Departamento de Português Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares
Ano An o l eti vo 2016-17
Direção de Serviços da Região Centro
Ficha Infor mativ a
Ano : 10.º 10.º
21.11.2 21.11.2016 016
Crónica de D. João I de Fernão Lopes
Aspetos a considerar Capítulo 11 O capítulo 11 da Crónica de D. João I I apresenta-nos bons exemplos de uma afirmação da consciência coletiva . Conta-se nele a movimentação de uma multidão em direção ao Paço, em grande
agitação e por ter circulado a notícia de que a vida de D. João, Mestre de Avis, A vis, estava em perigo. Chegada ao Paço, a multidão verifica que foi o Mestre quem matou o conde João Fernandes Andeiro e não o contrário, o que provoca alegria geral. Vamos reler algumas expressões significativas que se encontram naquele capítulo:
"As gentes que esto ouviam, saíam aa r ua veer que cousa era; e começando de falar uns com os outros, alvoraçavom-se nas vontades [...]" "Soarom as vozes do arroído pela cidade ouvindo todos bradar que matavom o Mestre [...]" "Eper vontade de Deus todos feitos d'um coraçom com talente de o vingar [...]" "E tanta era a torvaçam deles, e assi tinham já em crença que o Mestre era morto, que tais avia hi que aperfiavom que nom era aquele [...]" "E em dizendo esto muitos choravom com prazer de o veer vivo." "Os quais mui ledos arredor dele, bradavom dizendo: Que nos mandais fazer, Senh or? que quereis que façamos?"
Bastam estas expressões para entendermos que aquilo que se destaca não é exatamente o desejo individual de alguém que, só por si, estivesse preocupado com a situação de um outro. Trata-se de representar a vontade de muitos, motivada por um sentimento comum de solidariedade e de proteção para com o Mestre de Avis. Ao mesmo tempo, esse sentimento de solidariedade relaciona-se com o empenhamento de muitos numa causa nacional; deriva daqui uma consciência coletiva que podemos identificar com o sentimento patriótico da comunidade. Neste caso, a comunidade é formada por gente sem nome, mas com uma voz que bem escutamos, através da evocação do cronista. Relendo o capítulo 11, observamos nele a definição de atores individuais e de atores coletivos . Antes disso, convém notar o seguinte: se falamos em atores, é porque temos a noção de como é importante aqui a ação (ou as ações ) de quem se movimenta, fala e age como com o se estivesse a representar um drama. Vejamos algumas passagens do texto que tornam isto evidente:
"O page do Mestre que estava aa porta [...] começou d'ir rijamente [...]" "Álvoro Pais que qu e estava prestes e armado com hũa hũa coifa na cabeça [...] cavalgou logo a pressa em cima dum cavalo [...]" "[...] começavom de tomar armas cada um com melhor e mais asinha [...]" "[...] e assi como viúva que rei nom tinha [...] se moverom todos com mão armada, correndo a pressa pera hu deziam que se esto fazia [...]" "Álvoro Pais nom quedava d’ir pera ala, bradando a todos: ‘Acorramos ao Mestre, amigos [..
As primeiras duas citações mostram-nos duas figuras: um pajem (ou seja, um jovem criado do Mestre de Avis) e Álvaro Pais. São eles que, como atores individuais , põem a ação em movimento. As duas citações seguintes referem-se já aos atores coletivos , sem nome que os identifique, por duas razões: porque são um coletivo e porque são gente simples do povo de Lisboa (do mesmo modo e também por isso, o pajem não tem nome). O que lemos no último trecho citado é a interação do ator individual com o coletivo. Repare-se ainda no seguinte: o título-resumo do capítulo anuncia que aqui se trata "do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavom o Mestre". Mestre". Isto sugere que a cidade (Lisboa) se vai afirmando como MOD.07, revisão 0
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alguma coisa mais do que um espaço: ela começa a ser uma espécie de personagem , com a dimensão coletiva do povo que lá vive. Como ator coletivo , o povo domina a ação. É ele que age, que fala, que grita, que se emociona e que expressa vontades, sem que alguma vez o cronista destaque daquele conjunto uma figura individualizada e com nome. Um aspeto dessa condição coletiva é a manifestação das mulheres como com o um subgrupo, sem destaque para nenhuma delas em particular; elas ocupam, contudo, um lugar próprio, de acordo com os costumes da época: segundo o cronista, as mulheres estão em casa. E assim, assim , "as donas da cidade pela rua per hu el [o Mestre] ia, saíam todas aas janelas com prazer dizendo a ltas vozes: Mantenha-vos Deus, Senhor." Outra coisa é verificarmos que, em interação com esse coletivo, alguns atores individuais vão surgindo, estando uns deles presentes e outros ausentes :
Presentes : o o o o
O pajem e Álvaro Pais, no início do capítulo; O Mestre de Avis, que aparece fisicamente no oitavo parágrafo; O conde D. João Afonso, que se encontra com o Mestre na parte final do capítulo; Outros fidalgos: Afonso Eanes Nogueira, Nogueira, Martim Afonso Valente, Estevão Vasques Filipe e Álvaro do Rego.
