UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO
O Princípio da protecção do existente presente no art. 60.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação
DIREITO DO URBANISMO
Trabalho realizado por:
Nome: Filipe Braz Mimoso Turma B - Dia
Lisboa Ano Lectivo 2012/2013
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ÍNDICE
1. A garantia da protecção do existente……………………………………………….3
1.1 Origem……………………………………………………………………………3
1.2 Noção e fundamentos…………………………………………………………….3
1.3 Modalidades……………………………………………………………………...4
1.4 Função…………………………………………………………………………….5
2. Abrangência da protecção do existente……………………………………………...7
2.1 A conservação da edificação existente………………………………………….7
2.2 A alteração da edificação existente……………………………………………..8
2.3 A reconstrução da edificação existente…………………………………………8
2.4 A ampliação da edificação existente…………………………………………...11 3. A “incompleta” harmonização do n.º 2 do art. 60.º do RJUE…………………...12 4. Necessidade da legalização da edificação…………………………………………13 5. Conclusão…………………………………………………………………………...14 Bibliografia……………………………………………………………………………15
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1. A garantia da protecção do existente
1.1 Origem
A garantia da existência ou da manutenção (Bestandschutz), tem origem num princípio formulado pelo Tribunal Administrativo Federal Alemão. É de facto, unicamente, na jurisprudência alemã que esta concepção teve início.1
1.2 Noção e fundamentos
O princípio da protecção do existente a que fazemos referência, vem consagrado no art. 60.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (daqui em diante, simplesmente RJUE, por questões de simplificação), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99 de 16 de Dezembro.
A acepção que julgamos melhor caracterizar a protecção do existente, presente na doutrina nacional é, como descreve o Prof. Dr. Alves Correia, a de que esta está intimamente ligado ao princípio jurídico fundamental da protecção da confiança, o plano urbanístico produz efeitos apenas para o futuro, pelo que deve respeitar as edificações existentes à data da sua entrada em vigor, desde que elas tenham sido realizadas legalmente.2 O sentido do princípio da garantia da existência pretende tutelar os direitos dos particulares, que não podem ser postos em causa por novas supervenientes de planos (mesmo que exista contradição com estas) ou, se o forem, que sejam indemnizados pelo direito sacrificado. 3
Assim se compreende, que o princípio da protecção do existente assenta em princípios constitucionais consagrados: 4 antes de mais o direito de propriedade privada (art. 62.º n.º 1 da Constituição), enquanto direito análogo aos direitos, liberdade e garantias (art. 17.º da Constituição), pois constitui um limite à discricionariedade do planeamento; o 1
Cfr. JOÃO MIRANDA, A dinâmica, p. 330
2
Cfr. ALVES CORREIA, O plano, p. 346 apud JOÃO MIRANDA, p. 331
3
Cfr. FERNANDO ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, p. 678
4
Cfr. JOÃO MIRANDA, A dinâmica, p. 331
3
princípio da irretroactividade das disposições dos planos e da protecção da confiança (presentes nos arts. 2.º e 9.º al. b) da Constituição, enquadrados num Estado de Direito democrático, plasmado na Lei Fundamental).5
A protecção da confiança, enquanto elemento basilar da segurança jurídica dos direitos dos particulares num Estado de Direito confronta-se aqui, no entanto, com a prossecução do interesse público. Qual deverá então prevalecer? Segundo alguma doutrina nacional, a prossecução do interesse público deveria prevalecer de forma absoluta sobre o princípio da confiança.6 A nossa posição, no entanto, não poderá ser outra que não a conciliação desses dois aspectos, quanto ao princípio da confiança como garantia dos direitos dos particulares e do planeamento urbanístico (assente na estabilidade e previsibilidade), quer quanto à prossecução do interesse público enquanto factor essencial para uma adaptação do Direito do Urbanismo à sociedade. Como refere o Professor Dr. João Miranda, o próprio planeamento urbanístico conterá uma fundamental dialéctica entre, por um lado, a segurança jurídica (vertente objectivada) e a protecção da confiança (vertente subjectivada) e, por outro a dinâmica de interesse público, “estando a efectividade da harmonia do sistema de planeamento dependentes da procura constante de equilíbrio entre aqueles princípios de tendência antagónica”.7
1.3 Modalidades
O princípio da protecção do existente divide-se em duas modalidades, referidas anteriormente: a garantia da existência passiva e a garantia da existência activa.8 A primeira consiste na conservação do edifício e na utilização e manutenção da sua capacidade funcional. A segunda faculta ao particular, a possibilidade de licenciamento ou admissão de comunicação prévia para a reconstrução ou alteração da edificação. No entanto, esta 5
6
Cfr. FERNANDO ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, p. 677 e 678 Cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/João Pacheco Amorim/Pedro Gonçalves, Código, pp. 111-112 apud
PEDRO MONIZ LOPES, O existente tem direitos?, p. 16 7
Cfr. JOÃO MIRANDA, A dinâmica, p. 90 apud PEDRO MONIZ LOPES, O existente tem direitos?, p. 16
8
Cfr. JOÃO MIRANDA, A dinâmica, p. 331
4
última comporta a verificação de um de dois pressupostos: estas obras não poderão originar ou agravar a desconformidade com as normas legais em vigor, ou terão que ter como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação. Como veremos, o preenchimento de um ou simultaneamente deste dois pressupostos não se afigura nem fácil, nem equitativo, podendo originar casos surreais do ponto de vista da aplicação da legalidade urbanística.
