cem capítulos – P 281. • Theorétikon (Sobre a comtemplação) – P 301.
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JOÃO CARPATOS – P 308. • Cem capítulos de exortações – P 310. • Discurso ascético e grande consolador que completa os cem capítulos – P 331.
VOLUME III MÁXIMO, O CONFESSOR – P 337. • Primeira centúria sobre o amor– P 341. • Segunda centúria sobre o amor– P 354. • Terceira centúria sobre o amor– P 370. • Quarta centúria sobre o amor– P 385. •Centúrias sobre teologia e a economia da encarnação do verbo de Deus. – P 399. • Primeira centúria – P 399. • Segunda centúria – P 417. • Terceira centúria – P 436. • Quarta centúria – P 454. • Quinta centúria – P 470. • Sexta centúria – P 488. • Sétima centúria – P 507. THALASSIUS, O AFRICANO – P 525. • Primeira centúria: Sobre o amor, a temperança e a conduta do intelecto – P 527. • Segunda centúria – P 537. • Terceira centúria – P 547. • Quarta centúria – P 558. ABADE FILEMON – P 569. • Discurso muito útil – P 571. TEOGNOSTES – P 581. • Sobre a ação, a contemplação e o sacerdócio – P 583. FILOTEU, O SINAÍTA. • 40 Capítulos néticos – P 599. ELIAS DE ECDICOS – P 611. •Florilégio de sentenças dos filósofos consagrados à virtude. – P 627. • Do conhecimento – P 626. • Da ação e contemplação – P 631.
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TOMO II VOLUME I PEDRO DAMASCENO – P 647. • Exórdio – P 650. • Livro primeiro – P 659. MACÁRIO, O EGÍPCIO – P 731. • Da perfeição no Espírito – P 733. • Sobre a oração – P 737. • Sobre a paciência e o discernimento – P 741. • Sobre a elevação do Intelecto – P 749. • Sobre o amor – P 755. • Sobre a liberdade do Intelecto – P 764.
VOLUME II SIMEÃO, O NOVO TEÓLOGO – P 782. • Capítulos práticos e teológicos – P 784. NICETAS STETHATOS – P 811. • Primeira centúria (Capítulos práticos) – P 814. • Segunda centúria (Capítulos físicos) – P 832. • Terceira centúria (Capítulos gnósticos) – P 853. TEOLÉPTO DE FILADÉLFIA – P 877. • O trabalho oculto que implica a vida em Cristo (O labor imposto pela profissão monástica) – P 879. • Nove capítulos – P 886. NICÉFORO, O SOLITÁRIO – P 889. • Tratado da sobriedade e da guarda do coração – P 891. GREGÓRIO, O SINAÍTA – P 899. • Sentenças diversas sobre os mandamentos, os dogmas, as ameaças e as promessas, sobre os pensamentos, as paixões, as virtudes, a hesíquia e a prece – P 901. • Outros capítulos – P 925. • Da hesíquia e da prece– P 927. • Da hesíquia e dois modos da prece– P 929. • De como o hesiquiasta deve se manter sentado em oração e não ter pressa em levantar-se – P 935.
VOLUME III GREGÓRIO PALAMAS – P 946. • Carta à monja Xênia (Sobre as paixões, as virtudes e sobre o que gera o exercício do Intelecto) – P 949. • Das leis do Novo Testamento – P 969. • Sobre os santos hesicastas– P 975.
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• Sobre a prece e a pureza do coração – P 982. •150 Capítulos físicos, teológicos, éticos e práticos – P 984. •Tomo hagiorítico– P 1025. CALIXTO E INÁCIO XANTHOPOULOI – P 1030. • Centúria espiritual – P 1032.
VOLUME IV CALIXTO, O PATRIARCA – P 1112. • Capítulos sobre a oração – P 1113. CALIXTO TELIKOUDES – P 1168. • Sobre a prática hesiquiasta– P 1169. • Sobre a prece e a atenção– P 1173. • Extrato dos santos padres– P 1176. CALIXTO CATAPHYGIOTES – P 1179. • Sobre a união divina e a vida contemplativa – P 1181. SIMEÃO DE TESSALÔNICA – P 1223. • Sobre a santa prece Deificante – P 1224. OPÚSCULOS EM GREGO DEMÓTICO – P 1227. • Sobre as palavras da prece divina – P 1228. • Interpretação do Kyrie Eleison– P 1232. • De São Simeão, o Novo Teólogo: •Discurso sobre a fé e o ensinamento– P 1235. • Sobre os três modos da prece– P 1240. • De São Gregório, o Sinaíta: • Como cada um deve orar– P 1245. • Da vida de São Máximo, o Capsocalyvita – P 1254. • Da vida de Gregório de Tessalônica – P 1257.
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