Au sen tes : o o o
O Conde João Fernandes Andeiro, que se sabe ter sido morto; A rainha Leonor Teles, chamada "aleivosa" (traiçoeira); O bispo de Lisboa, acusado de ser traidor e que vem a ser morto "desta guisa que se segue" {no capítulo seguinte).
Por fim, vale a pena chamar a atenção para o seguinte: na narração deste d este episódio, o cronista organiza os acontecimentos por forma a criar um efeito de suspense. O Mestre de Avis, que é o centro da preocupação coletiva (e também o ator individual que aqui mais se salienta), está ausente na primeira metade do capítulo. Isso não quer dizer que ele seja uma figura secundária; pelo pe lo contrário, a ausência cria uma tensão, que depois se transforma em entusiasmo, quando o Mestre, num gesto teatral, se faz presente, mostrando-se ao povo: “Ali se mostrou a hũa grande janela que vinha sobre a rua onde estava Álvoro Pais e a mais de gente […]”
Capítulo 148 O capítulo 148 pode ser lido como um aprofundamento do capítulo 115. Entre ambos, Fernão Lopes conta vários episódios da guerra da independência contra Castela: a conquista de Ourém, combates com o inimigo, atitudes e decisões de Nuno Álvares Pereira e do Mestre de Avis, as dificuldades sentidas em Almada, o prolongamento do cerco de Lisboa, etc. Este capítulo 148 trata daquilo que se passa durante o cerco , dando conta do grande sofrimento que atingia os habitantes da cidade. Vamos dar especial atenção a alguns trechos:
"Estando a cidade assi cercada na maneira que ja ouvistes, gastavom-se os mantimentos cada vez mais [...]" "Os da cidade como ouviam o repico, leixavom o sono, e tomavam as armas e saía muita gente [...]" "Na cidade nom avia trigo pera vender, e se o avia, era mui pouco e tam caro, que as pobres gentes nom podiam chegar a ele; ca valia o alqueire quatro livras [...]" "E muitos nom tinham outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com eles choravom que era triste cousa de veer [...]" "Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer alguns homens e mulheres, que tanta deferença há d'ouvir estas cousas, aqueles que as entom passarom, como há da vida aa morte?"
Relendo isto, confirmamos: este capítulo 148 dá a conhecer os efeitos do cerco descrito no capítulo 115. Esses efeitos estão anunciados no título-síntese: "Das tribulações que Lixboa padecia per mingua de mantimentos". mantimentos". Em duas palavras resume-se o que se segue no relato:
Tribulações (ou seja, aflições). Padecia (isto é, sofria intensamente).