1.4 Função
A função primordial do princípio da protecção do existente é, como já vimos, em última análise, a salvaguarda dos direitos dos particulares, no seio de um normal funcionamento do Estado de Direito democrático.
O art. 60.º do RJUE, no seu n.º 1, permite assim que o proprietário se guie pelo regime que estava em vigor, à data em que foram aprovadas as normas legais que deram origem ao seu legítimo direito. Estamos assim perante uma demonstração do Princípio do tempus regit actum, recaindo a relevância legal num direito anterior e não em normas legais supervenientes. Ou seja, o legislador quis estipular uma proibição da retroactividade das normas legais que sobrevierem (que, como referido anteriormente, tem amplo apoio constitucional): o que faz todo o sentido, visto que, por regra a lei só dispõe para o futuro.9 No entanto, a particularidade é que embora estejam ressalvados os efeitos anteriormente produzidos, mantém-se em vigor, paralelamente, normas legais já há muito revogadas.10
Na acepção do Prof. Dr. João Miranda, o princípio da garantia da existência seria um trânsito suave entre direito patrimonial velho (mais favorável) e direito patrimonial novo.11
Já o nº 2 do referido artigo 60.º do RJUE, tem por base não só a salvaguarda da 9
Cfr. art. 12º do Código Civil e MARGARIDA LOUREIRO e João Pereira Reis, Regime jurídico da urbanização e
da edificação: anotado: Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro: anotado, p. 165 10
MARGARIDA LOUREIRO e João Pereira Reis, idem.
11
Cfr. JOÃO MIRANDA, A dinâmica, p. 331, acepção esta adoptada de Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade, p.
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5
segurança jurídica dos direitos dos particulares, como também um fim de conciliação entre o conflito de normas em causa, tendo como objectivo uma solução intermédia. No entanto, como veremos, é exactamente nesta disposição que se originam, paradoxalmente, as maiores críticas à harmoniosa aplicação do preceito. À parte disto, a garantia da existência activa assim consagrada pela doutrina neste nº 2, traduz-se na aplicação de uma “3ª norma”, de direito transitório material, nem antigo nem novo. Como explica, de forma clara, o Professor Dr. João Miranda, o legislador, em lugar de impor a aplicação do plano antigo ou do plano novo, veio estabelecer uma regulamentação própria não coincidente nem com o primeiro nem com o segundo. Se se continuasse a aplicar as regras do plano antigo, o particular poderia fazer uso de todas as faculdades que lhe eram conferidas por este instrumento de planeamento (obras de ampliação, obras de alteração, obras de demolição, etc.). Pelo contrário a aplicação imediata do regime do plano novo poderia vir a traduzir-se, por exemplo, na necessidade de demolição da edificação se a nova disciplina de uso do solo assim o impusesse..12 Assim se vê que esta é uma norma “conciliadora” para a prossecução da legalidade urbanística, cuja função é a de promover a modernização das edificações e melhorar as suas condições de segurança e de salubridade.13
Quanto ao nº 3 do art. 60º do RJUE, estamos perante uma regra restritiva do princípio tempus regit actum, pois permite ao legislador a aplicação retroactiva de determinadas condições específicas para o exercício de certas actividades, bem como a realização de trabalhos acessórios em construções validamente constituídas ao abrigo do direito anterior. Ou seja, o legislador quis permitir uma maior harmonização das garantias dos particulares (em especial da protecção da confiança), com a prossecução do interesse público, nomeadamente ao aumentar o seu âmbito de aplicação.14
Por último, o art. 67º do RJUE, que na sua parte final remete para o disposto no art. 60º, comporta desvios face à garantia da existência, visto que estipula que a validade das licenças ou admissão das comunicações prévias depende da sua conformidade com as normas legais em vigor ao tempo da sua prática (assente, também, no princípio do 12
Cfr. JOÃO MIRANDA, A dinâmica, p. 333
13
Cfr. CLÁUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade, p. 282
14
Cfr. PEDRO MONIZ LOPES, O existente tem direitos?, p. 24
6
Tempus Regit Actum).