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A partir destes sentidos, o cronista dá-nos informações e exprime reações (dele próprio, entenda-se) que transmitem o drama daquele sofrimento. Analisando essas informações e a forma como são trabalhadas, podemos observar o seguinte: a objetividade do cronista convive abertamente com a sua subjetividade, que é a de quem, ao relatar acontecimentos e comportamentos, não consegue ficar indiferente ao que eles significam. Assim:
São da ordem da objetividade os seguintes procedimentos: O capítulo é construído como algo que se segue ao que antes foi relatado ("na maneira o que já ouvistes"); ouvistes"); está em causa, então, um texto alargado , que é a crónica no seu conjunto; Algumas informações são dadas com a exatidão própria de um historiador: ficamos a o saber os preços dos alimentos e as suas quantidades ("ca (" ca valia o alqueire quatro livras"); certamente que o cronista teve de ouvir testemunhas da época ou consultar documentos. São da ordem da subjetividade as seguintes atitudes e expressões: Perante o dramatismo do que se passou, quem conta é sensível sensível ao contraste entre a o necessidade de descanso dos defensores da cidade e o seu dever de resistência ("leixavom o sono, e tomavam as armas"); A emoção sentida não deixa deixa dúvidas: quem diz que o sofrimento "era triste cousa de veer " o manifesta, sem disfarce, uma posição pessoal de solidariedade com aquele sofrimento; A reação emotiva torna-se torna-se mais acentuada quando toma a forma de uma interrogação o retórica (ou seja: uma pergunta cuja resposta é óbvia) dirigida a quem lê : "Como nom querees que maldissessem sa vida [...] vida [...]
É possível lermos este capítulo reparando na forma como a cidade de Lisboa se impõe como personagem coletiva. Mais do que um lugar, a cidade passa a ser um ator coletivo , com ações e com palavras que são de todos, sem se individualizar ninguém: "Oh quantas vezes encomendavom nas missas e pregações que rogassem a Deus devotamente por o estado da cidade; e ficados os geolhos beijando a terra, bradavom a Deus que lhes acorresse..." Por isso mesmo, neste capítulo 148 a cidade aparece em lugares do texto que lembram a sua importância como ator coletivo. A repetição , quase sempre em início de parágrafo, lembra a função que o refrão desempenha na poesia. Vejamos:
Parágrafo 1: "Estando a cidade assi cercada na maneira que já ouvistes [...]" Parágrafo 3: "Em esto gastou-se a cidade assi, apertadamente [...]" Parágrafo 6: "Na cidade nom avia trigo pera vender [...]" Parágrafo 8: "Toda a cidade era dada a nojo [...]" Parágrafo 12: "Foi tamanho o gasto das cousas que mester aviam que soou um dia pela cidade [...]"
Logo na abertura de cada um destes parágrafos é a cidade que aparece; fica assim realçada aquela sua condição de ator coletivo ou de personagem principal. Entre estes parágrafos estão intercalados atos, figuras e atitudes que só fazem sentido se forem pensados em função da cidade: o povo que passa as "tribulações "tribulações"" (parágrafo 2), os "Castelãos " Castelãos"" (castelhanos) que cercam Lisboa (parágrafo 4), os alimentos e os seus preços (parágrafo 7), o grande sofrimento dos que estão cercados (parágrafo 9). Nalguns momentos, surge o Mestre de Avis:
Parágrafo 5: "Como nom lançariam fora a gente minguada e sem proveito, que o Mestre mandou saberem certo [...]" Parágrafo 10: "Sabia porem isto o Mestre e os de seu Conselho [...]" Parágrafo 12: "[...] soou um dia pela cidade que o Mestre mandava deitar fora todolos que nom tevessem pam que comer [...]"
Estes breves reaparecimentos do Mestre de Avis (ele que antes tinha surgido como um ator i ndividual) significam um certo apagamento da sua figura neste capítulo. Assim, em vez de elogiar quem depois foi rei, o cronista presta homenagem ao coletivo. Por isso, o capítulo termina assim: “Ora esguardai como esguardai como se fosseis presente, hũa hũa tal cidade assi desconfortada e sem nehũa nehũa certa feuza de seu livramento, como veviriam em desvairados cuidados, quem sofria ondas de tais aflições? Oh geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tantos males, nem foi
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quinhoeiro de tais padecimentos! os quais a Deos por Sua mercê prougue de cedo abreviar doutra guisa, como acerca ouvireis.” Deste modo, chama-se a atenção para a comunidade que a cidade representa: "hüa tal cidade assi desconfortada". desconfortada". Finalmente, o exemplo de sofrimento da cidade estende-se até um outro coletivo, que é o de quem, muito tempo depois, lê ou ouve as palavras do cronista: a "geeraçom que depois veo" e o "poboo bem aventuirado" hão de dar atenção àqueles padecimentos e entender a História como um exemplo e como uma lição.