2. Abrangência da protecção do existente
2.1 A conservação da edificação existente
O art. 60.º, n.º 1 do RJUE permite ao particular, de forma implícita (embora decorra da imposição do art. 89º do RJUE), a conservação do edifício para manter as boas condições de utilização do mesmo.15 No entanto, este será um direito dos particulares, por estar implícito no direito de propriedade, nomeadamente quanto à manutenção do correcto uso e fruição da edificação e, por isso, de qualquer modo, nunca poderia ser vedado ao proprietário por parte da Administração.16 Já quanto à imposição decorrente do art. 89º, n.º 1 do RJUE, os proprietários devem assegurar que o edifício se mantém apto ao fim a que está destinado, em conformidade com as condições previamente definidas nas respectivas licenças ou autorizações urbanísticas, sob pena de intimação por parte da Câmara Municipal, para que estas se realizem (n.º 2 do referido artigo). Podemos distinguir, assim, as obras de conservação ordinária, que como explicámos anteriormente têm em vista o correcto e bom uso e fruição da edificação, de obras de conservação extraordinária que sejam impostas pela Administração para assegurar condições de boa utilização da edificação. Estas últimas poderão originar, se não forem acatadas as imposições da Administração aos particulares (n.º 2 do art. 89.º RJUE), a realização de obras coercivas (art. 91.º n.º 1 RJUE). Como sustenta, o Prof. Dr. Cláudio Monteiro, a ordem para a realização de obras coercivas é uma medida de natureza policial, que visa afastar perigos concretos para o bem legalmente protegido, configurado pela integridade física e pela saúde, não apenas dos seus ocupantes, como também do público em geral..17 Será, ainda como refere este autor, uma função de prevenção pública de eventuais “danos sociais”, que não será qualificada como uma mera sanção administrativa, aplicada ao proprietário pelo incumprimento do seu dever de conservação, mas como verdadeira prossecução, por parte da Administração, de 15
Cfr. CLÁUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade, p. 281
16
Idem, p. 284
17
Idem, p. 286
7
funções essenciais à correcta e segura vida em sociedade, bem como de uma saudável normalidade urbanística.18
2.2 A alteração da edificação existente
O nº 2 do art. 60.º permite a alteração de edificações por parte dos proprietários, desde que não origine ou agrave desconformidade com as normas em vigor ou tenha como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade. A definição para a alteração de edificações, está presente no art. 2.º al. e) RJUE, consistindo em benfeitorias mais profundas (especialmente quanto à modificação das características do interior da edificação), embora sem aumento da área de pavimento ou de implantação ou da cércea.
2.3 A reconstrução da edificação existente
A reconstrução do edificado existente, permitido pelo nº 2 do art. 60.º do RJUE, não procede a uma diferenciação operada pelas als. c) e n) do art. 2º do RJUE, consoante estas sejam realizadas sem ou com preservação das fachadas. Porém, os pressupostos referidos supra quanto à alteração da edificação existente, aplicam-se também à reconstrução de edificações existentes.
Todavia, têm surgido dúvidas quanto à possibilidade de serem consideradas como reconstrução de “edificações existentes”, os edificados que já não possuam existência física ou jurídica. Deverão merecer a protecção da garantia do existente?
Incluem-se, nestas dúvidas, duas situações típicas: a substituição do actual edifício existente por outro igual (independentemente da preservação ou não da fachada) ou a reconstrução de ruínas em solo rural, insusceptíveis, por meio de planos urbanísticos em vigor ou outras restrições administrativas, de ser urbanizado ou edificado. Em ambas as hipóteses, o edificado existente é destruído, quer por meio de causas naturais ou humanas (por exemplo a sua demolição para consequente reconstrução, o
18
Cfr. CLÁUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade, p. 286
8
seu abandono, ou a falta de realização de obras de conservação).19 Não havendo, em sentido material, existência física (não existiria substância, logo, por consequência, não haveria existência jurídica), fruto da destruição da edificação, alguma doutrina cível tem considerado a perda ou destruição da coisa de forma restrita, como facto extintivo de direitos reais, invocando a aplicação dos arts. 1476.º n.º 1 al. d) e 1485.º do Código Civil.20
Em sintonia com o que sustenta o Prof. Dr. Cláudio Monteiro, porém, haverá que apreciar a ratio do art. 60.º do RJUE, no sentido da preservação, não apenas estritamente material ou física da edificação, mas também jurídica. Assim, como refere o Professor, “o edifício não desaparece como bem jurídico e como elemento da paisagem ou da composição urbana pelo simples facto de se encontrar arruinado ou ser demolido, na medida que possa, se alteração da sua forma e substância originária, ser reconstruído e reposto em condições de ser utilizado de acordo com a sua anterior função.”. Curioso são ainda os argumentos, presentes no Código Civil, que o citado autor utiliza para fundamentar tal situação: relativamente ao direito de superfície, cfr. o art. 1536.º n.º 1 al. b) e al. e); e quanto ao regime da propriedade horizontal, cfr. o art. 1428.º n.º 1. 21
Não faria muito sentido, aliás, desconsiderar-se a garantia da existência a uma edificação por ter sido demolida, quando a própria demolição está prevista na licença ou comunicação prévia que aprova a reconstrução (com ou sem preservação da fachada, o próprio art. 60.º do RJUE não estabelece diferenciação), existindo por isso um nexo causal estrito entre as duas operações urbanísticas, consistindo num elemento constitutivo do direito à reconstrução do edifício, e não um facto extintivo do respectivo direito de propriedade.22
Todavia, existe doutrina que defende que existirão situações em que a reconstrução de edificações não beneficiará da protecção do existente, é assim: “Visando o presente normativo evitar a aplicação de novas normas urbanísticas a edifícios que, por se 19
Cfr. CLÁUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade, p. 289
20
Idem, ibidem.
21
Idem, p. 290
22
Idem, p. 290 e 291
9
encontrarem consolidados, não as podem cumprir, parece-nos que deve ser feita uma interpretação restritiva das situações às quais o mesmo se aplica. Deste modo, correspondendo as obras de reconstrução sem preservação de fachadas a obras que procedem à reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos de uma edificação existente, que podem ocorrer subsequentemente à demolição total ou apenas parcial da mesma, parece-nos que não deve ser de aplicar o regime da protecção do existente sempre que a obra de reconstrução ocorra após a demolição total, pelo menos nos casos em que a demolição não esteja compreendida num procedimento prévio direccionado para o efeito. Numa situação destas, desaparecendo a edificação originária, não vemos porque não cumprir com as novas regras entradas em vigor em data posterior à edificação originária, já que o regime especial previsto para edifícios existentes parte do pressuposto da impossibilidade fáctica de cumprir novas exigências, o que não sucede no caso”.23
Quanto à possibilidade de serem consideradas edificações existentes, aqueles edifícios totalmente destruídos, em que as suas ruínas não sejam reconhecíveis ou que não reste mais do que uma mera memória fotográfica ou documental, concordamos com o Prof. Cláudio Monteiro, quando sustenta que para lá do limiar da sua existência física ou da sua recognoscibilidade, o edifício não pode mais gozar da protecção do existente.24 De facto, tem de haver um mínimo de existência física (nem que seja a existência de ruínas reconhecíveis), para se poder assegurar a aplicação da protecção do existente, sob pena de o próprio artigo 60.º do RJUE deixar de fazer sentido: não tutelaria edificações construídas ou apenas parcialmente existentes, mas todo o direito de propriedade, o que não será viável, sendo esta uma norma urbanística.