Fernão Lopes escritor literário Os capítulos da Crónica de D. João I que I que lemos e comentámos mostram o trabalho de um cronista, mas também o talento de quem constrói um relato que acaba por ser mais do que uma crónica. Pela ação do cronista ficamos a conhecer os factos, as figuras históricas, os lugares e os episódios mais importantes de um tempo muito perturbado da História de Portugal; por outro lado, o talento de contar é o que faz sobreviver até hoje o discurso que Fernão Lopes nos deixou. Isto quer dizer que o cronista usou recursos de estilo e técnicas narrativas que, depois dele, apareceram em textos literários de escritores propriamente ditos. É isso que aproxima o cronista da condição de escritor literário. Trataremos agora de analisar alguns desses recursos e técnicas, tendo em atenção os capítulos 11 e 148.
Composição de personagens As figuras históricas de que Fernão Lopes se ocupa aparecem-nos não apenas como personalidades que realmente existiram, mas também como personagens de uma ação narrativa que, em certos momentos, pode ser lida quase como com o se se tratasse de um conto ou de um romance. Além disso e como vimos, essas personagens podem ganhar uma dimensão coletiva, o que é um artifício usado para afirmar os interesses da comunidade. Assim:
O Mestre Mestre de Avis tem uma participação na história que, em determinados trechos, faz dele dele um protagonista. Ainda assim, ele tem hesitações e momentos de um certo apagamento; são aspetos que, não sendo escondidos pelo cronista, fazem parte da sua condição de pessoa humana. Leonor Teles e o conde João Fernandes Andeiro podem ser entendidos como os antagonistas , isto é, as personagens negativas (ou os vilões) de uma ficção. O conflito que estas personagens vivem com o Mestre de Avis e as atitudes deste (como quando mata o conde Andeiro, por exemplo) lembram a intriga de uma narrativa de ação. A individualização de algumas figuras torna-se mais evidente, quando elas são tratadas como representantes do coletivo e chefes em confronto: o rei de Castela põe cerco a Lisboa, como líder dos castelhanos, o Mestre de Avis é o seu adversário. Isto quer dizer que o protagonista luta contra um novo antagonista , porque a história evoluiu. A cidade de Lisboa e a sua população formam personagens , que valem pelo coletivo que representam. A cidade é personificada, como se se tratasse de uma pessoa humana, com emoções, com sentimentos e com sofrimentos. Nas figuras anónimas que formam o coletivo da população de Lisboa escutamos vozes e reconhecemos profissões e condições sociais. Com base nisto, podemos dizer que Fernão Lopes compõe tipos como os que mais tarde encontramos no teatro vicentino, em contos e em romances realistas. A feição coletiva da personagem (a cidade, cidade, o povo de Lisboa) faz parte de um processo que, partindo da crónica, anuncia a epopeia. Conforme depois se vê com Os Lusíadas, a epopeia relata re lata o destino de um povo e o seu percurso histórico. É esse destino coletivo que está em causa em episódios que a crónica relata.
Representação dramática Uma representação dramática trata de ações e de falas de personagens que parecem atuar perante nós, como se estivessem num palco. Nesse sentido, alguns episódios da Crónica de D. João I são uma representação representaçã o d ramática , mas são-no também por outra razão: há nesses episódios ações e reações MOD.07, revisão 0
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que expressam emoções fortes e conflitos intensos. Por isso temos chamado atores àqueles que dão força de teatralidade à história contada. Lembremos o capítulo 11, quando a agitação do povo comandado por Álvaro Pais nos faz "ver" gestos e "ouvir" falas que conduzem a um momento claramente teatral: Ali se mostrou o Mestre a hüa grande janela que vinha sobre a rua onde estava Álvoro Pais e a mais força de gente, e disse: Amigos apacificai-vos, ca eu vivo e são soom a Deus graças.