Por outro lado, a jurisprudência administrativa portuguesa tem dado mais relevância ao facto de as obras não originarem ou agravarem a desconformidade com as normas legais vigentes, do que à problemática, por exemplo, da admissibilidade da garantia da existência face à reconstrução de ruínas.25 No Acórdão de 13 de Março de 2009 proferido pelo Tribunal Central Administrativo do 23
FERNANDA PAULA OLIVEIRA, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs, Regime
Jurídico da Urbanização e Edificação, p. 397 24
Cfr. CLÁUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade, p. 291 e 292
25
Idem, p. 292 e 293; cfr. Ac. STA 1S, de 01.03.2005, proc. n.º 291/04 e Ac. TCAS de 13.3.2009, proc. n.º 3667/08
10
Sul, considera-se que quanto à protecção pela garantia da existência, não obsta o facto de o Plano Director Municipal aplicável no caso, apenas permitir na zona “trabalhos de manutenção de muros e edificações”, por ser “evidente” para o Tribunal que, à luz da disposição legal em análise, aquele plano “disse menos do que queria”. O Tribunal, para chegar a esta conclusão, fez uma interpretação apoiada na Lei Fundamental quanto à disposição do plano, no pressuposto de que “este respeito pela edificação [a originária, frise-se] que pré-existe à norma proibitiva, verdadeiro princípio da garantia da existência activa, não é mais do que uma vertente da tutela constitucional do direito à propriedade privada, tal como consagrado no art. 62.º da Constituição da República Portuguesa”, e que o regime legal da protecção do existente (art. 60.º do RJUE), não é mais do que “uma verdadeira densificação desse direito através da lei ordinária”. 26
2.4 A ampliação da edificação existente
Segundo a letra do n.º 2 do art. 60.º do RJUE, só serão admissíveis obras de reconstrução ou de alteração das edificações, desde que não originem ou agravem a desconformidade com as normas legais em vigor ou tenham como resultado uma melhoria das condições de segurança e salubridade do edifício. Ou seja, não se incluiriam as ampliações de edifícios. No entanto, existe doutrina, com apoio da jurisprudência, que tem vindo a admitir a admissibilidade de tais operações urbanísticas, nomeadamente quando se esteja perante casos em que a modernização do edifício torne-se um elemento indispensável para manter a correcta utilização da actual função do edifício.27
A jurisprudência nacional tem tido um papel importante na interpretação a fazer do preceito. No Acórdão de 1 de Março de 2005, o STA concedeu protecção às obras de ampliação de um edifício existente, pois as mesmas, não originando ou agravando a desconformidade com as normas legais e regulamentares em vigor, não deveriam merecer tratamento diferente das obras de alteração ou de reconstrução expressamente
26
Cfr. CLÁUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade, p. 293 e Ac. TCAS de 13.3.2009, proc. n.º 3667/08
27
Cfr. CLÁUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade, p. 296
11
previstas na lei.28 3. A “incompleta” harmonização do n.º 2 do art. 60.º do RJUE
O fim último pretendido pelo legislador ao elaborar o n.º 2 do art. 60.º do RJUE, foi harmonizar a protecção da confiança dos particulares com o princípio da prossecução do interesse público. No entanto, é aqui que têm origem, paradoxalmente, incongruências indesejáveis para a correcta aplicação da legalidade urbanística.29 Aliás, como se extrai do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 555/99: “por esta via dá-se um passo importante na recuperação do património construído, já que, sem impor um sacrifício desproporcional aos proprietários, o regime proposto permite a realização de um conjunto de obras susceptíveis de melhorar as condições de segurança e salubridade das edificações existentes”.
Mas quid juris se um licenciamento de uma obra de reconstrução de uma edificação, simultaneamente agrava a desconformidade com uma norma urbanística em vigor, mas tenha como resultado uma clara melhoria das condições de segurança e salubridade da mesma? Consoante o maior ou menor grau de agravamento da desconformidade ou de melhoria das condições da edificação, terá assim que ser encontrada a melhor solução para o caso concreto. O problema de maior densidade é que, nem sempre tal é tão simples, como sucede nos casos em que a obra produza um grau igual (quanto ao agravamento da desconformidade legal ou da melhoria das condições de segurança e salubridade), bem como naqueles casos que produza um agravamento e, simultaneamente, uma redução da desconformidade verificada com o instrumento de gestão territorial aplicável… Haverá sempre, por parte da Administração, uma ponderação casuística para a adopção da melhor solução, embora sempre respeitando o princípio da protecção do existente, que não deixa de ser um limite à discricionariedade da mesma.30
28
Cfr. CLÁUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade, p. 292 e Ac. STA 1S, de 01.03.2005, proc. n.º 291/04
29
Cfr. PEDRO MONIZ LOPES, O existente tem direitos?, p. 31
30
Idem, p. 31 e 32
12