Elementos ficcionais O cronista tem um compromisso com a verdade histór ica e é disso que nos fala no prólogo da Crónica de D. João I. "Nosso desejo foi em esta obra escrever verdade", diz verdade", diz Fernão Lopes. E, contudo, nem sempre isso impede que o ficcionista apareça, ou seja, por vezes é a imaginação de Fernão Lopes, conduzida por uma espécie de narrador literário, que procura atingir dois objetivos:
informações de que não dispõe, dado que os documentos e os testemunhos a que o Completar informações
cronista recorre muitas vezes não são suficientes. Atribuir força expressiva ao discurso, relatando gestos, ações e falas que o cronista só poderia ter conhecido se tivesse assistido ao que conta.
Olhemos alguns exemplos em que podemos reconhecer uma certa tendência para a construção ficcional:
No capítulo capítulo 11, logo depois de mostrar o Mestre são e salvo à janela do Paço, o cronista dá lugar a uma fala coletiva: coletiva : "Ó Senhor! como vos quiserom matar per treiçom, bento seja Deus que vos guardou desse treedor". treedor". Estas palavras correspondem a um sentimento coletivo , mas não terão sido ditas em coro, exatamente como estão citadas; foi o cronista que tratou de as compor, com recurso à sua imaginação . No capítulo 148, descreve-se a situação de desespero do povo de Lisboa e diz-se que "ficados os com que isto é dito geolhos beijando a terra, bradavom a Deos que lhes acorresse". acorresse". O pormenor com leva-nos a pensar que o cronista usou de novo a imaginação para pintar este retrato impressionante.
Expressões retóricas/estilí retóricas/estilísticas sticas Ao falar em expressões retóricas, temos em atenção formas de construir o discurso em que está presente uma subjetividade intensa e uma intenção clara de impressionar e sobretudo de convencer o o leitor ou o ouvinte. É isso que se verifica nos diversos momentos do relato em que a cidade de Lisboa é personificada , como uma personagem com sentimentos próprios de um ser humano. Vamos dar atenção a alguns breves trechos dos capítulos que temos analisado. Neles veremos como o cronista abandonou a objetividade e usou expressões em que reconhecemos figuras que muitas vezes encontramos em narrativas literárias. Assim:
Quando quer reforçar a impressão causada por ações ou por factos, o cronista diz-nos com pormenor como essas ações se sucedem e como esses factos se ligam entre si. Por exemplo: A propósito do castigo dado a um traidor: "[...] e ele foi depois tomado e preso e arr astado, o e decepado e enforcado" enforcado" (cap. 148). Assim, a enumeração das várias fases da punição, com coordenação sindética, torna mais expressiva e de certa forma "visível" a violência da referida punição. O mesmo processo enumerativo aplica-se, de novo com polissíndeto , a uma descrição, o realçando-se as dificuldades sentidas pelo povo de Lisboa cercada. "[...] ca valia o alqueire [de trigo] quatro livras; e o alqueire do milho quarenta soldos; e a canada do vinho três e quatro livras; [...] e pequena posta de porco, valia cinco e seis livras que era hũa dobra castelã; e a galinha, quarenta soldos; e a dúzia dos ovos, doze soldos [...]" soldos [...]" (cap. 148). Por vezes o cronista mostra situações de contradição ou de conflito; o recurso à antítese põe em evidência componentes opostos de um par. Assim: A oposição entre o descanso (ou a paz) e a ação (ou a guerra), vivido pelos habitantes o de Lisboa expressa-se assim: "Os da cidade como ouviam o repico, leixavom o sono, e tomavam as armas [...]"(cap. [...]"(cap. 148).
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Mais expressivo ainda é o contraste entre a fraqueza causada pela fome e a força da coragem perante os inimigos: "[...] quando repicavom, nenhum nom mostrava que era faminto, mas forte e rijo contra seus emigos." (cap. 148) A função desempenhada pela antítese pode reforçar-se pela comparação : "E quando os emigos os torvar queriam, eram postos em aquel cuidado, em que forom os o filhos de Israel, quando Rei Serges, filho de Rei Dario, deu lecença ao profeta Neemias, que refezesse os muros de Jerusalém; que guerreados pelos vezinhos darredor, que os nom alçassem, com hüa mão poinham a pedra, e na outra tinham a espada pera se defender; e os Portugueses fazendo tal obra, tinham as armas junto consigo [...]" (cap. [...]" (cap. 115). o
Assim, um episódico bíblico serve de exemplo e de comparação para o esforço dos defensores; e a imagem ""com com hũa hũa mão poinham a pedra, e na outra tinham a espada pera se defender" lembra defender" lembra aquela que Camões usou n'Os Lusíadas: "Qual Cánace, que à morte se condena,/Nũa condena,/Nũa mão sempre a espada e noutra a pena" [canto pena" [canto VII, 79).
Pela interrogação retórica o cronista junta dois propósitos: primeiro, exprime um espanto ou uma surpresa através de uma pergunta desnecessária, porque a resposta é óbvia; segundo, pede a cumplicidade do leitor ou do ouvinte, no sentido de o acompanhar nesse espanto. Assim: "Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer alguns homens e o mulheres, que tanta deferença há d'ouvir estas cousas, aqueles que as entom passarom, como há da vida aa morte?" (cap. 148) A resposta só pode ser afirmativa. Para reforçar o seu argumento, o cronista usa uma comparação em antítese ("como há da vida aa morte"). "Pera que é dizer mais de tais falecimentos?" E falecimentos?" E logo depois: "[...] mas quem poderia ouvir o sem gemidos e sem choro tal ordenança de mandado àqueles que o nom tinham [pão que ]?" (cap. 148) As respostas óbvias a estas perguntas, que aparecem quando se comer ]?" acentua o sofrimento provocado pelo cerco, só podem ser de solidariedade . No fim do capítulo 148, fica claro que a interrogação retórica tem em vista os destinatários do relato. Depois da pergunta ("como veviriam em desvairados cuidados, quem sofria ondas de tais aflições?”), aflições?”), aparece uma apóstrofe, isto é, uma interpelação dirigida àqueles a quem se envia uma mensagem forte: “Oh geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tantos o amles, nem nem foi quinhoeiro de tais padecimentos!”
Esta “geraçom que depis veo” somos também nós, leitores de hoje, a quem o cronista se dirige logo no início do parágrafo, fazendo uso da frase imperativa e recorrendo ao efeito da visualização : “Ora esguardae como fosseis presente […]”.
Tópicos para revisão Algumas questões, a partir do que fica dito: 1. Como se manifesta a consciência coletiva na Crónica de D. João /? E que sentido faz essa consciência coletiva, tendo em atenção o que é relatado nos dois capítulos que lemos? 2. Significa a consciência coletiva o desaparecimento de atore atores s individuais ? Como se relacionam eles com os atores coletivos ? 3. Como se explica, no capítulo 11, o efeito de suspense? 4. É possível distinguir, em vários trechos da Crónica de D. João I, elementos objetivos e elementos subjetivos ? E quais? 5. No capítulo 148 voltamos a encontrar a cidade como ator coletivo . Em que expressões do texto lemos essa sua condição? 6. O que quer dizer o facto de, algumas vezes, o cronista se dirigir a quem o lê ou ouve ("como se fosseis presente")? presente")?
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7. Algumas figuras são trabalhadas como se fossem tipos semelhantes aos do teatro vicentino. Por que razão os reconhecemos como tipos? E que género narrativo é anunciado pelo coletivo (a cidade, o povo) trabalhado como personagem? 8. Por que razão Fernão Lopes por vezes recorre à imaginação ? E em que momentos ela se manifesta? Podemos afirmar que isso faz fa z parte da tendência ficcional que por vezes aparece em Fernão Lopes? 9. Diversos recursos de estilo podem ser considerados expressões retóricas . Em que medida essas expressões - enumerações, antíteses, comparações, interrogações retóricas, etc. -podem ser relacionadas com a subjetividade de quem relata? É adequado associar a subjetividade à forma como o cronista quer relacionar-se com o seu leitor ou ou ouvinte ?
Fonte: Carlos Reis, Crónica de D. João I de Fernão Lopes, Lopes , Porto Editora
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