4. Necessidade da legalização da edificação
Como refere o Prof. Dr. Cláudio Monteiro, a doutrina portuguesa, na linha da doutrina alemã, entende que a protecção legal, através da garantia da existência, só seria atribuída às edificações que estivessem conformes com o direito, quer formal, quer materialmente, ao tempo em que tivessem sido construídas. O que faz todo o sentido, perante a correcta aplicação da legalidade urbanística. Todavia, pergunta-se se uma edificação realizada ilegalmente pode usufruir ainda da “protecção do existente”. Pode, é claro, se a Administração reconhecer que o direito à manutenção do direito de propriedade inerente, se “consolidou na esfera jurídica do particular por efeito de outras normas e princípios jurídicos”. Ora, estão aqui inseridos os casos de obras realizadas ao abrigo de licenças inválidas (anuláveis), que já não podem ser revogadas pela Administração ou impugnadas por terceiros, assim como a aquisição da propriedade por usucapião. No entanto, mesmo nos casos de falta ou nulidade da respectiva licença, a Administração pode “proteger” as edificações existentes, por via do art. 134.º n.º 3 do Código de Procedimento Administrativo, desde que preenchidos os devidos pressupostos, para o reconhecimento de efeitos jurídicos a situações de facto constituídas ao abrigo de actos nulos.31
31
Cfr. CLÁUDIO MONTEIRO, O domínio da cidade, p. 282
13
5. Conclusão
O princípio da protecção do existente terá então, como papel fundamental, o de constituir um limite à discricionariedade dos planos elaborados pela Administração e da sua própria conduta em todo o processo urbanístico, assente nos princípios constitucionais do direito da propriedade privada e da protecção da confiança. Constituir-se-á, se assim puder ser qualificado, como uma garantia dos particulares face à Administração (porque, em última análise, é disso que se trata), que permite que os seus direitos não sejam afectados pela posterior entrada em vigor de normas potencialmente desvantajosas. É essa ratio do art. 60.º do RJUE, embora a norma também possua, subjacente a ela, um interesse do legislador em relevar, na prática, uma harmonização entre um “direito velho” e um “direito novo”, acabando por criar um direito transitório material, uma “3ª norma”. A audácia do legislador é de louvar, mas as críticas surgem e surgirão, porquanto dificuldades práticas têm constituído um entrave a uma boa aplicação deste preceito. Cremos que o art. 60.º do RJUE peque por uma certa rigidez no seu n.º 2, que deveria possuir uma certa flexibilidade, socorrendo-se de uma maior discricionariedade da Administração face ao caso concreto. No entanto, a protecção do existente ficaria sempre salvaguardada, especialmente pela letra, crucial, do n.º 1 do art. 60.º do RJUE: os direitos dos particulares não são afectados por normas supervenientes, não haverá retroactividade das mesmas. Como referimos, o n.º 2, configurando uma “3ª norma” poderia ser ainda mais aberta, mais ampla, mais abrangente. Embora a protecção do existente seja um limite à discricionariedade da Administração, esta também terá que funcionar como elo de ligação entre a protecção da confiança e a prossecução do interesse público. Se alguma delas for afectada de forma desigual ou não equitativa, então a harmonia pretendida para a correcta e boa normalidade e prática urbanística será quebrada, não sendo benéfico, nem para os particulares, nem para a Administração, enquanto promotora do melhor interesse público (que incluirá também os próprios particulares enquanto cidadãos de um Estado de Direito democrático).
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Bibliografia
- CORREIA, Fernando Alves 2008: Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 4ª ed., Coimbra: Almedina, pp. 677-679
- MIRANDA, João 2002: A dinâmica jurídica do planeamento territorial: a alteração, a revisão e a suspensão dos planos, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 330-333
- MONTEIRO, Cláudio 2010: O domínio da cidade : a propriedade à prova no direito do urbanismo, Tese de doutoramento, Ciências Jurídico-Políticas (Direito Administrativo), Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 2011, orientador: José Manuel Sérvulo Correia, Lisboa, pp. 281-297
- LOPES, Pedro Moniz 2007: O existente tem direitos?: uma análise normativa do destino da edificação consumada, Relatório de mestrado para a cadeira de Direito Administrativo apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. - Orientador: Prof.ª Doutora Maria da Glória Garcia, pp. 10-36
- LOUREIRO, Margarida e João Pereira Reis 2002: Regime jurídico da urbanização e da edificação: anotado: Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro: anotado, Coimbra: Almedina, pp. 164-166
- OLIVEIRA, Fernanda Paula, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs 2012: Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, comentado, com as alterações da Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro, 3ª ed., Coimbra: Almedina, p. 397.
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